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Mário Sérgio Olivindo
Cancioneiro
Editora chefe
Eva P. Bueno (St. Mary’s University, Texas - EUA)
Conselho editorial
Antonio Ozaí da Silva (Universidade Estadual de Maringá, Brasil)
Diego Buffa - (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)
Evaristo Falcão (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
Francisca Verônica Cavalcante (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
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Artur Nogueira Santos e Costa, Jeremias Brasileiro, Tadeu Pereira dos Santos
(organizadores). Urdiduras da história: tramas, linguagens e formas de
produção do conhecimento. Teresina: Cancioneiro, 2023.
276 f.: il.
cdd 900
Editora Cancioneiro
Teresina - Piauí
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Sumário
Apresentação................................................................................... 7
Trajetória de pesquisa:
os leitores de TEX e as performances culturais............................... 65
Aline Ferreira Antunes
8 - Urdiduras da história
Do ponto de vista teórico-metodológico, os trabalhos que compõem
a coletânea, mesmo que em sua diversidade, têm em comum o fato de
se ancorarem num rigor analítico típico da operação historiográfica. Tal
característica não implicou em desconsiderar que, como lembra Michel
de Certeau, são os/as historiadores/as, com suas opções, escolhas, ênfases
e silêncios, que articulam ideias, conceitos, que protagonizam o gesto de
converter dados materiais em fontes de pesquisa, que acionam certos pro-
cedimentos e que materializam um texto representativo de seus itinerários
investigativos. Os/as historiadores/as, assim, são sujeitos sociais, e a histó-
ria que produzem é “parte da realidade da qual trata.3”
Outro traço comum aos textos é a lida com farta documentação pro-
veniente de diferentes suportes, como novelas, músicas, impressos, litera-
tura, quadrinhos, entrevistas e performances artísticas. As diversas fontes
documentais foram apreendidas, nos estudos, como registros de relações
sociais, inscritas no tempo e no espaço e atravessadas por relações de po-
der. Nesses termos, os/as autores/as, revisitando seus percursos formativos,
procuraram tatear os procedimentos analíticos adequados para desvelar as
propriedades de cada conjunto de documentos, no intento de perscrutar os
conflitos, as representações, os discursos, os imaginários, as narrativas, as
memórias e as histórias que eles fazem funcionar.
A coletânea traz como eixo o foco mesmo no fazer histórico e his-
toriográfico, pensado como caminho para fortalecer as discussões sobre a
formação de historiadores/as, suas práticas profissionais no ensino e na
pesquisa e o desafio de fazer dessas trilhas um espaço constante de reflexão
e criação sobre a sociedade e suas demandas. Os onze textos aqui reunidos,
mesmo em sua pluralidade, são resultado do cotejamento de categorias e
conceitos à pesquisa documental, num processo criativo e inovador, e con-
ferem vigor aos dilemas historiográficos contemporâneos.
Nos dois primeiros textos, a música e suas nuances são tomadas como
objeto de reflexão, para problematizar as muitas frestas que compõem a
sociedade e os sujeitos de seu tempo. Assim, colaboram para compreender
os trânsitos, as apropriações e os fluxos que forjam os sentidos de uma dada
musicalidade.
Em José Fortuna e as guarânias brasileiras: a canção Índia e os fluxos
musicais Brasil-Paraguai, Jaqueline Souza Gutemberg discute a obra do
3. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita
da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 46-47.
10 - Urdiduras da história
dores, como raça, a fim de discutir como se constroem e naturalizam certas
representações sobre as mulheres negras.
Rosana de Jesus dos Santos, no capítulo Gênero, raça e geração na nove-
la Cheias de Charme, problematiza os significados sobre as mulheres negras
idosas produzidos na telenovela Cheias de Charme, por meio da análise da
forma como foi construída a personagem Valdelícia, interpretada na pe-
lícula pela atriz Dhu Morais. A novela foi exibida entre 16 de abril e 28
de setembro do ano de 2012, no horário das dezenove horas, na emissora
Globo, composta por 143 capítulos. Santos possui mestrado e doutorado
em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisa vinculada aos estudos femi-
nistas, de gênero e sobre os feminismos negros. Desde 2015, é professora
no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais.
A seguir, em E eu não sou uma mulata? performances, sexualidades e fe-
minismos, Patrícia Giselia Batista faz um debate profícuo e inovador entre
os campos da história e das artes/performances. Busca analisar o que é a
arte da performance, entendendo-a como um movimento histórico dentro
do cenário atual das artes contemporâneas brasileiras. Especialmente, pro-
põe aprofundar as análises da representação social mitificada da mulata na
história do Brasil, demonstrando como os discursos constroem a sexualida-
de dos sujeitos do/no feminino negro e como a representação e o imaginá-
rio social brasileiro são constantemente atualizados - nas artes e na mídia.
Patrícia Giselia Batista é mestra em História pela Universidade Estadual
de Montes Claros e doutora em História pelo PPGHI/UFU. Fez douto-
rado sanduíche, como bolsista CAPES do Programa de Desenvolvimento
Acadêmico Abdias Nascimento, no Interdisciplinary Center for the Study of
Global Change (University of Minnesota/EUA). Suas pesquisas versam sobre
Estudos Culturais, raça, gênero, teorias decoloniais e feminismos negros.
Na sequência, os dois próximos textos trazem em comum o fato de se
utilizarem da imprensa como espaço privilegiado de análise. Além disso,
enfocam questões, espacialidades e sujeitos alternativos aos grandes centros
urbanos, de modo que colocam em cena vozes nem sempre contempladas
em uma historiografia mais tradicional.
Em Entre História e imprensa do interior: reflexões de pesquisa para uma
prática historiográfica, Caio Vinícius de Carvalho Ferreira discute as espe-
cificidades da imprensa do interior, compreendida como aquela produzida
por e para cidades de pequeno e médio porte e seus públicos. Suas observa-
12 - Urdiduras da história
Já Túlio Henrique Pereira, em Entre a curva, a história e o rio: toponí-
mia, memória e representação da cidade sob o olhar de Guigui, procurou perce-
ber a maneira como o pintor Onofre Ferreira dos Anjos, conhecido como
Guigui, escreveu uma história no/do espaço, expressa em seus retratos do
ambiente urbano-rural da praça central da cidade de Itumbiara, no inte-
rior do Estado de Goiás. O autor buscou, ainda, questionar o modo como
Guigui parece ter conseguido, ao copiar fotografias, estabelecer memórias
e recriar imagens, despertar um vínculo imaginativo e afetivo naqueles que
observam suas pinturas. Túlio Henrique Pereira é mestre em Memória:
linguagem e sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
e doutor em História pelo PPGHI/UFU. Suas pesquisas versam sobre te-
mas como identidades étnicas e afro-brasileiras; história da pele e do corpo
negro no Brasil; escravidão negra no Brasil Imperial, Pós-Colonialismo e
Primeira República; imagens plásticas e visuais; século XIX e XX; cultura;
memória e representação. Atualmente, é professor Adjunto do Departa-
mento de História da Universidade Regional do Cariri.
Os dois textos a seguir, que fecham a coletânea, jogam luz sobre sujei-
tos históricos invisibilizados por uma narrativa oficializante e centrada em
grandes personagens. Abordam dimensões ainda pouco exploradas pela
historiografia: indígenas no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, no caso
do primeiro texto; e escravizados do Norte de Minas Gerais, no caso do
segundo texto.
No capítulo A visão da pena dos memorialistas sobre os indígenas do an-
tigo Sertão da Farinha Podre dos séculos XVIII e XIX, Robert Mori tece con-
siderações sobre as obras de memorialistas que se debruçaram sobre a his-
tória do antigo Sertão da Farinha Podre (nome pelo qual eram conhecidas
as atuais mesorregiões do Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba,
na primeira metade do século XIX). Procura pensar o processo histórico
vivenciado pelos indígenas que habitavam a região compreendida entre os
Rios Grande e Paranaíba nos séculos XVIII e XIX, ou que para ela foram
trasladados de diferentes partes da América portuguesa com o objetivo de
guerrearem contra os Kayapó do sul. Robert Mori é mestre em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em História
pelo PPGHI/UFU, com pesquisas sobre História do Brasil Colônia, His-
tória Indígena, processos de contato interétnico, guerras indígenas, aldea-
mentos e etnogênese. Realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-
14 - Urdiduras da história
José Fortuna e as guarânias brasileiras:
a canção Índia e os fluxos musicais Brasil-
Paraguai
1. José Fortuna (1929-1983) figura até os dias atuais como um dos mais renomados com-
positores do que ficou conhecido como música sertaneja raiz. Foi responsável pela intro-
dução das adaptações das guarânias no Brasil. Seu repertorio é composto por mais de 2000
canções e de mais de 40 peças teatrais. Foi poeta, dramaturgo e radialista entre os anos de
1940 e 1980. Conferir em: GUTEMBERG, Jaqueline Souza. Entre Modas e Guarânias:
a produção musical de José Fortuna e seu tempo (1950-1980). 2013. Dissertação. (Mes-
trado em História) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia. Uberlândia, 2013.
2. WISNIK, José Miguel. Entre o erudito e o popular. Revista de História, 157, p.
55-72, 2. sem. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/
view/19062/21125. Acesso em: set. 2022.
3. Ibidem, p. 56.
mesclando textos da literatura clássica nacional, da cultura popular nordes-
tina, como o cordel, e da influência da obra de artistas de renome nacional,
como Catulo da Paixão Cearense, do texto de Shakespeare Romeu e Julieta,
como impulso gerador de sua obra, levada aos circos-teatros, aos pavilhões,
encenada e cantada para o entretenimento de um público caracteristica-
mente representado pelas massas trabalhadoras, habitantes dos subúrbios.
As guarânias resultaram dessa manifestação versátil da obra de José
Fortuna que vivia o momento das hibridizações na música sertaneja, do
contato com outras sonoridades e linguagens. Introduzidas no Brasil a par-
tir dos anos de 1930 por influentes compositores da música sertaneja, como
Raul Torres, Nhô Pai e Florêncio, as guarânias propiciaram novos contor-
nos à musicalidade e aos temas até então usuais na música rural.
Neste capítulo, analisaremos a introdução das guarânias no contexto
de produção da música sertaneja dos anos de 1950 a partir da obra do
compositor José Fortuna. Para isso, dividimos o texto em duas partes: na
primeira, fazemos um breve histórico das guarânias no Brasil e a relação do
gênero paraguaio com a música sertaneja. Na segunda, uma análise desse
contexto de produção a partir da guarânia Índia (versão de José Fortuna),
uma das mais populares guarânias brasileiras.
4. Existe farta documentação a esse respeito, como é o caso das Revistas produzidas nesse
momento em defesa da música caipira, a exemplo da Revista Sertaneja da Editora Prelúdio,
publicada entre os anos de 1950 e 1970. Observa-se em suas páginas, através das colunas
escritas por jornalistas, radialistas e produtores, como Tinoco, o tom inconformado de al-
16 - Urdiduras da história
Na contramão desse projeto, está a inserção das guarânias no Brasil no
contexto de produção da música sertaneja no período. É bom lembrar que
um aspecto da guarânia, segundo Evandro Higa, além de seu sentimento
de melancolia associado a uma rítmica lenta e tranquila é o seu “caráter
urbano evidenciado no maior grau de complexidade harmônica e frequen-
tes mudanças de modo se comparada com a polca paraguaia de caráter
mais rural”5. No interior da cena artística da música sertaneja se observava
o contexto de mudanças de um Brasil que se via cada vez mais industrial
e urbano, consolidado no bojo dos projetos nacional-desenvolvimentistas
para o país6. Nesse sentido, o aspecto urbano da guarânia vem compor
o cenário de mudanças da musicalidade rural para aqueles que viam nas
transformações desse gênero musical a possibilidade de sua expansão no
mercado discográfico brasileiro, como foi o caso de José Fortuna. É esse
aspecto marcadamente urbano da guarânia que o interessa, permitindo a
produção de uma obra versátil direcionada a públicos mais variados.
Observamos que não há uma ação despretensiosa por parte do au-
tor com a adesão à musicalidade latina. Mesmo porque essa influência
estrangeira já ganhava adeptos nos anos de 1950, quando se percebe a
necessidade de modificar o repertório sertanejo e, portanto, forjar nova
imagem do caipira representada na canção e na estilização de seus artis-
tas. Dada à polissemia de seus autores, a nova vertente da música serta-
neja se permitia dialogar com variadas linguagens. E essa produção não
contava mais com a estética engessada e estigmatizada do caipira7. Ela
18 - Urdiduras da história
redimensionar a sua trajetória como compositor fora do circuito rural-cai-
pira. É bom ressaltar que a guinada para a música paraguaia e mexicana no
repertório de José Fortuna não nasce de uma prática espontânea. A região
mato-grossense já se fazia notar pela profusão de um repertório e de uma
prática musical reveladora da produção artística de importantes letristas,
como Zacarias Mourão na década de 1950 e, mais tarde, da atuação de
músicos do quilate de Almir Sater e da violeira Helena Meirelles. Nesse
sentido, o aspecto cultural fronteiriço, marcante na música sertaneja dos
anos de 1950, tinha raízes profundas fincadas na musicalidade de fronteira
entre Brasil e Paraguai, a partir do Mato Grosso, para o caso das polcas
paraguaias e guarânias.11
Evandro Rodrigues Higa faz um balanço dessa prática musical a par-
tir dos primeiros registros fonográficos dos gêneros musicais paraguaios
lançados no Brasil. Sua pesquisa mostra a crescente popularidade que esses
gêneros tiveram junto ao público brasileiro desde a primeira gravação da
guarânia paraguaia Al Paraguay, em 1935, no disco de Algustin Cárceres
pela Columbia. De um lado apresentava a guarânia Al Paraguay - de Al-
gustin Cáceres e Santiago Parissi - e do outro lado a polca paraguaia La
Canción del Arriero, também de Algustin Cárceres, com parceria de D.G.
Serrato e Torres.12
Com a intensa produtividade sertaneja desde as turnês de Cornélio
Pires e dos hilários Jararaca e Ratinho, na Argentina, com Os Turunas Per-
nambucanos, em 1925, da peregrinação dos circos-teatros, visualiza-se uma
grande circulação e intercâmbio de obras musicais entre os países sul-ame-
ricanos, que coloca a guarânia como gênero de grande aceitação popular
no Brasil, e atingindo o ápice de vendagem em disco com Índia, versão de
José Fortuna em 195113. Nota-se que esses artistas atravessaram a fronteira
e conviviam com outras fontes musicais que permitiram misturas.
A primeira gravação de uma guarânia brasileira foi lançada em 1941,
etc) da estrutura original, mas que sofre rearranjos para se adequar aos padrões da música
popular brasileira. Como exemplo dessa forma de construção das versões de José Fortuna está
a canção Meu Primeiro Amor, que tem como estrutura fixa a melodia, porém a letra, apesar de
mesmo tema (o amor), destoa da canção que lhe deu origem, intitulada Lejanía, que, tradu-
zida para o português significa distância geográfica.
11. HIGA, Op. cit.
12. Ibidem, p. 111.
13. NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34,
2000. p.123.
20 - Urdiduras da história
nascido em Villarrica15 e de José Alfredo Jimenéz (1926-1973), cantor e
compositor mexicano. Tal referência para José Fortuna parte da populari-
dade e do valor simbólico que o repertório desses compositores transmite.
Dessa forma, vincula à sua produção gêneros e estilos estrangeiros de gran-
de aceitabilidade no Paraguai e no México.
