Você está na página 1de 276

urdiduras da história

artur nogueira santos e costa


jeremias brasileiro
tadeu pereira dos santos
(organizadores)

Urdiduras da história: tramas, linguagens e


formas de produção do conhecimento
Copyright © 2023 By Artur Nogueira Santos e Costa, Jeremias Brasileiro, Tadeu Pereira
dos Santos (organizadores)

Todos os direitos reservados.

Editoração, projeto gráfico e diagramação


Ronyere Ferreira / Talyta Marjorie Lira Sousa

Capa
Mário Sérgio Olivindo

Cancioneiro

Editora chefe
Eva P. Bueno (St. Mary’s University, Texas - EUA)

Conselho editorial
Antonio Ozaí da Silva (Universidade Estadual de Maringá, Brasil)
Diego Buffa - (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)
Evaristo Falcão (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
Francisca Verônica Cavalcante (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
Giselle Menezes Mendes Cintado (Université Paris-Est Créteil, França)
Héctor Fernández L’Hoeste (Georgia State University, EUA)
Henrique Buarque de Gusmão (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Johny Santana de Araújo (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
Josenildo de Jesus Pereira (Universidade Federal do Maranhão, Brasil)
Kátia Rodrigues Paranhos (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil)
Maria Simone Euclides (Universidade Federal de Viçosa, Brasil)
Nancy Yohana Correa Serna (Universidad Nacional de Colombia, Colômbia)
Sandra Melo (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
Silvia Coneglian (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Silvia Glocer (Universidade de Buenos Aires, Argentina)
Vincent Spina (Clarion University of Pennsylvania, EUA)

Artur Nogueira Santos e Costa, Jeremias Brasileiro, Tadeu Pereira dos Santos
(organizadores). Urdiduras da história: tramas, linguagens e formas de
produção do conhecimento. Teresina: Cancioneiro, 2023.
276 f.: il.

isbn: 978-65-5380-108-0 (digital)

cdd 900

Editora Cancioneiro
Teresina - Piauí
www.editoracancioneiro.com.br
contato@editoracancioneiro.com.br
Sumário

Apresentação................................................................................... 7

José Fortuna e as guarânias brasileiras:


a canção Índia e os fluxos musicais Brasil-Paraguai......................... 15
Jaqueline Souza Gutemberg

Rap, cultura polifônica e bivocal....................................................... 37


Roberto Camargos

Trajetória de pesquisa:
os leitores de TEX e as performances culturais............................... 65
Aline Ferreira Antunes

Gênero, raça e geração na novela Cheias de Charme...................... 83


Rosana de Jesus dos Santos

E eu não sou uma mulata?


Performances, sexualidades e feminismos........................................ 101
Patrícia Giselia Batista

Entre História e imprensa do interior:


reflexões de pesquisa para uma prática historiográfica...................... 129
Caio Vinícius de Carvalho Ferreira

Crônicas na imprensa do interior de Minas Gerais:


Manoel Felipe de Souza e suas representações sobre os indígenas
e as manifestações culturais dos negros na coluna “Pennadas
Furtivas” (1899-1903)....................................................................... 149
Raniele Duarte Oliveira

Pelas margens do incerto e as certezas do desenraizamento:


a desfiguração dos modos de vida dos afetados pela UHE
Serra do Facão no Sudeste Goiano.................................................. 173
Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira
Entre a curva, a história e o rio: toponímia, memória e
representação da cidade sob o olhar de Guigui................................ 205
Túlio Henrique Pereira

A visão da pena dos memorialistas sobre os indígenas do antigo


Sertão da Farinha Podre dos séculos XVIII e XIX.......................... 229
Robert Mori

Terra de pretos: territórios negros no Sertão do São Francisco....... 253


Johnisson Xavier Silva

Sobre os organizadores e autores...................................................... 273


Apresentação

A toda hora rola uma história


Que é preciso estar atento
A todo instante rola um movimento
Que muda o rumo dos ventos
Quem sabe remar não estranha
Vem chegando a luz de um novo dia
O jeito é criar um outro samba
Sem rasgar a velha fantasia
Rumo dos ventos, Paulinho da Viola

Recebemos, com enorme satisfação, o convite para organizar esta co-


letânea, que reúne trabalhos de egressos/as do Programa de Pós-Gradua-
ção em História da Universidade Federal de Uberlândia (PPGHI/UFU),
especialmente vinculados às linhas de pesquisa História e Cultura e Po-
lítica e Imaginário, que compuseram a estrutura do Programa até o ano
de 2020, quando ele foi reformulado. O PPGHI/UFU, em suas mais de
duas décadas de funcionamento, se consolidou como importante lócus de
produção do conhecimento e formou um significativo número de mestres/
as e doutores/as em História, o que é expressão, mesmo que com percalços,
dos esforços bem-sucedidos de professores/as, técnicos/as e discentes que
fizeram parte de sua história.
Em alguma medida, os textos aqui apresentados dão a dimensão dessa
trajetória, bem como da solidez dos estudos desenvolvidos no âmbito do
PPGHI/UFU, marcados por uma variedade de abordagens teórico-meto-
dológicas, por um amplo espectro de temáticas e problemáticas de pesquisa
e por uma gama extremamente variada de fontes documentais exploradas
nos percursos de investigação. Em consonância com essa característica,
merece também destaque o fato de os/as autores/as possuírem atuações
profissionais fecundas, como docentes de instituições de Ensino Superior,
de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e de escolas de
Educação Básica. Assim, a relevância social do PPGHIS/UFU se mostra
tanto pela produção qualificada que coloca em circulação, quanto pela in-
serção profissional de seus egressos.
Por esse viés, a coletânea cumpre importante papel, ao conferir visibi-
lidade a trabalhos arquitetados com afinco e compromisso com o conhe-
cimento histórico. Contribui, portanto, para afirmar a história como saber
construído, posicionado e dedicado a ver/ler as experiências humanas por
muitos prismas, a estranhar o que se apresenta como natural, a colocar por
terra os sustentáculos das desigualdades, a fim de ousar pensar outros mun-
dos possíveis1. Em tempos de negacionismos de toda ordem, é também um
grito que se soma à defesa da pesquisa, das universidades públicas, dos in-
vestimentos em educação, ciência, tecnologia e saúde, demonstrando a se-
riedade do trabalho desenvolvido pelos/as pesquisadores/as brasileiros/as.
Particularmente, em um contexto tão inóspito do ponto de vista sa-
nitário, epidemiológico e político, com flagrantes ataques à democracia e
suas instituições, com o crescimento de práticas autoritárias e preconcei-
tuosas e com o recrudescimento da violência, as muitas histórias veiculadas
ao longo dos capítulos são um convite à ação transformadora e que não se
rende ao imobilismo. Conforme apregoou Raymond Williams,

O tempo todo, pessoas nascem em uma sociedade, que se mostra como


deve ser vista, como se deve falar dela. Mas em seguida – e isso também
é fundamental –, à medida que nos desenvolvemos, somos capazes de
comparar uma regra à outra, comparar o resultado de um fato presenciado
a outro. Somos capazes de crítica independente. Também somos capazes
– e este é um dos aspectos mais difíceis, mas também mais interessantes
– de novas percepções.2

Nesses termos, como um “recurso da esperança”, para usar a expressão


de Williams, os textos estimulam a crítica independente, a construção de
novas percepções, a formulação de olhares outros, a mobilização de senti-
dos plurais, como forma de localização no mundo e de baliza para a ativi-
dade historiadora.

1. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.


2. WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. São
Paulo: Editora da UNESP, 2015. p. 33.

8 - Urdiduras da história
Do ponto de vista teórico-metodológico, os trabalhos que compõem
a coletânea, mesmo que em sua diversidade, têm em comum o fato de
se ancorarem num rigor analítico típico da operação historiográfica. Tal
característica não implicou em desconsiderar que, como lembra Michel
de Certeau, são os/as historiadores/as, com suas opções, escolhas, ênfases
e silêncios, que articulam ideias, conceitos, que protagonizam o gesto de
converter dados materiais em fontes de pesquisa, que acionam certos pro-
cedimentos e que materializam um texto representativo de seus itinerários
investigativos. Os/as historiadores/as, assim, são sujeitos sociais, e a histó-
ria que produzem é “parte da realidade da qual trata.3”
Outro traço comum aos textos é a lida com farta documentação pro-
veniente de diferentes suportes, como novelas, músicas, impressos, litera-
tura, quadrinhos, entrevistas e performances artísticas. As diversas fontes
documentais foram apreendidas, nos estudos, como registros de relações
sociais, inscritas no tempo e no espaço e atravessadas por relações de po-
der. Nesses termos, os/as autores/as, revisitando seus percursos formativos,
procuraram tatear os procedimentos analíticos adequados para desvelar as
propriedades de cada conjunto de documentos, no intento de perscrutar os
conflitos, as representações, os discursos, os imaginários, as narrativas, as
memórias e as histórias que eles fazem funcionar.
A coletânea traz como eixo o foco mesmo no fazer histórico e his-
toriográfico, pensado como caminho para fortalecer as discussões sobre a
formação de historiadores/as, suas práticas profissionais no ensino e na
pesquisa e o desafio de fazer dessas trilhas um espaço constante de reflexão
e criação sobre a sociedade e suas demandas. Os onze textos aqui reunidos,
mesmo em sua pluralidade, são resultado do cotejamento de categorias e
conceitos à pesquisa documental, num processo criativo e inovador, e con-
ferem vigor aos dilemas historiográficos contemporâneos.
Nos dois primeiros textos, a música e suas nuances são tomadas como
objeto de reflexão, para problematizar as muitas frestas que compõem a
sociedade e os sujeitos de seu tempo. Assim, colaboram para compreender
os trânsitos, as apropriações e os fluxos que forjam os sentidos de uma dada
musicalidade.
Em José Fortuna e as guarânias brasileiras: a canção Índia e os fluxos
musicais Brasil-Paraguai, Jaqueline Souza Gutemberg discute a obra do
3. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita
da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 46-47.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 9


compositor José Fortuna, com o objetivo de compreender a introdução
das guarânias, canções tipicamente paraguaias, na música sertaneja brasi-
leira da década de 1950. A canção Índia é tomada como fio condutor para
se discutir os fluxos entre os dois gêneros musicais. Gutemberg, mestra e
doutora em História pelo PPGHI/UFU, tem vasta experiência de pesquisa
no campo história e música, com foco na música sertaneja. Atuou como
professora substituta no Departamento de História da Universidade Fe-
deral do Triângulo Mineiro e, atualmente, é docente na Educação Básica.
Já Roberto Camargos, no capítulo Rap, cultura polifônica e bivocal, acio-
na, com destacada destreza teórica, os conceitos de polifonia e bivocalidade
para pensar o rap como um campo de produção relacional, dialógico e que
envolve muitas vozes nos processos de criação de concepções de mundo e
de ideias partilhadas que estão em constante movimento. Estabelece rela-
ções entre composições dos Racionais MCs e de Rodrigo Ogi, por exemplo,
para pensar suas aproximações, mas também suas particularidades. Ca-
margos possui mestrado e doutorado em História pelo PPGHIS/UFU,
com estudos concentrados na área de história e música, culturas urbanas
e periféricas. Entre 2018 e 2019, atuou como professor substituto no De-
partamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
É professor da Educação Básica, na rede municipal de Uberlândia, e tem
experiência com produção cinematográfica e audiovisual.
O terceiro texto da coletânea, de Aline Ferreira Antunes, se intitula
Trajetória de pesquisa: os leitores de TEX e as Performances Culturais. Nele, a
autora adota os quadrinhos como linguagem privilegiada para se pensar os
vínculos entre cultura e sociedade. Desse modo, seu foco é o personagem
de Histórias em Quadrinhos (HQs) Tex Willer, das revistas TEX, produ-
zidas na Itália desde 1948 por Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Galleppi-
ni, responsabilidade da atual editora Sergio Bonelli (SBE) e, no Brasil,
republicados pela Mythos Editora. Aline Antunes é mestra em História
pelo PPGHI/UFU e doutora em Performances Culturais pela Universi-
dade Federal de Goiás. Atualmente, é professora efetiva na Secretaria de
Estado Educação do Distrito Federal, na Educação Básica.
No quarto e no quinto textos, as autoras tomam a categoria gênero
como base para problematizar as relações constitutivas da sociedade bra-
sileira, especialmente para desterritorializar suas salientes desigualdades.
Revisitando suas teses de doutoramento, articulam gênero a outros marca-

10 - Urdiduras da história
dores, como raça, a fim de discutir como se constroem e naturalizam certas
representações sobre as mulheres negras.
Rosana de Jesus dos Santos, no capítulo Gênero, raça e geração na nove-
la Cheias de Charme, problematiza os significados sobre as mulheres negras
idosas produzidos na telenovela Cheias de Charme, por meio da análise da
forma como foi construída a personagem Valdelícia, interpretada na pe-
lícula pela atriz Dhu Morais. A novela foi exibida entre 16 de abril e 28
de setembro do ano de 2012, no horário das dezenove horas, na emissora
Globo, composta por 143 capítulos. Santos possui mestrado e doutorado
em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisa vinculada aos estudos femi-
nistas, de gênero e sobre os feminismos negros. Desde 2015, é professora
no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais.
A seguir, em E eu não sou uma mulata? performances, sexualidades e fe-
minismos, Patrícia Giselia Batista faz um debate profícuo e inovador entre
os campos da história e das artes/performances. Busca analisar o que é a
arte da performance, entendendo-a como um movimento histórico dentro
do cenário atual das artes contemporâneas brasileiras. Especialmente, pro-
põe aprofundar as análises da representação social mitificada da mulata na
história do Brasil, demonstrando como os discursos constroem a sexualida-
de dos sujeitos do/no feminino negro e como a representação e o imaginá-
rio social brasileiro são constantemente atualizados - nas artes e na mídia.
Patrícia Giselia Batista é mestra em História pela Universidade Estadual
de Montes Claros e doutora em História pelo PPGHI/UFU. Fez douto-
rado sanduíche, como bolsista CAPES do Programa de Desenvolvimento
Acadêmico Abdias Nascimento, no Interdisciplinary Center for the Study of
Global Change (University of Minnesota/EUA). Suas pesquisas versam sobre
Estudos Culturais, raça, gênero, teorias decoloniais e feminismos negros.
Na sequência, os dois próximos textos trazem em comum o fato de se
utilizarem da imprensa como espaço privilegiado de análise. Além disso,
enfocam questões, espacialidades e sujeitos alternativos aos grandes centros
urbanos, de modo que colocam em cena vozes nem sempre contempladas
em uma historiografia mais tradicional.
Em Entre História e imprensa do interior: reflexões de pesquisa para uma
prática historiográfica, Caio Vinícius de Carvalho Ferreira discute as espe-
cificidades da imprensa do interior, compreendida como aquela produzida
por e para cidades de pequeno e médio porte e seus públicos. Suas observa-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 11


ções são fruto do confronto de aspectos teórico-metodológicos sobre fon-
tes impressas na produção do conhecimento histórico com reflexões pro-
postas por outras áreas do conhecimento, principalmente do jornalismo e
da comunicação que, apesar de recente, apresenta ideias em torno dos jor-
nais produzidos em contextos interioranos que podem auxiliar na produção
historiográfica. Ferreira é mestre e doutor em História pelo PPGHI/UFU,
com pesquisas sobre política, ditadura militar e imprensa. Atualmente, é
docente na rede pública de ensino do estado de São Paulo.
Já Raniele Duarte Oliveira, no capítulo Crônicas na imprensa do in-
terior de Minas Gerais: Manoel Felipe de Souza e suas representações sobre os
indígenas e as manifestações culturais dos negros na coluna “Pennadas Furti-
vas” (1899-1903), procurou apontar alguns caminhos a respeito da práti-
ca jornalística e o exercício literário no interior de Minas Gerais. Assim,
concentrou-se em discutir a produção de Manoel Felipe de Souza, um
“ilustre desconhecido” que, ao ter sua coluna publicada no jornal Lavoura e
Comércio, um dos mais importantes do segmento ruralista no município de
Uberaba-MG e na região, conseguiu espalhar o seu trabalho entre os leito-
res do periódico nas áreas que ele alcançava. A autora reflete sobre como o
cronista construía imagens sobre os indígenas e as manifestações sociocul-
turais dos negros, num processo de transformações marcadas pelo racismo
e discriminação de parte considerável da sociedade brasileira. Oliveira é
mestra e doutora em História pelo PPGHIS/UFU, com pesquisa sobre
campo e cidade, memória e imprensa no Brasil republicano. É professora
efetiva na Educação Básica, no Estado de Minas Gerais.
O oitavo e o nono textos da coletânea seguem na linha de conferir des-
taque a sujeitos e processos históricos que fogem às regiões metropolitanas.
Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira, valendo-se da metodologia da
história oral, em Pelas margens do incerto e as certezas do desenraizamento: a
desfiguração dos modos de vida dos afetados pela UHE Serra do Facão no Su-
deste Goiano, coloca em perspectiva as memórias de sujeitos sociais que, há
mais de uma década, tiveram suas vidas radicalmente transformadas com a
construção e a instalação da Usina Hidrelétrica Serra do Facão, no Sudeste
de Goiás. Anderson Oliveira é mestre e doutor em História pelo PPGHI/
UFU. Suas pesquisas versam sobre cultura popular, festas populares, me-
mórias e religiosidades. É docente na Educação Básica, com atuação na
Secretaria de Estado de Educação Básica.

12 - Urdiduras da história
Já Túlio Henrique Pereira, em Entre a curva, a história e o rio: toponí-
mia, memória e representação da cidade sob o olhar de Guigui, procurou perce-
ber a maneira como o pintor Onofre Ferreira dos Anjos, conhecido como
Guigui, escreveu uma história no/do espaço, expressa em seus retratos do
ambiente urbano-rural da praça central da cidade de Itumbiara, no inte-
rior do Estado de Goiás. O autor buscou, ainda, questionar o modo como
Guigui parece ter conseguido, ao copiar fotografias, estabelecer memórias
e recriar imagens, despertar um vínculo imaginativo e afetivo naqueles que
observam suas pinturas. Túlio Henrique Pereira é mestre em Memória:
linguagem e sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
e doutor em História pelo PPGHI/UFU. Suas pesquisas versam sobre te-
mas como identidades étnicas e afro-brasileiras; história da pele e do corpo
negro no Brasil; escravidão negra no Brasil Imperial, Pós-Colonialismo e
Primeira República; imagens plásticas e visuais; século XIX e XX; cultura;
memória e representação. Atualmente, é professor Adjunto do Departa-
mento de História da Universidade Regional do Cariri.
Os dois textos a seguir, que fecham a coletânea, jogam luz sobre sujei-
tos históricos invisibilizados por uma narrativa oficializante e centrada em
grandes personagens. Abordam dimensões ainda pouco exploradas pela
historiografia: indígenas no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, no caso
do primeiro texto; e escravizados do Norte de Minas Gerais, no caso do
segundo texto.
No capítulo A visão da pena dos memorialistas sobre os indígenas do an-
tigo Sertão da Farinha Podre dos séculos XVIII e XIX, Robert Mori tece con-
siderações sobre as obras de memorialistas que se debruçaram sobre a his-
tória do antigo Sertão da Farinha Podre (nome pelo qual eram conhecidas
as atuais mesorregiões do Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba,
na primeira metade do século XIX). Procura pensar o processo histórico
vivenciado pelos indígenas que habitavam a região compreendida entre os
Rios Grande e Paranaíba nos séculos XVIII e XIX, ou que para ela foram
trasladados de diferentes partes da América portuguesa com o objetivo de
guerrearem contra os Kayapó do sul. Robert Mori é mestre em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em História
pelo PPGHI/UFU, com pesquisas sobre História do Brasil Colônia, His-
tória Indígena, processos de contato interétnico, guerras indígenas, aldea-
mentos e etnogênese. Realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 13


-Graduação em Educação da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM) e é docente da Secretaria de Educação de Minas Gerais.
No último texto da coletânea, Terra de pretos: territórios negros no Ser-
tão do São Francisco, Johnisson Xavier Silva procura ler a contrapelo textos
dos viajantes e obras de memorialistas, para compreender como, em deter-
minados períodos históricos da formação das sociedades que compõem o
Sertão do São Francisco, do Norte de Minas Gerais, os quilombolas e co-
munidades negras foram agentes políticos da construção dessa sociedade,
como persistiram, viveram e permaneceram na região, apesar das violências
que engendraram as relações de poder no sertão. Johnisson Xavier Silva é
mestre e doutor em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisas voltadas
para as áreas de cultura popular, relações étnico-raciais e comunidades qui-
lombolas no Norte de Minas Gerais. É professor do Instituto Federal do
Norte de Minas Gerais, Campus Pirapora.
Como se vê, os textos oferecem um farto e instigante repertório, cuja
leitura certamente contribuirá para estimular o pensamento e aprimorar o
fazer historiográfico. Não podemos deixar de registrar a profunda inserção
dos/as autores/as em instituições de Educação Básica, o que certamente
qualifica os processos de ensino e aprendizagem e indicia a relevância social
do PPGHI/UFU.

Artur Nogueira Santos e Costa


Jeremias Brasileiro
Tadeu Pereira dos Santos
organizadores

14 - Urdiduras da história
José Fortuna e as guarânias brasileiras:
a canção Índia e os fluxos musicais Brasil-
Paraguai

Jaqueline Souza Gutemberg

A polissemia da obra de José Fortuna – um dos mais renomados com-


positores da música sertaneja1 – é uma prática do homem de seu tempo, que
de alguma forma tem a vocação em dissipar fronteiras, para usar um termo
de José Miguel Wisnik sobre a singularidade da cultura brasileira2. Como
um artista que almejava o reconhecimento entre os pares e pelo público
ouvinte, não se limitou ao padrão de produção musical de sua época. Por
isso mesmo sua obra se consolida polissêmica, em diálogo com diferentes
ritmos e linguagens. Versátil, esse tipo de atuação artística opera com o
“caráter fusional e mesclado da cultura brasileira, ligado à sua propensão do
entrecruzamento, o que não deixa de ser um traço ‘antropofágico’, ou seja,
como reflexão sobre a natureza múltipla e transnacional da cultura”3. Dito
de outra forma, José Fortuna combinou linguagens artísticas diferentes,

1. José Fortuna (1929-1983) figura até os dias atuais como um dos mais renomados com-
positores do que ficou conhecido como música sertaneja raiz. Foi responsável pela intro-
dução das adaptações das guarânias no Brasil. Seu repertorio é composto por mais de 2000
canções e de mais de 40 peças teatrais. Foi poeta, dramaturgo e radialista entre os anos de
1940 e 1980. Conferir em: GUTEMBERG, Jaqueline Souza. Entre Modas e Guarânias:
a produção musical de José Fortuna e seu tempo (1950-1980). 2013. Dissertação. (Mes-
trado em História) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia. Uberlândia, 2013.
2. WISNIK, José Miguel. Entre o erudito e o popular. Revista de História, 157, p.
55-72, 2. sem. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/
view/19062/21125. Acesso em: set. 2022.
3. Ibidem, p. 56.
mesclando textos da literatura clássica nacional, da cultura popular nordes-
tina, como o cordel, e da influência da obra de artistas de renome nacional,
como Catulo da Paixão Cearense, do texto de Shakespeare Romeu e Julieta,
como impulso gerador de sua obra, levada aos circos-teatros, aos pavilhões,
encenada e cantada para o entretenimento de um público caracteristica-
mente representado pelas massas trabalhadoras, habitantes dos subúrbios.
As guarânias resultaram dessa manifestação versátil da obra de José
Fortuna que vivia o momento das hibridizações na música sertaneja, do
contato com outras sonoridades e linguagens. Introduzidas no Brasil a par-
tir dos anos de 1930 por influentes compositores da música sertaneja, como
Raul Torres, Nhô Pai e Florêncio, as guarânias propiciaram novos contor-
nos à musicalidade e aos temas até então usuais na música rural.
Neste capítulo, analisaremos a introdução das guarânias no contexto
de produção da música sertaneja dos anos de 1950 a partir da obra do
compositor José Fortuna. Para isso, dividimos o texto em duas partes: na
primeira, fazemos um breve histórico das guarânias no Brasil e a relação do
gênero paraguaio com a música sertaneja. Na segunda, uma análise desse
contexto de produção a partir da guarânia Índia (versão de José Fortuna),
uma das mais populares guarânias brasileiras.

1. As guarânias brasileiras e novos hibridismos na música rural

Ainda que as guarânias tenham conquistado grande popularidade no


Brasil através da música sertaneja, a sua introdução foi polêmica. Para os
mais conservadores, as adaptações consolidaram o que ficou conhecido
como invasão estrangeira da música rural ou estrangeirismo. O Brasil vivia
o contexto de incisiva valorização da cultura nacional a partir dos anos
de 1950 e as artes tinham um papel fundamental, e não diferente disso,
a música sertaneja rural (a chamada música caipira), correspondia a um
projeto de valorização das artes locais, das tradições rurais. É sobre esse
prisma que as primeiras produções fonográficas da música caipira apare-
cem com o folclorista Cornélio Pires, como um registro de algo que quer
se manter vivo, autóctone.4

4. Existe farta documentação a esse respeito, como é o caso das Revistas produzidas nesse
momento em defesa da música caipira, a exemplo da Revista Sertaneja da Editora Prelúdio,
publicada entre os anos de 1950 e 1970. Observa-se em suas páginas, através das colunas
escritas por jornalistas, radialistas e produtores, como Tinoco, o tom inconformado de al-

16 - Urdiduras da história
Na contramão desse projeto, está a inserção das guarânias no Brasil no
contexto de produção da música sertaneja no período. É bom lembrar que
um aspecto da guarânia, segundo Evandro Higa, além de seu sentimento
de melancolia associado a uma rítmica lenta e tranquila é o seu “caráter
urbano evidenciado no maior grau de complexidade harmônica e frequen-
tes mudanças de modo se comparada com a polca paraguaia de caráter
mais rural”5. No interior da cena artística da música sertaneja se observava
o contexto de mudanças de um Brasil que se via cada vez mais industrial
e urbano, consolidado no bojo dos projetos nacional-desenvolvimentistas
para o país6. Nesse sentido, o aspecto urbano da guarânia vem compor
o cenário de mudanças da musicalidade rural para aqueles que viam nas
transformações desse gênero musical a possibilidade de sua expansão no
mercado discográfico brasileiro, como foi o caso de José Fortuna. É esse
aspecto marcadamente urbano da guarânia que o interessa, permitindo a
produção de uma obra versátil direcionada a públicos mais variados.
Observamos que não há uma ação despretensiosa por parte do au-
tor com a adesão à musicalidade latina. Mesmo porque essa influência
estrangeira já ganhava adeptos nos anos de 1950, quando se percebe a
necessidade de modificar o repertório sertanejo e, portanto, forjar nova
imagem do caipira representada na canção e na estilização de seus artis-
tas. Dada à polissemia de seus autores, a nova vertente da música serta-
neja se permitia dialogar com variadas linguagens. E essa produção não
contava mais com a estética engessada e estigmatizada do caipira7. Ela

guns artistas, compositores, produtores e gravadoras com a inserção de novos elementos na


tradicional música sertaneja. Entre os elementos mais destacados por eles estão os novos
instrumentos como a guitarra e o piston e também as novas sonoridades e ritmos, como as
polcas e as guarânias. Nesse sentido, um movimento surge no interior desse gênero musical,
conhecido como Tupiana. Criado nos anos de 1960 por Nonô Basílio e Mario Zan, surgiu
como forma de contestar a transformação da música sertaneja rural, através da produção de
discos e programas de rádio e TV que evidenciassem a música caipira e seus artistas.
5. HIGA, Evandro Rodrigues. Para Fazer Chorar as Pedras: o gênero musical guarânia no
Brasil – décadas de 1940-50. 2013. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-
-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, São Paulo,
2013. p. 74.
6. RODRIGUES, Marly. A Década de 50: populismo e metas desenvolvimentistas no Bra-
sil. São Paulo: Editora Ática, 1992.
7. HONÓRIO FILHO, Wolney. O Sertão nos Embalos da Música Rural (1930-1950).
1992. Dissertação. (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo,1992.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 17


era múltipla e dinâmica na produção de Zé Fortuna e Pitangueira. Os
diálogos com novas áreas permitiam romper fronteiras entre o tradicional
e o moderno, entre campo e cidade8.
Nesse momento, as guarânias no Brasil não representavam um res-
gate da musicalidade rural, mas, antes, dissipavam fronteiras, redefinindo
a visão que se construíra do próprio artista da música sertaneja, o que re-
força inclusive a distinção entre sertaneja urbana e caipira. A cisão que se
abre entre essas duas vertentes da sonoridade rural é realizada não apenas
por aqueles que promovem uma revisão da estética e sonoridade caipi-
ra, mas também entre aqueles que as defendem, como no caso de Raul
Torres (lançando a guarânia Colcha de Retalhos nas vozes de Cascatinha
e Inhana, em 1958) e da dupla Tonico e Tinoco (com o rasqueado Amor
Desprezado, em 1958 e a guarânia Adeus Aurora, gravada em 1964).
Entretanto, essa invasão estrangeira dos rasqueados, polcas paraguaias
e, sobretudo, das guarânias no cenário da música sertaneja, nasceu da ne-
cessidade para José Fortuna de se sintonizar com o que era considerado
música moderna, voltando-se para a formação de um repertório que dizia
sobre os novos gostos e costumes do Brasil inovador9, projetados pela mú-
sica, moda, arquitetura. Dessa maneira, entram na cena moderna da músi-
ca sertaneja como um estilo musical diferenciado do que se tinha naquele
momento, ganhando espaço junto ao público e aos meios de comunica-
ção de massa, pela sua estrutura melódica e pelos temas por elas tratados.
As guarânias em português de José Fortuna sintonizam esse autor com a
cena moderna e lhe conferem um perfil artístico a ser mantido no cenário
artístico da música sertaneja. Mais que um poeta da canção caipira, José
Fortuna se torna um dos mais populares versionistas10, o que lhe permite

8. GUTEMBERG, Jaqueline Souza. Entre Modas e Guarânias: a produção musical de José


Fortuna e seu tempo (1950-1980). 2013. Dissertação. (Mestrado em História) - Programa
de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2013.
9. ZAN, Roberto. (Des)territorialização e novos hibridismos na música sertaneja. Anais do
V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Po-
pular. Disponível em: http:///www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html. Acesso em: set./2022.
10. A ideia de versão é discutida neste trabalho como uma forma de verter a letra de uma
canção para outra língua. Porém, é preciso completar essa ideia para compreender que não
se trata, muitas vezes, de uma tradução. Nesse sentido, consideramos que a letra da versão
pode não apresentar necessariamente a mesma temática da música original. Ela pode variar
e em muitos casos ser completamente diferente. Porém, o que permanece (e de forma tam-
bém alterada) é a sua estrutura melódica. Por isso, consideramos que a versão não se furta à
criatividade, pois é uma forma de adaptação que segue determinadas regras (rítmica, métrica,

18 - Urdiduras da história
redimensionar a sua trajetória como compositor fora do circuito rural-cai-
pira. É bom ressaltar que a guinada para a música paraguaia e mexicana no
repertório de José Fortuna não nasce de uma prática espontânea. A região
mato-grossense já se fazia notar pela profusão de um repertório e de uma
prática musical reveladora da produção artística de importantes letristas,
como Zacarias Mourão na década de 1950 e, mais tarde, da atuação de
músicos do quilate de Almir Sater e da violeira Helena Meirelles. Nesse
sentido, o aspecto cultural fronteiriço, marcante na música sertaneja dos
anos de 1950, tinha raízes profundas fincadas na musicalidade de fronteira
entre Brasil e Paraguai, a partir do Mato Grosso, para o caso das polcas
paraguaias e guarânias.11
Evandro Rodrigues Higa faz um balanço dessa prática musical a par-
tir dos primeiros registros fonográficos dos gêneros musicais paraguaios
lançados no Brasil. Sua pesquisa mostra a crescente popularidade que esses
gêneros tiveram junto ao público brasileiro desde a primeira gravação da
guarânia paraguaia Al Paraguay, em 1935, no disco de Algustin Cárceres
pela Columbia. De um lado apresentava a guarânia Al Paraguay - de Al-
gustin Cáceres e Santiago Parissi - e do outro lado a polca paraguaia La
Canción del Arriero, também de Algustin Cárceres, com parceria de D.G.
Serrato e Torres.12
Com a intensa produtividade sertaneja desde as turnês de Cornélio
Pires e dos hilários Jararaca e Ratinho, na Argentina, com Os Turunas Per-
nambucanos, em 1925, da peregrinação dos circos-teatros, visualiza-se uma
grande circulação e intercâmbio de obras musicais entre os países sul-ame-
ricanos, que coloca a guarânia como gênero de grande aceitação popular
no Brasil, e atingindo o ápice de vendagem em disco com Índia, versão de
José Fortuna em 195113. Nota-se que esses artistas atravessaram a fronteira
e conviviam com outras fontes musicais que permitiram misturas.
A primeira gravação de uma guarânia brasileira foi lançada em 1941,
etc) da estrutura original, mas que sofre rearranjos para se adequar aos padrões da música
popular brasileira. Como exemplo dessa forma de construção das versões de José Fortuna está
a canção Meu Primeiro Amor, que tem como estrutura fixa a melodia, porém a letra, apesar de
mesmo tema (o amor), destoa da canção que lhe deu origem, intitulada Lejanía, que, tradu-
zida para o português significa distância geográfica.
11. HIGA, Op. cit.
12. Ibidem, p. 111.
13. NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34,
2000. p.123.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 19


no lado A do disco de Nhô Pai e Nhá Zefa em 78 rotações, com o título
de Morena Murtinhense, de Nhô Pai. A letra versa sobre a “triste despedida
de um casal apaixonado na cidade de Porto Murtinho, importante nú-
cleo de importação e exportação às margens do Rio Paraguai na primeira
metade do século XX”14. As guarânias em português gravadas no Brasil
posteriormente seguiram a mesma estrutura textual da Morena Murtinhen-
se, influenciando sobremaneira as criações e versões sobre a base musical,
inclusive de tangos, boleros e polcas: despedidas e reencontros dos casais
apaixonados tendo como cenário, muitas vezes, a fronteira Brasil-Paraguai.

2. José Fortuna e a aclimatação das guarânias


na versão paraguaia de Índia

Com a popularidade de suas versões de guarânias paraguaias, José For-


tuna deu nova roupagem ao seu repertório antes característico por suas
cururus, modas caipiras com temáticas sobre o cotidiano rural. Apesar des-
se repertório ter colocado seu nome entre os mais reconhecidos na cena ar-
tística entre os anos de 1940 e 1950, foram as versões paraguaias que con-
sagraram o compositor como um poeta da terra até hoje muito afamado.
A partir dos anos de 1950, o repertório “fronteiriço” foge de padrões
usuais, utilizando novos recursos sonoros, como esse jogo de modulações
maiores e menores, as longas introduções que embalam efeitos de drama-
ticidade instrumental a partir das entradas de harpas e de dedilhados ou
notas executadas em duração curta (staccato) no acordeom, do sincopado
de violão ou arpejos destacados, fazendo suposta homenagem a uma refe-
rência simbólica da cultura musical dos países vizinhos.
Dentro dessa estrutura, encontra-se a produção das versões de José
Fortuna, que vão dar o tom e servir de referência para as guarânias brasilei-
ras produzidas posteriormente na música sertaneja. A fim de analisarmos
as características de sua produção e compreendermos o processo de produ-
ção da música sertaneja a partir da década 1950, elegemos a versão Índia,
gravada em 1951 nas vozes de Cascatinha e Inhana.
A produção das versões se referencia nas populares obras artísticas de
músicos e compositores como Asunción Flores (1908-1972), compositor
e instrumentista paraguaio, Manuel Ortiz Gimenez (1984-1933), poeta

14. Ibidem, p. 113.

20 - Urdiduras da história
nascido em Villarrica15 e de José Alfredo Jimenéz (1926-1973), cantor e
compositor mexicano. Tal referência para José Fortuna parte da populari-
dade e do valor simbólico que o repertório desses compositores transmite.
Dessa forma, vincula à sua produção gêneros e estilos estrangeiros de gran-
de aceitabilidade no Paraguai e no México.
O repertorio desses artistas ocupa um lugar importante na memória
do cancioneiro popular de tais países, justamente porque expressa estrei-
tos laços com a questão da identidade nacional, sobretudo com a guarâ-
nia, no Paraguai, e a canção rancheira, no México. No Brasil, os estilos e
gêneros tiveram grande aceitação junto ao público consumidor da música
sertaneja, todavia, não ocuparam o mesmo espaço de luta de represen-
tações pela questão nacional de seus países de origem. As guarânias e
rasqueados, bem como os boleros e canções rancheiras, entraram como
gêneros e estilos que se mesclaram à nova realidade musical sertaneja, a
qual expressa novo comportamento de público consumidor a partir dos
anos de 1960, com “uma linguagem mais afogueada para falar de amor,
trocando os beijos da tímida caboclinha debaixo de pés de ipê pelo amor
de moças fogosas em camas macias de motel”.16
Esse é o lugar que as versões e adaptações de José Fortuna ocupam
no cenário da música sertaneja e no perfil de seu público que não mais
representa o caipira, estilizado em obras literárias como Velha Praga e
Urupês, de 1914 e cantado por Mário de Andrade, Viola Quebrada, de
192917. Dessa perspectiva estilizada, talvez seja possível considerar que
esse homem do campo não existira, sendo um constructo do imaginário
social brasileiro para a representação do habitante dos sertões esquecidos
que migra ou é forçado a migrar para as cidades em busca de trabalho18.
No século XX, diz Nepomuceno, “o homem do campo transmutou-se,
camaleônico, envolvido pela cultura do forasteiro, seduzido pelas novida-
des da civilização (...)”.19
As adaptações construídas por José Fortuna se deslocam das temáticas
caipiras para o tema romântico, o que na verdade já vinha se delineando
15. Conferir: http://www.portalguarani.com. Acesso em: set./2022.
16. NEPOMUCENO, Op. cit., p.169
17. Ibidem, p.27.
18. YATSUDA, Enid. O caipira e os outros. In: BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira:
temas e situações. São Paulo: Ed. Ática, 1992.
19. NEPOMUCENO, Op. cit., p.27.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 21


nos repertórios da época. Dessa maneira, o jogo com a temática indígena
das guarânias originais não é desprezado, mas sim adaptado ao sabor brasi-
leiro. Inspirado nas composições originais, José Fortuna cria um cenário no
qual também se observa a luta de representações em suas versões: combates
sangrentos entre o indígena e o homem branco, o amor impossível entre a
Fronteiriça e o brasileiro, ou seja, a fronteira cultural que os separam.
Tangencialmente, essas versões e adaptações tocam na problemáti-
ca da identidade, que tornaram as composições de José Alfredo Jimenéz,
Manuel O. Guerrero e Asunción Flores parte integrante do patrimônio
cultural de seus países de origem20. Nesse caso, as sonoridades paraguaias
e mexicanas interferem e modificam a estrutura de composição de José
Fortuna, que se volta para temas caros à noção de identidade nacional que
as canções populares do Paraguai veiculam, como em Índia (guarânia ori-
ginal de Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero), em cuja obra Flores
expõe uma luta político-ideológica em torno da defesa da cultura guarani.
As guarânias assim se tornaram uma representação simbólica da cultura
popular do Paraguai:

[...] Com seu ritmo – derivado da polca paraguaia – marcado pela ambi-
guidade do compasso 6/8 associado a uma base ternária, a guarânia repre-
senta para o Paraguai um sentido identitário que foi sendo construído à
medida que o nome de José Asunción Flores (1908 – 1972) – a quem é
atribuída sua criação – ganhava destaque na luta ideológica travada contra
o Estado totalitário, convertendo-se em um dos mais vigorosos símbolos
do que se costuma denominar “alma guarani”.21

Todavia, as atenções se voltaram para os acontecimentos do momento,


do homem urbano. Apesar da vinculação com as tradições populares, por
meio de um estilo musical “lento e melancólico e adequado a certo estado
de ânimo do povo”22 em determinado período - a fonte de inspiração da
guarânia e uma bandeira levantada por Asunción Flores e o poeta Manuel
Ortiz Guerrero, criadores do gênero -, as guarânias de José Fortuna privi-
legiaram o tema romântico, entrecruzando-o à base identitária de Flores.
Para Romildo Sant’Anna, essa é uma forma de transposição da guarânia
20. HIGA, Op. cit.
21. Ibidem, p. 18.
22. SZARÁN, Luiz. Diccionario de la Música Paraguaya. Edición: Jesuitenmission Nurn-
berg. Alemania, 2007. Cf.: http://www.portalguarani.com. Acesso em: set../2022.

22 - Urdiduras da história
por José Fortuna no Brasil, feita da sua percepção e entendimento do que a
melodia propunha, melancolia, tristeza, fornece o ambiente adequado para
a trama da dor da separação de um casal apaixonado:

[...] Percebendo a languidez brejeira das guarânias, com letras inacessíveis


que misturam o castelhano e o guarani, reescreveu algumas delas, cap-
tando o fervor emocional das melodias. E as recolocou em brasileiro. Foi
assim com “ Índia”, “Anahi”, “Vai com Deus” e “ Solidão”, nas vozes de
Cascatinha e Inhana. “Lejanía”, canção erudita de Herminio Giménez,
veio a ser “ Meu Primeiro Amor”. Aproveita do original o sentimento de
“distância”, que equivale à separação pela morte.23

Com a sonoridade inspirada nas composições originais, arpejos em


tons menores para evidenciar melancolia e melodias trilhadas por instru-
mentos atípicos para a musicalidade do gênero sertanejo, como a harpa, as
guarânias de José Fortuna mudam a paisagem a ser representada. Corres-
pondem à história e lendas de povos indígenas, como em Anahi, de amores
inesquecíveis, proibidos e desafortunados entre o homem branco e a exóti-
ca mulher indígena que ali é representada.
Na mesma “formula de criação” encontra-se a mais popular das gua-
rânias brasileiras, a versão Índia. De temática amorosa, José Fortuna privi-
legia mais uma vez o amor entre a mulher “selvagem” e o homem branco,
tema de tantas outras guarânias. É com Índia que José Fortuna ganha po-
pularidade e reconhecimento, proposta ousada para o disco de Cascatinha
e Inhana. Versão da música original composta em 1925 por Asunción Flo-
res e Manuel O. Guerrero, Índia se tornou a guarânia de maior projeção
discográfica feita por José Fortuna. Rendeu diversas regravações feitas por
diferentes artistas, como Maria Bethânia, Gal Costa, Roberto Carlos, Nara
Leão, entre outros. A versão contempla não só a temática do amor impos-
sível, como também fomenta a tática de Fortuna para se inserir no meio
sertanejo como um compositor voltado às temáticas variadas, demonstran-
do a sua habilidade como compositor da vertente moderna da música ser-
taneja, uma vez que neste momento esta música conquistava espaços nos
meios de comunicação de massa, no rádio e no disco, contemplando outros
públicos. Assim, Índia é fruto dessa necessidade de modificar o repertório

23. SANT’ANNA, Romildo. Zé Fortuna e guarânias em brasileiro. Disponível em: http://


triplov.com/romildo/2006/Ze-Fortuna.htm. Acesso em: set./2022.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 23


para um público urbano, mas, sobretudo, de um intensificado estudo por
parte de José Fortuna dos gêneros e estilos musicais que circulavam nos
países vizinhos.
Com Índia José Fortuna inovou no cenário artístico da música serta-
neja inspirado em grandes artistas paraguaios compositores de guarânias.
Índia se tornou expressão artística aceita como música popular de inspira-
ção folclórica do Paraguai e declarada canção nacional deste país por decre-
to do poder executivo de 194424. A referência musical à qual José Fortuna
se apega constitui-se como importante via de expressão popular, que adere
à memória do cancioneiro popular do Paraguai. José Fortuna parece apos-
tar na mesma popularidade que a guarânia Índia adquiriu no Paraguai. O
caminho por ele traçado não equivale ao que antes foi feito em relação à
guarânia no Brasil. Sobre a versão, diz Pitangueira: “O Zé era sagaz, inte-
ligente e criativo, acho que viu o sucesso”25. A frase soa como uma previsão
de Zé Fortuna. No entanto, em seu relato abaixo, indica que o compositor
realizava constante estudo em relação à popularidade da guarânia, dos mais
renomados compositores, das mais famosas canções:

[...] Ele conhecia muito de música de todo o tipo. Ele escutava os pro-
gramas que pegava de fora. Sintonizava os programas de fora e ficava
ouvindo. Daí ele ia no programador da Rádio Record, conhecido dele, e
ficava lá, folheando os discos, ouvindo aquilo tudo lá. O mano era muito
antenado. Então, quando fez a Índia, já tinha outra engatilhada, porque já
conhecia a guarânia. Mas não foi só isso, depois teve Lembrança e outras
de muito sucesso, tudo dele, né? A gente viajava muito, o país todo com
os dramas e tinha isso, o Zé era conhecido e conhecia muita gente, artistas
e ia trocando. Conhecia a música de todo lugar. Não foi difícil fazer as
guarânias com a mente que ele tinha também. Mas as guarânias é disso
aí, que ele escutava no rádio e gente que chegava no circo cantando coisas
diferentes...e gostava e queria saber mais. Não foi difícil para ele porque
ele gostava do que fazia, gostava de música, de verdade.26 [grifos nossos]

No relato acima, percebemos a inclinação de José Fortuna para as sim-

24. SZARÁN, Luiz. Diccionario de la música Paraguaya. Edición: Jesuitenmission Nurn-


berg. Alemania, 2007. Cf.: http://www.portalguarani.com. Acesso em: set../2022.
25. FORTUNA, Euclides. Vida e arte de Zé Fortuna e Pitangueira. São Paulo: Editora
Fortuna, 2009. p. 122.
26. FORTUNA, Euclides (o Pitangueira). Editora Fortuna Music/São Paulo, 2008.

24 - Urdiduras da história
bioses com as guarânias. Pretensiosamente, vasculha o repertório popular
de outras localidades a fim de extrair daí um sucesso sem precedentes. Pi-
tangueira descreve a euforia do momento em que Zé Fortuna apresenta a
versão de Índia para Cascatinha e Inhana:

O Cascatinha ouviu a versão e ficou boquiaberto. “Ficarei famoso e rico


com esta música”. Assim sendo, Cascatinha e Inhana começaram a can-
tá-la na Rádio Record, e foi realmente o que se esperava, talvez mais. As
cartas chegavam aos montes, pedindo que eles cantassem Índia. Foi um
Deus nos acuda! Coisa nunca vista. A música já era sucesso, nem tendo
sido gravada ainda. 27 [grifo nosso]

O sucesso esperado de Índia por parte de Zé Fortuna e de seus amigos


cantores certamente tem a ver com o que a guarânia representava no Para-
guai. As cartas com os pedidos para que Cascatinha e Inhana cantassem a
versão, como relata Pitangueira, consagram a guarânia de teor romântico
no Brasil e imita a boa receptividade junto ao público, como no Paraguai.
Sobre o sucesso e aceitação junto ao público ouvinte, Pitangueira relembra:
“(...) foi o que realmente se esperava, talvez mais”. O cantor refere-se mais
à assinatura de José Fortuna na versão do que o efeito que possivelmente
tenha transmitido ao ouvinte, por ser uma “coisa nunca vista”. Ou seja,
revela uma prática do versionista, um estudo sobre a musicalidade de paí-
ses vizinhos, como o Paraguai e Argentina, buscando freneticamente as
referências musicais, que se tornaram grandes sucessos em tais países para
compor seu repertório novo.28
Astutamente, Zé Fortuna endereçava suas versões a artistas renoma-
dos, tanto é que Índia e Meu Primeiro Amor receberiam interpretação de
Cascatinha e Inhana, que eram intérpretes consagrados cantando boleros
e tangos no cenário artístico da música sertaneja na década de 1950. A
escolha de Zé Fortuna não foi aleatória. Sabia que o estilo do gênero, o
andamento lento em compasso ternário cairia bem ao repertório dos então

27. FORTUNA, Op. cit., 2009, p. 124.


28. Allan Oliveira salienta que essa importação de ritmos estrangeiros tem a ver com a polí-
tica da boa vizinhança realizada pelos Estados Unidos com uma produção massiva em torno
da ambientação latina, seja através da música ou dos personagens. Sobre essa discussão ver:
OLIVEIRA, Allan. Miguelin Foi pra Cidade ser Cantor: uma antropologia da música ser-
taneja. 2009. Tese. (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-graduação em Antro-
pologia Social da Universidade de Santa Catarina. Florianópolis, 2009. p.300.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 25


conhecidos como “sabiás do sertão”. Pitangueira continua:

[...] ele era vendedor na época, vendia coisas, ele tava com um mostruário
lá na Pompéia, parou um caminhão na frente. Em cima tinha um que
assoviava (assovia a melodia de Índia). O Zé falou: “ é a música que o
Pitangueira falou!” . Ele saiu atrás do caminhão, e foi acabando de escre-
ver, “vamos ver”. Foi fazendo a letra. Mas era uma modificação da letra,
né? Que dizia assim: “índia seus cabelos cheios de piolho...” (cantou). Ele
pegou o comprimento da música, fez uma bestificação da letra pra depois
fazer ela. Foi assim. Aquele negão não sabe o que aconteceu, que muita
coisa mudou depois daquela música. Cascatinha e Inhana ficou bem. Eles
ficou bem, né? Nós ficamos bem (...) O Zé pegou um pedaço que eu ensi-
nara pra ele, mais o pedaço que ele ouviu assoviado, aí escreveu ele inteira.
Aí bom, continua. Aí, precisava gravar. Então levou pro Cascatinha e
Inhana gravar.29 [grifo nosso]

Ainda que o registro da versão seja indiscutivelmente uma assinatura


de José Fortuna, pois é o que lhe resguarda junto aos órgãos de proteção
ao compositor, os bastidores em torno da escrita dessa versão e de sua au-
toria nos permitem analisar as astúcias de José Fortuna para inseri-la – e
todo o seu repertório de versões - como uma nova modalidade de guarâ-
nias no Brasil, cujo sucesso ainda não tinha alcançado toda a rede que liga
produção, divulgação e recepção da indústria fonográfica brasileira. Até a
gravação de Índia, a guarânia, ainda que popular, não havia se consolidado
no meio sertanejo como uma influência musical capaz de redimensionar a
produção dos repertórios e dos discos. Na década de 1950, dada a alta ven-
dagem do álbum de Cascatinha e Inhana, premiados com troféu Roquete
Pinto pela vendagem espantosa de 500 mil cópias em 1951, a guarânia de
José Fortuna consegue modificar o entendimento de mercado com as ver-
sões e adaptações de músicas estrangeiras. A estimativa era a de que uma
parcela muito pequena tinha o compacto de Cascatinha e Inhana. Segundo
Cascatinha, a guarânia só pôde entrar graças à astúcia de José Fortuna em
adaptar mais uma guarânia, Meu Primeiro Amor, para o lado B de seu disco
em tempo recorde, música, aliás, de grande sucesso do compositor mexi-
cano Hermínio Jimenez. Sobre a dificuldade de aceitação da guarânia por
parte da gravadora e da insistência popular para obter o registro em álbum,
forçando a gravação do disco de guarânias, Cascatinha salienta:
29. Ibidem.

26 - Urdiduras da história
[...] o nosso primeiro disco foi La Paloma e Fronteiriça, lançado na praça
foi bem aceito graças a Deus, vendeu várias cópias e ficamos feliz com isso
porque no mesmo instante que gravamos La Paloma e Fronteiriça, nós
já tínhamos em mãos a letra de Índia, que é de José Fortuna. Então eu
peguei, aproveitando a oportunidade e a boa vontade do diretor mostrei a
letra de Índia para ele. E disse: essa você não vai gravar porque existe uma
versão que era do Capitão Furtado e gravada por Arnaldo Pescuma. Só
pode gravar uma versão, duas não pode. Mas, como estávamos na rádio e
não tínhamos um repertório próprio, formado, só com essas duas músicas
gravadas, Fronteiriça e La Paloma e.... Me Leva e assim por diante, de vez
em quando Índia, vira e mexe Índia, todo dia Índia, Índia, Índia. Agora as
pessoas que acostumaram a comprar La Paloma e Fronteiriça, chegavam
nas casas e pediam: eu quero com Cascatinha e Inhana, Índia. E as casas
pedindo pras fábricas. Até que um dia, depois de tempo, o diretor da
Continental se aborreceu. Me mandou um recado que fosse urgente no
escritório. Cheguei lá ele disse: essa tal de Índia que tão falando, o que
que é? Eu disse: faz um ano, que naquela época o senhor se lembra que a
gente gravava um 78 por ano, disse: faz um ano que eu lhe mostrei e o se-
nhor falou que não podia gravar. Ele disse: e esse cara que fez essa versão
é capaz de fazer outra versão? Porque a Fermata não permite uma música
brasileira e outra versão. É capaz de fazer outra versão? Eu digo: é. Era
mais ou menos umas três horas da tarde. Ele disse: então procure e man-
de fazer uma letra. Então eu corri na Record e dei sorte e encontrei o Zé
Fortuna lá. Contei o caso pra ele e ele disse: é pra já. Então ele veio aqui
na Avenida Ipiranga, na Fermata, na Editora Fermata e desfolhando as
músicas paraguaias encontrou Meu Primeiro Amor. Fez a letra quinta-fei-
ra, me entregou quinta-feira à noite e quando foi sexta-feira nós gravamos
Índia e Meu Primeiro Amor.30 [grifos nossos]

A narrativa de “criação” da versão de Índia31 e da incursão da guarânia


de forma massiva pelo meio fonográfico brasileiro resultou em uma nova
postura diante do mercado e do público por parte de José Fortuna. Mas o
que se percebe é antes uma forma de jogar com o mercado por parte do
versionista, a fim de consolidar a guarânia no Brasil por meio de sua versão.
Antes mesmo da gravação, Índia já era um sucesso, pois foi apresentada no

30. Entrevista ao programa MPB Especial, TV Cultura, 1973. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=PZYX1UBmUmo. Acesso em: set../2022.
31. Neste trecho Cascatinha relata a existência de outra versão da Índia paraguaia. Apesar
dessa afirmação, não encontramos nenhum registro da versão citada.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 27


microfone da Rádio Record no programa de Cascatinha e Inhana e tam-
bém por Zé Fortuna em seu programa na mesma rádio com Coqueirinho
e Piracicaba32. Conseguindo agradar ao público, forçou a entrada em dis-
co da guarânia Índia e, imediatamente, atendendo às regras da gravadora,
faz a versão de Lejania, obra erudita de Hermínio Jimenez. Essa tática de
escrever para um determinado intérprete, a partir de um repertório previa-
mente consultado e estudado, revela o movimento de escrita das versões
por José Fortuna:

[...] Estava sempre vasculhando os discos. Ficava procurando um sucesso


estrangeiro para escrever em português. Ele escrevia em cima de uma me-
lodia, de um bolero ou tango. Solidão foi assim, Fronteiriça também. Mas
o sucesso mesmo só com Índia e Meu Primeiro Amor. Eram músicas que
ele conhecia, porque era curioso, esperto. Escrevia numa rapidez incrível
as suas versões. Ele ouvia muito as músicas de fora, então foi disso aí que
ele trouxe as músicas que ficaram famosas.33 [grifos nossos]

José Fortuna, ao estabelecer os caminhos que o conduziria ao sucesso


com as guarânias no Brasil, o faz em decorrência da ausência do lugar
próprio para si mesmo. Como uma ação calculada por essa ausência e pela
“brecha” que se abre no sistema de produção da música, como o estra-
nhamento e cuidado para com a popularização dos ritmos estrangeiros,
age de forma deliberada na espreita de conquistar um lugar próprio, um
campo de ação. Por isso, o não-lugar torna a necessidade de uma ação
urgente. Apropriadamente, é necessário recorrer a Certeau em sua análise
sobre a tática como uma arte do mais fraco determinada pela ausência de
poder agindo neste não-lugar que, segundo o referido:

[...] lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares
do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante.
Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão
abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpre-
sas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.34

32. FORTUNA, Op. cit.,2009.


33. VICENTE, Antenor (o Zé do Fole, integrante da Cia Os Maracanãs e acordeonista da
dupla Zé Fortuna e Pitangueira). Freguesia do Ó/São Paulo, 2015.
34. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2008. p.100.

28 - Urdiduras da história
As táticas operam no interior do instante e revelam-se audaciosas em
sua intervenção no momento oportuno35. A propósito disto, a intervenção
de José Fortuna insinua astutamente uma reorganização do padrão de mú-
sica sertaneja que se consumia na época da versão de Índia, estabelecendo
um caminho que lhe assegura um lugar próprio: vasculha o repertório de
artistas populares, mesclando-o à realidade musical e textual da música
sertaneja e, com efeito, escolhe os intérpretes propensos a uma maior acei-
tabilidade aos gêneros e ritmos não convencionais ao padrão de produção
e consumo da música sertaneja até aquele momento. As táticas, mais uma
vez, insinuam-se como uma maneira de pensar o momento e agir apro-
priando-se dos recursos musicais estrangeiros a fim de promover a popula-
rização das guarânias no mercado da música sertaneja.
Para Antenor Vicente, integrante da Trupe “Os Maracanãs” monta-
da por José Fortuna, as versões das guarânias paraguaias tiveram grande
popularidade devido à sua similaridade com a emoção das guarânias ori-
ginais. A interferência de Zé Fortuna foi decisiva na grande repercussão
do estilo no Brasil por meio da versão de Índia e dos demais gravados
desde a década de 1940:

[...] Ele era inteligente. Muito inteligente e curioso. A guarânia não foi
criação dele, mas foi com ele que teve o grande sucesso, que explodiu.
Foi a Índia, dele, né? Já tinha guarânia de muitos artistas. Mas as guarâ-
nias do Zé Fortuna foi diferente, é mais emotiva assim. Não tinha nada
igual não, porque ele trouxe a música igual a do Paraguai. Com a mesma
emoção, sofrimento, tristeza das guarânias. Veja os arranjos. Solidão,
por exemplo. Arranjo melancólico. Mas ele tinha inspiração naquela
música, daquele jeito mesmo. Os compositores ele conhecia de ouvir,
tudo que tinha e tal, lá da Rádio Record que ele pegava...é...escrevia,
anotava. Assim...ouvia e ia já fazendo quando interessava em alguma.
Tinha curiosidade pelas músicas de fora também. Gravamos muitas.
Meu Primeiro Amor, é Lejania, Lejania, é o original. Ele conhecia isso
aí...ah!...era curioso (risos). 36 [grifos nossos]

O uso da criatividade e da esperteza é parte de práticas das artes do


fazer cotidiano, que possibilita, segundo Certeau, ao mais fraco realizar
35. Ibidem, p.103.
36. VICENTE, Antenor Vicente (o Zé do Fole, ex-integrante da Cia Os Maracanãs e
ex-acordeonista da dupla Zé Fortuna e Pitangueira). Depoimento. Freguesia do Ó/São
Paulo, 2016.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 29


conexões. A circularidade cultural que envolve essa produção mostra a pos-
sibilidade ínfima de um compositor sertanejo entrecruzar sua produção de
acordo com a realidade musical brasileira à poesia, de Manuel Ortiz Guer-
rero e dos balés sinfônicos de Asunción Flores:

[...] Índia seus cabelos nos ombros caídos


negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosas para mim sorrindo
e a doce meiguice desse seu olhar

Índia da pele morena


sua boca pequena
eu quero beijar

Índia, sangue tupi


Tens o cheiro da flor
Vem que eu quero te dar
todo meu grande amor

Quando eu for embora para bem distante


E chegar a hora de dizer-te adeus
Fica nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unir aos seus

Índia deixarei saudade


Da felicidade
que você me deu

Índia a tua imagem


sempre comigo vai
dentro do meu coração
flor do meu Paraguai.37

Os versos de José Fortuna compõem uma das mais populares guarâ-


nias em português. A versão mantém a estrutura temática das guarânias
que produziu: o tema da despedida, a dor do amor distante, a separação
pela fronteira, o amor impossível pela mulher exótica. Aí vemos semelhan-
ça com a poesia de Manuel O. Guerrero:

37. FORTUNA, José. Índia. Intérpretes: Cascatinha e Inhana. Disco n. 5.179. São Paulo:
Todamérica, 1951. 78 rotações.

30 - Urdiduras da história
[...] India, bella mezcla de diosa y pantera,
doncella desnuda que habita el Guairá.
Arisco remanso curvó sus caderas
copiando un recodo de azul Paraná.

De su tribu la flor,
montaraz guajaki,
Eva arisca de amor
del edén Guarani.

Bravea en las sienes su orgullo de plumas,


su lengua es salvaje panal de eirusu.
Collar de colmillos de tigres y pumas
enjoya a la musa de Yvytyrusu.

La silvestre mujer
que la selva es su hogar
también sabe querer
también sabe soñar.38

Embora o propósito do poeta tenha sido convencer seus contem-


porâneos a desenvolver uma música revolucionária, de luta pela cultura
guarani envolvendo a hierarquização e popularização da guarânia como
estilo musical nacional, há uma semelhança com relação à temática das
duas composições. Entretanto, existe no texto de Guerrero uma ênfase na
mulher selvagem, exuberante e extremamente sensual, de corpo sinuoso de
“doncella desnuda”, que preserva a beleza da mistura entre deusa e pantera.
Na letra de Manuel O. Guerrero, Índia é a representação de Eva no Éden
do Guarani. José Fortuna apropria-se dessa linguagem sobre a mulher sel-
vagem, cujo teor é elevado a uma narrativa mais romântica. A realidade
temática musical de Índia de José Fortuna tem a ver com a realidade tex-
tual da música brasileira romântica, por isso os elementos a serem usados
para descrever Índia são menos característicos ao culto à mulher selvagem
guarani. A Índia de José Fortuna tem sangue tupi, é sedutora, meiga como
a flor, de lábios de rosas e cabelos negros nos ombros caídos, como na nar-
rativa de José de Alencar sobre Iracema.39
38. Letra versão paraguaia de Índia. FLORES, Asunción; GUERRERO, Manuel Ortiz.
Índia. Intérprete: Mercedes Simone. Columbia, s/d.
39. Iara Fortuna contou-nos que o pai (José Fortuna) era leitor de clássicos da literatura

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 31


De alguma forma a narrativa literária romântica influi sobre os versos
de Fortuna na descrição da Índia. A construção da versão paraguaia realoca
os traços da mulher indígena para a realidade brasileira. É a índia que se
visualiza em nossa paisagem literária, pelo indianismo de Alencar: “Iracema
a virgem dos lábios de mel, tem os cabelos negros como a asa da graúna, é ele-
gante como o talhe da palmeira”. A similaridade dos versos é impressionante.
Os versos da guarânia Índia desenham uma forma de bricolagem, como o
reduto de uma discursividade que combina as operações e usos variados,
elementos de cor distinta40. É o uso da obra pelo leitor de Alencar, da
apropriação dos sentidos e signos pelo ouvinte da música paraguaia. Dessa
forma, é possível entender que este autor se faz também leitor e ouvinte e,
na recepção, dá um novo sentido ao que lhe é transmitido, fazendo funcio-
nar de outra forma e sobre outro registro o que absorve.
É preciso analisar o deslocamento poético e estético da versão Índia
a partir do prisma da transcriação. Nesse sentido, a guarânia Índia de José
Fortuna aponta elementos que estruturam uma “nova obra”. É um processo
criativo do compositor em que a Índia aparece aclimatada, doce, suave, ele-
mentos que a retiram da representação do feminino da poesia de Manuel
Guerreiro. Nessa obra, está presente a figura mitológica da mulher Índia
vinculada à prática espiritual do xamanismo, onde o feminino se transmuta
de pantera. A representação é prenhe de simbolismos, que não se identi-
ficam com a significação da mulher pelo público brasileiro. Dessa forma,
José Fortuna apresenta uma estratégia de escrita, no qual os elementos
que compõem a “sua guarânia” são deslocados da significação mitológica
da Índia paraguaia. A transcriação ocorre, dessa forma, com o referencial
simbólico e cultural do próprio sujeito. Fazendo uso deste referencial, ele
oferece uma nova construção da Índia, mais próxima ao imaginário brasi-
leiro e, portanto, mais próxima à Índia de José de Alencar.

Considerações finais

Nos anos de inserção da música sertaneja no mercado fonográfico, as


temáticas e estilos lançados estavam cercados por uma definição do padrão
musical a ser seguido. Cascatinha, em entrevista para o projeto MPB, es-
nacional. Entre as obras preferidas, citou Iracema, de José de Alencar. Talvez aí exista uma
referência nos versos de Índia em Iracema construída por Alencar.
40. CERTEAU, Op. cit., p.15.

32 - Urdiduras da história
pecial da década de 1970, relatou que os diretores fecharam as portas na
primeira tentativa de gravar a guarânia paraguaia Índia, reconhecidamente
um de seus maiores sucessos41. Mas o que o discurso não revela é que as
práticas que atuam nas brechas do sistema instituíram, pela criatividade de
seus artistas e necessidade de ampliação do público e do mercado, novas
combinações para a canção sertaneja que não atendiam ao ideal de pureza
que o discurso trazia, mas que diante do sucesso dos estilos estrangeiros no
Brasil, como os ritmos paraguaios e mexicanos, “permitiram” seus registros
nos álbuns de música sertaneja já em 1950.
O que se observa é que, na prática, procuravam-se formas de entrar no
mercado, mesmo com a resistência de algumas gravadoras com os ritmos
estrangeiros. O fato é que a canção Índia ganha toda essa repercussão nas
vozes de Cascatinha e Inhana na rádio Record. A versão data de 1952 e só
foi registrada um ano depois no álbum da dupla. Mas a popularidade da
canção iniciou antes mesmo de ter seu registro em disco, e, como já fazia
José Fortuna com suas canções, foi testada nos microfones da rádio. A
popularidade de Índia forçou sua gravação, segundo Cascatinha. Para Pi-
tangueira “(...) o diretor artístico Ernandes, da gravadora Todamérica, teve
que engolir essa. Ele não queria gravar esses ritmos. Mas a Índia era su-
cesso na boca do povo. Não tinha como não gravar”42. Em 1953, José For-
tuna explora o sucesso que a canção Índia havia conquistado, reforçando
sua disseminação massiva com a estreia da peça Índia no Circo Garbi, no
bairro Vila Diva, em São Paulo. A popularidade obtida graças à “rendição”
do mercado discográfico foi apropriada e adaptada a uma nova linguagem,
deslocando-se para o cenário do circo. Essa era a tática daquele que, atuan-
do na ocasião, impunha suas maneiras de articular e de ser notado, con-
quistar o público massivo e difundir sua produção. É nesse espaço que José
Fortuna vai consolidar-se no mercado artístico da música sertaneja e insti-
tuir uma nova forma de trabalhar e pensar sua obra artística no interior da
incipiente cultura de massa. Após o sucesso de Índia no disco e, depois, no
circo, o autor vai gerenciar a sua obra em torno dos melodramas e apresen-
tá-los no palco dos circos e pavilhões, aproveitando toda a mediação feita
pelo rádio e pelo sucesso do disco de Cascatinha e Inhana. Dessa forma,
segue a sua jornada rumo ao grande público, com a criação de sua própria
41. Entrevista com Cascatinha e Inhana, MPB Especial, TV Cultura, 1973.
42. FORTUNA, Euclides (o Pitangueira). Depoimento. Editora Fortuna Music/São Paulo,
2008.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 33


companhia teatral, onde pode ser produtor, dramaturgo, ator e empresá-
rio de si mesmo. Com isso, obtém prestígio no meio artístico sertanejo e
também junto às companhias circenses, chegando a ser reconhecido, o trio
formado com Pitangueira e Zé do Fole, como os Reis do Teatro.43
Essa forma de gerenciar a sua obra nos revela a operacionalidade das
articulações de José Fortuna pelo apropriar-se tanto dos elementos consti-
tutivos de uma tradição popular rural (da qual faz parte), a partir da memó-
ria, quanto do que a indústria da cultura de massa institui e disponibiliza,
incorporando os seus objetivos a forma com que essa indústria fomenta
e potencializa seus produtos. A maneira como ele trabalha permite que
se leia sua obra sob a ótica não da passividade, mas da ação, da invenção
de um perfil empreendedor que faz de sua obra polissêmica. Seu repertó-
rio musical e teatral como uma prática social segue não na contramão do
discurso de identidade à qual serve a indústria da cultura nesse momento,
mas na fronteira, cruzando e hibridizando o que lhe serve do universo rural
com as novas formas de se produzir cultura. Entrega ao grande público
uma obra que deseja ser eterna, e a popularidade que conquista para tão
grandioso desejo é fomentada pelos meios de comunicação de massa, os
quais permitem que ela seja lida e relida em diferentes tempos. O desejo da
eternidade talvez se realize nesse fluxo.
Podemos dizer que a maneira de se colocar como um sujeito atento à
formação da indústria cultural e da crescente incorporação de elementos
estruturantes da música rural (e, portanto, de temas a ele vinculados) ao
mercado fonográfico desse momento é também uma forma de requerer
para si a fama instituída por essa multidão. Zé Fortuna a contempla na
própria ideia do trabalho com as noções de tempo e espaço, pois mesmo
abrangendo a linha evolutiva da sucessão dos acontecimentos de sua vida
(infância, mocidade, vida adulta, velhice e morte, bem como do passado
cor-de-rosa e presente inseguro na cidade), é que a narrativa pragmática
traz uma ordem inteira nos oferecendo um sentido de unidade. É só a
partir da noção sincrônica do tempo histórico que compreendemos essa
obra artística como o entrecruzar de práticas sociais que ganham sentido
mais ou menos variável em contextos e espaços diferentes. Dito de outra
forma, é observando a mutabilidade da tradição e das expressões culturais
do mundo rural que se emprestam novos valores simbólicos e sentidos a

43. NEPOMUCENO, Op. cit.

34 - Urdiduras da história
outros espaços (no caso, à cidade) e contextos sociais. Na apropriação das
práticas socioculturais ditas tradicionais em diferentes tempos observa-se
um processo de (re)significação, no sentido não de sua descaracterização
mas de seus novos usos.

Referências

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Pe-


trópolis/RJ: Vozes, 2008.

FORTUNA, Euclides. Vida e arte de Zé Fortuna e Pitangueira. São


Paulo: Editora Fortuna, 2009. p. 122.

GUTEMBERG, Jaqueline Souza. Entre Modas e Guarânias: a produ-


ção musical de José Fortuna e seu tempo (1950-1980). 2013. Dissertação.
(Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2013.

HIGA, Evandro Rodrigues. Para Fazer Chorar as Pedras: o gênero musi-


cal guarânia no Brasil – décadas de 1940-50. 2013. Dissertação. (Mestrado
em Música) – Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Ar-
tes da Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2013.

HIGA, Evandro Rodrigues. Reflexões sobre a difusão da guarânia para-


guaia no Brasil no século XX. VIII Congreso de la Asociación Interna-
cional para el Estudio de la Música Popular Rama Latinoamericana –
IASPM-AL, Lima, 2008.

HONÓRIO FILHO, Wolney. O Sertão nos Embalos da Música Ru-


ral (1930-1950). 1992. Dissertação. (Mestrado em História). São Paulo:
PUC, 1992.

NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da roça ao rodeio. São Paulo:


Editora 34, 2000.

OLIVEIRA, Allan. Miguelin Foi pra Cidade ser Cantor: uma antropo-
logia da música sertaneja. 2009. Tese. (Doutorado em Antropologia) –

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 35


Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de
Santa Catarina. Florianópolis, 2009.

RODRIGUES, Marly. A Década de 50: populismo e metas desenvolvi-


mentistas no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1992.

SANT’ANNA, Romildo. Zé Fortuna e guarânias em brasileiro. Dispo-


nível em: http://triplov.com/romildo/2006/Ze-Fortuna.htm. Acesso em:
set./2022.

SZARÁN, Luiz. Diccionario de la Música Paraguaya. Edición: Jesuiten-


mission Nurnberg. Alemania, 2007. Cf.: http://www.portalguarani.com.
Acesso em: set./2022.

YATSUDA, Enid. O caipira e os outros. In: BOSI, Alfredo (Org.). Cul-


tura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ed. Ática, 1992.

WISNIK, José Miguel. Entre o erudito e o popular. Revista de História


157, p. 55-72, 2. sem. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
revhistoria/article/view/19062/21125. Acesso em: set./2022.

ZAN, Roberto. (Des)territorialização e novos hibridismos na música ser-


taneja. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Interna-
cional para o Estudo da Música Popular. Disponível em: http:///www.
hist.puc.cl/historia/iaspmla.html. Acesso em: set./2022.

36 - Urdiduras da história
Rap, cultura polifônica e bivocal

Roberto Camargos

Sem o trampo da pesquisa, cê num faz nada


DJ KL Jay.

