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DULCELI TONET ESTACHESKI · DANILO LEITE MOREIRA

CAMINHOS DA APRENDIZAGEM
HISTÓRICA: RELAÇÕES DE GÊNERO E
SEXUALIDADES
Reitor:
Prof. Dr. Marcelo Augusto Santos Turine - UFMS
Vice-Reitora:
Profa. Dra. Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo
Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte:
Prof. Dr. Marcelo Fernandes.
Direção da Faculdade de Ciências Humanas: 2
Profa. Dra. Vivina Dias Sol Queiroz
Coordenação do Curso de História:
Prof. Dr. Cleverson Rodrigues

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
André Bueno [UERJ]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

LAPHIS- laboratório de Aprendizagem Histórica


UNESPAR, União da Vitória

Coordenador
Everton Crema

Ficha Catalográfica
Estacheski, Dulceli Tonet; Moreira, Danilo Leite (org.)
Caminhos da Aprendizagem Histórica: Relações de Gênero e Sexualidades.
1ª Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2021.
ISBN: 978-65-00-24360-4
Ensino de História; Relações de Gênero; Sexualidades
Sumário
APRESENTAÇÃO: GÊNERO, EDUCAÇÃO, ENSINO DE HISTÓRIA: POR UMA PRÁXIS NECESSÁRIA
Danilo Leite Moreira e Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski ........................................................ 7
O SOAR DOS VERSOS DE CONCEIÇÃO EVARISTO: EXPERIÊNCIAS E ATRAVESSAMENTOS A
3
POTÊNCIA DA SALA DE AULA
Adriana Martins de Paula Araújo e Luiz Gustavo Mendel Souza ................................................ 11
POR QUE ENSINAR A HISTÓRIA DAS MULHERES? EDUCAÇÃO, ENSINO DE HISTÓRIA E O DEBATE
DE GÊNERO
Alana Rasinski de Mello e Angela Ribeiro Ferreira...................................................................... 19
MULHERES, CASA E O LAR: ECONOMIA DOMÉSTICA E OS DISCURSOS DE FEMINILIDADE NO
BRASIL NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX
Amanda de Lima de Almeida ...................................................................................................... 28
MÉLISSA ENTRE O REAL E O IDEAL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA
Ana Maria Lucia do Nascimento ................................................................................................. 36
ENSINO DE HISTÓRIA, GÊNERO E HISTORICIDADE: UM OLHAR A PARTIR DE REVISTAS FEMININAS
Beatriz Rodrigues e Flávia Mantovani ......................................................................................... 46
O MAL QUE CAUSA O HOMEM DE BEM: UM OLHAR SOBRE O HOMEM BRANCO BRASILEIRO
Caroline Trapp de Queiroz e Flavio de Souza.............................................................................. 53
HELOÍSA MARINHO: AS EXPERIÊNCIAS QUE SE CONSTITUEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL SÃO A
FONTE DA VERDADEIRA APRENDIZAGEM QUE LÁ ACONTECE
Cláudia Sena Lioti e Márcia Marlene Stentzler ........................................................................... 60
PIBID E AS MULHERES NEGRAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA: RELATO DE UM ESTUDO
VIVENCIADO EM SALA DE AULA
Daiane da Silva Vicente e Marlane Leite da Silva ........................................................................ 69
O ENSINO DE HISTÓRIA E GÊNERO: REFLEXÃO NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
Darcylene Pereira Domingues e Rafaela Lima de Oliveira .......................................................... 76
MARIA LACERDA DE MOURA E SUBVERSÕES EM AMAI E... NÃO VOS MULTIPLIQUEIS
Fernanda Loch ............................................................................................................................. 84
DECOLONIALIDADE, GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Georgiane Garabely Heil Vázquez e Mariana Barbosa de Souza ................................................ 93
MENSTRUAÇÃO E LEITE MATERNO: CONCEPÇÕES MÉDICAS ACERCA DAS MANIFESTAÇÕES DO
CORPO FEMININO EM ERÁRIO MINERAL (1735) DE LUÍS GOMES FERREIRA NO SETECENTOS
Gessica de Brito Bueno e Christian Fausto Moraes dos Santos ................................................ 101
EVA PERÓN: ENTRE O SANTO E O PROFANO
Ivana Aparecida da Cunha Marques ......................................................................................... 110
A HISTÓRIA DAS MULHERES NO MEDIEVO: A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO DECAMERÃO
(1348-1353) DE GIOVANNI BOCCACCIO (1313-1375)
José Carlos da Silva Ferreira ...................................................................................................... 116
ASPECTOS DO MUNDO FEMININO MARGINALIZADO NO TRATADO DO AMOR CORTÊS
(C.1186) DE ANDRÉ CAPELÃO (1150-1220) 4
Juliana Caroline de Souza Araújo .............................................................................................. 122
PUBLICIDADE, GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: POSSIBILIDADES DIDÁTICAS NAS PÁGINAS DA
REVISTA MANCHETE
Karen Aparecida de Oliveira Leal e Angela Ribeiro Ferreira ..................................................... 131
A LITERATURA DE FRANCISCO J.C. DANTAS COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DA HISTÓRIA:
TRABALHANDO AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
Krishna Luchetti......................................................................................................................... 144
A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES AFETIVO-SEXUAIS DO MARANHÃO OITOCENTISTA
Laura Elisa de Albuquerque Leite Alves e Nila Michele Bastos Santos ..................................... 152
EDUCAÇÃO E GÊNERO: SUJEITOS E SUAS REALIDADES
Leandro Cordeiro da Silva ......................................................................................................... 160
PSICOLOGIA E ERRÂNCIA FEMININA
Luciana Codognoto da Silva ...................................................................................................... 166
DESAFIOS EDUCACIONAIS: ENSINO REMOTO E A SEXUALIDADE FEMININA NA AMÉRICA
PORTUGUESA
Mariana Ponciano Ribeiro Rennó e Nataly Souza Silva............................................................. 173
“QUE SE CALEM!” (OS HOMENS): A DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO MISÓGINO POR CHRISTINE
DE PIZAN (1364-1430) NA OBRA A CIDADE DAS DAMAS (1405)
Maristela Rodrigues Lima .......................................................................................................... 180
200 ANOS DE ENCERRAMENTO DO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: REFLEXÕES
SOBRE O PROCESSO INQUISITORIAL DE IZABEL MARIA DA SILVA NA VISITA DO SANTO OFÍCIO AO
GRÃO PARÁ E MARANHÃO (1763)
Marize Helena de Campos ........................................................................................................ 187
OS MANUAIS DE MODA COMO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
E QUESTÕES DE GÊNERO NA SALA DE AULA
Marta Gleiciane Rodrigues Pinheiro e Jakson dos Santos Ribeiro ............................................ 195
POR UM ENSINO DE HISTÓRIA FEMINISTA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO MÉDIO PRÉ-
PANDEMIA
Miléia Santos Almeida ............................................................................................................... 204
O COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO UTILIZANDO OS PROCESSOS CRIMINAIS DE UNIÃO DA
VITÓRIA DENTRO DA SALA DE AULA
Milena Silvério Ferreira ............................................................................................................. 213
PROJETO JUNTANDO OS CACOS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA COM ESTUDANTES DA
EDUCAÇÃO BÁSICA 5
Rafael Sampaio de Queiróz ....................................................................................................... 219
CHRISTINE DE PIZAN (1363-1430) E A DESCONSTRUÇÃO DA MISOGINIA MEDIEVAL EM A CIDADE
DAS DAMAS (1405): ALGUNS ASPECTOS EDUCACIONAIS
Raiely Godoi Melo ..................................................................................................................... 225
O CORPO FEMININO NO BOLETIM GERAL DAS COLÓNIAS (1933-1945)
Rannyelle Rocha Teixeira .......................................................................................................... 233
OS NÓS DE PAULINO: REPRESENTAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES DO PASSADO NA
CONTEMPORANEIDADE
Rebeca Nadine de Araújo Paiva ................................................................................................ 241
A HISTÓRIA E OS CORPOS MARCADOS NO TEMPO PRESENTE: UM DEBATE SOBRE OS DADOS
ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO LESTE MARANHENSE ENTRE OS ANOS DE 2000
A 2016
Rebecca Kauane Mourão Mendes ............................................................................................ 248
AS CONTRIBUIÇÕES DOS TRATADOS DE TROTULA DE RUGGIERO PARA A SAÚDE FEMININA DO
CONTEXTO MEDIEVAL E SUAS POSSIBILIDADES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Luciano José Vianna e Rita de Cássia Rodrigues ....................................................................... 256
A CATEGORIZAÇÃO DE GÊNERO NOS BRINQUEDOS E A EDUCAÇÃO INFANTIL
Samara Rodrigues Pino ............................................................................................................. 264
REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO CONTO “MENTIRA DE AMOR”
Sandra Maria Costa dos Passos Colling e Thais Gaia Schüler .................................................... 274
AS MULHERES E A MOBILIZAÇÃO OPERÁRIA NA GREVE GERAL DE 1985 NO DISTRITO INDUSTRIAL
DE MANAUS
Vanessa Cristina da Silva Sampaio ............................................................................................ 283
QUESTÕES DE GÊNERO EM OUTRAS PÁGINAS DA HISTÓRIA: IMPRESA, GÊNERO E PRÁTICAS DE
DEFLORAMENTOS OCORRIDOS NA PRIMEIRA REPÚPLICA EM CAXIAS/MA
Veronica Lima de Amorim Matos e Jakson dos Santos Ribeiro ................................................ 288
O CONTEÚDO “GÊNERO” EM LIVROS DIDÁTICOS DE SOCIOLOGIA
Walace Ferreira e Ester Torres da Silva..................................................................................... 297
6
APRESENTAÇÃO: GÊNERO,
EDUCAÇÃO, ENSINO DE HISTÓRIA:
POR UMA PRÁXIS NECESSÁRIA 7

Danilo Leite Moreira e Dulceli de


Lourdes Tonet Estacheski
No dia 19 de março de 2021, uma universidade privada de uma cidade do interior
do Paraná divulgou uma nota anunciando a demissão de um de seus
professores. O motivo do ocorrido: o docente disse em uma aula online –
dinâmica adotada como alternativa em tempos da pandemia do novo
coronavírus – que “se o estupro é eminente, relaxe e aproveite”. A fala,
evidentemente, causou indignação, foi denunciada e o tema ganhou as redes
sociais provocando uma ação imediata da instituição de ensino e de outras
instituições e coletivos feministas. Não é aceitável que preconceitos,
discriminações e violências sejam assim disseminadas e as justificativas da
‘piada’ ou da ‘analogia’ não são cabíveis. No entanto isso ainda ocorre, como é
perceptível, e falas como essa encontram defesa em discursos retrógrados de
sujeitos machistas, racistas, LGBTfóbicos que infelizmente se instalaram em
diferentes locais de poder.