O repertorio desses artistas ocupa um lugar importante na memória
do cancioneiro popular de tais países, justamente porque expressa estrei-
tos laços com a questão da identidade nacional, sobretudo com a guarâ-
nia, no Paraguai, e a canção rancheira, no México. No Brasil, os estilos e
gêneros tiveram grande aceitação junto ao público consumidor da música
sertaneja, todavia, não ocuparam o mesmo espaço de luta de represen-
tações pela questão nacional de seus países de origem. As guarânias e
rasqueados, bem como os boleros e canções rancheiras, entraram como
gêneros e estilos que se mesclaram à nova realidade musical sertaneja, a
qual expressa novo comportamento de público consumidor a partir dos
anos de 1960, com “uma linguagem mais afogueada para falar de amor,
trocando os beijos da tímida caboclinha debaixo de pés de ipê pelo amor
de moças fogosas em camas macias de motel”.16
Esse é o lugar que as versões e adaptações de José Fortuna ocupam
no cenário da música sertaneja e no perfil de seu público que não mais
representa o caipira, estilizado em obras literárias como Velha Praga e
Urupês, de 1914 e cantado por Mário de Andrade, Viola Quebrada, de
192917. Dessa perspectiva estilizada, talvez seja possível considerar que
esse homem do campo não existira, sendo um constructo do imaginário
social brasileiro para a representação do habitante dos sertões esquecidos
que migra ou é forçado a migrar para as cidades em busca de trabalho18.
No século XX, diz Nepomuceno, “o homem do campo transmutou-se,
camaleônico, envolvido pela cultura do forasteiro, seduzido pelas novida-
des da civilização (...)”.19
As adaptações construídas por José Fortuna se deslocam das temáticas
caipiras para o tema romântico, o que na verdade já vinha se delineando
15. Conferir: http://www.portalguarani.com. Acesso em: set./2022.
16. NEPOMUCENO, Op. cit., p.169
17. Ibidem, p.27.
18. YATSUDA, Enid. O caipira e os outros. In: BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira:
temas e situações. São Paulo: Ed. Ática, 1992.
19. NEPOMUCENO, Op. cit., p.27.
[...] Com seu ritmo – derivado da polca paraguaia – marcado pela ambi-
guidade do compasso 6/8 associado a uma base ternária, a guarânia repre-
senta para o Paraguai um sentido identitário que foi sendo construído à
medida que o nome de José Asunción Flores (1908 – 1972) – a quem é
atribuída sua criação – ganhava destaque na luta ideológica travada contra
o Estado totalitário, convertendo-se em um dos mais vigorosos símbolos
do que se costuma denominar “alma guarani”.21
22 - Urdiduras da história
por José Fortuna no Brasil, feita da sua percepção e entendimento do que a
melodia propunha, melancolia, tristeza, fornece o ambiente adequado para
a trama da dor da separação de um casal apaixonado:
[...] Ele conhecia muito de música de todo o tipo. Ele escutava os pro-
gramas que pegava de fora. Sintonizava os programas de fora e ficava
ouvindo. Daí ele ia no programador da Rádio Record, conhecido dele, e
ficava lá, folheando os discos, ouvindo aquilo tudo lá. O mano era muito
antenado. Então, quando fez a Índia, já tinha outra engatilhada, porque já
conhecia a guarânia. Mas não foi só isso, depois teve Lembrança e outras
de muito sucesso, tudo dele, né? A gente viajava muito, o país todo com
os dramas e tinha isso, o Zé era conhecido e conhecia muita gente, artistas
e ia trocando. Conhecia a música de todo lugar. Não foi difícil fazer as
guarânias com a mente que ele tinha também. Mas as guarânias é disso
aí, que ele escutava no rádio e gente que chegava no circo cantando coisas
diferentes...e gostava e queria saber mais. Não foi difícil para ele porque
ele gostava do que fazia, gostava de música, de verdade.26 [grifos nossos]
24 - Urdiduras da história
bioses com as guarânias. Pretensiosamente, vasculha o repertório popular
de outras localidades a fim de extrair daí um sucesso sem precedentes. Pi-
tangueira descreve a euforia do momento em que Zé Fortuna apresenta a
versão de Índia para Cascatinha e Inhana:
[...] ele era vendedor na época, vendia coisas, ele tava com um mostruário
lá na Pompéia, parou um caminhão na frente. Em cima tinha um que
assoviava (assovia a melodia de Índia). O Zé falou: “ é a música que o
Pitangueira falou!” . Ele saiu atrás do caminhão, e foi acabando de escre-
ver, “vamos ver”. Foi fazendo a letra. Mas era uma modificação da letra,
né? Que dizia assim: “índia seus cabelos cheios de piolho...” (cantou). Ele
pegou o comprimento da música, fez uma bestificação da letra pra depois
fazer ela. Foi assim. Aquele negão não sabe o que aconteceu, que muita
coisa mudou depois daquela música. Cascatinha e Inhana ficou bem. Eles
ficou bem, né? Nós ficamos bem (...) O Zé pegou um pedaço que eu ensi-
nara pra ele, mais o pedaço que ele ouviu assoviado, aí escreveu ele inteira.
Aí bom, continua. Aí, precisava gravar. Então levou pro Cascatinha e
Inhana gravar.29 [grifo nosso]
26 - Urdiduras da história
[...] o nosso primeiro disco foi La Paloma e Fronteiriça, lançado na praça
foi bem aceito graças a Deus, vendeu várias cópias e ficamos feliz com isso
porque no mesmo instante que gravamos La Paloma e Fronteiriça, nós
já tínhamos em mãos a letra de Índia, que é de José Fortuna. Então eu
peguei, aproveitando a oportunidade e a boa vontade do diretor mostrei a
letra de Índia para ele. E disse: essa você não vai gravar porque existe uma
versão que era do Capitão Furtado e gravada por Arnaldo Pescuma. Só
pode gravar uma versão, duas não pode. Mas, como estávamos na rádio e
não tínhamos um repertório próprio, formado, só com essas duas músicas
gravadas, Fronteiriça e La Paloma e.... Me Leva e assim por diante, de vez
em quando Índia, vira e mexe Índia, todo dia Índia, Índia, Índia. Agora as
pessoas que acostumaram a comprar La Paloma e Fronteiriça, chegavam
nas casas e pediam: eu quero com Cascatinha e Inhana, Índia. E as casas
pedindo pras fábricas. Até que um dia, depois de tempo, o diretor da
Continental se aborreceu. Me mandou um recado que fosse urgente no
escritório. Cheguei lá ele disse: essa tal de Índia que tão falando, o que
que é? Eu disse: faz um ano, que naquela época o senhor se lembra que a
gente gravava um 78 por ano, disse: faz um ano que eu lhe mostrei e o se-
nhor falou que não podia gravar. Ele disse: e esse cara que fez essa versão
é capaz de fazer outra versão? Porque a Fermata não permite uma música
brasileira e outra versão. É capaz de fazer outra versão? Eu digo: é. Era
mais ou menos umas três horas da tarde. Ele disse: então procure e man-
de fazer uma letra. Então eu corri na Record e dei sorte e encontrei o Zé
Fortuna lá. Contei o caso pra ele e ele disse: é pra já. Então ele veio aqui
na Avenida Ipiranga, na Fermata, na Editora Fermata e desfolhando as
músicas paraguaias encontrou Meu Primeiro Amor. Fez a letra quinta-fei-
ra, me entregou quinta-feira à noite e quando foi sexta-feira nós gravamos
Índia e Meu Primeiro Amor.30 [grifos nossos]
30. Entrevista ao programa MPB Especial, TV Cultura, 1973. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=PZYX1UBmUmo. Acesso em: set../2022.
31. Neste trecho Cascatinha relata a existência de outra versão da Índia paraguaia. Apesar
dessa afirmação, não encontramos nenhum registro da versão citada.
[...] lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares
do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante.
Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão
abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpre-
sas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.34
28 - Urdiduras da história
As táticas operam no interior do instante e revelam-se audaciosas em
sua intervenção no momento oportuno35. A propósito disto, a intervenção
de José Fortuna insinua astutamente uma reorganização do padrão de mú-
sica sertaneja que se consumia na época da versão de Índia, estabelecendo
um caminho que lhe assegura um lugar próprio: vasculha o repertório de
artistas populares, mesclando-o à realidade musical e textual da música
sertaneja e, com efeito, escolhe os intérpretes propensos a uma maior acei-
tabilidade aos gêneros e ritmos não convencionais ao padrão de produção
e consumo da música sertaneja até aquele momento. As táticas, mais uma
vez, insinuam-se como uma maneira de pensar o momento e agir apro-
priando-se dos recursos musicais estrangeiros a fim de promover a popula-
rização das guarânias no mercado da música sertaneja.
Para Antenor Vicente, integrante da Trupe “Os Maracanãs” monta-
da por José Fortuna, as versões das guarânias paraguaias tiveram grande
popularidade devido à sua similaridade com a emoção das guarânias ori-
ginais. A interferência de Zé Fortuna foi decisiva na grande repercussão
do estilo no Brasil por meio da versão de Índia e dos demais gravados
desde a década de 1940:
[...] Ele era inteligente. Muito inteligente e curioso. A guarânia não foi
criação dele, mas foi com ele que teve o grande sucesso, que explodiu.
Foi a Índia, dele, né? Já tinha guarânia de muitos artistas. Mas as guarâ-
nias do Zé Fortuna foi diferente, é mais emotiva assim. Não tinha nada
igual não, porque ele trouxe a música igual a do Paraguai. Com a mesma
emoção, sofrimento, tristeza das guarânias. Veja os arranjos. Solidão,
por exemplo. Arranjo melancólico. Mas ele tinha inspiração naquela
música, daquele jeito mesmo. Os compositores ele conhecia de ouvir,
tudo que tinha e tal, lá da Rádio Record que ele pegava...é...escrevia,
anotava. Assim...ouvia e ia já fazendo quando interessava em alguma.
Tinha curiosidade pelas músicas de fora também. Gravamos muitas.
Meu Primeiro Amor, é Lejania, Lejania, é o original. Ele conhecia isso
aí...ah!...era curioso (risos). 36 [grifos nossos]
37. FORTUNA, José. Índia. Intérpretes: Cascatinha e Inhana. Disco n. 5.179. São Paulo:
Todamérica, 1951. 78 rotações.
30 - Urdiduras da história
[...] India, bella mezcla de diosa y pantera,
doncella desnuda que habita el Guairá.
Arisco remanso curvó sus caderas
copiando un recodo de azul Paraná.
De su tribu la flor,
montaraz guajaki,
Eva arisca de amor
del edén Guarani.
La silvestre mujer
que la selva es su hogar
también sabe querer
también sabe soñar.38
Considerações finais
32 - Urdiduras da história
pecial da década de 1970, relatou que os diretores fecharam as portas na
primeira tentativa de gravar a guarânia paraguaia Índia, reconhecidamente
um de seus maiores sucessos41. Mas o que o discurso não revela é que as
práticas que atuam nas brechas do sistema instituíram, pela criatividade de
seus artistas e necessidade de ampliação do público e do mercado, novas
combinações para a canção sertaneja que não atendiam ao ideal de pureza
que o discurso trazia, mas que diante do sucesso dos estilos estrangeiros no
Brasil, como os ritmos paraguaios e mexicanos, “permitiram” seus registros
nos álbuns de música sertaneja já em 1950.
O que se observa é que, na prática, procuravam-se formas de entrar no
mercado, mesmo com a resistência de algumas gravadoras com os ritmos
estrangeiros. O fato é que a canção Índia ganha toda essa repercussão nas
vozes de Cascatinha e Inhana na rádio Record. A versão data de 1952 e só
foi registrada um ano depois no álbum da dupla. Mas a popularidade da
canção iniciou antes mesmo de ter seu registro em disco, e, como já fazia
José Fortuna com suas canções, foi testada nos microfones da rádio. A
popularidade de Índia forçou sua gravação, segundo Cascatinha. Para Pi-
tangueira “(...) o diretor artístico Ernandes, da gravadora Todamérica, teve
que engolir essa. Ele não queria gravar esses ritmos. Mas a Índia era su-
cesso na boca do povo. Não tinha como não gravar”42. Em 1953, José For-
tuna explora o sucesso que a canção Índia havia conquistado, reforçando
sua disseminação massiva com a estreia da peça Índia no Circo Garbi, no
bairro Vila Diva, em São Paulo. A popularidade obtida graças à “rendição”
do mercado discográfico foi apropriada e adaptada a uma nova linguagem,
deslocando-se para o cenário do circo. Essa era a tática daquele que, atuan-
do na ocasião, impunha suas maneiras de articular e de ser notado, con-
quistar o público massivo e difundir sua produção. É nesse espaço que José
Fortuna vai consolidar-se no mercado artístico da música sertaneja e insti-
tuir uma nova forma de trabalhar e pensar sua obra artística no interior da
incipiente cultura de massa. Após o sucesso de Índia no disco e, depois, no
circo, o autor vai gerenciar a sua obra em torno dos melodramas e apresen-
tá-los no palco dos circos e pavilhões, aproveitando toda a mediação feita
pelo rádio e pelo sucesso do disco de Cascatinha e Inhana. Dessa forma,
segue a sua jornada rumo ao grande público, com a criação de sua própria
41. Entrevista com Cascatinha e Inhana, MPB Especial, TV Cultura, 1973.
42. FORTUNA, Euclides (o Pitangueira). Depoimento. Editora Fortuna Music/São Paulo,
2008.
34 - Urdiduras da história
outros espaços (no caso, à cidade) e contextos sociais. Na apropriação das
práticas socioculturais ditas tradicionais em diferentes tempos observa-se
um processo de (re)significação, no sentido não de sua descaracterização
mas de seus novos usos.
Referências
OLIVEIRA, Allan. Miguelin Foi pra Cidade ser Cantor: uma antropo-
logia da música sertaneja. 2009. Tese. (Doutorado em Antropologia) –
36 - Urdiduras da história
Rap, cultura polifônica e bivocal
Roberto Camargos
38 - Urdiduras da história
Paranhos, promoveu um diálogo com “Chão de estrelas” para realçar a
permanência de certos problemas sociais que se arrastavam por décadas. O
caso da gravação dos Mutantes é outro, porque, de acordo com Paranhos,
eles elegeram “Chão de estrelas” como bode expiatório na sua luta contra o
nacionalismo arraigado no campo musical brasileiro. Daí sua interpretação
iconoclástica, paródica, que a dissolveu em cacos. Isso fornece mais um
indício de que “nem seria possível submetê-la [“Chão de estrelas”] a uma
blindagem que a mantivesse a salvo de qualquer tentativa de reapropriação
de seus sentidos”. Resta, então, a conclusão de que, “por mais cristalizadas
que sejam as leituras que se façam dessa ou daquela canção, sempre é pos-
sível injetar-lhe novos sopros de vida”.7
As análises de Adalberto Paranhos se apoiam, em parte, nas reflexões
desenvolvidas por Mikhail Bakhtin entre as primeiras décadas do século
XX e o final dos anos 1960. Esse pensador russo deixou importantes con-
tribuições para aqueles que ambicionam compreender os diálogos que um
artefato cultural estabelece com outras obras ou discursos, já que, em seus
estudos, explorou a dimensão dialógica da linguagem.
É o que se vê no livro Problemas da poética de Dostoiévski8, que trouxe
grandes contribuições para o estudo da linguagem, e é, seguramente, fun-
damental para se entender melhor formulações como polifonia, dialogis-
mo e bivocalidade. Essa obra de Bakhtin — de 1929, porém corrigida e
ampliada na década de 1960 — é dedicada, como o título indica, à poética
de Dostoiévski, que, para ele, é um dos maiores responsáveis por inova-
ções na área artística, sendo o criador do pensamento artístico polifônico.