A prática do rap envolve um complexo processo de apropriação, mon-


tagem e ressignificação. Ao ouvirmos a grande maioria das composições,
é notável que a apropriação musical (de sons que são reciclados de outros
tempos e de diversos gêneros) é o centro de sua técnica de produção mu-
sical e o principal traço de sua forma estética. É a isso que se refere o DJ
KL Jay, do Racionais MC’s, quando diz que “sem o trampo de pesquisa,
cê num faz nada”.1 Afinal, é preciso garimpar os discos, selecionar trechos
significativos, combinar partes de faixas já gravadas, pensar referências,
gravar alguns elementos e configurar o novo.2 Esse aspecto já foi analisado
por alguns autores que exploraram, em especial, a dimensão do sampling no
âmbito do rap.3 As discussões ficaram mais ou menos restritas ao aspecto
musical das obras, mas isso não se dá apenas na órbita da musicalidade,

1. KL Jay em entrevista a Amailton Magno Azevedo. AZEVEDO, Amailton Magno. No


ritmo do rap: música, cotidiano e sociabilidade negra — São Paulo, 1980-1997. Disserta-
ção (Mestrado em História) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2000, p. 136.
2. MC Gaspar faz colocação semelhante: “Nossa música é um trabalho de laboratório, toda
hora a gente tá pesquisando”. Ver RapBox, ep. 52: trocando ideia com Z’África Brasil, s./d.
Ainda sobre o assunto, ver o que diz o DJ Raffa, um dos pioneiros na produção musical
rap, em sua autobiografia: SANTORO, Claudio Raffaello. Trajetória de um guerreiro:
história do DJ Raffa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
3. Ver, entre outros, GARCIA, Allysson Fernandes. Lutas por reconhecimento e am-
pliação da esfera pública negra: cultura hip hop em Goiânia — 1983-2006. Dissertação
(Mestrado em História) — Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007, que, ao analisar
o rap em Goiânia, faz uma breve reflexão sobre o sampler e o seu uso na ressignificação de
elementos diversos da cultura musical, que vão do próprio rap à música caipira.
pois processo semelhante acontece no campo das ideias e das mensagens
elaboradas e/ou reelaboradas pelos compositores.
Essa intrínseca característica do rap me leva a retomar algumas obser-
vações de Adalberto Paranhos, muito apropriadas para se refletir sobre as
composições dos rappers brasileiros: “Canção alguma é uma ilha, mantida
em regime de clausura, como se fosse possível cortar os fios que a ligam
a outras canções e a mil e um discursos e referências sociais. [Ela] está
permanentemente grávida de outras canções, com as quais entretém um
constante diálogo.”4
As considerações de Paranhos colocam em evidência a dimensão
dialógica da música popular, no enlace entre o dialogismo, a polifonia,
a bivocalidade. Em sua reflexão, o autor parte de “Chão de estrelas”, de
Silvio Caldas e Orestes Barbosa, canção que integra o universo simbólico
de outras duas gravações que apareceram décadas mais tarde: “Como dois
e dois”, composta por Caetano Veloso, e “Chão de estrelas”, regravada pe-
los Mutantes. Paranhos não tem por objetivo apenas mostrar as conexões
entre essas gravações, mas, o que é mais importante e nunca autoevidente,
como o sentido de uma canção (ou de qualquer obra artística, se se quiser
estender a reflexão para outros campos) está em permanente transformação
e pode servir a propósitos muito distintos.
O autor sustenta, habilmente, que o intérprete também significa e
que cada gravação ou performance é capaz, em situações históricas concre-
tas, de imprimir significados novos à obra ou de promover redefinições de
seus sentidos. Tanto que se põe a demonstrar como “Caetano Veloso, ao
se apropriar de alguns elementos da romântica ‘Chão de estrelas’, acabou
por submetê-la a um processo de politização”.5 A argumentação escancara
como “Dois e dois” está atravessada pelos versos de “Chão de estrelas”,
sem, no entanto, render-se a significados historicamente atrelados a eles,
pois Caetano permitiu-se “citar Orestes Barbosa, readaptando-o para ser-
vir ao objetivo de enfatizar o descontentamento com a situação político-
-social vigente no Brasil”6 dos anos 1970. O compositor baiano, segundo

4. PARANHOS, Adalberto. Vozes cruzadas: dialogismo e política na música popular em


tempos de ditadura. Anais do VI Congresso da IASPM-AL (seção latino-americana da
International Association for the Study of Popular Music) — Música popular, exclusión/
inclusión social y subjetividad en América Latina, Buenos Aires, ago. 2005, p. 1.
5. Ibidem, p. 2.
6. Ibidem, p. 5.

38 - Urdiduras da história
Paranhos, promoveu um diálogo com “Chão de estrelas” para realçar a
permanência de certos problemas sociais que se arrastavam por décadas. O
caso da gravação dos Mutantes é outro, porque, de acordo com Paranhos,
eles elegeram “Chão de estrelas” como bode expiatório na sua luta contra o
nacionalismo arraigado no campo musical brasileiro. Daí sua interpretação
iconoclástica, paródica, que a dissolveu em cacos. Isso fornece mais um
indício de que “nem seria possível submetê-la [“Chão de estrelas”] a uma
blindagem que a mantivesse a salvo de qualquer tentativa de reapropriação
de seus sentidos”. Resta, então, a conclusão de que, “por mais cristalizadas
que sejam as leituras que se façam dessa ou daquela canção, sempre é pos-
sível injetar-lhe novos sopros de vida”.7
As análises de Adalberto Paranhos se apoiam, em parte, nas reflexões
desenvolvidas por Mikhail Bakhtin entre as primeiras décadas do século
XX e o final dos anos 1960. Esse pensador russo deixou importantes con-
tribuições para aqueles que ambicionam compreender os diálogos que um
artefato cultural estabelece com outras obras ou discursos, já que, em seus
estudos, explorou a dimensão dialógica da linguagem.
É o que se vê no livro Problemas da poética de Dostoiévski8, que trouxe
grandes contribuições para o estudo da linguagem, e é, seguramente, fun-
damental para se entender melhor formulações como polifonia, dialogis-
mo e bivocalidade. Essa obra de Bakhtin — de 1929, porém corrigida e
ampliada na década de 1960 — é dedicada, como o título indica, à poética
de Dostoiévski, que, para ele, é um dos maiores responsáveis por inova-
ções na área artística, sendo o criador do pensamento artístico polifônico.
Para Bakhtin, “este tipo de pensamento artístico encontrou expressão nos
romances dostoievskianos, mas sua importância ultrapassa os limites da
criação romanesca”9, pois a dimensão polifônica se faz presente em outros
tipos de criação artística.
O projeto para a reformulação de Problemas da poética de Dostoiévski,
concretizado nos anos 1960, tinha vários objetivos e nele o problema da
polifonia apareceu no centro da análise, momento em que foi “anotando
que a consciência do outro não se insere na moldura da consciência do au-

7. Ibidem, p. 5.
8. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-U-
niversitária, 1981.
9. Ibidem, s./p.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 39


tor, mas que permite a ele entrar em relações dialógicas”.10 Em termos gerais,
Bakhtin acabou por formular uma tese que se diferenciava da fortuna crí-
tica até então existente: “essa tese implica a ideia de que Dostoiévski criou
um novo tipo de romance, um gênero romanesco denominado romance
polifônico [...]: todos os elementos de sua estrutura são determinados pela
tarefa de construir um mundo polifônico e um herói cuja voz se estrutura do
mesmo modo como se estrutura a voz do autor do romance”.11 Nas obras anali-
sadas, ele divide os romances em monológicos e polifônicos. Aos primeiros
estão associadas características como o monologismo, autoritarismo, aca-
bamento. No caso dos segundos, evidenciam-se a ideia de uma realidade
em construção, dialogismo e polifonia.
Bakhtin afirma que a literatura costuma ser monológica, razão pela
qual distingue Dostoiévski de todo o resto. Para ele, foi esse autor quem
compreendeu a natureza dialógica do pensamento humano e conseguiu
expressá-lo artisticamente em seus trabalhos. E o fez de maneira magis-
tral, representando a ideia do outro de modo a conservar sua plenivalên-
cia, não apenas reafirmando-a ou fundindo-a com suas próprias ideias.
Isso consolida uma dimensão dialética na qual as vozes, os discursos e
pensamentos demandam ser ouvidos, entendidos e respondidos por ou-
tras vozes. Nesse sentido, o discurso do herói dostoiévskiano analisado
por Bakhtin não é meramente expressão das demandas (posicionamen-
tos, ideologia) do autor. A voz do herói, nessa perspectiva, estrutura-se
da mesma maneira que a voz do autor. Aquela, portanto, “possui inde-
pendência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da
palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes
plenivalentes de outros heróis”.12
No livro, Bakhtin procura aclarar sua concepção sobre polifonia, vo-
zes, diálogo entre consciências, gênero polifônico. Esses conceitos, que
respondem a problemas específicos colocados a partir das obras de Dos-
toiévski, podem ser estendidos para outros campos de análise, sendo vá-
lidos para se pensar a dimensão dialógica do discurso em geral. É o caso,
particularmente, de polifonia, muito útil para mergulharmos em algumas
questões do universo rap.
10. BRAIT, Beth. Problemas da poética de Dostoiévski e estudos da linguagem. In: BRAIT,
Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012, p. 51.
11. Ibidem, p. 55.
12. BAKHTIN, Op. cit., p.3.

40 - Urdiduras da história
Alguns desdobramentos dessas concepções — que elevaram as rela-
ções dialógicas a objeto dos estudos da linguagem — permitiram minu-
ciosos estudos de narrativas/discursos e de suas relações com o discurso
do outro.13 As formas pelas quais o discurso do outro marca sua presença
são percebidas na convivência e interação de uma multiplicidade de vozes
regidas pelo autor numa narrativa, o que caracteriza a polifonia, e pelo
emprego ambíguo do discurso do outro, caracterizando o discurso bivocal,
no qual “um autor pode usar o discurso de um outro para os seus fins pelo
mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que
já tem sua própria orientação e a conserva. Nesse caso, esse discurso, con-
forme a tarefa, deve ser sentido como o de um outro. Em um só discurso
ocorrem duas orientações significativas, duas vozes”.14
As ideias/os conceitos de polifonia e bivocalidade implicam o enten-
dimento de que nenhuma narrativa (ou discurso, ou linguagem) é suficien-
te por si só, sempre envolvendo vozes dialogicamente relacionadas. Tal
concepção é sugestiva para se explorar a existência de um claro diálogo
que perpassa muitos raps e dá origem a concepções de mundo e a ideias
partilhadas que estão em constante movimento.

***

Em 1997, o quarteto formado por Ice Blue, Edi Rock, Mano Brown
e KL Jay lançou o disco Sobrevivendo no inferno. Esse LP, considerado uma
referência obrigatória por quase todos os MCs brasileiros, agrupa canções
que desdobram duras experiências de quem está “tentando sobreviver no
inferno” onde “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. [Onde] a cada quatro pessoas mortas pela po-
lícia, três são negras. [Onde] nas universidade [...] apenas 2% dos alunos
são negros. [Onde] a cada quatro horas um negro morre violentamente”.15
O espetáculo que se vê (ou melhor, que se ouve) é pouco animador, mas,
apesar disso, esse disco cravou seu lugar na sensibilidade de uma parcela
ponderável dos brasileiros, especialmente os negros, pobres e moradores
13. Os estudos que abordam o princípio dialógico da linguagem percorrem duas concepções
de dialogismo: o diálogo entre interlocutores dentro de um texto e o diálogo entre discursos.
14. BAKHTIN, Op. cit., p. 164.
15. “Capítulo 4, versículo 3”. Racionais MC’s. LP Sobrevivendo no inferno. São Paulo:
Cosa Nostra, 1997.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 41


das periferias. Entre as músicas que se notabilizaram, a de maior destaque
foi “Diário de um detento”. Ela narra, do ponto de vista de um detento, o
episódio que teve repercussão nacional, o “massacre do Carandiru”.
A composição rememora, em uma crônica pretensamente realista,
o dia em que, em outubro de 1992, a Polícia Militar do Estado de São
Paulo invadiu o Pavilhão 9 da Casa de Detenção e deixou 111 detentos
mortos. O relato sobre o qual se assenta a narrativa é atribuído a Jocenir,
à época interno do presídio: “Brown tinha ido ao Carandiru [e] o deten-
to lhe entregou a letra, depois acrescida de outras histórias que o rapper
recolheu de cartas enviadas por presos”.16 A música, que ganhou clipe
no ano seguinte (1998), tem o rapper Mano Brown como o narrador/
presidiário que sobreviveu à chacina e conduz o ouvinte pelos labirintos
da violência perpetrada pelo Estado:

São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã/ Aqui estou, mais


um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/Você não sabe como é caminhar
com a cabeça na mira de uma HK/ Metralhadora alemã ou de Israel/
Estraçalha ladrão que nem papel/ Na muralha, em pé, mais um cidadão
José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles
Bronson [...]/ Mas eu conheço o sistema, meu irmão/ Aqui não tem santo
[...]/ Amanheceu com sol, 2 de outubro/ Tudo funcionando, limpeza,
jumbo/ De madrugada eu senti um calafrio/ Não era do vento, não era do
frio/ Acerto de conta tem quase todo dia/ Ia ter outro logo mais, eu sabia
[...]/ Fumaça na janela, tem fogo na cela [...]/ Era a brecha que o sistema
queria/ Avise o IML, chegou o grande dia/ Depende do sim ou não de
um só homem/ Que prefere ser neutro pelo telefone/ Ratatatá, caviar e
champanhe/ Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!/ Cachorros
assassinos, gás lacrimogêneo/ Quem mata mais ladrão ganha medalha de
prêmio!/ O ser humano é descartável no Brasil [...]/ Cadáveres no poço,
no pátio interno/ Adolf Hitler sorri no inferno!/ O robocop do governo
é frio, não sente pena/ Só ódio, e ri como a hiena/ Rátátátá, Fleury e sua
gangue/ Vão nadar numa piscina de sangue [...]17

A longa composição dos Racionais MC’s, que se alonga por quase


oito minutos de uma narrativa ininterrupta e densa, é — ao lado do livro

16. “Detento” Mano Brown filma no Carandiru. Fernando Oliva. Folha de S. Paulo, 29 jan.
1998.
17. “Diário de um detento”. Racionais MC’s. CD Sobrevivendo no inferno, Op. cit.

42 - Urdiduras da história
Estação Carandiru18, do médico Drauzio Varella, e do filme Carandiru19,
dirigido por Hector Babenco — um dos mais conhecidos relatos sobre a
tragédia. Contudo, não é exatamente isso o que importa aqui. O que quero
salientar não é a representação construída pelos rappers acerca do “massacre
do Carandiru” e a importância que ela adquiriu ao circular socialmente,
mas, sim, um aspecto pontual que tomo como ponto de partida para ana-
lisar o dialogismo e a polifonia no rap. Trata-se de uma inflexão moral
perceptível nesse rap, que comunica uma experiência e transmite um saber
que atravessa várias gerações de rappers brasileiros (o que foi possível, em
parte, pelo sucesso que o álbum e a composição atingiram).
Entrando no que realmente me interessa, frise-se que essa composição
se conecta com aquilo que Paulo Bezerra caracterizou como um procedi-
mento próprio do romance polifônico: “o autor não fala pela personagem,
não a reduz a seu objeto, mas [...] deixa que ela fale ‘carregando nas tintas’,
use sua linguagem, seu estilo, sua ênfase, pois não é ele, autor, quem fala,
mas o outro que ele reconhece como sujeito de seu próprio discurso e dono
de sua própria maneira de exprimir-se”.20
Assim, mais do que expor o episódio no Carandiru, o personagem-nar-
rador desse rap pontua, sutilmente, fragmentos do cotidiano, do complexo
processo histórico vivenciado pelos presos antes e durante o cumprimento
suas penas. Enfocam-se dramas e percepções que, de um modo ou de ou-
tro, eram ao menos parcialmente compartilhados por outros presidiários.
Atenta à dialética que permeia a vida e se mostra mais perversa no mundo
povoado pelas classes populares, a composição martela:

Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,/ Sangue, vidas e gló-


rias, abandono, miséria, ódio,/ Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do
tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo detento/ [...]
Rá-tá-tá-tá, preciso evitar/ Que um safado faça minha mãe chorar/ Mi-
nha palavra de honra me protege/ Pra viver no país das calças bege [...]21

De um lado, fica assinalado que são as voltas e reviravoltas da vida que


levam os sujeitos diretamente para dentro do universo específico dessa mú-

18. VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
19. Carandiru. Direção: Hector Babenco. Brasil: Sony Pictures, 2003, 1 DVD (son., color.).
20. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Op. cit., p. 196.
21. “Diário de um detento”, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 43


sica: o crime, a cadeia. De outro, chama-se a atenção para algo de que, por
vezes, nem todos se dão conta: que “a vaga tá lá esperando você”. Diante
disso, emerge a posição de conselheiros assumida pelos rappers na sua inte-
ração com essa outra voz (a do presidiário sobrevivente):

Aí moleque, me diz:/ Então, cê qué o quê?/ A vaga tá lá esperando você/


Pega todos seus artigos importados/ Seu currículo no crime e limpa o
rabo/ A vida bandida é sem futuro/ Sua cara fica branca desse lado do
muro/ Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do inferno, com moral, um
dia/ No Carandiru, não... ele é só mais um.22

A dimensão central desse trecho, que não figura exatamente em pri-


meiro plano em “Diário de um detento” (que fica por conta da violência
cometida pelos agentes estatais), é uma das portas de entrada para se refle-
tir sobre os desdobramentos do dialogismo no rap. Por meio dele se pode
começar a pensar no “princípio que rege a produção e a compreensão dos
sentidos, essa fronteira em que eu/outro se interdefinem, se interpenetram,
sem se fundirem ou se confundirem”.23 Tendo-o em vista, é possível verifi-
car que onde aparentemente há uma voz (ou discurso, ou narrativa), na ver-
dade há duas ou mais vozes em discussão, há o intercâmbio de consciências
no campo das ideias (e não somente intercâmbio das ideias), a construção
de discursos polifônicos e, até mesmo, bivocais. Isso permite que se retome
Bakhtin em seu estudo sobre Dostoiévski. Como ele enfatiza, a ideia

não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-se


apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai
relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia come-
ça a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua
expressão verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna
pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo
com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja,
na consciência dos outros expressa na palavra.24

Nessa linha, a ideia presente na composição do Racionais MC’s —


criada a partir da voz social de um detento — está atravessada por relações

22. Ibidem.
23. FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Op. cit., p. 80.
24. BAKHTIN, Mikhail, Op. cit., p. 73.

44 - Urdiduras da história
dialógicas, sendo apropriada e desdobrada no discurso de outros rappers.
Nenhuma novidade, pois, como destacaram estudiosos como Ecio Salles,
“a intertextualidade revela-se uma prática arraigada na própria concepção
da música rap [já que] em cada letra e em cada fragmento sonoro de uma
composição, percebemos a presença de trechos de outras letras, de sono-
ridades alheias”.25 É o caso de Rodrigo Ogi, que quase quinze anos após a
gravação de “Diário de um detento”, apropria-se de vários de seus elemen-
tos e os insere em outro contexto.
É o que se ouve em “A vaga”26, faixa que Rodrigo Ogi gravou para
compor o seu disco Crônicas da cidade cinza. Essa música comenta (às vezes
indiretamente, de maneira que o interlocutor, o Racionais MC’s, perma-
nece numa zona de sombra, embora possa ser identificado a partir de ves-
tígios) trechos de “Diário de um detento”, a começar pelas situações que
potencialmente podem levar o sujeito da ação a cometer atos que seriam
passíveis de provocar sua prisão. A “história de lágrima, sangue, vidas e
glórias, abandono, miséria, ódio”, narrada pelo Racionais MC’s como a
“química” para a produção de um novo detento é reconfigurada por Ogi.
Com tom aparentemente mais leve, ele descreve o sufoco de quem luta pela
sobrevivência: “saí a captura no ônibus lotado/ às 5 da matina, num dia
acinzentado/ eu tava precisando de uma remuneração/ sonhava em superar
os meus dias de cão”.27
À maneira do ditado popular “a ocasião faz o ladrão”, o personagem
vê, logo em seguida, uma pequena chance para aliviar, mesmo que mo-
mentaneamente, sua situação de carência crônica. E o desfecho se dá como
que à luz do conselho de que “a vida bandida é sem futuro”28:

Tenho fé, um café vou tomar ali/ Um pingado e um pão na chapa pedi/
Nem pensei, debandei, não paguei o que consumi/ Novamente a cons-
ciência foi sem clemência/ Me fez consertar um ato de inconsequência/
Retornei pra pagar 2 reais/ Fiquei sem um tostão, mas pude seguir em
paz29

25. SALLES, Ecio. Poesia revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p. 57.
26. “A vaga”. Rodrigo Ogi. CD Crônicas da cidade cinza. São Paulo: 2011 (independente).
27. Ibidem.
28. “Diário de um detento”, Op. cit.
29. “A vaga”, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 45


O personagem-narrador parece relativamente firme em seu propósito
de não se envolver com a prática de crimes. Enfrenta as implacáveis obri-
gações sociais de todos aqueles que vivem do trabalho (“procuro vagas de
emprego/nenhuma vinga”30) e se esquiva das tentações da solução rápida
para seus dilemas:

Trombo um parceiro que também tava na correria/ Ele me diz que ti-
nha um plano pra salvar o dia:/ “Esquema no Anhangabaú pra nós pas-
sar bem/ Vamos encher nosso baú com notas de cem”/ Mas o malandro
quando é esperto demais cai/ Só peço pro Pai paz, e a zica que atrai, sai/
Tô no limite mas recuso o convite.31

Apesar de se sujeitar ao “teste pra provar o seu valor”, o personagem


da narrativa de Ogi não é um herói. É um homem comum que, como tal,
precisa salvar sua própria pele, tanto das possíveis enrascadas com a lei
quanto em relação à superação das necessidades básicas de sobrevivência.
É aí que a voz do outro adentra no seu discurso para dizer, também, algo
que não dizia em seu contexto de origem. Se “a vaga [que] tá lá esperando
você” do Racionais MC’s remete diretamente ao universo da prisão, a de
Rodrigo Ogi aponta uma saída bem distinta, ainda que mantendo a outra
como horizonte trágico diante de uma escolha precipitada ou inadequada:

Acho um anúncio para limpador de candelabro/ Vou ao local e ouço a


moça me dizer:/ “A vaga estava esperando você”/ Esse é o teste pra você
provar o seu valor/ Existirão atalhos por onde for/ Preste atenção no que
o mundão lhe oferecer/ “A vaga tá lá esperando você”.32

A peculiaridade de “A vaga” está na sua dupla face. De um lado, o


discurso do Racionais MC’s penetra nela e é assimilado pela voz (ou, mais
precisamente pela gravação que incorpora um trecho sampleado como uma
importante citação musical) de Ogi, reafirmando o sentido de “Diário de
um detento”. Por outro, entra em relativa tensão com ela ao sugerir que “a
vaga [que] tá lá esperando você” corresponde ao aceno da possibilidade de
evitar o ingresso nas redes do crime e, no final das contas, da prisão, onde
“ladrão sangue bom [que] tem moral na quebrada/ [...] é só um número,
30. Ibidem.
31. Ibidem.
32. Ibidem.

46 - Urdiduras da história
mais nada”.33 Neste caso, em que “o discurso se converte em palco de luta
entre duas vozes”34, a vaga a ser ocupada é outra: uma vaga no mundo do
trabalho, aquela de “um anúncio para limpador de candelabro”.35 É a saída
para o personagem que “cont[a] com a sorte para escapar de algo tão maca-
bro”36, como é o final nada feliz anunciado em “Diário de um detento”. Em
um exercício dialógico, temos aí uma possível resposta de Ogi ao questio-
namento de Mano Brown, colocado em um momento intermediário entre
“Diário de um detento” e “A vaga”: “Que cê qué?/ Viver pouco como um
rei/ Ou muito, como um Zé?”.37
Pode-se argumentar que, em termos gerais, Rodrigo Ogi e Racionais
MC’s expressam fundamentalmente a mesma coisa. No entanto, não se
pode deixar de notar que em “A vaga” há, sim, uma linha de fuga (mesmo
que sutil). A música de Ogi, nesse sentido, caracteriza a existência de um
discurso bivocal no qual a relação dialógica é abertamente exteriorizada no
uso diferenciado dos versos de “Diário de um detento”.

***

Em Ogi, a escapatória para o personagem é encontrada no trabalho


regular, convencional. Não se pense, entretanto, que ele idealizava o mun-
do do trabalho ou assumia um discurso conservador à moda daqueles que
apregoam que “o trabalho dignifica o homem”.38 Pelo contrário, ele sabe
que, à falta de melhor alternativa, é preciso fazer concessões para salvar
a própria pele. E mais: sabe perfeitamente que nem tudo são flores para
quem abraça “o teste pra [...] provar o seu valor”.
Isso fica explícito em outra composição de sua autoria que dialoga
com a anterior. Se, em “A vaga”, a mais modesta ocupação que garanta um
33. “Diário de um detento”, Op. cit.
34. BAKHTIN, Op. cit., p. 168.
35. “A vaga”, Op. cit.
36. Ibidem.
37. “Vida loka, parte II”. Racionais MC’s. CD Nada como um dia após o outro dia. São
Paulo: Cosa Nostra, 2002.
38. Expressão amplamente difundida e em estreita relação com o que Marilena Chaui
considera ser parte da “ideologia dominante”, que tem como desdobramento a atribuição
da “pobreza à falta de força de vontade para enfrentar a dureza do trabalho”. CHAUI,
Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 138.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 47


rendimento mínimo ao trabalhador proporciona, por pior que seja, certo
alívio, em “Corrida dos ratos” 39 o trabalho — suposto redentor das almas
mal encaminhadas — é o mais pesado dos fardos.40 Com uma ambientação
sonora sufocante e marcadamente monótona (a exemplo da rotina narrada
na música), essa composição é o retrato falado de quem não aguenta mais
a dureza da vida que leva a maioria dos trabalhadores a sacrificar muitos de
seus desejos em nome da sobrevivência. Ela representa o martírio de uma
luta que parece não ter fim, às voltas com trabalho e mais trabalho: “O meu
pai me ensinou muito bem,/ Aprendi, estudei, trabalhei: eu progredi/ Uma
grana guardei, minha casa comprei/ Arrumei uma esposa e segui/ O meu
filho nasceu, trabalhei muito mais/ Minha esposa também foi trabalhar”41
A realidade vivida, matéria-prima transformada em rap na oficina de
Ogi, não dá trégua para o sujeito que se “desgast[a] para fazer [sua] família
viver bem”.42 A “corrida” desse homem que confessa que “quanto mais eu
ganho, mais eu gasto/ me desgasto”43 aponta a existência de uma roda-vi-
da que o destrói, da qual faz parte e alimenta alguns de seus valores sem,
contudo, que ele esteja para as suas contradições. O personagem prossegue
enumerando suas desventuras:

Antes eu queria as de cinquenta/ Hoje eu corro muito mais pra conseguir


juntar notas de cem/ Eu não consigo juntar, cartão no limite estourou/ A
grana que eu quero guardar/ O banco me surrupiou!/ Mas eu preciso de
dinheiro pra viver/ Sem dinheiro já nem sei quem sou/ Fiz uma hipoteca,
levantei merreca/ Mas a grana seca, já fiquei careca, me descabelei [...]/
Tem algum vampiro sugando o que eu sei.44

O movimento pendular revela um sujeito que ora ambiciona participar


desse jogo, ora consegue perceber a sua perversidade, como certamente
ocorre com muitas pessoas. Nesse sentido, “Corrida dos ratos” formula
um comentário crítico sobre a “solução” contida em “A vaga”, na qual o
39. “Corrida dos ratos”. Rodrigo Ogi, Op. cit.
40. Como ele mostra, também, em “Profissão perigo”, na qual exibe os dramas, os problemas,
o estresse e a pressão diária vivida pelos motoboys nas grandes cidades. Ouvir “Profissão
perigo”. Rodrigo Ogi, Op. cit.
41. “Corrida dos ratos”, Op. cit.
42. Ibidem.
43. Ibidem.
44. Ibidem.

48 - Urdiduras da história
trabalho figura como uma oportunidade do indivíduo provar o seu valor.
Atuando na arena da heterogeneidade constitutiva45, aquela em que a re-
lação dialógica não se mostra no desenrolar do discurso, Ogi disseca os
dissabores do trabalhador que não logra alcançar — apesar dos esforços
empreendidos — o mundo idealizado pelos defensores do capitalismo, no
qual o empenho seria fartamente recompensado:

Disseram que o trabalho faz enobrecer/ Trabalho mais que o meu patrão e
nem sou sócio/ [...]/ Não vejo um final paradisíaco/ Minha sorte diz que o
trabalho faz feliz/ Estou à beira de um ataque cardíaco/ Preso nessa imen-
sa armadilha,/ Eu e a minha família, meu vizinho segue a mesma trilha.46

O sujeito da música, em nenhum momento nega que tentou se inserir,


de alguma forma, na sociedade comandada pela ordem do capital. Aliás,
ele deixa claro que “já pens[ou] em ser autônomo/ter um trono tru[ta], ser
o dono do meu próprio negócio”. Mas não demorou muito para perce-
ber que as possibilidades reais de ascensão por meio do trabalho careciam
de lastro. Assim, a composição segue expondo a decepção do trabalhador
confrontado com a brutal desigualdade entre as classes: “eletrodomésticos,
passeios turísticos/ carros fantásticos, estilo nada rústico/ mas tudo isso tá
na mão do meu patrão/ quero saber porque ele tem e eu não...”47 O final é
melancólico: “Imagine uma gaiola, onde o rato corre dentro dela/ Ele corre
até se cansar/ E nunca chegará em lugar nenhum/ São bichinhos correndo
em direção ao abismo/ Estão todos correndo juntos em busca de capital/
Essa é a corrida dos ratos, você se enquadra nela ou não?”48
Essa música, se pensada na relação dialógica que mantém com outras
(como “A vaga” e “Diário de um detento”), adverte que para as pessoas co-
muns, pelo menos como regra geral, não há saída satisfatória. Assim, entre
45. De acordo com José Luiz Fiorin, o princípio da heterogeneidade “é uma maneira de
precisar teoricamente o conceito bakhtiniano de dialogismo”. E a heterogeneidade pode ser
constitutiva ou mostrada: “A primeira é aquela que não se mostra no fio do discurso; a se-
gunda é a inscrição do outro na cadeia discursiva [...] A heterogeneidade mostrada pode ser
marcada, quando se circunscreve explicitamente, por meio de marcas linguísticas, a presença
do outro [...], e não marcada quando o outro está inscrito no discurso, mas sua presença não
é explicitamente demarcada”. FIORIN, José Luiz. O romance e a simulação do funciona-
mento real do discurso. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido.
Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 230 e 231.
46. “Corrida dos ratos”, Op. cit.
47. Ibidem.
48. Ibidem.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 49


o tormento da “vaga [que] tá lá esperando você”49 no sistema prisional e
a extenuante vida garantida pela “vaga [que] estava esperando você”50 no
mundo do trabalho, o que fundamentalmente está em jogo é a organização
desigual da vida social. A aparente adesão à ideia do trabalho como salva-
ção (“A vaga”), na realidade, não implica a integração absoluta ao sistema
vigente (“Corrida dos ratos”). O trabalhador da composição de Ogi, muito
próximo do trabalhador “real”, não se encaixa na figura do “otário”51, pois
termina por oferecer ao ouvinte uma imagem invertida em relação aos va-
lores positivos do trabalho. Entendendo isso, abrem-se outras possibilida-
des para se pensar o dialogismo, a polifonia e a bivocalidade no rap.

***
Questões suscitadas por “Diário de um detento” e “A vaga” despontam
igualmente em muitas composições, o que evidencia dimensão dialógica
no âmbito do rap e a formação de uma tradição musical que, ao construir,
consolidar e divulgar determinados valores, institui referências e modelos
de criação artística.52 Acompanhar um pouco desse diálogo que envolve
diferentes vozes/ideias permite lançar uma tímida luz sobre as mudanças
históricas (e os movimentos de apropriação), entre elas as que abrangem
a concepção de malandro/malandragem. Para tanto, caminharei na esteira
dos valores segundo os quais “a vida bandida é sem futuro”53 e é preciso
“escapar de algo tão macabro”54, que reverberam em muitos raps.
49. “Diário de um detento”, Op. cit.
50. “A vaga”, Op. cit.
51. A música popular brasileira, em especial nos anos 30 e 40 do século XX, teve no trabalho
e nos trabalhadores um de seus motes mais notáveis. Os compositores, por vezes afinados
com os códigos da malandragem, protagonizaram, em certos casos, uma leitura a contrapelo
da realidade social e chegaram a classificar como otários aqueles que aceitavam a ideia do tra-
balho como meio de elevação moral e social. Ver, entre outros, PARANHOS, Adalberto. Os
desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig,
2015, esp. o item Mulheres da pá virada.
52. Quanto a isso assinalo a pertinência das reflexões que Ginzburg desenvolveu a partir da
observação de Wolfflin de que “todos os quadros [...] devem mais a outros quadros do que
à observação direta”. Tal raciocínio ajuda a pensar as práticas artísticas em geral, inclusive o
rap. Afinal, a produção de outros rappers é frequentemente determinante para a configuração
da produção desse ou daquele rapper em particular. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, esp. Cap. De A. War-
burg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método (citação da p. 86).
53. “Diário de um detento”, Op. cit.
54. “A vaga”, Op. cit.

50 - Urdiduras da história
A figura do malandro, que integra o imaginário social brasileiro,
passou por diferentes representações ao sabor de momentos e de grupos
específicos. Estudiosos como Roberto DaMatta55, Antonio Candido56 e
Gilberto Vasconcelos/Matinas Suzuki57 exploraram diversos usos que o
termo sofreu. Deixaram, com isso, contribuições importantes para que não
se associem ao malandro e à malandragem imagens cristalizadas ou que
obedeçam a uma construção linear e uma.
Naquilo que me interessa mais de perto, o malandro que habita as nar-
rativas dos rappers no início dos anos 1990 está, quase sempre, atolado no
envolvimento com atividades criminosas “que promete[m] pra ele o mun-
do dos sonhos”.58 O sujeito malandro é geralmente conhecido como aquele
que carrega consigo a crença de que para sair da condição de trabalhador,
de miserável ou, graças à dinâmica capitalista, de trabalhador miserável,
impõe-se lançar mão de táticas à margem da lei e da ordem estabelecida.
É o que se nota em “Mano na porta do bar”.59 Nela, o protagonista é o
sujeito humilde, que goza do respeito e da consideração dos vizinhos, tem
uma vida feliz ainda que modesta. Porém, voltando as costas para o seu
passado e alimentado pela ambição da “lei da selva”60 onde “consumir é
necessário”61, põe-se a buscar no crime a saída para “sua falta de dinheiro
[que] era problema”.62/63 Essa reviravolta em sua vida foi a fórmula encon-
55. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dos dilemas
brasileiros. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
56. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, São Paulo, n. 8, 1970.
57. VASCONCELOS, Gilberto e SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandragem e a forma-
ção da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil republicano, tomo III:
Economia e cultura (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
58. “Mano na porta do bar”. Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe,
1993.
59. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
60. Ibidem.
61. Ibidem.
62. Ibidem.
63. Letícia Vianna, ao estudar os sambas de Bezerra da Silva, argumenta que os sujeitos como
os que inspiraram as representações da malandragem dos rappers integram um processo de
mudanças sociais e simbólicas que se intensificaram no último quarto do século XX: “o ma-
landro — o verdadeiro malandro, da ginga, do morro, que atua nas brechas sem ser um agen-
te do mal — se deu mal, aposentou-se ou foi trabalhar na indústria cultural; e quem se deu
bem foi o ‘malandro federal’. Nesse contexto outra personagem surgiu: o bandido — sinistro,
destrutivo; um soldado de indústria do crime que se entrega ao jogo do matar e morrer... se-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 51


trada para tentar se alcançar o sucesso pessoal: “Ele mudou demais de uns
tempos para cá/ Cercado de uma pá de tipo estranho/ Que promete pra
ele o mundo dos sonhos/ Ele está diferente não é mais como antes/ Agora
anda armado a todo instante/ Não precisa mais dos aliados/ Negociantes
influentes estão ao seu lado”.64
O mano da porta do bar (que não é ninguém e pode ser qualquer um),
ao ingressar no mundo do crime (tráfico) e ao aceitar a vida de malandro
(conforme um de seus usos/significados possíveis) selou o seu destino: a
vida pacata não poderia ser trocada por outra (considerada mais vantajosa,
materialmente) sem riscos. O final de sua trajetória desemboca no recado
que os rappers querem dar por meio de sua composição: “Ouço um mo-
leque dizer:/ “Mais um cuzão da lista,/ Dois fulanos numa moto, única
pista”/ [...] Já posso imaginar, vou confirmar/ Me aproximei da multidão,
obtive a resposta/ Você viu aquele mano na porta do bar/ Ontem a casa
caiu com uma rajada nas costas...”65
Para esses casos, na área do rap, consolidou-se uma leitura que antevê
para esse tipo de situação apenas duas saídas: a cadeia e/ou a morte. As-
sim, complementando os relatos de “Mano na porta do bar”, os rappers do
Racionais MC’s compuseram “Homem na estrada”66, na qual esmiuçam
as consequências que recaem sobre quem se atira à vida do crime. De ma-
neira semelhante à composição anterior, “Homem na estrada” apresenta a
crônica de uma experiência que é a um só tempo particular e coletiva —
aparenta ter sido vivida por uma pessoa específica, mas, a rigor, se situa no
horizonte de qualquer um dos ouvintes.
“Homem na estrada” enfoca um sujeito que quer reconstruir sua vida,
“provar a si mesmo que realmente mudou/que se recuperou e quer viver em
paz”. Ele está decidido a “não olhar para trás/ dizer ao crime nunca mais”.
Esse homem carrega nas costas as marcas de angústias, aflições, padeci-
mentos (“me digam quem é feliz, quem não se desespera/ vendo nascer seu
filho no berço da miséria”) que o conduziram à senda do crime (“assaltos
nas redondezas levantaram suspeitos/ logo acusaram a favela para variar/ e

duzido pelo poder da arma de fogo e pelo dinheiro do tráfico de drogas”. VIANNA, Letícia.
Sambandido: arte popular na cultura de massa. Anais da XIX Reunião Anual da Anpocs,
Caxambu, 1995, p. 7.
64. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
65. “Mano na porta do bar”, Op. cit.
66. “Homem na estrada”. Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil, Op. cit.

52 - Urdiduras da história
o boato que corre é que esse homem está/ com o seu nome lá, na lista dos
suspeitos”). Enfim, “sua vida/ não foi um mar de rosas, não/ na Febem/
lembranças dolorosas, então”.
A música avança — e em certo sentido inaugura, dada sua circula-
ção e o relativo sucesso obtido quando do seu lançamento — o caminho
dos raps que discursam contra a vida do crime, ainda que talvez em plano
secundário, já que seu ponto crucial é o preconceito contra ex-detentos
e a violência dos grupos de extermínio que agem nas favelas e periferias.
O palco da história se desdobra em cenas de violência de toda ordem, da
estrutural à física:

Equilibrado num barranco/Um cômodo mal acabado e sujo/ Porém, seu


único lar, seu bem e seu refúgio/ Um cheiro horrível de esgoto no quintal/
Por cima ou por baixo, se chover será fatal/ Um pedaço do inferno, aqui é
onde eu estou/ Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou/ Numerou
os barracos, fez uma pá de perguntas/ Logo depois esqueceram, filhas-da-
-puta!/ Acharam uma mina morta e estuprada/ Deviam estar com muita
raiva:/ “Mano, quanta paulada!”/ Estava irreconhecível, o rosto desfigu-
rado/ Deu meia-noite e o corpo ainda estava lá/ Coberto com lençol,
ressecado pelo sol, jogado/ O IML estava só dez horas atrasado.67

A violência estrutural vivenciada pelo personagem/narrador alimenta


desejos de outra vida: “quero que meu filho nem se lembre daqui,/ tenha
uma vida segura/ não quero que ele cresça com um “oitão” na cintura/ e
uma “PT” na cabeça”.68
Essa pregação dos rappers tem por fim incentivar seu público a ficar
longe dos círculos do crime, da malandragem e, consequentemente, da
privação da liberdade. Nas suas palavras, deve-se guardar distância dos “la-
drão e [d]os malandro mais velho”.69 No caso do rap, a forma de encarar
a malandragem foi, portanto, reelaborada. Pudera! O contexto no qual os
rappers se inserem é, por certo, muito diferente daquele dos malandros cujo
“gesto mais íntimo seria avesso ao trabalho”.70
As ideias comunicadas trazem embutidas o intuito de tornar o ouvin-
te um igual (“não me olhe assim/ eu sou igual a você”71), mais um entre
67. “Homem na estrada”, Op. cit.
68. Ibidem.
69. “Fórmula mágica da paz”. Racionais MC’s. LP Sobrevivendo no inferno, Op. cit.
70. VASCONCELOS; SUZUKI JÚNIOR, Op. cit., p. 513.
71. “Fórmula mágica da paz”, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 53


aqueles que saíram vivos (“aqui quem fala é mais um sobrevivente”) de um
ambiente de grandes contradições sociais no qual as experiências dos indi-
víduos eram tensionadas por privações de várias ordens: “Nada de roupa,
nada de carro, sem emprego/ não tem Ibope, não tem rolê sem dinheiro”.
Esse tipo de situação, que muitas vezes empurra parte das pessoas a pro-
curar soluções que passam de uma maneira ou de outra pelo envolvimen-
to — mesmo que indireto — com o mundo do crime (como cantado em
algumas canções), não tem, em regra, saídas individuais, de acordo com
as narrativas dos raps que circularam no Brasil nas últimas décadas. Os
rappers não deixam de inserir nas composições seus comentários críticos
(que funcionam como um aviso) para apontar os equívocos das soluções
imediatistas, incapazes de reverter o quadro de problemas reais e coletivos:
“o que melhorou?/ da função, quem sobrou?/ sei lá, muito velório rolou de
lá pra cá.../ qual a próxima mãe que vai chorar?”72
No fundo, é essa realidade (de “treta, malandragem, mãe angustiada,
filho problemático, famílias destruídas/ fins de semanas trágicos”73) que vai
levar os rappers a valorizar a vida, afastando seu discurso da contempori-
zação com o crime. Não se trata, fundamentalmente, de condenar os en-
volvidos em ações criminosas simplesmente pelas suas práticas, mas, sim,
de exortá-los a não se afundarem nelas, por considerarem que o saldo é
sempre negativo, como o de um dezembro triste relembrado em “Fim de
semana no parque”: “Como se fosse ontem/ Ainda me lembro/ 7 horas, sá-
bado,/ 4 de dezembro/ Uma bala, uma moto/ Com dois imbecis/ Mataram
nosso mano/ Que fazia o morro mais feliz”.74
Os rappers, na verdade, estão “cansado[s] dessa porra/ de toda essa
bobagem”75, daí não se ligarem nela: “Ih, mano, toda mão é a mesma ideia/
Treta, tiro, sangue/ Aí, muda de assunto [...]/ Uma pá de mano preso
chora a solidão/ Uma pá de mano solto sem disposição/ Penhorando por aí
rádio, tênis, calça/ Acende num cachimbo... virou fumaça/ Não é por nada
não, mas, aí, nem me liga, ó/ A minha liberdade eu curto bem melhor.”76
Essa realidade está mapeada em muitas composições que entretêm claro

72. “Fórmula mágica da paz”, Op. cit.


73. “Fim de semana no parque”. Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil, Op. cit.
74. “Fim de semana no parque”, Op. cit.
75. Ibidem.
76. “Fórmula mágica da paz”, Op. cit.

54 - Urdiduras da história
diálogo umas com as outras, estabelecendo uma rede de contatos, relações
e exprimindo uma dada sensibilidade. Ao desaprovar a via do crime os ra-
ppers não estão fazendo coro com os valores hegemônicos nem necessaria-
mente partilhando dos mesmos preceitos morais dominantes na sociedade.
Para eles, repito, o motivo para combater (com palavras) o crime ou se
colocar contra esse tipo de vida se relaciona à percepção de que isso conduz
ao extermínio de seu povo, de seus iguais — na cor, na condição social e/
ou no local de moradia. A questão é abordada em inúmeras composições,
como em “Fórmula mágica da paz”77:

2 de novembro era finados/ Eu parei de frente ao São Luis, do outro lado/


E durante uma meia hora olhei um por um/ E o que todas as senhoras
tinham em comum/ A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela
vida dura/ Colocando flores sobre a sepultura/ [...]/ Assustador é quando
se descobre/ Que tudo deu em nada/ E que só morre pobre/ A gente vive
se matando, irmão, por quê/ [...]/ Descanse o seu gatilho, descanse o seu
gatilho/ Entre no trem da malandragem/ Meu rap é o trilho

Abre-se (ou reforça-se), com isso, um novo entendimento sobre a ma-


landragem, que engloba relações polifônicas e um ou outro exercício bi-
vocal. Aqui, contrariamente ao que foi dito antes, malandragem não rima
com crime. Ser “malandro”, esperto, é sobretudo não se deixar capturar ou
não se entregar às rodas da “malandragem”, entendida no sentido de cele-
bração de um pacto com as práticas criminosas. Ser “malandro”, enfim, é
não virar defunto/presunto.
A questão da malandragem já fora colocada, de maneira esquemática,
nos versos do Facção Central, em especial em “A malandragem toma con-
ta”78. Essa música, situada no mesmo campo de sentidos das outras citadas
páginas atrás, apresenta o malandro inicialmente como alguém vinculado
ao mundo do crime: “Temido na vizinhança, ser o maior dos ladrões/ [...]/
Reconhecido na malandragem/ [...]/ Dezenas de passagens, o terror dos
toca-fitas/ Conhecido e manjado por toda a polícia/ Mas tudo bem, tá
tudo na paz se o suborno tá em dia/ Nem PM, nem Civil, nem Federal,
ninguém embaça/ O mano paga bem/ É bom malandro e tá em casa”.

77. “Fórmula mágica da paz”. Racionais MC’s. CD Ao vivo, s./d.


78. “A malandragem toma conta”. Facção Central. CD Juventude de atitude. São Paulo:
Sky Blue, 1995.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 55


Na longa narrativa do Facção Central a primeira parte parece alimen-
tar a crença de que a “bandidagem”, a “malandragem”, consistiria na saída
viável para a condição de “pobre, outro vitimado”. Entretanto, desmontan-
do essa ideia inicial — que, de acordo com os rappers, é muito comum entre
os jovens pobres, como aquele que “vira a esquina e para em frente uma
vitrine/ se vê, se imagina na vida do crime”79 — o grupo alerta: “se não se
vence honestamente/ no crime pode esquecer/ só polícia na sua vida/ nem
tudo é alegria”.80
Se a dureza da vida “honesta” não alivia o fardo que muitos brasileiros
precisam suportar, ela tem, pelo menos na visão de alguns rappers, o mérito
de afastar — mesmo que não completamente — possíveis destinos trágicos
comuns aos que recorrem a expedientes criminosos. Para o Facção Central,
aquele que “quer ser malandro/ paga o preço”. E avisa: “quer dinheiro, quer
a boa e não se desaponta/ bate no peito, “eu sou malandro, eu sou ladrão”/
e a malandragem toma conta.../ a malandragem toma conta/ se diz que é
malandro, então, segura a bronca”.81
Em seguida, é desfiada a trama de um destino tido como praticamente
certo: “A escolha é sua, depende do seu proceder/ Pois se optou pelo crime/
Sua tendência é morrer”.82 O arremate não deixa muitas dúvidas sobre o
posicionamento dos compositores e é construído em flagrante contraste
com as ideias que, indicam os músicos, seduziam muitas pessoas: aderir ao
crime é “legal no começo/ [garante] dinheiro fácil” e transforma os sujeitos
envolvidos no “número um, o rei da malandragem”. De modo retórico, eles
admitem: “quem nunca quis ter armamentos e trocar com alguém?/ eu sei
que todo pobre quis, inclusive eu também”. Porém, a quase vida criminosa
cumpre, também, a função de criar identificação e validar os argumentos
junto ao público. Feito isso, concluem:

Eu sei do ódio da polícia/ Eu sei de tudo isso/ Mas fui no embalo, me


fodi/ Eu mereci meu destino/ [...]/ Pensei que iria ser fácil/ Mas de que
jeito acabei?/ A malandragem toma conta/ Toma conta, sim/ Veja os de-
tentos nos presídios/ Vejam a merda que eles vivem, enfim/ Todos batiam
no peito e se diziam malandros/ E hoje estão fudidos, estão se acabando/

79. “Mágico de Oz”. Racionais MC’s. LP Sobrevivendo no inferno, Op. cit.


80. “A malandragem toma conta”, Op. cit.
81. Ibidem.
82. Ibidem.

56 - Urdiduras da história
Ou vão pro saco muito antes de qualquer presídio/ [...]/ A malandragem
toma conta e é dessa forma.83

Os desdobramentos dessa história que, no fundo, converte o malandro


em otário são retomados em muitas composições, entre elas “Atrás das
grades”84, na qual a sentença “a vida é foda atrás das grades” é, como um
mantra, repetida dezessete vezes ao longo da gravação. A narrativa, que
começa com um diálogo entre duas pessoas, visa enfatizar que aquele que
se acha o “dono da razão, o rei da malandragem” é, de fato, um “comédia
brava, pertence à classe dos otários”. As atitudes do suposto malandro só
o fazem “merecedor com certeza do prêmio ‘otários do ano’”. É como se
defendessem a ideia de que o malandro de verdade não optaria por uma
vida em que “não existe nada a favor, como é a vida de um presidiário”.85
Desse modo, o sentido geral da composição desafia o senso comum
em torno do malandro no rap. Sob esse aspecto, o mencionado persona-
gem de “A vaga” é concebido como um legítimo malandro que circula pe-
los complexos labirintos da vida social na tentativa de assegurar a satisfação
de suas necessidades básicas de sobrevivência (via trabalho)86, a liberdade
(longe do sistema carcerário) e a vida (sempre em perigo quando se opta
pelo crime). Nunca é demais repetir: tudo isso não significa que os rappers
simplesmente reprovassem o envolvimento das pessoas com procedimen-
tos criminosos ou que as condenassem moralmente por suas escolhas. De
resto, como fica evidente em “Roube quem tem”, “somos contra o crime,/
porém, sabemos da necessidade/ do esquecimento do governo e de sua
parcialidade/ sua revolta tem lógica, até justificativa/ pra gente até cola, só
que não pra polícia”.87
A malandragem, historicamente, conecta-se a uma tradição cultural
há muito instalada na música popular, na qual os sentidos do ser malandro
estiveram sempre em movimento, porém quase sempre associados à ideia
de artimanhas necessárias à sobrevivência. A temática do malandro/malan-
83. Ibidem.
84. “Atrás das grades”. Facção Central. CD Juventude de atitude, Op. cit.
85. Ibidem.
86. Por isso, os rappers do Clãdestinos admitem — em música na qual citam Bezerra da Silva
e sampleiam Chico Buarque, autores que focaram a temática do malandro em suas canções
— que “malandro que é malandro/ também tem que trabalhar”. “Malandro que é malandro”.
Clãdestinos. CD Crônicas do cotidiano, s./ind.
87. “Roube quem tem”. Facção Central, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 57


dragem foi retomada em ensaio de Antonio Candido, “Dialética da malan-
dragem”, no qual ele analisa Memórias de um sargento de milícias, do escritor
Manuel Antônio de Almeida, e lança a hipótese de que a malandragem é
um traço cultural brasileiro. Para Candido, o romance de Almeida é orga-
nizado por um complexo deslocamento entre ordem e desordem, dimen-
são dialética que estrutura o texto e contexto. Segundo seus argumentos, a
“ordem dificilmente imposta e mantida, [é] cercada por todos os lados por
uma desordem vivaz”88, na qual os sujeitos se movimentam “entre o lícito
e o ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro,
porque todos acabam circulando de um para outro”89 com naturalidade. No
seu exercício para entender uma dada figuração da malandragem, o roubo
miúdo, pequenos trabalhos, favores e coisas do tipo é que garantiam a so-
brevivência do malandro, que circulava sempre na fronteira entre a norma e
o desvio.90 No caso dos rappers, romper os limites dessa fronteira é sinal de
que não se dominam adequadamente os códigos da malandragem. Afinal,
como sintetizaram os grupos Realidade Cruel e Guindart 121 em parceria
musical, “malandrão demais/ não sabe o que é malandragem”.91
O ensaio de Antonio Candido, assim como outros que vieram depois,
deu conta de um imaginário da malandragem — pensado principalmente
a partir do Rio de Janeiro — e reafirmou referências básicas para a abor-
dagem do tema. Essas referências colavam ao malandro a vida boêmia, a
malícia, pequenos delitos, estratégias para escapar do trabalho (e da explo-
ração). Para André Bueno, que analisou detidamente o trabalho de Anto-
nio Candido (e também as críticas formuladas ao autor por Roberto Sch-
warz92), esse malandro que se imiscuia entre a ordem e a desordem, “não
88. CANDIDO, Op. cit., p. 82.
89. Ibidem.
90. Sob esse aspecto, é possível operar aproximações entre o rap e o estudo de CANDIDO,
Op. cit. Os rappers, tal qual os personagens analisados pelo crítico (em especial Leonardo
Filho), vivenciam situações que vão da ordem à desordem e, ao que tudo indica, acabam em
sintonia com o “convencionalmente positivo” (p. 77). Apesar disso, a flexibilidade com que
encaram algumas questões (colocam-se contra o crime, mas, ao mesmo tempo, sabem da sua
necessidade) indica que o rap — como o livro de Manuel Antônio de Almeida, conforme a
leitura de Antonio Candido — “não exprime uma visão de classe dominante” (p. 87).
91. “De maior”. Guindart 121 e Realidade Cruel. Faixa avulsa, s./d.
92. Ver SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem.
In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Outro trabalho que submete
o ensaio de Antonio Candido a considerações críticas, dando continuidade à sua interpreta-
ção e propondo exame de dimensões até então não exploradas em Memórias de um sargento

58 - Urdiduras da história
dribla apenas o patrão, mas também dá voltas nos seus iguais, em origem e
posição social, marcando com isso o mundo da malandragem como com-
petição entre os de baixo, sem nenhum horizonte de superação da injustiça
social no seu conjunto”.93
A proposição dos rappers, ao que parece, realiza — ao menos em par-
te — alguns desvios em relação a esse malandro. O rap, ao propor artima-
nhas “pro meu povo se manter vivo”94 (nem que para isso seja necessário
“abaixar o revólver, procurar um trabalho”95) como uma atitude malan-
dra, inscreve a malandragem fora dos limites estritamente individuais e
se abre à valorização de um ethos coletivo. No lugar de competição entre
os de baixo, estimula-se a solidariedade. O que os rappers fizeram foi re-
definir as astúcias a serem empregadas, o que implica uma metamorfose
significativa na imagem do malandro. Indícios disso podem ser identifi-
cados em uma música do Facção Central que é, basicamente, uma “carta”
de apresentação ou de intenções assentada nos valores que passaram a
aparecer, aqui e ali, com mais ou menos força, na produção musical de
vários rappers: “Nós valorizamos nossas vidas, isso sim/ E não queremos
ser iguais aos marginais, enfim/ Queremos ver nossas famílias numa boa,
bem decente/ Ver a polícia nos tratando como gente/ Nos importamos
com o futuro e com os nossos manos/ Nos dói na alma quando vemos eles
se acabando/ [...]/ E a distância da polícia é a saída, é arma nossa/ [...]/
Bem honrados e humildes da cabeça aos pés.”96
Atuando, portanto, em uma rede polifônica de comunicação (indireta,
via música), os rappers vão reconfigurando novos sentidos para a malandra-
gem/ malandro, algo que já estava em circulação (pelo menos no âmbito do
rap) desde o início dos anos 1990. Nesse passo, vai se apagando a ideia do
malandro como ladrão, traficante, bandido, enfim, de sujeito ligado à vida
do crime — tão alardeado em muitos raps. O malandro positivado é aquele
que consegue trilhar outros caminhos, não definidos a priori, mas que le-

de milícias, é o de OTSUKA, Edu Teruki. Era no tempo do rei: a dimensão sombria da


malandragem e a atualidade das Memórias de um sargento de milícias. Tese (Doutorado em
Literatura Brasileira) — Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2005.
93. BUENO, Op. cit., p. 65.
94. “Versos sangrentos”. Facção Central. CD Versos sangrentos. São Paulo: Sky Blue, 1999.
95. Ibidem.
96. “Somos assim”. Facção Central. CD Juventude de atitude, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 59


vam em conta que “o crime é dor na delegacia/ choque, solidão, agonia”.97
Isso é sintetizado na sentença que fecha a composição “Fórmula mágica da
paz”: “hoje posso compreender/ que malandragem de verdade/ é viver”.98
Thaíde, na sua condição de respeitável rapper brasileiro, integrante
desse universo desde os anos 1980, também toma para si a responsabi-
lidade de engrossar esse coro. Foi o que fez ao lançar, em pleno 2014, o
videoclipe da canção “Malandragem é viver”99, cujos fios se interligam com
outras composições, inclusive de sua autoria. Afinal, quando os Racionais
MC’s defendiam a ideia de que “malandragem de verdade/ é viver”, ele já
contribuía para o debate em torno do assunto com sua “Malandragem dá
um tempo”.100 No clipe, Thaíde revisita argumentos daquela época, destaca
outros e, em total sintonia com tudo que mostrei até aqui, apresenta um
quadro desolador para quem adere ao crime: “sempre o mesmo final/ nunca
vejo vantagem/ se não ganha a morte/ perde a liberdade”.101
Como se vê, essas reelaborações de sentido acabaram por escrever um
novo capítulo sobre a história do malandro/malandragem102 no contexto
histórico das últimas décadas. Outras chaves de leitura e outros significa-
dos são reafirmados: “Sai dessa ideia de matar ou morrer/ É o que eu tenho
a dizer/ Você tem que entender/ Malandragem é viver/ Malandragem é

97. “Apologia ao crime”. Facção Central. CD A marcha fúnebre prossegue. São Paulo:
Discoll Box, 2001.
98. “Fórmula mágica da paz”, Op. cit.
99. Malandragem é viver. Thaíde (part. Pump Killa). Direção: Marco Matheus, Cesar Span-
della e Pietro Santurbano. Brasil: Coletivo Benzin, 2014 (son., color.).
100. “Malandragem dá um tempo”. Thaíde e DJ Hum. CD Preste atenção. São Paulo:
Eldorado, 1996.
101. Malandragem é viver, Op. cit.
102. Fazem parte desse processo composições como “Boba malandragem”. Radicais MC’s.
Col. Legião do rap. Goiânia: Star Music, s./d., “Mais malandro”. Mente Consciente. CD
Esperança e humildade. Brasília: s./ind., 2006, “Poesia de malandro”. Mente Consciente,
Op. cit., “Vila beneficiada”. Condenação Brutal. CD Desarmados e perigosos. São Pau-
lo: Sky Blue, 2003, “Super Star da malandragem”. Cirurgia Moral. CD Coroa você vive,
cara você morre. Brasília: Discovery, 2000, “Malandro demais”. Nill. CD Mandando bom
som. São Paulo: V. P. Produções, 2000, “Malandragem é viver”. Raciocinar Rap. CD
Pra onde é que vou? Brasília: VGC Produções, s./d., “A verdadeira malandragem”. Gog.
CD Das trevas à luz. São Paulo: Zâmbia, 1998, “Bom malandro”. Z’África Brasil. CD
Tem cor age. São Paulo: YB Music, 2006, “Mais que malandragem”. Kiko Santana. CD
Raça. São Paulo: Pata de Monstro Produções, s./d., “Não seja malandro demais”. Renatim.
Goiânia: s./d. (independente).

60 - Urdiduras da história
viver/ Malandragem é viver/ Malandragem é viver”.103 Convém frisar que
na ação desses rappers entra em operação uma tática malandra: a aparente
submissão. O lugar ocupado pelos rappers na dinâmica social (na grande
maioria das vezes) não é o de reprodutores do discurso oficial ou dos valo-
res hegemônicos. Como procurei evidenciar, eles aceitam, até certo ponto,
e se apropriam de determinados valores e normas vigentes que crimina-
lizam umas tantas práticas por enxergarem nisso um meio para diminuir
a possibilidade da perda (morte) ou da distância (prisão) como horizonte
para seus iguais.
Nessa ótica, o malandro precisa sobreviver à miséria, à injustiça social
ou ao descaso do governo sem virar bandido. Para tanto, deve fazer uso
de sua esperteza não só para enfrentar seus problemas (uma possível con-
dição de miserabilidade, desejos de consumo não satisfeitos ou urgências
cotidianas de qualquer ordem), mas, sobretudo, para manter-se distante de
caminhos considerados impróprios, por acarretarem mais perdas do que
ganhos. Matinas Suzuki e Gilberto Vasconcelos já chamaram a atenção
para o fato de que isso se manifestou no repertório dos sambistas das pri-
meiras décadas do século XX: “Saber (sobre)viver: a dissimulação, o fingir,
estratégias para uma vida melhor na sociedade adversa – contra a qual não
adianta medir forças em um confronto direto; [...] o malandro [n]um apa-
rente aceitar das regras instituídas [cria] uma maneira do excluído conviver
com o excludente”.104
Transitando por percursos acidentados, confrontados com a ordem/
desordem vigente, os rappers, no caso, não querem continuar a ser a caça do
caçador. Nada disso, porém, os leva a abandonar posicionamentos críticos
ante as contradições do desigual mundo capitalista que continua a vitimar
os seus “manos”/“minas” nas muitas esferas da vida social.

Fontes

Carandiru. Direção: Hector Babenco. Brasil: Sony Pictures, 2003, 1 DVD


(son., color.).

Clãdestinos. CD Crônicas do cotidiano, s./ind.

103. Malandragem é viver, Op. cit.


104. VASCONCELOS; SUZUKI JÚNIOR, Op. cit., p. 520.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 61


“Detento” Mano Brown filma no Carandiru. Fernando Oliva. Folha de S.
Paulo, 29 jan. 1998.

Facção Central. CD Juventude de atitude. São Paulo: Sky Blue, 1995.

Facção Central. CD Versos sangrentos. São Paulo: Sky Blue, 1999.

Facção Central. CD A marcha fúnebre prossegue. São Paulo: Discoll


Box, 2001.

Malandragem é viver. Thaíde (part. Pump Killa). Direção: Marco Ma-


theus, Cesar Spandella e Pietro Santurbano. Brasil: Coletivo Benzin, 2014
(son., color.).

Racionais MC’s. CD Ao vivo, s./d.

Racionais MC’s. LP Raio X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe, 1993.

Racionais MC’s. LP Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra,


1997.

Racionais MC’s. CD Nada como um dia após o outro dia. São Paulo:
Cosa Nostra, 2002.

RapBox, ep. 52: trocando ideia com Z’África Brasil, s./d.

Rodrigo Ogi. CD Crônicas da cidade cinza. São Paulo: 2011 (indepen-


dente).

SANTORO, Claudio Raffaello. Trajetória de um guerreiro: história do


DJ Raffa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.

Thaíde e DJ Hum. CD Preste atenção. São Paulo: Eldorado, 1996.

VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Le-


tras, 1999.

62 - Urdiduras da história
Referências

AZEVEDO, Amailton Magno. No ritmo do rap: música, cotidiano e


sociabilidade negra — São Paulo, 1980-1997. Dissertação (Mestrado em
História) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2000.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Ja-


neiro: Forense-Universitária, 1981.

BRAIT, Beth. Problemas da poética de Dostoiévski e estudos da lingua-


gem. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Pau-
lo: Contexto, 2012.

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto


de Estudos Brasileiros da USP, São Paulo, n. 8, 1970.

CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura po-


pular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociolo-


gia dos dilemas brasileiros. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.

FIORIN, José Luiz. O romance e a simulação do funcionamento real do


discurso. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do senti-
do. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

GARCIA, Allysson Fernandes. Lutas por reconhecimento e ampliação


da esfera pública negra: cultura hip hop em Goiânia — 1983-2006. Dis-
sertação (Mestrado em História) — Universidade Federal de Goiás, Goiâ-
nia, 2007.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São


Paulo: Companhia das Letras, 1989.

OTSUKA, Edu Teruki. Era no tempo do rei: a dimensão sombria da ma-


landragem e a atualidade das Memórias de um sargento de milícias. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Filosofia e Ciências

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 63


Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado


Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015.

PARANHOS, Adalberto. Vozes cruzadas: dialogismo e política na música


popular em tempos de ditadura. Anais do VI Congresso da IASPM-AL
(seção latino-americana da International Association for the Study of Po-
pular Music) — Música popular, exclusión/inclusión social y subjetividad
en América Latina, Buenos Aires, ago. 2005.

SALLES, Ecio. Poesia revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da ma-


landragem. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

VASCONCELOS, Gilberto; SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandra-


gem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.).
O Brasil republicano, tomo III: Economia e cultura (1930-1964). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

VIANNA, Letícia. Sambandido: arte popular na cultura de massa. Anais


da XIX Reunião Anual da Anpocs, Caxambu, 1995.

64 - Urdiduras da história
Trajetória de pesquisa: os leitores de TEX e as
performances culturais

Aline Ferreira Antunes

O presente capítulo de livro foi pensado a partir da relação entre


cultura, os sujeitos sociais e seu lugar no mundo do ponto de vista das
Performances Culturais. As reflexões aqui apresentadas são fruto de uma
trajetória acadêmica que se estende desde a graduação em História na
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestrado também na mes-
ma universidade, no campo de História Cultural, e doutorado em Perfor-
mances Culturais na Universidade Federal de Goiás (UFG).
O objeto desta pesquisa foi o personagem de Histórias em Quadri-
nhos (HQs) Tex Willer (figura1), das revistas TEX, produzidas na Itália
desde 1948 por Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Galleppini, responsa-
bilidades da atual editora Sergio Bonelli (SBE) e, no Brasil, republicados
pela Mythos Editora.
O objetivo geral que perpassou todas as pesquisas desenvolvidas
relacionas ao personagem era utilizar estas HQs como fontes, tanto na
História, quanto nas Performances Culturais. Apresento aqui, portanto,
traços e considerações a respeito dessas pesquisas, bem como as conclu-
sões da tese desenvolvida em Performances Culturais, dando destaque à
performance dos leitores.
Figura 1 – da esquerda para a direita: Kit Willer, Tex Willer, Jack Tigre e Kit
Carson.

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/55380270402859931/. Acesso em: 12 set.


2019.

A figura 1 representa os quatro pards1 sobrepostos ao Monument Val-


ley, nos Estados Unidos. Os desenhos são feitos por Galep, com as cores e
vestimentas características dos quatro, com destaque ao personagem prin-
cipal: Tex Willer.

HQs e História

As Histórias em Quadrinhos são objeto de pesquisa em muitos tra-


balhos de graduação e pós-graduações em áreas como linguagens, co-
municação e também na História. “No que se relaciona com o ensino
superior, a exclusão dos quadrinhos, ocorreu durante muito tempo, em
função de sua presumida falta de importância como objeto de estudo aca-
dêmico”2. Hoje, há uma infinita gama de pesquisas, permitindo diversas
abordagens metodológicas e teóricas, aproximações entre áreas e leituras
específicas, bem como problematizações que contribuem para aumentar
as pesquisas na área.

1. Termo cunhado por Bonelli para referir-se aos quatro parceiros de aventura e posterior-
mente apropriado pelos fãs para autodenominarem-se.
2. VERGUEIRO, W. C. S. Pesquisa acadêmica em histórias em quadrinhos. São Paulo:
Criativo, 2017, p. 6.

66 - Urdiduras da história
Em minha trajetória acadêmica, um dos resultados apontados diz res-
peito à forte influência que o cinema exerce nas HQs Bonellianas.

O cinema foi para os quadrinhos uma referência fundamental (ao menos


a partir de um certo momento de sua história) e, [...] apesar desse ‘anseio’
de semelhança por parte dos quadrinhos, as duas linguagens têm algumas
características básicas fundamentalmente diversas.3

Uma vez que TEX é propriamente um gibi de faroeste, suas maiores


influências são o cinema hollywoodiano, mas também os spaghetti wester-
ns. São filmes de John Ford e de Sergio Leone que são “transplantados”, a
partir da releitura dos autores, para as páginas preto e brancas do nanquim.
Os gibis TEX são ricos em representações gráficas, balões, presen-
ça de narrador, onomatopeias, expressões, closes e planos abertos, o que
permite muitas análises das revistas, sobretudo tendo em vista a quanti-
dade expressiva de publicações (várias coleções distribuídas ao longo de
mais de 70 anos de produção tanto na Itália, quanto no Brasil – um dos
maiores mercados consumidores da revista). Apesar das diversas possibi-
lidades de análise, é na relação entre história, cinema e quadrinhos, que
esta pesquisa floresceu.

O século XX foi marcado por dois grandes meios de comunicação: o


cinema e as histórias em quadrinhos. [...] Um exerceu sobre o outro, in-
fluências significativas que envolveram desde o aproveitamento de per-
sonagens e temáticas até a incorporação ou desenvolvimento de técnicas
específicas de linguagem.4

Tais diálogos e influências foram parte da pesquisa doutoral desenvol-


vida na UFG, pois permitem compreender a performance dos quadrinhos
a partir de um estreito relacionamento com o cinema, tomando ambas as
artes como parte de uma cultura híbrida5 e que é convergente6.
A trajetória da pesquisa proporcionou a transição e o trânsito entre
áreas como História, Comunicação e Performances Culturais. O próprio

3. BARBIERI, D. As linguagens dos quadrinhos. São Paulo: Peirópolis, 2017, p. 213.


4. VERGUEIRO, Op. cit., p. 44.
5. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EdUSP), 2019.
6. JENKINS, Henri. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2015.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 67


gibi é um produto cultural híbrido, complexo e mesclado, o que possibilita
ser abordado por ângulos diferentes. Foi a própria estrutura e história dos
gibis bonellianos que propiciaram uma trajetória de pesquisa que nasce na
História, mas se alonga pelas Performances Culturais.

HQs e Performances Culturais

Performances culturais foi usada em 1955 por Milton Singer como


uma proposta metodológica interdisciplinar de

estudo comparativo das civilizações e suas múltiplas determinações con-


cretas, estabelecimento do processo de desenvolvimento destas e de suas
possíveis contaminações, entendimento das culturas através de seus pro-
dutos ‘culturais’ em sua profusa diversidade.7

Nesse sentido, as performances são sempre plurais, são formas simbó-


licas que atravessam diversas manifestações culturais8, que se apresentam
nas relações humanas e nas vivências. Os fãs de TEX, por exemplo, per-
formam à medida que se reúnem enquanto grupo, que postam, que inte-
ragem, que possuem características que os unem mesmo estando em dife-
rentes regiões do Brasil, porém unidos por gostos comuns (pelo faroeste,
pelo ranger, pelos quadrinhos preto e branco). É por meio da performance
destes leitores que percebemos como TEX é um campo híbrido, plural e
polissêmico.
Em TEX, é possível fazer leituras metodológicas e teóricas à luz das
performances a partir de diversas lentes, que nos permitem tanto interpre-
tar e tecer leituras a respeito dos gibis quanto dos personagens, como, por
exemplo, pensar os roteiristas e desenhistas, os leitores e como interpretam
as HQs a partir de seu próprio mundo simbólico.
Para Schechener, performar é “explorar, jogar, experimentar com os
novos relacionamentos. [...] é atravessar fronteiras. Essas fronteiras não
são apenas geográficas, mas emocionais, ideológicas, políticas e pessoais.

7. CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as Performances Culturais: Um


conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. 2013. Califórnia State University.
Disponível em: http://web.calstatela.edu/misc/karpa/KARPA6.1/Site%20Folder/KAR-
PA6.1.html. Acesso em: 18 jul. 2019, p. 2.
8. Ibidem, p. 4.

68 - Urdiduras da história
[...]”9. Nesse sentido, foi necessário mergulhar no universo texiano para
compreender as leituras e performances que os fãs/leitores têm da revista.
Para leitores assíduos de TEX, é fácil identificar imediatamente a pro-
blemática da revista, o assunto principal e imaginar inclusive desfechos
possíveis. Em geral, as aventuras cumprem um ciclo10. Começam de ma-
neira tranquila e, aos poucos, a problemática é apresentada e o ritmo dos
quadrinhos é acelerado, sobretudo quando há cenas de ação (cavalgada,
tiroteio, perseguições, duelos).
Após uma série de investigações, os rangers conseguem desvendar o
mistério, cumprir com suas obrigações, e retornam, ou para o comando de
rangers aonde irão se apresentar para uma nova aventura, ou para a aldeia
Navajo11, onde poderão descansar até o próximo problema surgir.
Porém, para leitores novos, adaptar-se à leitura pode ser um desafio, a
começar pela característica principal das revistas: preto e branco. A leitura
de aventuras somente no nanquim pode não ser um atrativo a um primeiro
olhar. Além disso, a temática já não é mais tão procurada (faroeste) e, por
último, um fator que muito compromete o futuro da revista e a conquista
por novos leitores é o preço e a acessibilidade destas. Com o fechamento de
bancas de jornal e revistas e com a falência de editoras clássicas, está cada
vez mais competitivo e restrito o mercado de HQs de TEX. Em diversos
momentos, a Mythos Editora publicou notas de esclarecimento aos leito-
res retratando os problemas de transporte, edição e distribuição.