Este ocorrido foi provocado por um professor universitário e infelizmente é um


entre tantos, vale lembrar que o ex-marido de Maria da Penha também era
professor universitário, e que há poucos meses ganhou repercussão nacional o
caso de outro professor universitário que mantinha em casa uma mulher em
regime análogo ao da escravidão. É angustiante pensar e escrever sobre isso,
mas ressaltamos esses fatos para afirmar o quão necessário é a reflexão sobre
gênero e educação. O espaço acadêmico deveria ser o espaço do
conhecimento, da diversidade, da inclusão que estimula a transformação social,
que colabora para a construção de um mundo melhor. Temos visto que essa
percepção ainda não é a tônica de muitas ações e discursos, não apenas na
universidade, mas também nas escolas de educação básica, outro espaço que,
como alertou Hannah Arendt (1997) deveria ser ocupado por pessoas que amam
o mundo e se sentem responsáveis por ele, mas onde ainda se vê resistência
em relação a questões tão importantes como as de gênero.

Não é mais um tema novo, não há mais dificuldades em encontrar bibliografias


a respeito e se disseminam os eventos e cursos que tratam da temática, no
entanto, ainda é necessário debatermos sobre os alcances de tudo isso. Em
‘Pedagogia do Oprimido’ Paulo Freire (1987, p. 70) afirma que o “quefazer é
práxis”, com isso argumenta que a prática sem reflexão configura-se em ativismo
enquanto o contrário traduz-se em verbalismo e a revolução, a transformação,
só ocorre com a práxis, com a ação refletida e com a reflexão que move a ação
libertadora. Avançamos, mas ainda temos um percurso longo pela frente.
Nossas pesquisas e escritos precisam chegar a diferentes públicos e provocar
debates e ações. Nossas ações devem impulsionar mais pesquisas e reflexões.
É preciso ocupar espaços para transformá-los. 8

Esse livro, resultado da Mesa Temática ‘Ensino da história das relações de


gênero e sexualidades’ organizada por nós para o 7º Simpósio Eletrônico
Internacional de Ensino de História, ocorrido entre os dias 24 a 28 de maio de
2021, pretende ser um convite à reflexão sobre como nós que pesquisamos na
área de estudos de gênero e educação e/ou atuamos na educação básica e/ou
universitária temos refletido sobre nossas práticas e sobre como nossas
reflexões impulsionam outras posturas, outras ações. Que alcances atingem
nossos textos, nossas falas, nossas ações? O que ainda é necessário pesquisar
e fazer para transformar a realidade que oprime, exclui e violenta?

O livro é também a reunião de diferentes textos que socializam resultados de


pesquisas, de reflexões teóricas e de ações práticas desenvolvidas em
diferentes espaços educacionais que podem ser explorados por todas as
pessoas que almejam por mais conhecimento na área. As experiências relatadas
podem ser inspiração para ações semelhantes nas escolas e/ou universidades.

Recebemos um número significativo de textos o que demonstra o avanço nas


pesquisas na área e também o avanço nas ações efetivas na educação básica,
pois relatos de experiências diversas foram recebidos. Esperamos que a leitura
dos textos instigue a todos os leitores e leitoras a questionarem-se e a
questionarem o mundo. Joan Scott, ícone dos estudos de gênero afirmou que “o
historiador pode interpretar o mundo ao mesmo tempo que tenta transformá-lo”
(SCOTT, 1994, p. 19), ressaltamos que educadoras e educadores podem fazer
o mesmo. Sabemos que a violência de gênero é uma triste realidade, mas como
pesquisadores e pesquisadoras, como professoras e professores, não podemos
permitir que ela continue se propagando nos espaços educacionais sem
nenhuma resistência, sem nenhuma luta pela mudança, pela transformação
desses espaços e das pessoas que deles partilham, pois elas podem mudar o
mundo.

Você encontrará nesse livro textos que abordam as possibilidades de exploração


das diferentes linguagens de ensino, como o de Krischna Luchetti, mestranda do
Programa de Pós Graduação em História e Espaços da UFRN, que apresenta
as possibilidades da literatura como recurso didático no texto ‘A literatura de
Francisco J. C. Dantas como recurso didático no ensino de História’. Ou de Karen
Aparecida de Oliveira Leal e Angela Ribeiro Ferreira, da UEPG, que exploram
as possibilidades didáticas da publicidade analisando a Revista Manchete no
texto ‘Publicidade, Gênero e Ensino de História’.
Relatos de experiências escolares como o de Rafael Sampaio de Queiroz,
professor de História da Rede Estadual do Mato Grosso do Sul, que desenvolveu
o projeto ‘Juntando os cacos’ com estudantes do ensino médio ou de ações de
extensão universitária, a exemplo do curso ‘Gênero e Decolonialidade’
promovido pelo Laboratório de Estudos de Gênero, Diversidade, Infância e
Subjetividades – LAGEDIS, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em 9
História (PPGH/UEPG), aqui apresentado por Georgiane Garabely Heil Vásquez
e Mariana Barbosa de Souza são fundamentais, pois servem de inspiração para
a prática.

Análises de livros didáticos, como a elaborada por Walace Ferreira, professor de


Sociologia da UERJ e Ester Torres da Silva, bacharel e licenciada em Ciências
Sociais pela UERJ, no texto ‘O conteúdo ‘Gênero’ em livros didáticos de
Sociologia’, instigam a pensar sobre o que já alertou Jörn Rüsen (2010, p. 110):
“Os profissionais devem sempre tomar cuidado, prestar atenção e insistir em
que, na medida do possível, o estado de investigação de sua matéria chegue
sem grande demora aos livros didáticos” que são ainda os materiais mais
utilizados no ensino da Educação Básica.

Alguns textos recebidos não abordaram especificamente as discussões relativas


ao ensino de História ou à educação, no entanto, foram considerados relevantes
para compor o conjunto de textos publicizados no evento e neste livro por
comportarem conteúdos significativos como o texto de Amanda de Lima Almeida
intitulado ‘Mulheres, Casa e o Lar: economia doméstica e os discursos de
feminilidade no Brasil nas primeiras décadas do século XX’ ou de Luciana
Codognoto da Silva, ‘Psicologia e errância feminina’ que analisa narrativas de
mulheres que vivem experiências de nomadismo: situações de rua, trecheiras ou
andarilhas.

O tema da violência de gênero é também abordado, como no texto de Sandra


Maria Costa dos Passos Colling e Thais Gaia Schüler, ‘Reflexões sobre violência
doméstica no conto ‘Mentira de Amor’’. Consideramos que temática tão relevante
não poderia ficar de fora do evento e do livro, pois uma das questões caras para
a reflexão de gênero em educação é justamente o combate à violência.

Reflexões interseccionais que analisam e entrelaçam as categorias de gênero e


raça, por exemplo, estão também presentes em diferentes textos. Cito como
exemplos os textos ‘O corpo feminino no Boletim Geral das Colônias (1933-
1945)’ de Rannyelle Rocha Teixeira e ‘Os nós de Paulino: representações e
ressignificações do passado na contemporaneidade’ de Rebeca Nadine de
Araújo Paiva.

Não mencionamos aqui nessa apresentação todos os textos que foram incluídos
no livro, mas convidamos a percorrer o sumário e perceber a diversidade
temática presente nele, o que evidencia as múltiplas possibilidades de pesquisa,
de ensino e de aprendizagem na área.
Esperamos que a leitura seja uma experiência profícua, experiência não como
algo que apenas ocorre em nossas vidas, mas como aquilo que nos toca
profundamente, nos afeta e nos move a agir em prol de uma educação realmente
libertadora e de um mundo onde as pessoas tenham direito de existir, onde
possam ‘ser’ sem medo.
10
Referências biográficas

Dr. Danilo Leite Moreira, professor do Curso de Pedagogia da Associação


Novaandradinense de Educação, Nova Andradina/MS. Doutor em História pela
Universidade Federal da Grande Dourados. Pesquisador no Grupo de Pesquisa
do CNPq – Laboratório Interdisciplinar de Estudos Culturais.

Dra. Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski, professora adjunta do Curso de


História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova
Andradina. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa do CNPq – Laboratório
Interdisciplinar de Estudos Culturais.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o


Passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA,
Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de
História. Curitiba: UFPR, 2010.

SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu.


UNICAMP. N. 3. 1994.
O SOAR DOS VERSOS DE
CONCEIÇÃO EVARISTO:
EXPERIÊNCIAS E 11

ATRAVESSAMENTOS A POTÊNCIA
DA SALA DE AULA
Adriana Martins de Paula Araújo e Luiz
Gustavo Mendel Souza
Em entrevista para o programa Estação Plural, Conceição Evaristo exemplifica
seu conceito de “escrevivência” através da relação violenta da experiência
colonial brasileira. Para a autora a noção de “escrevivência” se aproximaria das
narrativas utilizadas pelas africanas e suas descendentes que contavam suas
histórias para adormecer os filhos da casa-grande. Na concepção de Evaristo,
as narrativas das mães-pretas não serviam apenas para ajudar adormecer os
filhos dos sinhôs, mas para despertá-los da cruel realidade (EVARISTO, 2017).