Para Bakhtin, “este tipo de pensamento artístico encontrou expressão nos
romances dostoievskianos, mas sua importância ultrapassa os limites da
criação romanesca”9, pois a dimensão polifônica se faz presente em outros
tipos de criação artística.
O projeto para a reformulação de Problemas da poética de Dostoiévski,
concretizado nos anos 1960, tinha vários objetivos e nele o problema da
polifonia apareceu no centro da análise, momento em que foi “anotando
que a consciência do outro não se insere na moldura da consciência do au-
7. Ibidem, p. 5.
8. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-U-
niversitária, 1981.
9. Ibidem, s./p.
40 - Urdiduras da história
Alguns desdobramentos dessas concepções — que elevaram as rela-
ções dialógicas a objeto dos estudos da linguagem — permitiram minu-
ciosos estudos de narrativas/discursos e de suas relações com o discurso
do outro.13 As formas pelas quais o discurso do outro marca sua presença
são percebidas na convivência e interação de uma multiplicidade de vozes
regidas pelo autor numa narrativa, o que caracteriza a polifonia, e pelo
emprego ambíguo do discurso do outro, caracterizando o discurso bivocal,
no qual “um autor pode usar o discurso de um outro para os seus fins pelo
mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que
já tem sua própria orientação e a conserva. Nesse caso, esse discurso, con-
forme a tarefa, deve ser sentido como o de um outro. Em um só discurso
ocorrem duas orientações significativas, duas vozes”.14
As ideias/os conceitos de polifonia e bivocalidade implicam o enten-
dimento de que nenhuma narrativa (ou discurso, ou linguagem) é suficien-
te por si só, sempre envolvendo vozes dialogicamente relacionadas. Tal
concepção é sugestiva para se explorar a existência de um claro diálogo
que perpassa muitos raps e dá origem a concepções de mundo e a ideias
partilhadas que estão em constante movimento.
***
Em 1997, o quarteto formado por Ice Blue, Edi Rock, Mano Brown
e KL Jay lançou o disco Sobrevivendo no inferno. Esse LP, considerado uma
referência obrigatória por quase todos os MCs brasileiros, agrupa canções
que desdobram duras experiências de quem está “tentando sobreviver no
inferno” onde “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. [Onde] a cada quatro pessoas mortas pela po-
lícia, três são negras. [Onde] nas universidade [...] apenas 2% dos alunos
são negros. [Onde] a cada quatro horas um negro morre violentamente”.15
O espetáculo que se vê (ou melhor, que se ouve) é pouco animador, mas,
apesar disso, esse disco cravou seu lugar na sensibilidade de uma parcela
ponderável dos brasileiros, especialmente os negros, pobres e moradores
13. Os estudos que abordam o princípio dialógico da linguagem percorrem duas concepções
de dialogismo: o diálogo entre interlocutores dentro de um texto e o diálogo entre discursos.
14. BAKHTIN, Op. cit., p. 164.
15. “Capítulo 4, versículo 3”. Racionais MC’s. LP Sobrevivendo no inferno. São Paulo:
Cosa Nostra, 1997.
16. “Detento” Mano Brown filma no Carandiru. Fernando Oliva. Folha de S. Paulo, 29 jan.
1998.
17. “Diário de um detento”. Racionais MC’s. CD Sobrevivendo no inferno, Op. cit.
42 - Urdiduras da história
Estação Carandiru18, do médico Drauzio Varella, e do filme Carandiru19,
dirigido por Hector Babenco — um dos mais conhecidos relatos sobre a
tragédia. Contudo, não é exatamente isso o que importa aqui. O que quero
salientar não é a representação construída pelos rappers acerca do “massacre
do Carandiru” e a importância que ela adquiriu ao circular socialmente,
mas, sim, um aspecto pontual que tomo como ponto de partida para ana-
lisar o dialogismo e a polifonia no rap. Trata-se de uma inflexão moral
perceptível nesse rap, que comunica uma experiência e transmite um saber
que atravessa várias gerações de rappers brasileiros (o que foi possível, em
parte, pelo sucesso que o álbum e a composição atingiram).
Entrando no que realmente me interessa, frise-se que essa composição
se conecta com aquilo que Paulo Bezerra caracterizou como um procedi-
mento próprio do romance polifônico: “o autor não fala pela personagem,
não a reduz a seu objeto, mas [...] deixa que ela fale ‘carregando nas tintas’,
use sua linguagem, seu estilo, sua ênfase, pois não é ele, autor, quem fala,
mas o outro que ele reconhece como sujeito de seu próprio discurso e dono
de sua própria maneira de exprimir-se”.20
Assim, mais do que expor o episódio no Carandiru, o personagem-nar-
rador desse rap pontua, sutilmente, fragmentos do cotidiano, do complexo
processo histórico vivenciado pelos presos antes e durante o cumprimento
suas penas. Enfocam-se dramas e percepções que, de um modo ou de ou-
tro, eram ao menos parcialmente compartilhados por outros presidiários.
Atenta à dialética que permeia a vida e se mostra mais perversa no mundo
povoado pelas classes populares, a composição martela:
18. VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
19. Carandiru. Direção: Hector Babenco. Brasil: Sony Pictures, 2003, 1 DVD (son., color.).
20. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Op. cit., p. 196.
21. “Diário de um detento”, Op. cit.
22. Ibidem.
23. FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Op. cit., p. 80.
24. BAKHTIN, Mikhail, Op. cit., p. 73.
44 - Urdiduras da história
dialógicas, sendo apropriada e desdobrada no discurso de outros rappers.
Nenhuma novidade, pois, como destacaram estudiosos como Ecio Salles,
“a intertextualidade revela-se uma prática arraigada na própria concepção
da música rap [já que] em cada letra e em cada fragmento sonoro de uma
composição, percebemos a presença de trechos de outras letras, de sono-
ridades alheias”.25 É o caso de Rodrigo Ogi, que quase quinze anos após a
gravação de “Diário de um detento”, apropria-se de vários de seus elemen-
tos e os insere em outro contexto.
É o que se ouve em “A vaga”26, faixa que Rodrigo Ogi gravou para
compor o seu disco Crônicas da cidade cinza. Essa música comenta (às vezes
indiretamente, de maneira que o interlocutor, o Racionais MC’s, perma-
nece numa zona de sombra, embora possa ser identificado a partir de ves-
tígios) trechos de “Diário de um detento”, a começar pelas situações que
potencialmente podem levar o sujeito da ação a cometer atos que seriam
passíveis de provocar sua prisão. A “história de lágrima, sangue, vidas e
glórias, abandono, miséria, ódio”, narrada pelo Racionais MC’s como a
“química” para a produção de um novo detento é reconfigurada por Ogi.
Com tom aparentemente mais leve, ele descreve o sufoco de quem luta pela
sobrevivência: “saí a captura no ônibus lotado/ às 5 da matina, num dia
acinzentado/ eu tava precisando de uma remuneração/ sonhava em superar
os meus dias de cão”.27
À maneira do ditado popular “a ocasião faz o ladrão”, o personagem
vê, logo em seguida, uma pequena chance para aliviar, mesmo que mo-
mentaneamente, sua situação de carência crônica. E o desfecho se dá como
que à luz do conselho de que “a vida bandida é sem futuro”28:
Tenho fé, um café vou tomar ali/ Um pingado e um pão na chapa pedi/
Nem pensei, debandei, não paguei o que consumi/ Novamente a cons-
ciência foi sem clemência/ Me fez consertar um ato de inconsequência/
Retornei pra pagar 2 reais/ Fiquei sem um tostão, mas pude seguir em
paz29
25. SALLES, Ecio. Poesia revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p. 57.
26. “A vaga”. Rodrigo Ogi. CD Crônicas da cidade cinza. São Paulo: 2011 (independente).
27. Ibidem.
28. “Diário de um detento”, Op. cit.
29. “A vaga”, Op. cit.
Trombo um parceiro que também tava na correria/ Ele me diz que ti-
nha um plano pra salvar o dia:/ “Esquema no Anhangabaú pra nós pas-
sar bem/ Vamos encher nosso baú com notas de cem”/ Mas o malandro
quando é esperto demais cai/ Só peço pro Pai paz, e a zica que atrai, sai/
Tô no limite mas recuso o convite.31
46 - Urdiduras da história
mais nada”.33 Neste caso, em que “o discurso se converte em palco de luta
entre duas vozes”34, a vaga a ser ocupada é outra: uma vaga no mundo do
trabalho, aquela de “um anúncio para limpador de candelabro”.35 É a saída
para o personagem que “cont[a] com a sorte para escapar de algo tão maca-
bro”36, como é o final nada feliz anunciado em “Diário de um detento”. Em
um exercício dialógico, temos aí uma possível resposta de Ogi ao questio-
namento de Mano Brown, colocado em um momento intermediário entre
“Diário de um detento” e “A vaga”: “Que cê qué?/ Viver pouco como um
rei/ Ou muito, como um Zé?”.37
Pode-se argumentar que, em termos gerais, Rodrigo Ogi e Racionais
MC’s expressam fundamentalmente a mesma coisa. No entanto, não se
pode deixar de notar que em “A vaga” há, sim, uma linha de fuga (mesmo
que sutil). A música de Ogi, nesse sentido, caracteriza a existência de um
discurso bivocal no qual a relação dialógica é abertamente exteriorizada no
uso diferenciado dos versos de “Diário de um detento”.
***
48 - Urdiduras da história
trabalho figura como uma oportunidade do indivíduo provar o seu valor.
Atuando na arena da heterogeneidade constitutiva45, aquela em que a re-
lação dialógica não se mostra no desenrolar do discurso, Ogi disseca os
dissabores do trabalhador que não logra alcançar — apesar dos esforços
empreendidos — o mundo idealizado pelos defensores do capitalismo, no
qual o empenho seria fartamente recompensado:
Disseram que o trabalho faz enobrecer/ Trabalho mais que o meu patrão e
nem sou sócio/ [...]/ Não vejo um final paradisíaco/ Minha sorte diz que o
trabalho faz feliz/ Estou à beira de um ataque cardíaco/ Preso nessa imen-
sa armadilha,/ Eu e a minha família, meu vizinho segue a mesma trilha.46
***
Questões suscitadas por “Diário de um detento” e “A vaga” despontam
igualmente em muitas composições, o que evidencia dimensão dialógica
no âmbito do rap e a formação de uma tradição musical que, ao construir,
consolidar e divulgar determinados valores, institui referências e modelos
de criação artística.52 Acompanhar um pouco desse diálogo que envolve
diferentes vozes/ideias permite lançar uma tímida luz sobre as mudanças
históricas (e os movimentos de apropriação), entre elas as que abrangem
a concepção de malandro/malandragem. Para tanto, caminharei na esteira
dos valores segundo os quais “a vida bandida é sem futuro”53 e é preciso
“escapar de algo tão macabro”54, que reverberam em muitos raps.
49. “Diário de um detento”, Op. cit.
50. “A vaga”, Op. cit.
51. A música popular brasileira, em especial nos anos 30 e 40 do século XX, teve no trabalho
e nos trabalhadores um de seus motes mais notáveis. Os compositores, por vezes afinados
com os códigos da malandragem, protagonizaram, em certos casos, uma leitura a contrapelo
da realidade social e chegaram a classificar como otários aqueles que aceitavam a ideia do tra-
balho como meio de elevação moral e social. Ver, entre outros, PARANHOS, Adalberto. Os
desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig,
2015, esp. o item Mulheres da pá virada.
52. Quanto a isso assinalo a pertinência das reflexões que Ginzburg desenvolveu a partir da
observação de Wolfflin de que “todos os quadros [...] devem mais a outros quadros do que
à observação direta”. Tal raciocínio ajuda a pensar as práticas artísticas em geral, inclusive o
rap. Afinal, a produção de outros rappers é frequentemente determinante para a configuração
da produção desse ou daquele rapper em particular. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, esp. Cap. De A. War-
burg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método (citação da p. 86).
53. “Diário de um detento”, Op. cit.
54. “A vaga”, Op. cit.
50 - Urdiduras da história
A figura do malandro, que integra o imaginário social brasileiro,
passou por diferentes representações ao sabor de momentos e de grupos
específicos. Estudiosos como Roberto DaMatta55, Antonio Candido56 e
Gilberto Vasconcelos/Matinas Suzuki57 exploraram diversos usos que o
termo sofreu. Deixaram, com isso, contribuições importantes para que não
se associem ao malandro e à malandragem imagens cristalizadas ou que
obedeçam a uma construção linear e uma.
Naquilo que me interessa mais de perto, o malandro que habita as nar-
rativas dos rappers no início dos anos 1990 está, quase sempre, atolado no
envolvimento com atividades criminosas “que promete[m] pra ele o mun-
do dos sonhos”.58 O sujeito malandro é geralmente conhecido como aquele
que carrega consigo a crença de que para sair da condição de trabalhador,
de miserável ou, graças à dinâmica capitalista, de trabalhador miserável,
impõe-se lançar mão de táticas à margem da lei e da ordem estabelecida.
É o que se nota em “Mano na porta do bar”.59 Nela, o protagonista é o
sujeito humilde, que goza do respeito e da consideração dos vizinhos, tem
uma vida feliz ainda que modesta. Porém, voltando as costas para o seu
passado e alimentado pela ambição da “lei da selva”60 onde “consumir é
necessário”61, põe-se a buscar no crime a saída para “sua falta de dinheiro
[que] era problema”.62/63 Essa reviravolta em sua vida foi a fórmula encon-
55. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dos dilemas
brasileiros. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
56. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, São Paulo, n. 8, 1970.
57. VASCONCELOS, Gilberto e SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandragem e a forma-
ção da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil republicano, tomo III:
Economia e cultura (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
58. “Mano na porta do bar”. Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe,
1993.
59. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
60. Ibidem.
61. Ibidem.
62. Ibidem.
63. Letícia Vianna, ao estudar os sambas de Bezerra da Silva, argumenta que os sujeitos como
os que inspiraram as representações da malandragem dos rappers integram um processo de
mudanças sociais e simbólicas que se intensificaram no último quarto do século XX: “o ma-
landro — o verdadeiro malandro, da ginga, do morro, que atua nas brechas sem ser um agen-
te do mal — se deu mal, aposentou-se ou foi trabalhar na indústria cultural; e quem se deu
bem foi o ‘malandro federal’. Nesse contexto outra personagem surgiu: o bandido — sinistro,
destrutivo; um soldado de indústria do crime que se entrega ao jogo do matar e morrer... se-
duzido pelo poder da arma de fogo e pelo dinheiro do tráfico de drogas”. VIANNA, Letícia.
Sambandido: arte popular na cultura de massa. Anais da XIX Reunião Anual da Anpocs,
Caxambu, 1995, p. 7.
64. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
65. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
66. “Homem na estrada”. Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil, Op. cit.
52 - Urdiduras da história
o boato que corre é que esse homem está/ com o seu nome lá, na lista dos
suspeitos”). Enfim, “sua vida/ não foi um mar de rosas, não/ na Febem/
lembranças dolorosas, então”.
A música avança — e em certo sentido inaugura, dada sua circula-
ção e o relativo sucesso obtido quando do seu lançamento — o caminho
dos raps que discursam contra a vida do crime, ainda que talvez em plano
secundário, já que seu ponto crucial é o preconceito contra ex-detentos
e a violência dos grupos de extermínio que agem nas favelas e periferias.