9. SCHECHENER, Richard. Podemos ser o (novo) Terceiro Mundo? Revista Sociedade e


Estado. v. 29, n. 03, set.-dez., 2014, p. 720.
10. Aqui faço referência ao ciclo do herói apresentado por Joseph Campbell - CAMPBELL,
Joseph. A saga do herói. São Paulo: Editora Ágora, 1990.
11. Tex Willer é ranger, mas também é o chefe branco dos Navajos, pois se casou com Lilyth
(Lírio Branco), filha do chefe da tribo. Com a morte do pai de Lilyth, Tex assumiu, receben-
do o nome indígena de Águia da Noite.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 69


Figura 2: organograma das narrativas

Fonte: elaborado pela autora.

Conforme pode ser observado no organograma (figura 2), as narrati-


vas começam de um ponto de tranquilidade (geralmente com os rangers
na aldeia ou em um saloon, uma cavalgada), em seguida a problemática é
apresentada e são colocados dentro do problema. Nesse ponto, passam a
investigar, procurar informações e solucionar os problemas, culminando
com os inimigos ou mortos ou presos. Para fechar o ciclo, retornam ao
ponto de partida criando uma atmosfera de catarse nos leitores.
São esses quem interpretam as histórias e, em se tratando de quadri-
nhos, há uma exigência grande de conhecimento de mundo desses leitores
para conseguirem estabelecer as relações entre os quadrinhos, pois as sar-
jetas são preenchidas por eles. É o não dito, que nem sempre está direta-
mente representado, que precisa ser interpretado. É uma arte sequenciada
e não splashpage (onde estão representados todos os movimentos do perso-
nagem), e precisa ser tratada e analisada como tal.
No quadrinho abaixo (figura 3), observamos um exemplo de cena sim-
bólica em TEX de alternância entre plano e contra plano demonstrando o
preenchimento do entre-lugar (a sarjeta) que é feito pelos leitores:

70 - Urdiduras da história
Figura 3 – sequência de uma narrativa

Fonte: A PROVA DE FOGO, 2011. p. 187.12

12. RUJU; SEIJAS. À prova de fogo. São Paulo: Mythos, 2011.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 71


Em A prova de fogo13 temos dois personagens que eram parceiros de
crime: um branco (a cavalo) e um indígena (no chão, escorado em uma pe-
dra). Este, após muita tentativa de fuga, não consegue e é perseguido pelo
comparsa que ao encontrá-lo se apodera das informações sobre o paradeiro
do roubo e o deixa para morrer, não cumprindo o combinado de “aliviar o
sofrimento” do indígena.
Aqui, o leitor precisa compreender que “aliviar o sofrimento” significa
um tiro de misericórdia, ou seja, matar o parceiro para acelerar a morte
inevitável e para que não haja sofrimento no processo. Porém, apesar do
combinado, o cowboy não cumpre sua parte.
A alternância de planos mostra o indígena suplicando, inclusive com
um close no rosto, em contraposição ao parceiro indo embora (representa-
do pela poeira levantada pelo cavalo) e outro close: “eu menti”. O último
quadrinho só conta com desenhos e onomatopeia do barulho dos urubus
que se aproximam para dar fim ao indígena com uma morte lenta e dolo-
rosa (ser comido por abutres).
O quadrinho exige muito de quem lê. Enquanto arte sequencial exige
imaginação para completar o fluxo narrativo. Nesse sentido, o elemento
performático mais forte é na atuação do leitor e não no próprio desenho ou
na própria narrativa. A performance se mostra além da representação grá-
fica, ela se aproxima mais da existência real, está na leitura e interpretação.
Nessa sequência em especial, caso o leitor não esteja habituado às
leituras de quadrinhos de faroeste, não conseguirá tecer essas relações, in-
terpretar a narrativa. É preciso também um conhecimento de vocabulário
e do ambiente (o Oeste) para se entender o que significa uma morte lenta
por abutres e o que significa um tiro de misericórdia (muito utilizado nas
revistas para matar cavalos que quebram a pata em alguma cavalgada, por
exemplo).
É preciso compreender que o último quadrinho, retratando somente
um amontoado de abutres, representa a morte lenta e dolorosa do indígena
no chão. A presença deles, em círculos, anuncia a morte do criminoso. “A
leitura de um texto é a performance – ou o ato, a ação – por parte do leitor
ao ler, como um ato que lhe confere a capacidade, sendo de sua vontade, de

13. Publicada no Brasil em julho de 2011 pela Mythos na coleção Almanaque, número 42.
Originalmente publicada em 598/599 na Itália em agosto-setembro de 2010, por Ruju (ar-
gumento/roteiro) e Seijas (desenho).

72 - Urdiduras da história
inferir e extrair sentido das ações performáticas dos personagens.”14
O leitor performa na leitura e na devolução desta leitura, quando faz
cosplays, a revista é performática na medida em que é representada por lei-
turas dos desenhistas e roteiristas de um país que não é o deles (EUA), que
os torna também performers de um mundo representado e reforçado por
leituras feitas principalmente do cinema hollywoodiano.

[...] para se efetivar uma leitura, qualquer leitor tem que escolher iniciar
uma performance: a de ler. E ao fazê-lo, ele é capaz de se deslocar de
seu próprio mundo para o mundo ficcional estabelecido nas histórias em
quadrinhos, procedendo assim o processo de transporte e imergir naquele
mundo ficcional, porém recriado aos moldes do mundo real. Ao se sub-
meter, ainda que de forma inconsciente ao processo de transporte através
do exercício da leitura, o leitor pode ser instigado, inclusive a se enxergar
em um personagem da trama, sem com isso deixar de ser a si mesmo15.

Os leitores...

Na tese, mergulhei no universo texiano por meio de três fontes


principais que relacionavam os leitores e os quadrinhos (para além das
próprias revistas): as cartas escritas por fãs de vários estados do Brasil e
enviadas à editora, posteriormente selecionadas e publicadas em algumas
revistas; as entrevistas concedidas ao Tex Willer Blog; as postagens em
grupos (fechados e abertos) dedicados ao ranger nas duas maiores redes
sociais (Facebook e Instagram); e, por fim, os cosplays de fãs brasileiros.
Nas entrevistas, a maior parte dos entrevistados eram brasileiros ou por-
tugueses, concentrados nas regiões sul e sudeste do Brasil, homens, adul-
tos (entre os 40 e 60 anos, em sua maioria).
Apesar de os leitores/fãs serem vistos como um grupo coeso ou até
mesmo unificado, compartilho da ideia de Hall de que “[...] as identi-
dades não são nunca unificadas”16. Pode parecer um grupo homogêneo,
14. RAMOS, Rubem Borges Teixeira. Com grandes poderes, vêm grandes responsabi-
lidades: um estudo etnometodológico sobre o leitor e a leitura de histórias em quadrinhos
de super-heróis da Marvel e da DC Comics. 2017. 255f. Tese (Doutorado em Ciências da
Informação) - Escola de Ciência da Informação, Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, p. 59.
15. Ibidem, p. 65-66.
16. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da.; HALL,
Stuart; WOODWARD, Kathryn. (Org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 108.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 73


porém as cartas e entrevistas trazem à tona posturas não tão coesas. Nas
cartas publicadas pela editora, muitas vezes apareciam falas contrastantes,
mostrando que a revista ora agradava e ora desagradava, pelo mesmo mo-
tivo. A exemplo disto, temos as cartas publicadas na revista TEX Coleção
Grand Canyon.
Para F.C.S.J., “Embora goste muito de TEX, vou fazer uma crítica:
as histórias de bruxos deviam ser extintas, porque elas só atrapalham o
andamento da revista. Eu, por exemplo, só gosto de TEX quando não há
histórias de terror”17. Por outro lado, o fã I.P.S.A. traz uma fala totalmen-
te antagônica à da outra carta: “Continuem editando histórias de bruxos
como: Mefisto, Yama, etc, pois é sempre bom variar as histórias”18.
Apesar das falas contrastantes, as cartas revelam um carinho grande
dos fãs pelo ranger, pelos criadores e pelo gênero literário, mas também
uma vontade de se reunirem em pequenos grupos, em comunidades para
trocarem revistas, compartilharem informações, desejos e combinarem en-
contros presenciais.

Os fãs, que se autodenominam texianos, tesimaníacos ou pards (fazendo


alusão ao termo cunhado por Bonelli para os companheiros do ranger),
têm aproximadamente entre 30 e 60 anos, as mais diversas profissões, mas
em sua maioria são do sexo masculino. Por meio de seus escritos é possível
perceber também diálogos estabelecidos com outras produções da mesma
época, como Disney (tio patinhas), Zorro, Batman, Fantasma, Tarzan. A
face humana de Tex desperta muito interesse dos fãs que à época tinham
acesso muito mais a super-heróis (Marvel/DC). Essa paixão pelo gibi nas-
ce também de uma necessidade de ver uma aproximação maior consigo
mesmo e com outras produções da mesma época (sobretudo as de super-
-heróis, muito marcadas pela Guerra Fria e o pós 2ª Guerra Mundial).
Segundo Elizabeth Leake (2018), Tex se tornou um modelo do novo
homem italiano no pós-guerra e aos poucos tornou-se não só um perso-
nagem reconhecido na cultura popular italiana, mas também protagonista
de uma epopeia contemporânea significativa e longeva19.

17. BONELLI, G. L.; GALLEPPINI, A. Tex Coleção Grand Canyon. São Paulo: Vecchi,
ano XI, n. 130, set. 1981, p. 145.
18. Ibidem.
19. ANTUNES, Aline Ferreira. Tex, um mundo de sensibilidades e imaginários. 188f.
Tese (Doutorado em Performances Culturais) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia,
2022. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/11989/3/Tese%20
-%20Aline%20Ferreira%20Antunes%20-%202022.pdf. Acesso em: 30 set. 2022, p. 142.

74 - Urdiduras da história
Outra forma de demonstrar apreço pelo personagem, de maneira bem
explícita, é a tatuagem corporal, além das cartas, homenagens, postagens e
cosplays. Alguns fãs de Tex fazem homenagens tatuando ou o personagem
ou até mesmo releituras do personagem, como é o caso do fã que fez uma
de Tex e Edibar (personagem criado em 2001 pelo cartunista Lúcio Oli-
veira com várias publicações fazendo crossover com o ranger).

Figura 4 – tatuagem de um fã em homenagem à Tex e Edibar

Fonte: printscreen da página no Facebook Tex Willer-Águia da noite, arquivo


pessoal da autora.

A performance em TEX aparece principalmente a partir dos fãs. São


as leituras, releituras e devolutivas destes texianos maníacos (como se au-
todenominam) que permitiram e permitem análises sobre a performance,
a cultura, o imaginário, as sensibilidades e vivências que rodeiam esses fãs
brasileiros.
Para além disso, temos também os cosplays em homenagem aos per-
sonagens da revista. A maior quantidade é dedicada a Tex Willer, mas

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 75


também encontramos de Kit Willer, Kit Carson, Jack Tigre e até mesmo
Lírio Branco, trazendo um pouco da presença feminina.
“Os cosplays extrapolam somente as leituras, se apresentam como uma
releitura do próprio personagem à medida que fãs se travestem de seus
personagens preferidos ou que se identificam mais”20. Os cosplays permi-
tem pertencer. Proporcionam aos fãs a ideia de pertencimento a um gru-
po. Acredito que o cosplay seja o ponto ápice da demonstração de apreço
do leitor/fã pelo personagem, pois é o que permite travestir-se, ser como
o ranger, identificar-se como ele e pertencer a um grupo de pessoas que
também querem sê-lo, agir como ele. Para além da tatuagem, o cosplay é a
personificação do personagem.
Esse sentimento de pertencimento, de identificação a uma cultura que
não é brasileira (pois remota à representação de um faroeste longínquo re-
tratado nos filmes e replicado nas HQs italianas), demonstra a convergên-
cia cultural de produtos como o cinema, os romances e novelas de faroeste,
as HQS. É essa convergência de culturas híbridas que proporcionam a
fãs do Brasil todo manifestarem-se em redes sociais, agruparem-se seja
virtual, seja presencialmente, fazerem cosplays do personagem e até mesmo
tatuarem a pele, personificando Tex (e o que ele representa) em si mesmo.

Considerações finais

Mesmo com as idas e vindas da pesquisa com os quadrinhos bonel-


lianos de Tex Willer, o trabalho sempre esteve pautado na cultura, vista
como um

conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para ex-


plicar o mundo [...] uma forma de expressão e tradução da realidade que
se traduz de forma simbólica, ou seja, admite-se os sentidos conferidos às
palavras, às coisas, às ações aos atores sociais21.

Apesar da necessidade de distanciar a pesquisadora do objeto de pes-


quisa, a fã e da pesquisadora, da necessidade de ter um distanciamento

20. Ibidem, p. 157.


21. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2012, p. 8.

76 - Urdiduras da história
crítico em relação ao objeto de pesquisa22, é somente a partir da subjeti-
vidade da fã e pesquisadora que esse acúmulo de anos de pesquisa com
quadrinhos foi possível. Nessas páginas estão presentes a subjetividade, as
sensibilidades do mundo Texiano e também a leitura crítica. Tal capítulo
de livro aborda não só a trajetória de pesquisa da historiadora, que passeia
pela história cultural, pelas performances, mas também da própria revista,
do personagem e das possibilidades de pesquisas com quadrinhos.

Figura 5 – visita técnica à SBE, em Milão, 2014. Na foto, Mauro Boselli, atual
responsável por TEX.

Fonte: arquivo pessoal da autora.

Foi a partir de um mergulho no universo texiano e Bonelliano que esta


pesquisa se fez possível. Foi participando de grupos de Facebook, Instagram
e Whatsapp, de congressos presenciais e fazendo visitas técnicas que con-
segui levantar informações, dados, fazer contatos e ter acesso a inúmeras
fontes. Foi em conversas informais com os fãs de Tex que pude fazer par-
cerias, compreender o mundo simbólico dos pards brasileiros.
Há uma predominância masculina entre os fãs de TEX que muitas
22. VERGUEIRO, Op. cit., p. 132.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 77


vezes demonstram um saudosismo de uma masculinidade em decadência23.
E isto era o primeiro estranhamento dos fãs que sempre questionavam: por
que uma mulher pesquisa Tex? Esta pergunta foi frequente tanto no Brasil
quanto na Itália, quando visitei a editora em Milão em 2014 (figura 5).
Mesmo que o público texiano seja predominantemente masculino e
heteronormativo, isso não foi impedimento para o desenvolvimento da
pesquisa, que se estendeu de 2012 a 2022.
Que mais pesquisas com quadrinhos sejam publicadas, seja tecendo
relações entre cinema e a 9ª arte, seja a partir das temáticas (formato, abor-
dagem, impacto social, produções, uso em sala de aula, recursos didáticos,
etc.), seja a partir das técnicas (semiótica, signos, imagem, texto, cores,
encadeamentos, vinhetas, sequências, etc.), seja pela análise do discurso,
ou literária, ou histórica.
Partindo da história cultural e culminando nas performances, as pes-
quisas com quadrinhos bonellianos significaram entender as formas sim-
bólicas e as representações, as vivências e os simbolismos, o afeto pela obra,
pelos fãs. “Estudar as performances culturais significa entender as formas
de sua imersão e atuação neste universo simbólico e, muitas vezes, memo-
rial dos seres humanos”24.

Referências

ANTUNES, Aline Ferreira. A construção da masculinidade de Tex Wil-


ler. Caderno Espaço Feminino. v. 31, n. 2, 2018. Disponível em: https://
seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/39625. Acesso em: 18 ago.
2019.

ANTUNES, Aline Ferreira. Pesquisa com HQs: como começar? Londri-


23. ANTUNES, Aline Ferreira. A construção da masculinidade de Tex Willer. Cader-
no Espaço Feminino. v. 31, n. 2, 2018. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/
neguem/article/view/39625. Acesso em: 18 ago. 2019; VIGARELLO, Georges. Histó-
ria da virilidade. A virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013;
SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo–e é corpo homem. Discursos sobre masculinida-
des na Bíblia, na literatura e em grupos de homens. In: STRÖHER, Marga J.; DEIFELT,
Wanda; MUSSKOPF, André S. (Org.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeida-
de. São Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004.
24. SANTOS, Nádia Maria Weber; CAMARGO, Robson Corrêa de. (Org.). Performan-
ces culturais: memórias e sensibilidades – v. I. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019. Disponí-
vel em: https://www.editorafi.org/741performances. Acesso em: 30 set. 2022, p. 16.

78 - Urdiduras da história
na, PR: Thoth, 2021.

ANTUNES, Aline Ferreira. Tex, um mundo de sensibilidades e imagi-


nários. 188f. Tese (Doutorado em Performances Culturais) – Universida-
de Federal de Goiás. Goiânia, 2022. Disponível em: https://repositorio.
bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/11989/3/Tese%20-%20Aline%20Ferrei-
ra%20Antunes%20-%202022.pdf. Acesso em: 30 set. 2022.

ANTUNES, Aline Ferreira. Tex e os tipos raciais: 1953 - 2000. 2019. 164
f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Uber-
lândia. Uberlândia, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14393/ufu.
di.2019.912. Acesso em: 20 abr. 2020.

ANTUNES, Aline Ferreira. Tex Willer: o mito do herói estadunidense


produzido na Itália. 2015. 114p. Trabalho de Conclusão de Curso (Gra-
duação em História) – Instituto de História, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, 2015.

BARBIERI, DANIELE. As linguagens dos quadrinhos. São Paulo: Pei-


rópolis, 2017.

BONELLI, G. L.; GALLEPPINI, A. Tex Coleção Grand Canyon. São


Paulo: Vecchi, ano XI, n. 130, set. 1981.

CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as Performances Cul-


turais: Um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. 2013.
Califórnia State University. Disponível em: http://web.calstatela.edu/
misc/karpa/KARPA6.1/Site%20Folder/KARPA6.1.html. Acesso em: 18
jul. 2019.

CAMARGO, Robson Corrêa de. Performances Culturais: Um conceito


interdisciplinar e uma metodologia de análise. 2012. Disponível em:ht-
tps://performancesculturais.emac.ufg.br/up/378/o/Performances_Cul-
turais__Um_conceito_interdisciplinar_e_uma_metodologia_de_an%-
C3%A1lise-Robson_Camargo.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.

CAMPBELL, Joseph. A saga do herói. Joseph Cambell: vida e Obra. São


Paulo: Editora Ágora, 1990.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 79


CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensa-
mento, 1949.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da


modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP),
2019.

CARLOSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2009.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu


da.; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. (Org.). Identidade e di-
ferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

HASEMAN, Brad. Manifesto pela pesquisa performativa. In: SILVA,


Charles Roberto et. al. (Org.). Resumos do 5º Seminário de Pesquisas
em Andamento. PPGAC/USP. São Paulo: PPGAC-ECA/USP, 2015.

HOBSBAWM, Eric. O coubói Americano: um mito internacional? In:


________. Tempos fraturados. São Paulo: Cia. Das Letras, 2013.

JENKINS, Henri. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph,


2015.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Ho-


rizonte: Autêntica, 2012.

PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no Tempo, Tempo das Sensibi-


lidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en
ligne le 04 février 2005, consulté le 12 mars 2017. http://nuevomundo.
revues.org/229

RAMOS, Rubem Borges Teixeira. Com grandes poderes, vêm grandes


responsabilidades: um estudo etnometodológico sobre o leitor e a leitura
de histórias em quadrinhos de super-heróis da Marvel e da DC Comics.

80 - Urdiduras da história
2017. 255f. Tese (Doutorado em Ciências da Informação) - Escola de
Ciência da Informação, Programa de Pós-Graduação em Ciência da In-
formação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

RUJU; SEIJAS. À prova de fogo. São Paulo: Mythos, 2011.

SANTOS, Nádia Maria Weber; CAMARGO, Robson Corrêa de. (Org.).


Performances culturais: memórias e sensibilidades – v. I. Porto Alegre,
RS: Editora Fi, 2019. Disponível em: https://www.editorafi.org/741per-
formances. Acesso em: 30 set. 2022.

SCHECHENER, Richard. Podemos ser o (novo) Terceiro Mundo? Re-


vista Sociedade e Estado. v. 29, n. 03, set.-dez., 2014.

SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo–e é corpo homem. Discursos


sobre masculinidades na Bíblia, na literatura e em grupos de homens. In:
STRÖHER, Marga J.; DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André S.
(Org.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade.São Leopoldo:
Sinodal/CEBI, 2004.

VERGUEIRO, W. C. S.; SANTOS, R. E. Dos S. Para uma metodologia


da pesquisa em História em quadrinhos. In: BRAGA, J. L.; LOPES, M.
I. V.; MARTINO, L. C. (Org.). Pesquisa empírica em comunicação.
São Paulo: Paulus, 2010.

VERGUEIRO, W. C. S. Pesquisa acadêmica em histórias em quadri-


nhos. São Paulo: Criativo, 2017.

VIGARELLO, Georges. História da virilidade. A virilidade em crise?


Séculos XX-XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 81


Gênero, raça e geração na novela Cheias de
Charme

Rosana de Jesus dos Santos

Ao longo do tempo, as teóricas e militantes negras têm destacado a


importância das mudanças nos significados sobre as mulheres negras em
circulação na mídia, a qual, normalmente, nos coloca em lugares de subal-
ternidade e a serviço dos brancos.
A autora Lélia Gonzalez, na década de 1970, já denunciava em seus
textos a restrição das mulheres negras a lugares de inferioridade como uma
forma de repartição desigual de bens materiais e simbólicos entre negros
e brancos. A hipersexualização da mulher negra, personificada na mulata
durante o carnaval, com a finalidade de atrair turistas e gerar lucros aos
brancos, parecia se contrapor ao dia a dia massacrante das trabalhadoras
domésticas, em sua maioria negras. Porém, para Gonzalez, esses lugares
não se opunham, mas eram faces da mesma moeda: a exploração econômi-
ca e social das mulheres negras sobre a qual se fundou o mito da Democra-
cia racial. Nessa perspectiva, ela argumenta:

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro
lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no
momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que
a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes
cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos
mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai
depender da situação em que somos vistas.1

1. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais


hoje, ANPOCS, p.223-244, 1984.
Lélia Gonzalez apresenta uma análise da articulação perversa entre ra-
cismo e sexismo, que circunscreve as mulheres negras a posições inferiores
na sociedade, ao mesmo tempo em que seu trabalho e conhecimentos são
explorados. A discriminação, a violência e a marginalização das trabalha-
doras domésticas têm me incomodado desde quando comecei a trabalhar
como doméstica. Tal incômodo me acompanhou após o ingresso no curso
de História e norteou meus estudos acadêmicos até o doutorado.
No presente texto, pretendo problematizar os significados sobre as
mulheres negras idosas produzidos na telenovela Cheias de Charme, por
meio da análise da forma como foi construída a personagem Valdelícia,
interpretada pela atriz Dhu Morais. A novela foi exibida entre 16 de abril
e 28 de setembro do ano de 2012, no horário das dezenove horas, na emis-
sora Globo, composta por 143 capítulos.
Esta discussão é parte do trabalho de doutoramento defendido em
2018, no Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Fe-
deral de Uberlândia. Por intermédio da análise da forma como foi cons-
truída a personagem Valdelícia, percebi elementos da representação social
da “mãe preta” aspecto estereotipado que tem se repetido nas telenovelas
brasileiras ao longo do tempo. Assim como a figura da “mulata”, essa re-
presentação tem efeitos políticos, visto que reforça um lugar socialmente
subalterno para as mulheres negras. Conforme Mariza Corrêa,

para milhões de mulheres no Brasil as vidas incorporarão mais de uma


representação na trajetória dos anos. Desde serem mulatas sexualizadas e
assim objetivadas na juventude, a nutridoras zeladoras e negras desfemi-
nizadas quando tiverem mais idade.2

As representações sociais das mulheres negras como domésticas, na-


turalmente predestinadas ao serviço dos brancos, é uma forma ideológica
de manter a divisão racial da sociedade, como denunciava Lélia Gonzalez
em seus textos.
Utilizo a categoria analítica “representação social” a partir da definição
proposta por Serge Moscovici e Denise Jodelet3, que a entendem como

2. CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, n. 6-7, p.35-50, 1996.
3. JODELET, Denise (Org.) Representações sociais: um domínio em expansão. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2001.

84 - Urdiduras da história
formas através das quais os indivíduos conhecem e significam o mundo.
De acordo com esses autores, conhecemos o mundo pelo viés das repre-
sentações sociais, uma vez que elas medeiam nosso processo de apreensão
do mundo. Tais representações são também comunicadas pelos sujeitos
sociais, correspondendo a um saber socialmente compartilhado. Essa defi-
nição serve para pensar a telenovela e os sentidos que são reiterados nessas
produções acerca das trabalhadoras domésticas, bem como seus efeitos,
visto que, conforme Judith Butler, “a linguagem pressupõe e altera seu po-
der de atuar sobre o real por meio de atos elocutivos que, repetidos, tor-
nam-se práticas consolidadas e, finalmente, instituições.”4

Novela como fonte histórica

A utilização da telenovela como fonte de pesquisa se deve à compreen-


são de que, por ser produzida em determinado espaço sócio-temporal,
comporta representações sobre a sociedade em que se insere. Lucien Fe-
bvre, ao problematizar a produção histórica na obra “Combates pela His-
tória”, afirma que a História, como estudo cientificamente conduzido das
sociedades humanas, interessa-se por todas as dimensões do humano, nas
diversas sociedades espalhadas pela terra em suas diferentes épocas. Para
aproximar-se dessas realidades, cabe ao/à historiador/a formular proble-
mas e eleger como suas fontes os textos:

Os textos, sim: mas são textos humanos. E as próprias palavras que os


formam estão cheias de substância humana. E todos têm sua história,
soam diferentemente segundo as épocas, e mesmo se designam objectos
materiais só raramente significam realidades idênticas, qualidades iguais
ou equivalentes. Os textos, sem dúvida: mas todos os textos. E não só os
documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilégio - o privilégio
de daí tirar, como dizia o outro, um nome, um lugar, uma data; uma data,
um nome, um lugar-todo o saber positivo, concluía ele, de um historiador
indiferente ao real. Mas, também, um poema, um quadro, um drama:
documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, satu-
rados de pensamento e de ação em potência5.

4. BUTLER, Judith. Problema de gênero: Feminismo subversão da Identidade e desejo. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 169.
5. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Portugal: Ed. Presença, 1989. p. 24.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 85


Os discursos midiáticos aqui analisados produzem efeitos de verdade
e, para obter aceitação do público, adotam representações que já circulam
na sociedade e forjam novas configurações. Por intermédio das representa-
ções sociais, essencializam características socioculturais, dando-lhes status
de dado naturalmente presente nos corpos, indivíduos e relações. Assim,
personagens “engendrados” pelas relações de gênero, classe e raça ocupam
posições consideradas socialmente adequadas nas tramas novelísticas, de
acordo com sua raça, corporeidade, gênero e geração.
No presente estudo, as telenovelas são concebidas como tecnologias
de gênero, conforme a teorização desenvolvida por Teresa de Lauretis.
Partindo da formulação de Michel Foucault, quando este considera que a
sexualidade é produto de tecnologias sexuais, Lauretis defende que assim
como a sexualidade, o gênero também é produto de tecnologias sociais: “A
construção de gênero vem se efetuando hoje no mesmo ritmo dos tempos
passados [...] na mídia, nas escolas públicas e particulares, nos tribunais, na
família nuclear [...].”
Nessa perspectiva, a telenovela Cheias de Charme pode ser considerada
uma tecnologia de gênero, como define Teresa de Lauretis. As tecnologias
de gênero agem de forma a instituir representações, atando sujeitos em
posições específicas nas dinâmicas das relações sociais. Tal noção se pauta
na teorização de Foucault sobre a relação entre poder e saber. Conforme
Michel Foucault, poder e saber estão interligados, sendo que “o poder se
exerce sobre a vida, imediata, que classifica os indivíduos em categorias,
[...] os prende à sua identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que lhes é
necessária e que os outros devem reconhecer-lhes.”6
Os produtos midiáticos são lugares de produção e veiculação das cons-
truções de gênero e raça. Segundo Rosa Maria B. Fischer,

a mídia é um lugar privilegiado de criação, reforço e circulação de senti-


dos, que operam na formação de identidades individuais e sociais, bem
como na produção social de inclusões, exclusões e diferenças.7

6. MACHADO, Liliane Maria Macedo. E a mídia criou a mulher: como a TV e o cinema


constroem o sistema sexo/gênero. 2006. Tese (Doutorado em História) - Curso de História
Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília - UnB, Brasília, 2006. p. 19.
7. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e educação da mulher: Uma discussão teórica sobre
modos de enunciar o feminino na TV. Revista Estudos feministas, ano 9, 2. sem. 2001, p.
249.

86 - Urdiduras da história
Tais representações naturalizam a desigualdade social, construindo
posições hierárquicas com base em marcadores étnico-raciais e de gêne-
ro. A telenovela veicula sentidos, conhecimentos socialmente compar-
tilhados, “verdades” que se colam aos corpos, cunhando sujeitos sociais
gendrados. A atividade doméstica é mostrada como destino natural das
mulheres negras e/ou pobres.
Nesse sentido, considero que as tecnologias de gênero também fun-
cionam como tecnologias de raça, visto que, ao mesmo tempo, produzem
sujeitos gendrados e racializados. Destaco as repetições de sentidos sobre
as mulheres negras que as restringem a guetos sociais, concomitante à
reiteração de sentidos sobre as mulheres brancas também gendradas e
racializadas em lugares de prestígio social em relação às negras, mas em
lugares subalternos quando comparadas aos homens brancos.
Esses sentidos têm se repetido ao longo da história da telenovela
brasileira, conforme demonstra Joel Zito de Araújo, no livro “A negação
do Brasil: O negro na telenovela brasileira”. Considero que a manutenção
de lugares de subordinação para as pessoas negras nos produtos midiá-
ticos é parte do pacto narcísico da branquitude. De acordo com Maria
Aparecida Bento:

Tudo passa como se não houvesse um pacto entre os brancos, aqui cha-
mado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do
problema com vistas à manutenção dos privilégios raciais. O medo da
perda dos privilégios e o da responsabilização pelas desigualdades raciais
constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o
negro, carregada de negatividade. O negro é inventado como um “outro”
inferior, em contraposição ao branco que se tem e é tido como superior,
e esse outro é visto como ameaçador. Alianças inter-raciais entre brancos
são forjadas e caracterizam-se pela ambiguidade, pela negação de um pro-
blema social, pelo silenciamento, pela interdição dos negros em espaço de
poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica,
política dos negros, no universo social.8

Considerando o pacto narcísico da branquitude que vigora na socie-


dade brasileira, entendo que representar as mulheres negras sempre em
8. BENTO, Maria Aparecida. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e pode nas orga-
nizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano) - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2002, 169p.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 87


posições subordinadas é uma forma de manter esse acordo em vigor, natu-
ralizando no imaginário social os/as brancos/as em lugares de poder e os/
as negros/as subordinados/as.
A crítica às novelas se faz importante dada a sua presença constante
nas casas brasileiras, atuando na formação do imaginário social acerca das
posições dos sujeitos nas relações raciais a partir de marcadores de gênero,
raça e classe.

Gênero, raça e geração

O primeiro aspecto a ser enfatizado é a preponderância de mulheres


negras representando trabalhadoras domésticas nas telenovelas. Inúmeros/
as autores/as9 já problematizaram a restrição das mulheres negras aos pa-
péis de trabalhadoras domésticas ou escravizadas nas telenovelas brasilei-
ras. Dentre esses autores, o estudo de Joel Zito de Araújo se destaca ao
constituir uma linha de tempo, perpassando os vários períodos da televisão
brasileira, avaliando as personagens destinadas aos atores e atrizes negros
nas várias telenovelas exibidas pelas emissoras brasileira. Segundo Araújo:

Os atores negros estiveram em 90% das novelas da Tupi. Entre eles, as


empregadas domésticas fiéis tiveram um papel um pouco mais destacado.
E o cenário mais usual onde essas personagens se encontravam foi o am-
biente do lar das famílias ricas e da classe média brasileira, o espaço da
domesticidade. Até mesmo as exceções, os negros ascendentes, que aqui
já apresentamos, estavam sempre no espaço do outro. Portanto, mesmo
sendo socialmente ascendentes, ou subalternos, personagens ou figuran-
tes, a maioria dos atores negros era visto na casa da família branca para
quem trabalhava, nos restaurantes como garçons.10

Nas telenovelas brasileiras, para as/os negras/os prevalecem papéis em


que estes estão a serviço dos/as brancos/as, lugares constituídos socialmen-
te como subalternos e desvalorizados. As personagens negras trabalhadoras

9. Cf.: BARBOSA, Luciene Cecília. As representações das relações raciais na telenovela


brasileira, Brasil e Angola: caminhos que se cruzam pelas narrativas da ficção. 2008. Tese
(Doutorado em Ciência da Comunicação) - Escola de Comunicação e Artes -. ECA, Uni-
versidade de São Paulo/USP, São Paulo, 2008.
10. ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. São Paulo:
Editora Senac, 2004. p. 168.

88 - Urdiduras da história
domésticas geralmente não dispõem de vida familiar própria, relaciona-
mentos afetivos, considerando a família dos patrões como a sua família,
bem como o ambiente de trabalho como sua residência.
Em Cheias de Charme, essa representação se materializa na persona-
gem Valdelícia, interpretada pela atriz Dhu Moraes. Ela é empregada do-
méstica na casa dos Sarmento, na qual trabalha com Maria Aparecida, de
quem é madrinha11. Ambas moram no local de trabalho. Maria Aparecida
por ter perdido os genitores, já a situação de Valdelícia não é explicada;
ela simplesmente é mostrada no ambiente em que trabalha, onde também
reside. Em vários momentos da trama, a personagem diz que sempre viveu
ali e considera a casa dos patrões como sua própria casa. Essa ausência de
familiares é uma constante na construção dos personagens negros, segundo
Joel Zito de Araújo. Conforme o autor, comumente, os/as negros/as são
construídos como personagens desprovidos de relações familiares, diferen-
temente dos personagens brancos, que sempre têm um ou outro familiar
ou companheiro/a. Numa das cenas, após deixar a casa dos Sarmento, Cida
marca um encontro com Valdelícia no mercadinho do condomínio Casa-
-grande. Vejamos o diálogo entre elas:

Cida: “Madrinha, a senhora tem que sair daquela casa. Olha, eu estou
lá na casa da Penha, mas eu já estou procurando um cantinho pra gente
morar.”
Valdelícia: “Não filha, eu não vou morar com você de favor, eu vou conti-
nuar morando lá em casa, onde eu vivi a vida toda.”
Cida: “Mas lá não é sua casa, madrinha. É a casa da Dona Sônia.” Val-
delícia: “Filha, eu vivi tanto tempo lá que eu acostumei, não adianta, não
tem jeito.”

A personagem Valdelícia sente que está irremediavelmente ligada à


casa dos patrões, espaço que considera seu lar. Em outros momentos da
trama, ela reitera essa imbricação com a família patronal. Ela se refere à
casa dos patrões como a sua casa, fazendo-nos lembrar do antigo e racista
costume brasileiro das famílias brancas acolherem em suas casas jovens
negras e pobres que eram criadas e anunciadas como “pessoas da família”,
as quais, no entanto, eram exploradas pelas mesmas famílias, não dispondo
de remuneração, recebendo apenas casa e comida em troca de seu trabalho.
11. Antes da novela Cheias de Charme, as atrizes Dhu Moraes e Isabelle Drummond interpre-
taram, respectivamente, Tia Nastácia e Narizinho, no sítio do Pica-pau Amarelo.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 89


Essa prática perpassa a história brasileira, sendo considerada por várias/os
autoras/es, dentre elas Hildete Pereira Melo, como uma herança da socie-
dade escravocrata:

Ao longo do século XIX, as famílias tinham além das escravas domésti-


cas a possibilidade de contar com mocinhas para uma espécie de “ajuda
contratada”. Essa era uma fonte adicional de trabalho doméstico que no
Brasil e nos Estados Unidos, depois da Abolição, tornou-se a maior fonte
de trabalho feminino. A ajudante era enviada pela sua família para outra
casa, como um passo intermediário entre a casa de sua família e o ma-
trimônio. A industrialização e a urbanização, com a expansão da classe
média, transformaram a chamada “ajuda” em serviço doméstico — rea-
lizado sobre as bases de casa e comida — para a população migrante de
mulheres jovens brancas e não-brancas nascidas no campo. Essa ideia de
“ajuda” perdurou na primeira metade deste século no Brasil, sobretudo
nas regiões Norte e Nordeste e mesmo no Sudeste, para desaparecer pra-
ticamente nas últimas décadas.12

O trabalho doméstico em troca de casa e comida seria uma continui-


dade quase superada da sociedade escravista. Entretanto, ainda existente13,
são mulheres que passam suas vidas a serviço dos patrões e, já idosas, não
têm nenhuma garantia de assistência na velhice. Tal situação é mencionada
na novela, porém sem problematização em relação à condição da persona-
gem. Valdelícia começa a apresentar lapsos de memória e sua patroa usa,
em determinados momentos, certas expressões invalidantes e preconcei-
tuosas, como “Valda bateu o pino”, “Valda tem que ir para o estaleiro”,
“Empregada é igual eletrodoméstico, quando dá defeito...”. Temos, pois, a
intersecção de gênero, raça e geração na construção da personagem. Valde-
lícia é uma mulher negra idosa, por esse motivo não é representada como
mulata, mas como mãe preta, visto que gênero, raça e geração se intersec-
cionam, estabelecendo lugares distintos para as mulheres negras. O que
12. MELO, Hildete Pereira de. De criadas a trabalhadoras. Revista Estudos Feministas,
v..6, n.2, 1998. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/down-
load/12011/11297>. Acesso em: 02/04/18.
13. Durante o desenvolvimento desta pesquisa, conheci duas mulheres: a primeira tem
42 anos, é estudante universitária e presta serviços domésticos sem remuneração em troca
de casa e comida para a família com a qual mora. A segunda é uma senhora negra, de 90
anos de idade, que viveu até os 70 anos na casa de uma mesma família, sem salário, e que
hoje vive num apartamento que recebeu como indenização pelos serviços prestados, após
processar os patrões.

90 - Urdiduras da história
têm em comum é que tanto a mulata quanto a mãe preta são lugares de
subserviência e exploração das mulheres negras pelos brancos.
Valdelícia apenas dispõe de um quartinho, o qual divide com Maria
Aparecida. É constantemente maltratada verbalmente pelas mulheres da
família empregadora. Em nenhum momento é problematizada a situação
da personagem na trama. Nem por ela mesma, nem por outra personagem.
Considero que haja um silenciamento acerca da situação, o que tem im-
pacto real na sociedade, visto que é reiterado um lugar considerado como
socialmente adequado para as mulheres negras, o âmbito doméstico, não
sua própria casa, e sim a casa dos/as brancos/as. Dessa maneira, é possível
que aos/às telespectadores/as pareça natural que as personagens negras es-
tejam isoladas e sempre disponíveis para servir aos brancos.14
A ausência de qualquer crítica à situação da personagem deixa espa-
ço para possibilidades de significação, ou seja, o silêncio ocupa o lugar
de uma possível crítica à subalternidade da personagem. O silêncio não é
representável, assim sendo, é de difícil apreensão. Ao contrário de textos
e imagens, ele só pode ser analisado a partir da historicidade do texto no
qual se faz presente, conforme demonstra Eni Orlandi. Por este ângulo
de análise, o silêncio aí verificado tem como efeito de sentido o reforço da
subalternidade das mulheres negras. O silêncio é aqui considerado como
um espaço de incompletude, que guarda possibilidades de significação. De
acordo com Orlandi,

A incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a


possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside
essa possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o “nada”.
Mas o silêncio significa esse “nada” se multiplicando em sentidos: quan-
to mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos se
apresentam.15

Em As formas do Silêncio, Orlandi faz referência a um outro estudo


14. O processo de produção da desigualdade racial segue seu curso constituindo hierarquiza-
ções sociais com base em gênero e raça. Um exemplo dos efeitos destes discursos é explici-
tado pelas jovens Stella, Beatrice, Samanta, Carol e Stela no vídeo Se é negro tem que servir?
Disponível no canal You tube, relata uma situação constrangedora vivida por Stella ao tentar
ajudar uma senhora branca, no pátio de alimentação do Shopping Pátio Paulista, tendo sido
ordenada pela senhora que limpasse o chão. Vídeo disponível em:<https://www.youtube.
com/watch?v=UcvGF2SYWkY>. Acesso em: 13/06/2017.
15. ORLANDI, Eni. Os sentidos do silêncio. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2007. p.47.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 91


seu, acerca da presença/ausência dos indígenas na Identidade Cultural
brasileira. Conforme a autora, os indígenas nos discursos coloniais não
falam, mas são significados pelos missionários e autoridades coloniais que
“falam do índio para que ele não signifique fora de certos sentidos neces-
sários para a construção de uma identidade brasileira determinada em que
o índio não conta”16. Tal exemplo é utilizado pela autora para demonstrar
a importância de se levar em conta a historicidade na análise dos efeitos
do silêncio. Nesse viés, compreendo a ausência de uma crítica ao lugar de
subalternidade e isolamento da personagem Valdelícia como uma forma
de naturalizar tal condição, ou seja, são mencionadas a exploração e a
violência, porém não é apresentada nenhuma crítica a tal situação. Esse
silenciamento não condiz com o posicionamento ativo das mulheres ne-
gras que, há séculos, resistem e urdem estratégias de sobrevivência ante a
sociedade racista. Especialmente nas últimas décadas do século XX, com
o fortalecimento e expansão do feminismo negro, as mulheres negras vêm
lutando contra os mecanismos racistas que buscam limitá-las a deter-
minados lugares, produzindo conhecimento acadêmico e exigindo novas
representações nas mídias.
A repetição desses sentidos tem um significativo efeito na manutenção
das representações sociais que atuam na forma como negros/negras são
vistos/as e tratados/as na sociedade brasileira, bem como isso se faz nefasto
no processo de constituição de autorrepresentação pelos indivíduos negros
brasileiros. Nesse sentido, é importante destacar a relação do discurso com
a produção das subjetividades:

O discurso, entendido como trabalho simbólico, político e ideológico


sobre o mundo, sobre as condições de existência e que funciona incons-
cientemente. É aí que o conceito de discurso intervém, como rede de
sentidos construídos na/através da língua, pela qual o sujeito se constitui
e se relaciona com o mundo, através da qual a vida em sociedade se torna
possível. O sujeito é consequência das discursivizações em torno dele, nas
condições de produção em que se encontra. Ele é interpelado e funciona
como efeito e como materialização das interpelações constitutivas da me-
mória discursiva17.

16. Ibidem, p.57-58


17. BORGES, Águeda Aparecida da Cruz. Construção da resistência de mulheres Xavante:
um gênero discursivo. In: STEVES, C. et.al. A construção dos corpos: perspectivas feminis-
tas. Florianópolis SC: Ed. Mulheres, 2014. p. 537.

92 - Urdiduras da história
Portanto, é imprescindível pensar nos possíveis efeitos do discurso que
constitui a mulher negra como fundamentalmente doméstica no imagi-
nário coletivo dos/as telespectadores/as. A personagem Valdelícia, apesar
de estar no mesmo patamar que a personagem Maria Aparecida, visto que
ambas são trabalhadoras domésticas, acaba por desempenhar o papel de
cuidadora da jovem. É ela a protetora da jovem branca, é quem cuida ma-
ternalmente, como as amas secas do período escravocrata cuidavam das
crianças, bem como dos membros da família empregadora. A imagem da
mãe preta é evocada na constituição da personagem Valdelícia e sua re-
lação com a cantora. Essa relação de proximidade entre as duas persona-
gens evoca também suas recentes atuações como Tia Nastácia e Narizinho,
personagens do sítio do Pica-pau Amarelo. É oportuno salientar que Tia
Nastácia é o arquétipo da mãe preta, nos moldes que discute Joel Zito
Araújo. De acordo com o autor, tal figura tem precedente em programa
norte-americano da década de 1950:

Muito popular por apresentar a doméstica perfeita, conforme os ideais da


classe média branca norte-americana. Beulah era uma empregada negra
que trabalhava e cuidava de sua família branca e, no final de cada episódio,
depois de solucionar os problemas que sua família enfrentara durante a
semana, restaurava o equilíbrio e a normalidade da casa. Ela não tinha
ligações com a comunidade negra, com exceção do seu namorado, Bill,
um outro ajudante da família Henderson, retratado como um homem
preguiçoso e enrolador, que durante toda a série se esquivava de casar-se
com ela. Beulah foi o primeiro sucesso do estereótipo da mammie da tele-
visão norte- americana18

A representação da mulher negra essencialmente doméstica, sem laços


familiares e sociais próprios, tem sua historicidade que pode ser buscada
em discursos produzidos nos EUA, país no qual a televisão brasileira bus-
cou referenciais. Tais matrizes discursivas se combinaram a características
próprias das relações raciais à brasileira. Nota-se que, a partir da repetição,
estes sentidos foram preservados e aparecem na fonte a qual analiso. A
preservação de tais elementos simbólicos tem a função política de legitimar
as relações assimétricas entre brancas/os e negras/os.
18. ARAÚJO, Op. cit., p.49-50.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 93


Após alcançar a fama e ganhar dinheiro com a carreira de cantora,
Maria Aparecida compra um apartamento para morar com Valdelícia.
Esta, no entanto, insiste em executar as atividades concernentes à sua an-
tiga função de trabalhadora doméstica.
Numa das reviravoltas da trama, há uma inversão de posições, em que
Cida volta a residir na casa dos antigos patrões, agora falidos, enquanto
ela desfruta do status de jovem cantora bem- sucedida e passa a custear as
despesas da mansão. Diante desse novo cenário, contrata uma empregada
doméstica “branca” para realizar as funções outrora desempenhadas por
Valdelícia. Nesse movimento, Cida passa a ser patroa, orientando a nova
trabalhadora. Numa das cenas, o espaço é a cozinha da casa dos Sarmento.
Valdelícia está bem trajada e com penteado diferente do que usava quando
trabalhava como doméstica. Em pé, próxima à pia, ela orienta a nova em-
pregada, que é branca e está uniformizada:

Valdelícia: “Você temperou como?”


Empregada: “Sal, pimenta do reino.”
Valdelícia: “Botou mostarda? Aqui nesta casa, o rosbife é temperado com
mostarda.”
Empregada: “Eu sei Dona Valda, mas é que cada um tem o seu jeito de
fazer, não é? Vai que eles gostam do meu tempero também?”
Val sorri e responde: “Filhinha, eu tenho muitos anos de casa, e aqui se
recebe muita gente importante. Eu já fiz jantar para... para mais de 50.”

Nesse momento, adentra a cozinha Dona Másvola (interpretada por


Aracy Balabanian), que ironiza:

Máslova: “Eu já vi que tem gente que não quer largar o osso. Valda, mi-
nha querida, você agora é hóspede desta casa, pode descansar, não precisa
mais trabalhar.”
A nova empregada completa:
“Eu já falei pra ela, ela pode ficar descansando, não é?”
Val responde:
“Mas gente, eu faço porque gosto, adoro trabalhar.”
Másvola: “Valda, minha querida, você sabe quantas empregadas domés-
ticas viraram hóspedes da casa em que trabalhavam? Eu só conheço você,
minha querida.”

Algumas pequenas alterações nas representações tradicionais das mu-

94 - Urdiduras da história
lheres negras merecem destaque na trama. Valdelícia deixa de ser domésti-
ca após a ascensão de Maria Aparecida e passa a ser quem ordena e orienta
a nova empregada doméstica, que é branca. Se por um lado temos essas
pequenas alterações, por outro lado, Valdelícia continua imbricada ao tra-
balho doméstico, como se fosse fundamentalmente doméstica. Insiste em
se ocupar das atribuições da cozinha, mesmo após Cida ter contratado uma
nova empregada.
Valdelícia é caracterizada como essencialmente doméstica, não con-
segue se desvencilhar da cozinha e do trabalho doméstico, ainda que a
oportunidade surja. Essa característica, a imbricação da mulher negra
ao doméstico, remete à composição da representação da mãe preta, es-
sencialmente doméstica, serviçal totalmente disponível para as famílias
brancas. Essa representação, ao ser repetida em vários discursos19, em
diversos períodos, constitui um saber socialmente compartilhado a partir
do qual a sociedade passa a ver as mulheres negras: indivíduos sem famí-
lia, sem lar, cujas existências se limitam a prestar serviços domésticos e
afetivos aos brancos.
Joel Zito de Araújo destaca duas figuras recorrentes no cinema e TV
norte- americanos que serviram de referência para a produção televisiva
brasileira. Ao final da década de 1980, em seu estudo sobre as imagens
dos/as negros/as na televisão brasileira, destaca:

Dois importantes estereótipos do cinema, os doces e servis Tom e Tia


Jemima, que também representavam o negro como serviçal, inferiorizado
e dedicado às famílias brancas. Tia Jemima foi o tipo que esteve mais pre-
sente nos programas de Tevê, em uma versão doce da mammie, diferen-
ciando-se desta no aspecto físico por ser normalmente representado por
atrizes mais magras, sempre caracterizadas como uma doméstica genero-
sa, preocupada e sincera. Os dois, Tia Jemima e Tom, foram paradigmas
importantes para a televisão do Brasil.20

Pela descrição feita por Araújo, a personagem Valdelícia se aproxi-


ma muito dessa figura da Tia Jemima, mulher negra, maternal, magra
e solteira. Ao longo da trama, percebe-se que Valdelícia é sozinha, não
19. Cf.: Personagem de Tia Anastácia, imortalizada na obra de Monteiro Lobado; Mamie
do filme E o vento Levou, interpretada por Hattie MacDaniel e a personagem da publicidade
dos produtos de limpeza Start Azulim. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
v=jhRLHUMQKWs> Acesso em: 07/10/2016.
20. ARAÚJO, Op. cit., p. 50-51.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 95


tem namorado ou marido, nem parentes próximos, apenas uma irmã que
vive em Minas, mas que não aparece na trama, sendo apenas referida, a
qual ela visita. Além de ser ligada ao trabalho doméstico, Val é o anjo
da guarda de Maria Aparecida e a conselheira do patrão quando este é
desprezado pela família.
Tanto a significação da mulher negra jovem como mulata sedutora,
hipersexualizada, quanto a constituição da mulher negra idosa como figu-
ra maternal, assexuada, dedicada à família branca, sem vínculos familiares
próprios, têm finalidades políticas precisas, dentre elas a de limitá-las a
determinados lugares sociais subalternos, seja na juventude ou na terceira
idade, restringindo-as exclusivamente a servir os brancos, seja no traba-
lho doméstico ou na esfera sexual. Nesse sentido, as representações so-
ciais sobre as mulheres negras, percebidas na telenovela, são instituidoras
do real, têm funções políticas, sustentam práticas, inclusive de exclusão e
cerceamento da cidadania para determinados grupos e sujeitos. Segundo
Sandra Jatahy Pesavento,

As representações sociais criadas sobre o mundo, não só se colocam no


lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade
e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas
sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do
real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representa-
ções que constroem sobre a realidade21.

As telenovelas, devido à marcante presença nos lares, como forma de


lazer acessível a um percentual considerável de pessoas, exercem um im-
portante papel na produção de conteúdo simbólico, de representações so-
ciais que atuam na constituição das subjetividades. A produção e veiculação
das telenovelas não implicam apenas a fomentação do entretenimento, mas
produzem, como assinala Orlandi:

Linguagem que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e


pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos
e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São
processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação,
de construção da realidade etc.22
21. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2005. p. 39.
22. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Ponte,

96 - Urdiduras da história
Sentidos que poderiam passar despercebidos na telenovela estão in-
terligados a práticas discursivas que se repetiram em outros textos e que,
no decorrer do tempo, foram instituindo sentidos acerca das mulheres
negras. Conforme Orlandi, discursos enunciados em outros lugares, por
outros sujeitos, e esquecidos, reaparecem em novas formações discursi-
vas, como se fossem novidade, entretanto, têm sua historicidade, a qual é
possível apreender ao se atentar para a relação com sentidos presentes na
língua e na história, o interdiscurso ou a memória discursiva, conforme
demonstra a autora:

Conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que


dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já
façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi
dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na
memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em
“minhas” palavras. No interdiscurso [...] fala uma voz sem nome.23

Os sentidos acerca das mulheres negras que circulam na novela só são


possíveis de serem apreendidos por se inserirem numa historicidade, se
vincularem num movimento histórico. Dialogam com sentidos que os/as
telespectadores já compartilham. Tais sentidos fundamentam as relações
desiguais, visto que interpelam os indivíduos em sujeitos, ou seja, infor-
mam subjetividades e, assim, continuam funcionando para legitimar a
exclusão e a subalternidade das mulheres negras24. Daí a importância da
análise, de acordo com Orlandi:

Compreender é saber como um objeto simbólico (enunciado, texto, pin-


tura, música, etc) produz sentidos. É saber como as interpretações fun-
cionam. Quando se interpreta já se está preso em um sentido. A com-
2005. p. 21.
23. Ibidem, p. 33.
24. Em pesquisa publicada pelo DIEESE em 2013, constatou-se que “as trabalhadoras do-
mésticas negras no Brasil estão em situação mais desfavorável, pois os percentuais daquelas
que não possuem carteira assinada são maiores, tanto em 2011 (48,1%) quanto em 2004
(60,9%)”. A pesquisa revelou, também, que “a remuneração média da trabalhadora negra
no Brasil foi inferior ao da trabalhadora não negra em qualquer tipo de contratação. Isso
acontece principalmente devido aos menores rendimentos auferidos pelas negras no Norte e
Nordeste. Além disso, foi no Norte que se observou o menor ganho real entre as trabalhado-
ras negras (61,0%), entre 2004 e 2011 (Estudos & pesquisas, n.68, ago. 2013).

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 97


preensão procura a explicitação dos processos de significação presentes
no texto e permite que se possam “escutar” outros sentidos que ali estão,
compreendendo como eles se constituem.25

Ou seja, compreender as produções discursivas sobre as mulheres ne-


gras que constituem os produtos midiáticos é um passo para contestá-las e
propor outras imagens, outros papéis que, de fato, representem a diversida-
de de possibilidades de ser e existir para as mulheres negras.

Considerações finais

As representações sociais sobre as mulheres negras nas telenovelas


brasileiras ainda reiteram lugares subalternos que não condizem com a
multiplicidade de espaços que temos ocupado ao longo do tempo. Mal-
grado a forte desigualdade racial e de gênero que ainda subsiste no país,
graças à histórica luta das mulheres negras no Movimento Negro, cada
vez mais mulheres negras têm ocupado espaços sociais que outrora lhes
eram vetados. No que tange ao objeto deste estudo, a novela atua como
tecnologia de gênero ao constituir abjeções a partir da imbricação entre
elementos provenientes das construções de gênero, raça, classe e geração.
Os discursos que se referem às mulheres negras funcionaram e funcionam,
ao longo da história, para produzir e naturalizar a desigualdade, inserin-
do-se numa longa rede de discursos que atravessa gerações e se ampara na
memória histórica, subsidiando desigualdades resultantes da intersecção
das desigualdades de gênero, raça, classe e geração. Acreditamos que a
presente investigação e análise possam contribuir para a crítica das repre-
sentações sociais sobre as mulheres negras que são produzidas e mantidas
ao longo do tempo, levando à sua desnaturalização, visto que compreen-
dermos como essas representações são construídas é o primeiro passo para
desestabilizá-las e ressignificá-las.

Referências

ARAÚJO, Joel Zito de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasi-


leira. 2. ed. São Paulo: Ed. Senac, 2004.
25. ORLANDI, Op. cit, p.26.

98 - Urdiduras da história
BARBOSA, Luciene Cecília. As representações das relações raciais na
telenovela brasileira, Brasil e Angola: Caminhos que se cruzam pelas
narrativas da ficção. 2008. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação)
- Escola de Comunicação e Artes - ECA, Universidade de São Paulo/
USP, São Paulo, 2008.

BENTO, Maria Aparecida. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e


poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. 169 f. Tese
(Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) - Ins-
tituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

BORGES, Águeda Aparecida da Cruz. Construção da resistência de mu-


lheres Xavante: um gênero discursivo. In: STEVES, C. et.al. A construção
dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2014.

BUTLER, Judith. Problema de gênero: Feminismo subversão da Identi-


dade e desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004.

CHEIAS de Charme. Escrita por Izabel de Oliveira e Felipe Miguez. Di-


reção de Denise Sarraceni. Emissora Globo, 2012. 143 capítulos. Dispo-
nível em:

<https://globoplay.globo.com/v/1906756/programa/l>. Acesso em:


20/05/2018.

CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, n.6-7,


p.35-50, 1996.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Portugal: Ed. Presença,


1989.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e educação da mulher: Uma discus-


são teórica sobre modos de enunciar o feminino na TV. Revista Estudos
Feministas, ano 9, 2. sem. 2001.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista


Ciências Sociais hoje, ANPOCS, p.223-244, 1984.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 99


JODELET, Denise (Org.). Representações sociais: um domínio em ex-
pansão. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. 420 p.

MACHADO, Liliane Maria Macedo. E a mídia criou a mulher: como a


TV e o cinema constroem o sistema sexo/gênero. 2006. Tese (Doutorado
em História) - Curso de História Instituto de Ciências Humanas, Univer-
sidade de Brasília - UnB, Brasília, 2006.

MELO, Hildete Pereira de. De criadas a trabalhadoras. Revista Estudos


Feministas, v.6, n.2, 1998. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/in-
dex.php/ref/article/download/12011/11297>. Acesso em: 02/04/18.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicolo-


gia social. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.


Campinas: Ponte, 2005.

ORLANDI, Eni. Os sentidos do silêncio. Campinas, SP: Ed. Unicamp,


2007.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Ho-


rizonte: Autêntica, 2005.

SANTOS, Rosana de Jesus dos. Corpos domesticados: a violência de


gênero no cotidiano das domésticas em Montes Claros - 1959 a 1983.
2009. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-gradua-
ção em História Social, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2009. 146p.

100 - Urdiduras da história


E eu não sou uma mulata?
Performances, sexualidades e feminismos

Patrícia Giselia Batista

Este estudo faz parte das inovações recentes em relação às formas tra-
dicionais de inteligibilidade histórica - de pesquisar e narrar a história do/
no mundo contemporâneo - a partir de imagens e corpos em performan-
ces1. Estas, por sua vez, fizeram-se possíveis pelos diálogos entre a História
e a Arte, a partir de eixos de análise dos estudos culturais, decoloniais, das
teorias feministas e dos estudos afro-brasileiros. A performance arte, fonte
privilegiada neste estudo, é um estilo artístico que pode se expressar por
intermédio da música, das artes plásticas, do teatro, do audiovisual, mas
não se origina deles, e nem precisa estar associada a eles para se realizar. O
fundamental, nesse tipo de arte, é o corpo como matéria-prima. Nas pala-
vras da especialista em performance Eleonora Fabião, “cada performance é
uma resposta momentânea para questões recorrentes”2. E nessa perspectiva
de se fazer uma história a partir das questões pertinentes do/no presente e
promover o debate, é preciso analisar o que é a arte da performance e bus-
car entendê-la como um movimento histórico dentro do cenário atual das
artes contemporâneas brasileiras3.
1. Esta análise é parte da pesquisa que desenvolvi no doutorado em História, pelo Programa
de Pós-Graduação em História, do Instituto de História da Universidade Federal de Uber-
lândia. Orientada pela professora Dra. Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro - UFU. Acesso em:
BATISTA, Patricia Giselia. O corpo negro no/do feminino como território de pesquisa
acadêmica, da criação artística e da estratégia política [recurso eletrônico], 2022. Disponí-
vel em: http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.509
2. FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Revista Sala Preta. v. l.8, n.1. São Paulo: 2008, p. 238. Disponível em:<http://revistasa-
lapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263> Acesso em: setembro de 2017.
3. BATISTA, Patrícia Giselia; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Diálogos entre a
Arte, a História, a Política e os Feminismos: a performance como um artefato explosivo.
“Eu não sou uma mulata?” foi um dos pontos de partida para apro-
fundar as análises da representação social mitificada da mulata na história
do Brasil. E, especialmente, demonstrar como os discursos constroem a
sexualidade dos sujeitos do/no feminino negro, e como a representação e
o imaginário social brasileiro são constantemente atualizados - nas artes e
na mídia4. O título deste capítulo é uma paráfrase inspirada na obra tradu-
zida E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo, da pensadora
afro-americana bell hooks5. Ela titula seu primeiro livro teórico Ain’t I a
Woman, em referência à frase homônima, do discurso proferido em 1851,
durante o Women’s Rights Convention, nos Estados Unidos, por Sojourner
Truth, ex-escravizada. A frase de Truth tornou-se conhecida e revolucio-
nária quando ela argumentou a importância da equidade racial entre mu-
lheres e homens negros na luta pelo sufrágio norte-americano. Destacando
que, na ordem social patriarcal, ao dar apoio à luta pelo direito ao voto dos
homens negros, o feminismo colocaria sob ameaça a liberdade das mulhe-
res negras, que ficariam subordinadas ao poder dos homens negros.
Nas palavras de hooks “pela primeira vez na história estadunidense,
mulheres negras como Mary Church Terrell, Sojourner Truth, Anna Coo-
per, Amanda Berry Smith e outras romperam os longos anos de silêncio e
começaram a dar voz a suas experiências de mulheres negras e a registrá-
-las”6. Em “E eu não sou uma mulher”, originalmente publicado em 1981,
hooks destaca a emergência na segunda metade do século XX, e que ainda
se faz, em reconhecer as especificidades e os interesses das mulheres negras
junto aos feminismo(s). Nas palavras de hooks: “quando falam de pessoas
negras, o foco tende a ser homens negros; e quando falam sobre mulheres,

Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG -v. 30, n. 2, Jul.-Dez. 2017. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/41463/pdf Acesso em: julho de 2017.
4. Este texto disponibiliza alguns códigos QR Codes para uma leitura mais interativa, e que
permitem o acesso às hiperligações com páginas e sites da web, em que se pode ver as imagens
e os vídeos em questão. Trata-se de uma sugestão que pode ser aceita ou não pelo/a leitor/a,
e que independente da adesão, a leitura e estudo da tese não serão comprometidos. Para
interagir com essa ferramenta, quando houver um QR code disponível, basta mirar a câmera
de um aparelho celular, e clique no ícone leitor de QR Code e direcione-o para ler o código.
5. bell hooks, é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana, que o
utiliza como homenagem à sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. A grafia utilizada pela pen-
sadora é sempre empregada em letra minúscula por um posicionamento político que busca
romper com as convenções linguísticas e acadêmicas.
6. hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Tradução Bhuvi
Libanio. 10. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022, p.20.

102 - Urdiduras da história


o foco tende a ser mulheres brancas. Em nenhum espaço, isso é mais evi-
dente do que no vasto corpus de literatura feminista”7.
A historiadora hooks salienta que grande parte do feminismo falhou
em compreender que os problemas das mulheres negras estavam centrados
apenas no racismo, não no sexismo. Esta é a importância da interseccio-
nalidade nos estudos feminista(s). Trata-se de um conceito que funciona
como um articulador de categorias variadas e inconstantes – porque trata
das questões ligadas pela tríade sexo-gênero, raça-etnia e classe social –,
que perpassam a existência das mulheres negras, que designam na cultura
seus corpos e contornam suas experiências sociais8. Como complementa a
estadunidense Kimberlé Crenshaw à perspectiva interseccional, é preciso
dar enfoque às demandas das mulheres negras, que são sujeitos historica-
mente vulneráveis. São estruturalmente as mais vulneráveis, em relação à
escolaridade incompleta, ao trabalho subalterno, ao estupro e à morte9.
Deste modo, a interseccionalidade tornou-se uma linha metodoló-
gica mais sistemática nesta análise, a partir do viés, do estudo do corpo
no/do feminino negro dando-lhe outros tratamentos diferenciados, tais
como enquadramentos dos estudos afro-brasileiros. Na atualidade, as re-
flexões sobre as diferentes correntes teóricas feministas, os avanços, os
retrocessos e as discordâncias entre as diferentes abordagens podem ser
encontradas em disputas em nossas pesquisas. Ainda que, em maioria,
os movimentos dos feminismos na contemporaneidade, de modo geral,
tenham se empenhado em discutir as questões relativas ao sexo/raça na
problematização da liberdade dos corpos, a vertente do feminismo negro
é pautada na subjetividade de quem produz o conhecimento. E as pro-
duções mais recentes de pesquisadoras negras precisam ser reconhecidas,
difundidas e aprofundadas, ampliando, assim, o campo de debates sobre
os temas que atravessam esses corpos.
Como pesquisadora negra, poeta-performer, antirracista, me deba-
to com/em representações endereçadas a mim. E, em que medida, esses
modelos de mulher negra me vestem adequadamente? Neste capítulo, ao
questionar: “e eu não sou uma mulata?” estou ironizando a mim mesma,
7. hooks, Op. cit., p. 27
8. hooks, Op. cit.
9. CRENSHAW, Kimberlè. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Revista de Estudos Feministas, v. 7, n. 12, p. 171-
88, 2002.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 103


considerando mais uma premissa de hooks, de que só as mulheres negras
podem se autodefinir, também em concordância com os ensinamentos da
pesquisadora Patrícia Hill Collins, sobre a produção feminista negra e o
poder da autodefinição, que se configuram como um modo de as pesqui-
sadoras negras visibilizarem suas narrativas de sobreviventes aos sistemas
de opressão10. Aqui a interseccionalidade foi articulada a partir das noções
de “mãe preta”, “doméstica” e “mulata”, da historiadora Lélia Gonzalez.
Com este enfoque a mulata – em sua correlação de gênero, raça, idade
e classes menos favorecidas no Brasil, enfrentam muitos desafios para se
estabelecerem fora destes papéis, como por exemplo, tornarem-se artistas e
produtoras de conhecimentos.
Afinal, quem é a mulata? Não há um padrão para o tom de pele, pois,
socialmente, a representação de mulher negra/afro-brasileira pode variar
muito, indo desde as cútis mais retintas, as mulheres negras de pele mais
claras, e as quase brancas. Imagina você uma mulher não branca, com for-
mas corporais fartas e arredondadas, que requebra bem, aparece seminua
- coberta com alguns adornos carnavalescos. Pode ser que ela tenha parte
de seu corpo pintado por cores vibrantes, exibindo-se em gestos sexuais
ou dançando freneticamente um samba. Ela pode ser chamada de mulata?
Esta descrição pode, igualmente, ser a materialização da personagem ero-
tizada pelos olhares da cobiça sexual expressa na performance Vem para ser
infeliz (2017)11, da artista afro-brasileira Priscila Rezende.
Na performance da artista mineira, o que chama atenção, primeira-
mente, é o título, ironicamente, uma alusão aos versos do samba Globele-
za12, composto por Jorge Aragão e Franco Lattari, cujo refrão original é

10. COLLINS, Patricia. H. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In:
JABARDO, Mercedes (Org.). Feminismos Negros: una antologia. Madrid: Traficante de
Suenos, 2012, p.26.
11. A descrição da Performance foi feita a partir de uma fotoperformance Vem… pra ser
infeliz, realizada na cidade de Santos, SP, Brasil, em Julho de 2017, bem como, por meio
da fotografia de Luiza Palhares, postada no dia 12/01/2018, e das descrições no site oficial
da artista Priscila Rezende. Disponível em: http://priscilarezendeart.com/projects/154/.
Acesso em: 10 de abr. de 2020. O dispositivo performático Vem... pra ser infeliz foi apre-
sentado também em alguns lugares, entre eles na Perfura Ateliê de Performance, Sesc
Palladium, Belo Horizonte, MG, 2017.
12. Samba de Jorge Aragão e Franco Lattari, 1993, Gravadora Som Livre. “Lá vou eu, lá
vou eu/Hoje a festa é na avenida/No carnaval da Globo/Feliz eu tô de bem/Com a vida
vem amor/Vem...deixa o meu samba te levar/Vem nessa pra gente brincar/Pra embalar a
multidão/Sai pra lá solidão Vem Vem Vem/Vem.....pra ser feliz/Eu tô no ar tô/Globe-

104 - Urdiduras da história


“Vem pra ser feliz”. A música Globeleza foi composta originalmente para
a trilha de uma vinheta televisiva, que é conhecida como homônima da
canção. A vinheta idealizada pela Rede Globo, uma das grandes emissoras
de TV brasileira, veicula a chamada há quase trinta anos. A chamada da
mulata global, de apenas 30 segundos, é inserida numa programação anual,
que é exibida todos os dias por um período médio de 70 dias, o que reforça
e naturaliza esses estigmas no imaginário das/dos brasileiras/os.
Na vinheta televisa, as passistas que encenam a globeleza, por muitos
anos, se apresentavam apenas com um tapa sexo, o resto do corpo pinta-
do. A atração principal da vinheta global é a performance de uma passista
de samba, sempre de biotipo negra-mulata, seminua, ornada com enfeites
carnavalescos, como tinta, plumas e purpurinas13. Os discursos que criam
a personagem e encarnam a “Globeleza” expressam a adesão e a repro-
dução ativa de uma forma de pensar e representar o corpo da mulata,
considerada como um símbolo (sexual) nacional, que vem anunciar todos
os anos, o carnaval – a festa mais popular do Brasil14. A “mulata Vem pra
ser infeliz” é representada de forma semelhante à mulata da iconografia
construída partir do sentido de um erotismo primitivo e desenfreado,
fortemente demarcado pelo enredo discursivo entre o desejável – pela
exuberância do gênero, formas corporais, exotismo étnico – ao mesmo
tempo em que a mesma representação social simboliza o preterimento
ligado a uma discriminação étnico-racial15.

leza/Eu tô que tô legal/Na tela da TV no meio desse povo/A gente vai se ver na Globo
Na tela da TV no meio desse povo/A gente vai se ver na Globo.
13. As musas do carnaval da Globo já foram encenadas por Valéria Valenssa, a primeira Glo-
beleza, que ocupou de 1991 até 2004. No ano 2005, foi a Globeleza Giane Carvalho, entre
2006-2013 foi a vez de Aline Prado, em 2014 Nayara Justino. Erika Moura representa a
passista global desde 2015, e surpreendeu a expectativa do público, ao representar, em 2017, a
primeira mulata Globeleza vestida com roupas na vinheta. Outra inovação deste ano foi, além
do samba, a introdução de outros ritmos, como frevo e o maracatu. Disponível em: https://
noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/menos-de-dois-meses-do-carnaval-globo-atrasa-
-vinheta-e-esconde-musa-globeleza-32372 Acesso em: setembro de 2021.
14. Através deste QR code você terá acesso a(s) vinhetas(s), de 1978 a 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=npFIn16zrG8&t=398s Acesso em: julho de 2022.
15. Neste QR code, há um vídeo sobre Nayara Justino, eleita Globeleza 2014, através de
voto popular em um programa de TV, da mesma emissora. Mas ela ficou apenas um ano
com o título, após ser substituída por uma outra passista com o tom de pele mais claro.
O que representa que a mulata brasileira se diferencia em muitas nuances das várias ou-
tras construções existentes em um mesmo território. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=G-KqgA_Ua40 Acesso em: julho de 2022.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 105


Na performance, Priscila Rezende, ao apresentar-se como uma passis-
ta de escola de samba, evidencia-nos que não só o corpo é alvo – que deve
responder ao estereótipo de mulata – como também são adestrados os seus
gestos, suas condutas e expectativas. A mulata brasileira – em tese –, no
âmbito estritamente étnico-genético, é o resultado do ajuntamento carnal
entre brancos e negros. Essa ideia, contudo, não delimita um arquétipo fí-
sico único, com tonalidades específicas do animal híbrido – ao qual o termo
se refere. No caso das mulheres, seriam facilmente reconhecidas, peculiar-
mente, por sua alta performance de sexualidade e erotismo. Essa mulher
mulata é vista como uma portadora de um desempenho físico que atende às
demandas de um desejo construído entre as sexualidades masculinas, isto é,
às demandas de uma sociedade patriarcal.
A sexualidade da mulher negra e/ou afro-brasileira exibe uma mesma
formação discursiva da representação mulata, cuja historização remonta
ao período escravista da sociedade patriarcal brasileira, cuja mentalidade
criou, na pena de um de seus renomados intérpretes, o seguinte aforismo:
“Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar”16. Esse ditado
popular tornou-se mais corrente no século XX, quando ganhou destaque
a partir da menção na obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.
Nesta passagem, fica claro que, à mulher branca, é concedido e concebida
a norma do matrimônio, entre outros considerados privilégios, e as mu-
lheres não negras estariam relegadas ao trabalho, ao cuidado e as relações
desviantes, pecaminosas e frívolas.
Ainda em 1933, Freyre publicou Casa-grande & senzala: formação
da família brasileira sob o regime da economia patriarcal17, em que dis-
corre sob/sobre a mentalidade de sua época, do mesmo lugar ocupado
por muitos abusadores que usaram da cultura de violências simbólicas
e concretas, cometidas contra os corpos e a memória de mulheres afro-
-brasileiras. O que também destaco neste aforismo é, ainda que hou-
vesse claramente estes limites tênues entre as identidades de “mulata” e
“negra”, essas delimitações foram dissolvidas e readequadas. Novamente,
isso direciona-nos aos questionamentos de mestiçagem que recorrente-
mente são tangenciados neste texto.
Sobre a dissolução dessas categorias, ao longo de sua historicidade, é
16. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Schmidt, 1933, p. 72.
17. Tese originalmente intitulada Social life in Brazil in the middle of the 19th century, defen-
dida em 1923, na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Colúmbia.