Conceição Evaristo se utiliza desse conceito para explicar o desenvolvimento de


seus romances que hora parecem ficcionais, ora parecem reais. Ela menciona
que a “escrevivência” traz em si a noção da vivência que possibilita autoras e
autores trazerem e tratarem em suas escritas as experiências vividas enquanto
vivência individual ou coletiva. No tocante a este aspecto, podemos realizar um
paralelo com a elaboração da lei 10.639/03 que tornou obrigatória a abordagem
da história e cultura africana e afro-brasileira. A existência desta lei traz em si
uma trajetória de lutas do Movimento Negro para elaboração de um ensino mais
democrático e representativo (GOMES, 2012), afastando-se do modelo
conservador biográfico que enaltece a história tradicional (BITTENCOURT,
2005). Desta forma, a lei 10.639/03 é a manifestação de memórias e histórias
silenciadas por séculos, entendemos a implementação da lei como a ascensão
de demandas sociais contra o “epistemicídio” ocasionado pela educação
tradicional. Segundo Boaventura de Souza Santos (1997), o “epistemicídio” é o
assassinato ou silenciamento de todas as formas outras de pensamento para
além do eurocentrado. A abordagem da História da África e da Cultura Afro-
brasileira é a possibilidade de ascensão destes conhecimentos há muito
silenciado. Dentre as formas de cumprimento desta lei nas salas de aula,
contemplamos na literatura de Conceição Evaristo a possibilidade de
debatermos com os alunos textos que se aproximam de suas realidades
vividas.
A “escrevivência” de Conceição Evaristo corrobora para uma abordagem
interseccional através de suas narrativas ficcionais que entrelaçam histórias e
memórias de uma grande parcela da população brasileira. Em obras como
“Ponciá Vicêncio” (2003), “Becos da Memória” (2006) ou em “Olhos D’água”
(2014) vemos uma gama de personagens ficcionais que transcendem as páginas
dos livros e atravessam as nossas vidas e a de nossos alunos. Foi no intuito de 12
trabalhar com textos que se aproximassem da realidade de nosso alunado que
escolhemos os contos de Evaristo contidos no livro “Olhos d’água”. Mas, para
que possamos discorrer sobre os efeitos avassaladores dessa experiência,
vamos primeiramente nos aprofundar nas questões de como o currículo
tradicional corrobora para o “epistemicídio” e o distanciamento da realidade de
nossos alunos.

O ensino tradicional e o epistemicídio

A história do ensino de História no Brasil é um exemplo de construção identitária


que, por décadas, privilegiou a hegemonia de uma cultura patriarcal, colonialista
e cristã. Os alicerces desta narrativa hegemônica são construídos no final do
século XIX, neste período a História enquanto ciência cumpriu o papel de
arquitetar a identidade nacional dos emergentes estados-nação. O modelo eleito
foi a visão Romântica da História baseada na Escola Metódica alemã que tinha
como expoentes Humboldt e Ranke. Este modelo historiográfico estava
amparado na exploração detalhada das fontes oficiais que geravam as grandes
narrativas sobre os grandes eventos e personalidades heroicas, preservando
assim a singularidade dos acontecimentos (KOSELLEK, 2006, p. 53). Na França
a escola Metódica reverberou nas obras de Charles Langlois e Charles
Segnobos, funcionários do então criado Instituto Histórico Parisiense (1834).
Ambos historiadores também foram responsáveis pela elaboração do currículo
escolar de História e das grandes obras, que também privilegiou as narrativas
românticas dos eventos.

Tal modelo foi aderido pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), que
era composto pelos professores de História do Colégio D. Pedro II, ambos
criados em 1837 (ABUD, 2004, p. 29). O currículo de história do Brasil visava
atender a formação dos filhos da nobreza, enquanto o IHGB tinha o intuito de
arquitetar a identidade nacional. O livro didático “História Geral do Brasil” (1850)
foi elaborado por Francisco Adolfo de Varnhagem, membro do IHGB. Teve como
referência a obra de Karl Von Martius datada de 1847, que enfatizou a formação
étnica brasileira e na formação do seu povo através do branco, o negro e o
indígena (MATHIAS, 2011). Mas a o foco privilegiado foi direcionado na
participação do branco português europeu e na catequese jesuítica (ABUD,
2004, p. 30).

Esse modelo narrativo eurocentrado, patriarcal e cristão ficou em vigor até 1931,
é importante ressaltar que a reforma educacional de Francisco Campos retirou
do Colégio D. Pedro II a hegemonia da produção didática da História
direcionando ao Ministério da Educação, que elaborou. uma vertente
educacional para a formação da elite burocrática brasileira. Em 1942, com a
reforma educacional de Gustavo Capanema, a história do Brasil ganha um
caráter autônomo e assume a missão de ter um viés patriótico, atendendo as
demandas da ditadura getulista. Em suma o português é culpabilizado pelo
atraso do país, o indígena ganha uma áurea romântica de nobreza da terra e
resistência à escravidão e os negros são retratados como mão-de-obra escrava. 13
Entre as décadas de 60 e 70, o modelo da História Historicizante é retomado
como fórmula para o enaltecimento dos grandes eventos e grandes heróis
brasileiros, como exigência do governo ditatorial civil-militar. Com o processo de
redemocratização brasileira na virada dos anos 80 a história do Brasil vai
ganhando novos contornos, atendendo as demandas da constituição, buscando
uma formação cidadã que permita ao aluno mecanismos e instrumentos que o
permitam ler e compreender a realidade social.

Em toda a trajetória curricular do ensino de História podemos ver a


predominância do Estado enquanto produtor de um discurso que alicerça sua
identidade nacional em um sujeito patriarcal e cristão. Podemos notar a
dimensão violência proporcionada por esta estrutura curricular no momento que
compreendemos que o modelo hegemônico das grandes narrativas, em questão
de gênero, silenciou metade da humanidade (PERROT, 1998). No tocante à
questão de raça, a filósofa Sueli Carneiro (2005) traz um arcabouço teórico para
entender a construção do “outro” no caso brasileiro. Para isso, Carneiro apropria-
se do conceito de “epistemicídio” de Souza Santos para compreender o
apagamento do “outro” enquanto produtor de conhecimento. A filósofa também
se aproxima de Foucault ao trabalhar com o conceito de “dispositivo” voltado
para a “racialidade/biopoder”, enquanto forma de disciplinar as relações raciais:
“É nosso entendimento que esse dispositivo disciplinará as relações raciais nas
sociedades pós-coloniais e as relações de soberania entre as nações
racialmente inferiorizadas.” (CARNEIRO, 2005, p. 75). Desta forma,
compreendemos o silenciamento curricular operado pelo Estado como um
mecanismo epistemicida, um dispositivo de racialidade/biopoder que não
somente apaga, mas cria o lugar do “outro”.

É importante destacar que o cunho eurocêntrico histórico é o núcleo da


eurocentricidade e ocidentalização naquilo é tocante a todas as demais áreas
das Ciências Humanas, marcando um território por meio da perspectiva e
metodologia histórica que é constituída por princípios filosóficos que acabam por
fundamentar tais narrativas como verdadeira e únicas.

Quando expandimos nossa análise para a questão racial e damos um foco maior
para o continente americano, vemos a gravidade da violência epistemicida
proporcionada pelo conceito de raça. O sociólogo peruano Hanibal Quijano
(2009) defende a ideia de que o pensamento moderno se estabeleceu através
da racialização dos povos não europeus. Quijano denomina de “colonialidade do
poder” a racialização dos povos enquanto classificação social. A
Modernidade/Racionalidade europeia tornou-se hegemônica através expansão
colonialista, tendo como seus principais pilares o capitalismo, o cristianismo e o
patriarcado. Diferente do colonialismo, que é a dominação política, econômica,
social, religiosa e militar das colônias, a colonialidade é um padrão de dominação
ideológico que impera culturalmente, mas, acima de tudo, na produção e na
destruição das formas de conhecimento. Contudo, essa dominação exerce
também um poder de aniquilação sobre culturas e sistemas que se desenvolve
por meio do apagamento da diversidade sócio-cultural dos povos, da língua e de 14
suas subjetividades. O “epistemicídio” é a ferramenta de produção em massa
do “outro”. Quijano aponta que a “colonialidade do poder” está amparada na
classificação social do “outro”, classificação esta que iniciaria na classificação de
gênero e, logo depois, raça. A Modernidade/Racionalidade eurocentrada teria
como outra face da mesma moeda a classificação social do restante do mundo,
a Racialidade. Seguindo esta mesma proposta, Walter Mignolo (2017) expande
a noção de “colonialidade” para o ser, onde o estabelecimento da
Racionalidade/Racialidade se faria através do assassinato das formas outras de
ser, ou seja, não haveria uma ontologia para além do centro mundial de produção
epistêmica, o norte global. Boaventura de Souza Santos (2009) demonstra que
a violência colonial produziu uma linha divisória do mundo entre norte e sul
epistêmico. A centralidade europeia se faria através dos canhões e das
baionetas, mas o estabelecimento se dará através do assassinato e o
silenciamento em massa das formas outras de conhecimento, colocando o sul
epistêmico muito além da “linha abissal”. Para além desta linha não há
racionalidade, é para lá que foram isolados e gerados todos os “outros” que não
estariam incorporados pelos sujeitos europeus. Desta forma, aniquilam-se os
corpos e exaltam-se as mentes racionais e racionalizadas, e por conseguintes
racializadas. Escraviza-se e expropria-se povos de terras invadidas e exploradas
e os povos e terras de além mar.

Em nosso caso os efeitos dos sileciamentos dos sujeitos outros - e que também
habitam em nós - encontram dentro das salas escolares através da ausência
destes sujeitos nos livros didáticos. Essa ausência não é sem propósito ou
gratuita e embora seja ecoada no silêncio ela é manifestada na ausência das
pigmentações das cores, na busca de verdades bem acabadas e esféricas, na
linguagem que não constitui e atravessa o corpo se centrando no peito, que se
expande para fora e não volta pra si, rompendo afetos, mentes e gerando patias
sócio-relacionais desnecessárias. Por isso que a crescente articulação dos
movimentos sociais é de extrema importância para uma democratização de um
ensino cidadão.