O palco da história se desdobra em cenas de violência de toda ordem, da
estrutural à física:
54 - Urdiduras da história
diálogo umas com as outras, estabelecendo uma rede de contatos, relações
e exprimindo uma dada sensibilidade. Ao desaprovar a via do crime os ra-
ppers não estão fazendo coro com os valores hegemônicos nem necessaria-
mente partilhando dos mesmos preceitos morais dominantes na sociedade.
Para eles, repito, o motivo para combater (com palavras) o crime ou se
colocar contra esse tipo de vida se relaciona à percepção de que isso conduz
ao extermínio de seu povo, de seus iguais — na cor, na condição social e/
ou no local de moradia. A questão é abordada em inúmeras composições,
como em “Fórmula mágica da paz”77:
56 - Urdiduras da história
Ou vão pro saco muito antes de qualquer presídio/ [...]/ A malandragem
toma conta e é dessa forma.83
58 - Urdiduras da história
dribla apenas o patrão, mas também dá voltas nos seus iguais, em origem e
posição social, marcando com isso o mundo da malandragem como com-
petição entre os de baixo, sem nenhum horizonte de superação da injustiça
social no seu conjunto”.93
A proposição dos rappers, ao que parece, realiza — ao menos em par-
te — alguns desvios em relação a esse malandro. O rap, ao propor artima-
nhas “pro meu povo se manter vivo”94 (nem que para isso seja necessário
“abaixar o revólver, procurar um trabalho”95) como uma atitude malan-
dra, inscreve a malandragem fora dos limites estritamente individuais e
se abre à valorização de um ethos coletivo. No lugar de competição entre
os de baixo, estimula-se a solidariedade. O que os rappers fizeram foi re-
definir as astúcias a serem empregadas, o que implica uma metamorfose
significativa na imagem do malandro. Indícios disso podem ser identifi-
cados em uma música do Facção Central que é, basicamente, uma “carta”
de apresentação ou de intenções assentada nos valores que passaram a
aparecer, aqui e ali, com mais ou menos força, na produção musical de
vários rappers: “Nós valorizamos nossas vidas, isso sim/ E não queremos
ser iguais aos marginais, enfim/ Queremos ver nossas famílias numa boa,
bem decente/ Ver a polícia nos tratando como gente/ Nos importamos
com o futuro e com os nossos manos/ Nos dói na alma quando vemos eles
se acabando/ [...]/ E a distância da polícia é a saída, é arma nossa/ [...]/
Bem honrados e humildes da cabeça aos pés.”96
Atuando, portanto, em uma rede polifônica de comunicação (indireta,
via música), os rappers vão reconfigurando novos sentidos para a malandra-
gem/ malandro, algo que já estava em circulação (pelo menos no âmbito do
rap) desde o início dos anos 1990. Nesse passo, vai se apagando a ideia do
malandro como ladrão, traficante, bandido, enfim, de sujeito ligado à vida
do crime — tão alardeado em muitos raps. O malandro positivado é aquele
que consegue trilhar outros caminhos, não definidos a priori, mas que le-
97. “Apologia ao crime”. Facção Central. CD A marcha fúnebre prossegue. São Paulo:
Discoll Box, 2001.
98. “Fórmula mágica da paz”, Op. cit.
99. Malandragem é viver. Thaíde (part. Pump Killa). Direção: Marco Matheus, Cesar Span-
della e Pietro Santurbano. Brasil: Coletivo Benzin, 2014 (son., color.).
100. “Malandragem dá um tempo”. Thaíde e DJ Hum. CD Preste atenção. São Paulo:
Eldorado, 1996.
101. Malandragem é viver, Op. cit.
102. Fazem parte desse processo composições como “Boba malandragem”. Radicais MC’s.
Col. Legião do rap. Goiânia: Star Music, s./d., “Mais malandro”. Mente Consciente. CD
Esperança e humildade. Brasília: s./ind., 2006, “Poesia de malandro”. Mente Consciente,
Op. cit., “Vila beneficiada”. Condenação Brutal. CD Desarmados e perigosos. São Pau-
lo: Sky Blue, 2003, “Super Star da malandragem”. Cirurgia Moral. CD Coroa você vive,
cara você morre. Brasília: Discovery, 2000, “Malandro demais”. Nill. CD Mandando bom
som. São Paulo: V. P. Produções, 2000, “Malandragem é viver”. Raciocinar Rap. CD
Pra onde é que vou? Brasília: VGC Produções, s./d., “A verdadeira malandragem”. Gog.
CD Das trevas à luz. São Paulo: Zâmbia, 1998, “Bom malandro”. Z’África Brasil. CD
Tem cor age. São Paulo: YB Music, 2006, “Mais que malandragem”. Kiko Santana. CD
Raça. São Paulo: Pata de Monstro Produções, s./d., “Não seja malandro demais”. Renatim.
Goiânia: s./d. (independente).
60 - Urdiduras da história
viver/ Malandragem é viver/ Malandragem é viver”.103 Convém frisar que
na ação desses rappers entra em operação uma tática malandra: a aparente
submissão. O lugar ocupado pelos rappers na dinâmica social (na grande
maioria das vezes) não é o de reprodutores do discurso oficial ou dos valo-
res hegemônicos. Como procurei evidenciar, eles aceitam, até certo ponto,
e se apropriam de determinados valores e normas vigentes que crimina-
lizam umas tantas práticas por enxergarem nisso um meio para diminuir
a possibilidade da perda (morte) ou da distância (prisão) como horizonte
para seus iguais.
Nessa ótica, o malandro precisa sobreviver à miséria, à injustiça social
ou ao descaso do governo sem virar bandido. Para tanto, deve fazer uso
de sua esperteza não só para enfrentar seus problemas (uma possível con-
dição de miserabilidade, desejos de consumo não satisfeitos ou urgências
cotidianas de qualquer ordem), mas, sobretudo, para manter-se distante de
caminhos considerados impróprios, por acarretarem mais perdas do que
ganhos. Matinas Suzuki e Gilberto Vasconcelos já chamaram a atenção
para o fato de que isso se manifestou no repertório dos sambistas das pri-
meiras décadas do século XX: “Saber (sobre)viver: a dissimulação, o fingir,
estratégias para uma vida melhor na sociedade adversa – contra a qual não
adianta medir forças em um confronto direto; [...] o malandro [n]um apa-
rente aceitar das regras instituídas [cria] uma maneira do excluído conviver
com o excludente”.104
Transitando por percursos acidentados, confrontados com a ordem/
desordem vigente, os rappers, no caso, não querem continuar a ser a caça do
caçador. Nada disso, porém, os leva a abandonar posicionamentos críticos
ante as contradições do desigual mundo capitalista que continua a vitimar
os seus “manos”/“minas” nas muitas esferas da vida social.
Fontes
Racionais MC’s. CD Nada como um dia após o outro dia. São Paulo:
Cosa Nostra, 2002.
62 - Urdiduras da história
Referências
64 - Urdiduras da história
Trajetória de pesquisa: os leitores de TEX e as
performances culturais
HQs e História
1. Termo cunhado por Bonelli para referir-se aos quatro parceiros de aventura e posterior-
mente apropriado pelos fãs para autodenominarem-se.
2. VERGUEIRO, W. C. S. Pesquisa acadêmica em histórias em quadrinhos. São Paulo:
Criativo, 2017, p. 6.
66 - Urdiduras da história
Em minha trajetória acadêmica, um dos resultados apontados diz res-
peito à forte influência que o cinema exerce nas HQs Bonellianas.
68 - Urdiduras da história
[...]”9. Nesse sentido, foi necessário mergulhar no universo texiano para
compreender as leituras e performances que os fãs/leitores têm da revista.
Para leitores assíduos de TEX, é fácil identificar imediatamente a pro-
blemática da revista, o assunto principal e imaginar inclusive desfechos
possíveis. Em geral, as aventuras cumprem um ciclo10. Começam de ma-
neira tranquila e, aos poucos, a problemática é apresentada e o ritmo dos
quadrinhos é acelerado, sobretudo quando há cenas de ação (cavalgada,
tiroteio, perseguições, duelos).
Após uma série de investigações, os rangers conseguem desvendar o
mistério, cumprir com suas obrigações, e retornam, ou para o comando de
rangers aonde irão se apresentar para uma nova aventura, ou para a aldeia
Navajo11, onde poderão descansar até o próximo problema surgir.
Porém, para leitores novos, adaptar-se à leitura pode ser um desafio, a
começar pela característica principal das revistas: preto e branco. A leitura
de aventuras somente no nanquim pode não ser um atrativo a um primeiro
olhar. Além disso, a temática já não é mais tão procurada (faroeste) e, por
último, um fator que muito compromete o futuro da revista e a conquista
por novos leitores é o preço e a acessibilidade destas. Com o fechamento de
bancas de jornal e revistas e com a falência de editoras clássicas, está cada
vez mais competitivo e restrito o mercado de HQs de TEX. Em diversos
momentos, a Mythos Editora publicou notas de esclarecimento aos leito-
res retratando os problemas de transporte, edição e distribuição.
70 - Urdiduras da história
Figura 3 – sequência de uma narrativa
13. Publicada no Brasil em julho de 2011 pela Mythos na coleção Almanaque, número 42.
Originalmente publicada em 598/599 na Itália em agosto-setembro de 2010, por Ruju (ar-
gumento/roteiro) e Seijas (desenho).
72 - Urdiduras da história
inferir e extrair sentido das ações performáticas dos personagens.”14
O leitor performa na leitura e na devolução desta leitura, quando faz
cosplays, a revista é performática na medida em que é representada por lei-
turas dos desenhistas e roteiristas de um país que não é o deles (EUA), que
os torna também performers de um mundo representado e reforçado por
leituras feitas principalmente do cinema hollywoodiano.
[...] para se efetivar uma leitura, qualquer leitor tem que escolher iniciar
uma performance: a de ler. E ao fazê-lo, ele é capaz de se deslocar de
seu próprio mundo para o mundo ficcional estabelecido nas histórias em
quadrinhos, procedendo assim o processo de transporte e imergir naquele
mundo ficcional, porém recriado aos moldes do mundo real. Ao se sub-
meter, ainda que de forma inconsciente ao processo de transporte através
do exercício da leitura, o leitor pode ser instigado, inclusive a se enxergar
em um personagem da trama, sem com isso deixar de ser a si mesmo15.
Os leitores...
17. BONELLI, G. L.; GALLEPPINI, A. Tex Coleção Grand Canyon. São Paulo: Vecchi,
ano XI, n. 130, set. 1981, p. 145.
18. Ibidem.
19. ANTUNES, Aline Ferreira. Tex, um mundo de sensibilidades e imaginários. 188f.
Tese (Doutorado em Performances Culturais) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia,
2022. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/11989/3/Tese%20
-%20Aline%20Ferreira%20Antunes%20-%202022.pdf. Acesso em: 30 set. 2022, p. 142.
74 - Urdiduras da história
Outra forma de demonstrar apreço pelo personagem, de maneira bem
explícita, é a tatuagem corporal, além das cartas, homenagens, postagens e
cosplays. Alguns fãs de Tex fazem homenagens tatuando ou o personagem
ou até mesmo releituras do personagem, como é o caso do fã que fez uma
de Tex e Edibar (personagem criado em 2001 pelo cartunista Lúcio Oli-
veira com várias publicações fazendo crossover com o ranger).
Considerações finais
76 - Urdiduras da história
crítico em relação ao objeto de pesquisa22, é somente a partir da subjeti-
vidade da fã e pesquisadora que esse acúmulo de anos de pesquisa com
quadrinhos foi possível. Nessas páginas estão presentes a subjetividade, as
sensibilidades do mundo Texiano e também a leitura crítica. Tal capítulo
de livro aborda não só a trajetória de pesquisa da historiadora, que passeia
pela história cultural, pelas performances, mas também da própria revista,
do personagem e das possibilidades de pesquisas com quadrinhos.
Figura 5 – visita técnica à SBE, em Milão, 2014. Na foto, Mauro Boselli, atual
responsável por TEX.
Referências
78 - Urdiduras da história
na, PR: Thoth, 2021.
ANTUNES, Aline Ferreira. Tex e os tipos raciais: 1953 - 2000. 2019. 164
f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Uber-
lândia. Uberlândia, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14393/ufu.
di.2019.912. Acesso em: 20 abr. 2020.
80 - Urdiduras da história
2017. 255f. Tese (Doutorado em Ciências da Informação) - Escola de
Ciência da Informação, Programa de Pós-Graduação em Ciência da In-
formação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro
lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no
momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que
a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes
cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos
mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai
depender da situação em que somos vistas.1
2. CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, n. 6-7, p.35-50, 1996.
3. JODELET, Denise (Org.) Representações sociais: um domínio em expansão. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2001.
84 - Urdiduras da história
formas através das quais os indivíduos conhecem e significam o mundo.
De acordo com esses autores, conhecemos o mundo pelo viés das repre-
sentações sociais, uma vez que elas medeiam nosso processo de apreensão
do mundo. Tais representações são também comunicadas pelos sujeitos
sociais, correspondendo a um saber socialmente compartilhado. Essa defi-
nição serve para pensar a telenovela e os sentidos que são reiterados nessas
produções acerca das trabalhadoras domésticas, bem como seus efeitos,
visto que, conforme Judith Butler, “a linguagem pressupõe e altera seu po-
der de atuar sobre o real por meio de atos elocutivos que, repetidos, tor-
nam-se práticas consolidadas e, finalmente, instituições.”4
86 - Urdiduras da história
Tais representações naturalizam a desigualdade social, construindo
posições hierárquicas com base em marcadores étnico-raciais e de gêne-
ro. A telenovela veicula sentidos, conhecimentos socialmente compar-
tilhados, “verdades” que se colam aos corpos, cunhando sujeitos sociais
gendrados. A atividade doméstica é mostrada como destino natural das
mulheres negras e/ou pobres.
Nesse sentido, considero que as tecnologias de gênero também fun-
cionam como tecnologias de raça, visto que, ao mesmo tempo, produzem
sujeitos gendrados e racializados. Destaco as repetições de sentidos sobre
as mulheres negras que as restringem a guetos sociais, concomitante à
reiteração de sentidos sobre as mulheres brancas também gendradas e
racializadas em lugares de prestígio social em relação às negras, mas em
lugares subalternos quando comparadas aos homens brancos.
Esses sentidos têm se repetido ao longo da história da telenovela
brasileira, conforme demonstra Joel Zito de Araújo, no livro “A negação
do Brasil: O negro na telenovela brasileira”. Considero que a manutenção
de lugares de subordinação para as pessoas negras nos produtos midiá-
ticos é parte do pacto narcísico da branquitude. De acordo com Maria
Aparecida Bento:
Tudo passa como se não houvesse um pacto entre os brancos, aqui cha-
mado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do
problema com vistas à manutenção dos privilégios raciais. O medo da
perda dos privilégios e o da responsabilização pelas desigualdades raciais
constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o
negro, carregada de negatividade. O negro é inventado como um “outro”
inferior, em contraposição ao branco que se tem e é tido como superior,
e esse outro é visto como ameaçador. Alianças inter-raciais entre brancos
são forjadas e caracterizam-se pela ambiguidade, pela negação de um pro-
blema social, pelo silenciamento, pela interdição dos negros em espaço de
poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica,
política dos negros, no universo social.8
88 - Urdiduras da história
domésticas geralmente não dispõem de vida familiar própria, relaciona-
mentos afetivos, considerando a família dos patrões como a sua família,
bem como o ambiente de trabalho como sua residência.