106 - Urdiduras da história


passível de se imaginar que, à época, as mulatas tiveram filhos negros/as e
mulatos/as. E as negras/os teriam filhas/os negras/os e mulatas/os, entre
outras tantas variantes a que se tem notícia. O pensamento sociológico do
antropólogo e a expressão corrente, portanto, ajudaram a fortalecer essa
concepção hierárquica e fictícia que situam as afro-brasileiras na base des-
sa pirâmide, além de implicar nos lugares sociais que esses corpos devem
ocupar e suas performances sexuais. Em muitas passagens, como a que cito
a seguir, Freyre apresenta as mulheres negras como o elo harmonioso que
uniu as raças no Brasil. Nas palavras dele:

Da escrava ou sinhá que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos
deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da ne-
gra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assom-
brado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira
tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem18.

Neste enunciado de Freyre, que faz também referências às habilida-


des artísticas dessas mulheres como contadoras de histórias, não deixa de
salientar os lugares da servidão do cuidado que, historicamente, foram
atribuídas às negras africanas e às afrodescendentes nascidas no Brasil.
Seguindo uma linha temporal cronológica, a antropóloga Nicole Barreto
Hindert, em sua a tese de doutorado “The jeito of the brazilian mulata: race
and identity in a racial democracy (2016)”, salienta que, ao longo dos 18
anos de governo – apoiado justamente na visão freyriana –, Getúlio Vargas
incentivou na política de dar visibilidade ao país, na criação e no fortaleci-
mento de símbolos para reforçar uma identidade nacional, sobretudo, de
interação pacífica e harmoniosa entre os brasileiros. Primeiro governo de
Getúlio Vargas (1930-1945) Vargas apoiou e divulgou, por diversos meios
de comunicação e propagandas, o turismo, o futebol, o Carnaval, o samba
e a sexualidade da mulata brasileira19.
Estes investimentos estavam dentro do projeto do país que se abria
para propostas e empreitadas comerciais internacionais. A “mulata pra fu-
der”, de Gilberto Freyre, vai reaparecer, um pouco mais modernizada, em
18. FREYRE, Op. cit. p. 283.
19. HINDERT, Nicole Barreto. The jeito of the brazilian mulata: race and identity in a
racial democracy. George Mason University Fairfax, VA, 2016, p.10. Disponível em: http://
ebot.gmu.edu/handle/1920/10413 Acesso em: agosto de 2020.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 107


meados do século XX, entre os anos de 1930 a 1954, em que ela ganha
novos contornos e uma remodelação mitológica. A mulata pôde contar
com o reforço do Governo Federal, através dos discursos propagandísticos
do presidente da República Getúlio Vargas. A “mulata brasileira” surge no
cenário nacional, esbanjando as peculiaridades e as particularidades que a
diferenciavam das demais das Américas. Junto a essa representação singu-
lar de negra, a mulata nacional, a “mulata brasileira” surge e abriga em seu
arquetípico as diversas derivações de representações de sexualidades das
afro-brasileiras e brasileiras.
Mas, afinal, o que a mulata brasileira tem? O que faz da representação
da mulata brasileira distinta das outras mulatas? Os interesses e esforços
para compreender quem é a mulata transcendem as fronteiras do próprio
país, como mostra o estudo das pesquisadoras afro-americanas, Angela
Gilliam e Onik’a Gilliam, que descrevem que é: “No teatro elaborado do
carnaval que a mulata, portanto, emerge como o símbolo mais concreto
duma índole mais ampla. Encarnando uma ideologia inteira, ela se torna a
representação do Brasil mesmo”20. Angela e Onik’a são consideradas mula-
tas dentro da ótica norte-americana, e elas se autodeclaram assim, em seus
estudos, para enfatizar a experimentação de estarem em território brasileiro
e serem tratadas como mulatas, de modo diferenciado de suas origens, per-
cebendo como a mulata brasileira reserva particularidades e ambiguidades,
que marcam e orientam a sua vida e sua trajetória afetiva.
De acordo com as pesquisadoras, as mulatas brasileiras: “(...) incor-
porarão mais de uma representação na trajetória (...) desde serem mulatas
sexualizadas na juventude, a nutridoras, zeladoras e negras desfeminiza-
das quando tiverem mais idade”21. Interessante notar que as peculiarida-
des apontadas por Angela e Onik’a, em experimentarem serem mulatas
no Brasil, não se diferenciam dos discursos estereotipados de (re)produ-
ção correspondentes às mulheres afrodescendentes em toda a América,
também reforça bell hooks, quando frisa: “imprimem sobre todas as nos-
sas mentes as imagens negativas da natureza feminina negra”, existindo,
basicamente, dois perfis que determinam as mulheres negras: a primeira
imagem “são de objeto sexual, prostitutas, vacas” e a segunda imagem é a

20. GILLIAM, Ângela; GILLIAM, Onik’a. Negociando a subjetividade da mulata. Revista


Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 479-489, 1995, p. 530.
21. GILLIAM; GILLIAM. Op. cit. p. 529.

108 - Urdiduras da história


“gorda e irritante figura maternal”.22
Nesta esteira, das norte-americanas, Nicole Barreto Hindert apon-
ta algumas conexões entre a mulata no nível individual e a mulata como
símbolo nacional para entender como a mulata tornou-se a representante
principal do sistema racial e do sinônimo de nação brasileira. A pesquisa
foi sediada na cidade do Rio de Janeiro23, segundo a pesquisadora norte-a-
mericana, por ser um território privilegiado para abordar o tema “o que é
ser uma mulata”. Hindert entrevistou um grupo de quarenta e quatro mu-
lheres brasileiras (que se autodeclararam negras, brancas, morenas, pardas
e brancas/pardas – esta última categoria acrescentada pela autora), na faixa
etária de 30 a 80 anos, com atuação em áreas diversas, ocupações tais como
professora, engenheira, funcionária pública, caixa, manicure, empregada
doméstica, dona de casa, médica, jornalista.
Para Hindert, a mulata brasileira representa uma identidade nacional
porque traz em sua identificação a personificação da democracia racial, nas
suas palavras:

A mulata: uma mulher de raça mista que é um lembrete constante do lon-


go e cruel legado da escravidão, prova viva da democracia racial, a dança-
rina de samba seminua do Carnaval, uma prostituta, uma imagem usada
para atrair homens ocidentais como turistas, um símbolo de beleza, uma
fronteira entre branco e não branco, um repertório cultural, uma categoria
racial que não existe24.

Assim, a “mulata brasileira”, representada na tese de Hindert, é mais


do que um símbolo erótico mítico internacional. A antropóloga demons-
tra entender que as desigualdades entre as categorias sociais, no país, são
construídas historicamente a partir de diferentes padrões de hierarqui-
zação constituídos pelas relações de gênero, raça e classe social. A pes-
quisadora concorda que a mulata é uma advertência pontual e regular de
que a democracia racial instituída no Brasil é falaciosa. Nas palavras da
antropóloga Hindert,

22. hooks. Op. cit., p. 48.


23. A capital Rio de Janeiro, do Estado homônimo, é o lugar onde as musas do carnaval po-
dem ser encontradas facilmente, pois é o celeiro das escolas de samba, a cidade sedia a festa
popular do país do carnaval.
24. HINDERT, Op. cit., p.02.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 109


Mas quem é a mulata? Além de sua exaltada posição na literatura latino-
-americana, sua idolatria sensual no imaginário social e sua desconstrução
na teoria da raça, a mulata é simultaneamente enigmática, problemática, e
extremamente importante. No Brasil, a necessidade de entender a mulata
é socialmente, economicamente e politicamente urgente. Através e sobre
seu corpo físico e simbólico atravessar uma constelação de forças sociais e
históricas que, em essência, contam a história da modernidade Brasil sob
uma perspetiva internacional, nacional, coletiva e individual25.

A pesquisa recente de Hindert discute o que a teórica brasileira Gon-


zalez já desnudava em seu estudo “Rito Carnavalesco”, da década de 1980,
em que revelou os indícios de como a invenção da mulata torna-se, a cada
carnaval, uma figura complexa e mítica atravessada por discursos da tam-
bém ficcional democracia racial brasileira. Como afirma Gonzalez:

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o ou-
tro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher,
no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por
aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com
fortes cargas de agressividade. A nomeação vai depender da situação em
que somos vistas26.

Segundo Gonzalez, é no Carnaval – cujo tema é a liberdade dos cor-


pos – que podemos assistir ao espetáculo que é o momento de grande con-
sagração das “brasilidades” 27, o momento em que toda uma nação celebra
o “mito da democracia racial”. Por outro lado, a definição da mulata por
ela mesma, representada no estudo de Hindert, registrada numa epígrafe,
descreve a mulata numa representação não mais individual, mas coletiva
e internacional. A entrevistada, denominada Patrícia, ao ser interrogada
sobre o que é ser uma mulata, responde:
25. Ibidem, p.02
26. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, p. 223-244,1984, p. 228.
27. É sabido que a população afro-brasileira, homens e mulheres, compartilham desses mes-
mos lugares estigmatizados, e carregam as construções sociais distorcidas no que diz respeito
à sexualidade. No caso do homem negro, ele tanto pode ocupar o lugar da hipersexualização
do “negão gostoso”, quanto outras categorias muito depreciativas que o caracterizam como o
“malandro”, “o “vagabundo”, o “bandido”.

110 - Urdiduras da história


A mulata é o símbolo do Brasil, assim como o Mickey Mouse é um sím-
bolo americano. E você (apontando para mim) não se parece com o Mic-
key Mouse (rindo)! É um comercial de imagem que vende, os homens
gostam de olhar, mas ela é uma personagem, do jeito que Mickey Mouse
é. A diferença é que as mulheres brasileiras são todas mulatas de uma ma-
neira ou de outra. Então é um personagem que meio que existe. Quando
você pensa no Brasil, somos nós mulheres28.

Evidencio essa citação pela definição útil em que se apresenta para


pensar o quão existem noções construídas, mais ou menos equivocadas e
ficcionalizadas, em torno da mulata e, por conseguinte, tendem a fabricar
um padrão normativo e aprisionar a sexualidade da maioria das mulheres
brasileiras – negras e não negras. Como a entrevistada sinaliza, os grupos
sociais (nacionalmente e internacionalmente), de diferentes óticas e táticas,
também auxiliam na criação de representações e recriação dessas comple-
xidades e desses arquétipos, pois são perceptíveis, como se percebe, por
exemplo, na mulata representada por Priscila Rezende que, através de suas
feições, demonstra que os corpos abjetos ocupam a ordem social da estafa
das exclusões gentis e do fardo das subjugações.

Figura 1 - REZENDE, Priscila. Vem pra ser infeliz, São Paulo/SP, Brasil, 2017. Cré-
dito da imagem: Luiza Palhares.

28. HINDERT. Op. cit., p. 2 (tradução minha).

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 111


Em Vem pra ser infeliz, as frustrações em relação às promessas de fe-
licidades estão inclusas no próprio nome da obra de Priscila Rezende. Po-
de-se considerar que “Vem pra ser feliz” – refrão do samba – é um enun-
ciado que, automaticamente, nos remete a um objeto/corpo/lugar/estado
emocional em que a felicidade está ao alcance de todos. A materialidade
do infortúnio por trás da RS da mulata não se resume à analogia ao refrão
da música e a alusão à vinheta televisiva, está sinalizada nas intenções da
artista brasileira, Priscila Rezende, ao retratar-se na RS da mulata brasi-
leira. A artista, debochadamente, faz uma intervenção no refrão da música
globeleza para nomear o seu dispositivo performático, trocando a palavra
“feliz” por “infeliz”.
Como podemos ver na imagem da performance, bem como da sua
descrição, a fadiga não é somente por dançar o samba de forma enérgica,
mas demonstrando-se ofegante ao rigor e forma convulsiva das represen-
tações pejorativas que seu corpo carrega. A metáfora da entrevistada da
pesquisa de Hindert, igualmente, serve de chave para a compreensão de
nuances de como se vive cada categoria racial no Brasil, a partir de noções
preconceituosas, fixas, aficcionadas, às avessas, e deturpadas, que levam al-
guns a crerem que, de fato, não há racismo no Brasil.
A representação da “mulata por ela mesma”, dada pela entrevistada
Patrícia, desnuda como as representações da(s) sexualidade(s) da(s) mu-
lata(s) vem sendo naturalizadas como um modelo único de política de
identificação nacional para designar as mulheres afro-brasileiras, quiçá,
para se referirem às sexualidades das brasileiras, de modo geral. A mu-
lata, a partir da sua descendência e ancestralidade africana não teria sua
sexualidade identificada somente pelo quesito cor de pele. Nesta reflexão,
a representação da mulata desvela que não há uma única forma de apro-
priação e apreensão desta identidade. Ainda que derivadas e intertextuais,
umas das outras, cultural e historicamente, as representações de mulata à
brasileira não configuram uma identidade única e natural, mas altamente
performática e política.
Ao examinar algumas características de ordem geral, da dinâmica de
cor, por exemplo, vê-se que, talvez, a sociedade colonial brasileira tenha
gozado da precisão de cor de pele, ao incitar a hipersexualização de mu-
lheres afro-brasileiras, se o intuito principal era classificar e manter sob
controle a classe/categoria denominada de mulatos. De modo mais espe-

112 - Urdiduras da história


cífico, portanto, nos dias atuais, quando se questiona quem são os mulatos
brasileiros e quem é a mulata? Se perguntar a qualquer brasileiro/a acerca
do biotipo de uma mulata, em maioria, na resposta figurarão elementos de
características físicas - ligados a um biotipo de afrodescendência. Sabe-se
que os fenótipos associados à africanidade não dizem respeito somente à
pele, mas ao cabelo, às espessuras da boca e do nariz.
No entanto, esses mesmos brasileiros fariam confusão e teriam uma
grande variação nas respostas sobre os aspectos do tom de pele. Há de
se pontuar, mais uma vez, que as questões ligadas à miscigenação, sobre
o aspecto da cor de pele, constituem um tema que ainda não prestamos
conta, e onde encontram-se as possibilidades de alargar as discussões sobre
as performances de identidades e categorias que envolvem a representação
da mulher negra/afro-brasileira. Observa-se que há uma hibridização de
ordem discursiva que forja uma representação de sujeito sem que ele – na
maioria das vezes – consiga localizar-se a si próprio, enxergar a própria
pele, saber a quais grupos étnicos descendem ou pertencem.
No entanto, a classificação racial no Brasil está atrelada à cor da pele.
Porém a cor, para designar preto, mulato, mestiço, não é algo tão objetivo
para a maioria dos/das brasileiros/as. Isso denota a confusão entre classi-
ficação do saber biológico e a denominação histórica e linguística de cor/
raça, e torna-se necessário frisar mais uma vez, ainda que resumidamente.
O termo mulato/mulata não só levanta a questão do tom de pele, como
provoca, embaralha as categorias e os marcadores sociais já viciados, nor-
matizados, naturalizados, ainda que diferentes, como o próprio termo mu-
lata, por exemplo. Tentar categorizar uma afro-brasileira como negra, não
negra, parda, morena e mulata não é algo tão evidente para os próprios
brasileiros e brasileiras.
A poeta estadunidense Alice Walker, que se dedicou a refletir sobre o
“colorismo” – ela considera que uma única gota de sangue africano é sufi-
ciente para se considerar uma afrodescendência, ainda que o sujeito tenha
a pele clara e olhos claros, – considera que a nomenclatura “mulata” diz
muito sobre o peso social que os afro-descendentes carregam nas Améri-
cas. Para Walker: “Mulheres negras são chamadas, no folclore que tão ap-
tamente identifica o status de alguém na sociedade, de ‘a mula do mundo’,
porque carregamos os fardos que todas as outras pessoas – todas as outras

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 113


pessoas – se recusaram a carregar”29. As ideias de afrodescendência e mes-
tiçagem, para muitos brasileiros/as, têm um outro tom que gera uma certa
confusão à população ao se autodeclarem afrodescendente/preto/negro/a.
Além de problematizar e revelar as singularidades ocorridas nas Américas,
na folclorização do/a mulato/a, a partir do animal mula, contamos com a
herança dos encontros com as etnias brasileiras pré-existentes. O enuncia-
do de Walker não deixa a menor dúvida de que todos/as os/as afrodescen-
dentes norte-americanos/as, ainda que sobre uma enorme variante no tom
de pele, poderão ser localizáveis pelo ‘fardo social’ que carregam.
Após a abolição da escravidão, a legislação estadunidense e sul-afri-
canas passam a considerar que a ‘raça’ de um indivíduo é definida pela
ascendência, e a partir daí estruturou leis raciais segregacionistas – para
delimitar lugares e impedir a miscigenação entre os brancos e negros norte-
-americanos. No entanto, os afro-americanos somam 13% do total de esta-
dunidenses. Essa população pode gozar de direitos, se organizar e buscar as
representatividades para conquistarem mais direitos, e aos mesmos moldes
segue lutando por mais dignidade. No Brasil, o conceito estadunidense
revela que não pode ser importado sem antes considerar o histórico de po-
líticas e famílias interraciais. A representação/termo mulata é útil também
para uma breve genealogia do colorismo à brasileira – que mostra as estra-
tégias de branqueamento30, do silenciamento de vozes indígenas e memó-
rias da população negra, além da violência contra os corpos de mulheres.
Além de tardio em seus processos abolicionistas, o Brasil constituiu
leis e valores identitários que nos levam a questionar ainda hoje sobre as
fronteiras de nossas identidades. Como escreveu Gonzalez, “(…) a gente
nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher
negra é uma conquista”31. A abolição brasileira investiu em relegar os afri-
canos e afrodescendentes aos espaços sociais subalternos e não incentivou
que fosse criado um sistema de identificação baseado na origem ou hi-
podescendência. O racismo estrutural tem sido produzido reiteradamente
nos discursos e na cultura, em diferentes nichos da sociedade32. Esse é um

29. WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães. Tradução Letícia Cobra Lima,
2019, p. 04. disponível em https://docero.com.br/doc/5v0c1e Acesso em: abril de 2020.
30. DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramen-
to, 2018.
31. GONZALEZ, Op. cit., p. 222.
32. DE ALMEIDA, Op. cit.

114 - Urdiduras da história


dos motivos por que, no país, não se considera grupos raciais, mas sim
grupos de cor33. Uma rápida olhada para o ordenamento jurídico brasileiro
e é possível notar os equívocos e as tensões que rondam a identidade do/a
brasileiro/a, principalmente sobre sua descendência afro-indígena.
A promulgação das leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08, que alteraram a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, foi resultado de muitas
lutas históricas e sociais desdobradas ao longo de mais de um século para
obrigar os/as brasileiros/as a ensinar e aprender, reconhecer e valorizar,
através da escola, a História e a Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Visto
isso, a própria classificação de “mulataria”, segundo especialistas, transita
dentro de um espectro racial que está dentro das mais de trezentas catego-
rias raciais existentes para a autoclassificação étnica no Brasil34.
Um estudo brasileiro sobre A invenção da mulata, da antropóloga Ma-
riza Corrêa, ressalta a mestiçagem, o mestiço, a mulataria como uma cate-
goria de cor que seria facilmente reconhecida pela sua pelagem diferente e
pela cor marrom ou acastanhada, e mesmo separados pelo gênero, o mula-
to e a mulata estão na mesma construção textual. Ambos compartilham da
mesma raiz etimológica “mula”, que designa um animal híbrido, nascido
do cruzamento entre um jumento e uma égua35. De acordo com Corrêa, o
mulato, por ser análogo a um animal híbrido, infértil, a ele foi destinada a
tarefa de animais de carga, entretanto, segundo ela:

(...) A mulata é puro corpo, ou sexo, não ‘engendrado’ socialmente. O


mulato (...) são agentes sociais, [que] carregam o peso da ascensão social,
ou do desafio à ordem social, nas suas costas espadaúdas; com sua cintura
fina, as mulatas, no máximo, provocam descenso social, e, no mínimo,
desordem na ordem construída do cotidiano36.

Corrêa, em consonância com a afirmação de outras pesquisadoras uti-


lizadas neste trabalho, entende que a mulata carrega uma carga maior de
derivações pejorativas, devido ao termo “mulata” ter se cristalizado como

33. GUIMARÃES, Antonio Sergio A. Raça e os estudos de relações raciais no Brasil. São
Paulo, Novos Estudos CEBRAP, 54, 147-156, 1999.
34. DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.
80-85.
35. CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, Campinas, n. 6-7, p.
35-50, 1996, p. 41.
36. Ibidem, p.41.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 115


parte de um conjunto de expressões erotizadas, muito usuais para a exalta-
ção da sexualidade da mulher negra37. A partir disso, pode-se compreender
como a concepção de raça é dada para homens e mulheres. No caso dos
homens afro-brasileiros, estes – a serem julgados pela aparência – estariam
condenados à falta de oportunidade de trabalhos, às violências institucio-
nais38. No caso das mulheres, essas construções objetificadas e subalter-
nizadas que contornam a representação da mulata ainda são cantadas em
músicas, em prosa e versos – nas obras artísticas, literárias e carnavalescas
– reforçando assim um dos maiores símbolos da brasilidade39.
Nessa mesma linha, a pesquisadora estrangeira Hindert, igualmente,
ressalta que é a “mulata, e não mulato, é a interseção central de raça, gê-
nero, sexualidade e nação”40. A partir de diversos elementos, em Vem pra
ser infeliz, podemos identificar o peso dessa representação carregada de
estereótipos e preconceitos. Os símbolos suscitados na representação da(s)
mulata(s), tanto na performance de Rezende quanto nas demais represen-
tações reunidas aqui, salientam como os marcadores identitários que se re-
ferem às mulheres afrodescendentes se renovam, se validam – variando-se
em diferentes momentos históricos e em diferentes espaços geográficos – e
são apoiados e reprodutoras, cada vez mais no/do racismo e no/do sexismo.
Essa dupla opressão às mulheres afro-brasileiras, obviamente, remete-nos
à exaustão que estampa a cara da mulata, enquanto a música da vinheta
anuncia quem sabe um sorriso às promessas de felicidade.
Sabe-se que, no Brasil, o samba é dançado tradicionalmente em ritmo
intenso e com muita euforia. Em Vem pra ser infeliz, a performer se move
ainda mais rápido, dançando e induzindo o espectador, por meio de suas
expressões, a pensar na sobrecarga que sustenta um corpo com tais refe-
rências, quando nos provoca a enxergar o incômodo, o cansaço, a esgota-
bilidade da repetição às violências simbólicas e físicas. Metaforicamente, a
performer Priscila Rezende simboliza o corpo sendo marcado por sambar
à exaustão. O que confirma que se trata de um reflexo social do imaginário
brasileiro, que historicamente mantém os abusos sexuais cometidos contra
a mulher negra, que sobrevive aos séculos, se reformulando e se difun-

37. Ibidem, p.42.


38. CORRÊA, Op. cit.
39. Ibidem.
40. HINDERT, Op. cit., p. 3.

116 - Urdiduras da história


dindo. Tanto a obra de Rezende quanto a encenação televisiva da mulata
globeleza enfatizam o quão é complexa e naturalizada a ideia socialmente
construída e disseminada no carnaval.
Como ressaltou Gonzalez, o carnaval é um lugar de muitas comple-
xidades, é propenso que, num momento de exibição, as mulheres negras,
prioritariamente, são os sujeitos mais objetificados para serem consumi-
dos e explorados. Neste sentido, fica fácil entender como as represen-
tações sociais da “mulata” seguem uma tendência a reservar o silencia-
mento, objetificação e, sobretudo, o sofrimento para as mulheres negras
em relação à sua sexualidade. Na mesma espreita da teórica brasileira
Gonzalez, as pesquisadoras norte-americanas Ângela e Onik’a Gilliam
acrescentam que “(...) quando raça, gênero e classe cruzam com as estru-
turas históricas de dominação, a representação sustentada, objetificada e
sexual das mulheres contribui ao controle sociopolítico duma nação e seu
povo como um todo”41.
A performer Priscila Rezende investiu justamente na desnaturalização
desse imaginário social construído por meio de representações assimétri-
cas, desigualdades naturalizadas, figurações subalternizadas, inclusive de
‘mulatas’ no sentido de que são corpos pensados como sambistas natas, tra-
balhadas na ideia de sexualidade selvagem e ótimas para parcerias descar-
táveis. A “mulata cinderela” citada por Gonzalez, bem como a “Globeleza”
e a personagem da performance de Rezende, têm muito em comum, pois
compartilham o coroamento de serem promovidas a artigos exóticos e de
luxo, como bem definiu Gonzalez, um “produto de exportação”42.
A representação da sexualidade da mulata passa a ocupar as pratelei-
ras de iguarias nacionais, e o poema Mulata Exportação, da poeta e atriz
capixaba Elisa Lucinda, publicado no livro O Semelhante (1995), de forma
inusitada, através da linguagem poética, apresenta os saberes gerados da/
na representação dessa mulata. A poeta denuncia e apresenta como ela pró-
pria trava uma relação de força com esses discursos. Lucinda promove um
diálogo entre as partes de um assédio sexual cometido a uma mulata. Nele,
a poeta enfoca a desconstrução da mulata como objeto mercadológico e
constantemente exposta a abusos e violências sexuais. No poema, por meio
de uma polifonia de vozes, ocorre um suposto diálogo entre dois persona-

41. GILLIAM, Op. cit., p. 530


42. GONZALEZ, Op. cit., p.223.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 117


gens: uma mulher, de origem negra, com um homem de classe dominante.
Num dos primeiros versos do poema, o personagem masculino se dirige à
mulata dizendo:

Mas que nega linda e de olho verde ainda/Olho de veneno e açúcar! /Vem
nega, vem ser minha desculpa/Vem que aqui dentro ainda te cabe /Vem
ser meu álibi, minha bela conduta/Vem, nega exportação, vem meu pão
de açúcar! /(Monto casa procê, mas ninguém pode saber, entendeu meu
dendê?)/Minha tonteira, minha história contundida, /minha memória
confundida, /meu futebol, entendeu meu gelol (...) /Sinto cheiro docê,
meu maculelê, vem negra, me ama, me colore/Vem ser meu folclore, /
vem ser minha tese sobre nego malê/Vem, nega, vem me arrasar, /depois
te levo pra gente sambar43.

Este trecho do poema de Elisa e os enunciados das pensadoras, acerca


da mulata, trazem mais um eco histórico de muitas imagens de mulhe-
res que se reconhecem como vítimas de abusos e assédios semelhantes. É
possível imaginar, por exemplo, que essas mulatas – em maioria por elas
mesmas – reforçam o coro que ecoa “eu também”. Seguindo na denúncia,
a personagem “mulata exportação”, do poema de Lucinda, num trecho, ela
narra aspectos relevantes de uma história de opressões:

Imaginem: /Ouvi tudo isso sem calma e sem dor. /Já preso esse ex-feitor,
eu disse: “Seu delegado...” /E o delegado piscou /Falei com o juiz, /o juiz
se insinuou e decretou pequena pena /com cela especial por ser esse bran-
co intelectual (...) Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! /Opressão, Barbarida-
de, Genocídio /nada disso se cura/trepando com uma escura!”/Ó minha
máxima lei, deixai de asneira. /Não vai ser um branco mal resolvido/Que
vai libertar uma negra: /Esse branco ardido está fadado /porque não é com
lábia de pseudo-oprimido /que vai aliviar seu passado. /(...) /Olha aqui
meu senhor: /Eu me lembro da senzala/E tu te lembras da Casa-Grande
/E vamos juntos escrever sinceramente outra história44.

Nota-se que nesta estrofe do poema repercutem ações do tempo pas-


sado-presente, quando se refere, entre outras coisas, a uma corte judicial, e
quando alude o seu algoz à classificação de “ex-feitor”. O poema remonta
alguns momentos históricos, como o período colonial, moderno e contem-
43. LUCINDA. O Semelhante. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 184-185
44. LUCINDA, Op. cit., p.185

118 - Urdiduras da história


porâneo. O que fica claro é que a mulata de Lucinda, em sua narrativa,
transita entre o período escravagista e os dias atuais, ao fornecer indícios
que, sim, as investidas do “senhor” é um incômodo histórico às mulheres.
Afinal, como nos alerta Foucault, as relações de poder e saber sobre a se-
xualidade se configuram nesses tipos de violências, opressão, dissidência
sexual e subalternização45. A notar que, como nos rememora a historiadora
Maria Elizabeth Carneiro,

Seria anacrônico, todavia, pensar em termos de estupro ou crime sexual


porquanto as cativas não tinham personalidade jurídica nem a violência
sexual era considerada crime à época. Todavia, é incontornável pensar
tais formas de usos, abusos, pressão e coação de senhores sobre mulheres
cativas como explicitação da violência que, em casos limites, resultou em
morte46.

De acordo com Carneiro, nos discursos oitocentistas, uma conduta


abusadora como a de um donatário cometido contra uma escrava – como
nos é remetido pelo poema de Elisa Lucinda – não seria classificada como
um tipo de crime. Ou seja, os fatos relatados no poema de Elisa Lucinda,
conforme esclarecimentos de Carneiro, eram comuns, chegando até casos
extremos como a morte. No entanto, esses casos não eram considerados e
nem punidos como crime. Desse modo, sem a intenção de anacronismo
histórico, destaco como essas representações vêm se fixando aos tempos e
contextos históricos distintos.
O poema de Mulata Exportação, que retrata o racismo e o patriarca-
do operando juntos numa situação de abuso sexual. Em outras palavras, a
musa/protagonista do poema descreve o delito sexual violento na ação não
só do assediador, mas de algum modo, de todos os esquadros e reações
da sociedade brasileira. Como deflagrado na ação da personagem do poe-
ma de Elisa Lucinda, ao reconhecer a opressão e violência sexual contra
ela, em sua defesa e para a sua proteção, apela para uma sessão judicial
onde desabafa. A “mulata exportação” recria um julgamento criminal e o
seu possível desfecho. Na cena narrada por ela, a sessão era presidida por
45. FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Curso no
Collège de France (1983-1984). São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 116.
46. CARNEIRO, Maria Elizabeth. Procura-se “preta, com muito bom leite, prendada e
carinhosa”: uma cartografia das amas-de-leite na sociedade carioca (1850-1888). 2006. 418
f. Tese (Doutorado em História)-Universidade de Brasília, Brasília, 2006, p.17.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 119


magistrados homens, que, na prática, estariam na posição de protegê-la
enquanto vítima de um abuso. O poema Mulata Exportação levanta uma
questão latente, certamente fruto do contexto em que foi publicado, e que
antecede em seu script, a lei que seria sancionada aproximadamente seis
anos depois.
A lei acrescida no Código Penal Brasileiro, o artigo 216-A, a Lei nº
10.224, de 15 de maio de 2001, que criminaliza o constrangimento do as-
sédio. Em suas normas, a lei estabelece que: “Constranger alguém com in-
tuito de levar vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente
de sua forma de superior hierárquico, ou ascendência inerentes a exercício
de emprego, cargo ou função: Pena: detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos”.
Pode-se considerar que o crime de assédio sexual começa a ser cumprido
alguns anos depois da publicação do poema. O que aponta que os discursos
de repúdio ao assédio, especialmente cometido contra as mulheres, não
estava apenas nos circuitos das artes e nos feminismos, mas como lutas
políticas históricas e substantivas em outras esferas sociais, como nos mo-
vimentos negros e na pauta do ordenamento jurídico penal.
O poema, da mesma forma, anuncia gestos corriqueiros de violência,
cotidianos, mas também conquistas nos lugares demarcados nesta corte
judicial. Ainda que tendo um lugar nessa narrativa jurídica, a mulata des-
confia dos limites do seu lugar de fala, naturalizado e demarcado pelo olhar
dominador, colonizador, como neste enunciado, em que a mulata de Lu-
cinda diz:

Digo, repito e não minto: /Vamos passar essa verdade a limpo /Porque
não é dançando samba /Que eu te redimo ou te acredito: /Vê se te afas-
ta, não invista, não insista! /Meu nojo! /Meu engodo cultural! /Minha
lavagem de lata! /Porque deixar de ser racista, meu amor, Não é comer
uma mulata!47.

O poema detona camadas históricas do jogo conflituoso das narrati-


vas ressoando as vozes e os locais blindados, sobretudo, pela condição de
homens brancos dominantes. No poema Mulata Exportação, as estratégias
de saber e poder acerca da sexualidade da mulata, são remontadas a partir
da hierarquização: homem branco, mulher branca, homem negro, mulher
negra. É Foucault que nos atenta para as armadilhas do dispositivo da

47. LUCINDA, Op. cit., p.185

120 - Urdiduras da história


sexualidade, chamando-nos a atenção exatamente para esses arranjos des-
ses saberes que se constroem, e são constituídos pelo sujeito, como uma
articulação de aprisionamentos que impossibilita que o sujeito consiga se
precaver o tempo todo48.
Embora exista uma cultura historicamente machista, sexista, racista
no Brasil que, constantemente, coloca em xeque a palavra da vítima, cul-
pabilizando-a pelos crimes de assédio e violência sexual, mostrando que as
mulheres ainda não se livraram de serem objetificadas pelas tecnologias de
sexo-gênero-raça, de acordo com o padrão arraigado na sociedade brasi-
leira, de todo modo, a personagem do poema de Lucinda, ao perceber o
descaso e menosprezo por parte das autoridades, reage num tom de indig-
nação. Todavia, a mulata da poeta revela outra representação: para além
da vítima historicamente objetificada, mas que não se amedronta frente a
seu (s) assediador(es), ela reage, não se culpa e não se deixar enganar, ao
perceber que, mesmo diante do que seria um julgamento penal a seu favor,
torna-se, mais uma vez, vítima da cobiça dos homens.
Na performance de Rezende, se localiza com muita facilidade esse
corpo marcado, e altamente vulnerável às violências sexuais. Em Vem pra
ser infeliz a mulata exibe em seu corpo as palavras coladas na pele: “Mula”,
“mulata”, “Cor do pecado”, “Exótica”, “Violão”, “Exportação”, em alusão
a esse estilo de body art da vinheta global. A partir da conceituação de
Programa Performativo49, adotado nesta análise, sugere-se que o gerador
da experimentação pôde ser revelado por diversas representações contidas
na obra de Rezende. Veja que a artista, minuciosamente, escolhe expres-
sões linguísticas, que previamente são anunciadas, porque estão grifadas na
própria pele da artista.
Assim, pelo reforço das palavras e das multiplicidades de signos e dis-
cursos que as perpassam, novamente, temos outra intertextualidade com a
“globeleza” televisa, muito lembrada pelos desenhos coloridos de figuras
tridimensionais inseridos no corpo da mulata sambista da vinheta. Tais
expressões como “Cor do pecado”, analisada no âmbito das classificações
de gênero e de raça, como afirma a Psicossocióloga brasileira Edith Pom-

48. FOUCAULT, Op. cit., p.116


49. FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo em experiência. Revista do
Lume. Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais. Unicamp. n. 04, dez. 2013, p. 04. Dis-
ponível em: <http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/vie-
w/276/256>Acesso em: set. de 2017.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 121


peu Piza – num contexto fundado por valores morais e religiosos como
no Brasil – a expressão faz associação direta com o corpo negro ao pecado
(1995, p.52).
Logo, a figura da mulata é, mais uma vez, lida e produzida com traços
patológicos pela mentalidade cristã50, levando a se concluir que são infindas
as combinações de discriminações que geram as exclusões, tendo como
preponderantes os mecanismos racistas e machistas. Parafraseando bell
hooks, o período colonial atribuiu às negras escravizadas o papel de mulher
“malévola”, possuidora de luxúria sexual que utilizava para seduzir homens,
tidos como vítimas51. As negras encarnam a imagem de uma sexualidade
demonizada, segundo um conjunto imenso de autores, que carrega em seu
corpo a responsabilidade do pecado alheio. É como pode ser interpretada a
segunda estrofe, quando dito em parênteses:

(Monto casa procê, mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?) /
Minha tonteira, minha história contundida, /minha memória confundi-
da, /meu futebol, entendeu meu gelol (...) /Sinto cheiro docê, meu ma-
culelê, vem negra, me ama, me colore/Vem ser meu folclore, /vem ser
minha tese sobre nego malê/Vem, nega, vem me arrasar, /depois te levo
pra gente sambar52.

Este enunciado expõe novamente que a força instituinte da voz mas-


culina sussurrada, revelando outras nuances dessa sexualidade, um discurso
cochichado, naturalizado das usuais propostas de relacionamento secreto,
ou relações não oficiais, clandestinas, recorrentemente direcionadas às mu-
latas. Descortina, igualmente, a prática silenciosa, que qualquer leitor pode
localizar. Quem nunca ouviu falar em relações extraconjugais? Conclui-
-se que o personagem masculino propõe parcerias afetiva-sexuais à mulata
longe do que faria a uma pretendente à esposa, e isso não apenas revela
uma lógica de produção de sujeitos, como enfoca uma repetição de referên-
cias à sexualidade de acordo com os investimentos normativos, opressivos e
assimétricos do discurso racista e patriarcal.
A poeta Lucinda, propositalmente, confere chavões e expressões cli-
chês à fala do personagem masculino para enfatizar que não se trata de um

50. CORRÊA, Op. cit.


51. hooks, Op. cit.
52. LUCINDA, Op. cit., p.185

122 - Urdiduras da história


comportamento isolado. Pela lógica dos marcadores raciais, são propos-
tas um tanto corriqueiras, ao ponto de muitas mulheres afro-brasileiras
se reconhecerem nesse tipo de experiência. Entendo que é nesse tipo de
abordagem baseada nos dispositivos que atuam na ordem afetiva-sexual,
que se pode observar como as representações construídas sobre a mulata
insinuam modos de subjetivação/objetivação que podem ser internalizados
e incorporados às experiências e identidades como referentes relevantes
para todas as mulheres afro-brasileiras. A representação hipererotizada da
mulata no poema é mais uma evidência de que os personagens emitem uma
polifonia de vozes, de tempo e espaços diversos, e que dialogam entre si,
marcando sempre a hierarquia da autoridade masculina frente ao submisso
corpo-objeto, corpo-servil das afro-brasileiras.
Quando o personagem masculino do poema diz: “Rebola bem meu
bem-querer; sou seu improviso, seu karaoquê; vem nega, sem eu ter que fa-
zer nada... Vem sem ter que me mexer”53, ele não fala sozinho, traz consigo
um coro com associação de outras vozes subjetivadas. Como nos lembra as
antropólogas Gilliam, naquele “(…) começo velado daquele ditado (Bran-
ca para casar mulata para f negra para trabalhar) supostamente seria para o
homem brasileiro a vida perfeita”54. O sonho sexual da maioria dos homens
não reserva novidades às mulheres, sobretudo mulatas. Como bem ironiza
a pensadora afro-brasileira Joice Berth, acerca do imaginário sexual dos
homens – negros e brancos –, se questionados, a cada dez homens, vinte
responderiam: “eu sempre quis ter uma negra”55.
Além do mais, ao se referir às relações de poder, Foucault reforça que
elas atuam diretamente no nosso corpo de forma meticulosa e se renovan-
do e, por isso, pode-se compreender o porquê do corpo negro se tornar

53. Ibidem, p.185


54. GILLIAM. Op. cit., p. 528, grifo meu.
55. De Diana Ross a Nick Minaj, a mulher negra é puro estereótipo sexual no imaginário
de homens negros e brancos. É o mito da “morena brejeira”, da negra fogosa que tudo topa
e cujo fôlego não acaba nunca. Aquela que está sempre pronta. O suporte de esperma do
senhor de engenho de ontem e de hoje, ainda. Não sou tuas negas, diz a expressão racista
de cunho sexual e origem escravocrata. A cada dez homens que são aceitos (quando e se são
aceitos e não necessariamente nessas quantidades é óbvio!) em nossas alcovas fetichizadas e
aparentemente permissivas, vinte terminam dizendo da maneira mais nojenta possível, consi-
derando que a capacidade de um homem ser nojento é infinita: “Sempre quis ter uma negra”.
https://www.geledes.org.br/o-racismo-e-a-sexualidade-o-caso-de-nick-minaj-e-a-desuma-
nizacao-da-mulher-negra/. Acesso em: maio de 2020.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 123


um duplo alvo56. Logo, a figura da mulata é, mais uma vez, lida por infin-
das combinações de discursos de discriminações que geram as exclusões,
tendo como preponderantes os mecanismos racistas e machistas. Dessas
variantes acerca da/na representação nacional da mulata, designadas de
mulher não branca e objetificadas, sendo retinta ou não, mostram as di-
versas intersecções possíveis para se pensar as identidades / subjetividades
construídas na história, do ponto de vista daquilo que se considera a uma
‘sexualidade brasileira’.
Através da RS da mulata percebe-se que, no imaginário brasileiro,
mulheres negras e brancas revelam os diferentes usos do corpo, da sexua-
lidade, ou seja, o que separa brasileiras negras e não negras são as oportu-
nidades sociais que são historicamente racializadas no país. As não negras
apresentam hábitos e costumes corporais distintos, e respectivamente, no
que se refere às condições de existência, seus lugares e seus papéis sociais.
Na/da representação da mulata brasileira, vê-se esses diferentes espectros
que espelham os criatórios de sexualidades como a da Mulata e da Mulher
negra, reduzidas como objeto fixo, único, corpo sexualizado, político e ins-
trumental na construção de sujeitos e de histórias racistas e sexistas.
Na hierarquia social brasileira, a mulher negra combina mais de um
tipo de opressão, ocupando o quarto lugar na pirâmide social, tendo seu
corpo objetificado, sua intelectualidade e potencialidade artísticas descre-
dibilizadas, o que a coloca em situação de vulnerabilidade constantemente.
A mulata é uma identidade que representa fielmente a falsa democracia
racial brasileira. Além disso, essa identidade reivindica direitos políticos,
trabalhistas, entre outras demandas, como a liberdade sexual. É ela que,
nas performances de Rezende e Lucinda, faz usos do passado de várias
formas, e o reproduz tanto em gestos, silêncios, como em monumentali-
zar representações históricas, para desestabilizar representações estanques
e unívocas do que é ser uma afro-brasileira. Estes trabalhos artísticos ana-
lisados aqui estão tematizando insurgência, insubordinação de sujeitos no/
do feminino negro. E, nós que transitamos neste(s) lugar(es), sabemos que
a trajetória de mulheres negras traz problemáticas diversas, e que são alta-
mente estruturadas, codificadas e violentas.
Mulheres afro-brasileiras nem sempre puderam exercer suas habili-
dades artísticas e intelectuais, as que conseguiram ousar no meio artísti-

56. FOUCAULT, Op. cit., p. 116.

124 - Urdiduras da história


co e acadêmico, poucas são relembradas, e muitas tiveram suas histórias
invisibilizadas e esquecidas. Haja vista a ausência de histórias de artistas
afro-brasileiras estampadas nas revistas, nos arquivos, nos livros e registros
que circulam nas escolas e nas universidades brasileiras - e qualquer pessoa
pode se certificar disto. A História da Arte escrita no Brasil, inclusive a
que vem sendo construída pelos feminismos, não privilegiam a atuação dos
corpos negros na performance artística. Há de se considerar que a liber-
tação/emancipação para as mulheres negras foi, é e será processual – pas-
sando por muitas lutas cotidianas na defesa de sua inclusão social, pelo co-
nhecimento dos seus direitos, por melhor qualidade de vida, de instrução,
cultura e profissionalização.

FONTES

Performances

REZENDE, Priscila. fotoperformance Vem pra ser infeliz, São Paulo/SP,


Brasil, 2017. Crédito da imagem: Luiza Palhares

Entrevistas

LUCINDA, Elisa. Diálogos ausentes. Itaú Cultural. São Paulo, 2017.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w5UBFd0wZ94
Acesso em: junho de 2017a.

___________. Roda Viva. TV Cultura. São Paulo, 2017b.

Referências

BATISTA, Patrícia Giselia; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro.


Diálogos entre a Arte, a História, a Política e os Feminismos: a perfor-
mance como um artefato explosivo. Caderno Espaço Feminino - Uber-
lândia-MG -v. 30, n. 2 –jul.-dez. 2017. Disponível em: https://seer.ufu.
br/index.php/neguem/article/view/41463/pdf Acesso em: julho de 2017.

CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Corpos negros em exposição no


museu imaginário da nação: em busca de novos enquadramentos. In: STE-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 125


VENS, Cristina et all. (Org.). Mulheres e Violências: Interseccionalida-
des. Brasília/DF: Technopolitik, 2017, v. 1, p. 226-242.

______. Procura-se “preta, com muito bom leite, prendada e carinhosa”:


uma cartografia das amas-de-leite na sociedade carioca (1850-1888). 2006.
418 f. Tese (Doutorado em História) -Universidade de Brasília, Brasília,
2006.

COLLINS, Patrícia. H. Rasgos distintivos del pensamiento feminista ne-


gro. In: JABARDO, Mercedes (Org.). Feminismos Negros: una antolo-
gia. Madrid: Traficante de Suenos, 2012.

CÔRREA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, Campi-


nas, n. 6-7, p. 35-50, 1996.

CRENSHAW, Kimberlè. Documento para o encontro de especialistas em


aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista de Estudos
Feministas, v. 7, n. 12, p. 171-88, 2002.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis Rio de Janeiro:


Zahar, 1981.

DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizon-


te: Letramento, 2018.

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena


contemporânea. Revista Sala Preta. v.8, n.1., São Paulo, 2008. Disponível
em:<http://revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263>
Acesso em: setembro de 2017.

______. Programa performativo: o corpo em experiência. Revista do


Lume. Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais. Unicamp. n. 04., dez.
2013. Disponível em: <http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/
index.php/lume/article/view/276/256>Acesso em: set. de 2017.

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos


outros II. Curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Martins
Fontes, 2011, p. 116.

126 - Urdiduras da história


FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Schmidt,
1933.

GILLIAM, Ângela; GILLIAM, Onik’a. Negociando a subjetividade da


mulata. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 479-489,
1995.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista


Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244,1984.

GUIMARAES, Antonio Sergio A. Raça e os estudos de relações raciais


no Brasil. São Paulo, Novos Estudos CEBRAP,1999, 54, 147-156.

hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo.


Tradução Bhuvi Libanio. 10. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.

LUCINDA. O Semelhante. Rio de Janeiro: Record, 2002.

WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães. Tradução Letí-


cia Cobra Lima, 2019, p. 04. disponível em https://docero.com.br/doc/5v-
0c1e Acesso em: abril de 2020.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 127


Entre História e imprensa do interior: reflexões
de pesquisa para uma prática historiográfica

Caio Vinicius de Carvalho Ferreira

Não é novidade a constatação de que a imprensa constitui um campo


fértil para a produção do conhecimento histórico. O uso dos mais diver-
sos periódicos e impressos nos ambientes de estudos das humanidades e
das ciências sociais no Brasil encontra-se disseminado, e esses materiais
são tanto fontes quanto temáticas de pesquisa em diversas áreas do co-
nhecimento.
Até os anos 70, ainda eram modestos os trabalhos que faziam o uso
de fontes impressas para a produção de História do Brasil. Embora uma
história da imprensa fosse produzida, fazer uma história por meio da
imprensa ainda era algo relutante nesse período. Anos mais tarde, no
entanto, esse cenário se modificou.1
Nas últimas décadas do século XX, no que diz respeito à produ-
ção do conhecimento histórico, houve um deslocamento das temáticas e
das fontes impulsionado pela emergência da chamada “Nova História”,
que se dedicou a pensar novos problemas, novos métodos, novas fontes
e novas abordagens. O trabalho de crítica com fontes de imprensas veio,
portanto, no bojo dessas transformações. Durante boa parte do século
XX, quando não eram considerados fontes de pouca importância, os pe-
riódicos receberam um tratamento que ia a duas distintas direções: ou ha-
via um excesso de suspeita em relação a eles, ou havia um enaltecimento

1. LUCA, Tania Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 111.
desses materiais como repositório da verdade.2 Essas posturas negavam a
pluralidade e a diversidade dos impressos, que constituem um instrumen-
to de cultura carregado de interesses e de tensões, e um instrumento de
intervenção na vida política e social.
Os jornais tornaram-se um rico material para as mais diversas pes-
quisas em História do Brasil. Eles são produtos que podem ser utilizados
para pensar uma história dos trabalhadores, do desenvolvimento urbano,
dos costumes, da propaganda, da participação de intelectuais e do mun-
do letrado na sociedade, além de poderem ser fonte para questões sobre
infância, gênero, política e perseguição. Em outras palavras, os jornais
registram cotidianamente o fazer-se de grupos e pessoas, suas aspirações,
seus anseios e suas ações de tentativa de mudança em seus meios.
Apesar de esses documentos se tornarem ricas fontes para a produ-
ção histórica nos últimos anos, alguns tipos de impressos continuaram
relegados às margens da historiografia, especialmente no que diz respeito
às reflexões feitas sobre suas especificidades, fato que os diferencia dos
demais impressos. Ao desenvolver um trabalho sobre e com imprensas
interioranas3, percebi que existe uma carência em reflexões teórico-me-
todológicas que serviriam de aporte intelectual específico para esse tipo
de pesquisa. Assim, nesse percurso, vi-me inclinado a pensar algumas
propostas em torno de análises da qualidade desses documentos.
Existe, no mercado editorial e nas pesquisas acadêmicas, um número
considerável de estudos sobre os jornais brasileiros, porém ainda engati-
nham os estudos que se referem à imprensa interiorana e seus contextos.
Apesar de um desenvolvimento gradual, ainda são recentes os estudos
que fazem o uso da imprensa do interior ou que se debruçam sobre ela.
Após uma investigação em meios de divulgação acadêmica, bancos de te-
ses e dissertações, entre outros, averígua-se que, apesar de existirem tra-

2. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contex-
to/EDUSP, 1988. p. 20-21.
3. A pesquisa que me refiro foi uma tese de doutorado, financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) defendida em 2021 no Programa
de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (PPGHI-UFU).
Nela, foram analisados os jornais Folha de Ituiutaba, Correio do Triângulo, Correio do
Pontal e Correio de Capinópolis. Cf. FERREIRA, Caio Vinicius de C. O interiorano
“subversivo”: imprensa e perseguição política no Pontal do Triângulo Mineiro (1951-
1964). 2021. 375f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia – MG, Brasil.

130 - Urdiduras da história


balhos específicos sobre e com os impressos de interior, ainda são poucos
os trabalhos com propostas teórico-metodológicas na área de História
que ajudem a pensar o tratamento e análise dessas imprensas interioranas,
assim como temáticas subjacentes a elas.
Apesar de a frequência das pesquisas com esses documentos estar
aumentando, ainda são escassos os trabalhos de História que auxiliem
pesquisadores a usarem esses tipos de fonte para a reflexão de suas carac-
terísticas e orientação. Essa constatação instiga a pensar nas particulari-
dades do tratamento dado a esses documentos e qual a sua diferença em
relação a outros tipos de impressos.
Portanto, ainda que haja um avanço na diversificação de pesquisas
com materiais impressos nas últimas décadas, não se dispõe de procedi-
mentos sistematizados para lidar especificamente com periódicos de im-
prensa interiorana e seus contextos de produção e repercussão. Ou seja,
há uma carência na discussão em torno de um procedimento teórico e
metodológico para o tratamento específico desses impressos na constru-
ção do conhecimento histórico.
Aqui pretendo trazer algumas reflexões sobre as análises de impres-
sos de interior que desenvolvi durante o trabalho de pesquisa. Muitas
dessas observações são fruto do confronto de aspectos teórico-metodoló-
gicos sobre fontes impressas na produção do conhecimento histórico com
reflexões propostas por outras áreas do conhecimento, principalmente do
jornalismo e da comunicação que, apesar de recente, apresenta ideias em
torno dos jornais produzidos em contextos interioranos que podem auxi-
liar a produção do conhecimento histórico.

A impressa do interior

Imprensa do interior não se refere a qualquer engrenagem midiática


situada na parte interiorana do país, mas às que se situam em cidades de
médio e pequeno porte, em contraposição às regiões metropolitanas e ca-
pitais do país. Inclui-se também, nessa classificação, mídias produzidas em
regiões de fronteira e de litoral. Interior refere-se, portanto, a cenários de
dimensões bem mais amplas do que sua demarcação territorial, pois cada
local tem especificidades culturais, sociais, entre outras. O fazer jornalís-
tico, nesses ambientes, está para além de reproduzir padrões comuns aos
grandes centros, pois essas imprensas buscam sempre encontrar as melho-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 131


res estratégias para cada realidade comunicativa, considerando suas pecu-
liaridades.4
A imprensa do interior é o ambiente onde o jornalismo é praticado
com particularidades decorrentes de demandas de seu espaço e da realidade
pela qual está circundada:

Resumidamente, essa imprensa se caracteriza como “pequena” ou, no


máximo, “média”, contando com equipes reduzidas e, no caso da mídia
impressa, com tiragens modestas, mesmo quando chega à marca dos mi-
lhares, uma vez que isso se dá por conta de um considerável número de
municípios que determinada publicação atinge. Como dito, caminha-se,
nesse âmbito, na contramão da “grande imprensa”, tanto no que diz res-
peito à circulação quanto às próprias condições de sua produção, quase
sempre marcada por limitações [financeiras, de pessoal treinado, de equi-
pamentos, de acesso, etc.].5

Portanto, o jornalismo interiorano é caracterizado pela sua inclina-


ção ao localismo e à regionalidade. Para Dornelles,6 o localismo se define
como a divulgação de fatos e acontecimentos de repercussão entre os
moradores que residem próximos da sede do jornal, assim a proximidade
é o essencial para a produção desses impressos que buscam atender os
interesses das comunidades onde circulam. Camponez7 chama isso de
“jornalismo de proximidade”, em que o fazer jornalístico se volta não
somente para as dimensões físicas e geográficas, mas também para as
dimensões temporais, as psicoafetivas, as socioprofissionais e as sociocul-
turais do lugar onde visa circular.

4. ASSIS, Francisco de. Imprensa do interior: conceitos a entender, contextos a desvendar.


In: ASSIS, Francisco de. (Org.). Imprensa do interior: conceitos e contextos. Chapecó:
Argos, 2013. p.14.
5. ASSIS, Francisco de. Por uma geografia da produção jornalística: a imprensa do interior.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação, 36, 2013, Manaus. p. 5.
6. DORNELLES, Beatriz. O futuro do jornalismo em cidades do interior. In: ASSIS, Fran-
cisco de. (Org.). Imprensa do interior: conceitos e contextos. Chapecó: Argos, 2013. p.63-
85.
7. CAMPONEZ, Carlos. Jornalismo de proximidade: rituais de comunicação na imprensa
regional. 1. ed. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2002. p.113.

132 - Urdiduras da história


Dos movimentos historiográficos

Durante o século XX, a produção historiográfica passou por deslo-


camentos importantes. A escola dos Annales, fundada no final dos anos
1920, na França, em torno da revista que carrega o mesmo nome do mo-
vimento, marcou um processo de crítica à visão de documento histórico,
ao questionar as ideias de objetividade e neutralidade empregadas e ao
refletir sobre os espaços e temporalidades para a produção historiográfica,
o que está relacionado ao pensamento da História como problema.
Esse movimento conferiu relevante renovação ao campo do conhe-
cimento histórico, mediante a crítica à hegemonia da história política,
e atribuiu centralidade ao econômico e ao social, dimensões que passa-
ram a ocupar um lugar fundamental na historiografia a partir de então.
A tendência às mudanças impulsionadas pelo movimento dos Annales
evidencia-se na terceira geração, conhecida como Nova História, que
propôs a reflexão sobre novos métodos, problemas e abordagens para o
conhecimento histórico. O ambiente de contato com outras áreas do co-
nhecimento, como a linguística, a semiótica, a psicanálise e a antropolo-
gia, impulsionou o conhecimento histórico a pensar outros meios para a
sua produção, incorporando novas linguagens, temas e áreas de interesse.
Uma “revolução documental” ocorreu desde a ampliação do que poderia
ser utilizado como fonte histórica.8
Na segunda metade do século XX, a historiografia marxista inglesa,
ao abandonar a ortodoxia e ao incorporar nas suas pesquisas a ideia de
cultura, passou a pensar novos atores, antes inferiorizados nos processos
históricos, como os trabalhadores, os pobres, os bandidos e os margina-
lizados pela sociedade e começou a entender os processos de resistência e
luta de outras maneiras que fugiam do economicismo marxista. Nos anos
1970, a corrente historiográfica da Micro-História italiana propôs um jogo
de escalas para se pensar os contextos e abordagens de pesquisa, voltando
seu olhar para a microanálise de contextos culturais, econômicos e sociais.
O interesse em uma História política, relegada ao esquecimento em boa
parte do século XX, foi retomado nas últimas duas décadas do século XX,

8. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e futuro. In: BURKE, Peter. (Org.).
A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Edi-
tora Unesp, 2011. p. 7-38.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 133


repensado e praticado com novas perspectivas e abordagens.9
As mudanças de pensamento em relação às fontes impressas no Brasil
seguiram esse caminho de renovação historiográfica. Os jornais e perió-
dicos passaram a ser entendidos dentro de uma ótica de novos problemas
para a história e como documentos possíveis para a produção de conhe-
cimento. Desde os anos 1980, cresce o número de pesquisas com e sobre
as fontes impressas. Hoje, os impressos e outros meios de comunicação
tornaram-se temas e fontes das mais diversas pesquisas como meio funda-
mental ou complementar para a análise. Entretanto, devemos pensar que
essas mudanças nas perspectivas historiográficas não cessaram e que há
uma infinidade de lacunas que podem ser trabalhadas sobre essas qualida-
des documentais.

A interiorização das universidades públicas brasileiras e as


pesquisas acadêmicas

No Brasil, desde a primeira década dos anos 2000, mudanças nas uni-
versidades públicas impactaram o surgimento de novos olhares de pesqui-
sas. Segundo Barros,10 de 2003 até 2010, ampliou-se a oferta de cursos e
vagas em função da expansão universitária em direção ao interior do Brasil.
Novas universidades federais foram criadas, muitas aumentaram o número
de campi, cursos e vagas, além de instituírem novos cursos de pós-gradua-
ção, muitos deles em razão do Programa de Apoio a Planos de Reestru-
turação e Expansão das Universidades Brasileiras (REUNI). Entre 2003 a
2010, o número de universidades federais cresceu de 45 para 59 e, nessas
instituições, o número de campi aumentou de 148 para 276, vários localiza-
dos em cidades de médio e pequeno porte no interior do Brasil.
Essa “interiorização” das universidades trouxe mudanças nas perspec-
tivas e nos perfis de pesquisas. Sujeitos até então sem oportunidades de
se graduarem em cursos superiores conquistaram esses espaços e aprimo-
raram-se em programas de pós-graduação. Novos estudantes e pesquisa-
dores, muitos advindos desses meios, debruçam-se cada vez mais sobre
tópicos que envolvem os problemas referentes a esses espaços e tempos
9. BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução: Magda Lo-
pes. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p.7-357.
10. BARROS, Aparecida da Silva Xavier. Expansão da educação superior no Brasil: limites e
possibilidades. Educ. Soc., Campinas, v. 36, n. 131, abr.-jun., 2015, p.174.

134 - Urdiduras da história


vivenciados, pensando em novas perspectivas até então negligenciadas.
Temas voltados para o interior, regiões de fronteira e litoral têm ganhado
interesse em meio aos trabalhos historiográficos.
Rüsen,11 ao considerar a relação entre o conhecimento histórico e a
vida humana, pensa os diversos problemas das práticas dos historiado-
res e reflete sobre como a vida prática se articula nos procedimentos de
tensão de uma matriz disciplinar. Para ele, o pensamento histórico está
intimamente ligado à problemática do sentido da vida humana, em fun-
ção da emergência do que ele denomina de demandas de orientação. Os
homens, no presente, buscam o passado como uma forma de dar sentido
a suas vivências e, carentes de orientação diante da experiência, buscam
constantemente respostas para as demandas advindas de suas práticas
atuais. É nesse contexto que o pensamento histórico surge como uma
resposta, pois consiste em uma forma de interpretação do mundo. As
histórias estão vinculadas ao contexto de demandas que emergem de pro-
blemas da vida prática humana.
Há, portanto, uma carência em pensar esses contextos que emergem
de novas demandas da vida desses novos pesquisadores despontando em
novos contextos. Predominantemente, a História do Brasil, por exemplo,
foi pensada a partir da perspectiva dos grandes centros urbanos e os pro-
cessos às margens desses centros foram negligenciados do saber histórico.
Os estudos sobre a imprensa e com a imprensa não foram diferentes, já
que durante muito tempo os trabalhos que tiveram destaque na historio-
grafia sobre o tema focalizaram jornais da grande imprensa, da imprensa
alternativa, da imprensa operária, da imprensa doutrinária, etc., ou seja,
jornais que eram produzidos e focados em notícias nos grandes centros
urbanos.
Um dos trabalhos historiográficos de maior destaque sobre a impren-
sa no Brasil, ao tratar sobre a imprensa do interior, cita-a somente para
comparar sua a posição de atraso em relação a da imprensa industrial:

Continuava a existir, no interior, a pequena imprensa artesanal, sem pers-


pectivas, reduzida a estreitos horizontes, ferozmente submetida ao lati-
fúndio, limitada por questões domésticas e pessoais. Em certos casos, esse
tipo de imprensa existia como representação de passado próximo, mesmo

11. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência históri-
ca. Tradução: Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001. p. 78.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 135


em capitais estaduais já com foros de civilização e progresso, remanescen-
tes perdidos de uma época superada.12

Em que pese o teor generalista expresso na citação, há aspectos per-


tinentes a se considerar em relação aos jornais de grande imprensa que
seriam um produto profissional, industrial e objetivo, em contraposição
à imprensa do interior, marcada pelo amadorismo, pelo cunho artesão e
pessoal, e relegada ao obsoletismo. Entretanto, o autor observa, nos jornais
produzidos no interior, uma maior independência econômica, apesar de
apontar um caráter de curta duração desses impressos por conta da estru-
tura econômica, educacional e política dos municípios brasileiros.
A noção que uso de “Grande Imprensa” brasileira é designada aos
jornais com altos números de tiragem e de produção industrial. Segundo
Luca, a expressão grande imprensa, “apesar de consagrada, é bastante vaga e
imprecisa, além de adquirir sentidos e significados peculiares em função do
momento histórico em que é empregada” e, grosso modo, “designa o conjun-
to de títulos que, num dado contexto, compõe a porção mais significativa
dos periódicos em termos de circulação, perenidade, aparelhamento téc-
nico, organizacional e financeiro.”13 Para Sodré,14 a designação se refere à
passagem de uma imprensa artesanal e amadora para um sistema industrial
e profissional, de produção em massa, que se iniciou no fim do século XIX,
concretizando-se, em meados do século XX. A chave de sua existência,
portanto, atrela-se à passagem ao capitalismo industrial do século XX.
A imprensa no interior, mesmo com a criação de jornais em sistema
empresarial, continuou sobrevivendo, sendo produzida e agindo nos rin-
cões do Brasil. Isso acontece porque, mesmo que um jornal de circulação
nacional chegue em uma determinada região interiorana, ainda há uma
demanda sobre a informação que se volta para o local e o regional, em es-
pecificidades culturais e sociais, e que encontra as melhores estratégias para
cada realidade comunicativa.15

12. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 2007. p.369.
13. LUCA, Tania Regina de. A grande imprensa na primeira metade do século XX. In:
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. (Org.). História da imprensa no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2015. p. 149.
14. SODRÉ, Op. cit. p. 255-389.
15. ASSIS, Op. cit., p.8.

136 - Urdiduras da história


A produção de histórias voltadas para temas interioranos vem ascen-
dendo em razão do impacto das mudanças anteriormente mencionadas
no meio acadêmico e universitário do Brasil nas últimas décadas, e, assim,
aparece como uma problemática e uma demanda da vida prática desses
novos pesquisadores. Jornais de imprensa do interior são cada vez mais
usados como fonte para os trabalhos de História e também são tomados
como objetos de trabalho desses pesquisadores, que se debruçam sobre
os mais diversos temas. Contudo, como evidencia Assis,16 a imprensa do
interior, nos estudos de comunicação no Brasil, ainda é um campo pouco
explorado e pensado enquanto pesquisa. Podemos pensar semelhanças no
contexto do conhecimento histórico. Apesar do número de pesquisas que
fazem o uso desse tipo de documento ter aumentado, ainda são escassos
os trabalhos que trazem uma reflexão teórico-metodológica das especifi-
cidades de tratamento com esses documentos.
Um jornal de imprensa do interior está inserido em contextos po-
líticos, culturais e sociais bastante distintos de um jornal de grande im-
prensa, da mesma forma que se diferencia de um periódico anarquista,
doutrinário, alternativo ou partidário, por exemplo. Essa diferenciação
deve ser considerada pelos pesquisadores que se propõem a analisar essa
documentação para o conhecimento histórico. Portanto, além da necessi-
dade de pesquisarmos jornais de produção e circulação local e regional, há
a necessidade de pensamos em teorias e métodos específicos que conside-
rem as especificidades dessas fontes, visto que esses periódicos, da mesma
maneira que outros tipos de jornais, são produtos de uma sociedade que
se localiza em determinado tempo com intenções, conflitos e práticas
culturais e que age em seus meios.

Teorias e métodos para pesquisa histórica com fontes de impressa

Há uma gama de autores e intelectuais que servem como um farol para


outros pesquisadores que buscam pensar a imprensa como um instrumento
na construção do conhecimento histórico. É importante nos atentarmos
para estudiosos, pensando como as teorias e métodos propostos têm suas
aplicabilidades paras os impressos interioranos.
Uma das ideias mais difundidas e usadas por pesquisadores de im-

16. Ibidem, p.1.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 137


prensa é o conceito de representação de Roger Chartier.17 Esse conceito
é utilizado em análises, pois as representações demonstram uma constru-
ção do mundo social, sendo chaves dos discursos e das práticas grupais.
Compreender as representações é entender como o mundo é construído
socialmente por meio de quem o representou, fundamentando suas visões
de mundo sobre as experiências históricas. As lutas de representações se
realizam nos discursos, onde discernir a posição de quem fala é essencial
para a compreensão do porquê se luta, pois, nas sociedades, há diferentes
grupos que manifestam, em seus interesses, diversas visões.
As representações são compreendidas como classificações e divisões
que organizam a assimilação do mundo como categoria de apreensão do
real. As percepções do real criam estratégias e práticas que tentam impor
uma autoridade, legitimar um projeto ou justificar condutas. Logo, en-
tendemos que, por meio das representações, ocorrem as lutas simbólicas,
assim, as representações devem ser pensadas sempre no campo das concor-
rências e competições por hegemonia, poder e dominação.18
Os textos, como representações, inscrevem, em suas próprias estrutu-
ras, as expectativas e as competências do público, e organizam, particular-
mente, uma representação social. Desse modo, os jornais, ao representarem
suas realidades em seus escritos, trazem os interesses dos seus escritores e
de grupos engajados, com o objetivo de levar aos leitores ideias que buscam
modificar o meio em que vivem.
Outra referência importante é Robert Darnton, que mescla sua ex-
periência de trabalho no The Times e reflexões sobre o funcionamento jor-
nalístico. O autor19 afirma que todo jornal possui sua própria dinâmica e,
para compreendermos os periódicos, devemos ter uma noção de como eles
funcionam e operam as suas produções dos fatos jornalísticos. O histo-
riador estadunidense afirma a importância de compreendermos o funcio-
namento dos jornais por meio de sua cultura e de sua produção, ou seja,
como ele funciona no seu interior e nas suas práticas. Há uma vasta carga
17. CHARTIER, Roger. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais.
In: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa:
Difel, 1990. p.13-28.
18. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: CHARTIER, Roger. À beira
da falésia: A história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
p. 61-80.
19. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução: D.
Bottmann. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.70-97.

138 - Urdiduras da história


de diversidades que influencia direta e indiretamente o trabalho jornalís-
tico, desde os preparadores, os diversos editores, as fontes e objetos de
seus artigos, os repórteres de outros jornais, amigos e parentes, o público
leitor, além de grupos de interesses específicos e financiadores. Portanto,
concordamos que “as matérias jornalísticas precisam caber em concepções
culturais prévias relacionadas à notícia”.20 Assim, os redatores, jornalistas
e colaboradores escrevem, partindo de “concepções culturais prévias”, vol-
tando-se aos valores, significados e linguagens compartilhadas entre eles e
o público consumidor, pois o primeiro espaço de constituição e diálogo do
que é publicado é a própria imprensa, onde o órgão constrói e desconstrói
aliança, enfrenta embates e constitui sua identidade.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu também se tornou um farol teó-
rico de alguns historiadores que se debruçaram sobre a imprensa como
objeto. Bourdieu21 afirma que, junto à construção da esfera pública e, como
consequência, à formação de consumidores e comunidades voltadas aos
bens culturais, criaram-se específicos campos para a produção do simbólico.
O jornalismo é um desses campos em que a percepção de que há um públi-
co a ser atingido se torna fundamental dentro dos meios de comunicação.
De tal modo, a esfera pública serve à difusão de determinadas informações
políticas, atitudes e valores compartilhados em determinados grupos e clas-
ses sociais, estabelecendo-se em espaços de disputa, de lutas simbólicas,
entre os grupos que concorrem pelo controle de informações.
Há, para o autor, uma homologia entre o espaço de produção mi-
diático e de consumo. Assim, acentuam-se as transformações do campo
político por demandas específicas do campo midiático. A competência de
acesso ao capital midiático difere conforme as classes sociais em disputa no
campo político. Entretanto, para Bourdieu22, uma determinada ideologia
dos dirigentes do meio de comunicação não é solitária como responsável
pelo que é produzido no jornal, pois há variáveis que influenciam o campo
do jornalismo, entre elas, a pressão econômica é um dos principais fatores,
além do reconhecimento dos jornalistas pelos seus pares e pela maioria (o
público leitor), buscando vendagem e lucro. Portanto, apesar de exercer
20. DARNTON, Op. cit. p. 96.
21. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Ed. Bertrand Brasil, 2003. p.7-15.
22. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão seguido de A influência do Jornalismo e Os jo-
gos olímpicos. Tradução: Maria L. Machado. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1997. p.100-109.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 139


pressão sobre outros campos, como o da cultura, das leis, da literatura, das
artes e da ciência, o mecanismo do campo jornalístico está sujeito às exi-
gências do mercado, dos consumidores e dos anunciantes.
Ainda há outros trabalhos que buscaram compreender os jornais como
lugares de memória. Pierre Nora23 vê, no século XX, o fenômeno da mun-
dialização, como as grandes guerras, as revoluções e a rapidez dos meios de
comunicação que levaram a uma “aceleração do tempo”, imprimindo novas
percepções de espaço e tempo nas sociedades, em que o vivido se impõe
como história. O autor entende que a ameaça do esquecimento é evidente
nessa sociedade, levando-a a uma obsessão pelo registro e pelo arquivo. Os
jornais e meios de comunicação, em geral, são lugares de memória, pois
registram esse tempo. Portanto, quem detém os instrumentos e exerce a
comunicação transforma-a em uma ação política, pois detém determinado
tipo de saber, que permite possuir um tipo de poder:

Saber é a primeira forma de poder numa sociedade de informação demo-


crática. O corolário nem sempre é falso: quem detém o poder é tido como
quem sabe. Daí uma dialética nova, própria fazer surgir nas nossas socie-
dades um tipo de acontecimento ligado ao segredo, à política, à conspira-
ção, ao rumor e aos ruídos. Pois é ao mesmo tempo verdadeiro e falso que
não se fala tanto para esconder o essencial, que o sistema que favorece o
nascimento do acontecimento é também, mas não apenas, fabricante de
ilusões, que tantas confissões dissimulam uma falsidade.24

Raymond Williams,25 ao refletir sobre a imprensa e a cultura popular


na Inglaterra, afirma que muitos dos estudiosos de História, da comuni-
cação e das ciências sociais fazem um estudo sobre a imprensa de modo
isolado, voltado para si mesmo, sem se voltarem para uma visão social mais
ampla, como os movimentos políticos, formações culturais e conjunturas
econômicas, práticas em que as questões de imprensa se articulam de ma-
neira específica. Para o autor, não se pode fazer uma história da imprensa
de modo isolado ou que referencie a si mesma, é preciso pensá-la em con-

23. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução: Yara
Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
24. NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História:
novos problemas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.187-188.
25. WILLIAMS, Raymond. Imprensa e a cultura popular: uma perspectiva histórica. Proje-
to História, São Paulo, v. 35, p. 15-26, dez. 2007.