Por isso uma educação que se afaste da narrativa única do modelo hegemônico
patriarcal/cristão/eurocêntrico/branco/heteronormativo se faz necessário dentro
das salas de aula. Neste quesito, um clássico da pedagogia de Paulo Freire pode
ser reinterpretado pela leitura interseccional de Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge
(2021):

“Paulo Freire rejeita as análises das relações de poder baseadas apenas em


classe, defendendo a linguagem mais robusta e carregada de poder dos
‘oprimidos’. Os ‘oprimidos’ de Paulo Freire no Brasil do século XX são análogos
aos de hoje: sem-teto, mulheres, pobres, pessoas negras, minorias sexuais,
indígenas, imigrantes sem documentos, indivíduos em cárcere, minorias
religiosas, jovens e pessoas com deficiência. O uso que Paulo Freire dá aos
termos ‘opressão’ e ‘oprimido’ evoca as desigualdades interseccionais de classe,
raça, etnia, idade, religião e cidadania”. (COLLINS; BILGE, 2021, p.212).
15
Entendemos as potencialidades contidas nos textos de Conceição Evaristo como
ganhos proporcionados pelas leis que tratam como obrigatoriedade as leituras e
debates sobre os grupos sociais e etnias suprimidas pela grande narrativa
histórica. A lei 10.639/03, complementada pela lei 11.645/08 são frutos das
demandas e lutas dos movimentos negros e indígenas (GOMES, 2012;
DANTAS, ABREU, MATOS, 2012). Segundo Arroyo: “os coletivos populares se
reconhecem sujeitos de conhecimentos, de valores, culturas, sujeitos de
processo de humanização/emancipação.” (ARROYO, 2012, p.25). Tais leis são
de suma importância para trazer o debate para o desenvolvimento da equidade
entre as epistemes dentro das salas de aula, trazer o reconhecimento da
sofisticação e complexidades das formas outras de produção cultural, religiosa
e de conhecimento dos povos indígenas, africanos e afro-brasileiros (SIMAS,
RUFINO, 2019).

Os efeitos da “escrevivência” em sala de aula

No ano de 2019 realizamos um trabalho em conjunto com a biblioteca da escola


estadual em que trabalhávamos. A escola é situada em São Gonçalo, o
município encontra-se na Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro e é
a segunda cidade mais populosa, contando com uma área de 248,160 km² e
uma população estimada de 1.091.737 pessoas (IBGE, 2020). A cidade também
sofre com a incidência de pobreza de 39,86% da população, segundo o censo
de 2003 (o último gerado pelo IBGE). Dentro dessa realidade, encontramos um
colégio técnico que atende cerca de 310 alunas e alunos com uma diversidade
de questões sociais, familiares, de gênero e raça.

O projeto era a escolha e utilização do livro “Olhos d’água” de Conceição Evaristo


em nossas aulas, que alinhavavam as diferentes disciplinas da área de ciência
humanas. Para assim compormos, entre Filosofia, História, Geografia e
Sociologia com a potência transformadora da Literatura uma tessitura que desse
a ver os corpos e vozes, apagados, silenciados e ocultados. No ano anterior nós
havíamos selecionado a obra de Evaristo dentre os títulos disponibilizados pela
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) ofertados
pelo Programa do Livro Literário, desta forma, a biblioteca recebeu 120 cópias.
Planejamo-nos utilizar o primeiro tempo de nossas aulas para lermos um conto,
fazendo a escuta desses sujeitos em nós e mergulhamos com as turmas nas
histórias nossas que muitas vezes nos foram negadas a visibilidade e silenciada
na nossa voz, quer presente, quer ausente – por meio de nossa ancestralidade.

Um livro de contos da Conceição Evaristo atravessado pela noção de


“escrevivência”, trazendo em sua escrita a oralidade ancestral que carregamos
em nossos corpos o tempo todo. Uma de nossas dificuldades enquanto leitores
é a de nos enxergarmos nos textos literários, porque a literatura nos atravessa e
tece fios que vem e vai do escritor para o leitor e do leitor para o orador, daquele
que vai contando essas histórias, por mais que não esteja mais lendo. Os contos
de “Olhos d’água” são textos que tratam do “lugar de fala” – enquanto
consciência do lugar social que ocupa (RIBEIRO, 2017) – dos periféricos, 16
pretos, pobres, pardos (indígenas e miscigenados) favelados, atravessados por
essas vidas que são sobrevidas e não são experiencialmente vividas
inteiramente. A partir das leituras nós discutimos, projetamos, construímos e
costuramos a vida, não só dos professores que estavam lendo, mas dos alunos
em sala de aula, uma troca de experiências. Através de uma relação afetiva em
que todo mundo precisa dizer e precisa ouvir, todos tem o que contar e como se
ver naquelas histórias. Se não a si mesmos, a mãe, a tia, a avó, o pai, o primo,
o amigo, alguém que se perdeu, alguém que a gente conheceu ou até a nós
mesmos. Tanto nós poderíamos estar no lugar daqueles personagens que são
tratados nos diversos contos quanto de nossos entes queridos.

As discussões e afetações tomaram tamanha proporção que envolveu


professores da área de Humanidades e Linguagens, além dos demais docentes
que contavam suas experiências na leitura do livro na ação de levá-lo para além
da escola, utilizando em seus outros trabalhos. As leituras dos contos foram se
tornando uma composição dentro – e fora - da sala de aula, foram costurando
junto aos conceitos e as discussões dos temas que estávamos trabalhando
naquele momento nos conteúdos do currículo. No entanto, emergiam e
submergiam, transbordavam para dentro e para fora, afetos de (re)conhecimento
e subjetivação. Em suma, foi um processo de transbordamento da sala de aula,
desaguando no ouvido, no corpo do colega professor ou professora,
atravessando o corpo do aluno e transbordando na casa dele. Ouvíamos relatos
de alunos que levaram e leram os contos em suas casas para seus parentes,
alguns falavam das lágrimas que os contos geravam. E ouvíamos na voz trêmula
e ofegante o que o copo dos discentes nos (re)contavam:

“Professora, eu li um conto da Conceição para a minha mãe e minha mãe chorou!


Eu nunca pensei que eu ia ler para minha mãe e minha mãe chorou comigo lendo
para ela! Você acredita nisso?! Porque ela também se viu na história e ela
começou a contar que ela se lembrou da mãe dela e o que aconteceu com o pai
dela!”

Essa escrita de vida, que mistura a tênue linha entre a ficção e realidade sem
que saibamos aonde começa uma e termina a outra, trouxe à tona histórias e
afetos ancestrais que muitos dos nossos alunos – e por que não interlocutores
na troca dos afetos escolares - companheiros de chão de escoa não sabiam que
estavam habitar seus copos e que de alguma forma ainda que silenciada gritava
em suas cores, aparências, linguagem, vestes e gostos.

É incrível pensar como o atravessamento de uma escrita preta, com lugar de fala
periférico, pode fazer ecoar as intersecções entre o “eu” e ou “outro”, para além
das limitações do tempo em sua divisão racional, mas também é importante
lembrar que para afetos não há tempo que os limite em continuar sendo.

Ouvir, um aluno contar as lágrimas que pôde ler uma história para mãe que faz
lembrar de sua própria história ancestral e ambos a se debulharem em lágrimas,
é fazer o movimento de uma escuta da dinâmica do encontro, daquela que não 17
se aparta, mas se envolve e se permite atravessar. É permanecer e (re)existir
para viver mesmo quando tudo que está lá fora grita para se conformar e
sobreviver.

Com estas experiências podíamos discutir em sala de aula a questão da solidão


da mulher negra, da mãe mulher negra, discutir a questão do racismo, a questão
do feminismo negro. Discutir todas estas questões que atravessam nossas vidas
o tempo todo e muitas vezes elas vão ficando de lado porque os conteúdos
curriculares não dão conta, mas a Literatura e a Filosofia permitem essa brecha
para trabalhar nas frestas (SIMAS, RUFINO 2019).

Referências Biográficas

Ma. Adriana Martins de Paula Araújo, professora de Filosofia da Secretaria


Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Mestra pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação – Processos Formativos e Desigualdades Sociais
(PPG-EDU) da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo (FFP)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Dr. Luiz Gustavo Mendel Souza, professor de História do Instituto Federal da


Bahia - Campus Ilhéus. Doutor pelo Programa de Pós Graduação em
Antropologia (PPGA) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Referências Bibliográficas

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História do Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe. Circe M. F.
(Org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.

ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis:


Vozes, 2012.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2005.

CARNEIRO, Sueli, A construção do outro como não ser como fundamento do


ser, Tese de doutorado em Educação, São Paulo, Universidade de São Paulo,
2005.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Editora, Boitempo.


Ano de Edição, 2021.
DANTAS, Carolina Vianna; MATTOS, Hebe; ABREU, Martha (Orgs.). O negro
no Brasil: trajetórias e lutas em dez aulas de História. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012.

EVARISTO, Conceição. Escritora Conceição Evaristo é convidada do Estação


Plural: depoimento [jun. 2017]. Entrevistadores: Ellen Oléria, Fernando Oliveira 18
e Mel Gonçalves. TVBRASIL, 2017a. YouTube. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Xn2gj1hGsoo. Acesso em 15 jul. 2018.
GOMES, Nilma Lino. MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO:
RESSIGNIFICANDO E POLITIZANDO A RAÇA. In: Educ. Soc., Campinas, v. 33,
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MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. O ensino de História no Brasil:


contextualização e abordagem historiográfica. In: História Unisinos 15(1):40-49,
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SOUZA SANTOS, Boaventura e MENESES, Maria Gutierrez [orgs.].


Epistemologias do Sul. Coimbra: CES, 2009.
POR QUE ENSINAR A HISTÓRIA DAS
MULHERES? EDUCAÇÃO, ENSINO
DE HISTÓRIA E O DEBATE DE 19

GÊNERO
Alana Rasinski de Mello e Angela
Ribeiro Ferreira

Atualmente a temática gênero nas escolas tem se tornado algo bastante


controversos. Mas de fato as pessoas entendem o que é o conceito de gênero e
como este tema poderia ser tratado nas escolas?