Em Cheias de Charme, essa representação se materializa na persona-
gem Valdelícia, interpretada pela atriz Dhu Moraes. Ela é empregada do-
méstica na casa dos Sarmento, na qual trabalha com Maria Aparecida, de
quem é madrinha11. Ambas moram no local de trabalho. Maria Aparecida
por ter perdido os genitores, já a situação de Valdelícia não é explicada;
ela simplesmente é mostrada no ambiente em que trabalha, onde também
reside. Em vários momentos da trama, a personagem diz que sempre viveu
ali e considera a casa dos patrões como sua própria casa. Essa ausência de
familiares é uma constante na construção dos personagens negros, segundo
Joel Zito de Araújo. Conforme o autor, comumente, os/as negros/as são
construídos como personagens desprovidos de relações familiares, diferen-
temente dos personagens brancos, que sempre têm um ou outro familiar
ou companheiro/a. Numa das cenas, após deixar a casa dos Sarmento, Cida
marca um encontro com Valdelícia no mercadinho do condomínio Casa-
-grande. Vejamos o diálogo entre elas:
Cida: “Madrinha, a senhora tem que sair daquela casa. Olha, eu estou
lá na casa da Penha, mas eu já estou procurando um cantinho pra gente
morar.”
Valdelícia: “Não filha, eu não vou morar com você de favor, eu vou conti-
nuar morando lá em casa, onde eu vivi a vida toda.”
Cida: “Mas lá não é sua casa, madrinha. É a casa da Dona Sônia.” Val-
delícia: “Filha, eu vivi tanto tempo lá que eu acostumei, não adianta, não
tem jeito.”
90 - Urdiduras da história
têm em comum é que tanto a mulata quanto a mãe preta são lugares de
subserviência e exploração das mulheres negras pelos brancos.
Valdelícia apenas dispõe de um quartinho, o qual divide com Maria
Aparecida. É constantemente maltratada verbalmente pelas mulheres da
família empregadora. Em nenhum momento é problematizada a situação
da personagem na trama. Nem por ela mesma, nem por outra personagem.
Considero que haja um silenciamento acerca da situação, o que tem im-
pacto real na sociedade, visto que é reiterado um lugar considerado como
socialmente adequado para as mulheres negras, o âmbito doméstico, não
sua própria casa, e sim a casa dos/as brancos/as. Dessa maneira, é possível
que aos/às telespectadores/as pareça natural que as personagens negras es-
tejam isoladas e sempre disponíveis para servir aos brancos.14
A ausência de qualquer crítica à situação da personagem deixa espa-
ço para possibilidades de significação, ou seja, o silêncio ocupa o lugar
de uma possível crítica à subalternidade da personagem. O silêncio não é
representável, assim sendo, é de difícil apreensão. Ao contrário de textos
e imagens, ele só pode ser analisado a partir da historicidade do texto no
qual se faz presente, conforme demonstra Eni Orlandi. Por este ângulo
de análise, o silêncio aí verificado tem como efeito de sentido o reforço da
subalternidade das mulheres negras. O silêncio é aqui considerado como
um espaço de incompletude, que guarda possibilidades de significação. De
acordo com Orlandi,
92 - Urdiduras da história
Portanto, é imprescindível pensar nos possíveis efeitos do discurso que
constitui a mulher negra como fundamentalmente doméstica no imagi-
nário coletivo dos/as telespectadores/as. A personagem Valdelícia, apesar
de estar no mesmo patamar que a personagem Maria Aparecida, visto que
ambas são trabalhadoras domésticas, acaba por desempenhar o papel de
cuidadora da jovem. É ela a protetora da jovem branca, é quem cuida ma-
ternalmente, como as amas secas do período escravocrata cuidavam das
crianças, bem como dos membros da família empregadora. A imagem da
mãe preta é evocada na constituição da personagem Valdelícia e sua re-
lação com a cantora. Essa relação de proximidade entre as duas persona-
gens evoca também suas recentes atuações como Tia Nastácia e Narizinho,
personagens do sítio do Pica-pau Amarelo. É oportuno salientar que Tia
Nastácia é o arquétipo da mãe preta, nos moldes que discute Joel Zito
Araújo. De acordo com o autor, tal figura tem precedente em programa
norte-americano da década de 1950:
Máslova: “Eu já vi que tem gente que não quer largar o osso. Valda, mi-
nha querida, você agora é hóspede desta casa, pode descansar, não precisa
mais trabalhar.”
A nova empregada completa:
“Eu já falei pra ela, ela pode ficar descansando, não é?”
Val responde:
“Mas gente, eu faço porque gosto, adoro trabalhar.”
Másvola: “Valda, minha querida, você sabe quantas empregadas domés-
ticas viraram hóspedes da casa em que trabalhavam? Eu só conheço você,
minha querida.”
94 - Urdiduras da história
lheres negras merecem destaque na trama. Valdelícia deixa de ser domésti-
ca após a ascensão de Maria Aparecida e passa a ser quem ordena e orienta
a nova empregada doméstica, que é branca. Se por um lado temos essas
pequenas alterações, por outro lado, Valdelícia continua imbricada ao tra-
balho doméstico, como se fosse fundamentalmente doméstica. Insiste em
se ocupar das atribuições da cozinha, mesmo após Cida ter contratado uma
nova empregada.
Valdelícia é caracterizada como essencialmente doméstica, não con-
segue se desvencilhar da cozinha e do trabalho doméstico, ainda que a
oportunidade surja. Essa característica, a imbricação da mulher negra
ao doméstico, remete à composição da representação da mãe preta, es-
sencialmente doméstica, serviçal totalmente disponível para as famílias
brancas. Essa representação, ao ser repetida em vários discursos19, em
diversos períodos, constitui um saber socialmente compartilhado a partir
do qual a sociedade passa a ver as mulheres negras: indivíduos sem famí-
lia, sem lar, cujas existências se limitam a prestar serviços domésticos e
afetivos aos brancos.
Joel Zito de Araújo destaca duas figuras recorrentes no cinema e TV
norte- americanos que serviram de referência para a produção televisiva
brasileira. Ao final da década de 1980, em seu estudo sobre as imagens
dos/as negros/as na televisão brasileira, destaca:
96 - Urdiduras da história
Sentidos que poderiam passar despercebidos na telenovela estão in-
terligados a práticas discursivas que se repetiram em outros textos e que,
no decorrer do tempo, foram instituindo sentidos acerca das mulheres
negras. Conforme Orlandi, discursos enunciados em outros lugares, por
outros sujeitos, e esquecidos, reaparecem em novas formações discursi-
vas, como se fossem novidade, entretanto, têm sua historicidade, a qual é
possível apreender ao se atentar para a relação com sentidos presentes na
língua e na história, o interdiscurso ou a memória discursiva, conforme
demonstra a autora:
Considerações finais
Referências
98 - Urdiduras da história
BARBOSA, Luciene Cecília. As representações das relações raciais na
telenovela brasileira, Brasil e Angola: Caminhos que se cruzam pelas
narrativas da ficção. 2008. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação)
- Escola de Comunicação e Artes - ECA, Universidade de São Paulo/
USP, São Paulo, 2008.
Este estudo faz parte das inovações recentes em relação às formas tra-
dicionais de inteligibilidade histórica - de pesquisar e narrar a história do/
no mundo contemporâneo - a partir de imagens e corpos em performan-
ces1. Estas, por sua vez, fizeram-se possíveis pelos diálogos entre a História
e a Arte, a partir de eixos de análise dos estudos culturais, decoloniais, das
teorias feministas e dos estudos afro-brasileiros. A performance arte, fonte
privilegiada neste estudo, é um estilo artístico que pode se expressar por
intermédio da música, das artes plásticas, do teatro, do audiovisual, mas
não se origina deles, e nem precisa estar associada a eles para se realizar. O
fundamental, nesse tipo de arte, é o corpo como matéria-prima. Nas pala-
vras da especialista em performance Eleonora Fabião, “cada performance é
uma resposta momentânea para questões recorrentes”2. E nessa perspectiva
de se fazer uma história a partir das questões pertinentes do/no presente e
promover o debate, é preciso analisar o que é a arte da performance e bus-
car entendê-la como um movimento histórico dentro do cenário atual das
artes contemporâneas brasileiras3.
1. Esta análise é parte da pesquisa que desenvolvi no doutorado em História, pelo Programa
de Pós-Graduação em História, do Instituto de História da Universidade Federal de Uber-
lândia. Orientada pela professora Dra. Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro - UFU. Acesso em:
BATISTA, Patricia Giselia. O corpo negro no/do feminino como território de pesquisa
acadêmica, da criação artística e da estratégia política [recurso eletrônico], 2022. Disponí-
vel em: http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.509
2. FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Revista Sala Preta. v. l.8, n.1. São Paulo: 2008, p. 238. Disponível em:<http://revistasa-
lapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263> Acesso em: setembro de 2017.
3. BATISTA, Patrícia Giselia; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Diálogos entre a
Arte, a História, a Política e os Feminismos: a performance como um artefato explosivo.
“Eu não sou uma mulata?” foi um dos pontos de partida para apro-
fundar as análises da representação social mitificada da mulata na história
do Brasil. E, especialmente, demonstrar como os discursos constroem a
sexualidade dos sujeitos do/no feminino negro, e como a representação e
o imaginário social brasileiro são constantemente atualizados - nas artes e
na mídia4. O título deste capítulo é uma paráfrase inspirada na obra tradu-
zida E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo, da pensadora
afro-americana bell hooks5. Ela titula seu primeiro livro teórico Ain’t I a
Woman, em referência à frase homônima, do discurso proferido em 1851,
durante o Women’s Rights Convention, nos Estados Unidos, por Sojourner
Truth, ex-escravizada. A frase de Truth tornou-se conhecida e revolucio-
nária quando ela argumentou a importância da equidade racial entre mu-
lheres e homens negros na luta pelo sufrágio norte-americano. Destacando
que, na ordem social patriarcal, ao dar apoio à luta pelo direito ao voto dos
homens negros, o feminismo colocaria sob ameaça a liberdade das mulhe-
res negras, que ficariam subordinadas ao poder dos homens negros.
Nas palavras de hooks “pela primeira vez na história estadunidense,
mulheres negras como Mary Church Terrell, Sojourner Truth, Anna Coo-
per, Amanda Berry Smith e outras romperam os longos anos de silêncio e
começaram a dar voz a suas experiências de mulheres negras e a registrá-
-las”6. Em “E eu não sou uma mulher”, originalmente publicado em 1981,
hooks destaca a emergência na segunda metade do século XX, e que ainda
se faz, em reconhecer as especificidades e os interesses das mulheres negras
junto aos feminismo(s). Nas palavras de hooks: “quando falam de pessoas
negras, o foco tende a ser homens negros; e quando falam sobre mulheres,
Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG -v. 30, n. 2, Jul.-Dez. 2017. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/41463/pdf Acesso em: julho de 2017.
4. Este texto disponibiliza alguns códigos QR Codes para uma leitura mais interativa, e que
permitem o acesso às hiperligações com páginas e sites da web, em que se pode ver as imagens
e os vídeos em questão. Trata-se de uma sugestão que pode ser aceita ou não pelo/a leitor/a,
e que independente da adesão, a leitura e estudo da tese não serão comprometidos. Para
interagir com essa ferramenta, quando houver um QR code disponível, basta mirar a câmera
de um aparelho celular, e clique no ícone leitor de QR Code e direcione-o para ler o código.
5. bell hooks, é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana, que o
utiliza como homenagem à sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. A grafia utilizada pela pen-
sadora é sempre empregada em letra minúscula por um posicionamento político que busca
romper com as convenções linguísticas e acadêmicas.
6. hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Tradução Bhuvi
Libanio. 10. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022, p.20.
10. COLLINS, Patricia. H. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In:
JABARDO, Mercedes (Org.). Feminismos Negros: una antologia. Madrid: Traficante de
Suenos, 2012, p.26.
11. A descrição da Performance foi feita a partir de uma fotoperformance Vem… pra ser
infeliz, realizada na cidade de Santos, SP, Brasil, em Julho de 2017, bem como, por meio
da fotografia de Luiza Palhares, postada no dia 12/01/2018, e das descrições no site oficial
da artista Priscila Rezende. Disponível em: http://priscilarezendeart.com/projects/154/.
Acesso em: 10 de abr. de 2020. O dispositivo performático Vem... pra ser infeliz foi apre-
sentado também em alguns lugares, entre eles na Perfura Ateliê de Performance, Sesc
Palladium, Belo Horizonte, MG, 2017.
12. Samba de Jorge Aragão e Franco Lattari, 1993, Gravadora Som Livre. “Lá vou eu, lá
vou eu/Hoje a festa é na avenida/No carnaval da Globo/Feliz eu tô de bem/Com a vida
vem amor/Vem...deixa o meu samba te levar/Vem nessa pra gente brincar/Pra embalar a
multidão/Sai pra lá solidão Vem Vem Vem/Vem.....pra ser feliz/Eu tô no ar tô/Globe-
leza/Eu tô que tô legal/Na tela da TV no meio desse povo/A gente vai se ver na Globo
Na tela da TV no meio desse povo/A gente vai se ver na Globo.
13. As musas do carnaval da Globo já foram encenadas por Valéria Valenssa, a primeira Glo-
beleza, que ocupou de 1991 até 2004. No ano 2005, foi a Globeleza Giane Carvalho, entre
2006-2013 foi a vez de Aline Prado, em 2014 Nayara Justino. Erika Moura representa a
passista global desde 2015, e surpreendeu a expectativa do público, ao representar, em 2017, a
primeira mulata Globeleza vestida com roupas na vinheta. Outra inovação deste ano foi, além
do samba, a introdução de outros ritmos, como frevo e o maracatu. Disponível em: https://
noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/menos-de-dois-meses-do-carnaval-globo-atrasa-
-vinheta-e-esconde-musa-globeleza-32372 Acesso em: setembro de 2021.
14. Através deste QR code você terá acesso a(s) vinhetas(s), de 1978 a 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=npFIn16zrG8&t=398s Acesso em: julho de 2022.
15. Neste QR code, há um vídeo sobre Nayara Justino, eleita Globeleza 2014, através de
voto popular em um programa de TV, da mesma emissora. Mas ela ficou apenas um ano
com o título, após ser substituída por uma outra passista com o tom de pele mais claro.
O que representa que a mulata brasileira se diferencia em muitas nuances das várias ou-
tras construções existentes em um mesmo território. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=G-KqgA_Ua40 Acesso em: julho de 2022.
Da escrava ou sinhá que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos
deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da ne-
gra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assom-
brado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira
tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem18.
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o ou-
tro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher,
no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por
aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com
fortes cargas de agressividade. A nomeação vai depender da situação em
que somos vistas26.
Figura 1 - REZENDE, Priscila. Vem pra ser infeliz, São Paulo/SP, Brasil, 2017. Cré-
dito da imagem: Luiza Palhares.
29. WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães. Tradução Letícia Cobra Lima,
2019, p. 04. disponível em https://docero.com.br/doc/5v0c1e Acesso em: abril de 2020.
30. DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramen-
to, 2018.
31. GONZALEZ, Op. cit., p. 222.
32. DE ALMEIDA, Op. cit.
33. GUIMARÃES, Antonio Sergio A. Raça e os estudos de relações raciais no Brasil. São
Paulo, Novos Estudos CEBRAP, 54, 147-156, 1999.
34. DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.
80-85.
35. CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, Campinas, n. 6-7, p.
35-50, 1996, p. 41.