140 - Urdiduras da história


junto com outros aspectos da realidade humana em determinada tempora-
lidade e com suas historicidades.
Também é necessário pensar conforme Briggs e Burke26, para quem
os estudiosos que trabalham com os meios de comunicação devem consi-
derar a história desses meios e pensar nas mudanças ao longo do tempo,
o que elimina dois perigos: o de afirmar que tudo piorou e o de afirmar
que houve um progresso ininterrupto com o advento de novos meios de
comunicação. É necessário salientar que as mudanças comunicativas im-
pactaram e tiveram consequências de extrema importância na cultura,
repaginando as sociedades.
Na historiografia brasileira, há autores que se dedicaram a pensar
em procedimentos para o tratamento de jornais e de outros tipos de im-
pressos. Destaca-se o trabalho de Luca,27 que, além de inventariar alguns
trabalhos e abordagens da historiografia sobre o tema nas últimas décadas
do século XX, também enfatiza apontamentos metodológicos de análises
desses tipos de documentos.
Como afirma Luca,28 ao analisarmos fontes impressas, devemos nos
atentar não apenas para a escrita do produto, mas também para a sua ma-
terialidade, os suportes do periódico e suas demais características, como,
por exemplo, o formato de impressão, a periodicidade, o papel, a tinta, o
tamanho das letras e das páginas, as manchetes, a presença/ausência e os
usos de imagens, a quantidade de páginas, a separação das folhas, a capa,
o corpo documental, a estruturação e a divisão de conteúdo, as funções e
articulações com a sociedade, a periodicidade, o tempo e o espaço em que
se insere o jornal, a relação com o mercado, os anúncios e a publicidade (e
quem são os anunciadores), o meio de sobrevivência financeira, o público
alvo e os objetivos, considerando as suas opções de estética e funções. De-
ve-se pensar nos jornais como um material gráfico com complexo projeto
cultural, social e político, com nuances que se articulam em seus conteúdos,
nas suas páginas, frutos da materialidade do projeto gráfico.
Destaque, também, para o trabalho de Cruz e Peixoto, que entendem
o uso das fontes impressas como uma força ativa da história e colocam
algumas indagações a serem feitas sobre essa documentação, apresentando
26. BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutemberg à internet.
Tradução: Maria C. Pádua Dias. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2004. p.23.
27. LUCA, Op. cit.
28. Ibidem.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 141


valiosas dicas metodológicas para compreender a imprensa, perante suas
historicidades e conjunturas, que atua na constituição dos nossos modos de
vida, perspectivas e consciência. Portanto:

Trata-se de entender a Imprensa como linguagem constitutiva do social,


que detém uma historicidade e peculiaridades próprias, e requer ser tra-
balhada e compreendida como tal, desvendando, a cada momento, as re-
lações imprensa/sociedade, e os movimentos de constituição e instituição
do social que esta relação propõe.29

Deve-se considerar que a imprensa não apenas assimila interesses e


projetos, mas é seu espaço privilegiado de articulação, atuando na produção
de hegemonia, declamando compreensões de mundo e temporalidades,
propondo diagnósticos e afirmando memórias. Os impressos são, em si,
produtos de experimentação e de criação social e histórica, sendo artefatos
da modernidade em configurações como materialidade, que carregam, em
sua composição, os limites técnicos e as possibilidades de impressão, lin-
guagem e gêneros. Assim, os jornais atuam:

No fomento à adesão ou ao dissenso, mobilizando para a ação;


Na articulação, divulgação e disseminação de projetos, idéias, valores,
comportamentos, etc.;
Na produção de referências homogêneas e cristalizadas para a memória
social;
Pela repetição e naturalização do inusitado no cotidiano, produzindo o
esquecimento;
No alinhamento da experiência vivida globalmente num mesmo tempo
histórico na sua atividade de produção de informação de atualidade;
Na formação de nossa visão imediata de realidade e de mundo;
Na formação do consumidor, funcionado como vitrine do mundo das
mercadorias e produção das marcas.30

Apesar de escassos, há trabalhos que buscaram pensar os usos de jor-


nais de interior na construção do conhecimento histórico. Um dos poucos
trabalhos que encontramos que se dedica a pensar o uso de fontes de jornais

29. CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do


historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, v.35, dez.
2007. p.258.
30. Ibidem, p.289.

142 - Urdiduras da história


de produção circulação regional para o trabalho historiográfico é um arti-
go de Galves,31 que reflete sobre o que ele chama de “pequena imprensa”
para estudos de poderes políticos regionais. O autor afirma que as relações
políticas que dão as características dos espaços em que circulam periódicos
do interior se compõem de variáveis que precisam ser consideradas, como
o comportamento eleitoral, a tradição política de quem ali escreve, as rela-
ções com as lideranças políticas locais e regionais, além das ações/reações
perante os acontecimentos estaduais e nacionais.

Considerações sobre o trabalho com imprensas interioranas

Após trazer várias ideias e reflexões, cabe aqui transpô-las para o plano
do trabalho com fontes de imprensa do interior. Em primeiro momento,
temos que refletir sobre qual a principal característica desse tipo de docu-
mentação que o difere dos demais: a comunicação de proximidade. Tudo
que é produzido dentro de um jornal de imprensa de interior se volta para
um público que se localiza perto da sede do jornal. Ou seja, uma notícia de
cunho local, regional ou nacional, é voltada completamente para o seu pú-
blico próximo, desde a maneira da escrita até a intencionalidade que almeja
o texto, bem como a publicidade e demais partes que compõe os impressos.
Devemos ter a compreensão que as representações em formas de dis-
cursos contidos nos jornais interioranos expressam os interesses de deter-
minados grupos aos quais os jornais e, consequentemente, as pessoas que
fazem parte do jornal se alinham política e culturalmente. Os jornais são
um instrumento de grupos sociais em disputa por hegemonia de poder,
principalmente poder relacionado ao espaço em que esse impresso circun-
da. Portanto, quando um jornal de interior noticia sobre algo para sua lo-
calidade, ao representar o real, traz consigo as aspirações políticas de deter-
minado grupo e age na realidade por meio de suas posições, influenciando
ideias e concepções de seus consumidores.
Os jornais de circulação local e regional, ao deterem a comunicação
em seus espaços, exercem uma forma de dominação sobre a regionalidade
que é embasada no saber. Dessa maneira os jornais interioranos se tornam
um instrumento de luta simbólica dos grupos das regiões em que são pro-
31. GALVES, Marcelo Cheche. Pequena imprensa e poder político: pensando os jornais
locais como objeto e fonte de pesquisa. Revista Outros Tempos, São Luís - MA, v. 1, n. 1,
2004. p.71.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 143


duzidos e em que circulam, que disputam o controle de informação políti-
ca, atitudes e valores da esfera pública nessas determinadas regiões dentro
do campo do jornalismo.
Importa, também, ao analisar esses tipos de documentos, refletir sobre
quais as memórias que um impresso interiorano quer imprimir e construir,
considerando não só lembranças sobre essa proximidade, mas também os
esquecimentos, o que é reflexo de uma ação política que legitima posições
de grupos sociais.
Entretanto, há outros interesses em jogo, para além das relações po-
líticas. O interesse econômico muitas vezes se sobressai sobre o político,
sendo importante pensarmos como os jornais de interior se sustentam e
têm seus lucros, considerando sua margem de vendas e circulação. Tam-
bém, é importante nos atentarmos para quem financia um impresso, bem
como quem anuncia nas suas páginas, pensado na maneira como um jornal
se sustenta, seja pela venda de exemplares ou pela propaganda e a publici-
dade que ele encaminha ao seu público leitor.
Cada jornal tem sua dinâmica e se constrói em um fazer entre a lin-
guagem de quem ali escreve e do público leitor. As práticas desses jornais
se voltam para diversidades que influenciam de maneira direta e indireta o
trabalho jornalístico, como os jornalistas e colaboradores que ali trabalham,
mas também devemos nos atentar para os interesses dos financiadores de
um jornal, bem como de quem anuncia nas suas páginas. As imprensas
interioranas, em suas folhas, trazem anúncios dos mais variados tipos, mas
devemos observar os sujeitos e os grupos regionais presentes. Portanto,
nunca devemos pensar nos impressos de interior desvinculados das con-
junturas econômicas, políticas, sociais, culturais e regionais, já que eles são
um produto de materialidade de grupos que disputam a hegemonia em
determinas espaços, com suas temporalidades e historicidades.
Faz-se necessário pensar os jornais como produtos de cultura que
expõem determinadas aspirações de grupos e que buscam encontrar as
melhores estratégias para cada realidade comunicativa em que circulam.
Assim, uma empresa jornalística constrói seu produto em diálogo com a
comunidade leitora, compartilhando práticas culturais com seu público.
Por isso, é importante entendermos o meio de produção e as diversidades
que influenciam o fazer jornalístico no interior, pois eles são um produto
de determinada sociedade localizada em uma temporalidade, carregada de

144 - Urdiduras da história


historicidade. Portanto, esses periódicos impactam a vida cotidiana de sua
realidade e atuam ativamente no seu meio, através da difusão de ideias e
programas em suas páginas.
A partir dessas reflexões, destaco alguns itinerários importantes para
se pensar no trabalho com fontes de imprensas do interior para o conheci-
mento histórico:
Qual é a regionalidade onde periódico circula?
Quem é o público leitor (além da especificidade da região, qual é a
classe social e os grupos que consomem)?
Quem são os responsáveis pela produção do jornal e quais os grupos de
interesses a que esses sujeitos estão vinculados?
Como é o funcionamento interno dessa empresa jornalística?
Como funciona a organização da materialidade do periódico?
Qual a linguagem compartilhada entre o impresso e seu público leitor?
Qual a forma de sustento e lucro do impresso?
Há financiadores? Quem anuncia?
Quais os interesses expostos nos escritos desses periódicos e como eles
se relacionam com a região em que o jornal circula?
Quais são as relações dos periódicos com os poderes públicos institu-
cionais da região (executivo, legislativo, judiciário, etc)?
Qual a tradição política dos jornalistas e das pessoas ligadas ao perió-
dico?
Quais são seus interesses políticos nacionais e como se relacionam com
os interesses locais?
Qual é a linha editorial do impresso?
Quais as principais ideias que o impresso defende em suas páginas?
Quais os objetivos do periódico em relação a regionalidade?

Referências

ASSIS, Francisco de. Imprensa do interior: conceitos a entender, contex-


tos a desvendar. In: ASSIS, Francisco de. (Org.). Imprensa do interior:
conceitos e contextos. Chapecó: Argos, 2013.

ASSIS, Francisco de. Por uma geografia da produção jornalística: a im-


prensa do interior. Intercom– Sociedade Brasileira de Estudos Interdis-
ciplinares da Comunicação In: Congresso Brasileiro de Ciências da Co-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 145


municação, 36, 2013, Manaus.

BARROS, Aparecida da Silva Xavier. Expansão da educação superior no


Brasil: limites e possibilidades. Educ. Soc., Campinas, v. 36, n. 131, p.
361-390, abr.-jun., 2015

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz.


Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão seguido de A influência do jorna-


lismo e os jogos olímpicos. Tradução: Maria L. Machado. Rio de Janeiro:
Ed. Zahar, 1997.

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gu-


temberg à internet. Tradução: Maria C. Pádua Dias. Rio de Janeiro: Ed.
Zahar, 2004.

BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Tra-


dução: Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e futuro. In: BUR-
KE, Peter. (Org.). A Escrita da História: Novas perspectivas. Tradução:
Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 07-38.

CAMPONEZ, Carlos. Jornalismo de proximidade: rituais de comuni-


cação na imprensa regional. 1. ed. Coimbra: Edições Minerva Coimbra,
2002.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São


Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.

CHARTIER, Roger. Introdução: Por uma sociologia histórica das práti-


cas culturais. In: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas
e representações. 2. ed. Lisboa: Difel, 1990. p.13-28.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: CHARTIER,


Roger. À beira da falésia: A história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2002. p. 61-80.

146 - Urdiduras da história


CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na
oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto Histó-
ria, São Paulo, v. 35, p. 253-270, dez. 2007.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.


Tradução: De D. Bottmann. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

DORNELLES, Beatriz. O futuro do jornalismo em cidades do interior.


In: ASSIS, Francisco de. (Org.). Imprensa do interior: conceitos e con-
textos. Chapecó: Argos, 2013.

FERREIRA. Caio Vinicius de C. O interiorano “subversivo”: imprensa


e perseguição política no Pontal do Triângulo Mineiro (1951-1964). 2021.
375f. Tese (Doutorado em história) – Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia – MG, Brasil.

GALVES, Marcelo Cheche. Pequena imprensa e poder político: pensan-


do os jornais locais como objeto e fonte de pesquisa. Revista Outros Tem-
pos, São Luís - MA, v. 1, n. 1, p. 66-73, 2004.

LUCA, Tania Regina de. A grande imprensa na primeira metade do sé-


culo XX. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. (Org.).
História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. p. 149-175.

LUCA, Tania Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Pau-
lo: Contexto, 2010. p. 111-153.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares.


Tradução: Yara Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28,
1993.

NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre.


História: novos problemas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
p. 179-193.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 147


ciência histórica. Tradução: Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed.
UNB, 2001.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de


Janeiro: Mauad, 2007. p. 255-389.

WILLIAMS, Raymond. Imprensa e a cultura popular: uma perspectiva


histórica. Projeto História, São Paulo, v. 35, p. 15-26, dez. 2007.

148 - Urdiduras da história


Crônicas na imprensa do interior de Minas
Gerais: Manoel Felipe de Souza e suas
representações sobre os indígenas e as
manifestações culturais dos negros na coluna
“Pennadas Furtivas” (1899-1903)

Raniele Duarte Oliveira

As crônicas em jornais na transição do século XIX para o século XX


fizeram parte de uma imprensa que era fonte de implantação de novas
tecnologias. Na busca da modernidade, os espaços de produção se aper-
feiçoaram e a periodização se intensificou: mensal, quinzenal, semanal
e diária. Não apenas nas capitais, mas também no interior, a crença no
progresso, no avanço técnico e na civilização era destaque nas páginas dos
periódicos sob a forma de reportagens, entrevistas e crônicas.
A linguagem jornalística invadiu o conto e o romance. Procedimen-
tos e novas abordagens eram assimiladas pela narrativa literária. A prática
de experimentar e adaptar novas linguagens visuais à escrita, ao cotidiano
dos jornais e às obras publicadas em livros foi sendo elaborada ao longo
de todo o período. Outros gêneros literários nos periódicos passaram a
retratar as alterações que se processavam na construção da urbanidade. A
crônica veio ao encontro dessa construção.
O gênero crônica pode ser definido como uma intersecção dos dis-
cursos jornalístico e literário. Tem como características a coloquialidade e
a leveza para tratar de coisas sérias. Nos jornais, muitas vezes existe uma
dificuldade de localização da crônica, pois o espaço que ocupa e lhe im-
prime uma materialidade nem sempre é claramente identificável. Outro
aspecto da crônica é a pluralidade de tecidos textuais que pode aparecer
em uma mesma coluna. A respeito da (auto)nomeação do cronista, o
uso de pseudônimos ou iniciais em lugar de assinatura é prática comum.
Igualmente usual é um mesmo autor assumir mais de uma posição dis-
cursiva nas crônicas.1
Outro elemento marcante do gênero é semear nos jornais o cotidiano
das ruas. A função social do cronista vai além do caráter efêmero e breve
que sua produção expressa. Para entender seu trabalho nos jornais é ne-
cessário não apenas analisar o conteúdo das crônicas, mas também per-
ceber as especificidades que dialogam com outros gêneros textuais pre-
sentes nos periódicos. Interpretar as maneiras como o cronista observa as
transformações de seu tempo é uma necessidade.2
Nesse sentido, diversos caminhos de pesquisa se apresentam e múl-
tiplas são as referências sobre a crônica como objeto de estudo. Por meio
delas é possível apreender o contexto histórico de uma sociedade. Sendo
um território livre no qual habitam várias linguagens, assumem o posto
de laboratório gerador de códigos linguísticos variados e adquirem o sta-
tus de gênero com autonomia estética no jornalismo. Assim sendo, no seu
estudo há uma relação entre literatura, história e jornalismo.3
A crônica jornalística abrange o jogo de imagens, o humor, a re-
flexão, o posicionamento político e estético e o tom comunicativo com
possibilidade de diálogo entre cronista e leitor. Sua função é fazer rir,
comover, distrair, escrever de forma a meditar e filosofar sempre que pos-
sível. Apresenta-se como um vínculo de divulgação cultural, experiências
políticas e sociais, buscando soluções para o seu momento de escrita. O
conceito de cotidiano é inerente à crônica, pois nela o autor o registra.4
Outro recurso importante das crônicas é a metalinguagem. Nos seus
processos de criação muitos autores criam personagens que, através de diá-
logos, operam metaforicamente para ironizar e criticar a complexidade da

1. RIBAS, Maria Cristina. Por uma revisão conceitual do gênero crônica: entre a montanha
e o rés do chão. Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC (UEPB). Campina
Grande (PB), 08 a 12 de julho de 2013. p. 3.
2. SANTOS, Regma Maria dos (Org.). Brevidades, Lycidio Paes. São Paulo: EDUC,
2002. p. 17.
3. PONTES, Matheus de Mesquista e. Jornalismo e História nas crônicas de Carlos Drum-
mond de Andrade: 1930-1950. OPISIS. Revista do NIESC, v. 4., p. 84-92, 2004.
4. BASTOS, Dilza Ramos; CAMPOS, Maria Luiza de Almeida; VASCONCELLOS,
Eliane. A pesquisa em crônicas jornalísticas: a análise da representação da informação. Re-
vista Arquivo e Administração. Rio de Janeiro. v. 7., n. 1., p. 71-94, jan.-jun. 2008.

150 - Urdiduras da história


língua portuguesa. A função metalinguística é sempre uma relação de lin-
guagem, em que uma se refere a outra. Todo enunciado enviado cumpre
uma finalidade: pode servir para transmitir um conteúdo intelectual, expri-
mir (ou disfarçar) emoções e desejos, para hostilizar ou atrair pessoas, ini-
ciar e manter diálogos. Diferentes mensagens veiculam diferentes signifi-
cados, que mostram na sua forma e no seu efeito o seu modo de funcionar.5
Partindo dessas considerações a respeito das crônicas é possível afir-
mar que sua investigação colabora na direção de apontar alguns caminhos
a respeito da prática jornalística e o exercício literário no interior de Mi-
nas Gerais.
Não era apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo que havia pessoas
produzindo crônicas para jornais. No interior, nas regiões designadas
como sertões, a distância das capitais, a chegada das notícias com atraso e
a dificuldade de difusão dos periódicos eram empecilhos ao cronista, que
ficava menos propenso em ganhar notoriedade em âmbito nacional, mas
isso não impedia sua produção para a imprensa.
Em Uberaba, cidade do interior, situada na região chamada Triân-
gulo Mineiro, Manoel Felipe de Souza, um “ilustre desconhecido”, não
chegou a figurar nos compêndios ou obras reconhecidas em outras partes
do país, mas ao ter sua coluna publicada no jornal Lavoura e Comércio,
um dos mais importantes do segmento ruralista no município e na região,
conseguiu espalhar o seu trabalho entre os leitores do periódico nas áreas
que ele alcançava.
Tratava-se de um escritor da Belle Époque que, para assegurar sua
sobrevivência, assumia vários papéis na imprensa uberabense. Do Impé-
rio à República, foi proprietário, redator e colaborador em diferentes fo-
lhas. Enquanto escritor percorreu o universo das letras com a produção de
contos, poemas e crônicas. Era um homem multifacetado, intelectual do
interior, que utilizava sua pena como uma arma. De modo criativo e tam-
bém provocativo se apropriou do discurso civilizacional para impulsionar a
superação de práticas vistas como atrasadas.
Possuía a singularidade de ser um negro letrado que alcançou visibili-
dade no periodismo da cidade. Em meio a uma população em que os índi-
ces de analfabetismo eram altos, sobretudo entre os negros, ele conseguiu

5. SILVA, Maria Isabel da. A metalinguagem na crônica de Drummond. Dissertação


(Mestrado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008. p. 24-30.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 151


destaque. Escrevendo em uma imprensa de predominância branca, utili-
zava diferentes recursos de escrita e muitas vezes assumia comportamentos
preconceituosos.
Enquanto nas páginas do Lavoura e Comércio aconteciam os mais sisu-
dos debates envolvendo a questão política do estado de Minas Gerais, sua
coluna, intitulada “Pennadas Furtivas”, era publicada em lugar de relevo,
sempre na primeira ou na segunda página do jornal. Segundo ele, no nú-
mero de lançamento da folha, em seis de julho de 1899, sua coluna seria
um espaço humorístico, de escrita leve, com o objetivo de entreter, divertir
e apresentar amenidades à população.
No entanto, seu perfil de texto ia além do humor ao acionar outros
recursos característicos das crônicas: ironia, metáfora, ficção, sarcasmo, fi-
guras de linguagem e metalinguagem. O próprio título escolhido para a
coluna - “Pennadas Furtivas” - remetia a sua intencionalidade. As “Penna-
das” tinham o significado do farto borrão da tinta da pena que preenchia
o papel, mas também eram uma metáfora para o ataque. Suas declarações
contidas na coluna, sob o verniz da civilidade, apresentavam implicitamen-
te o propósito de cravar farpas e insultar. Já a parte das “Furtivas” era a de
alguém que, de modo discreto, estaria de prontidão observando o cotidiano
da cidade com a finalidade de adquirir assuntos para o seu espaço no jornal.
Ao organizar suas crônicas por temáticas, anotando de forma resumi-
da, número por número, os assuntos discutidos por ele, identificou-se su-
jeitos que, em seu ver, eram sinônimos de atraso para a urbe: os indígenas e
as práticas religiosas e culturais dos negros. Para Manoel Felipe de Souza,
os comportamentos e as práticas desses grupos sociais eram avaliados como
grosseiros no mundo civilizado.
Ao produzir suas crônicas expressava tensões sociais que estavam em
voga na sociedade daquele período. A imprensa refletia a efervescência so-
cial e cultural do município, mas refletia também o modo como as elites
econômicas e intelectuais viam e tratavam os sujeitos e as práticas indese-
jáveis de existir na paisagem da cidade.
Fazendo coro ao intuito de ordenar a urbe, o colunista foi incentivador
de intervenções do poder público municipal na produção, modificação e
controle social do espaço no intuito de colocar em ação seus projetos de
civilização, estimulando a eliminação daquilo que não o agradava. Neste
processo, os indígenas e os negros com suas manifestações culturais e reli-

152 - Urdiduras da história


giosas, além de entendidos pelo autor como retardos à civilização, traziam
a concepção de que Uberaba encontrava-se em um nível de desenvolvi-
mento não compatível com práticas que enxergava como barbáries.
Nos primeiros anos do regime republicano no Brasil, a busca por uma
identidade nacional no âmbito das elites intelectuais lidava com o desafio
de encarar um país com uma complexidade social proveniente da existência
de inúmeros grupos com variadas características culturais, assim como de
lidar com as diversidades regionais. Era muito difícil criar tipos adequados
à nacionalidade. A questão cívica estava em alta e havia preocupação com
aquilo que seria caracterizado como elemento da identidade nacional.
Nesse contexto, os indígenas e as manifestações socioculturais dos ne-
gros eram objeto de atenção dos intelectuais nos jornais. Manoel Felipe
de Souza, atento às discussões de seu tempo, construiu em suas obras re-
presentações que os desqualificavam. Nos Almanach Uberabense, de 1895,
apresentou um conto e, no de 1903, um poema que associava os indígenas
a selvagens. Essa representação se fará presente também em suas “Penna-
das Furtivas” e se estenderá às práticas dos negros.
No Almanach Uberabense, de 1895, o conto que abriu a parte “littera-
ria” do impresso foi de sua autoria. O texto intitulado como Morte do Índio
Affonso6 apresentou como traço marcante o olhar que parte dos habitantes
de Minas Gerais e, nas entrelinhas, o próprio Manoel Felipe de Souza,
tinha dos indígenas e seus aldeamentos: lugar de “feras”; “selvagens”. Par-
tindo da perspectiva de que o Índio Affonso era um selvagem, o conto resu-
midamente tinha o propósito de narrar a emboscada armada por pessoas
consideradas civilizadas para matar o indígena e seus filhos.
No decorrer do conto, Manoel Felipe lembrou o escritor mineiro Ber-
nardo Guimarães, autor de O Índio Affonso que, segundo ele, “tanto se in-
teressava pelas cousas do sertão”. Ao se apropriar do personagem Afonso
para escrever seu conto, se colocava no porte de Bernardo Guimarães, uma
de suas referências literárias. No conto do Almanch, nota-se que o referido
autor era uma inspiração para seu estilo de escrita e maneiras de pensar. À
moda do escritor, além de ver o indígena como um selvagem, era um autor
que também ironizava, parodiava e se recusava a romancear a realidade.
Tudo indica que Manoel Felipe de Souza pretendia seguir a mesma

6. SOUZA, Manoel Felipe de. Morte do Índio Afonso. In: VIEIRA, Diocleciano; COS-
TA, Arthur (Org.). Almanak Uberabense. Rio de Janeiro. 1895. p. 83-89.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 153


linha do personagem de Bernardo Guimarães ao representar o Índio Af-
fonso como um “mau selvagem”. No seu conto, o indígena foi morto numa
emboscada, e sobre tal ocorrido deixou subentendido que se tratava de uma
“fera”, a quem ninguém teria coragem de prender.7 O motivo do mandado
de prisão que deu origem à emboscada não é enunciado claramente, mas
a ideia de selvageria e de periculosidade do personagem Affonso e de sua
família inicia o conto, como que a justificar a atitude que será tomada pelos
“civilizados”, que em seu diálogo sugerem não haver outra saída:

[...] Precisamos acabar com aquele canguçá, custe o que custar, por ser
nosso encarniçado inimigo e de toda a nossa família. Si não dermos cabo
delle, elle dará cabo de nós, um por um. Disso estou bem certo, eu que por
milagre de Deus já escapei das balas enraivadas de sua carabina. Enquanto
elle e seus filhos viverem, nós não temos garantia. A nossa tranquilidade
só pode nascer com o último rugido daquela fera.8

No Almanach Uberabense de 1903, a divisão em partes realizada na


edição de 1895 foi mantida. A parte destinada aos poemas e contos se
ampliou. Ao invés de ser intitulada como “litteraria” recebeu o nome de
“lettras, sciencias, etc”. Foi designada também no alto de suas páginas
como “parte recreativa” e apresentou materiais escritos por inúmeras pes-
soas. Além dos poemas e poesias de diferentes autores contemplou textos
densos e volumosos. Fotografias e anúncios também foram integrados
nessa parte. Nesta o autor contribuiu com o poema QVANTVM MVTA-
TVS, apresentado em letras “garrafais”, no qual se referia à América e ao
Brasil antes da chegada dos europeus. Declarava que essas terras eram
um “imenso tesouro inexplorado”, cujo futuro foi modificado quando
Colombo, que adjetiva como “valente palinuro”, aqui pisou. A partir daí
retoma a temática indígena e (re)apresenta o modo como os via, demons-
trando entender que os europeus impuseram uma norma aos costumes:

I
Um gigante dormia áquem do mar,
Dormia no seu solio soberano
Cerulea immensidade do oceano
Velava o seu tranquilo resomnar.

7. SOUZA, Op. cit., p. 88.


8. SOUZA, Op. cit., p. 83.

154 - Urdiduras da história


Sem cuidados, sem sonho e sem scismnar
sem vexame, sem jugo, sem tyranno,
Via o tempo ir rolando de anno em anno,
Dos séculos o continuo desfilar.

Amethystas, topazios e diamantes,


metaes e pedrarias offuscantes
soberba e rica flora mal encobre.
Este imenso thesouro inexplorado
Com desdem era visto e desprezado,
Por inc’las semi-nús e côr de cobre.

II
Mas um dia mudou-se o seu futuro:
Elle viu-se de chofre despertado,
apenas o seu dorso foi pisado
Por Colombo, o valente palinuro.

O índio côr de cobre e pelo duro,


surpreso, descontente, intimidado,
Vai procurando o bosque mais cerrado
Entre pragas, protestos e esconjuros

E desta sorte tudo se transforma


O costume europeu impõe a norma
Ao gigante que acaba de acordar

A taba pouco a pouco despovoa


O índio que ao deserto corre, voa,
como estátuas de bronze a desfilar.

III
Correndo com as feras dos covis,
perplexas da feroz hilariedade,
o gentio demanda a liberdade
no denso coração de seu paiz.

E lá onde da selva a imperatriz


Se embalava em serena ociosidade

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 155


Brancas divas, princezas da cidade,
arrastam lindas sedas de Paris.

Vem depois do cocar o chapelinho,


teteias de filós e brando arminho
E outras que minha penna mal define.

Em vez da inúbia tosca do selvagem


Repete o perpassar da branda aragem
As doces partituras de Bellini.

Assim como no conto, no poema a representação que Manoel Felipe


constrói para o indígena é aquela relacionada à selvageria e rusticidade, se
contrapondo à civilização. Os habitantes da terra, designados como “inc’las
semi-nús e côr de cobre”, antes da invasão dos europeus, assim como no
conto, para ele eram “feras”. No entanto, com a apropriação europeia do
território, a situação se modificou. O indígena “cor de cobre” e “pelo duro”
foi obrigado a demandar a liberdade no interior do Brasil. Enquanto isso,
os costumes europeus, positivamente, no seu olhar, foram se inserindo no
país. A vida rudimentar do indígena foi substituída por “branda aragem”.
Seus instrumentos toscos de música cederam lugar às partituras de Bellini,
célebre compositor italiano de óperas no século XIX. O cocar das indíge-
nas abriu espaço para as damas de “chapelinho”, “teteias de filós”; “brancas
divas”, “princesas da cidade” que arrastavam aqui as sedas de Paris. Essa
estratégia de contrastar o “civilizado” e o “selvagem” perpassa toda a obra
de Manoel Felipe de Souza, demonstrando que ele era um homem do in-
terior que possuía demasiado apreço pela civilização vinda da Europa. Sua
literatura firmava uma conotação de constante superioridade.
Da mesma forma que no conto e no poema, no seu primeiro texto do
século XX para a coluna “Pennadas Furtivas”, no jornal Lavoura e Comér-
cio, além da perspectiva da crença no progresso como algo que caminhava
sempre em direção a um futuro cada vez mais grandioso – “até Uberaba
não ficou indiferente ao progresso do mundo”9 -, apresentou um olhar que
ia ao encontro das formas como a imagem dos indígenas era utilizada para
representar a cidade no contexto da nação.
Para o autor, Uberaba não era mais uma “terra de índios selvagens”.

9. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 03/01/1901. n. 157. p. 1.

156 - Urdiduras da história


Seus apontamentos sobre a urbe traziam um viés civilizacional de saída de
um estado “mais atrasado”, representado na ideia de “índios selvagens”,
para outro “mais evoluído”, que não tolerava indígenas. Para exprimir essa
transformação de estados utilizou na coluna expressões como “selvagem
beiçuda” e “índios caiapós” associadas à ideia de “não civilizado”:

A selvagem beiçuda cor de cobre, vestida de tanga, foi substituída pela


umiude côr de jambo, que ostenta a magia dos modernos figurinos de
Pariz. Onde os índios caiapós balbuciavam grosseira algaravia gemem os
marinonis espalhando aos quatro ventos sete periódicos de diferentes for-
matos.10

A linguagem confusa e incompreensível dos “caiapós” deu lugar aos


impressos modernos. Nessa acepção, as indígenas “beiçudas” e de tanga,
naquela altura da civilização na qual encontrava-se Uberaba, já haviam sido
substituídas pelas mulheres que portavam, repetindo a representação do
poema, “mágicos” figurinos de Paris. Assim como no conto e no poema,
nas crônicas o autor reafirmava suas representações estereotipadas e nega-
tivas dos indígenas que para ele eram verdadeiros selvagens. O “botocudo”,
expressão que também utilizava, era o avesso do homem civilizado.
Ainda nesse contexto de construção de uma identidade nacional,
numa outra “Pennada Furtiva” sobre as comemorações do 4° centenário do
Brasil na cidade, Manoel Felipe, além dos detalhes da festa e observações
a respeito dos discursos proferidos pelos oradores no salão do edifício da
Câmara Municipal, novamente apresentou seu olhar depreciativo em rela-
ção aos indígenas ao associar muitos brasileiros ao nível civilizacional dos
mesmos em 1500:

[...] de pé, como uma sardinha em lata e supportando um calor de trin-


ta graus à sombra, ouvi desfilar dos discursos, nos quaes perto de vinte
oradores, com êxito mais ou menos feliz, nos repetiram os episódios do
descobrimento do Brazil, e dos factos mais salientes sobrevindos desde
então para cá, achando uns que em quatrocentos anos de existência mal
sahimos do estado selvagem e outros que já estamos aptos para sustentar
um confronto com as nações mais avançadas da Terra. Supponho que uns
e outros acertaram, porque, si até no meio das grandes cidades, divagam
indivíduos cujo grau de civilização pode ser equiparado ao dos indígenas

10. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 03/01/1901. n. 157. p. 1.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 157


brasileiros de 1500, em compensação o Brazil possue gênios que a culta
Europa acata e respeita.11

Esse perfil de abordagem que contrastava a “selvageria” dos indíge-


nas frente à “civilização” da Europa se fez presente em muitas de suas
“Pennadas Furtivas”. Além dos indígenas como a representação do atra-
so, as práticas culturais e religiosas dos negros também eram entendidas
pelo autor como entraves à civilização.
O olhar que o colunista lançava aos festejos desses grupos era um
indício do modo como os negros eram vistos por parte da sociedade
uberabense à época. Sua perspectiva não era individualizada, pois estava
ocorrendo em nível nacional e dizia respeito à forma como, em especial
os africanos e seus descendentes, estavam sendo encarados por parte da
sociedade brasileira no pós-abolição e ingresso na República.
As celebrações que reuniam africanos nos espaços de diversas cidades
brasileiras, desde pelo menos o século XVIII, eram vistas por algumas
autoridades, membros das elites e da própria Igreja como costumes bár-
baros que deveriam ser combatidos, ou simplesmente afastados dos olhos
da “boa sociedade”, evitando assim a “contaminação” de outros setores da
população. No Rio de Janeiro, por exemplo, a partir da segunda década
do século XIX, as autoridades cariocas passaram a proibir as danças e as
procissões organizadas pelas irmandades de escravizados, alegando que
elas promoviam desordens, bebedeiras e ameaças à ordem pública.
Além disso, havia aqueles que viam as celebrações dos negros como
uma espécie de carnavalização da religião oficial, uma mistura de sagrado
e profano que subvertia a ordem simbólica dos brancos. Igualmente, na
imprensa, fortes críticas às festividades dos africanos e seus descenden-
tes no meio urbano, tinham espaço. Eram chamadas de “práticas que a
civilização condenava”, “bacanal dos tempos pagãos”, “canções de prostí-
bulos”, “gestos que desencadeavam os mais sensuais e desordenados de-
sejos”. Essas representações de discriminação, marcadas por intolerância
e truculência daqueles que não viam com bons olhos as práticas culturais
e religiosas desses grupos perduraram todo o século XIX. Com a Repú-
blica, os mesmos viram aos poucos seus cortejos serem impedidos de sair
às ruas, seus atabaques silenciados. Até mesmo seus templos sagrados se-

11. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 10/05/1900. n. 89. p. 1.

158 - Urdiduras da história


riam excluídos dos mapas urbanos com as inúmeras reformas nas cidades
a partir das primeiras décadas do século XX.12
Nesse ambiente marcado pelo preconceito, Uberaba trazia em seu
bojo os traços de uma sociedade escravista. A Igreja do Rosário, espaço
de representatividade negra, intitulada também como Igreja dos “homens
de cor”13, foi erguida no município em meados do século XIX e lite-
ralmente apagada da paisagem no início da segunda década do século
XX.14 A percepção que Manoel Felipe de Souza tinha sobre os festejos
realizados pelos negros nessa Igreja e nas suas imediações trazia à baila
percepções racistas que permeavam as tensões sociais existentes na cidade
naquele momento.
Não sem julgamentos, os festejos dos negros no orago eram objeto
de um olhar negativado, tanto por parte de integrantes da própria Igreja,
quanto por parte de integrantes da imprensa, a exemplo do colunista,
que em uma de suas “Pennadas Furtivas” escreveu sobre a festa, e sobre
a fala de um bispo que, da mesma forma que ele, discordava e rejeitava a
maneira como os “pretos”, segundo ele, se portavam nas comemorações
do Rosário:

Não assisti porque não gosto da festa do Rosário, mas não falta quem
conte a gente. S. exc. o bispo diocesano estava na egreja e censurava ener-
gicamente o modo gaiato e carnavalesco com que se celebra a festa deno-
minada dos pretos, e dizia que mais de uma vez tem prohibido tal abuso.
Repetia a sua solene prohibição quando uma turma dos taes foliões, em
piquete avançado e de jacázinho aos pés, fazendo mesuras e trejeitos pou-
co pudibundos, aproximando-se da porta da egreja, arrancava de mal edu-
cadas larynges e soltava as variações meridias a copla chata e quase obs-
cena que ahi fica reproduzida. Nesse momento, acompanhados daquela
dança infernal, damas de honra e moços fidalgos, ia transpondo a entrada
da egreja o imperador e a imperatriz, a quem a exc. deu ordem de despir o

12. FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; Soares, Carlos Eugênio Líbano;
MOREIRA, Carlos Eduardo de Araújo. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urba-
nos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. p. 112-120.
13. Além de Nossa Senhora do Rosário, eram considerados “santos de negros” Santa Efigênia
e São Benedito.
14. OLIVEIRA, Raniele Duarte. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Uberaba/MG:
desafios e possibilidades de pesquisa (1841/1924). Anais eletrônicos do I Seminário de
História e Cultura: historiografia e teoria da História. Universidade Federal de Uberlân-
dia. 2013.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 159


manto e todas as insígnias imperiais, depois de ter mandado demolir dois
thronos que lá debaixo da arcada da egreja esperavam o soberano casal.15

A partir da interpretação e ação do bispo em relação às práticas dos


“pretos” na festa, foi possível identificar impasses que envolviam as rela-
ções dos negros com a Igreja e também o modo como o próprio Manoel
Felipe de Souza enxergava a questão. Estava em voga o preconceito racial
e religioso na sociedade uberabense. Ao falar em “mal educadas larynges” e
“dança infernal” com “copla chata e quase obscena”, as “Pennadas Furtivas”
construíam a ideia de que os sons emitidos pelas festividades dos negros
na cidade eram entendidos não apenas como uma perturbação da ordem
pública, mas também como uma perturbação da ordem moral.
Nas festividades de Nossa Senhora do Rosário, como em outras cida-
des brasileiras, em Uberaba realizavam-se as congadas, que eram uma for-
ma de os africanos e seus descendentes reelaborarem suas identidades. Por
meio de suas manifestações culturais e religiosas apresentavam formas de
resistência frente aos conflitos com os representantes eclesiásticos e frente
aos preconceitos que viviam na vida em sociedade. O congado no final do
século XIX era tido por alguns setores sociais e religiosos como algo que
portava uma marca demoníaca, de algazarra, de “dançantes bate caixas” que
produziam gestos pecaminosos. Os bispos e os padres mineiros faziam de
tudo para impedir a presença do congo no interior de suas igrejas.16
É oportuno lembrar que, desde o Império, os festejos oriundos do
universo cultural dos escravizados em Uberaba passaram por um crivo de
regulamentação do poder público municipal e por um crivo de censura do
poder eclesiástico. Do poder público, no sentido de que este criava uma sé-
rie de regras que normatizavam seus comportamentos e práticas; do poder
eclesiástico no sentido de que os festejos poderiam ocorrer desde que fos-
sem fora do espaço físico da Igreja do Rosário. Desde sua construção, em
meados do século XIX, essa Igreja era um ponto associado aos escravizados
e libertos, que nos dias de festa da santa recriavam na paisagem da cidade
suas tradições ancestrais. Por meio das congadas, construíam um espaço

15. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 22/04/1900. n. 84. p. 2.


16. BRASILEIRO, Jeremias. O ressoar dos tambores do Congado: entre a tradição e a
contemporaneidade: cotidiano, memórias, disputas (1955-2011). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em História.
Uberlândia, 2012. p. 52.

160 - Urdiduras da história


de afirmação negra. Todavia, não podiam se apropriar do espaço do orago
da maneira que lhes fosse conveniente, muito menos realizar suas mani-
festações culturais livres de restrições. Ainda em 1867, o poder público
municipal havia criado o Código de Posturas, que trazia artigos nos quais
se proibiam reuniões dançantes de escravizados e batuques.17
A própria presença dos escravizados na cidade era regulada por meio
das leis contidas no Código de Posturas. Ficava proibido, por exemplo, que
esses andassem pelas ruas a qualquer pretexto, sem autorização dos seus se-
nhores. Havia um toque de recolher e os escravizados que fossem achados
nas áreas públicas após esse toque seriam levados à prisão e lá ficariam até
serem reclamados pelos seus senhores, que ficariam propensos ao paga-
mento de multas. Também lhes era vetada a realização de aglomerações ou
conversas em grupos. A criação de uma legislação reiterou que os africanos
e seus descendentes em Uberaba eram alvos de interdições.
Caminhando para o fim do século, já no cenário de pós-abolição, a
presença dos negros e suas manifestações culturais na cidade e na Igreja
do Rosário continuaram sendo objeto de restrições. O “Regulamento da
Irmandade do Rosário”, de 1896, igualmente tentava coibir as manifes-
tações. Deixava implícito que os folguedos e as festas populares poderiam
ocorrer de acordo com a disponibilidade e recursos de seus idealizadores,
desde que não se dessem dentro do orago do Rosário. A partir daí, ficou
em perspectiva o fato de que os ritos e as festas provenientes do universo
cultural dos ex-escravizados em Uberaba, com a República, continuaram
passando por uma censura eclesiástica. Todas essas premissas normatiza-
doras indicam que, por muitos anos, o poder público municipal e o poder
eclesiástico, possivelmente com a aderência de parte de indivíduos ligados
às elites econômicas, intelectuais e sociais, arquitetaram estratégias que co-
locavam em pauta projetos de cidade que tinham como ponto em comum
ocultar ou afastar os negros do ambiente urbano.18
Além das normatizações criadas pelo poder público, a imprensa tam-
bém somava forças no combate a presenças dos negros na urbe. Esse com-
bate se dava por meio da atuação de letrados nos periódicos, mas também
por meio do esquecimento da existência de uma imprensa do segmento ne-
17. OLIVEIRA, Raniele Duarte. A igreja de nossa senhora do Rosário em Uberaba/MG: os
escravos e suas práticas culturais na cidade (1867/1888). Anais eletrônicos do II Seminário
Internacional do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Uberlândia, 2013.
18. OLIVEIRA, Op. cit., 2013.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 161


gro no município. Exemplo disso é o periódico Mensageiro S. S. Rosário, da
Confraria do S. S. Rosário e do Rosário Perpétuo. Apenas foi possível chegar
ao conhecimento deste impresso por meio de um memorialista19, que não
apresentou explicações a seu respeito. Por meio dos registros, averiguou-se
que se tratava de uma revista mensal, distribuída em 1897, e que por um
período de pelo menos vinte anos esteve em circulação. Com essa longe-
vidade, curiosa a dificuldade em encontrar informações a seu respeito. A
ausência de memórias sobre um periódico que remete à presença negra na
cidade traz indagações sobre o destino e o tratamento de possíveis registros
de práticas da população negra na urbe.
Manoel Felipe de Souza, mesmo sendo um representante dessa popu-
lação, refletia em suas crônicas a enxurrada de preconceitos e normatiza-
ções impostas aos negros. Os temas da cultura afro-brasileira, assim como
na questão indígena, eram tomados por ele como representação de selva-
geria e barbárie. Nesse ponto, seus modos de abordar revelam uma época
permeada não só pela intolerância religiosa, mas também por visões nega-
tivas a respeito da congada na imprensa. Conflitos e disputas dos espaços
socioculturais e religiosos da cidade ficavam à mostra em suas crônicas:

S. exc. disse que no estrangeiro, de onde acaba de voltar, o Brasil é en-


xovalhado como um país de selvagens, exibindo-se alli photographias de
grupos de congados e moçambiques como o typo do genuíno brazileiro.
Disse que na livre América, onde o povo não consente um rei às direitas,
não devem mais figurar esses reis annuaes e caricatos que trazem na régia
cabeça diademas de folhas de Flandres. Contaram-se ainda ter s. exc.
dito que não pôde levar a bem a farda e a espada do soldado brasileiro,
guarda da integridade da Pátria, sejam malbaratadas e polluídas em tão
grotesco carnaval.20

Esse trecho traz à tona novamente a questão dos “tipos nacionais” e a


forma como o Brasil era visto lá fora. Na fala do cronista, embasando-se
nos relatos de “S. exc.”, em outros países, além do “indígena botocudo”,
os negros com suas congadas eram tomados não só como a representação
do selvagem, mas também como a representação do “genuíno brasileiro”.
Tal fato, tanto no olhar do autor quanto do próprio bispo citado no artigo,

19. Hidelbrando Pontes.


20. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 22/04/1900. n. 84. p. 2.

162 - Urdiduras da história


deveria ser combatido. No processo de construção da imagem e da identi-
dade nacional, essas pessoas se posicionavam em favor da eliminação das
congadas do centro da cidade, afirmando que elas eram um empecilho à ci-
vilização, não coerentes à imagem que se queria para a cidade e para o país.
O que a análise da coluna de Manoel Felipe de Souza traz à baila é um
contexto social de discriminação em que as práticas culturais e religiosas
dos negros não agradavam a todos. A cidade, enquanto um espaço onde
as visões de mundo dos habitantes não eram concordantes, abrigava repre-
sentações em que não só o poder público, mas também representantes das
elites intelectuais, a citar o colunista, entendiam as manifestações dos ne-
gros como uma incoerência social numa paisagem que, com a coibição das
mesmas, contribuiria para a urbanidade no Largo do Rosário e na cidade
em geral, tornando-a mais coerente à imagem que se tinha da civilização.
Parte da sociedade do período via aquele orago e a negritude que a
frequentava como “feiura”, algo que desagradava à visão; uma irregularida-
de na paisagem que precisava ser suavizada no sentido de refletir a imagem
da cidade almejada. Os melhoramentos de infraestrutura eram entendidos
como modernização. A civilidade implicava uma mudança de comporta-
mentos, refinamento nos modos. A sociedade, dessa forma, seria positiva-
da, alcançando o progresso. Em contraponto, os sujeitos e as práticas que
representavam o “não civilizado” deveriam ser afastados.
A perspectiva de suavização da paisagem excluindo determinados gru-
pos sociais, desde os instantes iniciais do pós-abolição, e ao longo das pri-
meiras décadas do século XX, remetem a tentativa de confinar os negros a
espaços públicos restritos. Nesse período surgiram campanhas de destrui-
ção das igrejas do Rosário por todo o país, pois apagá-las da paisagem era
uma estratégia de branqueamento das cidades porque, de maneira geral,
elas foram edificadas nos pontos centrais dos núcleos urbanos que, após a
abolição, se tornaram alvos de modificações que visavam apagar possíveis
emblemas que lembravam a escravização.21
Manoel Felipe de Souza, imerso nessa sociedade, fazia o uso literal
da palavra “selvagem” para designar o avesso civilizacional que ficou ainda
mais perceptível numa outra “Pennada Furtiva”, onde continuou comen-
tando a respeito dos festejos do Rosário, mas dessa vez em relação à proi-
21. RIBEIRO JÚNIOR, Florisvaldo de Paulo. O mundo do trabalho na ordem republi-
cana: a invenção do trabalhador nacional. Minas Gerais (1888-1928). Tese (Doutorado em
História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. Brasília, 2008. p. 18.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 163


bição do samba na festa. Em seu ver, se tratava de uma dança que era um
“cancan selvagem”, um “tango de mau gosto”:

O samba africano abolido ultimamente por s. exc. Revma. como signal


externo das solenidades religiosas, deixou com efeito de figurar na última
festa do Rosário, com grande pesar de pretos, morenos e brancos; mas os
moreníssimos dançarinos, entendendo que Nossa Senhora ficava contraria-
da com aquella supressão, acostumada como estava ás delícias daquellas
suavíssimas coplas que de anno em anno sobem aos ares de mistura com
o rufo dos tambores, redobram o seu fervor religioso e foram expandir-se
pelas ruas em animado zé-pereira. Custou mais caro a emenda as pessoas
que detestam aquele tango de mau gosto. S. exc. não pôde proibi-lo na
rua. Compete a polícia fazê-lo, mas a polícia já está como Nossa Senhora
tão habituada aquelle cancan selvagem, que não vê nelle inconveniente
algum. Para ella tudo aquilo é aproveitável: o berreiro, o sussurro dos
jacázinhos (não conheço o termo thécnico) têm o condão de conciliar o
somno e provocar sonhos agradáveis, povoados de fadas, mulas sem cab...
digo, de fadas, princesas e príncipes encantados, e as coplas que surgem da
ebulição alcoólica, numa indigesta miscellanea de portuguezz e africano,
contém edificantes predilecções de moral.22

Ironizando, o colunista apresentou uma condenação moral do samba,


entendido por ele como uma dança de “coplas” ativadas pelo consumo do
álcool. Além disso, no seu modo de ver, era preciso acabar com tudo que
lembrasse as “passadas misérias do Brasil”, virar a página da escravização
e educar e lapidar os negros, que chama de “moreníssimos”, à civilização.
Nesse ponto, a festa do Rosário, apesar de ser tradicional e movimentar a
cidade, para o autor tinha o significado de rememoração daquele passado
escravocrata, marcado pelo funesto período de tráfico negreiro, que preci-
sava ser apagado da memória coletiva do Brasil:

“- É uma festa tradional”, dizem que diverte o povo e quebra a mono-


tonia da vida da cidade. Muito bem! Quebrar a monotonia com a mais
tola e enfadonha das monotonias. Divertir o povo com aquele espetáculo
rude que faz a lembrança retrogradar aos tempos ominosos da escravidão
e á época do criminoso tráfico dos íncolas da costa da África. Admire
haver quem ache attractivo naquela nauseabunda relíquia dos tempos
idos, que há muito devia estar obrumbrada pelo perpassar das eras e

22. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. Ano I. 26/04/1900. n. 85. p. 1.

164 - Urdiduras da história


coberta da reprovação da sociedade. Suprimamos de uma vez, de um
só golpe, tudo que possa evocar o negror dos tempos que foram, tudo
que por ventura lembre as passadas misérias do Brasil. O egoísmo da
população branca não deve subir a ponto de querer que os descendentes
dos míseros captivos de outrora sejam mantidos em tão baixa esphera
de educação. Não seja o mero incidente da cor um estorvo para que os
nossos morenos patrícios deixem de comungar na conquista da moderna
civilização, havendo entre eles, quem sabe? Talentos inexplorados, pre-
ciosos diamantes por lapidar23.

Nesse trecho o autor reforça novamente o viés civilizacional ao apon-


tar a necessidade de um olhar para a educação dos descendentes dos “mí-
seros captivos” - “morenos patrícios” - que em seu ver encontravam-se
numa condição de selvagens. Assim como ele, era pela educação e letra-
mento que poderiam se inserir na civilização.
Ainda discutindo a questão da escravização, o colunista emitiu pa-
recer sobre um texto que foi publicado no primeiro número do jornal O
Domingo:

Sobra-me desejo e boa vontade de dizer cousas bonitas e tecer ecomios


aos habilíssimos typographos, redactores d’O Domingo, mas não faltará
ocasião. Deixem passar a má impressão que me deixou o artigo de fundo
do primeiro número que recordou as negras scenas da escravidão, misérias
humanas da pátria que jamais deviam subir à tona da publicidade, ficando
para sempre immersas no abysmo do passado, onde em boa hora foram
arrojadas pela aurea lei do 13 de maio, deixando perplexos e abatidos os
sanhudos proprietários da liberdade alheia, alguns dos quaes não podendo
sobreviver á catástrofe deram fim a seus dias, suicidando-se. Tarde, bem
tarde, tomaram eles o salutar alvitre.24

Como se pode notar, para Manoel Felipe de Souza a escravização


equivalia às “misérias humanas da pátria”. Novamente, a preocupação com
a imagem da nação estava sendo elemento de sua atenção. No contexto
da construção da imagem nacional, o passado de escravização deveria ser
apagado da memória da população. Fator também relevante nas falas do
cronista era que ele afirmava não ter “ódio de raça”:

23. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. Ano I. 26/04/1900. n. 85. p. 1.


24. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 27/06/1901. n. 207. p. 2.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 165


Quem escreve assim com tanta franqueza, vasando a alma no papel, de
certo não odeia os pretos. Portanto, quando crimino a selvageria dos seus
festejos e a burlesca expansão de sua alegria, não devem tomar a minha
ojeriza por um ódio de raça.25

Justificou sua postura afirmando não ter “ódio de raça”. Na verdade,


seu desejo seria “ver a pátria expurgada dos últimos salpicos do passado
servilismo”.26 No modo de entender do autor, eram os festejos e as práti-
cas dos ex-escravizados que manchavam a imagem que se queria para o
país; eram nódoas que deveriam ficar fora dos elementos constituintes da
identidade nacional. Aliada a essa percepção o incentivo ao esquecimento
do passado de escravização era algo constante em suas “Pennadas”, pois
era um colaborador na construção da imagem que se queria para a pátria.
Sobre essa questão de não ter “ódio de raça”, Manoel Felipe de Sou-
za tinha dificuldade em se reconhecer como negro. Designava-se como
“moreno”. Isso se dava num contexto em que as teorias raciais colocavam
o negro como inferior no aspecto social e civilizacional. Sua insistência
no discurso civilizacional passava por esse ponto chave. Um “moreno”
que afirmava não ter ódio de raça, mas que sendo parte do grupo discri-
minado, se colocava como distinto pela assimilação da civilização, pela
erudição e pela identificação com o mundo europeu. Dessa forma, dis-
tanciava-se dos seus pares: negros que pelo analfabetismo e ausência de
polidez se assemelhavam à selvagens.
Vale ressaltar que, no final do século XIX, a miscigenação, saudada
por cientistas estrangeiros como fenômeno desconhecido e recente, se
transformou em um tema polêmico entre as elites locais brasileiras. O
tema soava controverso, pois, de um lado, a questão racial era tida como a
linguagem pela qual se tornaria possível apreender as particularidades do
país, os discursos raciais se vinculavam a projetos de cunho nacionalista.
Por outro lado, a constatação de que o Brasil era uma “nação mestiça”
gerava dilemas para os cientistas, pois implicava admitir a inexistência de
futuro para uma nação de “raças mistas”. Isto porque, no conjunto dos
modelos evolucionistas em alta no período, não só se elogiava o progresso
e a civilização, como também se concluía que a mistura de raças hetero-
gêneas era sempre um erro e levava à degeneração não só do indivíduo,
25. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 26/04/1900. n. 85. p. 1.
26. M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 26/04/1900. n. 85. p. 1.

166 - Urdiduras da história


mas de toda a coletividade.27
Em um momento em que se (re)descobria a nação, grupos indíge-
nas, africanos e mestiços, eram incorporados como obstáculos à civiliza-
ção e barreiras à identidade nacional. As teorias raciais que circulavam
no Brasil daquele final de século procuravam justificar a expulsão desses
grupos entendidos como a parte “gangrenada” da população, sem deixar
de garantir que o futuro seria “branco”. A referência ao tema da misci-
genação entre os médicos baianos, por exemplo, era também “problema
negro”, entendido como fator explicativo para “nossa inferioridade como
povo” ou “nossa fraqueza biológica”. Além do mais, as teorias raciais ser-
viam igualmente para legitimar as falas dos grupos urbanos ascendentes,
responsáveis por projetos políticos, e que viam nessas teorias sinais de
modernidade e índice de progresso. O conceito de “mestiçagem” por si
só era uma cilada da modernidade, pois sob a aparência da aceitação do
múltiplo, encobria na realidade um projeto racista que previa a mistura de
raças, desde que – através do branqueamento progressivo da população –
ao final houvesse sempre uma predominância dos valores brancos.”28 Era
nesse ambiente de discriminação que Manoel Felipe afirmava se distin-
guir não pela cor da pele, mas pela civilização.
Em uma imprensa de predominância branca, o que foi possível
apreender das representações que Manoel Felipe de Souza construía das
manifestações e práticas socioculturais dos negros em suas crônicas num
dos principais jornais ruralistas do Triângulo Mineiro, é que o mesmo si-
tuava-se num meio letrado em que os negros eram desqualificados de todas
as maneiras possíveis: social, econômica e cientificamente. Ao viver o auge
das teorias racistas do final do século XIX, eugenia, darwinismo social,
branqueamento, tinha não apenas dificuldades em se assumir como negro,
como também não ficava isento de (re)afirmar os preconceitos que sofria.
Ao apresentar percepções profundamente racistas deixava escapar todo
um histórico de opressão, violência e discriminação do qual ele também era
vítima. Sendo um homem de pele escura, alfabetizado, participante ativo
da construção da imprensa uberabense, um intelectual refinado, se esfor-
çava para ter espaço e ser aceito. Para isso, assumia posturas e comporta-
mentos preconceituosos. A utilização de seu letramento e erudição para se
27. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados. v.8., n.
20. São Paulo. Jan.-abr. 1994. Disponível em: www.scielo.com.br. Acesso em: 04/07/2020.
28. SCHWARCZ, Op. cit., p. 56.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 167


diferenciar era resultado desse ambiente racista que vivenciava.
Atacar os grupos com os quais não queria se identificar era uma prática
que realizava mergulhado em uma relação de poder dominada por elites
brancas. O ideal de superioridade dessas elites incluía a soma da imposição
de uma cultura importada da Europa, a segregação dos grupos que con-
sideravam impertinentes à civilização, a propagação dos seus valores e de
toda uma estrutura de poder que, alicerçada em uma sociedade hierarqui-
zada, impunha áridas barreiras aos indígenas e aos negros.
A existência e atuação de um cronista de pele escura no interior de
Minas Gerais é um fio de meada para a investigação da participação dos
negros na imprensa longe das capitais. Ao se apresentar como humorista
no jornal, deixou como surpresa aos seus leitores a diversidade de recursos
de escrita que utilizava. Conforme apontado, além do humor, seus textos
apresentavam ficção, metáfora e figuras de linguagem. No que diz respei-
to ao humor ele não era o único a utilizá-lo no jornal. A diferença dele
para os demais colaboradores era o fato de ter sido convidado para ser o
humorista “oficial” da folha.
No entanto, para além do aspecto humorístico, o conteúdo de suas
crônicas, em profundidade, tinha muitas vezes um caráter dúbio: ora
despertavam o riso sereno e civilizador, ora eram irônicas, sarcásticas,
provocativas e debochadas. À sua maneira, expressava as formas como
as ideias de modernidade, progresso e civilização eram interpretadas na
imprensa do interior. O Lavoura e Comércio correspondia aos seus anseios
de homem moderno, que almejava ver a cidade nos trilhos do progresso.
Sua coluna situava-se em um periódico que, assim como ele, era adepto
à vida civilizada.
Para tanto, sua pena era uma arma que combatia tudo aquilo que
avaliava como grosseiro e antagônico ao mundo civilizado. Os indígenas
e as práticas religiosas e culturais dos negros eram-lhe foco de ataque.
Enquanto nas demais colunas do periódico os articulistas se propunham
ao compromisso de abordar a realidade dos fatos, utilizando-se de uma
linguagem tida como objetiva, e considerada sisuda por ele, suas crônicas
permitiam uma liberdade em relação ao uso dos recursos de escrita. Fazer
galhofa, inserir elementos ficcionais, satirizar e também escrever de for-
ma séria, sem fazer piadas, eram parte de seu repertório intelectual. Por
isso, suas “Pennadas Furtivas” eram tão interessantes, pois havia surpresa

168 - Urdiduras da história


e imprevisibilidade.
Ao invés de conceber o progresso, a modernidade e a civilização
como algo concreto, como muitos faziam, esse cronista do interior usa-
va sua escrita como um instrumento que visava à superação de práticas
e comportamentos que, no seu ver, eram retrógrados. Era por meio do
humor, adicionado aos demais meios das crônicas, que se diferenciava na
crítica ao atraso. A forma ferrenha como tratava boa parte dos assuntos
discutidos nas crônicas era também reflexo de um homem ressentido,
alguém que conversava com as elites econômicas, escrevia para elas, as
divertia e fazia rir, mas não era parte delas.
Nessa perspectiva, ao escrever sobre os indígenas e as manifestações
socioculturais dos negros, relacionando ambos os grupos e suas práticas à
selvageria, Manoel Felipe de Souza e sua coluna “Pennadas Furtivas” não
estavam destacados de um universo social mais amplo, que transcendia
Uberaba. Pelo contrário, eram participantes de um processo de transfor-
mações marcadas pelo racismo e discriminação de parte considerável da
sociedade brasileira. O ritmo de vida que se alterava visando a modernida-
de revelava a maneira como a população mais privilegiada - latifundiários,
comerciantes, profissionais liberais, membros eclesiásticos, poder público
municipal e intelectuais - lidou com o complexo universo social que se
formou com a abolição e a instauração da República. Negros e indíge-
nas teoricamente, apenas teoricamente, poderiam transitar de forma livre
e igualitária pelos espaços públicos da cidade, mas, conforme identificado a
partir da análise das “Pennadas Furtivas”, não era isso que acontecia.

Fontes

1. Almanak Uberabense

SOUZA, Manoel Felipe de. Morte do Índio Afonso. In: VIEIRA, Dio-
cleciano; COSTA, Arthur (orgs.). Almanak Uberabense. Rio de Janeiro.
1895. p. 83-89.

2. Jornal Lavoura e Comércio

M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 22/04/1900. n. 84.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 169


M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 26/04/1900. n. 85.

M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 10/05/1900. n. 89.

M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 03/01/1901. n. 157.

M. F. Pennadas Furtivas. Lavoura e Comércio. 27/06/1901. n. 207.

Referências

BASTOS, Dilza Ramos; CAMPOS, Maria Luiza de Almeida; VAS-


CONCELLOS, Eliane. A pesquisa em crônicas jornalísticas: a análise da
representação da informação. Revista Arquivo e Administração. Rio de
Janeiro. v. 7, n. 1, jan.-jun. 2008.

BRASILEIRO, Jeremias. O ressoar dos tambores do Congado: entre


a tradição e a contemporaneidade: cotidiano, memórias, disputas (1955-
2011). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em História. Uberlândia, 2012.

FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; Soares, Carlos


Eugênio Líbano; MOREIRA, Carlos Eduardo de Araújo. Cidades ne-
gras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século
XIX. São Paulo: Alameda, 2006.

OLIVEIRA, Raniele Duarte. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário de


Uberaba/MG: desafios e possibilidades de pesquisa (1841/1924). Anais
do I Seminário de História e Cultura: historiografia e teoria da História.
Universidade Federal de Uberlândia. 2013.

______. A igreja de nossa senhora do Rosário em Uberaba/MG: os escra-


vos e suas práticas culturais na cidade (1867/1888). Anais do II Seminá-
rio Internacional do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Uberlândia, 2013.

PONTES, Matheus de Mesquista e. Jornalismo e História nas crônicas de


Carlos Drummond de Andrade: 1930-1950. OPISIS. Revista do NIESC,
v. 4, 2004.

170 - Urdiduras da história


RIBAS, Maria Cristina. Por uma revisão conceitual do gênero crônica: en-
tre a montanha e o rés do chão. Anais do XIII Congresso Internacional
da ABRALIC (UEPB). Campina Grande (PB), 08 a 12 de julho de 2013.

RIBEIRO JÚNIOR, Florisvaldo de Paulo. O mundo do trabalho na


ordem republicana: a invenção do trabalhador nacional. Minas Gerais
(1888-1928). Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Hu-
manas da Universidade de Brasília. Brasília, 2008.

SANTOS, Regma Maria dos (Org.). Brevidades, Lycidio Paes. São Pau-
lo: EDUC, 2002.

SILVA, Maria Isabel da. A metalinguagem na crônica de Drummond.


Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Presbiteriana Macken-
zie, São Paulo, 2008.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avan-


çados. v.8, n. 20, São Paulo. jan.-abr. 1994.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 171


Pelas margens do incerto e as certezas do
desenraizamento: a desfiguração dos modos de
vida dos afetados pela UHE Serra do Facão no
sudeste goiano

Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira

Pensa na escuridão e no grande frio, que reinam nesse vale, onde


soam lamentos.1

Este texto tem por intenção retomar memórias. Nesse caso, memórias
de sujeitos sociais que, há mais de uma década, tiveram suas vidas radical-
mente transformadas com a construção e a instalação da Usina Hidrelétri-
ca Serra do Facão (SEFAC), no Sudeste de Goiás. A barragem, erguida
no Rio São Marcos, gerou um lago que inundou cerca de 214 km² em seis
municípios: Catalão, Davinópolis, Cristalina, Campo Alegre de Goiás e
Ipameri, no estado de Goiás; e Paracatu, no estado de Minas Gerais.
Essa pesquisa não nasceu “sozinha”, isolada no tempo ou apartada da
vida do pesquisador. Pelo contrário, o envolvimento do pesquisador com
o tema já esbarra em mais de uma década, pois de 2008 até os anos 2022
foram inúmeros os caminhos e trilhas que me fizeram enveredar pelo inte-
rior goiano e revisitar moradores afetados pela construção da usina. Afinal,
atuei como estagiário no projeto que se intitulava “Programa de preserva-
ção do patrimônio histórico-cultural: Caminhos da memória, caminhos de
muitas histórias”.
Como uma das várias ações compensatórias, necessárias para o pleno
funcionamento da Usina Hidroelétrica Serra do Facão, o projeto conferia

1. BRECHT, Bertolt. A Ópera dos Três Vinténs. Tradução Wolfgang Bader, Marcos Roma
Santa, Wira Selanski. In: ______. Teatro Completo. v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
àquele grupo de pesquisa a responsabilidade pelo levantamento do patri-
mônio histórico-cultural da área atingida em Goiás e Minas Gerais. Ao
final da pesquisa, previa-se, ainda, a produção de um livro, “São Marcos do
Sertão Goiano: Cidades, memórias e culturas”; um vídeo documentário, “Ser-
tão de dentro: travessias e veredas em Goiás” e a produção e organização de
inventários. Com o passar do tempo, fui entendendo a responsabilidade, o
desafio e a grandiosidade do mesmo.
Trabalhávamos com a produção das memórias, cuja trama visava cons-
truir representações das experiências das pessoas que seriam desapropria-
das das suas habitações e terras. A equipe tinha a percepção prévia de que
o início não seria fácil. E, verdadeiramente, não foi. Por acreditar que o
grupo fazia parte da empresa, e que não se tratava, apenas, de pesquisado-
res de uma universidade federal com o intuito de valorizar suas memórias e
práticas culturais, muitos moradores da região afetada se recusaram a rece-
ber a equipe de forma cordial. Ao longo da jornada pelos seis municípios,
muitas vezes o grupo foi alvo de desconfiança pelos moradores, os quais
associavam o trabalho ao de funcionários da Serra do Facão, responsáveis
pelo inventário dos bens e pagamentos das indenizações.
No entanto, na medida em que o trabalho de campo foi sendo desen-
volvido, a equipe foi conquistando a confiança dos moradores da região,
saindo da posição de intrusos para a de “escutadores”. A prova da nova
confiança se expressava na hospitalidade da mesa farta: o “cafezinho” pas-
sado na hora, o queijo fresco, os doces e quitandas que temperavam os
“dedos de prosa” dos quais saíram falas significativas e entrevistas enrique-
cedoras. No meu entendimento, no momento em que a equipe foi aceita
e chamada a partilhar de uma prática cultural inerente à região, consubs-
tanciada na hospitalidade da mesa farta, foi que passou a dimensionar, de
fato, como a chegada da Usina Hidroelétrica afetava o cotidiano daqueles
sujeitos, transformando a região em um tenso campo de disputas.
Durante cerca de dois anos, entre 2008 e 2010, a equipe da qual eu
fazia parte, percorreu centenas de quilômetros, batendo de porta em porta
e realizando mais de 400 entrevistas, transcritas e arquivadas para futuras
pesquisas. Além disso, efetuou um levantamento bibliográfico e documen-
tal, construindo um rico acervo que deveria ser disponibilizado para con-
sultas em um Centro de Referência em Catalão, Goiás, e ainda, no Centro
de Pesquisa e Documentação em História (CDHIS) da Universidade Fe-

174 - Urdiduras da história


deral de Uberlândia. O volume de documentação produzida e arrolada foi
impressionante. No entanto, para além da questão numérica, o processo de
pesquisa propiciou aos sujeitos sociais, afetados pela UHE Serra do Facão,
passarem da condição de silenciados invisíveis para, então, protagonistas
de suas próprias histórias.
No período de dois anos, compreendidos entre o início do processo
de produção e organização de dados, até às análises e escrita, a equipe
do projeto publicou o livro e o “vídeo documentário” acima referidos.
Estes produtos, conforme acordado com a empresa, como parte das ações
compensatórias que eram obrigatórias, deveriam ser distribuídos para os
sujeitos afetados e entregues às autoridades competentes, como requisito
para permitir o funcionamento da Usina Hidroelétrica.
Todavia, nenhum dos dois produtos foi bem aceito pela direção exe-
cutiva da Hidrelétrica. Afastado no tempo e revisitando minhas próprias
memórias, compreendo hoje, como pesquisador, que o que estava em
xeque, entre a empresa e a equipe responsável pelo projeto era a noção
de progresso. Afinal, não compactuávamos com a ideia de progresso da
qual a empresa se fazia representante no processo e que “vendia” em seus
jornais e espaços publicitários.
Dentro dos embates travados houve, inclusive, um momento inu-
sitado nas reuniões da equipe de pesquisa e representantes da empresa,
quando uma das diretoras do empreendimento tentou “ensinar” para três
professores, pesquisadores doutores, especialistas no tema, o que era “cul-
tura popular”. Estabelecido o estranhamento – e por que não, o horror
– percebeu-se, ali, que superada a dificuldade da equipe ser recebida pelos
sujeitos em suas casas e abrirem-se, demonstrando seus anseios e contan-
do suas histórias, novo problema se colocava: a expectativa da empresa
em garantir, nos produtos, a sua autorrepresentação.
Por muitas vezes, os representantes da Hidrelétrica tentaram interfe-
rir na nossa escrita e na idealização do vídeo documentário que, naquela
altura, já estava em fase de edição. Registre-se que foram mais de sete
versões do documentário, retirando partes ou readaptando, para atender
ao setor jurídico da Universidade Federal de Uberlândia, acionado pela
empresa, a qual alegava que o trabalho difamava a imagem das empresas
pertencentes ao consórcio da Usina Hidroelétrica Serra do Facão.
É importante deixar claro que as alegações eram inverossímeis.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 175


Ocorre que, ao tratar com o máximo de respeito todos os interlocutores
da pesquisa, retratando com verossimilhança suas inquietações e relações
com o lugar, a equipe de pesquisa traz à cena outras versões do processo.
Tecidas por outras narrativas fazem emergir outras memórias, garantindo
para o futuro, uma outra história, diferente e dissonante daquela preten-
dida pela SEFAC.
Ora, cada capítulo e cada imagem dialogava intrinsicamente com
o aporte teórico-metodológico escolhido pelos pesquisadores para con-
duzir a analítica. Desnecessário dizer que passava ao largo da perspec-
tiva historicista, assentada em “grandes feitos e nomes”, defendida pela
empresa. Em conformidade com a perspectiva histórica abraçada pela
equipe, procurou-se deixar claro o ponto de vista dos sujeitos afetados.
Desta feita, emergiram as incertezas e o medo enfrentados pelas famílias,
sobretudo daquelas que deveriam deixar suas terras sem olhar para trás
e se reestabelecer em outros locais. Este mesmo olhar foi garantido no
vídeo documentário que, longe de ser uma peça de propaganda, narrou
com a poética das imagens uma história “vista de baixo”.
Dentro desse contexto, as transformações sociais, culturais e econô-
micas também foram partes fundantes do trabalho. O material, fruto da
pesquisa, foi concretizado em conjunto, pois pautado pela relação de res-
peito com os entrevistados e pela coerência entre o que a equipe presen-
ciava e o que era narrado pelos sujeitos. Por esse motivo, o embate com a
empresa chegou ao seu termo quando a equipe se recusou a realizar novas
modificações nos produtos finais. Principalmente aquelas que mudariam
a perspectiva histórica assumida, alterando o sentido da pesquisa e, tam-
bém, do que era esperado pelos moradores das comunidades.
Não obstante, quando do lançamento do livro e do vídeo documen-
tário, a equipe de pesquisadores se deparou com uma situação inusitada,
mas já aguardada: o cancelamento da apresentação pública do resultado
da pesquisa. Os materiais que deveriam ser publicizados nas mais varia-
das plataformas, e entregues aos moradores das regiões afetadas, como
parte das obrigações da empresa, foram simplesmente elididos. Silencia-
dos, como se nunca tivessem existido.
Parte da região foi inundada, as pessoas realocadas e indenizadas,
mesmo que não necessariamente de forma justa. A Usina Hidroelétrica
Serra do Facão entrou em pleno funcionamento em meados de agosto do

176 - Urdiduras da história


ano de 2010, ocultando com as águas tudo o que lhe era divergente. A ideia
de progresso, da qual era laudatória, erguia-se sobre as ruínas como vence-
dora do processo histórico. O sentimento de impotência tomou conta da
equipe da pesquisa. Hoje, dez anos depois, penso que a imagem que mais
consegue expressar aquele momento é a do anjo da História, oferecida por
Walter Benjamin:

Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele [o anjo da história],


vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e
as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se
em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tem-
pestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o
que chamamos progresso.2

Para os pesquisadores, havia duas opções: conformar-se e aceitar a


vitória do “progresso”, ou agir no presente “saturado de agoras” que, afi-
nal, é o tecido constituidor da própria história. Foi feita a segunda opção.
Como a equipe de pesquisadores e a Universidade Federal de Uberlândia
tinham o direito a uma quantidade dos livros impressos, com veículo
próprio e combustível pago pelos coordenadores do projeto, voltamos à
região para entregar o livro e o documentário aos moradores.
Vale dizer que o documentário foi reproduzido um a um, nas depen-
dências do espaço que agora recebe o nome de Laboratório de Pesquisa
em Ensino, Cultura Popular e Vídeo Documentário – DOCPOP –, com
mídias remanescentes do projeto e o restante do material disponibilizado
pelo Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.
Aqueles aos quais adjetivamos de “afetados” são os sujeitos sociais,
em sua larga maioria moradores da região inundada pelas águas do Rio
São Marcos, para a construção da usina hidrelétrica. Sendo ainda válido
ressaltar que os municípios de Catalão/GO, Campo Alegre de Goiás/
GO e Davinópolis/GO, situados na região do Sudeste goiano, são os
locais mais afetados pela usina. Desta forma, deseja-se compreender aqui
a miríade de fios que tangenciam, conectam e desconectam esses sujeitos
no processo de (des)enraizamento de seus modos de vida. E, como nos
2. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.226.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 177


diz Michel de Certeau:

[...] Os relatos de que se compõe essa obra pretendem narrar práticas


comuns. Introduzi-las com as experiências particulares, as frequentações,
as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações
vão abrindo um caminho, significará delimitar um campo. Com isso,
será preciso igualmente uma “maneira de caminhar”, que pertence, aliás,
às “maneiras de fazer” de que aqui se trata. Para ler e escrever a cultura
ordinária, é mister reaprender operações comuns e fazer da análise uma
variante de seu objeto [...]3

Nessa perspectiva, partilho da ideia de que a história é plural e pode


ser interpretada por múltiplos olhares. Dessarte, ao colocarmos em tela as
perspectivas dos moradores e da empresa, dentro de um contexto históri-
co específico, procuramos refletir sobre como se deram as transformações
na vida dos moradores do entorno do São Marcos e como a SEFAC vem
se mantendo presente no cotidiano das cidades afetadas pelo empreendi-
mento hidroelétrico.
Além disso, é importante que se diga que o desenraizamento cultural
nunca é fácil. Conforme destaca Sueli Damergian, o desenraizamento
produz sofrimentos psicológicos na vida das pessoas, na medida em que
elas perdem as referências espaciais, identitárias e afetivas com o lugar.
Este processo é marcado por subjetividades, o que dificulta lidar com
as diferenças. Como o desenraizamento afeta a relação com o lugar, os
sujeitos perdem suas referências, suas vivências naquele espaço-tempo e
depositam nas suas recordações os relembramentos, as subjetividades e
as historicidades desencadeadas pelo processo.4 Torna-se evidente que
o desenraizamento amplifica a importância da memória, de tal sorte que
ela se entrelaça com a história do lugar, refletindo a complexidade das
relações sociais, econômicas, políticas e culturais da região, tecidas ao
longo do tempo.
A memória é construída e tecida a partir das relações dos e entre os
grupos sociais, sobretudo no que se refere à memória institucionalizada,

3. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução Ephraim Ferreira Alves. 3


ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. p.35.
4. DAMERGIAN, Sueli. A construção da subjetividade na metrópole paulistana: desafio da
contemporaneidade. In: TASSARA, E. T. O. (Org.). Panoramas interdisciplinares para
uma psicologia ambiental do urbano. São Paulo: EDUC/Fapesp, 2001. p. 87-119.