Apresentamos a seguir algumas reflexões realizadas durante a pesquisa de


mestrado intitulada "’Que sabe dos homens e das mulheres’: o Ensino de História
a partir da representação de gênero na Coluna do Jornal O Tibagi (1948-1950)”,
que analisou as representações das mulheres na coluna do jornal e propôs
formas de inclusão da história das mulheres e do debate de gênero nas aulas de
História na escola.

Nos dias de hoje, a palavra gênero carrega um estigma muito mais forte do que
no passado devido à grande onda conservadora que invadiu a política e a nossa
sociedade e por consequência, reflete em nossas escolas. Segundo Miguel
(2016, p. 595), no ano de 2014 começaram a ganhar mais destaque projetos de
lei contra a doutrinação marxista nas escolas e contra a ideologia de gênero. O
Movimento Escola sem Partido, tem como sua principal pauta combater a
“ideologia marxista nas escolas”. Porém, como o movimento conta com o apoio
dos setores mais conservadores da política como a chamada bancada
evangélica, outra pauta se uniu ao tema, o combate a “ideologia de gênero”.

Este combate a “ideologia de gênero” reforça a ideia de que homens e mulheres


já nascem com papéis predestinados na sociedade, como se as diferenças entre
os gêneros masculino e feminino fossem explicados por apenas por aspectos
biológicos.

Os estudos de gênero questionam esse pré-determinismo. Segundo Scott:

“Na sua utilização mais recente, o termo “gênero” parece ter feito sua aparição
inicial entre as feministas americanas, que queriam enfatizar o caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava
uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo”
ou “diferença sexual.” (1995, p. 72)

Gênero vai além das diferenças biológicas entre homens e mulheres, ele traz
consigo toda as diferenças socialmente construídas e impostas a homens e
mulheres. 20

Este combate à “ideologia de gênero” reforça a ideia de que homens e mulheres


já nascem com papéis predestinados na sociedade. E ao naturalizarmos e
reproduzirmos estes papeis como sempre fora, sem questioná-los, continuamos
a repetir alguns erros, como excluir e silenciar as mulheres na história.

Quando estudamos a disciplina de História nas escolas, infelizmente é fácil de


se perceber a ausência de personagens femininas. É como se as mulheres não
tivessem feito parte da história, já que pouco elas aparecem em materiais
didáticos.

Podemos perceber que nas universidades, o número de pesquisas sobre gênero


e história das mulheres tem aumentado muito nos últimos anos. Dossiê lançado
pela Revista Estudos Feministas e 2011 traz artigos que discutem as questões
de gênero na escola através de diversas abordagens diferente. As autoras,
Cristiane B. Silva e Paula Ribeiro, responsáveis pelo dossiê afirmam que desde
2006:

“temos coordenado o Simpósio Temático Gênero e Sexualidade nos Espaços


Escolares, no Seminário Internacional Fazendo Gênero, que visa oportunizar um
espaço de discussões e reflexões relativas às questões de gênero e
sexualidades nas práticas escolares da Educação Básica, pensadas, aqui, como
construções culturais, sociais e políticas. Nesse Simpósio Temático buscamos
promover debates sobre como se produzem as identidades e diferenças sexuais
e de gênero dos sujeitos envolvidos nas relações escolares, enfatizando-se
também suas intersecções com questões de classe, raça e geração.” (2011, p.
463)

Um dos textos publicado neste dossiê discute o fato do número de professoras


mulheres ter crescido muito entre os séculos XIX e XX no Brasil, mostrando que
como profissionais da educação, as mulheres têm entrados nas escolas.

Até o século XIX o magistério primário era ocupado por uma maioria masculinas,
mas esta realidade mudou a partir do século XX quando boa parte dos
profissionais de educação desta faixa etária tornaram-se mulheres. Isto se deve
ao fato de que, depois de algum tempo, a visão sobre educação escolas
começou a mudar e o "ensino como uma extensão da função maternal"
(HAHNER, 2011, p. 467). Então, o número de professoras mulheres,
principalmente para os alunos mais jovens começou a crescer.
É importante ressaltar também que até determinado momento, o ensino era
dedicado apenas aos meninos de uma determinada classe social (elites). Boa
parte da população brasileira (não apenas as mulheres, mas as pessoas mais
pobres também), estavam excluídas da educação.

Em 1827, no Brasil, foi feita a primeira legislação que tratava da educação 21


feminina. Esta legislação se referia a criação de escola em todas as cidades para
cuidar da educação de meninos e meninas. (HAHNER, 2011, p. 467).

A educação feminina na década de 1870 conectava-se muito as questões da


maternidade. Para se ter crianças educadas, era necessário pensar na educação
da mãe. Este pensamento da época estava relacionado a ideia de modernização
do país, educando as pessoas que viviam nas cidades. Nesta década é possível
perceber um significativo aumento do número de mulheres alfabetizadas nas
cidades, o que colaborou para o aumento do número de professoras. Além disso,
o fato de poder contratar mulheres com salários menores também colaborou
para que esse número aumentasse. As mulheres atingiam um certo nível de
instrução que permitia que elas ocupassem alguns cargos em empresas
ganhando menos que os homens.

Além disso, as mulheres tinham menos opções profissionais que os homens.


Segundo Hahner:

“Com poucas alternativas abertas às mulheres de certa instrução e status,


ensinar era o desejado, embora os salários fossem inferiores aos dos homens.
O ensino trouxe a algumas mulheres uma maior independência econômica, com
relação àquela que poderiam ter alcançado de outro modo.” (2011, p. 468)

Outro aspecto importante que diz respeito a educação feminina no Brasil é a


criação de escolas mistas. Estas escolas eram uma alternativa mais econômica
para o Estado, mas vista com maus olhos por algumas pessoas ainda no século
XIX.

As escolas mistas se tornaram mais comuns para as classes mais baixas da


sociedade. As elites demoraram mais para aceitar. Foi a Reforma Leôncio de
Carvalho, feita por meio do Decreto de 19 de abril de 1879, que incentivou a
criação de escolas mistas.

Podemos perceber então que, as mulheres passaram a fazer parte das escolas
como professoras e alunas. Mas será que elas também faziam parte do que era
estudado? Nas aulas de história, aprendemos sobre a contribuição das
mulheres? Ou discutimos sobre como elas viviam no passado? Sobre suas
conquistas?

Crocco, em seu texto “Making Time for Women’s History” discute sobre a história
das mulheres nas aulas de história. Crocco menciona que Lerner, em sua
dissertação afirmou que gostaria que a História das mulheres se tornasse parte
de todos os currículos de todos os níveis de educação. Que a história das
mulheres que está cada vez mais ganhando espaço nas pesquisas universitárias
também chegasse nas escolas.

Segundo Crocco, este desejo de Lerner, de ver a história das mulheres como
algo que mereça ser estudado, tem sido atingido na universidade onde estudos 22
deste tipo têm sido feitos de maneira bastante ampla, porém, quando
observamos a questão da história das mulheres nos níveis anteriores de ensino,
este quadro não se repete. Segundo a autora, não existem muitos materiais para
trabalhar sobre o assunto nas escolas secundarias dos Estados Unidos.
(CROCCO, 1997, p. 32).

Muitos fatores contribuem para este fato. Existe nas escolas uma pressão para
dar conta dos conteúdos canônicos já propostos para a aula de história. Definir
o que é importante ser ensinado para que os alunos possam responder a testes
padronizados, acabam por fazer com que a história das mulheres seja deixada
para segundo plano. Segundo Crocco:

“Embora as mulheres representem metade da população mundial e, nesse


sentido, tenham experimentado metade da história humana, suas histórias são
frequentemente marginalizadas, se não omitidas inteiramente, quando a história
mundial ou americana é ensinada na classe da nação.” (1997, p. 32 tradução
nossa)

Uma questão levantada pela autora, que é visível também em livros didáticos
brasileiros, é que quando, em alguns casos, é dado espaço para a história das
mulheres, esta aparece apenas como um apêndice (sidebars). Apresentada
desta maneira, segundo Crocco, a história das mulheres não se mistura com a
"verdadeira história" que é aquela que fala sobre economia e política, a história
dos “grandes homens” e dos “grandes acontecimentos”. Abordada desta
maneira, a história das mulheres permanece marginalizada. A autora fala que
apesar de ruim, esta apresentação nos livros didáticos ainda é melhor do que a
total ausência da história das mulheres.

Então, quais as razões pelas quais ensinar a história das mulheres no high
school (no caso do trabalho de Crocco)? Por que ensinar a história das mulheres
aqui, na realidade do nosso país? E como abordar este tema sem que a
professora ou professor precise renunciar ao conteúdo prescritos nos currículos?
É necessário que se encontre um equilíbrio, e não que se deva escolher entre
ensinar uma ou outra coisa.

Um currículo representa a “verdade” para os estudantes, desta forma, elementos


que são deixados de lado pelo currículo (neste caso, a história das mulheres)
podem ser considerados pelos alunos assuntos que não possuem relevância.

Em pesquisa sobre a história das mulheres nos livros didáticos apresentada em


2005, Ferreira já apontava que
“As pinceladas de história das mulheres propostas nos livros não dão conta de
formar, ou melhor, de abalar as representações sedimentadas pela sociedade
sobre os papéis da mulher, mesmo que os novos papéis já tenham sido
reconhecidos e legitimados juridicamente, através da legislação.” (2005, p. 120)
23
Um outro problema mencionado por Crocco (1997) em deixar de lado a história
das mulheres é o fato que ficamos sem conhecer parte da história do mundo, já
que as mulheres representam metade da população mundial, tornar essa parcela
da história invisível torna o conhecimento histórico escolar incompleto.

É importante mencionar que autora frisa em seu texto que na história tradicional
dos "vencedores" e dos "grandes homens", além de excluir as mulheres, muitos
homens também são deixados de lado, geralmente os das classes mais baixas
já que esta história tradicional mencionada pela autora é bastante elitista.