36. Ibidem, p.41.
Mas que nega linda e de olho verde ainda/Olho de veneno e açúcar! /Vem
nega, vem ser minha desculpa/Vem que aqui dentro ainda te cabe /Vem
ser meu álibi, minha bela conduta/Vem, nega exportação, vem meu pão
de açúcar! /(Monto casa procê, mas ninguém pode saber, entendeu meu
dendê?)/Minha tonteira, minha história contundida, /minha memória
confundida, /meu futebol, entendeu meu gelol (...) /Sinto cheiro docê,
meu maculelê, vem negra, me ama, me colore/Vem ser meu folclore, /
vem ser minha tese sobre nego malê/Vem, nega, vem me arrasar, /depois
te levo pra gente sambar43.
Imaginem: /Ouvi tudo isso sem calma e sem dor. /Já preso esse ex-feitor,
eu disse: “Seu delegado...” /E o delegado piscou /Falei com o juiz, /o juiz
se insinuou e decretou pequena pena /com cela especial por ser esse bran-
co intelectual (...) Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! /Opressão, Barbarida-
de, Genocídio /nada disso se cura/trepando com uma escura!”/Ó minha
máxima lei, deixai de asneira. /Não vai ser um branco mal resolvido/Que
vai libertar uma negra: /Esse branco ardido está fadado /porque não é com
lábia de pseudo-oprimido /que vai aliviar seu passado. /(...) /Olha aqui
meu senhor: /Eu me lembro da senzala/E tu te lembras da Casa-Grande
/E vamos juntos escrever sinceramente outra história44.
Digo, repito e não minto: /Vamos passar essa verdade a limpo /Porque
não é dançando samba /Que eu te redimo ou te acredito: /Vê se te afas-
ta, não invista, não insista! /Meu nojo! /Meu engodo cultural! /Minha
lavagem de lata! /Porque deixar de ser racista, meu amor, Não é comer
uma mulata!47.
(Monto casa procê, mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?) /
Minha tonteira, minha história contundida, /minha memória confundi-
da, /meu futebol, entendeu meu gelol (...) /Sinto cheiro docê, meu ma-
culelê, vem negra, me ama, me colore/Vem ser meu folclore, /vem ser
minha tese sobre nego malê/Vem, nega, vem me arrasar, /depois te levo
pra gente sambar52.
FONTES
Performances
Entrevistas
Referências
1. LUCA, Tania Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 111.
desses materiais como repositório da verdade.2 Essas posturas negavam a
pluralidade e a diversidade dos impressos, que constituem um instrumen-
to de cultura carregado de interesses e de tensões, e um instrumento de
intervenção na vida política e social.
Os jornais tornaram-se um rico material para as mais diversas pes-
quisas em História do Brasil. Eles são produtos que podem ser utilizados
para pensar uma história dos trabalhadores, do desenvolvimento urbano,
dos costumes, da propaganda, da participação de intelectuais e do mun-
do letrado na sociedade, além de poderem ser fonte para questões sobre
infância, gênero, política e perseguição. Em outras palavras, os jornais
registram cotidianamente o fazer-se de grupos e pessoas, suas aspirações,
seus anseios e suas ações de tentativa de mudança em seus meios.
Apesar de esses documentos se tornarem ricas fontes para a produ-
ção histórica nos últimos anos, alguns tipos de impressos continuaram
relegados às margens da historiografia, especialmente no que diz respeito
às reflexões feitas sobre suas especificidades, fato que os diferencia dos
demais impressos. Ao desenvolver um trabalho sobre e com imprensas
interioranas3, percebi que existe uma carência em reflexões teórico-me-
todológicas que serviriam de aporte intelectual específico para esse tipo
de pesquisa. Assim, nesse percurso, vi-me inclinado a pensar algumas
propostas em torno de análises da qualidade desses documentos.
Existe, no mercado editorial e nas pesquisas acadêmicas, um número
considerável de estudos sobre os jornais brasileiros, porém ainda engati-
nham os estudos que se referem à imprensa interiorana e seus contextos.
Apesar de um desenvolvimento gradual, ainda são recentes os estudos
que fazem o uso da imprensa do interior ou que se debruçam sobre ela.
Após uma investigação em meios de divulgação acadêmica, bancos de te-
ses e dissertações, entre outros, averígua-se que, apesar de existirem tra-
2. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contex-
to/EDUSP, 1988. p. 20-21.
3. A pesquisa que me refiro foi uma tese de doutorado, financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) defendida em 2021 no Programa
de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (PPGHI-UFU).
Nela, foram analisados os jornais Folha de Ituiutaba, Correio do Triângulo, Correio do
Pontal e Correio de Capinópolis. Cf. FERREIRA, Caio Vinicius de C. O interiorano
“subversivo”: imprensa e perseguição política no Pontal do Triângulo Mineiro (1951-
1964). 2021. 375f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia – MG, Brasil.
A impressa do interior
8. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e futuro. In: BURKE, Peter. (Org.).
A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Edi-
tora Unesp, 2011. p. 7-38.
No Brasil, desde a primeira década dos anos 2000, mudanças nas uni-
versidades públicas impactaram o surgimento de novos olhares de pesqui-
sas. Segundo Barros,10 de 2003 até 2010, ampliou-se a oferta de cursos e
vagas em função da expansão universitária em direção ao interior do Brasil.
Novas universidades federais foram criadas, muitas aumentaram o número
de campi, cursos e vagas, além de instituírem novos cursos de pós-gradua-
ção, muitos deles em razão do Programa de Apoio a Planos de Reestru-
turação e Expansão das Universidades Brasileiras (REUNI). Entre 2003 a
2010, o número de universidades federais cresceu de 45 para 59 e, nessas
instituições, o número de campi aumentou de 148 para 276, vários localiza-
dos em cidades de médio e pequeno porte no interior do Brasil.
Essa “interiorização” das universidades trouxe mudanças nas perspec-
tivas e nos perfis de pesquisas. Sujeitos até então sem oportunidades de
se graduarem em cursos superiores conquistaram esses espaços e aprimo-
raram-se em programas de pós-graduação. Novos estudantes e pesquisa-
dores, muitos advindos desses meios, debruçam-se cada vez mais sobre
tópicos que envolvem os problemas referentes a esses espaços e tempos
9. BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução: Magda Lo-
pes. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p.7-357.
10. BARROS, Aparecida da Silva Xavier. Expansão da educação superior no Brasil: limites e
possibilidades. Educ. Soc., Campinas, v. 36, n. 131, abr.-jun., 2015, p.174.
11. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência históri-
ca. Tradução: Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001. p. 78.
12. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 2007. p.369.
13. LUCA, Tania Regina de. A grande imprensa na primeira metade do século XX. In:
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. (Org.). História da imprensa no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2015. p. 149.
14. SODRÉ, Op. cit. p. 255-389.
15. ASSIS, Op. cit., p.8.
23. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução: Yara
Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
24. NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História:
novos problemas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.187-188.
25. WILLIAMS, Raymond. Imprensa e a cultura popular: uma perspectiva histórica. Proje-
to História, São Paulo, v. 35, p. 15-26, dez. 2007.
Após trazer várias ideias e reflexões, cabe aqui transpô-las para o plano
do trabalho com fontes de imprensa do interior. Em primeiro momento,
temos que refletir sobre qual a principal característica desse tipo de docu-
mentação que o difere dos demais: a comunicação de proximidade. Tudo
que é produzido dentro de um jornal de imprensa de interior se volta para
um público que se localiza perto da sede do jornal. Ou seja, uma notícia de
cunho local, regional ou nacional, é voltada completamente para o seu pú-
blico próximo, desde a maneira da escrita até a intencionalidade que almeja
o texto, bem como a publicidade e demais partes que compõe os impressos.
Devemos ter a compreensão que as representações em formas de dis-
cursos contidos nos jornais interioranos expressam os interesses de deter-
minados grupos aos quais os jornais e, consequentemente, as pessoas que
fazem parte do jornal se alinham política e culturalmente. Os jornais são
um instrumento de grupos sociais em disputa por hegemonia de poder,
principalmente poder relacionado ao espaço em que esse impresso circun-
da. Portanto, quando um jornal de interior noticia sobre algo para sua lo-
calidade, ao representar o real, traz consigo as aspirações políticas de deter-
minado grupo e age na realidade por meio de suas posições, influenciando
ideias e concepções de seus consumidores.
Os jornais de circulação local e regional, ao deterem a comunicação
em seus espaços, exercem uma forma de dominação sobre a regionalidade
que é embasada no saber. Dessa maneira os jornais interioranos se tornam
um instrumento de luta simbólica dos grupos das regiões em que são pro-
31. GALVES, Marcelo Cheche. Pequena imprensa e poder político: pensando os jornais
locais como objeto e fonte de pesquisa. Revista Outros Tempos, São Luís - MA, v. 1, n. 1,
2004. p.71.
Referências
BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e futuro. In: BUR-
KE, Peter. (Org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução:
Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 07-38.
LUCA, Tania Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Pau-
lo: Contexto, 2010. p. 111-153.
1. RIBAS, Maria Cristina. Por uma revisão conceitual do gênero crônica: entre a montanha
e o rés do chão. Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC (UEPB). Campina
Grande (PB), 08 a 12 de julho de 2013. p. 3.
2. SANTOS, Regma Maria dos (Org.). Brevidades, Lycidio Paes. São Paulo: EDUC,
2002. p. 17.
3. PONTES, Matheus de Mesquista e. Jornalismo e História nas crônicas de Carlos Drum-
mond de Andrade: 1930-1950. OPISIS. Revista do NIESC, v. 4., p. 84-92, 2004.
4. BASTOS, Dilza Ramos; CAMPOS, Maria Luiza de Almeida; VASCONCELLOS,
Eliane. A pesquisa em crônicas jornalísticas: a análise da representação da informação. Re-
vista Arquivo e Administração. Rio de Janeiro. v. 7., n. 1., p. 71-94, jan.-jun. 2008.
6. SOUZA, Manoel Felipe de. Morte do Índio Afonso. In: VIEIRA, Diocleciano; COS-
TA, Arthur (Org.). Almanak Uberabense. Rio de Janeiro. 1895. p. 83-89.
[...] Precisamos acabar com aquele canguçá, custe o que custar, por ser
nosso encarniçado inimigo e de toda a nossa família. Si não dermos cabo
delle, elle dará cabo de nós, um por um. Disso estou bem certo, eu que por
milagre de Deus já escapei das balas enraivadas de sua carabina. Enquanto
elle e seus filhos viverem, nós não temos garantia. A nossa tranquilidade
só pode nascer com o último rugido daquela fera.8
I
Um gigante dormia áquem do mar,
Dormia no seu solio soberano
Cerulea immensidade do oceano
Velava o seu tranquilo resomnar.
II
Mas um dia mudou-se o seu futuro:
Elle viu-se de chofre despertado,
apenas o seu dorso foi pisado
Por Colombo, o valente palinuro.
III
Correndo com as feras dos covis,
perplexas da feroz hilariedade,
o gentio demanda a liberdade
no denso coração de seu paiz.
Não assisti porque não gosto da festa do Rosário, mas não falta quem
conte a gente. S. exc. o bispo diocesano estava na egreja e censurava ener-
gicamente o modo gaiato e carnavalesco com que se celebra a festa deno-
minada dos pretos, e dizia que mais de uma vez tem prohibido tal abuso.
Repetia a sua solene prohibição quando uma turma dos taes foliões, em
piquete avançado e de jacázinho aos pés, fazendo mesuras e trejeitos pou-
co pudibundos, aproximando-se da porta da egreja, arrancava de mal edu-
cadas larynges e soltava as variações meridias a copla chata e quase obs-
cena que ahi fica reproduzida. Nesse momento, acompanhados daquela
dança infernal, damas de honra e moços fidalgos, ia transpondo a entrada
da egreja o imperador e a imperatriz, a quem a exc. deu ordem de despir o
12. FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; Soares, Carlos Eugênio Líbano;
MOREIRA, Carlos Eduardo de Araújo. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urba-
nos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. p. 112-120.
13. Além de Nossa Senhora do Rosário, eram considerados “santos de negros” Santa Efigênia
e São Benedito.
14. OLIVEIRA, Raniele Duarte. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Uberaba/MG:
desafios e possibilidades de pesquisa (1841/1924). Anais eletrônicos do I Seminário de
História e Cultura: historiografia e teoria da História. Universidade Federal de Uberlân-
dia. 2013.
Fontes
1. Almanak Uberabense
SOUZA, Manoel Felipe de. Morte do Índio Afonso. In: VIEIRA, Dio-
cleciano; COSTA, Arthur (orgs.). Almanak Uberabense. Rio de Janeiro.
1895. p. 83-89.
Referências
SANTOS, Regma Maria dos (Org.). Brevidades, Lycidio Paes. São Pau-
lo: EDUC, 2002.
Este texto tem por intenção retomar memórias. Nesse caso, memórias
de sujeitos sociais que, há mais de uma década, tiveram suas vidas radical-
mente transformadas com a construção e a instalação da Usina Hidrelétri-
ca Serra do Facão (SEFAC), no Sudeste de Goiás. A barragem, erguida
no Rio São Marcos, gerou um lago que inundou cerca de 214 km² em seis
municípios: Catalão, Davinópolis, Cristalina, Campo Alegre de Goiás e
Ipameri, no estado de Goiás; e Paracatu, no estado de Minas Gerais.
Essa pesquisa não nasceu “sozinha”, isolada no tempo ou apartada da
vida do pesquisador. Pelo contrário, o envolvimento do pesquisador com
o tema já esbarra em mais de uma década, pois de 2008 até os anos 2022
foram inúmeros os caminhos e trilhas que me fizeram enveredar pelo inte-
rior goiano e revisitar moradores afetados pela construção da usina. Afinal,
atuei como estagiário no projeto que se intitulava “Programa de preserva-
ção do patrimônio histórico-cultural: Caminhos da memória, caminhos de
muitas histórias”.
Como uma das várias ações compensatórias, necessárias para o pleno
funcionamento da Usina Hidroelétrica Serra do Facão, o projeto conferia
1. BRECHT, Bertolt. A Ópera dos Três Vinténs. Tradução Wolfgang Bader, Marcos Roma
Santa, Wira Selanski. In: ______. Teatro Completo. v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
àquele grupo de pesquisa a responsabilidade pelo levantamento do patri-
mônio histórico-cultural da área atingida em Goiás e Minas Gerais. Ao
final da pesquisa, previa-se, ainda, a produção de um livro, “São Marcos do
Sertão Goiano: Cidades, memórias e culturas”; um vídeo documentário, “Ser-
tão de dentro: travessias e veredas em Goiás” e a produção e organização de
inventários. Com o passar do tempo, fui entendendo a responsabilidade, o
desafio e a grandiosidade do mesmo.
Trabalhávamos com a produção das memórias, cuja trama visava cons-
truir representações das experiências das pessoas que seriam desapropria-
das das suas habitações e terras. A equipe tinha a percepção prévia de que
o início não seria fácil. E, verdadeiramente, não foi. Por acreditar que o
grupo fazia parte da empresa, e que não se tratava, apenas, de pesquisado-
res de uma universidade federal com o intuito de valorizar suas memórias e
práticas culturais, muitos moradores da região afetada se recusaram a rece-
ber a equipe de forma cordial. Ao longo da jornada pelos seis municípios,
muitas vezes o grupo foi alvo de desconfiança pelos moradores, os quais
associavam o trabalho ao de funcionários da Serra do Facão, responsáveis
pelo inventário dos bens e pagamentos das indenizações.