178 - Urdiduras da história


oficializada como a do grupo social.5 A forma como ela será lida ou in-
terpretada é o que permitirá ao pesquisador trilhar os muitos caminhos
de recondução da narrativa, que compõem a trajetória dos atores sociais
e suas muitas interpretações sobre a história do grupo. Portanto, existe
uma dinâmica que envolve os diversos sentidos em relação à memória e à
história, que são fundamentais para a compreensão da realidade.
Nesse sentido, memória e história estão longe de se desvincularem.
Todas as tramas tecidas ao longo da construção da história dos homens
não foram efetivadas somente mediante atos ou pensamentos racionais.
Elas estão envoltas nas subjetividades, as quais retroalimentam as inter-
pretações, recompondo imagens, sentimentos e sentidos da história em
suas múltiplas facetas. Firmam-se enquanto prática social, em constante
movimento e transformação.
E, ao propor enveredar pelos meandros da memória, acessada por
meio de depoimentos orais, entendo que as narrativas mnemônicas dos
personagens que viveram e vivem os impactos da UHE Serra do Facão,
nos auxiliam a recompor parte do mosaico das experiências históricas que
impactaram diretamente as suas vidas.
A partir de agora, e com o auxílio de entrevistas dos afetados pelo
empreendimento hidroelétrico, vamos compreender como os discursos
dos moradores apregoavam os prenúncios de um cenário de incertezas
latentes e como, àquela época, teceram estratégias e táticas de sobrevi-
vência, frente ao poder da SEFAC.

Margens do incerto: narrativas, fios e tramas dos afetados pela


UHE Serra do Facão

As lembranças das diferentes gerações que viveram no território inun-


dado pela barragem da SEFAC compõem os fios das narrativas que, te-
cidas no presente experienciado, foram marcadas pela percepção de que a
usina se tornaria uma realidade no seu futuro.
Nas memórias, o distanciamento se apresenta como algo que, talvez,
não pudessem vivenciar, pois pertencia aos outros. Porém, aos poucos e de
forma lenta, já sentiam as transformações se materializando na sua expe-

5. HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São


Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 179


riência sociocultural. Nesse sentido, a lembrança também enuncia as lutas
já travadas, os conflitos e disputas já experimentados para assegurarem o
direito de viver no campo, cultivando os seus modos de vida.
Embora as lembranças demonstrem que os sujeitos tinham clareza de
que seria difícil, quiçá impossível, impedir as transformações representadas
pela usina, inevitavelmente expulsando-os do campo, fato é que lutaram.
Nesse sentido, todo o longo processo que envolveu a construção da usina
hidrelétrica colocou e recolocou os sujeitos em novos espaços de luta na
tentativa de fazer valer seus direitos. É, pois, desta forma, que lemos os
fragmentos de lembranças abaixo, situando-os na relação dialógica entre o
presente vivido e o passado anunciador de um futuro de destruição:

[...] Esse projeto dessa Usina Serra do Facão, ele já existe aí desde uns cin-
quenta anos atrás, que eu nem era nascido. E desde que a gente se entende
por gente ouve falar nesse projeto. Só que, uns seis, oito anos pra cá que
intensificou mais... Começou a aparecer gente fazendo mais levantamen-
to, já visitando o pessoal que ia ser desapropriado. [...]6

[...] Aquela barragem lá tá com quarenta ano que ela foi “falada”. É que
foi falando: “ah, a barragem não sai, a barragem não sai, a barragem não
sai...” Falei: “Não sai?” Foi até que saiu... [...]7

A despeito de a empresa estabelecer uma representação assertiva das


suas intervenções no real, veiculando a ideia do progresso com o em-
preendimento, no campo das experiências concretas dos sujeitos atingi-
dos pela barragem, a SEFAC toma outro contorno, atrelada à desfigura-
ção dos modos de ser e viver em torno do rio São Marcos. A lógica que
se estabelece a partir da experiência comum religa os sujeitos que tiveram
seus modos de vidas deformados e assistiram, primeiro de forma lenta e,
depois avassaladora, o desenraizamento. É perceptível que o constituir e
reconstituir no e sobre o tempo são os fios que operacionalizam a cons-
trução das memórias balizadas pelas lutas. Por essa dimensão, o tempo é
apresentado além da perspectiva cronológica, medido por segundos, mi-
nutos e horas. Na memória que se forma, a temporalidade é dimensiona-
da pela experiência do viver. Nela, se assentam os sonhos, as frustrações,
os desejos, as formas de conjugar e experimentar o cotidiano, os desafios,
6. Entrevista de Alcides da Silva (Produtor Rural - Campo Alegre de Goiás/GO), 2009.
7. Entrevista de Gerardo da Silva (Produtor Rural - Campo Alegre de Goiás/GO), 2009.

180 - Urdiduras da história


conflitos e conquistas. Mesclados na própria narrativa, os tempos do viver
e do narrar são a argamassa das lembranças, permitindo a construção de
outras histórias e outras memórias.
Percebe-se, nas narrativas, não apenas o vasto campo das incertezas,
das inquietações e dos ressentimentos, mas também uma larga seara de
reflexões acerca da complexidade do viver, dos erros e acertos cometidos
frente às escolhas feitas.8 Se esse tempo propiciou expectativas e sonhos
quando da concretização do progresso, dado a ler como empreendimento
para a comunidade da Serra do Facão, ao ganhar corpo e forma, ligou-
-se às experiências do desenraizamento, consumindo as esperanças de
dias melhores e gerando desconforto em relação ao vivido. Destarte, uma
nova realidade se descortinou para os moradores do entorno do rio São
Marcos, em especial com o processo de indenizações e consumação da
obra, trazendo antigas e novas preocupações.
Não obstante, entendo que uma nova realidade se forjou no cotidia-
no dos atores sociais, atingidos pela barragem. Desse modo, suas vozes,
eternizadas em gravações, puderam deixar o registro das inquietações ou
os desejos de prosperidade, no momento em que relembram o passado
deixado para trás. Suas memórias evidenciam as impressões, as discor-
dâncias e os pontos de vista face à barragem Serra do Facão, tanto em
relação às estratégias da empresa em desarticular o movimento dos mora-
dores atingidos quanto em conseguir alcançar o seu intento, de efetivar-
-se como empreendimento hidrelétrico na região.
No ano de 2009, as memórias de Dona Divina Aparecida Corinto,
produtora rural, no entorno de Catalão, registraram:

[...] Desde que eu casei, de vez em quando, eles iam lá, fazia uma pes-
quisa, umas coisas caçando conversa, né? Depois é que eles começaram a
falar mesmo sobre o que... (sobre a construção da UHE Serra do facão).
Eu casei em 61, em julho de 61. [...]9

Como se percebe na narrativa, ao contrário do que muitos pensam, as


barragens não surgem da noite para o dia. Conforme apontaram as me-
8. Sobre a questão, veja: ARAÚJO, Kalliandra de Morais Santos Araújo; MACHADO,
Maria Clara Tomaz. Prelúdio: travessias e (in) certezas às margens do rio São Marcos. In:
ABDALA, M. C.; KATRIB, C. M. I.; MACHADO, M. C. T. (Org.). São Marcos do
Sertão Goiano: cidades, memórias e cultura. Uberlândia: EDUFU, 2010.
9. Entrevista com Divina Aparecida Corinto (produtora rural), Catalão/GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 181


mórias de Dona Divina, e de tantos outros atingidos pela barragem, foram
anos de preparação e estudos de viabilidade, para que o local pudesse rece-
bê-la com maior proveito da sua geografia.
Os estudos e preparações que, no caso da Serra do Facão, duraram
entre 40 e 50 anos (se levarmos em consideração a pluralidade de memórias
dos moradores locais ao serem questionados quando ouviram falar pela pri-
meira vez em relação à construção da barragem), destoam completamente
da maioria dos casos de soerguimento de hidrelétricas no país.
Devemos reforçar que essa região é rica em minérios e, no vale onde
hoje se encontra a barragem, não seria diferente. Não por acaso, alguns dos
afetados diretos da SEFAC nos disseram que o atraso no início das obras
se deveu, principalmente, à disputa pelo direito de utilização do local. De
um lado, havia aqueles que representavam os interesses da instalação de
uma usina hidrelétrica; e, de outro, aqueles que defendiam a extração mi-
neral disponível na região. Seguindo essa lógica, é possível compreender o
porquê de tantos anos se passarem, entre os primeiros indícios de constru-
ção do empreendimento hidrelétrico, por volta dos anos de 1950/60, até
sua efetivação, nos anos 2000.
O Sr. Amado Francisco Ramos foi um dos atingidos que mencionou
esse dado. Ele afirmou que alguns professores da Universidade de Brasí-
lia lhe confidenciaram que o projeto de construção da barragem já estaria
aprovado; o que significava que não teria mais volta, embora o atraso no
início das obras se desse em função da disputa entre dois órgãos governa-
mentais, sobre o direito de uso das terras. Segundo ele:

[...] é um desequilíbrio (a construção da barragem), eu acho que é um


desequilíbrio na natureza. Porque se fosse só uma barragem aqui, só uma
barragem lá pro Nordeste, tudo bem, mas só que nesta região nossa que
são projetada aqui, certo, já tem essa embaixo que ela vem até aqui, atinge
até aqui pra nóis, aqui no fundo, aí, daqui, oito quilômetros daqui. Agora
vem essa do São Marcos, agora vem um nesse riozinho São Bento, que
tá projetada, tem outra aqui no Paranaíba que tá projetada, tem uma aqui
numa tal Serra da Bucânia ali em cima, também. Essa (UHE Serra do
Facão) tem muitos, tem mais de... tem uns quarenta anos ou cinquenta
anos que ela já foi pesquisada, até hoje ela não saiu, e ela foi aprovada, até
hoje não saiu. Mas através de muito minério que tem lá nessa serra lá e
todas duas forças federal. Quem falou isso pra mim foi dois professores da
universidade brasileira, lá de Brasília, que falou pra mim, sentado numa

182 - Urdiduras da história


grama, lá na serra, na beira do rio, lá. Falou isso pra mim. Cê sabe essa que
represa que tem tá pesquisada e aprovada? Eu falei: sei. E o senhor sabe
por que ela não sai? Eu falei: não, não sei não. Tem muitos anos que ela
tá aprovada eu sei. E qual o motivo que ela não sai? Ele falou: porque que
tem duas forças federal aqui. Tem essa serra aí, tem o minério mais caro,
não é do Brasil, é do mundo e, tem é rochas dela debaixo dessa serra. E se
tirar o minério, não faz a represa porque acaba com a serra e se fazer a re-
presa não tira o minério porque aí não vai destruir a represa mais. Foi dois
professor da universidade brasileira que me falou lá, certo? Nóis era três
companheiros e eles falando isso pra nóis. Agora turma de informantes lá,
moça, muitas senhoras, juventude, rapaziada, sabe, que tava andando lá.
Estavam num ônibus coletivo cheinho de gente e cinco carro a bordo de
pequeno. Isso tem a base de uns quinze anos que eles falou isso pra mim
lá. Então é igual nóis tamo dizendo, isso aí traz muito benefício, mas traz
muito prejuízo também [...]10

Em sua narrativa, o Sr. Amado deixa claro seu descontentamento com


o modelo de geração de energia, fazendo uma crítica à quantidade de bar-
ragens já existentes na região e, ainda, a outros projetos que estavam em
implementação e/ou estudos, naquele momento. É a isso que o entrevista-
do denomina de desequilíbrio.
A opinião do Sr. Amado era compartilhada pela maioria dos afetados
entrevistados à época, como é o caso de Manoel Ferreira da Silva. Este
questionou a ideia de progresso, a que chamou de “evolução”, vendida na
região para legitimar a instalação do empreendimento no local, reforçando
o descontentamento em vender as terras onde sempre viveu e nas quais
mantinha vínculos indenitários. Manoel deixa claro que a saída da terra foi
a contragosto, apesar de destacar que ouvira falar, pela primeira vez, que a
barragem seria construída há mais de quarenta e cinco anos.

[...] Ah, ocê sabe! Que eu não tenho o menor sentido nesse trem. Parece
que tudo é evolução, mas que é bom pra quem? Igual, eu nasci, criei, vivi
lá, perdi tempo sem dever um centavo pra ninguém, não é bom né? Essa
coisa que fui nascido e criado lá, daí sair vendê pro outros, é evolução não.
[...] Eu já era casado quando eles começou a falar nessa barragem. Não
tem menos de quarenta e cinco anos, que eles tava falando em fazer essa
barragem [...]11

10. Entrevista com Amado Francisco Ramos (produtor rural), Davinópolis/GO, 2009.
11. Entrevista com Manoel Ferreira da Silva (produtor rural), Catalão/GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 183


Em relação aos demais moradores da região do Rio São Marcos, quan-
do souberam que a usina seria de fato instalada nos limites dos municípios
de Catalão e Davinópolis, no estado de Goiás, podemos afirmar que eles
se dividiram entre contrários, a favor e indecisos. Esses últimos, foram
aqueles que não opinaram, preferindo aguardar o desenrolar da situação.
Para alguns, por exemplo, não haveria muitas mudanças em suas vidas
e na região, como é o caso do Sr. Aguinaldo Antônio Bento. Segundo ele,
o impacto da barragem em si, seria pouco, o que não acarretaria grande
impacto para os moradores e para a região em que a UHE seria construída.

[...] Eu acredito que não, aqui no nosso município eu acredito que não,
porque a barragem ela vai afetar, o lago da barragem vai afetar muito
pouco, vai inundar muito pouco no, no nosso município, né? Eu acredito
que não, na minha opinião eu acho que não. [...] A não ser que, que esses
novos nordestinos que veio pra cá, futuramente pode interferir alguma
coisa, mas, que você sabe, né? Vai entrando novos povos, né? Vai mudan-
do muita coisa, mas isso pode ser [...]12

Em contrapartida, o Sr. Aguinaldo aparenta preocupação em relação


à chegada de pessoas vindas de outras regiões, em especial, os nordestinos
que se instalariam na região em decorrência da construção da barragem.
De acordo com seu raciocínio, as relações do lugar e a dinâmica da cida-
de/região poderiam sofrer transformações, mas com um direcionamento
de responsabilidade àqueles que se deslocariam para a região em busca
de trabalho na construção da UHE. De certa forma, sua fala isenta o
empreendimento hidrelétrico e negligencia os impactos diretos ligados à
desapropriação e às questões socioambientais que já se apresentavam no
mesmo período.
Outros se apoiavam na ideia de que a chegada da usina Serra do
Facão passaria a dinamizar a economia local. Segundo Altair de Jesus Pe-
reira, por exemplo, apesar da empresa ter “pegado” suas terras, ela pagou
por elas. Esse dinheiro, pago por meio das indenizações, seria utilizado e
distribuído através da compra de novas e outras terras, de casas no centro
urbano e, ainda, no comércio varejista geral, o que viria a dinamizar a
economia, movimentando a cidade. Para Altair, outro ponto positivo a

12. Entrevista com Aguinaldo Antônio Bento (produtor rural), Davinópolis/GO, 2009.

184 - Urdiduras da história


ser visto nesse processo era o fato de que as cidades passariam a receber
royalties da hidrelétrica. O que, de certa forma, justificaria os impactos
gerados pela construção da barragem. Afinal, segundo a ótica do entre-
vistado, o pagamento dos royalties, somados às indenizações utilizadas
no comércio local, eram pontos positivos para as cidades, para a região
e para a comunidade e mais relevantes do que os impactos considerados
negativos, reivindicados por aqueles que eram contrários à instalação da
UHE Serra do Facão. Segundo Altair:

[...] Não, isso acontece se você pegou minha terra cê vai pagar por ela,
agora se cê vai pagar bem o mal, eu num sei, mais cê vai pagar por ela. E o
que... [...] É, pra mim é irreversível. Tem que acontecer. Agora tem uma
coisa, eu vejo o movimentando que tá movimentando essa cidade hoje
é esses carinha que tá recebendo o dinherinho deles lá, alguns tá sendo
esperto e comprando terra, outros tá gastando no comércio da cidade. De
um jeito ou de outro tá movimentando dinheiro. [...] Certo, mais o ro-
yalties é lei, porque do momento que Campo Alegre recebia é ... cem mil
reais de imposto, de tudo que era prantado no município que foi aterrado,
então esse imposto tem que vim pra Campo Alegre em ... coisa em royal-
ties. Então, se hoje Campo Alegre recebe por ano ... por meis quinhentos
mil ... do governo pra podê ter ... a despesa, pra pagar a despesa do meis,
vai somar ... vamo ... que seja lá ... vamo por uma quantidade qualquer,
que isso é uma coisa que eles que tem que calcular lá, é cem mil é royal-
ties. Então, Campo Alegre, a prefeitura de Campo Alegre vai começar
a receber seiscentos mil todo meis, porque isso é lei e quem fez isso ...
foi a única lei que o Ronan Tito fez, porque ele pode ter ganhado muito
dinheiro, roubado muito dinheiro durante a vida dele toda política. Mais
foi a leizinha que ele fez que tá melhorando o mundo... o Brasil inteiro...
que é o royalties [...]13

Em meio às discussões de prós e contras à chegada da usina hidrelétri-


ca, constituiu-se um movimento no qual os sujeitos favoráveis à construção
da usina foram rapidamente aceitando a transformação da região. Logo
concluíram acordos para o recebimento das indenizações e se mudaram.
Ao mesmo tempo, os que não opinavam observavam a dinâmica do pro-
cesso, aguardando o melhor momento para tomar sua decisão.
Não obstante, para alguns dos moradores afetados, tanto aqueles que
13. Entrevista com Altair de Jesus Pereira (produtor rural), Campo Alegre de Goiás/GO,
2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 185


estavam a favor da construção do paredão de concreto armado, quanto
aqueles que pesavam pontos mais positivos do que negativos, estariam sen-
do imediatistas. Não estariam levando em conta as consequências futuras
para a comunidade e para a região. Era este o pensamento do produtor
rural Joel José Pires:

[...] Agora, é o negócio que eu falo pra você, sabe. Se a barragem, agora
tem muitos que fica satisfeito sabe, tem muitos aí se você conversa nossa,
mas o cara ele num sabe o que, você... Tá me entendendo? Eu acho que
ele não sabe as consequências que ele vai ter. No momento pra ele tá bom,
mais daqui uns dias se ele bagunçar [...]14

Os contrários se organizaram, realizaram passeatas, grupos de debates


e articulação política, amparados pelos movimentos nacionais de atingidos
por barragens. Invadiram espaços públicos, entre tantas outras ações, na
tentativa de impedir a efetivação da construção da usina. E, é válido res-
saltar, que esses eram a maioria. Quando as primeiras máquinas chegaram
à região, os moradores contrários ao processo de instalação se uniram às
instituições de ensino, movimentos contra barragem nacionais e regionais,
além de representatividades religiosas como a Pastoral da Terra, ligada à
Igreja Católica.
Em sua entrevista, Amarildo Almeida da Silva reforça essa articulação
entre os moradores, afetados ou não, que se juntaram em uma tentativa de
barrar o início das obras. Segundo Amarildo, a união dessas pessoas e insti-
tuições, somada às suas ações naquele momento, foram determinantes para
barrar a obra, inclusive levando as empresas responsáveis pela construção
da barragem a retiraram as máquinas da região por volta do ano de 2004.
Essa teria sido uma grande vitória para os afetados diretos pela barragem, e
para aqueles que os apoiavam. No entanto, dois anos depois dessa conquis-
ta, de maneira sorrateira e silenciosa, as obras foram retomadas. Ainda de
acordo com Amarildo, isso aconteceu sem ao menos procurar-se notificar
e/ou explicar aos afetados as razões do retorno às atividades.

[...] Olha! Foi em 2002 que começou, né? O pessoal fazendo um tra-
balho de estudo, de bacia lá naquela região. Mais assim, no momento
a gente não acreditava que viesse a acontecê a barragem, né? Mais aí,
quando foi em 2003, aí viero pra construí mesmo, mais aí gente tinha
14. Entrevista com Joel José Pires (produtor rural), Catalão/GO, 2009.

186 - Urdiduras da história


um, tivemo uma resistência forte naquela época, não sei, juntamente
com a universidade aqui, a UFG, e a diocese de Ipameri, a APEGO, que
é a Associação dos Pescadores do Estado de Goiás, a gente conseguiu
mover uma ação que conseguiu a suspender a licença por algum tempo.
Aí pararo, foram imbora, incrusive as máquinas da Camargo Correia
já estava lá no local da construção, fôro tudo embora. Aí ficou por dois
anos, aí a gente começou a investir novamente na propriedade, esquecer
que aquilo um dia podia vim, mas sempre algo, a barragem vai vim, vai
acontecê. Aí passado dois anos, quando foi dia 19 de dezembro de 2006,
eu recebi a notícia que, até a repórter da rádio Cultura me ligou lá na
fazenda, eu tava na fazenda, me perguntando se eu sabia do que tava
acontecendo, que a empresa tava vindo pra construção da barragem, que
ia tê uma reunião com os políticos de Catalão e os empresários de Ca-
talão. Naquele dia tava indo acontecê essa reunião. Aí no momento eu
não sabia de nada. A partir dali a gente entrou em desespero novamente,
que aquilo tudo ia acontecê de novo e a gente não queria, né? E aí quan-
do foi dia 15 de... aí começaro o trabalho novamente, da Sefac naquela
região e a gente tentou ainda fazê uma resistência mas, foi em abril, foi
em março, dia 25 de março, me parece não lembro, que a gente teve
uma reunião com todos os atingido, uma grande parte dos atingido e aí
a gente definiu que fosse pra empresa, no escritório da empresa buscá
uma explicação. E se eles não quisesse a gente ia ocupá o escritório. Isso
aí dói. E aí descemo lá, chegou lá, topou o escritório fechado. Primeiro
a gente tinha convidado eles pra participá da reunião, convidado a Sefac
pra participá da reunião, pra eles dá uma explicação porque que eles tava
iniciando toda aquela, o trabalho novamente e não tava procurando os
produtores, os atingido pra negociação, uma coisa assim [...]15

Muitos dos afetados chegaram a festejar a interrupção das obras. No


entanto, como dito por Amarildo e reforçado por Améria de Aparecida
Cardoso, uma das afetadas do município de Catalão/GO, a retomada das
atividades por parte da empresa responsável pela construção da barragem,
teria sido bem mais agressiva. Segundo Améria:

[...] Uns até comemorou, teve até uma festa ali no centro, uma janta co-
memorando a vitória, como tinha parado a barragem e não ia ter mais,
mas eu acho que deu só uma pausinha ali pra dar uma refrescada, né? A
hora que ele veio, ele veio rebentando [...]16

15. Entrevista com Amarildo Almeida Silva (produtor rural), Catalão/GO, 2009.
16. Entrevista com Améria de Aparecida Cardoso (produtora rural), Catalão/GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 187


A única divergência entre Amarildo e Améria é com relação ao motivo
de as obras terem sido paralisadas por dois anos. Para Amarildo, como já
vimos, esse processo foi caracterizado pela articulação e união entre afe-
tados e instituições contrárias ao empreendimento hidrelétrico. Já para
Améria, a paralisação ocorreu apenas pelo fato de a documentação da em-
presa não estar correta, permitindo uma ação movida por “Zé Augusto”.
Em seus relatos:

[...] Acho que a pausa dele um pouco que o documento deles que tava
meio errado, que eles pôs que a terra era meio improdutiva, era tanta coisa
errada, tanta mentira que eles pôs, aí entrou o movimento, tem advogado,
tem essas coisas, derrubou, né? Aí pegou, pegou a produção inteira da
terra. Aí já passou no nariz dele lá, não era do jeito que ele tava falando
não. Aí já tem que mudar, muita coisa ali tava errada e outra coisa tam-
bém o homem do canteiro lá, Zé Augusto tava com ele na justiça, ele não
podia, tinha obedecer um pouco as leis, por isso eu acho que atrasou um
pouco. Quando ele [empreendimento] não resolveu com Zé Augusto ele
não pode tocar pra frente. Eu acho que eles começou passar em riba de
Zé Augusto, Zé Augusto muito velhaco caçou eles na justiça, acho que
no fim ganhou deles, e teve que pagar o preço [...] O Zé Augusto acho
que tem filho advogado, né? Ele é bem vivido, como diz o outro. Ele é
velhaco, ele tem dinheiro e ele é sabido. Ele tem dinheiro e eu vi falar que
ele tem um filho advogado e forte, uma pessoa que tem dinheiro e tem
poder, é sabido e velhaco, sabe as manhas tudo. Acho que eles queriam
pagar ele baratinho, que pagar as terras dele barato e já foi entrando [...]17

Mas, independentemente de qual versão esteja correta, fato é que o


início das obras atrasou por aproximadamente dois anos. Após o retorno
das máquinas para a região e com a retomada da construção, os afetados
voltaram a se organizar, na tentativa de barrar de vez a construção da
UHE Serra do Facão.
Dona Lourdes de Neiva Mesquita e seu marido, Silvio Neiva Mes-
quita, foram dos primeiros a ingressarem no “Movimento dos Atingidos
por Barragens” 18 e a realizarem viagens constantes à capital do país, com
17. Ibidem.
18. O Movimento dos Atingidos por Barragens nasce no Brasil nos anos de 1980. Seu prin-
cipal objetivo é enfrentar ameaças e agressões sofridas durante a implementação de projetos
de hidrelétricas em todo território nacional. Para além disso, mantêm projetos mesmo pós

188 - Urdiduras da história


o objetivo de convencer os representantes do governo a interromperem
o processo de instalação da UHE. Ela destaca o desgaste sofrido pelos
afetados nesse período, além de reforçar o sofrimento face ao desenrai-
zamento daqueles que viriam a perder suas terras, em especial, dos mais
velhos. Segundo Lourdes:

[...] Eu mais meu marido foi uns dos primeiros a lutar contra a barra-
gem, assim lutar no movimento do MAB [Movimento dos Atingidos por
Barragens], junto com UFG [Universidade Federal de Goiás] e a CPT
[Comissão Pastoral da Terra] e o bispo Dom Guilherme. Nós lutamos o
quanto pode, até enquanto pode, e até em Brasília fomos, falamos com
Ministro... teve que ficar contra, que não queríamos a barragem, a gente
sabia que só ia trazer prejuízo, desestrutura a gente tudo. Eu não vejo
vantagem, na barragem, pois não precisa de energia como diz o Lula, um
dia falou: “o carro chefe do progresso é a energia”. Precisa, só que desse
jeito eu não queria inundar as terras, tantos proprietários, tantas pessoas
velhinhas, lá agora tem conhecido Sr. Carlito mais Dona Aparecida, que
eu conheço, que eu sei vai sofrer demais com o negócio da barragem,
tantas famílias que não ia mudar nunca, daquele lugar. Nós ainda vamos
ficar porque eu não sei se vai dar pra viver, espero dar, porque o dinheiro
que nós vendemos, compramos terra lá em Catalão, mas se Deus abençoar
que o aluguel dê pra gente manter os filhos, estudo, mas a vantagem da
barragem pra nós é nada, só coisa ruim mesmo [...]19

Como vários outros, Lourdes também deixou claro seu desconten-


tamento com a chegada da barragem na região. Ponderou que não olha-
va o empreendimento sob perspectiva positiva de progresso, afirmada por
muitos políticos, empresários da região e daqueles que representavam di-
retamente a Serra do Facão Energia S.A. Considerou que nenhuma das
mudanças que estariam por vir seriam benéficas para a região e para os
afetados. Todavia, depositava esperança de que o aluguel gerado pela casa
adquirida no centro urbano de Catalão/GO, por meio do valor recebido
instalação dos empreendimentos, de forma a dar suporte àqueles que tenham sido atingidos
durante o processo de construção das barragens. Um exemplo é o ocorrido em Catalão/
GO, onde o MAB apoia o projeto de produção de alimentos saudáveis com os moradores
da região de Mata Preta, região afetada pela Serra do Facão Energia S.A., no ano de 2013.
Para saber mais, acessar: https://mab.org.br/2013/06/10/atingidos-por-barragens-goi-s-ini-
ciam-constru-dos-pais/
19. Entrevista de Lourdes de Neiva Mesquita (produtora rural), Fazenda Pires, Catalão/
GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 189


pela indenização, auxiliasse a família a manter os estudos dos filhos.
O senhor Silvio Neiva Mesquita, produtor rural do município de Ca-
talão/GO, esposo de Lourdes, expressou bem o movimento antibarragem.
Ele apresenta um breve resumo do processo de idas e vindas, de embates,
de parcerias e tantas outras ações:

[...] Antes dela [da barragem] chegar, [...] a gente sabia que ela tinha sido
solicitada [autorizada a construção pelo governo federal] [...] Quando saiu
isso eles já vieram, bateram de frente, aí o pessoal da UFG [Universida-
de Federal de Goiás, Campus Catalão], uns professores nos ajudaram a
buscar ajuda com o governo [...] Eu fui pra Goiânia muitas vezes, para
Brasília [...] Falei até com Marina Silva [Ministra do Meio Ambiente à
época]. Eu falei com ela pessoalmente.
Ela recebeu vocês lá?
Recebeu, custou mais nos recebeu. Nós ficamos o dia inteiro em pé, es-
perando. Aquilo foi um empurra prum lado, fecha um pouquinho lá e dá
uma água! [...]20

A senhora Lourdes amplia o nosso horizonte interpretativo, já que


em sua narrativa destaca como os sujeitos se valeram das “trampolinagens”
para lidar com o poder público local, para se fazerem ouvidos:

[...] De início, a gente tinha só o sindicato [rural] do nosso lado, mas


que não fazia muita coisa ou quase nada por nós. Tinha mais o MAB
[Movimento dos Atingidos por Barragens]. Nós, inclusive, uma vez in-
vadimos [o escritório da barragem]. Os atingidos todos e tinha muita
gente. Aí depois que a barragem passou a negociar mais aberto, ela com-
prou um pouco das terras. Eles [SEFAC] não dava informação nenhuma,
né? Inclusive o dia que um dos chefes [da SEFAC] veio pra ir [visitar a
região e a cidade de Catalão], nós invadimos lá [sede da SEFAC], foi
aí eles abriram pra gente conversar. Os padres entraram na nossa briga.
O Dom Guilherme Antônio Werlang conseguiu negociar [representante
de articulação comunidade/empresa] e montou um grupo para conversar
com a SEFAC. E tinha um representante para cada comunidade, o Silvio
até entrou na época. Mas, mesmo assim, nós invadimos lá, era para ser
uma bagunça, mais graças a Deus foi mais ou menos. Mais depois disso a
barragem fez acabar o MAB que era o movimento, né? Eles dispersaram
e esse é um intuito deles passar a negociar aqui; acabou os grupos, tanto é
20. Entrevista de Silvio Neiva Mesquita (Produtor Rural - Fazenda Pires - Catalão/GO
2020).

190 - Urdiduras da história


que hoje em dia o nosso grupo do MAB acabou. [...]21

O Sr. Sílvio e Dona Lourdes nos lembram de algumas das ações dos
grupos organizados, da presença do MAB (Movimento dos Atingidos por
Barragem) e dos sindicatos que se formaram.22 Destacaram, ainda, a pre-
sença de setores da Igreja Católica nesse processo. No caso de Catalão, o
MAB e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Igreja Católica foram bas-
tante atuantes na luta contra a instalação da barragem, do início dos anos
2000 até por volta de 2007. No entanto, o mais importante nas falas acima
citadas é a forma com que os sujeitos se organizaram coletivamente, agre-
gando moradores e movimentos sociais. Contudo, a empresa conseguiu
desarticular e enfraquecer a articulação por meio das indenizações, inclusi-
ve contemplando parte dos moradores rurais que articulavam a resistência.
A fala de uma das gestoras da SEFAC demonstra muito bem o olhar
da empresa para os movimentos sociais contrários ao funcionamento da
usina, assim como as estratégias de desarticulação utilizadas. Dentre es-
sas, destaca-se a contratação empregatícia dos filhos dos atingidos, que
pertenciam ao movimento reivindicatório e o atendimento a diversas so-
licitações de melhorias, por parte dos moradores. Vejamos como ela narra
esse processo, conforme memória de uma das reuniões com os membros do
“Programa de preservação do patrimônio histórico-cultural: caminhos da
Memória, caminhos de muitas histórias” e a gestão da empresa, em 2009:

[...] Porque no Sul [do Brasil], o MAB é extremamente forte, mas lá,
como todo movimento, ele ocupa os espaços da insegurança daqueles que
estão ali, do desconhecimento [...] Aqui, a gente criou duas equipes para
que houvesse um canal de interlocução com eles [...] e serviu de referência
por um longo tempo, o que não impediu que ocorressem algumas mani-
festações, descontentamentos, renegociações, solicitações e pedidos para
construção de equipamentos sociais. É fundamental estabelecer relações
de confiança, de transparência, tanto que a gente contratou 4 filhos de
proprietários atingidos. Foram escolhidos porque conhecem a região e
porque a gente os considerou também competentes para fazer análises
21. Entrevista de Lourdes de Neiva Mesquita (Produtora Rural - Fazenda Pires - Catalão/
GO) 2009.
22. Dentre esses grupos, podemos destacar grupos de professores e de estudantes da Univer-
sidade Federal de Goiás, campus Catalão, que se solidarizaram com o movimento e também
foram atuantes na luta contra a construção da barragem, a exemplo de alguns Núcleos de
estudos e pesquisas que compõem os atuais Institutos de Geografia e História.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 191


[de levantamento dos bens rurais] mais justas. Tanto é que escolhemos
algumas comunidades para reuniões com os afetados para explicar o Pro-
jeto, ouvir as dúvidas e nessas situações recebemos solicitações, tais como:
telefones e internet para zona rural, construção de centros de convivência,
campo de futebol, ambulância, ponte, entre outros. [...]23

As táticas da empresa para evitar resistências e problemas no decorrer


das obras se iniciaram antes mesmo da construção do paredão de concreto
armado.24 Segundo a senhora Fátima Conforte, o empreendimento teria
enviado funcionários com metodologia de abordagem diferenciada, para
conversar com os moradores. Como a ampla maioria era composta por
pessoas mais simples, elas os recebiam em suas casas, alguns, inclusive,
como se fossem parte da família. Para Fátima, o objetivo da empresa era
o de mapear as maiores necessidades de cada propriedade e afetado, para
que, no processo de construção da barragem e de negociação das indeniza-
ções, essas informações pudessem ser utilizadas.

[...] Antes de chegar a obra da barragem de verdade, eles mandavam um


pessoal novinho, que vinha cheio de carinho com a gente, que não sei se
porque a gente é muito simples, a gente acolhia e entregava tudo. Teve
uns até que vinha e dormia nas casas dos moradores. Mas o que a maioria
não percebia e ainda não percebe é que essas pessoas vinham aqui só pra
trabalhar pra usina, não tinha carinho com a gente, como eles faziam a
gente acreditar. Eles vinham, diziam que estavam do nosso lado, que iam
ajudar a gente negociar se a usina vinha ou não, mas o que eles queriam,
bem na verdade, era entregar a ovelha pro lobo! Eles queriam era dar pra
usina nossos nomes, o que a gente queria e o que a gente ia ficar satisfeito.
Eu sei disso porque eu tinha falado que eu queria era poço artesiano na
minha terra, ai a usina veio e disse que ia me comprar uma parte da minha
terra e que em troca ia me pagar e fazer o poço artesiano. Eles olhavam em
papel, um monte de relatórios e iam dizendo o que cada um queria ouvir,

23. Memória da reunião do projeto de Preservação Histórico Cultural. Depoimento. Catalão,


25 mar. 2009.
24. Faz-se necessária a observação de que empreendimentos hidrelétricos costumam utilizar
essas táticas durante o processo de negociações, de desapropriação e indenizações, não se
constituindo em procedimento exclusivo do caso em questão. A esse respeito ver: ARAÚJO,
Kalliandra de Morais Santos. “O Sertão virou mar”: a Usina Hidrelétrica Serra do Facão e
as desapropriações do entorno do rio São Marcos. (2000-2010). Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em História) - Instituto de História da Universidade Federal de Uberlân-
dia. Uberlândia, 2010.

192 - Urdiduras da história


assim ficava facim facim pra eles! E a gente ainda achava que estava sendo
ouvido, que eles queriam era ajudar a gente. As coisas começaram a ficar
mais na cara quando foi a época de pagar as indenizações. Ninguém, que
eu saiba, conseguiu receber o tanto que deveria, que tinha sido dito que a
gente ia receber. [...]25

O ponto de vista de Fátima foi reforçado por Alcides José da Silva,


também atingido na área de influência da barragem. Alcides considerou
que a tática de aproximação, utilizada pela empresa, conseguiu inibir uma
mobilização mais forte, posto que os funcionários da empresa teriam cons-
truído um certo vínculo de amizade com os moradores locais. Ao menos
era esse o sentimento dos afetados, segundo Alcides. Em sua fala, ele afir-
mou que a maioria percebeu o movimento trilhado pelo empreendimento,
quando já era tarde demais.

[...] No início começou aparecer historiadores né [empregados da Serra


do Facão S.A.], falar da região e como o pessoal da zona rural toda, é pes-
soal humilde, muito hospitaleiro, muito que acreditava em tudo, né? Que
achava até interessante, que o pessoal chegava já chamando por nome,
aquela amizade toda, né? Bacana chegava e isso inibia até que formasse
uma associação forte, né? Que pudesse alguém liderar toda essa negocia-
ção com o SEFAC, isso foi tudo jogado por terra diante desse pessoal
que apareceu, né? Com promessa disso, daquilo e o pessoal foi deixando
levar. Quando eles sentiram o drama da perda e do incômodo que eles tão
passando, já era tarde. Porque hoje, se eles chegam lá no SEFAC, o pes-
soal que já negociou, eles não são mais bem recebidos quanto antes, né?
E assim todos reclamam a mesma coisa, não é a coisa que eu tô tirando
de mim não [...]26

Com o processo já em andamento, por meio da Pastoral da Terra, a


Igreja Católica teve um papel fundamental de apoio aos moradores do en-
torno do rio São Marcos. Dom Guilherme, o Bispo de Ipameri/GO à épo-
ca, e membro da Pastoral, como um dos articuladores entre comunidade e
empresa relatou ao Projeto, em 2009, seu papel e sua visão sobre o processo
de efetivação da UHE Serra do Facão e das parcerias estabelecidas. Ele
também evidenciou seu descontentamento com o processo, mostrando-se
25. Entrevista de Fátima Conforte (proprietária de um hotel e produtora rural) Campo
Alegre de Goiás/GO) 2009.
26. Entrevista de Alcides José da Silva (produtor rural) Campo Alegre de Goiás/GO) 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 193


consciente de que a luta não seria fácil e que, para além das vidas, o capital
e o lucro são geradores de certezas e de incertezas.

[...] um pastor, ao ver seu rebanho ser atacado, ele não pode ficar cego,
surdo e mudo. Ele tem que ir em defesa desse rebanho. Defender esse re-
banho significa, em primeiro lugar: a justiça com essas famílias. [...] aí eu
fui à CPT (Comissão Pastoral da Terra) em Goiânia; eu fui ao Ministério
Público de Goiânia. Na esfera Federal, na Estadual. Eu conversei com
um delegado do Meio Ambiente […] Todos prometeram tomar provi-
dências, mas nada acontece. Isso nós sabemos, o povo promete: “vamos
atender vocês”, mas não acontece. A empresa vai fazer de qualquer jeito,
porque quem manda é o capital, não é a pessoa humana! O lucro é o cen-
tro do mundo moderno. Tudo gira em torno do lucro. Se daí você precisar
privatizar o ar, você vai privatizar o ar! Você ia rir há trinta anos atrás se
você ouvisse que iam privatizar as águas? Esse rio São Marcos está pri-
vatizado pela concessão, porque o Governo Federal, que é o dono do rio,
concede por trinta, trinta e cinco anos, um direito de uso e de exploração.
Ora, eu sabia que o rio era dos animais e das pessoas. Agora não, ele é de
quem tem o direito de uso dele [...]27

Em uma de suas falas, Dom Guilherme também destacou a tática da


empresa em procurá-lo, no início do processo de instalação da barragem,
pelo fato de seu nome ter sido muito mencionado pelos moradores afetados
da região. Subentende-se que a empresa o viu como um nome de influência
na comunidade, de tal sorte que ele poderia intermediar uma aproximação
amistosa, auxiliando a empresa a amenizar os embates com os atingidos.

[...] como é que começou a história? Eu não sei se foi no ano, dois mil e
um, eu imagino que tenha sido o ano dois mil. O padre Orcalino estava
aqui, ainda em Ipameri, depois eu transferi ele pra Catalão. Num domin-
go de manhã apareceu duas pessoas, um homem e uma mulher, o senhor
era de Brasília e ela, num sei se era de Brasília, mas ela era natural de São
Paulo, seria uma assistente social do grupo do SEFAC. Vieram me pro-
curar aqui depois da missa da catedral para falar comigo. Aí, eu as atendi,
eles se apresentaram. Ia ser construído uma barragem no Rio São Marcos
e tudo mais e que nas primeiras... é nos primeiros contatos meu nome
foi muito citado e que eles queriam falar comigo enquanto igreja sobre
isso aí. Eu deixei muito claro a minha posição que: em princípio eu sou
27. Entrevista de Dom Guilherme (Bispo da Igreja Católica e responsável pela maioria das
cidades afetadas pela SEFAC) Ipameri, 2009.

194 - Urdiduras da história


contra a construção de barragens, especialmente quando nós temos quatro
modelos únicos de geração de energia elétrica, é baseado num modelo da
hidroprodução, quando nós temos outras possibilidades da energia eóli-
cas, energia solar, enfim nós temos muitas outras possibilidades de pro-
dução, mas preferem um único modelo e não se investem suficientemente
em tecnologia para aperfeiçoar outros modelos. Então, em princípio, eu
sou contra por algumas razões. Razões sociais, é ainda tem que aparecer
uma primeira usina hidrelétrica que tenha havido justiça social, porque a
empresa ela vem a você e diz assim: -“eu preciso da sua terra” e ela que
estabelece o preço. Ela diz que faz uma pesquisa de mercado, só que em
todas as partes do Brasil que eu conheço, onde tenha sido construído
hidrelétricas, as pessoas que livremente negociam terra, a terra tem um
valor e eles com os seus técnicos sempre a favor da empresa apresentam
outros valores sumamente inferiores, esse é um primeiro dado. Segundo,
ainda tem que provar uma usina hidrelétrica, estou falando do ano dois
mil, quando eles chegaram, eu falava pra eles: “ainda tem que me mostrar
uma primeira usina que no dia que foi fechada a barragem todas as famí-
lias foram devidamente indenizadas ou reassentadas ou alguma... enfim,
as demandas atendidas e eu não conheço nenhuma no Brasil. Quando nós
falamos com as empresas construtoras, todas elas mostram que tudo foi
atendido. Quando nós os atingidos, nós vemos que alguém está mentindo
na história, alguém está faltando com a verdade, se não estiver mentindo,
esconde verdades. Porque as verdades são diferentes, de repente para as
empresas vai indenizar quem tem a terra. Mas vamos imaginar eu sou
eu que tenho terra, minha terra vai ser atingida, eu tenho três, quatro...
quatro empregados famílias que moram, trabalham comigo. Eu sendo
indenizado e o emprego dessas famílias? Onde que essas famílias vão?
Então isso não é indenizado, algumas mais, outras menos, outras igno-
ram. Então quem são de fato os atingidos? Temos os atingidos diretos e
os atingidos indiretos, mas todas dependem daquela terra. Então existem
muitas injustiças sociais. É nesse sentido que eu colocava pra eles isso.
Então na questão social tem esse dado. Em segundo lugar nós podemos
pegar a Serra do Facão, mas podemos pegar qualquer lugar, onde cem,
duzentos anos, as vezes mais de trezentos anos aquelas famílias vivem às
margens daqueles rios. São pequenos proprietários na sua maioria, onde
várias gerações, então a terra... além da terra tem um valor sentimental e
esse valor não tem preço e ele não é valorizado no preço. Outra questão, o
compadrio. Fulano é compadre de fulano de tal, então a relação humana,
isso vai na... na... na linha do quadro da antropologia. Um vai pra um
lado, outro vai duzentos, trezentos quilômetros pro outro lado. Quebra-se
essa comunhão de vidas, onde havia confiança, onde um empresta sem

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 195


documento nenhum, é coisas, objetos, dinheiro pro compadre lá do lado,
essa cadeia se quebra. Então isso é uma outra questão que não é muitas
vezes considerada. Aí diziam: “ah! Mas se todo mundo quiser o reassen-
tamento coletivo nós fazemos, é que eles não querem”. Bom, isso é... é
uma... uma... uma questão de não querer conhecer a realidade brasileira.
Um pobre que nunca viu cinquenta mil reais na sua mesa, de repente ele
vai ver um dinheiro que ele nunca viu. Ele vai iludido pra cidade achando
que esse é um dinheiro que nunca vai acabar. Porque aí nós estamos des-
considerando o nível de instrução e de cultura do nosso povo e com isso
se quebra isso. Se nós pegarmos as comunidades religiosas seja da igreja
católica, seja das igrejas evangélicas que vivem a sua fé em comunidade
isso tudo se quebra, isso tudo se joga fora. Então na questão social nós
temos famílias digamos que em cem anos, três, quatro, cinco gerações
nasceram, cresceram, viveram daquela terra. Você vai olhar nunca teve
prostituição, nunca saiu alguém lá pra prostituição, nunca houve drogado
lá no meio. Agora, na hora que: -“não nós vamos dar uma casinha bonita
pra você lá na cidade”. Ele vai chegar ele, num vai ter emprego, ele num
se profissionalizou pra competir no mercado urbano [...]28

Fica clara, na fala do Bispo, a preocupação relacionada aos empregados


das áreas que viriam a ser inundadas e suas respectivas famílias. Além de
ter um posicionamento muito crítico quanto à instalação de hidrelétricas,
ele se mostrava preocupado com o deslocamento das pessoas, em especial
daqueles que sempre viveram na área rural e que iriam se transferir para os
centros urbanos, sem nenhuma formação ou preparação para competir no
mercado de trabalho da cidade.
Ainda na questão relacionada à luta contra a instalação da barragem,
devemos dar destaque ao Movimento dos Atingidos por Barragens. Na vi-
são do MAB, naquela época, a melhor forma de lutar contra a concretiza-
ção do empreendimento era a resistência, mesmo sabendo que o processo
não seria fácil, uma vez que as armas na luta entre comunidade e empresa
eram desleais. De qualquer modo, a resistência poderia gerar perdas finan-
ceiras com a não aceitação das indenizações e acordos amigáveis, ou com
a recusa às “ajudas” da empresa para a melhoria do lugar. Ao Movimento,
restava a conscientização dos moradores por meio de reuniões e boletins
informativos impressos, enquanto a empresa utilizava recursos financeiros

28. Entrevista de Dom Guilherme (Bispo da Igreja Católica e responsável pela maioria das
cidades afetadas pela SEFAC) Ipameri, 2009.

196 - Urdiduras da história


para seduzir a população envolvida na disputa. Conforme lembra Aline da
Silva, uma das lideranças do MAB no município, em depoimento conce-
dido ao “Programa de preservação do patrimônio histórico-cultural: Cami-
nhos da Memória, caminhos de muitas histórias”, era impossível competir:

[...] Impossível competir [com a empresa]. O que dispomos é do nosso


jornal em preto e branco, xerocado em folha comum. O deles (SEFAC)
era com imagens digitalizadas, papel próprio, além de conseguirem fotos
de moradores antigos da região sempre rindo e abraçados aos mentores da
empresa [...] Eles ainda contavam com a opinião pública que divulgavam
eles dando sacolinha com remédio, levando brinquedos nas periferias.
Toda a comemoração da cidade tinha a Serra do Facão, parecia que antes
deles não tinha cidade, tudo era eles que iam fazer [...]29

No início da organização dos moradores, a empresa apenas realizava


levantamentos e tinha uma política tímida de indenizações e acordos fi-
nanceiros. Contudo, de acordo com Lourdes Neiva Mesquita, à medida
que o movimento foi ganhando notoriedade e suas ações se tornaram mais
incisivas, o empreendimento passou a adotar outra tática: a de negociar
primeiro com os membros e lideranças dos grupos, visando o enfraqueci-
mento do movimento.

[...] Ah, eu vi tanto sofrimento nas viagens [à Goiânia e Brasília] que nós
fizemos. Se tivesse luta, se tivesse união nós tínhamos conseguido muita
coisa, mas é porque o povo dispersou com o jogo da barragem. O povo
dispersou mesmo! Eles (SEFAC) passaram a indenizar um aqui, outro
ali... Um contava para o outro que: “ah, eles vão nos pagar bem!” E teve
gente, inclusive que a SEFAC pagou mais o preço do alqueire de terra do
que para outros. Então, eu vou receber daquele jeitão, eu vou calar a boca;
é bom pra mim! Tem terra lá na Rancharia (Município de Campo Alegre
de Goiás) que receberam bem melhor. Então se a gente tivesse união
tinha conseguido muita coisa, mas dispersou mesmo [...]30

Na visão de Sílvio Neiva Mesquita, a empresa foi tão astuta que con-
seguiu interferir na organização do movimento dos moradores. Ele relata,
com pesar, o ocorrido:

29. Entrevista de Aline da Silva, representante MAB. Catalão, 2009.


30. Entrevista de Lourdes de Neiva Mesquita (produtora rural) Fazenda Pires - Catalão/
GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 197


[...] Andei pra todo lado, pra todo lugar onde tinha reunião. A gente ia,
conversava, tentava convencer, mas ela [SEFAC] sabe articular; ela sabe.
Quando você é o forte, tem dinheiro, sabe, né! Você paga e rápido você
passa a ser amigo deles [SEFAC]. Eles querem enfraquecer a gente...
Porque se nós somos vinte, se eles tiram os dois líderes, os outros enfra-
quecem... É isso que eles querem, e tão fazendo. Eles são bem preparados.
Tem gente preparado pra tudo! [...]31

Com base nas falas de Silvio e Lourdes, podemos afirmar que a tática
da empresa, portanto, foi a de se aproximar dos líderes do movimento e
indenizá-los primeiro.32 Alguns, inclusive, recebendo valores maiores do
que os demais, dentro de uma avaliação similar:

[...] também o fato deles divulgarem a ideia que quem não resistisse seria
indenizado primeiro e melhor. Diante do medo de não receber, as resis-
tências foram dando lugar à aceitação. Isso segregava o grupo, desmobi-
lizava [...]33

A propósito, a questão foi apontada por Kalliandra de Morais Santos


Araújo, em um estudo feito na região durante o período de instalação do
empreendimento:

[...] Muitas reuniões aconteceram para tentar apoiar as lutas e enfrenta-


mentos. Diante da irreversibilidade do empreendimento, a reivindicação
muda seu caráter, deixa de ser contra a barragem e passa a ser sobre os
cálculos indenizatórios. Numa medida educativa pelo exemplo, a empresa
paga primeiramente os que precisam ser silenciados [...]34

A tática evidente, com vistas a desmobilizar a resistência dos atingidos


pela barragem, torna-se ainda mais clara quando Sr. Amarildo Almeida
Silva, produtor rural afetado pelo empreendimento, relata sua inquietação
e insatisfação. Para ele:
31. Entrevista de Silvio de Neiva Mesquita (produtor rural) Fazenda Pires - Catalão/GO,
2020.
32. ARAÚJO, Kalliandra de Morais Santos. “O Sertão virou mar”: a Usina Hidrelétrica
Serra do Facão e as desapropriações do entorno do rio São Marcos. (2000-2010). Trabalho
de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Instituto de História da Universidade
Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2010.
33. Depoimento de Aline da Silva, Catalão, 2009. In.: ARAÚJO, Op. cit.
34. ARAÚJO, Op. cit., p. 58.

198 - Urdiduras da história


[...] Não é justo! Nóis lutô, viu? Teve uma especulação imobiliária que
surpreendeu todo mundo aqui, ninguém conseguia comprá mais nada,
então era mió receber logo e ver o que dava pra nóis garanti. Eles vencero
nóis pelo cansaço [...] Eles de primeira sumiru, dispois vieru com tudo e
disseram que quem fosse do MAB ia ser os últimos a receber. Nóis ficô
tudo preocupado, né? E se nóis nem num recebê? Então isso infraqueceu
o movimento [...] nóis tinha medo também dos processo, nóis já tinha
visto o processo judicial dos padre35, então a gente pensô que se nóis ainda
tivesse processo, podia dá até de nóis num recebê! [...]36

No modo de ver do entrevistado, as atitudes da empresa propicia-


vam insegurança e medo entre alguns afetados, como parte da estratégia
de desmobilização do grupo contrário à sua construção e, com a resistência
quebrada, os valores indenizatórios não foram satisfatórios para a maioria
que, ao final do processo de negociações, não tinha força nem fôlego para
enfrentar a empresa.

[...] Se dispersou. É, uai! Continuaro a se organizar. Aqui acho que foi o


grande, o pessoal parece que cansaro, né? Eles me venceu pelo cansaço, as
empresas, e aí pararo, pararo todo mundo, todo mundo começaro a inves-
tir, trabalhar nas propriedades, e de repente veio, né? Dai novamente, aí
veio pra valer. E com essa questão também da gente tá sendo processado,
muita gente sentiu medo naquele momento, se afastou e ali começou.
Hora que começou, e aí a empresa, ela tem aquela, uma estratégia muito
difícil, né? Por que ela, ela sabe lidar com o camponês, né? Eles têm uma
estratégia, né? Então quem tá lutando não vai cedê, vai se o outro que vai
céde. Eu fui, num tive assim, uma prova concreta, mas alguém de Furnas
teve nos meu vizinho próximo lá e falou que eu ia sê o último a recebê,
porque eu era um dos líderes, que tava brigando, bateno de frente, contra,
então eu seria o último a recebê. E aí esparramou aquilo e aí deu medo,
deu medo. E aí todo mundo, aí esfriou tudo, né? Então, eles faz, trabalha
com essa estratégia, consegue amendrontá o pessoal [...]37
35. Alguns padres, membros da Pastoral da Terra e militantes do MAB (Movimento dos
Atingidos por Barragem) foram responsabilizados judicialmente em processos abertos pela
SEFAC. Padre Orcalino, um dos principais líderes locais, responsabilizava o empreendi-
mento de adotar formas de coerção durante o processo de sua instalação. A esse respeito
consultar: ARAÚJO, Kalliandra de Morais Santos. Op. cit.
36. Depoimento do produtor rural Amarildo Almeida Silva, 2009. In.: ARAÚJO, Kalliandra
de Morais Santos. Op. cit.
37. Entrevista de Amarildo Almeida Silva (produtor rural) Catalão/GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 199


No momento de quebra da resistência, podemos afirmar que o proces-
so de construção da barragem não tinha mais retorno. Por certo, tratava-se
de uma realidade previsível desde a liberação e o licenciamento por parte
do governo federal. Entretanto, para algumas pessoas do movimento se-
ria possível sensibilizar o poder público acerca dos impactos negativos do
empreendimento na vida da comunidade. Infelizmente, os esforços nesse
sentido, na maioria das vezes, mostravam-se como ecos em um espaço va-
zio, no qual a resposta era sempre o silêncio, reverberando a sensação de
solidão. Silvio Neiva Mesquita, um dos líderes do movimento, viajou inú-
meras vezes com sua família para a capital do país. Ele era presença cons-
tante em reuniões com a Serra do Facão S.A. e/ou com seus pares. Mas,
ao retornar para sua propriedade, em seu labor diário, a solidão e a tristeza
eram marcas evidentes. Arminda Mesquita Correia, mãe de Silvio, destaca
o sentimento de desgosto. Em sua fala, ela disse que:

[...] Ta tirando. Ta lá tirando. Ele [Sílvio] comprou ordenha, né? Aí


ele vendeu um bocado das terras, ele [Silvio] falou: num quero vender
nada que o meu pai deixou [com voz de choro], aí eu falei mais tem
que arrumar as coisas, né? O dinheiro num tem. Só mesmo das terra, aí
pegou dinheiro demais, mas demais mesmo! A barragem deu... terra só
boa né? [...]38

Dona Arminda ainda mencionou o fato de que mesmo tendo muitas


terras, não significava que ele teria dinheiro. Afinal, os valores estavam
empregados na propriedade. Com a desapropriação, as terras se revertiam
em dinheiro: muito para uns, suficiente para poucos e irrisório para a
maioria. Isto, se levarmos em consideração a especulação imobiliária e o
desmantelamento do grupo de enfrentamento à construção da UHE Ser-
ra do Facão. Mas, podemos ler, na fala de dona Arminda, que os valores
recebidos não substituíam e nem acabavam com a tristeza e o vínculo
identitário com o lugar.
Em outras localidades, com a construção de barragens como a de Belo
Monte, no rio Xingu, a luta estava focada na defesa da questão ambien-
tal, tendo as populações tradicionais e as indígenas, bem como ativistas e

38. Entrevista de Arminda Mesquita Correia (produtora rural) Fazenda Pires -


Catalão/GO, 2009.

200 - Urdiduras da história


grupos ambientalistas em enfrentamento com o poder público. No caso
de Belo Monte, a bandeira de luta era contra os impactos da construção
da usina no campo, no meio ambiente e na sobrevivência das populações
indígenas e ribeirinhas, ganhando repercussão internacional.39
É importante registrar que as questões ambientais também preocu-
pavam os moradores locais da região afetada pela UHE Serra do Facão.
Améria de Aparecida Cardoso, moradora na região de Catalão/GO, com-
preendia que o progresso prometido não se equilibrava com os impactos
gerados pela construção das várias usinas hidrelétricas pelo país, entre elas
a Serra do Facão, conforme se depreende da fala abaixo:

[...] Eu penso que não, assim agora às vezes tô falando vem esse movi-
mento todo aí, que os outros dá serviço, dá progresso, mas como diz o
outro, isso tarde gera problema. Eu penso assim que deve investir outro
tipo de energia saia melhor. Tava vendo se ficasse só por uma duas, o
negócio é que eles não para, eles vai faz uma, faz outra. Que que vai virar
o mundo? Igual eu falo, eu tenho mais preocupação com a natureza, cê
não vê igual tá falando aí, a poluição estragou, como disse os outros; a
camada de ozônio, aí o sol como é que tá! Cê não vê pra fora aí, Santa
Catarina [enchentes e tornados incomuns na região e que se intensifi-
caram naquele ano], esse trem, é porque aquilo, é porque a natureza tá
dando a resposta dela, porque agrediu ela, mexeu com ela, a mesma coisa
é aqui, esse rio foi feito pra correr solto, ele não foi feito pra tampar aqui
acolá, cê sabe que um trem, a natureza que cê muda ela, ela vai dá a res-
posta mais tarde, a minha preocupação mais é esta. Os outros é ter acha
bão gera energia, gera serviço, mas preocupante é a natureza, né? que cê
vai mudar ela, mais tarde ela vai dar a resposta dela. [...]40

A partir dessa fala, podemos inferir que parte dos moradores enten-
dia o empreendimento como algo ruim não apenas com relação aos senti-
mentos e vínculos identitários, mas também em se tratando dos impactos
ambientais.
É válido ressaltar que o movimento dos atingidos da Serra do Facão se
deu em âmbito local e regional, não chamando a atenção dos governantes
de forma direta. Estes apoiaram a efetivação da hidrelétrica uma vez que
39. Para saber mais consultar: FLEURY, Lorena Cândido; ALMEIDA, Jalcione. A con-
strução da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvi-
mento. Revista Ambiente e Sociedade. v.16, n.4, 2013.
40. Entrevista de Améria de Aparecida Cardoso (produtora rural) Catalão/GO, 2009.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 201


geraria dividendos para os municípios atingidos. Aos moradores da região
do rio São Marcos restou a luta por indenizações justas e as incertezas do
futuro. Mais uma vez, é o senhor Silvio Mesquita que nos permite com-
preender como os moradores lidaram com essa situação.

[...] Não entender se a barragem ia ou não ser construída foi difícil para
nós. Você não tinha certeza de mais nada. Você não tinha uma pessoa
pra falar com certeza se a barragem ia ou não ser construída. Mas a gente
sabia que outras barragens tinham sido construídas. Veio a do Capim
Branco, aquela aqui de Araguari e Uberlândia. O pessoal veio de lá pra cá.
Eu me perguntava quanto custava, que preço que eles pagaram pelo al-
queire de chão? Que preço pagaram no hectare de terra? Quanto pagaram
nas casas? Aqui ninguém contava pro outro quanto recebeu. Você não
sabia de nada! E aí eles fizeram outro estudo aqui, avaliaram por baixo.
Agora eu pedi outra avaliação, pra eles dá outra avaliação. Foi difícil! Não
foi fácil não! Eu acabei com dois pares de pneus da caminhonete andando
atrás disso aí, ou mais! [...]41

Para muitas pessoas, a margem de segurança imposta pela SEFAC foi


aceitável e até mesmo comemorada. Afinal, terras que não eram banhadas
pelo rio agora o seriam, o que aumentava o grau de fertilidade e ainda
proporcionava novas fontes de renda, dada a proximidade relativa com o
lago. Além disso, não seria necessário mudar de suas casas, como inúmeras
famílias que precisaram se deslocar para outras regiões, deixando familiares
e amigos para trás. Por outro lado, à revelia das angústias, desavenças ou
celebrações, de forma rápida e “silenciosa” a barragem foi tomando forma
às margens do Rio São Marcos. À medida que o grande paredão de con-
creto era erguido, os sonhos de permanecer no local iam se desmoronando.
Já não se ouvia mais os pássaros cantando, o vento das árvores, o barulho
do rio. O único som emanado era o ronco dos caminhões e das máquinas
funcionando. O progresso tornou-se uma sinfonia violenta, abafando as
vozes da esperança. Aquele lugar nunca mais seria o mesmo.

41. Entrevista de Silvio de Neiva Mesquita (produtor rural) Fazenda Pires - Catalão/GO
2020

202 - Urdiduras da história


Referências

ABDALA, Mônica Chaves; KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. Histó-


rias em transformação: experiências e tensões na pesquisa sobre empreen-
dimento hidrelétrico. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz; RAMOS,
Alcides F. (Org.). Nas Veredas da História: itinerários e transversalidades
da cultura. Uberlândia: EDUFU, 2012.

______.; KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim; MACHADO, Maria Cla-


ra Tomaz (Org.). São Marcos do Sertão Goiano: cidades, memórias e
cultura. Uberlândia: EDUFU, 2010. https://doi.org/10.14393/EDU-
FU-978-85-7078-242-7

ARAÚJO, Kalliandra de Morais Santos Araújo; MACHADO, Maria


Clara Tomaz. Prelúdio: travessias e (in) certezas às margens do rio São
Marcos. In.: ABDALA, Mônica Chaves; KATRIB, Cairo Mohamad
Ibrahim; MACHADO, Maria Clara Tomaz (Org.). São Marcos do Ser-
tão Goiano: cidades, memórias e cultura. Uberlândia: EDUFU, 2010.

______. “O Sertão virou mar”: a Usina Hidrelétrica Serra do Facão e as


desapropriações do entorno do rio São Marcos. (2000-2010). Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História) - Instituto de História da
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2010.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre


literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1986.

BRECHT, Bertolt. A Ópera dos Três Vinténs. Tradução Wolfgang Ba-


der, Marcos Roma Santa, Wira Selanski. In: ______. Teatro Completo.
v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução Ephraim


Ferreira Alves. 3 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

DAMERGIAN, Sueli. A construção da subjetividade na metrópole pau-


listana: desafio da contemporaneidade. In: TASSARA, E. T. O. (Org.).

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 203


Panoramas interdisciplinares para uma psicologia ambiental do urbano.
São Paulo: EDUC/Fapesp, 2001.

FLEURY, Lorena Cândido; ALMEIDA, Jalcione. A construção da Usi-


na Hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desen-
volvimento. Revista Ambiente e Sociedade. v.16, n.4, 2013. https://doi.
org/10.1590/S1414-753X2013000400009

HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Tradução de Laurent Léon


Schaffter. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.

KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. Catalão de ontem e de hoje (curio-


sos fragmentos de nossa história). Catalão: Kalil, 1984.

______. Foi assim que me contaram: recriação dos sentidos do sagrado e


do profano no congado na festa de Nossa Senhora do Rosário. Tese (Dou-
torado em História) - Universidade Federal de Brasília, Brasília-DF, 2009.

______. Histórias e confissões: páginas escolhidas – Goiânia: O Popular,


1987.

MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular: um contínuo refazer


de práticas e representações. In: PATRIOTA, Rosangela; RAMOS, Al-
cides Freire. História e Cultura: Espaços Plurais. Uberlândia: Aspectus,
2002.

______. Serra do Facão: na encruzilhada dos sertões. In.: ABDALA, Mô-


nica Chaves; KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim; MACHADO, Maria
Clara Tomaz (Org.). São Marcos do Sertão Goiano: cidades, memórias e
cultura. Uberlândia: EDUFU, 2010.

204 - Urdiduras da história


Entre a curva, a história e o rio:
toponímia, memória e representação da cidade
sob o olhar de Guigui

Túlio Henrique Pereira

Acordávamos cedinho. Sinto ainda a presença forte da mão de meu


pai, segurando forte a minha. A missa começava sempre às 6 da
manhã, eu odiava. No caminho, ia passando distraidamente pela
praça; lembro-me do canteiro de dálias, vermelho intenso. Na época
eu achava que eram feias. Só com o tempo é que as pétalas grossas,
aveludadas foram voltando como metáfora da minha saudade.1

O passante atravessa a praça pública por várias vezes durante a sua


vida e, em muitos momentos, não elabora sentidos capazes de estabelecer
uma memória afetiva com o espaço urbano a entrecortar ruas e avenidas;
estabelecendo-se enquanto ponto de lazer e comércio ou até mesmo flerte
ou repouso. O excerto a abrir este capítulo é parte de um relato espontâneo
de uma professora goiana chamada Letícia Tavares. Ela nasceu em 1961,
na cidade de Itumbiara, região Sul do Estado de Goiás, e concedeu a en-
trevista em 2007, quando tinha 46 anos. Atualmente a professora possui
61 anos de idade e não reside na cidade de Itumbiara. O objetivo da entre-
vista, à época, era o de apresentar memórias dos sujeitos que vivenciaram
o ambiente da Praça da República, no centro da cidade, representado pelo
pintor vilaboense, Onofre Ferreira dos Anjos, popularmente conhecido
por seu apelido, Guigui.