Além disso, conhecer a história a partir de outros pontos de vista é muito


importante. Os alunos precisam se reconhecer na história e eles também tem a
necessidade de conhecer o outro, o diferente, o mundo. Por isso, Crocco
defende que não é necessário que se escolha entre ensinar a antiga história
oficial ou a história das mulheres e outros que foram menos influentes na história
política, econômica e militar, mas que é possível ensinar ambas as abordagens
históricas. É necessário que se encontre um balanço. "Tanto as histórias sobre
os poderosos quanto as vidas das mulheres e outras que são menos poderosas
devem ser publicadas no currículo secundário de estudos sociais." (CROCCO,
1997, p. 34, tradução nossa)

Existiram e existem várias maneiras de incorporar a história das mulheres nas


escolas. No ensaio de Crocco, a autora escolheu a abordagem de Peggy
Mclntosh para demonstrar isso que destaca as cinco fases da história das
mulheres. As cinco fases não representam níveis e não estão organizadas de
maneira hierárquica. As fases são:

1. Uma história sem as mulheres, focada nos homens da elite ligados ao


poder político e econômico.
2. A mulher na história que traz algumas figuras femininas das elites que
foram de alguma forma marcantes nesta história política e econômica
ligada aos “grandes homens”. Histórias de rainhas fazem parte desta fase.
3. Esta fase traz a mulher como um “problema” para a história, pois ela é a
excluída e esta as margens da história oficial.
4. As mulheres como história, que busca mostrar a contribuição das
mulheres em geral para a sociedade e começa a salientar o fato de que a
história das mulheres é importante para reconhecer a história da
humanidade como um todo.
5. Uma redefinição da história que inclua todos nós. Uma história que busca
reconhecer a relevância de todos os indivíduos, incluindo aqueles, que
como as mulheres, durante muito tempo foram invisíveis para a história.
As transformações trazidas por cada uma destas fases fazem com que, segundo
a autora, haja uma mudança a respeito das perguntas que fazemos sobre as
mulheres do passado. Ao invés de perguntar “O que as mulheres fizeram ou
produziram de importante?”, agora nos perguntamos “Como as mulheres do
passado viviam?” (CROCCO, 1997, p. 34). 24

Passar por essas mudanças não é algo necessário apenas no Brasil ou nos
Estados Unidos. A ausência das mulheres nos conteúdos da disciplina de
História é um problema que acontece em diversos lugares do mundo. E é de
diversos lugares do mundo que surge o questionamento do porquê isso
acontece.

Em uma pesquisa na Espanha, pediu-se para os alunos citarem o nome de três


personagens que participaram da história do país. O número de personagens
femininos citados nesta pesquisa foi muito menor do que o número de
personagens masculinos. (PAGÉS; SANT, 2011, p. 130).

Não há uma única resposta, segundo Pagés e Sant, para explicar por que as
mulheres são invisibilizadas na história. Os autores citam três fatores que podem
contribuir para este fato. Primeiramente, na escola se prioriza a história política.
As mulheres praticamente não aparecem como personagens nesta história. Elas
estão muito mais relacionadas a história social e, quase sempre, de maneira
anônima e as que aparecem são personificadas como princesas, bruxas ou
feministas. (PAGÉS; SANT, 2011, p. 131).

Um ponto que deve ser sempre lembrado quando discutimos o que se ensina
nas escolas é o papel do livro didático nas aulas, e como, o que, e de que forma
algo aparece nos livros pode ser relevante para o entendimento do aluno do que
é importante o suficiente para ser estudado na aulas de história.

Além disso, segundo Pagés e Sant, "el libro de texto es, a nuestro pesar, el que
determina la mayoría de selecciones de contenidos que se realizan en las aulas
de Historia y Ciencias Sociales." (2011, p. 131). Isto é, muitas vezes o livro
didático determina o que vai ou não ser ensinada em sala de aula. Então, usando
os conteúdos de um livro didático como exemplo, os autores demonstram como
estes levam em conta primeiramente a história política, depois a história
econômica. Desta forma, os livros acabam priorizando muito mais os
personagens masculinos do que os femininos já que são os homens que
aparecem mais na história política e econômica de um país. Inclusive no que diz
respeito as imagens dos livros pesquisados pelos autores, a maioria das pessoas
retratadas são do sexo masculino.

“En los ocho temas mencionados dedicados a la historia política, hay 17


imágenes donde aparecen representadas personas. En 14 de ellas sólo hay
hombres "aproximadamente el 82%); en dos de ellas hay hombres y mujeres
"aprox. 12%"; y sólo en una de ellas aparece únicamente una mujer "aprox. 6%).
Por lo que se refiere al texto escrito, se citam 36 hombres con nombre proprio -
ya sea nombre o cargo - y solo 5 mujeres. En consecuencia, las mujeres
representam aproximadamente el 12% de las personas citadas en el texto.”
(PAGÉS, SANT, 2011, p. 132).

Quando se encontram personagens femininas, nos livros didáticos pesquisados 25


pelos autores, geralmente elas são divididas em duas categorias, a das mulheres
masculinizadas, que fazem a mesma coisa que os homens na história, e as
mulheres vítimas, que são martirizadas, espiritualizadas, que sofreram com a
crueldade dos homens. (PAGÉS, SAIT, 2011, p. 136). Já na história
contemporânea, há uma nova forma de representação da mulher, a feminista.

Apresentadas estas questões, fica o questionamento: O que podemos fazer para


que as mulheres se tornem visíveis na história e nas aulas de história nas
escolas?

Pagés e Sant, assim como Crocco, mencionam que é necessário buscar um


equilibro nos assuntos ensinados em sala de aula. Isto é, não devemos substituir
a história dos homens pela história das mulheres:

“Las mujeres deben formar parte de los contenidos de Historia y de Ciencias


Siciales. Es necesarui buscar un equilibrio entre hombres y mujeres ya que, si
no es así, el agravio que representa para las mujeres no estudiar a otras mujeres
puede ser utilizado para justificar una supuesta subordinación a los hombres."
(PAGÉS, SANT, 2012, p. 139).

Na Catalunha, Espanha, os currículos de todas as etapas educativas frisam a


necessidade de mostrar a importância do papel tanto de homens e mulheres
para a história, buscando um equilíbrio para que ambos sejam contemplados nos
conteúdos didáticos.

Outra questão é que incluir a história das mulheres em sala, além de tornar o
ensino de história mais amplo e “completo” abre espaço dentro das escolas para
que possamos questionar a desigualdade de gênero que existe em nossa
sociedade. Pois se a escola reflete a nossa sociedade, o fato de as mulheres
serem ignoradas na disciplina de história nos mostra como a sociedade trata as
mulheres.

Marolla e Pagés (2015), também mencionam a participação do professor na


construção da visão que os alunos têm sobre os papeis de homens e mulheres.
Os autores usam a teoria de representações sociais de Serge Moscovici e de
Denise Jodelet para mostrar como é esta representação das mulheres para os
professores de história chilenos.

Os autores mencionam que "En diversas sociedades el sistema educativo está


fuertemente contaminado de las formas particulares de la ideologiía dominante."
(MAROLLA, PAGÉS, 2015, p. 225) Isto é, em uma sociedade patriarcal em que
o discurso masculino é o dominante e a mulher é subjugada, veremos um reflexo
desta realidade ao analisarmos o que se ensina e o que se aprende em sala de
aula. O sexismo está enraizado em vários aspectos de nossa sociedade, e a
escola não consegue escapar desta dominação.

Considerações finais 26

A desigualdade entre os gêneros e suas consequências para a sociedade é um


assunto muito importante para ser discutido em sala de aula. Questionar-se por
que nas aulas de história falamos muito mais sobre feitos de homens do que de
mulheres. Talvez essas sejam ações quem façam com que os alunos se
questionem e reflitam sobre as desigualdades, injustiças e violências que
persistem até os dias de hoje em nossa sociedade.

Fazer com que os alunos compreendam que na verdade não existem


brincadeiras de meninas, cores para meninas, roupa de meninas, cabelo de
meninas, trabalhos específicos para mulheres, uma forma correta para as
mulheres se sentarem, violência que mulheres devem aguentar. E, que se de
alguma forma alguém achar que isso existe, podemos e devemos questionar. E
que, se essas representações sociais prejudicam alguém, podem e devem ser
combatidas.

Referências biográficas

Alana Rasinski de Mello. Professora da Educação Básica, Mestre em Ensino de


História pelo PROFHISTÓRIA-UEPG.

Dra. Angela Ribeiro Ferreira, professora adjunta do Departamento de História,


da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG.

Referências

CROCCO, Margaret S. Making time for woman’s history... When you survey
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MULHERES, CASA E O LAR:
ECONOMIA DOMÉSTICA E OS
DISCURSOS DE FEMINILIDADE NO 28

BRASIL NAS PRIMEIRAS DÉCADAS


DO SÉCULO XX
Amanda de Lima de Almeida
“Amantes meus, depois de morto Ulisses, vós não me insteis, o meu lavor
perdendo, sem que do herói Laertes a mortalha Toda seja tecida, para quando.
No sono longo o sopitar o fado: nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo manto
rico não ter quem teve tanto. — Esta desculpa ingênua aceitamos. Ela, um
triênio, desmanchava à noite à luz da lâmpada o lavor diurno; Ao depois, avisou-
nos uma escrava, E a destecer a teia a surpreendemos: Então viu-se obrigada a
concluí-la, E aos olhos despregou-nos a luzente Obra insigne, imitante ao Sol e
a Lua.” (HOMERO, [ca.VIII a.C.] 2009, p.255)

O trecho descrito acima na Odisseia de Homero, faz menção ao mito grego de


Penélope esposa de Ulisses. A história narra o momento de separação entre
Ulisses e Penélope, e a espera dela pelo retorno de seu amado esposo.

Ao ser convocado para guerra, Ulisses sai de casa e demora a retornar.


Penélope passa então a ser compelida por seu pai a escolher outro marido.
Porém, para conseguir prorrogar essa escolha, ela diz ao seu pai que escolheria
um novo pretendente somente quando terminasse de bordar uma mortalha para
Laertes. Desse modo, Penélope bordava o tecido durante o dia e à noite
desmanchava tudo o que havia feito, com objetivo de conseguir retardar o dia de
tomar tal decisão e continuar esperando o retorno de Ulisses da guerra.