No entanto, na medida em que o trabalho de campo foi sendo desen-
volvido, a equipe foi conquistando a confiança dos moradores da região,
saindo da posição de intrusos para a de “escutadores”. A prova da nova
confiança se expressava na hospitalidade da mesa farta: o “cafezinho” pas-
sado na hora, o queijo fresco, os doces e quitandas que temperavam os
“dedos de prosa” dos quais saíram falas significativas e entrevistas enrique-
cedoras. No meu entendimento, no momento em que a equipe foi aceita
e chamada a partilhar de uma prática cultural inerente à região, consubs-
tanciada na hospitalidade da mesa farta, foi que passou a dimensionar, de
fato, como a chegada da Usina Hidroelétrica afetava o cotidiano daqueles
sujeitos, transformando a região em um tenso campo de disputas.
Durante cerca de dois anos, entre 2008 e 2010, a equipe da qual eu
fazia parte, percorreu centenas de quilômetros, batendo de porta em porta
e realizando mais de 400 entrevistas, transcritas e arquivadas para futuras
pesquisas. Além disso, efetuou um levantamento bibliográfico e documen-
tal, construindo um rico acervo que deveria ser disponibilizado para con-
sultas em um Centro de Referência em Catalão, Goiás, e ainda, no Centro
de Pesquisa e Documentação em História (CDHIS) da Universidade Fe-
[...] Esse projeto dessa Usina Serra do Facão, ele já existe aí desde uns cin-
quenta anos atrás, que eu nem era nascido. E desde que a gente se entende
por gente ouve falar nesse projeto. Só que, uns seis, oito anos pra cá que
intensificou mais... Começou a aparecer gente fazendo mais levantamen-
to, já visitando o pessoal que ia ser desapropriado. [...]6
[...] Aquela barragem lá tá com quarenta ano que ela foi “falada”. É que
foi falando: “ah, a barragem não sai, a barragem não sai, a barragem não
sai...” Falei: “Não sai?” Foi até que saiu... [...]7
[...] Desde que eu casei, de vez em quando, eles iam lá, fazia uma pes-
quisa, umas coisas caçando conversa, né? Depois é que eles começaram a
falar mesmo sobre o que... (sobre a construção da UHE Serra do facão).
Eu casei em 61, em julho de 61. [...]9
[...] Ah, ocê sabe! Que eu não tenho o menor sentido nesse trem. Parece
que tudo é evolução, mas que é bom pra quem? Igual, eu nasci, criei, vivi
lá, perdi tempo sem dever um centavo pra ninguém, não é bom né? Essa
coisa que fui nascido e criado lá, daí sair vendê pro outros, é evolução não.
[...] Eu já era casado quando eles começou a falar nessa barragem. Não
tem menos de quarenta e cinco anos, que eles tava falando em fazer essa
barragem [...]11
10. Entrevista com Amado Francisco Ramos (produtor rural), Davinópolis/GO, 2009.
11. Entrevista com Manoel Ferreira da Silva (produtor rural), Catalão/GO, 2009.
[...] Eu acredito que não, aqui no nosso município eu acredito que não,
porque a barragem ela vai afetar, o lago da barragem vai afetar muito
pouco, vai inundar muito pouco no, no nosso município, né? Eu acredito
que não, na minha opinião eu acho que não. [...] A não ser que, que esses
novos nordestinos que veio pra cá, futuramente pode interferir alguma
coisa, mas, que você sabe, né? Vai entrando novos povos, né? Vai mudan-
do muita coisa, mas isso pode ser [...]12
12. Entrevista com Aguinaldo Antônio Bento (produtor rural), Davinópolis/GO, 2009.
[...] Não, isso acontece se você pegou minha terra cê vai pagar por ela,
agora se cê vai pagar bem o mal, eu num sei, mais cê vai pagar por ela. E o
que... [...] É, pra mim é irreversível. Tem que acontecer. Agora tem uma
coisa, eu vejo o movimentando que tá movimentando essa cidade hoje
é esses carinha que tá recebendo o dinherinho deles lá, alguns tá sendo
esperto e comprando terra, outros tá gastando no comércio da cidade. De
um jeito ou de outro tá movimentando dinheiro. [...] Certo, mais o ro-
yalties é lei, porque do momento que Campo Alegre recebia é ... cem mil
reais de imposto, de tudo que era prantado no município que foi aterrado,
então esse imposto tem que vim pra Campo Alegre em ... coisa em royal-
ties. Então, se hoje Campo Alegre recebe por ano ... por meis quinhentos
mil ... do governo pra podê ter ... a despesa, pra pagar a despesa do meis,
vai somar ... vamo ... que seja lá ... vamo por uma quantidade qualquer,
que isso é uma coisa que eles que tem que calcular lá, é cem mil é royal-
ties. Então, Campo Alegre, a prefeitura de Campo Alegre vai começar
a receber seiscentos mil todo meis, porque isso é lei e quem fez isso ...
foi a única lei que o Ronan Tito fez, porque ele pode ter ganhado muito
dinheiro, roubado muito dinheiro durante a vida dele toda política. Mais
foi a leizinha que ele fez que tá melhorando o mundo... o Brasil inteiro...
que é o royalties [...]13
[...] Agora, é o negócio que eu falo pra você, sabe. Se a barragem, agora
tem muitos que fica satisfeito sabe, tem muitos aí se você conversa nossa,
mas o cara ele num sabe o que, você... Tá me entendendo? Eu acho que
ele não sabe as consequências que ele vai ter. No momento pra ele tá bom,
mais daqui uns dias se ele bagunçar [...]14
[...] Olha! Foi em 2002 que começou, né? O pessoal fazendo um tra-
balho de estudo, de bacia lá naquela região. Mais assim, no momento
a gente não acreditava que viesse a acontecê a barragem, né? Mais aí,
quando foi em 2003, aí viero pra construí mesmo, mais aí gente tinha
14. Entrevista com Joel José Pires (produtor rural), Catalão/GO, 2009.
[...] Uns até comemorou, teve até uma festa ali no centro, uma janta co-
memorando a vitória, como tinha parado a barragem e não ia ter mais,
mas eu acho que deu só uma pausinha ali pra dar uma refrescada, né? A
hora que ele veio, ele veio rebentando [...]16
15. Entrevista com Amarildo Almeida Silva (produtor rural), Catalão/GO, 2009.
16. Entrevista com Améria de Aparecida Cardoso (produtora rural), Catalão/GO, 2009.
[...] Acho que a pausa dele um pouco que o documento deles que tava
meio errado, que eles pôs que a terra era meio improdutiva, era tanta coisa
errada, tanta mentira que eles pôs, aí entrou o movimento, tem advogado,
tem essas coisas, derrubou, né? Aí pegou, pegou a produção inteira da
terra. Aí já passou no nariz dele lá, não era do jeito que ele tava falando
não. Aí já tem que mudar, muita coisa ali tava errada e outra coisa tam-
bém o homem do canteiro lá, Zé Augusto tava com ele na justiça, ele não
podia, tinha obedecer um pouco as leis, por isso eu acho que atrasou um
pouco. Quando ele [empreendimento] não resolveu com Zé Augusto ele
não pode tocar pra frente. Eu acho que eles começou passar em riba de
Zé Augusto, Zé Augusto muito velhaco caçou eles na justiça, acho que
no fim ganhou deles, e teve que pagar o preço [...] O Zé Augusto acho
que tem filho advogado, né? Ele é bem vivido, como diz o outro. Ele é
velhaco, ele tem dinheiro e ele é sabido. Ele tem dinheiro e eu vi falar que
ele tem um filho advogado e forte, uma pessoa que tem dinheiro e tem
poder, é sabido e velhaco, sabe as manhas tudo. Acho que eles queriam
pagar ele baratinho, que pagar as terras dele barato e já foi entrando [...]17
[...] Eu mais meu marido foi uns dos primeiros a lutar contra a barra-
gem, assim lutar no movimento do MAB [Movimento dos Atingidos por
Barragens], junto com UFG [Universidade Federal de Goiás] e a CPT
[Comissão Pastoral da Terra] e o bispo Dom Guilherme. Nós lutamos o
quanto pode, até enquanto pode, e até em Brasília fomos, falamos com
Ministro... teve que ficar contra, que não queríamos a barragem, a gente
sabia que só ia trazer prejuízo, desestrutura a gente tudo. Eu não vejo
vantagem, na barragem, pois não precisa de energia como diz o Lula, um
dia falou: “o carro chefe do progresso é a energia”. Precisa, só que desse
jeito eu não queria inundar as terras, tantos proprietários, tantas pessoas
velhinhas, lá agora tem conhecido Sr. Carlito mais Dona Aparecida, que
eu conheço, que eu sei vai sofrer demais com o negócio da barragem,
tantas famílias que não ia mudar nunca, daquele lugar. Nós ainda vamos
ficar porque eu não sei se vai dar pra viver, espero dar, porque o dinheiro
que nós vendemos, compramos terra lá em Catalão, mas se Deus abençoar
que o aluguel dê pra gente manter os filhos, estudo, mas a vantagem da
barragem pra nós é nada, só coisa ruim mesmo [...]19
[...] Antes dela [da barragem] chegar, [...] a gente sabia que ela tinha sido
solicitada [autorizada a construção pelo governo federal] [...] Quando saiu
isso eles já vieram, bateram de frente, aí o pessoal da UFG [Universida-
de Federal de Goiás, Campus Catalão], uns professores nos ajudaram a
buscar ajuda com o governo [...] Eu fui pra Goiânia muitas vezes, para
Brasília [...] Falei até com Marina Silva [Ministra do Meio Ambiente à
época]. Eu falei com ela pessoalmente.
Ela recebeu vocês lá?
Recebeu, custou mais nos recebeu. Nós ficamos o dia inteiro em pé, es-
perando. Aquilo foi um empurra prum lado, fecha um pouquinho lá e dá
uma água! [...]20
O Sr. Sílvio e Dona Lourdes nos lembram de algumas das ações dos
grupos organizados, da presença do MAB (Movimento dos Atingidos por
Barragem) e dos sindicatos que se formaram.22 Destacaram, ainda, a pre-
sença de setores da Igreja Católica nesse processo. No caso de Catalão, o
MAB e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Igreja Católica foram bas-
tante atuantes na luta contra a instalação da barragem, do início dos anos
2000 até por volta de 2007. No entanto, o mais importante nas falas acima
citadas é a forma com que os sujeitos se organizaram coletivamente, agre-
gando moradores e movimentos sociais. Contudo, a empresa conseguiu
desarticular e enfraquecer a articulação por meio das indenizações, inclusi-
ve contemplando parte dos moradores rurais que articulavam a resistência.
A fala de uma das gestoras da SEFAC demonstra muito bem o olhar
da empresa para os movimentos sociais contrários ao funcionamento da
usina, assim como as estratégias de desarticulação utilizadas. Dentre es-
sas, destaca-se a contratação empregatícia dos filhos dos atingidos, que
pertenciam ao movimento reivindicatório e o atendimento a diversas so-
licitações de melhorias, por parte dos moradores. Vejamos como ela narra
esse processo, conforme memória de uma das reuniões com os membros do
“Programa de preservação do patrimônio histórico-cultural: caminhos da
Memória, caminhos de muitas histórias” e a gestão da empresa, em 2009:
[...] Porque no Sul [do Brasil], o MAB é extremamente forte, mas lá,
como todo movimento, ele ocupa os espaços da insegurança daqueles que
estão ali, do desconhecimento [...] Aqui, a gente criou duas equipes para
que houvesse um canal de interlocução com eles [...] e serviu de referência
por um longo tempo, o que não impediu que ocorressem algumas mani-
festações, descontentamentos, renegociações, solicitações e pedidos para
construção de equipamentos sociais. É fundamental estabelecer relações
de confiança, de transparência, tanto que a gente contratou 4 filhos de
proprietários atingidos. Foram escolhidos porque conhecem a região e
porque a gente os considerou também competentes para fazer análises
21. Entrevista de Lourdes de Neiva Mesquita (Produtora Rural - Fazenda Pires - Catalão/
GO) 2009.
22. Dentre esses grupos, podemos destacar grupos de professores e de estudantes da Univer-
sidade Federal de Goiás, campus Catalão, que se solidarizaram com o movimento e também
foram atuantes na luta contra a construção da barragem, a exemplo de alguns Núcleos de
estudos e pesquisas que compõem os atuais Institutos de Geografia e História.
[...] um pastor, ao ver seu rebanho ser atacado, ele não pode ficar cego,
surdo e mudo. Ele tem que ir em defesa desse rebanho. Defender esse re-
banho significa, em primeiro lugar: a justiça com essas famílias. [...] aí eu
fui à CPT (Comissão Pastoral da Terra) em Goiânia; eu fui ao Ministério
Público de Goiânia. Na esfera Federal, na Estadual. Eu conversei com
um delegado do Meio Ambiente […] Todos prometeram tomar provi-
dências, mas nada acontece. Isso nós sabemos, o povo promete: “vamos
atender vocês”, mas não acontece. A empresa vai fazer de qualquer jeito,
porque quem manda é o capital, não é a pessoa humana! O lucro é o cen-
tro do mundo moderno. Tudo gira em torno do lucro. Se daí você precisar
privatizar o ar, você vai privatizar o ar! Você ia rir há trinta anos atrás se
você ouvisse que iam privatizar as águas? Esse rio São Marcos está pri-
vatizado pela concessão, porque o Governo Federal, que é o dono do rio,
concede por trinta, trinta e cinco anos, um direito de uso e de exploração.
Ora, eu sabia que o rio era dos animais e das pessoas. Agora não, ele é de
quem tem o direito de uso dele [...]27
[...] como é que começou a história? Eu não sei se foi no ano, dois mil e
um, eu imagino que tenha sido o ano dois mil. O padre Orcalino estava
aqui, ainda em Ipameri, depois eu transferi ele pra Catalão. Num domin-
go de manhã apareceu duas pessoas, um homem e uma mulher, o senhor
era de Brasília e ela, num sei se era de Brasília, mas ela era natural de São
Paulo, seria uma assistente social do grupo do SEFAC. Vieram me pro-
curar aqui depois da missa da catedral para falar comigo. Aí, eu as atendi,
eles se apresentaram. Ia ser construído uma barragem no Rio São Marcos
e tudo mais e que nas primeiras... é nos primeiros contatos meu nome
foi muito citado e que eles queriam falar comigo enquanto igreja sobre
isso aí. Eu deixei muito claro a minha posição que: em princípio eu sou
27. Entrevista de Dom Guilherme (Bispo da Igreja Católica e responsável pela maioria das
cidades afetadas pela SEFAC) Ipameri, 2009.
28. Entrevista de Dom Guilherme (Bispo da Igreja Católica e responsável pela maioria das
cidades afetadas pela SEFAC) Ipameri, 2009.