1. Letícia Tavares, entrevista espontânea concedida em 16/09/2007. Optou-se pela preserva-


ção da linguagem coloquial falada pela entrevistada, não configurando erro de digitação, mas
sim uma marcação identitária.
A entrevista compôs o segundo capítulo da monografia de minha au-
toria, denominada Iconografia na História Regional: a constituição identitá-
ria de sujeitos itumbiarenses a partir do espaço público da Praça da República
(1950-1980), defendida no ano de 2007 no curso de História da Universi-
dade Estadual de Goiás (UEG). Diferente de um passante ao caminho do
trabalho, ao descer ou subir do transporte público, Letícia Tavares possui
lembranças de uma juventude ora ao lado ora distante do pai com quem
dava as mãos para atravessar a praça a caminho da missa que começava às
seis horas, na Catedral Santa Rita de Cássia, localizada na lateral da Praça
da República, à Rua Paranaíba, nº 27, no centro da cidade.
Letícia não gostava de acordar cedo, porém, ao entrecortar aquele
ambiente público e urbano, ela se distraia com o canteiro de dálias, ver-
melho intenso, “Na época eu achava que eram feias. Só com o tempo
é que as pétalas grossas, aveludadas foram voltando como metáfora da
minha saudade”.2 Há vários elementos mnemônicos a serem explorados
a partir deste relato espontâneo de Letícia, todavia, ressalta-se que sua
memória foi acionada em razão de terem sido exibidas, para sua aprecia-
ção, um conjunto de imagens capturadas das pinturas do pintor Onofre
Ferreira dos Anjos, o Guigui.
Além de Letícia, as professoras aposentadas, Maria da Graça Rocha
e Maria Aparecida Conti, foram convidadas a observar o conjunto de
imagens fotografadas das telas de Guigui, e orientadas a produzir algum
relato escrito ou falado sobre as fotografias feitas por mim. Ao longo de
2000 até 2005, as obras de Guigui ficavam em permanente exposição na
extinta Casa da Cultura, localizada no Bairro de Furnas, na orla do Rio
Paranaíba. O bairro pertencia em seus primórdios à Usina Hidrelétrica
de Furnas - Eletrobrás. Atualmente a área pertence a uma pequena elite
de pessoas, alguns ex-funcionários da hidrelétrica e proprietários diversos
sem vínculo com a instituição.
Com o fechamento da Casa da Cultura, foi inaugurado, na Rua Santa
Rita, 21, no centro da cidade, o Palácio da Cultura Museu Major Militão
Pereira de Almeida, que abriga outras instituições políticas e culturais. E é
neste novo museu que está exposto um total de 51 telas em óleo de autoria
de Gugui; sendo 35 delas composições de bustos de pessoas próximas a
ele, conhecidos, parentes e amigos, além de personalidades eclesiásticas,

2. Letícia Tavares, entrevista espontânea concedida em 16/09/2007.

206 - Urdiduras da história


comerciantes e políticos locais.
No acervo do Palácio da Cultura Museu Major Militão Pereira de
Almeida, há ainda 16 pinturas de paisagens, conjunto iconográfico no qual
Guigui retratou o ambiente urbano da praça central, pontos comerciais a
denunciar os focos do processo de urbanização arquitetônico dos espaços
públicos e privados, como o prédio do fórum e do principal hotel da cida-
de. Nessas visualidades, os olhos percebem a intersecção estabelecida pela
passagem tênue do ambiente urbano e o rural em simbiose.
Alicia Novik ao tratar sobre os campos conceituais dos estudos sobre
cidades e o urbanismo na história, ajuda na compreensão acerca das repre-
sentações produzidas pelas e a partir das cidades, percebidas enquanto ter-
ritorialidade, espaço físico e campo de saber.3 Todavia, optou-se, para este
ensaio, não uma abordagem historiográfica sobre os encantos arquitetô-
nicos do espaço público da cidade de Itumbiara ou de suas representações
dessa arquitetura, impressos nas pinturas a óleo sobre seriguilha, produzi-
das pelo artista plástico Onofre Ferreira dos Anjos, o Guigui. Segundo Ra-
quel Rolnik, é importante perceber a interseccionalização de tempos, para
que seja evidenciado o processo constituído por sujeitos no e pelo espaço
urbano, sujeitos esses, como Gugui, Letícia Tavares ou Maria Aparecida
Conti, capazes de acionar memórias por meio da observação de repro-
duções visuais de pinturas que nunca observaram de perto em tamanho
real, percebendo o percurso da tinta sobre o tecido irregular utilizado pelo
pintor a testemunhar uma cidade reproduzida a partir de outras imagens
fotográficas, por uma técnica autodidata e naif; capaz de recriar um espaço
imaginado, produzindo sua própria história como uma escrita no espaço.4
Georges Didi-Huberman poderia jamais reconhecer o conjunto ico-
nográfico de Guigui como sendo obra de arte nutrida de complexidade e
de sentidos apurados. Conforme observado em sua crítica à arte moderna
estadunidense, o historiador alemão estabelece um paradigma entre aque-
les que buscam no minimalismo a evidência do objeto em si, em busca de

3. NOVIK, Alicia. El urbanismo en las historias de la ciudad. Registro. Revista de Inves-


tigación del Centro de Estudios Históricos Arquitectónico-Urbanos. Mar del Plata: FAU-
-UNMDP, n. 1, p. 6-26, 2003.
4. ROLNIK, Raquel. O que é cidade? São Paulo: Brasiliense, 1985; ROLNIK, Raquel.
História Urbana: História da Cidade? In: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio
de Filgueiras. Cidade e História. Modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e
XX. Salvador: UFBA, 1992, p. 27-30.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 207


“não ver outra coisa além do que vê”.5
Também não é a intenção aqui estabelecer um juízo de valor acerca do
processo metodológico e das composições figurativas de Guigui, que não
é minimalista, nem tanto se vincula a qualquer escola artística acadêmica.
Trata-se de um desenhista de retratos e paisagens com pouco domínio da
simetria, autodidata, cujo traço irregular representa rostos cujos fenótipos
também não são aproximativos. Gugui não é um chargista, não produz
um instante tipo, nem realiza caricatura. Seus personagens em miniatura
inseridos de forma marginal ou central nas obras não imprimem identidade
capaz de elevar o espírito desatento do espectador, embora possua coloca-
ções interessantes e de personalidade. O jogo de luzes, as dimensões, a pre-
dominância das cores frias em alguns casos, as assimetrias, as proporções
e profundidades de suas representações carecem de planos mais profundos
com perspectivas mais elaboradas. Mas não sou crítico de arte e não possuo
formação artística capaz de estabelecer uma curadoria técnica e apurada
sobre o conjunto de paisagens urbanas de Guigui.
Por essa razão, é intuito deste ensaio perceber a capacidade que Ono-
fre Ferreira dos Anjos nos apresenta; essa de escrever uma história no es-
paço e na figuração reproduzida de seus retratos do ambiente urbano-rural
da praça central da cidade de Itumbiara, no interior do Estado de Goiás.
Interessa-nos questionar o modo como ele parece ter conseguido, ao co-
piar fotografias, estabelecer memórias criadas, recriando imagens capazes
de despertar um vínculo imaginativo e afetivo naqueles que observam suas
pinturas, como Letícia Tavares e Maria Aparecida Conti. Diferentemente
do paralelepípedo sem “qualquer imagerie” exemplificado por Didi-Huber-
man, entende-se que apesar de naif, as pinturas de paisagens criadas por
Guigui não representam aridez ou ausência de conteúdo ou sentido, elas
convidam. E é a partir desse convite que se relaciona o espectador e o de-
sejo de constituir representações de um passado imaginado que não existe
mais, ou que nunca existiu, iniciando um processo arqueológico na busca
pelos sujeitos que compunham tal ambiente em sua diversidade temporal,
firmando um campo da história regional da cidade, tendo o sujeito como o
seu meio de vinculação.
Desse modo, cabe a evidenciação de um conjunto de 16 obras com re-
presentação de paisagens criadas por Guigui, destacando-se nominalmente
5. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,
2010, p. 49.

208 - Urdiduras da história


neste capítulo nove delas: Hotel Central, Praça da República em 1934, Igreja
Santa Rita, Casa Adelino, Cine Walter Barra, Praça da República, Fórum em
1908 (I), Fórum em 1908 (II), e Coreto. Essas obras, apesar de não serem
apresentadas todas de modo visual, nesse ensaio, produzem elementos ico-
nográficos e textuais, que operam com a linguagem das impressões mne-
mônicas de três expectadoras, Letícia Tavares, Maria da Graça Rocha e
Maria Aparecida Conti. Memórias e visualidades entrecruzadas para que
se possa perceber a mediação sujeito e seu meio, dentro da temática dos
estudos históricos das visualidades em consonância com a história das ci-
dades e a Nova História Cultural, abarcando uma análise linguística acerca
da toponímia em torno do nome Itumbiara, atribuído à cidade, e defendi-
da por pesquisadores e cronistas locais, como sendo de origem do tronco
linguístico Tupi. A linguista Consuelo de Paiva Costa, especializada em
fonologia de Línguas Indígenas, colabora na escrita deste capítulo, para
que consigamos mediar sentidos produzidos e representados por sujeitos,
entre a curva, a história e o rio Paranaíba.

Entre a curva, a História e o Rio Paranaíba

Nascido em 31 de outubro de 1926 em Vilas Boas, Goiás, Onofre


Ferreira dos Anjos se mudou para a cidade de Santa Rita do Paranahyba,
ainda menino, na mesma década. No município, Guigui estudou na Es-
cola Estadual Rui de Almeida, e se profissionalizou técnico em eletrônica,
através de um curso por correspondência, dedicando-se à operação de má-
quinas industriais por cinquenta anos.
De acordo com verbete do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica – IBGE, a alteração toponímica do povoado de Santa Rita do Para-
nahyba para Itumbiara ocorreu pelo Decreto-Lei do Estado da Província
de Goyaz em 31 de dezembro de 1943. Segundo o historiador itumbiaren-
se, Nilson de Souza Freire, inúmeras pesquisas recentes colocaram em che-
que a toponímia do nome da cidade: “Quando se ouve falar sobre a história
de Itumbiara vem logo a resposta pronta que foi fundada por Marechal
Cunha Mattos em 1824 e que seu nome significa ‘caminho da cachoeira’”.6
No final do século XIX, a população de Santa Rita do Paranahyba era

6. FREIRE, Nilson de Souza. Nas barrancas de Santa Rita do Paranahyba – jogos do poder
em Itumbiara de 1830-2011. Itumbiara: Edição do autor, 2011, p 11.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 209


composta por 750 habitantes, distribuídos em 560 cidadãos livres, sen-
do 290 mulheres e 270 homens. Havia a incidência de 190 pessoas ne-
gras escravizadas, sendo 98 mulheres e 92 homens.7 O povoado se erigiu
pela força de posseiros, a venda e a mão de obra escrava, e o trabalho nas
fazendas, determinando uma economia predominantemente rural, basea-
da na agropecuária, predominante até o tempo presente, atrás apenas da
agricultura. Segundo Hamilton Afonso Oliveira, o contexto dessa época é
marcado pelo final do ciclo do ouro, e a economia agrária se fortalece como
principal atividade econômica, estabelecendo sítios e fazendas, que deram
origem às vilas.8
É no contexto das primeiras cinco décadas do século XX, que Guigui
começa a produzir suas primeiras reproduções, já nos anos de 1950, utili-
zando-se de fotografias da cidade da década de 1930 e anos anteriores, e
ao longo do processo, incorporando referências de imagens produzidas em
1950 e 1960.

Figura 1. Onofre Ferreira dos Anjos, Pça da República em 1934. s/data. 1 pintura,
óleo sobre seriguilha., 78,5 cm x 49,5. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

7. FERREIRA, Josmar Divino; PINHEIRO, Antônio César Caldas. Santa Rita do Pa-
ranahyaba: origem e desenvolvimento. História de Itumbiara, v. 1, Itumbiara: Edição de
autor, 2009.
8. OLIVEIRA, Hamilton Afonso. A Construção da riqueza no Sul de Goiás –1835-1910.
Franca. 2006. 231f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Fran-
ca, Brasil.

210 - Urdiduras da história


Figura 2. Onofre Ferreira dos Anjos, Coreto. s/data. 1 pintura, óleo sobre serigui-
lha., 78,5 cm x 49,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto:
PEREIRA, T. H.

Nas pinturas Praça da República em 1934 e Coreto estão impressos


elementos que compõem uma paisagem urbana do interior com traços
rurais. Os tons terrosos na parte inferior do quadro é entrecortado pelas
cores cinzas do calçamento da praça, o verde nas manchas dos arbus-
tos, grama e árvores. A paisagem ao fundo na figura Praça da Repúbli-
ca em 1934 e na figura Coreto remetem às obras de paisagem de Albert
Eckhout, Jean-Baptiste Debret e Victor Meirelles, aproximando a técni-
ca de Guigui da criação naturalista com todas as suas limitações de alcan-
ce das cores e da dimensão profunda dos traços de suas personagens. A
difuldade do artista em estabelecer simetria se explicita na figura Coreto.
As casas coloridas ao estilo colonial decadente denunciam uma sociedade
com pouca autonomia política e econômica, assim como, de acordo com
Nilson Freire, trata-se de um período em que Santa Rita do Paranahyba e
a Província de Goyaz são dominadas pela figura dos interventores políti-
cos.9 O desinteresse pela arte da arquitetura, já bastante avançada em São
Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, nas décadas de 1930 e na
contemporaneidade de Guigui em 1950-60, denunciam uma sociedade
relegada às amarras políticas e à economia agrícola.
Há no canto inferior esquerdo da figura Praça da República em 1934 a
banda musical Santa Rita de Cássia. A representação do Padre Florentino
Bermejo (1881-1965), amigo de Guigui, em sua batina com a posição das
mãos voltadas para trás, o que na época era visto como um padrão clerical
de imposição e respeito à ordem. São cinco casas térreas em estilo colonial
9. FREIRE, Op. cit., p 70.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 211


e uma igreja. O uso de poucas cores quentes numa prevalência de cores
frias inibe os focos de entusiasmo de quem observa.
Maria Aparecida Conti, nasceu em 29 de fevereiro de 1952 em Dou-
rados, Mato Grosso do Sul, e se mudou para Goiás, tornando-se profes-
sora universitária na cidade de Goiatuba. Ao ser apresentada às fotografias
das pinturas de Guigui permitiu-se descrever impressões:

A tela retrata um ângulo de uma praça de uma cidadezinha do interior,


provavelmente nos anos 1950/60, quando os padres ainda usavam um
tipo de vestimenta preta diferenciada, mostrando uma cena de domingo,
talvez, por causa dos músicos se apresentando na calçada. As fachadas
coloridas das casas lembram os primeiros povoados como ‘o quadrado’
de Porto Seguro, ou de Trancoso, na Bahia, que foram tombados como
patrimônio histórico. Podemos ver também a igreja sinalizando a cultura
cristã da colonização brasileira.”10

São duas fotografias a apresentar duas pinturas feitas por Guigui a se


complementarem. São dois ângulos diferentes da mesma Praça da Repú-
blica, nas quais se nota arbustos, flores, uma banda, um padre, casas e o
coreto. Lembra-nos o cenário imaginado por Letícia Tavares ao acionar
seus dispositivos de lembrar e esquecer-se nos seus treze ou quatorze anos
de idade.

Os anos passaram. A Praça da República também. E o encantamento


com a fonte luminosa agora era outro. Não mais as noites quentes na
sorveteria na companhia de meu pai. Agora, querendo meu pai bem longe
dali. Hoje em dia tem nome, mas naquele tempo era só os meninos que
iam pelo lado de fora da rua e as meninas pelo lado de dentro circulan-
do, circulando, em torno da porta do Mug’s lanches, passando pelo cine
República, Walter Barra, pelos fundos da Igreja. Quando chegávamos de
volta lá na porta do Mug’s já havia as notícias ‘cê viu pra mim?’ ‘Já chegou
o fulano?’ ‘Ai, vi; ele tá lindo!’ O meu amor tinha longos cabelos cor de
caramelo, e o rosto todo coberto de pintinhas!11

Letícia Tavares nasceu em 1973, época em que Guigui já realizava


suas pinturas sobre a sua visão da Praça da República. Guigui utilizava-se
de elementos visuais anteriores a data de nascimento de Letícia, porém, sua
10. Maria Aparecida Conti, observação concedida em 13/06/2007.
11. Letícia Tavares, entrevista espontânea concedida em 16/09/2007.

212 - Urdiduras da história


pintura é contemporânea a ela, e também imprime elementos da contem-
poraneidade de Guigui, aos 47 anos de idade no ano de 1973.
Letícia não possui a experiência vivida do tempo em que Itumbiara se
chamava Santa Rita do Paranahyba, o senhor Onofre sim; e em suas obras
essas temporalidades se entrecruzam criando espacialidades e conjunturas
particulares e desconectadas das realidades de seus contemporâneos, em-
bora bastante aproximativas.

...Ah! A Praça da República era... as moças ficavam de lado, umas quatro,


umas três, e dava a volta lá. Passava perto dos moços e ficava lá, ah... mas...
Ah, era desse jeito. Os rapaz não andava de braços dados com a moça, só a
moça com moça viu! Era interessante viu. No comecinho os bancos eram
de madeira, depois que foi mudando. Era assim, quando sentava mulher
num banco era só mulher viu, aquelas mocinha assim. Rapaz sentava pra
lá, é... Era uma festa interessante viu... 12

Maria da Graça Rocha nasceu em 1949 na cidade de Itumbiara,


Goiás, e, assim como Guigui, também foi entrevistada por mim. Peda-
goga aposentada, Maria da Graça viveu o ambiente urbano da cidade no
tempo em que Onofre Ferreira dos Anjos havia começado a criar suas
reproduções. Ao ser questionada quanto as condições de vida dos itum-
biarenses em seu tempo de professora, Maria da Graça apontou se tratar
de uma realidade pouco desigual, em que a maioria das pessoas possuiam
condições de vida equiparadas; segundo ela, apenas após os fluxos migra-
tórios de trabalhadores para a lavoura é que as distâncias econômicas se
acenturaram. Embora o relato de memória do modo como ela enxerga
o tempo vivido no passado, em seu meio, seja relevante, é importan-
te considerar a impossibilidade de afirmar que em Itumbiara não havia
desigualdades sociais profundas, sem que haja a realização de estudos
sociológicos, demográficos e econômicos, de forma entrecruzada e apro-
fundada; temáticas que não serão desenvolvidas neste ensaio.
Embora de gerações diferentes, Onofre Ferreira dos Anjos e Letícia
Tavares possuem imagens que se aproximam da memória experienciada
por cada um deles. Letícia, ao falar do momento do flerte entre as jovens
e os rapazes, encontra todo o contexto restritivo de Guigui a denunciar as
12. Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui), artista plástico, 81 anos, entrevistado em 12/03/2007.
Optou-se pela preservação da linguagem coloquial falada pelo entrevistado, não configuran-
do erro de digitação, mas sim uma marcação identitária.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 213


regras do footing que separava homens de mulheres, e estabelecia posturas
distintas aos dois gêneros agrupados entre si. Maria da Graça Rocha não
possui uma memória tão diferente dos dois:

Todas as madames ia na praça, porque era onde podia ir. Se vestiam bem
e iam pra praça. A sociedade era pequena. As moças bem prendadas da
cidade iam. Marilda Barra... As pessoas ficam sentadas, namorando. Era
lá que arrumava namorado, só namorava quem ia pra praça, se não ia não
namorava, porque ai as mulheres ficava sentada de duas e três e ficava
paquerando, porque os namoros de antigamente, Deus me livre! O pai
vigiava dia e noite. Deus me livre ficar grávida antes de casar, então era
muito vigiado. Então andava de muitos porque geralmente eram muitas
irmãs, primas e também porque o pai botava pra vigiar...”13

Observa-se que a tela Praça da República em 1934 é a primeira a trazer


a representação dos sujeitos que habitavam a cidade, de modo a ocupar o
espaço da praça pública. No entanto, os dizeres de Guigui e Maria Rocha
reforçam a condição de uma sociedade já preocupada com as aparências e
o lugar social, que se faz presente não só nos discursos, mas nas ideias em
torno do público frequentador deste ambiente: homens e mulheres bran-
cos, bem vestidos e dispostos a socializar entre os pares.

Lá levantava a bandeira de São Sebastião. Tinha a banda de música que


tocava. E as mocinhas só andava com mocinha. O povo, como diz, era
um farturão, tinha tudo que cê precisar tinha, e era de boa qualidade pra
comer. As coisas num era ruim não [sic]. Não tinha agrotóxico, não tinha
nada... Era bonito mesmo. Hoje num sei não... a saúde do povo hoje é
ligada a essas coisas viu, a alimentação de hoje! Antigamente não...”14

Os homens, ao serem retratados sozinhos, revelam privilégios. Isso


nos possibilita problematizar o gênero e suas ocupações nesses espaças pú-
blicos. No primeiro conjunto de imagens prevalece os tons de verde dos
canteiros, arbustos e árvores distribuídos pela Praça da República, e tam-
bém das paisagens de fundo, onde havia uma reserva ambiental pertencen-
te a Minas Gerais, localizada na outra margem do Rio Paranaíba, entre-
13. Maria da Graça Rocha, entrevistada em 09/07/2007. Optou-se pela preservação da lin-
guagem coloquial falada pela entrevistada, não configurando erro de digitação, mas sim uma
marcação identitária.
14. Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui).

214 - Urdiduras da história


cortando os dois Estados: Goiás e Minas Gerais. O azul embranquecido
confunde-se no entendimento da tentativa de compor o céu, mas também
em reproduzir a curva do rio, atrás das casas na figura Coreto, nos pés da
pequena serra mineira.

Toponímia, memória e o discurso sobre a cidade

Em razão do estado da arte, faz-se necessário levantar algumas das


publicações e autores precursores da produção de discursos e memórias
da cidade de Itumbiara e suas personalidades. No ano de 2007, quando
escrevi a monografia Iconologia na História Regional: a constituição identi-
tária de sujeitos itumbiarenses a partir do espaço público da Praça da República
(1950-1980), no curso de História da Universidade Estadual de Goiás,
havia poucos registros de cronistas em publicações como Itumbiara, um
século e meio de história, de Sidney Pereira de Almeida Neto, e História de
Itumbiara; Itumbiara, 70 anos ambos escritos por Peron Franco; e Itumbia-
ra, cidade imaginária (2006), de Nilson de Souza Freire.
Nos últimos anos, algumas pesquisas foram realizadas sobre a cidade
em diversos centros de estudos espalhados pelo Brasil, incluindo pesquisas
no âmbito da graduação, mestrado e doutorado, além da constante publi-
cação de cronistas locais, como Sidney Pereira de Almeida Neto, contem-
porâneo de Peron Franco.
Destacam-se os estudos do historiador Nilson de Souza Freire, res-
ponsável pela produção historiográfica recente; seus ensaios acadêmicos
produzem sentidos sobre a história da constituição da cidade, de forma
científica, com empiria e historicidade. Suas obras: Obituário de ilustres e
anônimos nos cem anos de Itumbiara (2009); Nas barrancas de Santa Rita do
Paranahyba – jogos do poder 1830-2011 (2011); e a recente dissertação de
mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da PUC
– Goiás, Casamento, embates e arranjos políticos em Goiás: uma abordagem das
relações de poder na perspectiva de gênero (2013) configuram uma perspectiva
histórica mais apurada sobre o processo histórico de constituição da cida-
de. Recentemente, o cronista e memorialista, Sidney Pereira de Almeida
Neto publicou o livro 1909, Villa de Santa Rita do Paranahyba, Itumbiara.
Ambos os autores produzem narrativas voltadas para os aspectos do poder
e das políticas da fundação da cidade de Itumbiara com ênfase nos partidos

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 215


políticos, nas famílias e personalidades políticas e eclesiásticas da região.
A tese de doutorado defendida no Departamento de História, Direi-
to e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita
Filho, A construção da riqueza no Sul Goiás – 1835-1910, de Hamilton
Afonso Oliveira, e o ensaio Santa Rita do Paranahyba: origem e desenvol-
vimento, de Josmar Divino Ferreira e Antônio César Caldas Pinheiro,
propõem em seu conjunto um viés voltado para os aspectos econômicos
desencadeados ao longo do processo histórico da cidade.
No campo da História com interface na arte e cultura evidenciam-se
os ensaios Múltiplos olhares sobre a praça pública – a cidade e seus sujeitos, de
2008; Retratos e memórias da praça pública, ambos de minha autoria, sendo
o último apresentado em 2009 na XII Semana de Mobilização Cien-
tífica – SEMOC, Segurança: a paz é fruto da justiça, da Universidade
Católica do Salvador, A (des)construção arquitetônica do espaço e a inserção
do moderno na pintura de Onofre Ferreira dos Anjos, apresentado e publi-
cado nos Anais do III Congresso Internacional do Curso de História da
Universidade Federal de Goiás, na cidade de Jataí, em 2012, e o verbete
Onofre Ferreira dos Anjos no sítio Wikipédia,15 com as fotografias em
alta resolução, ambos de Túlio Henrique Pereira.
Na área do ensino, a dissertação de mestrado do Programa de Pós-
-Graduação em Tecnologias, Comunicação e Educação da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU, TDICs e ensino de História: potencializando
as pinturas do Sr. Guigui como fontes para o estudo da história de Itumbia-
ra, de Eliane de Freitas Silva, também responsável pela criação do sítio
virtual (http://historiadeitumbiaraemtelas.org). E a monografia de gra-
duação do curso de Arquitetura e Urbanismo também da Universidade
Federal de Uberlândia, Retalhos de paisagem – Praça da República de Itum-
biara, de Nayara Guimarães, os dois últimos trabalhos defendidos em
2019. Apesar de alguns desses trabalhos voltados a compreender a Praça
da República ou as pinturas de Onofre Ferreira dos Anjos, tendo como
referência inicial as pesquisas e imagens de Túlio Henrique Pereira, pou-
cos atribuíram a referência, quando não realizaram plágio de grande parte
da pesquisa sem realizar as devidas citações do autor.
Nilson Freire ainda a tratar sobre a fundação de Itumbiara e seu

15. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Onofre_Ferreira_dos_Anjos> Acesso em:


12 set. 2022.

216 - Urdiduras da história


topônimo argumenta ser difícil acessar fontes que comprovem essas afir-
mações, tanto da vinda de Cunha Mattos quanto de estudos da lingua-
gem indígena capazes de justificar o significado atribuído a língua de
tronco Tupi, “pode ser que Cunha Mattos nunca tenha passado por aqui
e que na língua tupi-guarani, para ser caminho da cachoeira, Itumbiara
deveria chamar-se Itutape”.16
Com o intuito de realizar um progresso no debate acerca do signi-
ficado do nome da cidade de Itumbiara, e sua possível origem do tronco
linguístico Tupi, solicitei à pesquisadora e linguista, Consuelo de Paiva
Costa,17 auxílio na resolução deste imbróglio. Ela, ao procurar o signifi-
cado da palavra ´itumbiara´ nos dicionários de Tupi à disposição no Bra-
sil, verificou, com certa surpresa, que não havia nenhum verbete referente
a este topônimo que nomeia a cidade do Estado de Goiás. Interessante
o fato de que, tanto os sites da Internet quanto a comunicação oral de
um morador da referida cidade, dessem o significado de “caminho da ca-
choeira”. Realmente, ´ytu´ é a palavra em Tupi para se referir a cachoeira,
morfologicamente, água ´y´ (que) cai ´tu´, porém, o termo ´mbiara´ segun-
do acepção de Silveira Bueno é um adjetivo que quer dizer “presa, caça,
aquilo que foi pego, agarrado, escravizado.”18 Pela segmentação morfoló-
gica, então, o significado deveria ser “cachoeira presa ou cativa”.
Por outro lado, deve-se considerar que é comum, no Brasil, algu-
mas cidades, na intenção de demonstrar talvez um patriotismo descom-
pensado, terem seus nomes elaborados através da colagem de palavras e
morfemas do Tupi Antigo, por pessoas que, muitas vezes, não são conhe-
cedoras da “língua brasílica”, mas se consideram aptas a elaborar novas
denominações a partir da junção de palavras que encontram em dicioná-
rios. O que acontece, muitas vezes, é que são traídos por falsas analogias,
já que, como sabemos, tratando-se de línguas naturais, muitas vezes “dois
mais dois não são quatro”, isto é, ao juntarem-se morfemas e palavras,
o resultado pode ser uma palavra inexistente na língua, um frankenstein
tupinológico, por assim dizer.

16. FREIRE, Op. cit., p 12.


17. Doutora em Linguística, especialista em fonologia de Línguas Indígenas, pela Unicamp
e professora Titular do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB).
18. BUENO, F. da Silveira. Vocabulário Tupi-Guarani/Português. São Paulo: Brasilivros,
1982.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 217


Tratando mais detalhadamente estas “aberrações” com relação aos
topônimos, já identifiquei pelo menos dois tipos de falhas bastante co-
muns: o primeiro diz respeito àqueles nomes de lugares e cidades que, ape-
sar de serem formas encontradas em Tupi, seu significado é modificado,
talvez por serem acepções consideradas “feias” ou degradantes para nomear
as cidades. É o que acontece com o termo ´Araraquara´, palavra que, apesar
de constar nos dicionários com o seu real significado “buraco (ou toca) da
arara”, é ensinado nas escolas daquela cidade paulista com um significado
diferente: “cidade do sol, morada do sol” e ainda outras.19 Sinceramente,
não sei que problema haveria com o termo “buraco da arara”.
Outros tipos de falhas na utilização dos topônimos na língua Tupi se-
riam aqueles nos quais percebemos uma colagem descuidada propriamente
dita. Caso como este, observa-se no uso do termo em Tupi para uma cidade
do sul da Bahia, ´Ibitupã´. Perguntando a uma amiga ibitupanense se ela
sabia o significado do nome de sua cidade, espantei-me quando ela me res-
pondeu: “terra de Deus”. Aqui, o problema, além de linguístico, também
está na esfera antropológica. Vamos por partes: ´yby´ realmente significa
“terra”, e é este o único acerto do topônimo. ´Tupã´ não é “Deus”, mas “tro-
vão” e, por extensão, pode ser usado, em alguns contextos, para designar o
“deus do trovão”. A palavra para designar o que seria, para aqueles povos,
uma figura simbólico-mitológica mais ou menos correspondente ao que é,
na nossa cultura, Deus, seria ´Nhanderu´, em Guarani, e, por analogia, tal-
vez em Tupi Antigo fosse ´Nhanderuba´, porém, esta última palavra sem
registros linguísticos confiáveis. Encontramos ainda um terceiro problema
nesta palavra: em Tupi, a ordem dos termos no sintagma genitivo (sintag-
ma de posse) é sempre ‘possuidor-possuído’, ou seja, para conseguir um
sintagma que significasse “terra de Deus”, teríamos que compor ´Nhande-
ru´+ ´ibi´ (e grafar, de preferência com ´y´, já que esta é a chamada sexta
vogal, que não tem correspondente no sistema fonológico do português:
´Nhanderuyby´, em Guarani (em Tupi talvez fosse, então ‘Nhanderubyby’).
O Real significado de ´Ibitupã´ então, seria “trovão da terra”, e não “terra
de Deus”, como era a intenção de quem elaborou o topônimo.
Quanto à denominação da cidade de Itumbiara, como havia dito, tam-
19. Aqui, talvez, a divergência de interpretação seja resultado de uma segmentação deficiente
que aproximaria o termo ´quara´ não de buraco, mas de ´quarasy´ “sol”. Veja o que diz no
verbete ´Araraquara’: “Araraquara – s. O refúgio ou paradeiro das araras, o habitat das araras.
O bairrismo dos araraquarenses inventou que a palavra significa morada do sol, mas sem
nenhum fundamento”. BUENO, Op. cit., p. 54.

218 - Urdiduras da história


bém neste caso parece que estamos diante de um equívoco, porém, de outra
ordem. A palavra ‘itu’, que deveria ser grafada com ‘y’, como comentei, sig-
nifica cachoeira,20 porém, ‘mbiara’ refere-se ao adjetivo “preso, agarrado”,
porém, a denominação de “cachoeira cativa” não faz muito sentido. Sugiro,
então, que avaliemos a possibilidade de uma segmentação alternativa para
a palavra: existia, em Tupi Antigo, o verbo ‘tumbiá’ (assim grafado nos
dicionários), que significa “quebrar as ancas, derrear”, que se origina, por
derivação, de ‘tumbi’ “ancas, cadeiras, quadril, lombo.”21
Mencionei acima a grafia encontrada com acento agudo na sílaba final,
pois acredito que o autor possa ter grafado assim para indicar uma possível
consoante (neste caso, o tepe alveolar, ou seja, um tipo de “R”) em coda na
última sílaba, o que nos daria uma realização próxima de ‘tumbiar’. A coda
consonantal é comum nas palavras do Tupi Antigo, não só em verbos, mas
também em substantivos e adjetivos.22 Além disso, o Tupi Antigo, como foi
conhecido pelos europeus quando chegaram à América, indicava resquícios
de uma língua de caso marcada morfologicamente, cujo caso nominativo
(isto é, quando uma palavra funciona sintaticamente como sujeito de uma
sentença) era marcado pelo sufixo {-a}, o que resultava em palavras como
‘poranga’. Da mesma forma, o suposto verbo ‘tumbiar’ poderia realizar-se
como ‘tumbiara’ (neste caso, obviamente, o caso não seria nominativo, pois
um verbo raramente ocuparia a posição de sujeito de uma sentença). Esta
é, porém, somente uma hipótese.
Se minha hipótese estiver correta, então, teríamos ‘Itumbiara’ como
‘y’ rio (ou água, mas aqui, mais possivelmente indicando rio) + ‘tumbiar’,
resultando, portanto, em “rio quebrado, onde o rio se quebra, curva do
rio”, ou algo próximo disso.
Para finalizar, acredito que este topônimo, se não for originalmente
uma denominação Tupi, possa ter sido elaborado por alguém (com boas
intenções, mas poucas informações) que desejava, realmente, dar o nome
ao lugar de “caminho da cachoeira”, porém, não teve sucesso em sua em-
preitada. Para conseguirmos a expressão “caminho da cachoeira” teríamos
que usar ‘ytu’ + ‘tapé’, o que resultaria ‘Yturapé23’. Por outro lado, se é um
20. Segundo acepção de Silveira Bueno: “Itu – s. m. Salto, cascata, cachoeira. De y, água, rio;
tu, onomatopéia do estrondo das águas ao caírem do alto abaixo. BUENO, Op. cit., p. 164.
21. BUENO, Op. cit., p. 334.
22. Veja o caso de ‘porang’ “bonito, bom”; ‘potar’ “querer”.
23. Existe um processo fonológico que converte o “t” em “r” nestas junturas morfêmicas.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 219


nome de origem realmente Tupi (isto é, um lugar que, antes da invasão
europeia na América, já se denominasse ‘Ytumbiara’), neste caso, temos
dois significados possíveis: “cachoeira presa, agarrada” (para o caso de con-
siderarmos a segmentação ‘ytu’ “cachoeira” + ‘mbiara’ “agarrada”) ou uma
segunda opção, ‘y’ “rio” + ‘tumbiar’ “quebrar”, logo, “curva do rio” ou “onde
o rio quebra”, ficando a escolha da tradução mais adequada a critério de
quem a faça.

O olhar de Guigui sobre a cidade

Figura 3. Onofre Ferreira dos Anjos, Casa Adelino. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 77,5 cm x 47,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almeida.
Foto: PEREIRA, T. H.

Figura 4. Onofre Ferreira dos Anjos, Hotel central. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 83 cm x 53 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almeida.
Foto: PEREIRA, T. H.

A figura Casa Adelino e Hotel Central apresentam dois pontos do co-


mércio local na cidade. Ambas são recriações de fotografias com tempora-

220 - Urdiduras da história


lidades diferentes uma da outra. O hotel é o referencial turístico da cidade
neste período, e quem sai pela porta da frente se depara com a Praça da
República. Apesar do predomínio das cores frias, em Casa Adelino, Guigui
dá ênfase ao telhado, às portas e janelas. Embora ainda haja problemas com
a simetria, um senso de realismo nos remete ao telhado desalinhado dessa
arquitetura decadente do estilo colonial tardio. Ripas, caibros e madeiras
frágeis a sustentar telhas de cerâmica pesadas.
Tanto em Casa Adelino quanto Hotel Central aparece-nos um Guigui
preocupado em olhar a cidade com mais profundidade e perspectiva. Há
mais uma vez a presença do Padre Florentino Bermejo, e a insistência de
Guigui em recriar fotografias antigas. Haja vista o processo de restauração
de imagens fotográficas ainda não estar disponível na cidade de Itumbiara
na década de 1960, seria esse o desejo de Onofre, resgatar do apagamento
total, as fotografias de que ele mais gostava ou queria ele materializar o
ideal de mundo que ele enxergava apenas com seus olhos?

Eu sabia que aquelas imagens futuramente seriam apagadas da memó-


ria do povo. As pessoas não dão valor ao que é antigo, então meu único
pensamento era pintar tudo, pra deixar como recordação para a família,
porque eu sabia que tudo seria destruído logo, logo.24

Em seu depoimento percebemos a preocupação de Guigui com as


transformações urbanísticas ou com a finitude da sua visão das coisas. Gui-
gui tem uma relação saudosista da Praça da República, onde estão o padre
Florentino, seus amigos, a igreja, o cinema, o coreto, a banda e o horto de
azaleias. A notícia da construção de uma usina, jamais vista na região, e de
uma nova vila destinada a operários, entenda-se Vila de Furnas, poderia
ter despertado um sentimento de perda da identidade que lhe era habitual
naquele espaço. O artista deixa de contemplar o seu estar nesse ambiente
e passa a se ocupar com o futuro, o porvir. O que será daquele horto com
a chegada dos operários e quais as tensões que o leva a confundir o espaço
público da praça com o privilégio de seus familiares poderem recordar. E
recordar o que, se para ele, “as pessoas não dão valor ao que é antigo”.
A análise do conjunto visual das pinturas de Onofre Ferreira dos An-
jos possibilitou a compreensão de uma sociedade no espaço público da pra-
ça, onde estão afixadas marcas, traços e pistas que vão além das representa-
24. Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui).

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 221


ções e denunciam o mundo imaginado por um pintor saudosista com ideal
romântico. Pinturas e entrevistas fazem parte de um conjunto de fontes
capazes de produzir imagens para um passado imaginado, mas também
vivido por Guigui. Questionado sobre seu interesse em pintar a Praça da
República, bem como dos sujeitos apresentados em alguns de seus traba-
lhos Guigui relatou que,

O povo valorizava aquele ambiente alegre, com a vista bonita. As pes-


soas saiam de casa e iam pra praça, não tinha televisão, não tinha nada.
Trabalhei 50 anos muito tempo no cinema. Naquela época tínhamos
uns 25 mil habitantes ou menos na cidade, então tudo era meio pacato,
mas as pessoas se vestiam bem pra ir à praça e ao cinema que era na
praça. Eles se vestiam de terno e gravata... Eu era muito querido entre
as pessoas daqui, então eu queria mostrar para essas pessoas que eu tam-
bém gostava delas, e pensei que a forma que eu faria isso era prestando
uma homenagem a elas nas telas. Uma demonstração de carinho. As
pessoas pintadas são personagens reais.25

Em seu depoimento, Guigui traçou o perfil de uma comunidade preo-


cupada com a permuta. Sua relação com o espaço de pessoas e o querer
bem, o ambiente em que crianças jogam futebol, a poucos metros da fa-
chada do Cine Brasil, atrás da Igreja Santa Rita, o Cine Walter Barra,
paisagens entrecortadas que desafiam um tempo cronológico e linear.

Figura 3. Onofre Ferreira dos Anjos, Cine Walter Berra. s/data. 1 pintura, óleo
sobre seriguilha., 77,5 cm x 47,5. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T.H.

25. Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui).

222 - Urdiduras da história


Figura 4. Onofre Ferreira dos Anjos, Igreja Santa Rita. s/data. 1 pintura, óleo
sobre seriguilha, 80 cm x 50 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T.H.

Ah, a igrejinha ali... A igrejinha quando a gente entrava lá dentro cê sentia


que tava num ambiente sobrenatural, de tão bom que era viu. Eu ficava
encantado com aquilo viu, eu era mulecotinho, mas ficava encantado com
aquilo. É por isso viu!26

Tem-se na figura Igreja Santa Rita de Cássia um dos marcadores da


força da religião católica. A igrejinha, como falado por Guigui, se localiza-
va atrás do horto, entre as palmeiras.
A se ver diante da pintura de Guigui, Maria da Graça Rocha foi ques-
tionada sobre o que elas, as telas, lhes diziam. O que lhes mostravam e qual
a sensação de vê-las:

Tive a sensação de ter entrado na nossa igrejinha, de ter brincado na rua,


corrido e não ter perigo de nada. Porque criança hoje só brinca de com-
putador, não tem infância... Nós íamos muito em festa de barraquinha...
nós ajudamos a construir a igreja nova quando o Monsenhor Lima chegou
pra cá e ele fez... e tinha festa de barraquinha lá e saia muito dinheiro na
festa pra construir a igreja27

A relação de pertencimento de Maria da Graça a remeteu para as fes-


tivas barraquinhas promovidas pela igreja, na Praça da República, em prol
da arrecadação de fundos. Segundo Maria Aparecida Conti,

26. Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui).


27. Maria da Graça Rocha.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 223


podemos ver a presença da religião católica demarcada pela figura de um
padre, reconhecido pela indumentária característica de uma época, cha-
mada batina. Há também a fachada de um hotel, o que por certo marca
que a cidadezinha retratada na tela era um lugar de passagem, daí a neces-
sidade de um hotel para abrigar os viajantes. Além disso, pode-se visua-
lizar também a figura de um pedinte, que pode caracterizar um período
histórico, já que a questão da divisão das classes sociais também pertence
à história.28

Na figura Cine Walter Barra, há a predominância de uma pincelada


mais firme, reta, a acompanhar a arquitetura em alvenaria mais contempo-
rânea, com pé direito alto e marquise. As portas de metal de rolar denun-
ciam o progresso da indústria metalúrgica. Entende-se que não é preciso
identificar Itumbiara como parte integrante do ideal de globalidade mar-
cado pelo ritmo do processo de urbanização e modernização das grandes
cidades. Compreende-se a urbanização em Itumbiara nos aspectos arqui-
tetônico, político e social, limitados as suas próprias dinâmicas e especifi-
cidades, sendo impossível enquadrá-la, bem como seus acontecimentos e
seu processo a qualquer modelo externo a ela; ainda que seja observada a
influência desses modelos na constituição interna da cidade e das relações
de sociabilidade nela estabelecidas.

Figura 5. Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 I, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

28. Maria Aparecida Conti.

224 - Urdiduras da história


Figura 6. Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 II, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

Nas figuras Fórum em 1908 I e Fórum em 1908 II, percebe-se que, ao


pintar, Guigui denuncia um processo de coexistência do urbano com o
rural. Mais uma vez ao exemplo de aquarelistas do século XIX, Onofre
Ferreira dos Anjos elabora uma composição de cores e motivos do univer-
so rural quase sem contraste com a arquitetura moderna da edificação do
fórum da cidade. É alegre, porém não o suficiente para fazer sentir, embora
provoque questionamentos e possibilite descobertas lentas e progressivas.
Um olhar técnico certamente conseguiria perceber e distinguir as fases da
pintura deste artista, não é o nosso caso. Como em Jean-Baptiste Debret,
aqui há a representação quase borrada do carroceiro, de um vaqueiro; o ca-
valo, o gado de carga, o cachorro e o homem de terno e gravata. Uma casa
de sapê no canto esquerdo inferior do quadro II, o banheiro de alvenaria
de uma porta única pintado de branco, com telhado de palha nos fundos
do quintal do fórum.
Em Guigui o urbano parece estar em simbiose com o rural. Esse é o
modo como leio a confluência do uso das cores na arquitetura dos prédios e
das casas a se misturarem com as representações dos corpos dos sujeitos re-
presentados. A moderna urbanidade é mais flagrante na figura Cine Walter
Barra, a representar o lazer proporcionado pela ação civilizatória do cine-
ma, o neon, as fachadas do comércio, a tela grande imaginada projetando
toda a ordem de imagens, que poderíamos imaginar. Essas, selecionadas a
dedo pelo maquinista com o propósito de encantar o público espectador.
Observa-se ainda, nas figuras do fórum, a mudança na escolha das co-
res ao serem comparadas a I e a II imagens. A estrela na cúpula da fachada

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 225


do telhado frontal, assim como o nome fórum recebem entintagem aver-
melhada na primeira figura, e azulada na segunda. Também na primeira
figura, há por sobre a tinta laranjada uma faixa azul a destacar a fachada do
prédio. Já na figura de Fórum em 1908 II, além da ausência da coloração
azul na fachada do prédio, há entintagem vermelha na base/fundação do
edifício público. Ângulos, perspectivas, escolhas, diferentes ambientações
no horário do trabalho, a gerar pouca luz, ou apenas um descuido de um
artista autodidata e principiante? Saberia Guigui que, para além da von-
tade de resguardar algumas imagens para a posteridade de sua família, a
arte e sua crítica se comprometem pela técnica. Queria ele ser reconhecido
como um artista plástico ou como um guardador de memórias? Sabia ele
dos pressupostos academicistas que valoram, apagam, aplaudem e esque-
cem nomes e técnicas? São inúmeros os questionamentos que não se pode
responder nessa hora, mas como enunciado, provoca e faz refletir.

Referências

BUENO, F. da Silveira. Vocabulário Tupi-Guarani/Português. São


Paulo: Brasilivros, 1982.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo:


Editora 34, 2010.

FERREIRA, Josmar Divino; PINHEIRO, Antônio César Caldas. Santa


Rita do Paranahyaba: origem e desenvolvimento. História de Itumbiara,
v. 1, Itumbiara: Edição de autor, 2009.

FRANCO, Itumbiara 70 anos: acompanhando o progresso de Goiás,


s/d.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São


Paulo: Cia das Letras, 1987.

NOVIK, Alicia. El urbanismo en las historias de la ciudad. Registro. Re-


vista de Investigación del Centro de Estudios Históricos Arquitectónico-
-Urbanos. Mar del Plata: FAU-UNMDP, n. 1, p. 6-26, 2003.

226 - Urdiduras da história


OLIVEIRA, Hamilton Afonso. A Construção da riqueza no Sul de
Goiás –1835-1910. Franca. 2006. 231f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Estadual Paulista, Franca, Brasil.

PEREIRA, Túlio Henrique. Iconografia na História Regional: a cons-


tituição identitária de sujeitos itumbiarenses a partir do espaço público da
Praça da República (1950-1980). Itumbiara: UEG, 2007.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade? São Paulo: Brasiliense, 1985.

_____. História Urbana: História da Cidade? In: FERNANDES, Ana;


GOMES, Marco Aurélio de Filgueiras. Cidade e História. Modernização
das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: UFBA, 1992.

Fontes

Onofre Ferreira dos Anjos, Pça da República em 1934. s/data. 1 pintura,


óleo sobre seriguilha., 78,5 cm x 49,5. Coleção Museu Major Militão Pe-
reira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

Onofre Ferreira dos Anjos, Coreto. s/data. 1 pintura, óleo sobre serigui-
lha., 78,5 cm x 49,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Almei-
da. Foto: PEREIRA, T. H.
Onofre Ferreira dos Anjos, Casa Adelino. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 77,5 cm x 47,5 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de
Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

Onofre Ferreira dos Anjos, Hotel central. s/data. 1 pintura, óleo sobre
seriguilha., 83 cm x 53 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de Al-
meida. Foto: PEREIRA, T. H.

Onofre Ferreira dos Anjos, Cine Walter Berra. s/data. 1 pintura, óleo
sobre seriguilha., 77,5 cm x 47,5. Coleção Museu Major Militão Pereira
de Almeida. Foto: PEREIRA, T.H.

Onofre Ferreira dos Anjos, Igreja Santa Rita. s/data. 1 pintura, óleo so-
bre seriguilha, 80 cm x 50 cm. Coleção Museu Major Militão Pereira de

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 227


Almeida.

Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 I, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

Onofre Ferreira dos Anjos, Fórum em 1908 II, s/d, óleo sobre seriguilha,
s/d. Museu Major Militão Pereira de Almeida. Foto: PEREIRA, T. H.

Entrevistas

Onofre Ferreira dos Anjos

Maria da Graça Rocha

Maria Aparecida Conti

Letícia Tavares de Faria

228 - Urdiduras da história


A visão da pena dos memorialistas sobre os
indígenas do antigo Sertão da Farinha Podre dos
séculos XVIII e XIX

Robert Mori

Este capítulo tem por objetivo apresentar algumas considerações so-


bre as obras de memorialistas que se debruçaram sobre a história do an-
tigo Sertão da Farinha Podre (nome pelo qual eram conhecidas as atuais
mesorregiões do Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba, na pri-
meira metade do século XIX). São eles: Antônio Borges Sampaio, Hilde-
brando Pontes, José Mendonça e Edelweiss Teixeira. Analisarei, a partir
das reflexões desses intelectuais, o processo histórico vivenciado pelos
indígenas que habitavam a região compreendida entre os Rios Grande e
Paranaíba nos séculos XVIII e XIX, ou que para ela foram trasladados de
diferentes partes da América portuguesa com o objetivo de guerrearem
contra os Kayapó do sul.
A produção dos memorialistas mostra-se como uma fonte importan-
te para os historiadores na medida em que aqueles, na maioria das vezes,
foram os primeiros a registrar aspectos da história de uma determinada
cidade ou região: desde os seus primeiros habitantes – os indígenas –, até
os fundadores, a formação da população, as datas importantes, os parti-
dos e as disputas políticas, a economia, alguns personagens marcantes e,
até mesmo, os aspectos da geografia do município.
O memorialista, segundo as reflexões da historiadora Sandra Mara
Dantas,

[...] não é um sujeito qualquer. Geralmente é alguém reconhecido na


comunidade (ou em uma fração dela), de grata posição social, distinção
intelectual e estreita vinculação com a localidade (embora não necessa-
riamente natural dela). E por esses quesitos é reconhecido como apto a
narrar a história da cidade, evitando o esquecimento e conservando a es-
sência do passado como positiva. Na maioria das vezes, os memorialistas
não têm formação acadêmica em História, nem trabalham com essa área
do conhecimento.1

Para a escrita deste texto, selecionei a obra mais conhecida dos me-
morialistas citados. A ordem de apresentação das publicações e de seus
autores respeitou tanto a cronologia das produções aqui analisadas, quan-
to o momento de nascimento dos respectivos autores. A primeira de-
las é “Uberaba: história, fatos e homens”, de Antônio Borges Sampaio.
Nascido em Portugal, em 1827, Sampaio chegou ao porto de Santos em
1844. Aos 20 anos, mudou-se para Uberaba. Foi comerciante, farmacêu-
tico, desempenhou cargos na instrução pública, atuou como advogado,
tenente-cirurgião da Guarda Nacional, vereador, agente dos Correios,
noticiarista, correspondente do Arquivo Público Mineiro e foi membro
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
“História de Uberaba e a civilização no Brasil Central” é de autoria
de Hildebrando Pontes, nascido em 1879, em Conquista, Minas Gerais.
Foi caixeiro, engenheiro agrônomo, articulista do jornal Lavoura e Co-
mércio, autor de diversos trabalhos sobre a história de Uberaba, vereador
e diretor de instrução pública. A terceira obra selecionada é “História de
Uberaba”, de José Mendonça, nascido em 1904. Único natural de Ube-
raba, foi advogado, professor de Literatura, Língua Portuguesa, História
e Direito Civil, além de jornalista e autor de diversos livros e artigos de
jornal. Por fim, o livro “O Triângulo Mineiro nos Oitocentos (séculos
XVIII e XIX)” é de autoria de Edelweiss Teixeira, nascido em 1909.
Natural de Pouso Alegre (MG), mudou-se em 1943 para o Triângulo
Mineiro. Formado em Medicina, Odontologia e Música, foi reitor, pro-
fessor, inspetor de ensino e folclorista.
Convém salientar que as três obras iniciais tiveram sua primeira edi-
ção lançada na década de 1970, enquanto, a última delas, de autoria de
Teixeira, é datada de 2001. Todas foram publicadas após o falecimen-
to de seus respectivos autores, sendo o trabalho de José Mendonça uma
1. DANTAS, Sandra Mara. A memória como sinônimo de história: a produção dos me-
morialistas no Triângulo Mineiro. In: GOMES, Marcos Antônio Silvestre; DANTAS,
Sandra Mara. Olhares cruzados: política e dinâmicas sociais no Triângulo Mineiro. Jun-
diaí: Paco Editorial, 2018, p. 33.

230 - Urdiduras da história


compilação de artigos publicados no já mencionado jornal “Lavoura e
Comércio”.
Dentre os quatro memorialistas citados, apenas José Mendonça tra-
balhava diretamente com História, exercendo a docência nessa área do
conhecimento. Os demais não tinham nem formação, nem se dedicavam
ao ensino da disciplina. Isto não quer dizer que se descuidavam do tra-
balho de pesquisa ou que não estivessem dialogando com as referências
da época. Hildebrando Pontes e Edelweiss Teixeira são exemplos disso.
Ainda que críticas possam ser feitas, por exemplo, à menção das fontes
(orais ou escritas) utilizadas pelos memorialistas, muitas vezes nem cita-
das ou citadas de forma incompleta, nota-se um cuidado da parte deles
em tentar fundamentar seus textos em trabalhos anteriores, incorporando
ou criticando as análises de outros autores coevos, inclusive “dialogando”
ou utilizando reflexões de outros memorialistas escritas anos antes.
Sampaio, como um homem do século XIX, objetivando garantir a
importância do seu texto, se fiava dos relatos de alguns “dos primeiros
‘entrantes’” que transmitiram a ele “informações valiosas, de que já me
tenho utilizado em outros escritos, constituindo tradições seguras no as-
sunto”.2 Obviamente, essa perspectiva histórica se coaduna com a visão
dos não-indígenas, daqueles primeiros geralistas3, pois, para os indíge-
nas, o contato se descortinou de forma diferente, como veremos adiante.

Os indígenas na história do Sertão da Farinha Podre

A análise realizada neste capítulo se dará a partir da cronologia dos


fatos históricos apresentados na perspectiva dos memorialistas. São eles: o
contato e a guerra entre os Kayapó do sul e os luso-brasileiros nos séculos
XVIII e XIX; a criação entre os Rios Grande e Paranaíba de aldeamentos,
a partir da deliberação da Coroa para que indígenas fossem trasladados de
diferentes partes da América portuguesa com o intuito de mover guerra
2. SAMPAIO, Antônio Borges. Uberaba: história, fatos e homens. Uberaba: Arquivo Pú-
blico de Uberaba, 2001.
3. Geralistas eram migrantes oriundos da região mineradora da capitania de Minas Gerais.
Com o esgotamento das terras e queda da produção do ouro, se dirigiram às regiões adja-
centes em um processo iniciado na década de 1760. Buscavam terras para a agropecuária.
Sobre isto, ver: LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. A oeste das minas: escravos,
índios e homens livres numa fronteira oitocentista, Triângulo Mineiro (1750-1861). Uber-
lândia: EDUFU, 2005.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 231


àqueles Kayapó do sul; e, por fim, o processo de espoliação das terras al-
deanas a partir da expansão geralista.
Dos memorialistas citados, Hildebrando Pontes é o que mais “dialo-
ga” com as produções da época sobre a arqueologia e história indígenas.
Ainda que hoje a grande maioria delas estejam datadas, são essenciais para
compreendermos como se deu a construção e evolução do conhecimento
nestas áreas. Na parte III de seu livro, em que discute a etnologia, o contato
interétnico e o “povoamento” do Triângulo Mineiro, Pontes cita quinze
autores, discordando deles ou utilizando seus escritos como fontes. Dessa
forma, isso exprime uma clara demonstração de que era um leitor ávido,
evidenciando também a preocupação do intelectual de incorporar na sua
obra as discussões mais recentes do final do século XIX e início do XX.
Pontes é o único dos memorialistas que inicia suas reflexões buscan-
do traçar a origem do homem americano, a possível “gênese” dos povos
indígenas que habitaram as regiões do atual Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, como os Kayapó do sul e os Araxá4, além da conhecida – e
bastante discutida na época em que ele pesquisava e escrevia suas obras
­– dicotomia entre Tupis e Tapuias.5 Não é meu intuito promover uma
discussão sobre esses pontos levantados pelo memorialista, uma vez que
escapariam daquilo que propus no início deste texto. Contudo, elas são
interessantes por demonstrar como um homem que vivia no interior, no
“sertão”, distante dos grandes centros urbanos, conseguiu ter acesso a
essas obras e, mesmo não sendo um especialista, incorporá-las de forma
competente em suas reflexões.
Sobre os Kayapó do sul, os habitantes que os luso-brasileiros encon-
traram no atual Brasil central nos séculos XVII e XVIII, Pontes afirmou
que eram “inteligentes”, participantes de uma “eterna guerra de morte
que sustentaram com os bandeirantes e colonos portugueses, opondo um
dique formidável à civilização do Brasil Central”6; assim, constituíram “o
4. Uma crítica a esta perspectiva pode ser encontrada em: MORI, Robert. À luz de do-
cumentos e memórias: uma nova interpretação histórica dos Araxá – os indígenas da terra
“onde primeiro se avista o Sol”. Revista Projeto História, São Paulo, v. 71, p. 208-238,
mai.-ago. 2021.
5. Sobre a divisão dos povos indígenas entre tupis e tapuias, ver: MONTEIRO, John.
Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese
(apresentada para o concurso de Livre Docência). Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2001.
6. PONTES, Hildebrando. História de Uberaba e a civilização no Brasil central. Uberaba:

232 - Urdiduras da história


terror da zona, pelos seus constantes ataques a fazendeiros estabelecidos e
viajantes.” José Mendonça, mencionando a mesma guerra que opôs indí-
gena e não-indígenas, utilizou o termo “ferozes” para designar os Kayapó
do sul, ao mesmo tempo que os considerou como “intrépidos, altivos e
magníficos”.7
Tal conflito, segundo a visão de Teixeira, foi causado pela “vingança
de seus irmãos trucidados”, fazendo-os “tornarem-se grandes inimigos
dos viandantes na estrada” [Caminho dos Goiases].8 Para Pontes, a causa
do contato conflituoso foi a tentativa dos luso-brasileiros de tentar redu-
zir os indígenas ao cativeiro, uma vez que os Kayapó do sul foram “ami-
gos” dos colonos antes da longa guerra travada em quase seis décadas.9
Por sua vez, o memorialista Sampaio10 dedica algumas palavras somente
aos Kayapó do sul do início do século XIX, quando o contexto histórico
da região era diferente do período Setecentista, como veremos adiante.
Destas primeiras citações, algumas considerações precisam ser apon-
tadas e discutidas. A primeira delas diz respeito àquilo que Pontes men-
cionou como um “dique”, ou seja, um impedimento, algo que “represava”
a expansão da “civilização”, imposto pelos Kayapó do sul. Recorrendo a
Dantas, a noção de “civilização” na obra de Pontes está relacionada ao
fato de Uberaba estar localizada no centro do país, uma região que ele
entendeu ser o “lócus da civilização”.11
Mesmo reforçando esta dicotomia entre civilização e barbárie, nas
obras dos memorialistas há aspectos propriamente humanos nos indíge-
nas, características nem sempre reconhecidas por homens contemporâ-
neos a eles: os Kayapó do sul são belos, capazes, corajosos, ainda que con-
siderados “ferozes”, ou seja, dotados do instinto de feras, de “selvagens”.
Eles não foram os causadores da guerra interétnica, mas responderam às
agressões dos luso-brasileiros para vingarem aqueles indígenas que foram
aprisionados ou mortos nas expedições de guerra dos não-indígenas.

Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1978, p. 20.


7. MENDONÇA, José. História de Uberaba. Uberaba: Academia de Letras do Triângulo
Mineiro: Bolsa de Publicações do Município de Uberaba, 2008, p. 13.
8. TEIXEIRA, Edelweiss. O Triângulo Mineiro nos Oitocentos (séculos XVIII e XIX).
Uberaba: Intergraff Editora, 2001, p. 32.
9. PONTES, Op. cit., p. 20.
10. SAMPAIO, Op. cit.
11. DANTAS, Op. cit., p. 46.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 233


Esses realmente foram alguns dos motivos apontados por pesquisado-
res do final do século XX que trabalharam com fontes setecentistas produ-
zidas neste ambiente conflituoso entre luso-brasileiros e indígenas: Jézus
Marco de Ataídes sustentou a tese da defesa do território.12 Odair Giral-
din, a partir de um diálogo entre a Antropologia e a História, vai além,
defendendo não só a prática da vingança, como também a realização de
cerimônias e a aquisição de bens materiais.13
Mais recentemente, Marcel Mano propõe a interpretação do contato
Kayapó do sul a partir de duas perspectivas: de uma visão sociocosmológica
em um primeiro momento e, posteriormente, os indígenas atuando como
agentes conscientes de um novo tempo (histórico) que então se descorti-
nava.14 A mediação entre o mundo Kayapó do sul e o mundo exterior seria
feito então a partir da guerra15, perspectiva semelhante a outros povos da
família Jê.16
Pontes afirmou que nem sempre os Kayapó do sul foram inimigos dos
luso-brasileiros, pois houve uma relação amistosa só desfeita quando os
não-indígenas “os jugulou ao cativeiro”.17 Infelizmente, Pontes não men-
cionou as fontes às quais ele teve acesso para fazer tal afirmação. Sobre essa
possível relação apontada por Pontes, o historiador John Monteiro, déca-
das mais tarde, em seu clássico “Negros da terra” (obra apoiada em farta
documentação), propõe essa mesma possibilidade, quando o autor afirmou
que cativos não-Kayapó podem ter sido fornecidos pelos Kayapó do sul
aos bandeirantes.18 Tal cenário só foi modificado quando duas grandes ex-
pedições foram derrotadas pelos indígenas em 1608 e 1612, momento em

12. ATAÍDES, Jézus Marco de. Sob o signo da violência: colonizadores e Kayapó do Sul no
Brasil Central. Goiânia: Editora UCG, 1998.
13. GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil
Central. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
14. MANO, Marcel. Contato, guerra e paz: problemas de tempo, mito e história. Revista de
Ciências Sociais – Política & Trabalho, João Pessoa, n. 34, p. 193 – 212, abr. 2011.
15. MANO, Marcel. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre os Kayapó.
Revista Tellus, ano 12, n. 22, p. 133 – 154, jan.-jun., 2012.
16. MORI, Robert. Mundos em transformação: guerras e alianças entre os Jê e os luso-bra-
sileiros nos sertões da América portuguesa – século XVIII. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020.
17. PONTES, Op. cit., p. 20.
18. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

234 - Urdiduras da história


que os Kayapó do sul passaram a ser objeto de hostilidade por parte dos
portugueses, dirigindo-se ao sertão para evitar um contato mais contínuo
(o que só voltaria a ocorrer mais de um século depois com a descoberta das
minas goianas, em 1725).19
Outra questão levantada pelos memorialistas foi a guerra contra os
Kayapó do sul capitaneada por uma figura emblemática do século XVIII:
o famoso sertanista Antônio Pires de Campos.20 Nesse ponto, percebe-se
uma grande semelhança entre a narrativa de Pontes e de Mendonça (pro-
vavelmente este teve acesso aos manuscritos daquele). Ambos afirmaram
que os moradores de Goiás tinham recorrido à Câmara de Cuiabá para que
enviasse socorro a eles. Pontes afirmou que isto se deu na primeira ação de
Pires de Campos21, pois o memorialista já defendia que, em 1748, o segun-
do contrato foi firmado diretamente com o governador de São Paulo. Por
sua vez, Mendonça não faz distinção quanto às datas.
No entanto, conforme a documentação da época retrata, Goiás, até
1748, era parte integrante da capitania de São Paulo. Portanto, as delibe-
rações a respeito da guerra eram oriundas de São Paulo e não de Cuiabá,
ainda que a “solução” na visão dos moradores goianos que desejavam a
guerra aos Kayapó do sul realmente residissem nessa localidade: Angelo
Preto, que declinou do convite, e Antônio Pires de Campos, que aceitou
o perigoso trabalho. A ordem para a guerra, autorizada por meio de uma
resolução Real, se deu em maio de 1744. Dois anos depois, em 1746, uma
Real ordem estipulou as condições para que o ajuste fosse firmado, sendo
o contrato assinado em julho de 1748, na Vila de Santos, momento em
que foi repassado o regimento que Pires de Campos deveria obedecer no
combate aos Kayapó do sul.
A guerra aos Kayapó do sul e a criação dos aldeamentos são temas
que os memorialistas geralmente dedicam um maior interesse. Pontes
afirmou que, na segunda investida de Pires de Campos contra os Kayapó
do sul, em 1748, seu exército era composto por indígenas Bororo, Parecí,
Karajá, Javaé e Tapirapé, cujo contingente era composto por 500 indíge-

19. MONTEIRO, Op. cit.


20. Sobre isto, ver: MORI, Robert. Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases:
guerra e etnogênese no “Sertão do Gentio Cayapó” (Sertão da Farinha Podre) – séculos
XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de Uber-
lândia, Uberlândia, 2015.
21. PONTES, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 235


nas.22 Provavelmente o memorialista se baseou na obra Oitocentista do
viajante Auguste de Saint-Hilaire, ainda que não tenha dado crédito ao
francês23. Pesquisa recente24 aponta que o número de indígenas susten-
tados por Pires de Campos na criação de Rio das Pedras (atual cidade de
Cascalho Rico), era de, aproximadamente, 300 indivíduos entre mulhe-
res, homens e crianças, sendo 80 os que manejavam flechas e armas de
fogo, ou seja, os guerreiros.25
Quanto aos demais povos indígenas reunidos nos aldeamentos e sí-
tios indígenas localizados no Triângulo Mineiro, entre os Rios Grande e
Paranaíba, realmente, pequenos contingentes de Karajá, Javaé e Tapirapé
foram deslocados para essa região entre fins da década de 1740 e início
de 1750, além de casais de indígenas dos aldeamentos de São Paulo, pos-
sivelmente de origem tupi-guarani, e de um contingente expressivo de
Xakriabá, do antigo norte goiano, atual Tocantins a partir de 1775.26 A
maioria desses indígenas não foi deslocada para o Rio das Pedras, mas
para o primeiro aldeamento criado após a desanexação de Goiás entre
1750 e 1751: Santa Ana do Rio das Velhas (atual cidade de Indianópolis).
Para os memorialistas, após a instalação de Pires de Campos no Ca-
minho dos Goiases, com as ações preventivas e de revide aos ataques dos
Kayapó do sul, eles foram expulsos definitivamente27 ou dispersados para
oeste (na confluência dos Rios Grande e Paranaíba), leste e noroeste de
Minas Gerais ou para regiões de Goiás.28 Tal afirmação não condiz com
algumas fontes produzidas em períodos posteriores a 1748, data da insta-
lação do exército indígena Bororo e Parecí e do próprio Pires de Campos,
que relatam ataques ao longo do Caminho dos Goiases entre as décadas
de 1740 e 1770.
É o caso da incursão guerreira dos Kayapó do sul que culminou no
desmantelamento dos Araxá, entre os anos de 1749 e 175029 ou o do ataque
22. PONTES, Op. cit.
23. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
24. MORI, Op. cit.
25. MORI, Op. cit.
26. MORI, Op. cit.
27. MENDONÇA, Op. cit.
28. PONTES, Op. cit.
29. Carta do governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos, D. Marcos de Noro-
nha, ao rei D. José [...]. (24/01/1751). AHU – Caixa: 6, Documento: 465.

236 - Urdiduras da história


a dois sítios utilizados por viajantes localizados próximos ao aldeamento de
Santa Ana do Rio das Velhas.30 Outro equívoco por parte dos memoria-
listas diz respeito à fundação de 18 aldeias coloniais ao longo do Caminho
dos Goiases, creditadas à iniciativa de Pires de Campos. Na verdade, o
sertanista fundou, no período em que residiu no atual Triângulo Mineiro,
entre 1748 e 1751, o aldeamento particular de Rio das Pedras, sustentado
exclusivamente por ele.
Rio das Pedras foi criado enquanto Goiás estava sob jurisdição de São
Paulo. O primeiro aldeamento edificado na capitania de Goiás, ou seja,
após o ano de 1748, foi Santa Ana do Rio das Velhas, cuja obra foi liderada
pelo padre jesuíta José de Castilho a mando do primeiro governador goia-
no, Dom Marcos Noronha, para receber os indígenas Araxá que, como já
foi mencionado, não chegaram a ser aldeados, pois foram desmantelados
pelos Kayapó do sul.31
Os demais núcleos indígenas, sempre localizados às margens do Ca-
minho dos Goiases, foram criados a partir de Rio das Pedras e de Santa
Ana do Rio das Velhas. Recorrendo, neste momento, às reflexões de Luís
Augusto Bustamante Lourenço, aqueles que possuíam capelas podem ser
considerados como aldeamentos oficiais, uma vez que a presença do tem-
plo religioso pode ser compreendida como sinal de oficialidade.32 São eles
além de Rio das Pedras e de Santa Ana do Rio das Velhas, Lanhoso, São
Domingos, Estiva e Piçarrão. Os núcleos indígenas de Boa Vista, Rocinha,
Uberaba Falso e Baixa poderiam ser enquadrados na categoria de “sítios
indígenas”, pois não contavam com capelas e foram “resultado da dispersão
espontânea da população [aldeada], ao longo da faixa de terras aldeanas, a
partir dos aldeamentos verdadeiros”.33
O número de 18 aldeias, citado pelos memorialistas34 provavelmente
foi retirado da obra “Brasil, Novo Mundo”, do viajante alemão Wilhelm L.
Von Eschwege, que percorreu o antigo Sertão da Farinha Podre logo após
a desanexação desta região de Goiás para Minas Gerais, em 1816, sendo

30. Ofício do governador e capitão-general de Goiás, João Manuel de Melo, ao secretário ao


secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado [...].
(22/06/1767). AHU – Caixa: 23, Documento: 1440.
31. Sobre os Araxá setecentistas, ver: MORI, Op. cit.
32. LOURENÇO, Op. cit.
33. LOURENÇO, Op. cit., p. 87-8.
34. PONTES, Op. cit.; TEIXEIRA, Op. cit.; MENDONÇA, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 237


incumbido pelo governador da última capitania de percorrer e de conhecer
os novos limites mineiros. Segundo Eschwege (1996, p. 127), os aldeados
promoveram uma contagem dos núcleos indígenas existentes no Caminho
dos Goiases e sua respectiva população e logo após remeteram tal número,
juntamente com uma queixa contra a invasão de suas terras que era chefia-
da pelo então capitão Antônio Eustáquio da Silva e Oliveira35, a partir da
concessão de sesmarias, como discutiremos adiante.
Teixeira divide a fundação destes aldeamentos e sítios indígenas em
duas fases: a primeira delas sendo aquelas fundadas pelo sertanista Pires de
Campos, a partir de 1742, totalizando 17; já a segunda “fase” compreen-
dendo a fundação da aldeia colonial de Santa Ana do Rio das Velhas, em
1750, pelo padre jesuíta José de Castilho.36 Por sua vez, Pontes e Mendon-
ça apontam que a fundação das 18 aldeias foi obra de Pires de Campos. La-
mentavelmente equivocam-se os memorialistas em datas ou na fundação
dos aldeamentos e sítios indígenas.
Realmente, a edificação do aldeamento de Santa Ana foi obra do ina-
ciano José de Castilho. Os outros aldeamentos e sítios indígenas não fo-
ram criados exclusivamente por Pires de Campos. Vejamos um exemplo:
Uberaba Falso, sítio criado às margens do Caminho dos Goiases e próximo
ao Rio Uberaba, foi fundado no início do século XIX, quase sessenta anos
após a morte de Pires de Campos. Conforme uma carta do governador
de Goiás, Dom Francisco de Assis Mascarenhas, endereçada ao vigário e
regente do aldeamento de Santa Ana do Rio das Velhas, o dirigente afir-
mou que o “estabelecimento na Uberaba Falso não pode deixar de ser de
muita utilidade para os passageiros e grande lucro para os índios, que lá se
arrancharem”.37
Quanto à data de fundação de Rio das Pedras, ela se deu em 1748 e o
Regimento que balizou a atuação de Pires de Campos na guerra aos Kaya-
pó do sul, entregue ao sertanista quando assinou o ajuste com o governador
de São Paulo, é esclarecedor neste sentido. No primeiro item, foi determi-
nado ao sertanista que ele e seu exército indígena se estabelecessem na pa-

35. ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos e Culturais; Fundação João Pinheiro, 1996.
36. TEIXEIRA, Op. cit.
37. Cartas e ofícios do capitão-geral da província e diversos. Arquivo Histórico do Estado de
Goiás, Livro 03 – 1804/1809 –, folha 31. Transcrito no “Guia Origens de Uberaba”, 1995,
folha 114.