Analisando esse clássico mito grego, uma das interpretações possíveis, é que
Penélope representaria um certo ideal de feminilidade principalmente ocidental,
de esposa fiel, que prezava por seu esposo e matrimônio. Essas características
preponderantes em Penélope na história, também tornam-se recorrentes nos
discursos comportamentais e morais voltados para formação e educação das
mulheres, sobretudo com a resinificação de lar e família decorrente da ascensão
burguesa entre o século XVIII e XIX.

A partir do exposto, o estudo visa refletir e analisar as principais contribuições da


economia doméstica, para propagação de um determinado ideal de feminilidade,
de mãe, esposa e dona do lar, sobretudo nas classes mais abastadas brasileiras,
nas primeiras décadas do século XX.

Mulheres, lar e a economia doméstica

A História das mulheres enquanto objeto de pesquisa, vem se consolidando 29


como um campo significativo, preocupado principalmente em revisitar as
experiências femininas e as representações sobre as mulheres.

A historiadora Michele Perrot, enfatiza em seus estudos que a história das


mulheres, e as representações das mesmas, tem sido objeto de diferentes
temáticas de investigações históricas, nessa perspectiva discutir e problematizar
as formas de emitir e receber os valores sobre determinados costumes e hábitos
esperados delas, bem como os diferentes discursos sobre atuação das mulheres
e feminilidade, são importantes para historiografia atual.

Segundo Pilla (2003) ao analisar a história dos bons costumes, civilidade e


regras de comportamento, consta-se que esses conceitos não se restringem
apenas as questões de etiqueta, mas referem-se a moral e a ética inscritas nas
relações sociais estabelecidas pelos sujeitos. Ou seja, aos comportamentos e
valores aceitos pela comunidade ou sociedade que determinado indivíduo está
inserido.

Chartier (2004) corrobora com essa perspectiva, ao evidenciar que a concepção


de civilidade muda conforme o tempo e pode ser definida como:

“[...] conjunto de regras que só tem sentido nos gestos que a efetuam. Sempre
enunciada à maneira do dever ser, a civilidade visa transformar em esquemas
incorporados, em reguladores automáticos e não expressos de condutas as
disciplinas e censuras que ela enumera e unifica numa mesma categoria (...) a
civilidade deve, entretanto, anular-se como discurso proferido ou ouvido para
transformar-se num código de funcionamento em estado prático, feito de
adaptações espontâneas, subtraídas em grande parte à consciência, as
situações diversas com as quais o indivíduo pode ver-se confrontado.”
(CHARTIER, 2004, p. 49)

Nesse contexto, conforme destacou Almeida (2020) o debate entre o público e


privado que ganha notoriedade sobretudo depois da Revolução Francesa, em
que os interesses políticos e individuais sobre esse tema ganham espaço no
cotidiano das pessoas, passam também a determinar um ideal de
comportamento, civilidade e moral no qual os papeis sociais das mulheres
passam a ser distintos do que se presenciava até então nos séculos anteriores.
Atrelado a isso, a família ganhou um novo status, o de alicerce da moral e da
ordem social. A família, principalmente a nuclear, composta por mãe, pai e filhos
passa com a modernidade a ser um importante símbolo social, no qual a mulher
desempenha uma função ímpar.
D‘Incao (2017) ressalta em seus estudos, que o próprio casamento entre famílias
ricas e burguesas a partir do século XVIII, passa a ser usado como forma da
mulher acender socialmente, tornando-se uma etapa importante para a vida
delas, principalmente para as jovens e senhoras das classes mais abastadas da
sociedade.
30
“Cada vez mais é reforçada a ideia de que ser mulher é ser quase integralmente
mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro
da esfera da família burguesa e higienizada’. Os cuidados e a supervisão da mãe
passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a ideia de que é muito
importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos e não
os deixem simplesmente soltos sob a influência de amas, negras ou “estranhos”,
“moleques da rua.” ( D, INCAO, 2017, p. 229)

Perrot (1991), ao analisar as donas de casa parisienses do século XIX, constata


que as mesmas passam a desempenhar múltiplas tarefas, desde educar os filhos
a gerir as finanças da casa e cuidar de todos os afazeres domésticos. Esse
trabalho não remunerado da dona de casa foi um elemento importante na
constituição da sociedade moderna e da família burguesa. Uma vez, que a
família e os filhos passam a ser um reflexo importante da ideia de progresso,
modernidade e do espaço privado, como o lar, no qual as mulheres passam a
atuar quase que exclusivamente.

Rocha-Coutinho (1994) destaca que a ideia de amor materno e o olhar mais


afetivo para família, ganhou contornos cada vez mais específicos somente a
partir do século XVIII, e motivou o discurso de um novo casamento que não seria
mais baseado no dote, mas no amor pelo marido e filhos, dando origem a ideia
de lar como “espaço afetivo”, no qual a mulher exerceria sua principal, altruísta
e importante função de ser mãe.

Nesse contexto, segundo Telles (2017) os discursos sobre a “natureza feminina”


começam a definir a mulher com qualidades e virtudes dependentes do lar e da
família, a mulher seria então a companheira do homem, educadora dos filhos,
um ser cheio de virtudes o “anjo do lar”.

“O desenvolvimento das cidades e da vida burguesa no século XIX influiu na


disposição do espaço no interior da residência tornando-a mais aconchegante;
deixou ainda mais claros os limites do convívio e as distâncias sociais entre a
nova classe e o povo, permitindo um processo de privatização da família
marcado pela valorização da intimidade.” ( D’ INCAO, 2017, p. 228).

Dentro dessa perspectiva, pode-se perceber que a mulher, não deveria cuidar
somente da casa, do espaço físico em que morava com sua família, mas
principalmente manter o bem-estar e harmonia do seu lar, do espaço íntimo,
sentimental e privado de sua família.
Cabe aqui um importante adendo, de que à história das mulheres não se
circunscreve somente nas questões do lar e da família, pois as mulheres
produzem história para além dos espaços privados de seus lares. (ALMEIDA,
2020). Apesar de ser algo mais comum no cotidiano das mulheres das classes
abastadas entre o século XVIII, XIX e início do XX as preocupações com a casa,
matrimônio e o lar, não era incomum também que mulheres de classes mais 31
pobres, circulassem pelas ruas de maneira mais curriqueira, frequentassem
comércios e em alguns casos fossem as responsáveis pelo próprio sustento de
suas famílias, revelando um protagonismo histórico das mesmas na sociedade.

Entretanto, o ser dona de casa, foi um dos importantes papeis atribuídos as


mulheres durante muito tempo na história, sendo, por exemplo, um aspecto
importante para compreensão histórica das fundamentações da luta pelos
diretos das mesmas.

Essa preocupação com o lar e com a família, faz com que surja entre muitos
conhecimentos para possibilitar que a mulher, esposa e mãe desempenhasse
uma boa “gerência do seu lar”, a economia doméstica.

Oliveira (2006) aponta que a economia doméstica tratava-se de um campo de


conhecimento destinado à eficácia científica em tarefas cotidianas da casa para
melhorar a vida das famílias. Esses conhecimentos deveriam ser aplicadas
sobretudo pelas mães e esposas, que eram as principais responsáveis pela
manutenção da casa e do lar.

Apesar de ter surgido na Noruega no final do século XIX, foi nos Estados Unidos
que a economia doméstica ganha maior expressionalidade como área do
conhecimento acadêmica, bem como popularidade através de manuais, revistas
femininas e conferências sobre a temática.

Saberes como organização da mobília, limpeza, higienização, saúde dos filhos


e administração das finanças estavam entre os principais temas abordados pela
economia doméstica, cujos ensinamentos apareciam tanto nas revistas e
periódicos destinados ao público feminino quanto na grade curricular dos cursos
de formação para meninas e jovens no início do século XX em alguns estados
brasileiros.

“Para outros, inspirados nas ideias positivistas e cientificistas, justificava-se um


ensino para mulher que, ligado ainda à função materna, afastasse as
superstições e incorporasse as novidades da ciência, em especial das ciências
que tratavam das tradicionais ocupações femininas. Portanto, quando, na virada
do século, novas disciplinas como puericultura, psicologia ou economia
doméstica viessem integrar o currículo dos cursos femininos, representariam ao
mesmo tempo, a introdução de novos conceitos científicos justificados por velhas
concepções relativas à essência do que se entendia como feminino.” ( LOURO,
2017, p. 447).
A economia doméstica, portanto nas primeiras décadas do século XX no Brasil,
acompanhava o discurso modernizador republicano que segundo Almeida
(2020) deram ênfase necessidade de proteger as mulheres para que bem
criassem seus filhos, para o progresso da nação.

“As últimas décadas do século XIX apontam, pois, para a necessidade de 32


educação para a mulher, vinculado-a à modernização da sociedade, à
higienização da família, à construção da cidadania dos jovens (...) a elas caberia
controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e trabalhadoras do país;
àquelas que seriam as mães dos líderes também se atribuía a tarefa de
orientação dos filhos e filhas, a manutenção de um lar afastado dos distúrbios e
pertubações do mundo exterior.” (LOURO, 2017, p. 447)

Introduzida no Brasil, principalmente pela via dos livros de formação para


mulheres, e escolas normais, a economia doméstica buscava oferecer uma
formação adequada para uma boa gerência da casa, cuidados dos filhos e
matrimônio. Desse modo, entre os objetivos da disciplina de economia
doméstica nos seus primórdios estava:

“(...) desenvolver uma profissão que compreendesse as obrigações e oferecesse


oportunidades de trabalho para as mulheres, com princípio científicos e
processos para melhorar a gestão das famílias”. (FERREIRA, 2015,p. 4)

Para Louro (2017) a economia doméstica ao adentrar nos cursos destinados às


mulheres constituiu-se em um gama variada de ensinamentos referente
administração do lar, não apenas de forma simplista, mas de modo complexo
com princípios científicos que permeavam cada tarefa a ser exercida
principalmente pelas mulheres em seus lares. Isso decorre principalmente da
ideia de que a ciência seria uma importante aliada para as mulheres tornarem
mais efetivas e eficazes, as variadas tarefas que o ser dona de casa exigia.