[...] Ah, eu vi tanto sofrimento nas viagens [à Goiânia e Brasília] que nós
fizemos. Se tivesse luta, se tivesse união nós tínhamos conseguido muita
coisa, mas é porque o povo dispersou com o jogo da barragem. O povo
dispersou mesmo! Eles (SEFAC) passaram a indenizar um aqui, outro
ali... Um contava para o outro que: “ah, eles vão nos pagar bem!” E teve
gente, inclusive que a SEFAC pagou mais o preço do alqueire de terra do
que para outros. Então, eu vou receber daquele jeitão, eu vou calar a boca;
é bom pra mim! Tem terra lá na Rancharia (Município de Campo Alegre
de Goiás) que receberam bem melhor. Então se a gente tivesse união
tinha conseguido muita coisa, mas dispersou mesmo [...]30
Na visão de Sílvio Neiva Mesquita, a empresa foi tão astuta que con-
seguiu interferir na organização do movimento dos moradores. Ele relata,
com pesar, o ocorrido:
Com base nas falas de Silvio e Lourdes, podemos afirmar que a tática
da empresa, portanto, foi a de se aproximar dos líderes do movimento e
indenizá-los primeiro.32 Alguns, inclusive, recebendo valores maiores do
que os demais, dentro de uma avaliação similar:
[...] também o fato deles divulgarem a ideia que quem não resistisse seria
indenizado primeiro e melhor. Diante do medo de não receber, as resis-
tências foram dando lugar à aceitação. Isso segregava o grupo, desmobi-
lizava [...]33
[...] Eu penso que não, assim agora às vezes tô falando vem esse movi-
mento todo aí, que os outros dá serviço, dá progresso, mas como diz o
outro, isso tarde gera problema. Eu penso assim que deve investir outro
tipo de energia saia melhor. Tava vendo se ficasse só por uma duas, o
negócio é que eles não para, eles vai faz uma, faz outra. Que que vai virar
o mundo? Igual eu falo, eu tenho mais preocupação com a natureza, cê
não vê igual tá falando aí, a poluição estragou, como disse os outros; a
camada de ozônio, aí o sol como é que tá! Cê não vê pra fora aí, Santa
Catarina [enchentes e tornados incomuns na região e que se intensifi-
caram naquele ano], esse trem, é porque aquilo, é porque a natureza tá
dando a resposta dela, porque agrediu ela, mexeu com ela, a mesma coisa
é aqui, esse rio foi feito pra correr solto, ele não foi feito pra tampar aqui
acolá, cê sabe que um trem, a natureza que cê muda ela, ela vai dá a res-
posta mais tarde, a minha preocupação mais é esta. Os outros é ter acha
bão gera energia, gera serviço, mas preocupante é a natureza, né? que cê
vai mudar ela, mais tarde ela vai dar a resposta dela. [...]40
A partir dessa fala, podemos inferir que parte dos moradores enten-
dia o empreendimento como algo ruim não apenas com relação aos senti-
mentos e vínculos identitários, mas também em se tratando dos impactos
ambientais.
É válido ressaltar que o movimento dos atingidos da Serra do Facão se
deu em âmbito local e regional, não chamando a atenção dos governantes
de forma direta. Estes apoiaram a efetivação da hidrelétrica uma vez que
39. Para saber mais consultar: FLEURY, Lorena Cândido; ALMEIDA, Jalcione. A con-
strução da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvi-
mento. Revista Ambiente e Sociedade. v.16, n.4, 2013.
40. Entrevista de Améria de Aparecida Cardoso (produtora rural) Catalão/GO, 2009.
[...] Não entender se a barragem ia ou não ser construída foi difícil para
nós. Você não tinha certeza de mais nada. Você não tinha uma pessoa
pra falar com certeza se a barragem ia ou não ser construída. Mas a gente
sabia que outras barragens tinham sido construídas. Veio a do Capim
Branco, aquela aqui de Araguari e Uberlândia. O pessoal veio de lá pra cá.
Eu me perguntava quanto custava, que preço que eles pagaram pelo al-
queire de chão? Que preço pagaram no hectare de terra? Quanto pagaram
nas casas? Aqui ninguém contava pro outro quanto recebeu. Você não
sabia de nada! E aí eles fizeram outro estudo aqui, avaliaram por baixo.
Agora eu pedi outra avaliação, pra eles dá outra avaliação. Foi difícil! Não
foi fácil não! Eu acabei com dois pares de pneus da caminhonete andando
atrás disso aí, ou mais! [...]41
41. Entrevista de Silvio de Neiva Mesquita (produtor rural) Fazenda Pires - Catalão/GO
2020
6. FREIRE, Nilson de Souza. Nas barrancas de Santa Rita do Paranahyba – jogos do poder
em Itumbiara de 1830-2011. Itumbiara: Edição do autor, 2011, p 11.
Figura 1. Onofre Ferreira dos Anjos, Pça da República em 1934. s/data. 1 pintura,
óleo sobre seriguilha., 78,5 cm x 49,5. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.
7. FERREIRA, Josmar Divino; PINHEIRO, Antônio César Caldas. Santa Rita do Pa-
ranahyaba: origem e desenvolvimento. História de Itumbiara, v. 1, Itumbiara: Edição de
autor, 2009.
8. OLIVEIRA, Hamilton Afonso. A Construção da riqueza no Sul de Goiás –1835-1910.
Franca. 2006. 231f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Fran-
ca, Brasil.
Todas as madames ia na praça, porque era onde podia ir. Se vestiam bem
e iam pra praça. A sociedade era pequena. As moças bem prendadas da
cidade iam. Marilda Barra... As pessoas ficam sentadas, namorando. Era
lá que arrumava namorado, só namorava quem ia pra praça, se não ia não
namorava, porque ai as mulheres ficava sentada de duas e três e ficava
paquerando, porque os namoros de antigamente, Deus me livre! O pai
vigiava dia e noite. Deus me livre ficar grávida antes de casar, então era
muito vigiado. Então andava de muitos porque geralmente eram muitas
irmãs, primas e também porque o pai botava pra vigiar...”13
Figura 3. Onofre Ferreira dos Anjos, Casa Adelino. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 77,5 cm x 47,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almeida.
Foto: PEREIRA, T. H.
Figura 4. Onofre Ferreira dos Anjos, Hotel central. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 83 cm x 53 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almeida.
Foto: PEREIRA, T. H.
Figura 3. Onofre Ferreira dos Anjos, Cine Walter Berra. s/data. 1 pintura, óleo
sobre seriguilha., 77,5 cm x 47,5. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T.H.
Figura 5. Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 I, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.
Referências
Fontes
Onofre Ferreira dos Anjos, Coreto. s/data. 1 pintura, óleo sobre serigui-
lha., 78,5 cm x 49,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almei-
da. Foto: PEREIRA, T. H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Casa Adelino. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 77,5 cm x 47,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Hotel central. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 83 cm x 53 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Al-
meida. Foto: PEREIRA, T. H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Cine Walter Berra. s/data. 1 pintura, óleo
sobre seriguilha., 77,5 cm x 47,5. Coleção Museu Major Militão Pereira
de Almeida. Foto: PEREIRA, T.H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Igreja Santa Rita. s/data. 1 pintura, óleo so-
bre seriguilha, 80 cm x 50 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 I, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 II, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.
Entrevistas
Robert Mori
Para a escrita deste texto, selecionei a obra mais conhecida dos me-
morialistas citados. A ordem de apresentação das publicações e de seus
autores respeitou tanto a cronologia das produções aqui analisadas, quan-
to o momento de nascimento dos respectivos autores. A primeira de-
las é “Uberaba: história, fatos e homens”, de Antônio Borges Sampaio.
Nascido em Portugal, em 1827, Sampaio chegou ao porto de Santos em
1844. Aos 20 anos, mudou-se para Uberaba. Foi comerciante, farmacêu-
tico, desempenhou cargos na instrução pública, atuou como advogado,
tenente-cirurgião da Guarda Nacional, vereador, agente dos Correios,
noticiarista, correspondente do Arquivo Público Mineiro e foi membro
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
“História de Uberaba e a civilização no Brasil Central” é de autoria
de Hildebrando Pontes, nascido em 1879, em Conquista, Minas Gerais.
Foi caixeiro, engenheiro agrônomo, articulista do jornal Lavoura e Co-
mércio, autor de diversos trabalhos sobre a história de Uberaba, vereador
e diretor de instrução pública. A terceira obra selecionada é “História de
Uberaba”, de José Mendonça, nascido em 1904. Único natural de Ube-
raba, foi advogado, professor de Literatura, Língua Portuguesa, História
e Direito Civil, além de jornalista e autor de diversos livros e artigos de
jornal. Por fim, o livro “O Triângulo Mineiro nos Oitocentos (séculos
XVIII e XIX)” é de autoria de Edelweiss Teixeira, nascido em 1909.
Natural de Pouso Alegre (MG), mudou-se em 1943 para o Triângulo
Mineiro. Formado em Medicina, Odontologia e Música, foi reitor, pro-
fessor, inspetor de ensino e folclorista.
Convém salientar que as três obras iniciais tiveram sua primeira edi-
ção lançada na década de 1970, enquanto, a última delas, de autoria de
Teixeira, é datada de 2001. Todas foram publicadas após o falecimen-
to de seus respectivos autores, sendo o trabalho de José Mendonça uma
1. DANTAS, Sandra Mara. A memória como sinônimo de história: a produção dos me-
morialistas no Triângulo Mineiro. In: GOMES, Marcos Antônio Silvestre; DANTAS,
Sandra Mara. Olhares cruzados: política e dinâmicas sociais no Triângulo Mineiro. Jun-
diaí: Paco Editorial, 2018, p. 33.
12. ATAÍDES, Jézus Marco de. Sob o signo da violência: colonizadores e Kayapó do Sul no
Brasil Central. Goiânia: Editora UCG, 1998.
13. GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil
Central. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
14. MANO, Marcel. Contato, guerra e paz: problemas de tempo, mito e história. Revista de
Ciências Sociais – Política & Trabalho, João Pessoa, n. 34, p. 193 – 212, abr. 2011.
15. MANO, Marcel. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre os Kayapó.
Revista Tellus, ano 12, n. 22, p. 133 – 154, jan.-jun., 2012.
16. MORI, Robert. Mundos em transformação: guerras e alianças entre os Jê e os luso-bra-
sileiros nos sertões da América portuguesa – século XVIII. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020.
17. PONTES, Op. cit., p. 20.
18. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
35. ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos e Culturais; Fundação João Pinheiro, 1996.
36. TEIXEIRA, Op. cit.
37. Cartas e ofícios do capitão-geral da província e diversos. Arquivo Histórico do Estado de
Goiás, Livro 03 – 1804/1809 –, folha 31. Transcrito no “Guia Origens de Uberaba”, 1995,
folha 114.
38. Cópia do regimento que há de observar o coronel Antônio Pires de Campos no esta-
belecimento dos Bororos [...], datado de 15/07/1748, constante na Carta do governador e
capitão-general da capitania do Rio de Janeiro, D. Luís Mascarenhas, ao rei [D. João V]
sobre as estratégias para combater os índios Caiapós [...], Vila e praça de Santos, 12/09/1748.
Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate – Rede Memória - AHU_ACL_CU_023,
caixa 3, documento 233.
39. PONTES, Op. cit.; TEIXEIRA, Op. cit.; MENDONÇA, Op. cit.
40. SAMPAIO, Op. cit.
41. Cópia de uma carta do rei Dom João V, ao governador e capitão-general de São Pau-
lo, Dom Luís Mascarenhas datada de 08/05/1746, constante no “Ofício do sindicante,
Considerações finais
Referências
3. Idem, p.31.
4. CEDEFES. Comunidades quilombolas de Minas Gerais: Entre direitos e conflitos.
Belo Horizonte, 2013. p. 9.
5. CEDEFES, Op. cit., p.10.
6. SOUZA, Laura de Mello e. Violências e práticas culturais no cotidiano de uma expedição
contra quilombos- Minas Gerais,1769. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos
(Org.). Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
13. PROENÇA, Cavalcanti M. Ribeiro do São Francisco. Rio de Janeiro, Laemmert, 1994.
p. 1994-5.
14. COSTA, João Batista de Almeida. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identi-
dade e do território baianeiros em Minas Gerais. Disponível em: www.revistas.ufg.br/index.
php/fchf/article/viewFile/554/475 Acesso em: 22 out. 2020.
15. ESBOÇO histórico do município da Januária. Revista do Arquivo Público Mineiro.
Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais. v. 11, n 1, 1906.
Pedra dos Angicos parece mais como uma aldeia de índios do que com
povoações de homens de nossa raça (...) os habitantes dessa espécie de
povoado passam dias na miséria e na indolência e morreriam de fome sem
a pesca, que, nas margens do rio São Francisco, é tão abundante e fácil.18
George Gardner, por sua vez, de passagem por Morrinhos relatou que
a Vila não tinha, em sua perspectiva, comércio próprio, vivendo da venda
de peixe, salgado e seco (alimento muito apreciado pelos sertanejos). O
viajante aponta ainda que:
A população é quase toda de gente de cor e não creio que haja na Vila
inteira uma dúzia de famílias brancas. A maior parte dos habitantes são
negociantes que fornecem aos fazendeiros e aos residentes dos arredores
mercadorias.19
18. SAINT-HILAIRE, Auguste Prouvençal de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro
e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974. p.353.
19. GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Pau-
lo: Edusp, 1975. p. 188.
A natureza prodiga não deixa haver a verdadeira pobreza que force a tra-
balhar e que obrigue e tenha disciplina pela necessidade de viver.
Não há aqui, tampouco, estímulos para capitalisar. Vive-se bem, vive-se
ao natural, sem cuidados pelo futuro, porque a pobreza aqui não aterra a
ninguém.
O Rio é um enorme viveiro, onde o peixe não escasseia jamais, assim
como as catingas e as mattas marginaes um immenso e inexgottavel the-
souro, fácil de explorar nos momentos, nos raríssimos momentos em que
a preguiça universal cede um pouco do seu império.22
23. BURTON, Richard Francis. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. São
Paulo; Belo Horizonte: Editora da USP; Itatiaia, 1977. p.214.
24. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
27. Notório participante da produção dos discursos europeus sobre o Oriente e a África que
tiveram curso em sua época, Burton percorre o rio São Francisco numa canoa, o registro da
viagem está presente no livro “Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.”
28. BURTON, Op. cit., p.209.
29. Durante os anos 1861-1864, imediatamente anteriores à sua vinda ao Brasil, Burton foi o
cônsul britânico na ilha de Fernando Pó, ao largo da costa atlântica da África. In: GEBARA,
Alexsander. A África de Richard Francis Burton: antropologia, política e livre-comércio,
1861-1865. São Paulo: Alameda, 2010.
30. FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sobre Burton e a construção dos discursos euro-
peus sobre os africanos. Afro-Ásia, n.50, Salvador, jul.-dec. 2014.
31. Ver dissertação SILVA, Johnisson Xavier. O terno dos temerosos: as transformações e
sentidos de suas práticas culturais na segunda metade do século XX. 2014. 155f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-graduação
em História, Uberlândia, 2014.
Não era fácil dormir, com a barulheira; parece que ali as horas da noite
foram feitas “para o homem beber, e a mulher “rabujar”
O samba e o pagode formaram um concerto com os elementos; o retinir
dos instrumentos e a agudeza das vozes davam a impressão de uma verda-
deira cantoria africana, de uma orgia em Unyaanguruwe.37
Referências
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um
fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 13. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1979.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
Jeremias Brasileiro
Mestre e doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Escritor, poeta, com textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-bra-
sileira, possui quase 30 livros publicados e é âncora de diversos documen-
tários e curtas-metragens, bem como personagem e participação artística
em outros. É também Comandante Geral da Festa da Congada da cidade
de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005, e presidente
da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba,
Minas Gerais, desde o ano de 2011.
Roberto Camargos
Possui mestrado e doutorado em História pelo PPGHIS/UFU, com estu-
dos concentrados na área de história e música, culturas urbanas e periféri-
cas. Entre 2018 e 2019, atuou como professor substituto no Departamento
de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. É professor da
Educação Básica, na rede municipal de Uberlândia, e tem experiência com
produção cinematográfica e audiovisual.