238 - Urdiduras da história


ragem conhecida como Rio das Pedras. Segundo Dom Luís Mascarenhas,
os próprios Bororo e Parecí haviam feito o pedido, uma vez que aquele sítio
era “muito abundante de cocos, caças, peixe e várias ervas e raízes, de que
[...] se sustentam”.38
Como foram os Bororo e Parecí que escolheram o local para a constru-
ção de Rio das Pedras, percebe-se uma clara evidência da agência indígena,
pois Pires de Campos residiria em um local escolhido pelos membros de
seu exército. Isso demonstra tanto a dependência do sertanista, quanto da
Coroa portuguesa do trabalho que era desempenhado pelos indígenas que,
por desejarem se estabelecer entre os Rios Grande e Paranaíba, possivel-
mente, já conheciam a região em questão, talvez percorrendo-a em 1742,
naquele primeiro momento de guerra aos Kayapó do sul.
Convém ressaltar que a criação desses aldeamentos, em meados do
século XVIII, teve reflexo direto em uma ampla discussão ocorrida a partir
da segunda década do século XIX, quando a expansão geralista no atual
Triângulo Mineiro foi intensificada. A principal questão girava em torno
da extensão das terras dos aldeamentos, ou “terras aldeanas”, como são
mencionadas nas obras consultadas. Segundo três dos quatro memorialis-
tas, as terras dos aldeamentos se estendiam por uma légua e meia de cada
lado do Caminho dos Goiases, entre os Rios Grande e Paranaíba.39 Por
sua vez, Sampaio afirmou que o tamanho das terras aldeanas correspondia
a meia légua de cada lado da via colonial que ligava São Paulo à Vila Boa40
(atual cidade de Goiás, Goiás).
Quando ficou acertado o ajuste entre Pires de Campos e o governa-
dor de São Paulo, o monarca português determinou que não somente ao
sertanista seria concedida uma sesmaria, mas também aos indígenas que
compunham seu exército seria doada uma “necessária para situar e susten-
tar a aldeia, conforme o número dos índios”.41 A sesmaria em questão teria

38. Cópia do regimento que há de observar o coronel Antônio Pires de Campos no esta-
belecimento dos Bororos [...], datado de 15/07/1748, constante na Carta do governador e
capitão-general da capitania do Rio de Janeiro, D. Luís Mascarenhas, ao rei [D. João V]
sobre as estratégias para combater os índios Caiapós [...], Vila e praça de Santos, 12/09/1748.
Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate – Rede Memória - AHU_ACL_CU_023,
caixa 3, documento 233.
39. PONTES, Op. cit.; TEIXEIRA, Op. cit.; MENDONÇA, Op. cit.
40. SAMPAIO, Op. cit.
41. Cópia de uma carta do rei Dom João V, ao governador e capitão-general de São Pau-
lo, Dom Luís Mascarenhas datada de 08/05/1746, constante no “Ofício do sindicante,

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 239


a extensão de três léguas em quadra. Cada légua de sesmaria, uma medida
de superfície, corresponde a 6.600 metros por 6.600 metros42. Em uma
carta endereçada ao rei Dom João V, Dom Luís Mascarenhas informou
que já havia encaminhado a “carta de sesmaria por assim me requerer o dito
Campos e Vossa Majestade o ordenar na mesma Real Ordem”.43
Caso tenhamos como ponto de partida para análise do tamanho das
“terras aldeanas” aquelas que pertenciam aos indígenas trasladados de dife-
rentes partes da América portuguesa e reunidos nos aldeamentos e sítios ao
longo do Caminho dos Goiases, como aquela sesmaria doada aos Bororo,
Parecí e a Pires de Campos (três léguas), teremos a extensão de uma légua e
meia para cada lado daquela via colonial. Posteriormente, com a fundação
de Santa Ana do Rio das Velhas, deve ter sido concedida a mesma extensão
de terras para os indígenas lá aldeados a partir de 1750, pois este núcleo
foi instituído a partir de uma ordem do governador goiano. Ademais havia
uma tradição das autoridades coloniais em conceder três léguas de extensão
para a edificação de aldeamentos.44
Conforme o exemplo do sítio de Uberaba Falso, criado a partir da
autorização do vigário e regente do aldeamento de Santa Ana do Rio das
Velhas, havia uma “dispersão” dos indígenas ao longo do Caminho dos
Goiases feita de forma ordenada (e autorizada). Assim, como era costu-
me a concessão de três léguas de terras para o estabelecimento de núcleos
indígenas, e havia, às margens do Caminho dos Goiases, 18 deles (entre
aldeamentos e sítios), boa parte da faixa de terras entre os Rios Grande e
Paranaíba era indígena.45 A principal questão é que, até o presente, não foi
encontrado nenhum documento que comprove a doação de terras aos sítios
e aldeamentos, com exceção de Rio das Pedras. Isto não quer dizer que
eles não existiram. Tal perspectiva vai ao encontro da tradição corrente no
século XIX e afirmada por uma parte dos memorialistas citados, salva feita
desembargador Manuel da Fonseca Brandão, ao [secretário de estado da Marinha e Ul-
tramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado] [...]” (26/11/1763). AHU – Caixa: 19,
Documento: 1191.
42. BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás em 1783. Goiânia: ICBC,
2010.
43. Carta do governador e capitão-general da capitania do Rio de janeiro, D. Luís Mascare-
nhas, ao rei D. João V [...]. (12/09/1748). AHU – Caixa: 3, Documento: 233.
44. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura
nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
45. MORI, Op. cit.

240 - Urdiduras da história


a afirmação de Sampaio, conforme analisaremos adiante.
Ainda sobre Antônio Pires de Campos, uma questão sempre pairou
sobre a causa de sua morte. A versão mais corrente, até mesmo por alguns
historiadores46, corógrafo47 e memorialistas, é de que em seu “último com-
bate contra os caiapós, recebeu uma flechada, vindo a falecer em Paracatu,
em consequência do ferimento.”48 Inclusive, Toledo Piza, em “Documen-
tos Interessantes”, chegou a afirmar que o falecimento do sertanista havia
ocorrido em 1755.49 Por sua vez, Teixeira afirmou que a causa da morte
de Pires de Campos, extraída de um livro de registros de sepultamento da
Igreja Matriz de Paracatu, cuja cópia estaria em poder do Arquivo Público
Mineiro, ocorreu em 04 de novembro de 1751, sendo a causadora uma
malina “hoje chamada sepcemia [sic]”.50
Em primeiro lugar, a morte do sertanista carregou consigo uma “len-
da”: ela teria sido causada por uma flechada desferida por um Kayapó do
sul, povo indígena que Pires de Campos lutou contra por mais de dez anos
para tentar subjugá-lo. Caso isto tivesse ocorrido, seria uma ironia do des-
tino. Realmente, o sertanista foi flechado, mas não por um Kayapó do sul:
entre os anos de 1750 e 1751, ele comandou uma expedição até a atual Ilha
do Bananal, objetivando atacar aldeias e escravizar indígenas. Na memória
dos Karajá no ano de 1775, data em que celebraram um pacto com a Coroa
Portuguesa, este evento estava bem vivo:

Haverá 20 annos que a este continente, veio o defunto Coronel Antonio


Pires, que tratando esta nação [Karajá] debaixo de paz, e amizade alguns
dias, no fim destes, lhe deu de improviso na principal aldeia, e não dando
vida aos próprios inocentes, de cujos gemidos ainda hoje soão os echos
nos ouvidos d’estes mizeráveis não podendo referir estas justas queixas,
sem que as lagrimas testemunhem a sua dôr: feito este estrago, apanhou
muitos prizioneiros, que conduziu em correntes para seus cativos.
46. KOK, Glória Porto. O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século
XVIII. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2004; GIRALDIN, Op. cit.
47. CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do
Reino do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1976.
48. MENDONÇA, Op. cit., p. 218.
49. Annexo I. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Bandos
e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. São Paulo: Typographia Aurora, Volume XIII,
1895, p. 282-7.
50. TEIXEIRA, Op. cit., p. 44.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 241


Do encontro entre os Karajá e a expedição comandada por Pires de
Campos, este foi flechado por um indígena, conseguindo sobreviver ao
ataque. O sertanista viria a falecer meses depois, em fins de 1751, quando
escoltava o transporte do quinto de Goiás para Minas Gerais. A causa,
apesar dos remédios e da cuidadosa assistência que teve, foi realmente
uma “furioza malina q’ lhe sobreveyo em menos de cinco dias [e] o re-
duzia ao ultimo estado”51. Teixeira estava correto quanto à data e à causa
da morte, contudo, o memorialista equivocou-se ao afirmar que malina
seria septicemia, ou seja, uma grave infecção generalizada. A malina era o
nome dado, nos séculos XVIII e XIX, à malária, enfermidade ainda hoje
existente no Brasil, causada por um protozoário transmitido pela picada
do mosquito anofelino.
Retomando questões ligadas diretamente aos aldeamentos, Pontes
chama a atenção para o fenótipo dos indígenas aldeados entre os Rios
Grande e Paranaíba: “Enquanto a Aldeia de Sant’Ana conservava a sua
pureza de raça com a do Rio das Pedras dava-se o contrário. Aqui a po-
pulação estava toda mestiçada não só com as demais raças indígenas, mas
também com a africana. A sua linguagem muito parecia com a língua
geral ou tupi, falada no litoral.”52
O memorialista não citou a fonte dessa afirmação, contudo, ela deve
ter sido baseada na descrição de Auguste de Saint-Hilaire. A “mestiça-
gem”, para o viajante francês, era evidente, pois, à “exceção de um ou dois
indivíduos, não via (sic) na Aldeia do Rio das Pedras indígenas de raça
pura. Quase todos eles são fruto de uma mistura da raça americana com a
dos negros”, ainda assim, o fenótipo dos aldeados se aproximava “menos
dos negros que dos índios americanos”.53 Outro viajante europeu, apesar
de não ser mencionado por Pontes, apontou esta população “mestiçada”
em Rio das Pedras: Eschwege concluiu que, dos índios, “muito pouco
sobrou de seus costumes originais”.54 Mesmo o fenótipo demonstrando
a mestiçagem, ambos os naturalistas afirmaram que a população aldeada

51. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. A carta [...] datada de 12 de


novembro de 1751, D. Marcos de Noronha [...], Goiânia: Gráfica Editora Líder, Número
10, 1982, p. 33-4.
52. PONTES, Op. cit., p. 22.
53. SAINT-HILAIRE, Op. cit., p. 129.
54. ESCHWEGE, Op. cit., p. 116-7

242 - Urdiduras da história


entre os Rios Grande e Paranaíba se reconhecia e era reconhecida pela
sociedade colonial como indígena.
A formação desta população indígena se deu a partir de um processo
conhecido como etnogênese55, em que contingentes indígenas de diferen-
tes partes da América portuguesa (originários de regiões correspondentes
aos atuais estados de Mato Grosso, Goiás, Tocantins – Ilha do Bananal – e
São Paulo) foram reunidos em dois núcleos principais (Rio das Pedras e
Santa Ana do Rio das Velhas), essenciais para se mover a guerra aos Kaya-
pó do sul. Dessa forma, a mestiçagem deve ter se iniciado logo após a cria-
ção do aldeamento de Rio das Pedras, a partir do casamento entre indíge-
nas, “brancos”, negros e mestiços que acompanhavam Pires de Campos.56
Quanto ao fato dos indígenas aldeados falarem a língua geral, ela, tal-
vez, tenha sido introduzida pelo padre jesuíta José de Castilho, pois, dos
contingentes deslocados para os aldeamentos, apenas os Tapirapé e, pos-
sivelmente, os indígenas oriundos dos aldeamentos de São Paulo (prova-
velmente de origem tupi-guarani) falavam dialetos tupis57. A língua geral,
formada a partir do tupi-guarani e da língua portuguesa, era falada em boa
parte do Brasil colonial e os jesuítas tiveram grande importância na siste-
matização e na difusão entre aqueles indígenas que estavam aldeados nas
missões inacianas.
Visando encerrar a análise sobre as obras dos memorialistas, a partir de
então debruço-me sobre as reflexões de Sampaio. Nas breves menções que
faz em sua obra aos indígenas que habitavam o Sertão da Farinha Podre,
o memorialista dedicou maior atenção ao processo vivenciado por eles no
século XIX. Talvez isto tenha sido motivado por aquele contato menciona-
do por Sampaio com os primeiros geralistas que ainda viviam em Uberaba,
quando da sua chegada à cidade, nos anos 1840.
A existência destas fontes orais deve ter sido determinante para a pers-
pectiva que Sampaio apresenta em sua obra, cuja narrativa se assemelha ao
discurso dos migrantes que ajudaram a fundar as cidades triangulinas no
55. Sobre a etnogênese, ver: BOCCARA, Guillaume. Genésis y estrutura de los complejos
fronterizos euro-indígenas. Repensando los márgenes americanos a partir (y mas allá) de la
obra de Nathan Wachtel. In: Memoria Americana. v. 13, p. 7 – 19, 2005; HILL, Jonathan
D. Introduction: Ethnogenesis in the Americas, 1492 – 1992. In: ______. History, Power,
and Identity. Ethnogenesis in the Americas, 1492 – 1992. Iowa City: University of Iowa
Press, 1996.
56. MORI, Op. cit.
57. MORI, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 243


início dos Oitocentos. Além do mais, o autor passou a residir no Triângulo
Mineiro em um momento da história em que o processo de espoliação das
terras e a expulsão dos indígenas aldeados estava quase todo consolidado.
Em sua obra, Sampaio pouco mencionou, por exemplo, os Kayapó
do sul no século XVIII. Ele voltou sua atenção para o contato hostil des-
tes indígenas com as primeiras expedições que saíram do arraial de Nossa
Senhora do Desterro do Desemboque nas duas décadas iniciais do século
XIX. Aos geralistas, o memorialista dedicou palavras que buscam engran-
decer a “conquista” do sertão: eles eram “valentes homens” e “heróis devas-
sadores das brenhas, romeiros das campinas”58; enquanto os Kayapó do sul
são elencados na mesma categoria de “perigos”, juntamente com as “feras,
os pântanos, as densas florestas, as desertas chapadas”.59
Sampaio afirma que os geralistas, depois de percorrerem parte do
atual Triângulo Mineiro, regressaram para o Desemboque devido aos
poucos mantimentos que tinham disponíveis e “pelo terror que lhes ins-
pirava o gentio caiapó, do qual encontraram vestígios em diversos lu-
gares60.” Isto evidencia a existência de grupos Kayapó do sul que não
desejavam o contato pacífico com os luso-brasileiros, ao contrário das
aldeias que aceitaram o pacto com a Coroa portuguesa e foram residir no
aldeamento de Maria I, a partir de 1780, ou em São José de Mossâmedes,
ambos nos arredores de Vila Boa. Os que causavam temor nos geralistas
possuíam aldeias no pontal do Triângulo Mineiro, próximo à confluência
dos Rios Grande e Paranaíba, e se deslocavam pelo atual Triângulo Mi-
neiro para promoverem a dispersão característica dos povos Jê, além da
guerra, da caça e da construção de aldeias.
Além deste contato nos Oitocentos entre os Kayapó do sul e os gera-
listas, a questão do tamanho das terras indígenas dos aldeamentos localiza-
dos entre os Rios Grande e Paranaíba também foi alvo de análise por parte
de Sampaio. Segundo ele, a partir das “tradições” de “um escrito antigo”
que estava em sua posse, o memorialista afirmou que, no século XIX, o go-
verno de Goiás determinou que apenas meia légua de cada lado da estrada
deveria ser de posse plena para os indígenas aldeados.61 Sampaio afirmou

58. SAMPAIO, Op. cit., p. 194.


59. Ibidem.
60. SAMPAIO, Op. cit., p. 132.
61. Ibidem, p. 117.

244 - Urdiduras da história


também que a cidade de Uberaba deveria estar fundada (totalmente ou em
parte) em terras aldeanas.
Apoiando-se em um manuscrito do padre Hermógenes Cassimiro de
Araújo Bruonswik, vigário colado do Desemboque e um dos primeiros
“entrantes”, é possível observar que o religioso afirmou que uma légua e
meia de cada lado da estrada era reservada aos indígenas aldeados ao longo
do Caminho dos Goiaes.62 Para Sampaio, o próprio vigário deve ter se
equivocado no momento da escrita, pois Hermógenes e outros geralistas
os quais tiveram contato com o memorialista, afirmaram que era tradição
reservar somente meia légua de cada lado daquela via colonial como terra
para os indígenas.
Ainda citando Sampaio, ele trata da já abordada dispersão dos indí-
genas ao longo do Caminho dos Goiases a partir do aldeamento de Santa
Ana do Rio das Velhas, contudo, segundo o memorialista, os indígenas
nunca “tiveram ânimo de alongar-se para alguns dos lados da mesma es-
trada, nem ao menos meia légua”.63 Portanto, permite-se concluir que, a
partir dessa tradição corrente na primeira metade do século XIX, as terras
aldeanas ao longo do Caminho dos Goiases na extensão de uma légua e
meia de cada lado pertenciam aos aldeados.
Tanto era assim que Antônio Eustáquio da Silva e Oliveira, fundador
de Uberaba e responsável pela concessão de sesmarias na região do atual
Triângulo Mineiro, a partir da segunda década do século XIX, chegou a
realizar uma pesquisa sobre a existência de alguma Ordem real ou do go-
vernador para a concessão de “legoa e meia como se pertendia de cada lado
da estrada entre o rio Grande, e o das Velhas, e como não a encontrasse
ainda m.mo consultando o Diretório q’ servia aos dos Índios”.64
Desta forma, percebe-se que ele tentou, de certa maneira, resguardar
suas ações de futuras reclamações por parte dos indígenas que tiveram suas
terras espoliadas, como realmente aconteceu em 1821, conforme relata o
naturalista Eschwege.65 Um dos documentos citados por Antônio Eustá-
quio foi o Diretório dos Índios66, que, de fato, não estabeleceu o tamanho
62. Ibidem.
63. Ibidem, p. 132.
64. Arquivo Público Mineiro, Caixa: 10, documento 40, 1816/1827. Transcrito no Guia
“Origens de Uberaba”, 1995, folha 62.
65. ESCHWEGE, Op. cit.
66. Sobre o Diretório dos Índios, ver: LOPES, Fátima Martins. Diretório dos índios: im-

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 245


de terras dos aldeamentos. Contudo, se Antônio Eustáquio dirigisse sua
pesquisa para São Paulo, certamente ele encontraria a missiva do rei doan-
do as terras aos Bororo e Parecí de Rio das Pedras em 1748, assim como
provavelmente acharia em Vila Boa a doação da sesmaria para o estabele-
cimento de Santa Ana do Rio das Velhas.
Antônio Eustáquio trabalhou de forma metódica e sistemática para
expulsar os indígenas e Sampaio, o qual afirmou, com certo orgulho, ter
tido contato com os primeiros geralistas (contemporâneos do potentado),
não sabemos se de forma intencional ou não, optou por uma narrativa que
se escusou de analisar as ações do fundador de Uberaba contra os indíge-
nas. No relato de Eschwege, que teve um breve convívio com Antônio
Eustáquio em 1816, é possível ler que este desejava “tomar pouco a pouco
aos índios o seu distrito, para distribuí-lo entre os portugueses, sob o pre-
texto de que o rei deles não auferia lucro”.67 Esta realmente foi a tônica da
história entre os geralistas e os indígenas aldeados. O potentado conseguiu,
com a anuência do governador de Minas Gerais, Dom Manuel de Portugal
e Castro, provavelmente no ano de 1821, expulsar os aldeados entre os
Rios Grande e das Velhas (Julgado do Desemboque), para o Julgado de
Araxá (entre o Rio das Velhas e Paranaíba).
É incontestável que Sampaio buscou exaltar a figura dos geralistas, os
quais conseguiram romper “diversos embaraços de rios, grandes ribeirões,
pântanos, matas virgens, macegais e brejos sempre temerosos do gentio,
cuja existência se conhecia pelas queimadas de campos que tinham feito e
ranchos encontrados aqui e ali”.68 Na terceira “bandeira” que saiu do De-
semboque rumo ao atual Triângulo Mineiro, nos anos 1810, os membros
da expedição foram lançando posses “não obstante o medo do gentio que
se lhes antolhava”69.
Ao contrário dos aldeados ao longo do Caminho dos Goiases, que
Antônio Eustáquio trabalhou para expulsar, com os Kayapó do sul a rela-
ção foi diferente. Segundo Sampaio, Antônio Eustáquio era “curador dos

plementação e resistência no Nordeste. Revista Tellus, Campo Grande, n. 5, p. 37-53, out.


2003; COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a experiência
portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese
(Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005;
67. ESCHWEGE, Op. cit., p. 126.
68. SAMPAIO, Op. cit., p. 133.
69. Ibidem, p. 134.

246 - Urdiduras da história


índios caiapós”70 e o potentado, buscando se aliar a eles, inclusive forne-
cia as ferramentas de ferro desejadas pelos indígenas. Tal atitude não era
inocente ou despida de interesse: aldeando e concentrando os Kayapó do
sul em determinadas aldeias, aliando-se a eles, as terras destes indígenas
poderiam ser concedidas para os geralistas formarem novas fazendas, ga-
rantindo assim o controle do sertão pelos não-indígenas.71

Considerações finais

Os trabalhos dos memorialistas ainda hoje figuram como fontes


para historiadores e suas produções acadêmicas, como monografias, dis-
sertações, teses, capítulos de livros ou artigos científicos. Para aqueles
pesquisadores que não estão acompanhando as recentes pesquisas que
buscam compreender a agência e o protagonismo indígena nas regiões do
Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, utilizar as obras dos memorialis-
tas pode comprometer a análise proposta em virtude das reflexões destes
homens dos séculos XIX e XX se encontrarem datadas. Contudo, não foi
meu objetivo aqui descrer dos trabalhos pioneiros destes homens, mas
é inegável a preocupação que devemos ter com o fato de que eles foram
homens do seu tempo.
Conforme afirmou Dantas, percebe-se, nas obras dos memorialistas,
a vontade em legar à posteridade os seus escritos, as suas reflexões, muitas
vezes, elaborando para isto uma visão positiva do passado.72 Analisando
as seções dos livros dedicadas às populações indígenas e, principalmente,
ao contato interétnico, perceberemos que, apesar de mencionada a guerra
existente entre os Rios Grande e Paranaíba, ela não ganha os contornos
devidos. Porventura, o que mais deu destaque a ela foi Teixeira, inclusive
utilizando documentos setecentistas, ainda que nem todos devidamente
citados.
Mendonça condicionou a história dos indígenas no Sertão da Farinha
Podre e as ações de Pires de Campos e seu exército indígena Bororo e
Parecí em duas páginas de sua obra. Pontes, por sua vez, ainda que tenha
abordado o contato interétnico, trata mais das possíveis guerras entre os

70. Ibidem, p. 195.


71. MORI, Op. cit.
72. DANTAS, Op. cit.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 247


indígenas antes da expansão luso-brasileira rumo ao sertão goiano, cujas
hipóteses discutidas pelo autor atualmente são bastante questionáveis.
Já Sampaio, por ter tido contato com os primeiros geralistas “carre-
gou” a tinta de sua pena com o intuito de abrandar um contato interétnico
que foi, sim, violento. Em suas reflexões, concordo com Dantas: a história
de Uberaba “está desprovida de divergências e conflitos”.73 As passagens de
sua obra sobre a guerra indígena estiveram vinculadas às primeiras expedi-
ções a oeste do Desemboque, com alguns ataques Kayapó do sul aos luso-
-brasileiros, mas sem vítimas fatais. Com relação à espoliação da terra dos
aldeamentos e à expulsão dos indígenas aldeados, Sampaio compartilhou
“das representações correntes entre os grupos”.74 No caso em questão, da-
queles homens do início dos Oitocentos que viram nos indígenas aldeados
um “empecilho” aos seus planos e que formavam à época, a elite econômica
e política da cidade de Uberaba e de outras do Triângulo Mineiro.
Desta forma, as contradições do contato interétnico não são desnu-
dadas, mas silenciadas, ou então, “abrandadas”. Recorrendo novamente às
reflexões instigantes de Dantas, no

ímpeto de registrar a história do lugar como trajetória exemplar, os


memorialistas triangulinos produziram em diferentes temporalidades e
cada um possuía o modo peculiar de narrativa. Os pontos comuns são a
visão positiva sobre a cidade e a perspectiva de produzirem uma verdade
definitiva.75

Não foi o intuito deste capítulo esgotar as possibilidades de análise das


obras dos memorialistas, tampouco afirmar que, pelas datas em que foram
produzidas suas obras, elas não possuam mais valor. Longe disso. Afinal,
“foram eles que, por sua dedicação, guardaram documentos, organizaram-
-nos e registraram a história local para a posteridade.”76 Ao historiador,
portanto, principalmente àquele que dedica suas reflexões à história dos
indígenas no Brasil, cabe uma leitura crítica e atenta para incorporar, refu-
tar ou problematizar as reflexões dos memorialistas.

73. DANTAS, Op. cit., p. 44.


74. Ibidem, p. 36.
75. Ibidem, p. 35.
76. DANTAS, Op. cit., p. 51-2.

248 - Urdiduras da história


Fontes

BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás em 1783. Goiâ-


nia: ICBC, 2010.

Carta do governador e capitão-general da capitania do Rio de janeiro, D.


Luís Mascarenhas, ao rei D. João V [...]. (12/09/1748). AHU – Caixa: 3,
Documento: 233.

Carta do governador e capitão-general da capitania do Rio de Janeiro,


D. Luís Mascarenhas, ao rei [D. João V] [...], Vila e praça de Santos,
12/09/1748. Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate – Rede
Memória - AHU_ACL_CU_023, caixa 3, documento 233.

Carta do governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos, D.


Marcos de Noronha, ao rei D. José [...]. (24/01/1751). AHU – Caixa: 6,
Documento: 465.

CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica ou relação histórico-


-geográfica do Reino do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo.


Bandos e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. São Paulo: Typographia
Aurora, Volume XIII, 1895, p. 282-7.

Guia “Origens de Uberaba”. Uberaba: Arquivo Público de Uberaba, 1995.

Ofício do governador e capitão-general de Goiás, João Manuel de Melo,


ao secretário ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado [...]. (22/06/1767). AHU – Caixa: 23, Do-
cumento: 1440.

Ofício do sindicante, desembargador Manuel da Fonseca Brandão, ao [se-


cretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado] [...]” (26/11/1763). AHU – Caixa: 19, Documento: 1191.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 249


Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. A carta [...] da-
tada de 12 de novembro de 1751, D. Marcos de Noronha [...]. Goiânia:
Gráfica Editora Líder, Número 10, 1982, p. 33-4.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Belo Ho-


rizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1975.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: iden-


tidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003.

ATAÍDES, Jézus Marco de. Sob o signo da violência: colonizadores e


Kayapó do Sul no Brasil Central. Goiânia: Editora UCG, 1998.

BOCCARA, Guillaume. Genésis y estrutura de los complejos fronterizos


euro-indígenas. Repensando los márgenes americanos a partir (y mas allá)
de la obra de Nathan Wachtel. In: Memoria Americana, v. 13, p. 7 – 19,
2005.

COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a


experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório
dos Índios (1751-1798). Tese (Doutorado em História). Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2005.

DANTAS, Sandra Mara. A memória como sinônimo de história: a pro-


dução dos memorialistas no Triângulo Mineiro. In: GOMES, Marcos
Antônio Silvestre; DANTAS, Sandra Mara. Olhares cruzados: política
e dinâmicas sociais no Triângulo Mineiro. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Brasil, novo mundo. Belo Hori-


zonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais. Fundação João Pinheiro,
1996.

GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo Jê

250 - Urdiduras da história


no Brasil Central. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

HILL, Jonathan D. Introduction: Ethnogenesis in the Americas, 1492


– 1992. In: ______. History, Power, and Identity. Ethnogenesis in the
Americas, 1492 – 1992. Iowa City: University of Iowa Press, 1996.

KOK, Glória Porto. O sertão itinerante: expedições da capitania de São


Paulo no século XVIII. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2004.

LOPES, Fátima Martins. Diretório dos índios: implementação e resis-


tência no Nordeste. Revista Tellus, Campo Grande, n. 5, p. 37-53, out.
2003.

LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. A oeste das minas: escravos,


índios e homens livres numa fronteira oitocentista, Triângulo Mineiro
(1750-1861). Uberlândia: EDUFU, 2005.

MANO, Marcel. Contato, guerra e paz: problemas de tempo, mito e his-


tória. Revista de Ciências Sociais – Política & Trabalho, João Pessoa, n.
34, p. 193 – 212, abr. 2011.

MANO, Marcel. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre


os Kayapó. Revista Tellus, ano 12, n. 22, p. 133 – 154, jan.-jun., 2012.

MENDONÇA, José. História de Uberaba. Uberaba: Academia de Letras


do Triângulo Mineiro: Bolsa de Publicações do Município de Uberaba,
2008.

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas


origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de Histó-


ria Indígena e do Indigenismo. Tese (apresentada para o concurso de Livre
Docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

MORI, Robert. À luz de documentos e memórias: uma nova interpretação


histórica dos Araxá – os indígenas da terra “onde primeiro se avista o Sol”.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 251


Revista Projeto História, São Paulo, v. 71, p. 208-238, mai.-ago. 2021.

MORI, Robert. Mundos em transformação: guerras e alianças entre os


Jê e os luso-brasileiros nos sertões da América portuguesa – século XVIII.
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2020.

MORI, Robert. Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases:


guerra e etnogênese no “Sertão do Gentio Cayapó” (Sertão da Farinha Po-
dre) – séculos XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais).
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015.

PONTES, Hildebrando. História de Uberaba e a civilização no Brasil


central. Uberaba: Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1978.

SAMPAIO, Antônio Borges. Uberaba: história, fatos e homens. 2001, p.


137. Uberaba: Arquivo Público de Uberaba, 2001.

TEIXEIRA, Edelweiss. O Triângulo Mineiro nos Oitocentos (séculos


XVIII e XIX). Uberaba: Intergraff Editora, 2001.

252 - Urdiduras da história


Terra de pretos: territórios negros
no Sertão do São Francisco

Johnisson Xavier Silva

O estado de Minas Gerais possui uma das maiores concentrações de


comunidades remanescentes de quilombos, segundo a Fundação Cultural
Palmares. Na atualidade, o estado possui 381 comunidades, sem contar
as que estão em processo de reconhecimento.1 Durante os séculos XVIII
e XIX, a superioridade numérica de quilombos existentes na região, em
relação às outras províncias, não destoou dos séculos XX e XXI. Embora
o contingente de comunidades quilombolas no Brasil tenha aumentado
significativamente após a garantia constitucional do território e a autode-
terminação dos povos quilombolas pelo artigo 68 da constituição de 1988,
fruto das lutas dos movimentos sociais que possibilitaram às várias comu-
nidades saírem da invisibilidade e equalizar a diferença numérica entre as
regiões, em Minas Gerais, no Pará, Maranhão e na Bahia se concentram a
maioria, os maiores e alguns dos mais duradouros quilombos.2
1. O processo de reconhecimento das comunidades quilombolas segue os ditames do §
4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que reservou à Fundação
Cultural Palmares (FCP) a competência pela emissão de certidão às comunidades e sua
inscrição no cadastro geral. O processo de certificação das comunidades respeita o direito
a autodefinição que foi estabelecido pela Convenção nº 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). Para tanto exige-se uma documentação, em acordo com a Portaria
FCP nº 98, de 26 de novembro de 2007: ata de reunião específica para tratar do tema de
Auto declaração, se a comunidade não possuir associação constituída, ou ata de assembleia,
se a associação já estiver formalizada, seguida da assinatura da maioria de seus membros;
breve relato histórico da comunidade (em geral, esses documentos apresentam entre 2 e 5
páginas), contando como ela foi formada, quais são seus principais troncos familiares, suas
manifestações culturais tradicionais, atividades produtivas, festejos, religiosidade, etc.; e
um requerimento de certificação endereçado à presidência da Fundação Cultural Palmares.
2. GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato ne-
gro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
O número expressivo de comunidades quilombolas em Minas Gerais
e Bahia se deve, sobretudo, às áreas de plantation açucareira e à economia
mineradora, que exigiu um número grande de mão-de-obra escravizada.
Nos dizeres do historiador Flavio Gomes, “mais escravos, mais fugas –
muitas vezes - e com elas o estabelecimento de Mocambos”.3
Entretanto, as primeiras notícias sobre a presença de negros na região
de Minas Gerais se deram antes mesmo da formação dessa unidade de
federação4 e do estabelecimento da economia mineradora e de plantation.
Já em 1640, a capitania da Bahia (à qual parte da atual região do estado de
Minas Gerais pertencia) passa a solicitar o envio de bandeiras para dar cabo
de indígenas e quilombolas que ameaçavam a consolidação da colonização
portuguesa.5 Até meados de 1660, três expedições foram enviadas, a tercei-
ra delas, comandada por Matias Cardoso de Almeida, se fixou às margens
do rio São Francisco. De modo que, antes da colonização estender os seus
braços sobre as Minas Gerais, a ocupação do território já havia principia-
do, por negros e indígenas. A historiadora Laura de Mello e Souza afirma
que no século XVIII6 o povoamento da província mal sedimentara e as
comunicações entre as autoridades já falavam no perigo dos aldeamentos
de negros fugidos, espalhados com uniformidade pelo território mineiro.
Embora lacunares e pouco documentados, os indícios da presença de
descendentes de africanos na região de Minas Gerais denotam que as cons-
truções da liberdade pelos aquilombados, através da ocupação do território,
vão além de uma reação à escravização durante as economias mencionadas
anteriormente, instauradas nessa região.
A quantidade expressiva de quilombos e sua persistência ao longo da
história de Minas Gerais nos levam às questões que norteiam este capítulo.
Como se deram os processos de ocupação, permanência e resistência dos
quilombolas em Minas Gerais? Mas as Minas Gerais são muitas, um espa-
ço geográfico e temporal excessivamente extenso para analisar neste texto,

3. Idem, p.31.
4. CEDEFES. Comunidades quilombolas de Minas Gerais: Entre direitos e conflitos.
Belo Horizonte, 2013. p. 9.
5. CEDEFES, Op. cit., p.10.
6. SOUZA, Laura de Mello e. Violências e práticas culturais no cotidiano de uma expedição
contra quilombos- Minas Gerais,1769. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos
(Org.). Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.

254 - Urdiduras da história


de modo que irei delimitar as análises à incidência de quilombolas e terri-
tórios negros em uma região sem muitos registros e estudos, com lacunas
consideráveis sobre a história da formação e ocupação do território Norte
mineiro, o Sertão do São Francisco.7
Procuro entender por meio da análise dos textos dos viajantes, da obra
de memorialistas, lendo-os a contrapelo8, como em determinados períodos
históricos da formação das sociedades que compõem o Sertão do São Fran-
cisco, do Norte de Minas, os quilombolas e comunidades negras foram
agentes políticos da construção dessa sociedade, como persistiram, viveram
e permaneceram na região, apesar das violências que engendraram as rela-
ções de poder no sertão.

Os negros no Sertão do São Francisco.

As atenções se voltam ao Sertão do São Francisco em fins do século


XVIII e ao longo do XIX, quando se escoam as riquezas da extração mi-
neradora e outros nichos econômicos começam a ser mais explorados e
taxados pela coroa portuguesa. Durante o Século XIX, viajantes atravessam
o sertão descendo pelas águas do São Francisco, tentando mapear e des-
crever o território ainda desconhecido. As notícias dessa porção mineira se
tornam mais frequentes quando, nos Oitocentos, viajantes estrangeiros ou
brasileiros registram em seus relatos aspectos importantes dessa sociedade,
inclusive suas riquezas.
A partir de então, esforços coloniais para controlar a região pouco no-
7. O que denomino de Sertão do São Francisco neste capítulo é uma categoria sócio-histórica
É composto por cidades atravessadas tanto por vastidões de territórios áridos como pelo rio
São Francisco no Norte de Minas; é uma região que carrega, ao mesmo tempo, muita pobre-
za e nichos de riqueza, modernidade e tradicionalismo, produção e escassez. Sua formação
tem um desenvolvimento complexo, com atuação de fazendeiros, aventureiros, brancos, ín-
dios, negros e quilombolas, agricultores.
É um espaço de transição, os vários biomas existentes no interior do sertão são eixos cons-
tituintes e constitutivos dos sertões, onde os modos de vidas e identidades emergentes (re-
meiros, pescadores, vazanteiros, balaeiros, geraizeiros, chapadeiros, catingueiros, veredeiros)
surgem e coexistem como categorias que explicam o mundo sertanejo. Todas essas especifi-
cidades das gentes do Norte de Minas são atravessadas pelas relações entre o seu processo de
formação histórica e a relação com o ambiente em que habitam, sendo territórios formados
de maneira híbrida entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre
materialidade e ‘idealidade’, numa complexa interação tempo-espaço.
8. LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia de viagem: escravos e libertos em Minas Gerais
no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 38.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 255


tada são estabelecidos. A “conquista” do sertão cria um caminho de morte
e violências, dizimando populações originárias e instaurando povoados. No
povoado que deu origem à cidade de Januária, por exemplo, um documen-
to intitulado “Esboço histórico”, que comemora o centenário da cidade, ao
discutir a ação dos criadores do povoado de Brejo de Salgado, menciona
“o apparecimento de dois grandes criminosos, fundadores do nosso torrão
natal- Januário Cardoso de Almeida e Manuel Pires”.9 A violência dos ho-
mens que se “faziam”, construindo seus domínios pelo mando e pela força
foi estabelecida para dar conta das ameaças ao controle colonial: a negra
e a indígena. A historiadora Laura de Mello e Souza no texto “Violência
e práticas culturais de uma expedição contra quilombolas: Minas Gerais,
1769” escreveu:

Nos sertões de Minas, reedita-se a prática de compensar com terras o


massacre dos adversários religioso e cultural (...) Motivações econômicas,
políticas, sociais e culturais, encontram-se, pois, na base da violência dos
brancos (e de seus agentes) contra negros fugidos nas décadas de 1740,
50 e 60.10

Nesta perspectiva, os homens negros que aparecem nos relatos dos


viajantes são representados como um perigo a ser combatido, como ban-
didos que se distanciam do litoral para fugir da justiça. Essa representação
dos homens negros no Sertão do São Francisco é facilmente perceptível
em obras como “O rio da unidade nacional: o São Francisco (reportagem
ilustrada)” de Orlando M. Carvalho, publicado em 1937.

Os ladrões introduziram a civilização no Rio de S. Francisco. (...) quando


o padre Navarro varou o sertão, em 1554, encontrou no São Francisco
uma multidão de raça diferentes de índios rechassados do litoral, que ali
se refugiaram. Com o tempo os escravos fugiam do litoral e vinham aco-
lher-se entre eles. E os criminosos, esquivando-se à justiça portuguesa,
eram recebidos de braços abertos, por que traziam experiência de muitas
coisas úteis aos indígenas.

9. ESBOÇO histórico do município da Januária. Revista do Arquivo Público Mineiro.


Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais. v. 11, n 1, 1906. p.377.
10. SOUZA, Laura de Mello. Violência e práticas culturais de uma expedição contra qui-
lombolas: Minas Gerais, 1769. In: ______. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos.
Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
p.195.

256 - Urdiduras da história


Daí se organizavam bandos de ladrões que depredavam as tribos mansas,
as fazendas e o próprio litoral.11

O Sertão do São Francisco era, nessa percepção, lugar da desordem, os


povos que ali habitavam, índios e negros, eram bandidos, que ameaçavam
a ordem.
Os fundadores das vilas e cidades instauraram na região a perseguição
e o genocídio aos negros e índios. Januário Cardoso, a quem é atribuída
a fundação de São Romão, Porto do Salgado, que posteriormente viria
a se tornar Januária, Antônio Gonçalves Figueira a quem foi atribuída a
fundação do arraial de Formiga (hoje Montes Claros), Matias Cardoso,
tido como fundador de Pedra dos Angicos (atualmente a cidade de São
Francisco), além de compartilharem o parentesco, compartilhavam a per-
seguição, o extermínio, a escravização (de índios e negros) com o uso da
violência legitimada pelo obra colonizadora. Instauraram não apenas o do-
mínio territorial, mas também religioso e cultural.
Essa noção de que indígenas e negros eram perigos a ser combatidos
parece ter se perpetuado até o século XX, na mentalidade popular, através
da criação de figuras míticas. O livro “A língua e folclore da bacia do São
Francisco”, por exemplo, traz entre seus verbetes a figura mítica do Negro
- D’ água que atormentava e ameaçava as populações ribeirinhas:

A crendice situa o Negro – D’água como vivendo nas profundezas das


águas do grande rio e só aparecendo em noites tenebrosas para fazer dia-
bruras e maldades.
Emergindo, inesperadamente, das águas, na proa das embarcações, viran-
do-as e arrastando o tripulante mais à mão para o barranco, onde estraça-
lha e depois devora.12

O domínio sobre o território indígena e quilombola se fez, desse


modo, inscrevendo na história e memória a representação do aventureiro
salvador contra ameaça constante desses povos.
Seria possível dizer, com isso, que os aventureiros que se instalaram no
Sertão do São Francisco são responsáveis pelo apagamento das comunida-
11. CARVALHO, Orlando M. O rio da Unidade Nacional o São Francisco (reportagem
ilustrada). v. 91. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1937. p.98-99.
12. TRIGUEIROS, Edilberto. A língua e o folclore da bacia do São Francisco. Ministério
da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, Fundação Nacional de Arte,
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1977, p.124.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 257


des negras da região? Manoel Cavalcanti Proença, no livro “Ribeiro do São
Francisco”, ratificava que restaram “duas classes no sertão: os proprietários
e os moradores ou agregados”.13 O antropólogo João Batista de Almeida
Costa, ao tratar da identidade e formação das comunidades ribeirinhas e
Norte Mineira acredita que não, apontando a resistência das comunidades
quilombolas.

O Norte sertanejo tem sua formação histórica vinculada ao bandeirismo


predador de índios e exterminador de quilombos e à marcha progressiva
das fazendas nordestinas de gado pelo interior do país.
Se há uma lógica capitalista embranquecida e etnicizada do território e do
espaço social regional hodierno, opõe-se a ela, resistindo com lógica se-
melhante, um território e um espaço social não-capitalistas e não-brancos,
permitindo aos trabalhadores rurais reafirmarem suas autonomias, ainda
que em condições mínimas e descontínuas, frente à dominação imposta.14

Os aventureiros depois de lançarem mão de toda sorte de violên-


cia para expulsar os que ali habitavam, trataram de dedicar-se a criar
lavouras, animais, engenhos de madeira movidos a água, estabelecer-se
no local e construir o seu mando. Entretanto, a fundação de tais povoa-
dos após a expulsão dos seus habitantes originários não foi plenamente
passiva, há relatos de sequestros, de ataques inesperados por indígenas e
por aquilombados.15
Os principais povoados do Norte de Minas foram constituídos nesse
processo, aventureiros, em busca de fazer-se, instauravam a perseguição e
intentavam exterminar populações empregando a violência contínua como
mecanismo de conquista. É importante ressaltar que a memória e a história
se ativeram às ações desses aventureiros, mas o Norte de Minas se fez para
além de suas ações, antes e após sua chegada ao Sertão do São Francisco.
Mas que porção de Minas Gerais é essa tão indócil e desconhecida
pela maioria do Brasil nos oitocentos? Theodoro Sampaio diz que a exis-

13. PROENÇA, Cavalcanti M. Ribeiro do São Francisco. Rio de Janeiro, Laemmert, 1994.
p. 1994-5.
14. COSTA, João Batista de Almeida. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identi-
dade e do território baianeiros em Minas Gerais. Disponível em: www.revistas.ufg.br/index.
php/fchf/article/viewFile/554/475 Acesso em: 22 out. 2020.
15. ESBOÇO histórico do município da Januária. Revista do Arquivo Público Mineiro.
Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais. v. 11, n 1, 1906.

258 - Urdiduras da história


tência dos povoados na região é uma coisa inexplicável, sem uma razão
econômica apreciável. Surgem e em muitos casos se extinguem sem saber
porque.16 Sampaio, dadas as ferramentas que dispunha para ler as dinâmi-
cas históricas e sociais, talvez não conseguisse acrescentar às interpretações
dos processos históricos vividos no Sertão do São Francisco a ação dos qui-
lombolas e indígenas. O que Sampaio chama de inexplicável, sem razões
econômicas apreciáveis, faz parte de outra dinâmica de organização social
e econômica e que se relaciona com o espaço de forma diferente. A criação
de povoados, por exemplo, em regiões atingidas pelas febres intermitentes
em lugares e gente que não “se tocava” com o medo da contaminação, pre-
servou algumas comunidades quilombolas no Sertão do São Francisco da
perseguição e do extermínio.
Ao passar pelo Brejo do Salgado, Sampaio observa que “o local é fértil
e a qualidade do solo bem attestava no vigor das plantações que vínhamos
encontrando à margem na estrada. Mas não é sadio; pelo que a população
definha, minada pelas febres palustres endêmicas no logar”.17
O antropólogo João Batista de Almeida ao estudar o quilombo do
Brejo dos Crioulos na cidade de Jaíba, localizada a 181 km de Januária,
também observa que a endemia impossibilitou brancos de desenvolverem
a atividade pastoril no interior do Vale do Rio Verde, apesar da qualida-
de da terra. O próprio nome “jahyba” tem origem no tupi-guarani, tendo
como significado “água podre”, “água ruim”, “brenhas do mato”. A febre, a
malária eram fatais para os povos indígenas e brancos, entretanto os negros
sobreviveram à doença.
As povoações mais expressivas do Norte de Minas no século XVIII
foram Morrinhos (hoje a cidade de Matias Cardoso), Barra do Rio das
Velhas (hoje a cidade de Guaicupí) e São Romão (que ainda conserva o
nome de origem). Essas três povoações perderam ao longo do século XVIII
a importância ou expressão mercantil para Pedra dos Angicos e Brejo do
Salgado.
Os viajantes mensuram a importância, a riqueza das povoações men-
cionadas, sua ascensão e decadência de acordo com a pujança das relações
comerciais, sobretudo o contato com os grandes centros econômicos, a
16. SAMPAIO, Theodoro. O Rio de S. Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p.168.
17. SAMPAIO, Theodoro. 1905. O Rio de S. Francisco e a Chapada Diamantina: trechos
de um diário de viagem (1879-80). Revista S. Cruz. São Paulo: Escolas Professionaes. p.72.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 259


quantidade de pessoas, seu pertencimento étnico-racial, as residências. As
povoações caracterizadas como decadentes ou pobres têm entre as princi-
pais atividades o extrativismo, a agricultura e a pesca, e são habitadas ma-
joritariamente por negros e índios. Saint- Hilaire de passagem por Pedra
dos Angicos em 1817 afirmava:

Pedra dos Angicos parece mais como uma aldeia de índios do que com
povoações de homens de nossa raça (...) os habitantes dessa espécie de
povoado passam dias na miséria e na indolência e morreriam de fome sem
a pesca, que, nas margens do rio São Francisco, é tão abundante e fácil.18

George Gardner, por sua vez, de passagem por Morrinhos relatou que
a Vila não tinha, em sua perspectiva, comércio próprio, vivendo da venda
de peixe, salgado e seco (alimento muito apreciado pelos sertanejos). O
viajante aponta ainda que:

A população é quase toda de gente de cor e não creio que haja na Vila
inteira uma dúzia de famílias brancas. A maior parte dos habitantes são
negociantes que fornecem aos fazendeiros e aos residentes dos arredores
mercadorias.19

As povoações tidas como decadentes são, na maioria dos casos, co-


munidades indígenas e negras, o comércio dos produtos do sertão estabe-
lecido por essas comunidades com os fazendeiros e sertanejos aponta para
o entendimento de que territórios desses dois grupos se estabeleceram na
região de forma profícua e permanente, criando vínculos com os serta-
nejos, entendendo as possibilidades de sobrevivência na região. Apesar
das dificuldades, insalubridades, secas, distância e por vezes a fome, não
são apenas sujeitos reféns do meio ambiente seco e árido e das violências
engendradas no território, mas pensam e agem sobre a construção dos
seus destinos.
Mensurar a decadência ou progresso dessas povoações de acordo com
o fluxo de tráfico de escravizados, o abastecimento das regiões mineradoras
ou centros comerciais explica parte da dinâmica social do Norte de Minas,

18. SAINT-HILAIRE, Auguste Prouvençal de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro
e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974. p.353.
19. GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Pau-
lo: Edusp, 1975. p. 188.

260 - Urdiduras da história


mas não toda ela. A aparência de decadência descrita pelo olhar dos via-
jantes, vista em outra perspectiva, pode ser o estabelecimento de territórios
negros, indicar condições viáveis para a vida, para construção e significação
de um espaço social.
Em passagem pela última vila baiana na divisa com Minas Gerais, Ca-
rinhanha, a caminho de Januária, trafegando pelo rio, o próprio Sampaio
aponta outras perspectivas das povoações no Sertão: “nos sertões, o homem
pobre nunca é sufficiente pobre que precise viver do salário. O mundo aqui
é largo demais para que se faça sentir a pressão das necessidades”.20
A abundância de recursos naturais, a vastidão do território, o isola-
mento tornaram o Sertão lugar propício para a vida, entretanto, os via-
jantes percebem essas características de outra forma, entendem-nas como
o motivo para a aparente pobreza e preguiça dos povos sertanejos. James
Wells, viajando pela região em 1875, se assustou por ver homens e mulhe-
res balançando em suas redes durante o dia, “desperdiçando os seus dias
dormindo e suas noites em orgias, cachaça, canções selvagens e danças”.21
Sampaio, por sua vez relata que:

A natureza prodiga não deixa haver a verdadeira pobreza que force a tra-
balhar e que obrigue e tenha disciplina pela necessidade de viver.
Não há aqui, tampouco, estímulos para capitalisar. Vive-se bem, vive-se
ao natural, sem cuidados pelo futuro, porque a pobreza aqui não aterra a
ninguém.
O Rio é um enorme viveiro, onde o peixe não escasseia jamais, assim
como as catingas e as mattas marginaes um immenso e inexgottavel the-
souro, fácil de explorar nos momentos, nos raríssimos momentos em que
a preguiça universal cede um pouco do seu império.22

Burton e James Wells também apontaram a ausência de miséria no


Sertão do São Francisco, apesar da austeridade, tendo como parâmetros a
vida material europeia, em que para James Wells, a casa dos mais abastados
no Sertão parecia uma vida modesta na Europa, não havia:

20. SAMPAIO, Theodoro. O Rio de S. Francisco e a Chapada Diamantina: trechos de um


diário de viagem (1879-80). Revista S. Cruz. São Paulo: Escolas Professionaes, 1905. p.61.
21. WELLS, J. Explorando e viajando três milhas através do Brasil: do Rio de Janeiro ao
Maranhão. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995. p.338.
22. SAMPAIO, Op. cit., p.64.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 261


[...] verdadeira miséria nesta parte do mundo, o pobre tem, pelo menos
uma vaca ou uma égua para cavalgar e, um poder ilimitado de mendigar
ou pedir emprestado mantimento do vizinho. Em consequência não tra-
balha, senão quando compelido pela necessidade premente. Os que acei-
tavam, faziam-se de rogados, pediam três dias, pelo menos, de demora, e
um sujeito, livre, mas preto como meus sapatos, não podiam começar sem
antes lavar sua camisa.23

Interessa notar que, para Burton, o que se traduz em mendicância,


“pedir emprestado mantimento do vizinho”, denota, em outra perspecti-
va, redes de solidariedade comuns em comunidades tradicionais. O que
para o autor parece indolência, pode ser percebido como o exercício da
liberdade, da vida que se sustenta em sua relação com o meio e em suas
redes de solidariedade comunitárias, lançando mão do trabalho assalaria-
do quando necessário.
É certo que o olhar do viajante acostumado com o ritmo industrial e
as maneiras como o capitalismo modelou as dinâmicas das atividades diá-
rias na Europa, não poderia compreender os modos de vida do sertanejo.
Não esqueçamos também que na segunda metade do século XIX o cien-
tificismo, as teorias evolucionistas advindas do darwinismo social atrela-
do às políticas imperialistas norteavam as formas de perceber o mundo
desses viajantes, partindo da premissa que os habitantes de mundos não
europeus ainda não eram civilizados, desenvolvidos, tachando-os de pre-
guiçosos e indolentes. 24
Sampaio e James Wells não são os primeiros a representar os serta-
nejos desse modo, a tipificação do preguiçoso e doente aparece também
no pensamento brasileiro em obras como a de Monteiro Lobato. As duas
representações dos sertanejos e negros acima apresentadas (violento e
preguiçoso) não destoam das formas de pensar dos intelectuais brasileiros
e do Brasil de modo geral no século XIX e início do XX. A absorção das
teorias hoje tidas como pseudocientíficas ajudou a construir a racialização
da sociedade e o estabelecimento de hierarquias regionais e raciais.
Mas esse não é o foco da nossa discussão, importa perceber que apesar
do olhar depreciador, os viajantes nos dão indícios de que essa era uma

23. BURTON, Richard Francis. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. São
Paulo; Belo Horizonte: Editora da USP; Itatiaia, 1977. p.214.
24. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

262 - Urdiduras da história


terra propícia para viver, em que a “natureza prodiga não deixa haver a ver-
dadeira pobreza”. As relações que as comunidades quilombolas e indígenas
estabeleciam com os territórios são diferentes das que Sampaio tem como
modelo, com intenção não de capitalizar recursos e lucros, mas de encon-
trar possibilidades melhores de existência, se possível livres das agruras da
fome e da violência.
Voltemos à pergunta, que porção é essa de Minas Gerais? O Norte
de Minas Gerais, até meados de 1930 correspondia a 19% do estado e em
linhas gerais, segundo o historiador Bernardo da Mata Machado:

Até 1930, e mesmo depois, a região manteve praticamente os mesmos


traços: economia agropastoril, sociedade estratificada com predomínio do
“compadrio”, organização política baseada na ordem privada. Atravessou
os séculos isolada das regiões mais desenvolvidas do país e manteve um
ritmo de crescimento lento e retardatário.25

O Sertão do São Francisco, de acordo com Bernardo da Mata Ma-


chado, foi constituído por uma sociedade de proprietários, vaqueiros, ca-
maradas e agregados. A atividade econômica tinha como prática criar o
gado solto pasto afora e “onde os pastos carecem de fechos; onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador”.26 A vegetação, a
caatinga e o cerrado favoreceram o pastoreio, de modo que ali se instalou a
atividade agropecuária e o Rio São Francisco foi, durante muito tempo, a
principal ponte de ligação com as demais regiões.
O mapa na página seguinte, feito por Theodoro Sampaio ao passar
pela região, permite vislumbrar como essas comunidades se formaram em
torno dos rios. Caminhos semelhantes (às vezes com sentidos inversos-
descendo ou subindo o rio) foram feitos por outros viajantes cujos relatos
são analisados nesta pesquisa.

25. MATA-MACHADO, Bernardo. História do Sertão Noroeste de Minas Gerais


(1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.p.27.
26. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1979. p.5.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 263


Fonte: (SAMPAIO, 1905, p. 77).

Todas as comunidades apontadas no mapa estão situadas às Margens


do São Francisco. Aos poucos o crescimento do Sertão vai tomando as
Gerais e criando outras dinâmicas de vida, não vinculadas ao rio.
No canto inferior direito do mapa, a ilustração do porto permite vis-
lumbrar como eram organizados os povoados ribeirinhos. A praça central,
composta pela igreja (geralmente voltada para o rio) e pelos prédios pú-

264 - Urdiduras da história


blicos - o fórum, a cadeia, a prefeitura-, os casarões das famílias abastadas
e as lojas do comércio. Até a primeira metade do século XX, tais cidades
geralmente estiveram sob o domínio do poder privado e na praia, como é
chamado pelos ribeirinhos o porto, as atividades de pesca, comércio, lava-
gens de roupa.
Richard Francis Burton (1821-1890), em setembro de 1867, viajou a
bordo do Elisa27, alcunha dada a balsa com que aportou à praia de Januá-
ria-MG, depois de embarcar em agosto, percorrendo através do Rio das
Velhas e do rio São Francisco toda a região do Sertão do São Francisco.
Ao aportar, descreveu bem as atividades no porto:

Encontramos no porto um certo número de canoas e oito barcas mo-


vidas com varas habituais. A praia, como a margem do rio é chamada,
imediatamente trouxe-me ao espírito um mercado africano, e a cantoria
monótona dos negros medindo feijão não corria para diminuir a seme-
lhança com as cenas da distante Zanzibar. Mulheres, aqui mais numero-
sas do que os homens, lavavam roupa no rio, ou andavam abaixo e acima,
carregando potes de água, os meninos, mais seminus, catavam pedaços
de madeira ou pescavam. Os escuros barqueiros, vestidos de coletes sem
mangas (jaleco ou camisola) ou saiotes, da Costa da Guiné passeavam ou,
estendidos no barranco, brincavam com lindas araras, que tinham trazido
rio abaixo e cujas penas brilhavam ao sol. Em um nível mais elevado do
terreno, estavam plantadas setes barracas feitas de uma armação de ma-
deira, cobertas de couro, onde os negociantes que não se dignam a alugar
uma casa trocam sal e panos por mantimentos e produtos semelhantes.28

Os mercados africanos decerto eram memórias vivas ao viajante, que


pouco antes de atravessar o Sertão do São Francisco, no período de 1861-
1864, esteve na costa Atlântica africana.29 Burton identifica elementos su-
tis, mas importantes sobre a presença do negro na região, os “coletes sem
mangas, os saiotes da Costa da Guiné”, a “cantoria monótona dos negros

27. Notório participante da produção dos discursos europeus sobre o Oriente e a África que
tiveram curso em sua época, Burton percorre o rio São Francisco numa canoa, o registro da
viagem está presente no livro “Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.”
28. BURTON, Op. cit., p.209.
29. Durante os anos 1861-1864, imediatamente anteriores à sua vinda ao Brasil, Burton foi o
cônsul britânico na ilha de Fernando Pó, ao largo da costa atlântica da África. In: GEBARA,
Alexsander. A África de Richard Francis Burton: antropologia, política e livre-comércio,
1861-1865. São Paulo: Alameda, 2010.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 265


medindo feijão”, os escuros barqueiros. Informações que apontam para as-
pectos étnicos, culturais e da vida material dos homens negros na região.
O olhar imperialista30 com a acuidade para apreender o “exótico” o fez
estabelecer semelhanças e apontar de quando em vez o negro durante sua
viagem pelo Noroeste de Minas.
A presença de africanos no porto de Januária com os traços de suas
culturas reconstruídos e reinventados no Brasil denota que ali se instalou
uma comunidade com seus hábitos de trabalho e cultura. Se lançarmos o
olhar sobre suas margens no século XX, o ritmo do trabalho movido ao
canto e as agremiações de negros em torno do rio descritas por Burton
ainda podem ser observados.
As lavadeiras das fotografias na página seguinte são indícios do que
apontamos. As casas de taipas ao fundo da segunda imagem indicam que
os descendentes dos trabalhadores africanos ainda estavam por ali, traba-
lhando e vivendo em conjunto.31

Januária- lavadeira. In: PEREIRA, A.E. (2008,.49)

30. FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sobre Burton e a construção dos discursos euro-
peus sobre os africanos. Afro-Ásia, n.50, Salvador, jul.-dec. 2014.
31. Ver dissertação SILVA, Johnisson Xavier. O terno dos temerosos: as transformações e
sentidos de suas práticas culturais na segunda metade do século XX. 2014. 155f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-graduação
em História, Uberlândia, 2014.

266 - Urdiduras da história


Acervo pessoal – João Damasceno - Januária – 1972.

O viajante esteve atento às formas de trabalho na região, observando


a vida material dos negros ribeirinhos descreve as atividades do sertanejo
em Januária:

O barqueiro de verdade é um tipo como dos velhos dias da Inglaterra: é


também um homem que nasceu livre, poucos viajantes gostam de empre-
gar escravos. Mais industriosos que os nossos marinheiros, como o africa-
no ele está inteiramente familiarizado com todas as pequenas atividades
necessárias ao seu bem estar; é capaz de construir sua casa ou seu abrigo e
de fazer telhas ou sua roupa-artes que entre os civilizados, exigem divisão
de trabalho.32

Em outro relato, o viajante descreve um homem que empregou, “livre,


mas preto como meus sapatos”.33 Embora o uso da mão-de-obra escravi-
zada seja mais presente em Januária do que nas outras regiões do Norte de
Minas, no período da passagem de Burton pela cidade, o sistema escravista
já tinha perdido sua força, sendo mais comum a presença de indivíduos
livres do que escravizados. Notemos ainda que, apesar da escravidão ainda
vigente, esse homem sertanejo é livre, embora Burton tenha acostumado
a representar e ver as representações dos homens negros como cativos. As

32. BURTON, Op. cit., p.178.


33. Ibidem, p.214.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 267


habilidades e saberes técnicos, capazes de construir sua casa, fazer telhas
e roupas são heranças africanas que permitem relacionar com o ambiente
e recursos naturais, agindo e construindo seu sustento e por consequência
sua liberdade, ao contrário do trabalhador europeu que já conhecia o pro-
cesso de alienação na produção.
Antes de chegar a Januária, passando por São Romão, ao descrever a
região Burton menciona que não teve uma boa impressão do lugar, “não
havia ali uma única pessoa branca”:

[...] constituíram, um “magote” de bodes e cabras, caboclos e negros. A


classe inferior- se ela existe, nessa terra onde reina a perfeita igualda-
de, teórica e prática- anda em mulambos; (...) mal educados, mal tinham
energia suficiente para se reunirem em grupos nas portas e janelas, os
homens para observar, as mulheres para comentar o forasteiro que passa-
va. Algumas negras velhas trabalhavam em roças primitivas, mas a rede,
apesar do tempo frio, era o local preferido.34

Após caracterizar os habitantes de São Romão como um ajuntamento


de bodes (gíria ofensiva que significava mulato) e cabras (termo usado para
indicar a mestiçagem entre índio e mulatos, usado também de maneira
ofensiva), em nota, Burton analisa que a miscigenação entre o “homem
vermelho” e o negro foi indicada (não se sabe se indicada no Brasil como
um todo ou apenas na região) como maneira de evitar o extermínio dos
índios.
Voltemos mais uma vez ao trecho do livro “O rio da unidade nacional:
o São Francisco (reportagem ilustrada)” de Carvalho, acima citado. Per-
cebe-se que há uma confluência de abordagens, embora um autor esteja
escrevendo em fins do século XIX e o outro nas primeiras décadas do sé-
culo XX. A aliança entre índios e negros em Carvalho é apresentada como
forma de unir forças para o exercício do banditismo e em Burton, como
maneira de evitar o extermínio. Embora um escreva sob a égide da noção
de desenvolvimento e modernização, e o outro, a partir das teorias raciais
e racistas e da noção de degeneração do século XIX: “Não há necessidade
de se preservar uma raça selvagem e inferior, quando suas terras precisam
ser melhor aproveitadas; e, nesse caso, a raça artificial seria ainda pior que

34. Ibidem, p.202.

268 - Urdiduras da história


qualquer das duas raças naturais”.35
Lendo os dois autores na contramão de suas abordagens, dão indício
de como as comunidades indígenas e negras, apesar das constantes tenta-
tivas de extermínio, construíram maneiras de sobrevivência por meio de
alianças, que incluem a miscigenação. Aqui não se pode inferir que seja
uma forma de etnogênese36, nem concluir que houve uma perene aliança
entre índios e negros, mas o fato de, segundo Burton, em São Romão
não haver, em sua passagem, sequer uma pessoa branca, é indiciário da
permanência dos grupos negros e indígenas em seus territórios, resistindo
à ação dos caçadores de quilombos e exterminadores de índios no Sertão
do São Francisco.
Burton foi incapaz de criar outras representações, baseadas em as-
pectos culturais e sociais, dados os lugares sociais e o período histórico
em que viveu. O olhar dele se prendeu ao fenótipo e perspectivas raciais,
talvez daí “a má impressão”. O viajante também se incomodou com os
hábitos festivos dos são romenses:

Não era fácil dormir, com a barulheira; parece que ali as horas da noite
foram feitas “para o homem beber, e a mulher “rabujar”
O samba e o pagode formaram um concerto com os elementos; o retinir
dos instrumentos e a agudeza das vozes davam a impressão de uma verda-
deira cantoria africana, de uma orgia em Unyaanguruwe.37

Os hábitos desregrados e a noção de degeneração mais uma vez são


vislumbrados nos discursos do viajante. A festividade, a religiosidade negra
são percebidas como indício de degeneração moral, quando não um perigo
para a sociedade. Mas o que chama atenção é, mais uma vez, a compa-
ração do samba e do pagode das festividades com os cantos africanos. A
comparação entre aspectos das práticas cotidianas e culturais, do trabalho
dos negros no Sertão do São Francisco e os africanos não se deu apenas no
olhar do viajante, mas pode-se inferir que o Rio São Francisco transportava
gentes, mas também bens materiais, culturais e religiosos, “trocados” nas e
através das vias fluviais.

35. BURTON, Op. cit., p.204.


36. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura
nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
37. BURTON, Op. cit., p.202.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 269


Os quilombos e as comunidades indígenas buscaram regiões de difícil
acesso no sertão, mas não isoladas, ilhadas. Os panos da Costa da Guiné,
os cantos, os sambas, foram trazidos junto com os negros, fugidos ou livres,
mas que estabeleceram interações comerciais e culturais, principalmente
através do comércio com a província da Bahia.
Os quilombos e territórios negros no Sertão do São Francisco, apesar
da perseguição que se intensificou em 1850, com a Lei de Terras, cons-
truíram maneiras de resistência e vivência. Essa resistência foi considera-
da muitas vezes como bandidagem e desordem. Entender os caminhos da
construção da liberdade dos negros e comunidades quilombolas no Sertão
do São Francisco, seja através da violência, ou da relação e significação dos
territórios é fundamental para juntar os fios partidos de uma história bor-
dada, mas puída e estraçalhada pelo tempo. Os indícios aqui apresentados
são apenas alguns dos caminhos trilhados pelos quilombolas e negros no
Sertão do São Francisco. Apesar das narrativas dessas trajetórias serem la-
cunares, são importantes, pois apontam para os vínculos históricos que os
remanescentes de quilombo possuem com o território.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: iden-


tidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003.

BURTON, Richard Francis. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano


Atlântico. São Paulo/Belo Horizonte: Editora da USP/Itatiaia, 1977.

CARVALHO, Orlando M. O rio da Unidade Nacional o São Francisco


(reportagem ilustrada). vol. 91. Rio de Janeiro: Companhia Editora Na-
cional, 1937.

CEDEFES. Comunidades quilombolas de Minas Gerais: Entre direitos


e conflitos. Belo Horizonte, 2013.

COSTA, João Batista de Almeida. Fronteira regional no Brasil: o en-


tre-lugar da identidade e do território baianeiros em Minas Gerais. Dis-
ponível em: www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/article/viewFile/554/475

270 - Urdiduras da história


Acesso em: 22 out. 2020.

ESBOÇO histórico do município da Januária. Revista do Arquivo Públi-


co Mineiro. Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais. v. 11, n
1, 1906.

FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sobre Burton e a construção dos


discursos europeus sobre os africanos. Afro-Ásia, n.50, Salvador, jul.-
-dec. 2014.

GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Ita-


tiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos: uma história do


campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.

LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia de viagem: escravos e libertos em


Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

MATA-MACHADO, Bernardo. História do Sertão Noroeste de Mi-


nas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.

PROÊNÇA, Cavalcanti M. Ribeiro do São Francisco. Rio de Janeiro:


Laemmert, 1994.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um
fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 13. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1979.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

SAINT-HILAIRE, Auguste Prouvençal de. Viagem pelas províncias


do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1974.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 271


_____. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte, Editora Itatiaia;
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975.

SAMPAIO, Theodoro. O Rio de S. Francisco e a Chapada Diamantina.


São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SILVA, Johnisson Xavier. O terno dos temerosos: as transformações e


sentidos de suas práticas culturais na segunda metade do século XX. 2014.
155f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Uberlândia, Programa de Pós-graduação em História, Uberlândia, 2014.

SOUZA, Laura de Mello e. Violências e práticas culturais no cotidiano


de uma expedição contra quilombos- Minas Gerais,1769. In: REIS, João
José; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um fio: História
dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

TRIGUEIROS, Edilberto. A língua e o folclore da bacia do São Fran-


cisco. Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos
Culturais, Fundação Nacional de Arte, Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro, 1977.

WELLS, J. Explorando e viajando três milhas através do Brasil: do Rio


de Janeiro ao Maranhão. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995.

272 - Urdiduras da história


Sobre os organizadores

Artur Nogueira Santos e Costa


Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia e doutoran-
do em História pela Universidade de Brasília. Suas pesquisas enfocam em
temas como ensino de história, escola pública, currículos e história cultural.

Jeremias Brasileiro
Mestre e doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Escritor, poeta, com textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-bra-
sileira, possui quase 30 livros publicados e é âncora de diversos documen-
tários e curtas-metragens, bem como personagem e participação artística
em outros. É também Comandante Geral da Festa da Congada da cidade
de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005, e presidente
da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba,
Minas Gerais, desde o ano de 2011.

Tadeu Pereira dos Santos


Mestre e doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Tem atuação na área de História do Brasil, especialmente nos seguintes te-
mas: Ensino de História, Grande Otelo, Cultura popular, Cinema e His-
tória, educação e linguagens urbanas. É professor efetivo da Universidade
Federal de Rondônia.

Sobre os/as autores/as

Aline Ferreira Antunes


Mestra em História pelo PPGHI/UFU e doutora em Performances Cul-
turais pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente, é professora efe-
tiva na Secretaria de Estado Educação do Distrito Federal, na Educação
Básica.
Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira
Mestre e doutor em História pelo PPGHI/UFU. Suas pesquisas versam
sobre cultura popular, festas populares, memórias e religiosidades. É do-
cente na Educação Básica, com atuação na Secretaria de Estado de Edu-
cação Básica.

Caio Vinícius de Carvalho Ferreira


Mestre e doutor em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisas sobre po-
lítica, ditadura militar e imprensa. Atualmente, é docente na rede pública
de ensino do estado de São Paulo.

Jaqueline Souza Gutemberg


Mestra e doutora em História pelo PPGHI/UFU, tem vasta experiência
de pesquisa no campo história e música, com foco na música sertaneja.
Atuou como professora substituta no Departamento de História da Uni-
versidade Federal do Triângulo Mineiro e, atualmente, é docente na Edu-
cação Básica.

Johnisson Xavier Silva


É mestre e doutor em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisas voltadas
para as áreas de cultura popular, relações étnico-raciais e comunidades qui-
lombolas no Norte de Minas Gerais. É professor do Instituto Federal do
Norte de Minas Gerais, Campus Pirapora.

Patrícia Giselia Batista


Mestra em História pela Universidade Estadual de Montes Claros e dou-
tora em História pelo PPGHI/UFU. Fez doutorado sanduíche, como bol-
sista CAPES do Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nas-
cimento, no Interdisciplinary Center for the Study of Global Change (Univer-
sity of Minnesota/EUA). Suas pesquisas versam sobre Estudos Culturais,
raça, gênero, teorias decoloniais e feminismos negros.

Raniele Duarte Oliveira


Mestra e doutora em História pelo PPGHIS/UFU, com pesquisa sobre
campo e cidade, memória e imprensa no Brasil republicano. É professora
efetiva na Educação Básica, no Estado de Minas Gerais.

274 - Urdiduras da história


Robert Mori
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia e
Doutor em História pelo PPGHI/UFU, com pesquisas sobre História do
Brasil Colônia, História Indígena, processos de contato interétnico, guer-
ras indígenas, aldeamentos e etnogênese. Realiza estágio pós-doutoral no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM) e é docente da Secretaria de Educação de
Minas Gerais.

Roberto Camargos
Possui mestrado e doutorado em História pelo PPGHIS/UFU, com estu-
dos concentrados na área de história e música, culturas urbanas e periféri-
cas. Entre 2018 e 2019, atuou como professor substituto no Departamento
de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. É professor da
Educação Básica, na rede municipal de Uberlândia, e tem experiência com
produção cinematográfica e audiovisual.

Rosana de Jesus dos Santos


Possui mestrado e doutorado em História pelo PPGHI/UFU, com pes-
quisa vinculada aos estudos feministas, de gênero e sobre os feminismos
negros. Desde 2015, é professora no Instituto Federal do Norte de Minas
Gerais.

Túlio Henrique Pereira


Mestre em Memória: linguagem e sociedade pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia e doutor em História pelo PPGHI/UFU. Suas pes-
quisas versam sobre temas como identidades étnicas e afro-brasileiras;
história da pele e do corpo negro no Brasil; escravidão negra no Brasil
Imperial, Pós-Colonialismo e Primeira República; imagens plásticas e vi-
suais; século XIX e XX; cultura; memória e representação. Atualmente, é
professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Regio-
nal do Cariri.

tramas, linguagens e formas de produção do conhecimento - 275


esta obra foi composta em caslon para a editora
cancioneiro em abril de 2022.

Você também pode gostar