Fonte:Revista Feminina, n 32, p.29, jan. 1917

Como ilustrado na Revista Feminina, importante revista destinada às mulheres


com edições publicadas mensalmente entre 1914-1936 em São Paulo, a mulher
deveria primar pela organização, higienização e ornamento dos diferentes
espaços de sua casa, o lar era sua ocupação por excelência. Essa organização
deveria ser feita com base em um método que tornasse essas tarefas mais
rápidas, eficientes e funcionais, nesse sentido é que a economia doméstica
apresentava uma“ ciência do lar”, apresentando um método para cada tarefa a
ser realizada nesse espaço.

No que tange o contexto educacional, a economia doméstica passa a fazer parte


dos estudos escolares por demanda da sociedade moderna. Como assinalou 33
Bittencourt (2003) diferentes processos originam a criação e implantação de uma
disciplina no currículo escolar.

Apesar dessa importância conferida economia doméstica por parte da sociedade


do no início do século XX, a mesma não era uma disciplina que estava presente
em todos os currículos de todas as escolas e estados brasileiros. Strang e
Santos (2017, p. 19) destacam que:

“Observamos o caso da disciplina economia domestica. Na composição de


alguns currículos dos cursos normais que se estruturam durante o século XIX, a
disciplina estava diretamente relacionada formação feminina. Em Sergipe [...] o
ensino dessa disciplina acontecia durante três anos, apenas na formação
feminina. Evidentemente, houve resistências e excessos. A Escola Normal de
Santa Catarina, por exemplo, não contemplava em seu currículo essa matéria,
tampouco algo relacionado as práticas domésticas ou trabalhos manuais.”

A partir dos elementos apontados por esses pesquisadores, pode-se perceber


que a economia doméstica, ao contrário do que se assistia nos Estados Unidos
e outros países europeus em que já era mais difundida e aceita, era um campo
de conhecimento em construção no Brasil nas primeiras décadas do século XX,
isso pode se justificar pelo fato de que grande parte dos ensinamentos
destinados às mulheres, se dava de forma privada em seus lares. Esses saberes
eram passados de mães para filhas ou por preceptores que iam até à casa das
mulheres, no caso das famílias abastadas.

Entretanto, essa gama variada de conhecimentos que formavam a área da


economia doméstica, possibilitaram que as mulheres “profissionalizassem a
atuação doméstica” atuando como colunistas em revistas femininas sobre essa
temática, educadoras, gestoras das finanças domésticas e em alguns casos elas
encontravam uma forma de gerar renda extra para sua família, com os trabalhos
manuais de costura e renda, por exemplo, que compunham o ensino dessa
área.

Considerações finais

Por meio dos variados conhecimentos que faziam parte da economia doméstica,
conclui-se que a mesma reforçava a importância da atuação das mulheres como
mães e donas de casas, dando orientações e instruções com base em diferentes
áreas do conhecimento. Todavia, esses variados saberes acessados, nas
escolas, salões, cursos, impressos, permitiam também que essas mulheres
atuassem em outras áreas para além do espaço privado dos lares, mas que, em
simultâneo, não as tirassem totalmente do contato/comando de suas casas.

Referência biográfica

Amanda de Lima de Almeida, atualmente é professora Tutora no Curso de 34


graduação em Pedagogia da Faculdade Unina. Possui licenciatura em
Pedagogia pela UFPR (2017), especialização em História e Cultura Afro-
brasileira pela Faculdade Futura (2019), pós-graduação em Psicopedagogia
Institucional e Clínica (2020) pela Faculdade Faveni e especialização em
Educação a Distância com ênfase em formação de Tutores pela Faculdade
Unina (2021). É Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná
(2020) com ênfase em História e Historiografia da Educação. Atualmente cursa
licenciatura em Geografia pelo centro universitário Uninter (2020-atual). Foi
bolsista Capes (PROEX) entre fevereiro e agosto de 2019. Tem experiência em
docência no ensino fundamental I, organização do trabalho pedagógico,
educação profissional com ênfase em Empreendedorismo, e Tutoria EaD.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Amanda de L. de. Agulha, novelo, tecido e muito mais: lições de


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2020. Dissertação (Mestrado em Educação) ̶ Programa de Pós-Graduação em
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MÉLISSA ENTRE O REAL E O
IDEAL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA
Ana Maria Lucia do Nascimento 36

O conceito ideal da mélissa:

Na sua formação escolar você lembra de ter estudado as mulheres gregas?


Parece difícil lembrar de assuntos que, para você, pode não estar tão vívido em
suas memórias. Eu, por outro lado, não lembro, mas também como poderia
lembrar de um assunto que não foi trabalhado? Não pense que isso é uma
suposição e que por meio disso quero apenas levá-lo a refletir sobre algo que
não acontece. Afinal, se observamos os livros didáticos, notaremos a realidade
que o circunda. De fato, pouco se fala sobre as mulheres gregas, e quando
citadas, entramos em contato com um viés de representação feminina que gera
mais interrogações do que certezas. É sobre essas interrogações que o presente
trabalho se debruça.

De agosto de 2018 a janeiro de 2020, uma nova experiência como docente me


foi proposta. Na minha primeira experiência como estagiária, fui designinada
para ministrar uma aula sobre Grécia para 50 alunos do 6º ano C, no turno da
tarde. Na época, não tinha ciência de fato do poder da ação de um professor em
sala de aula. Assim como não sabia o porquê estudar história era tão importante
para a formação da consciência histórica. E durante esses três semestres de
estágio, nada me marcou mais do que a pergunta de uma aluna após o final de
uma aula: “na Grécia não tinha mulheres, tia?”. Sim, respondi. E quando analisei
seu livro, existia no meio do capitulo apenas um quadro informativo sobre as
mulheres gregas.

Logo descobriria que se tratava das mélissas. O modelo ideal de mulher criado
pela sociedade grega. De modo geral, o livro me fez ver essas mulheres como
sendo as que se casavam ainda jovem permanecendo fiel ao seu único
companheiro até o fim da vida, “vivendo em silêncio no interior de sua casa,
administrando os seus bens, educando os filhos; proferindo o culto doméstico.
Sendo especializada no fiar e no tecer” (LESSA, 2004, p.9). Eram, em sua
maioria, de família de aristocrata, e por isso, a educação dessas mulheres era
específica, delimitada, insuficiente. Tradicionalmente, as meninas não saiam da
casa familiar, não se arriscavam sequer a transpor o umbral do gineceu – que
era um lugar especificamente feminino dentro da casa. Por isso, seu treinamento
se limitava a rudimentos de cozinha e tecelagem, ou mesmo a algumas noções
de músicas e aritmética (MAZEL, 1998, p.4).
Da mesma forma, muitas dessas mulheres eram inexperientes em várias áreas
da vida. Exemplo disso é a esposa de Isômaco. Ele testemunha no instante do
casamento a falta de inabilidade de sua companheira:

“Até os quinze anos ela viveu submetida a uma extrema vigilância a fim de que
não visse, não ouvisse e não perguntasse quase nada. Que mais podia eu 37
desejar: encontrar nela uma mulher que soubesse tecer, fiar a lã para fazer um
manto, que tivesse aprendido a distribuir suas tarefas às fiéis criadas? Quanto a
sobriedade, recebera excelente formação: ótima coisa, não é mesmo?”
(Xenofonte, L’économique, VII, 5).

Podemos perceber que elas eram direcionadas a seguir um caminho de


simplicidade quando o assunto era conhecimento. Principalmente em
comparação a outros grupos femininos, como as hetairas. As hetairas eram
mulheres que se envolviam com homens ricos, os acompanhava a banquetes e
festas e possuía a arte da sedução. Essa sedução, sem dúvida, era arquitetada
para conseguir o máximo de clientes. Além disso, como forma de atrair clientela,
elas desenvolviam a erudição.

Já as melissas têm seus traços físicos descritos nos vasos áticos da seguinte
maneira:

“Consideramos como um esposa bem-nascida na documentação imagética


aquelas personagens femininas que apresentavam as seguintes características:
estavam sempre representadas vestidas; seu tipo de vestimenta predominante
era o chitón e o himátion de cores claras e normalmente plissadas; estavam
sempre descalças; usavam os cabelos frequentemente presos atrás em forma
de coque com fitas, grinaldas e diademas ou ainda podiam usá-los soltos com
fitas amarradas no alto da cabeça ; seus cabelos eram sempre apresentados em
tom escuro; podiam postar acessórios. Suas peles eram sempre de cor clara;
apareciam sempre sentadas numa cadeira de encosto elevado ou também de
pé num plano igual ou superior ao dos demais personagens.” (LESSA, 2004, p.
117-118).

Diante disso, um perfil de mulher é consrtuído. Podemos agora visualizar através


de nossa mente uma mulher delicada, controlada, inexperiente, sensível em
seus traços, uma mulher ideal. De acordo com o dicionário Priberam ideal
significa “que só existe na ideia ou na imaginação, algo fantástico”, e é sobre
isso que nascem as minhas indagações. Essas mulheres, tratadas mesmo que
de forma superficial pelos livros didátivos, controladas, ligadas ao oikos, sem
liderança, eram realmente “o feminino grego”? Ou estamos de frente com um
ideal de passividade que não representava toda a camada social feminina?

Uma crítica ao conceito

As mélissas é o perfil da mulher grega que por muito tempo foi propagado. Porém
é necessário que se frise isso: existe um princípio de que os ideais culturais de
uma sociedade não correspondem às suas práticas sociais (LESSA, 1997,
p.115), e é exatamente por isso que nos direcionaremos nessa análise
documental, para retomar um debate acerca desse molde feminino. Esse ideal
de passividade se aplica, em poucos casos, apenas a figura da mulher gyné –
as mulheres dos cidadãos - para qual foi direcionado esse modelo de
comportamento regido pela ideologia masculina, que se baseava em “um 38
conjunto de representações dos valores éticos e estéticos que norteiam o
comportamento social” (LESSA,1997, p.113).

Daí percebe-se que durante todo o processo de construção dos papeis sociais
dessas mulheres os homens usaram meios para propagar um modelo
comportamental feminino. Fábio de Souza Lessa, ao debater sobre isso, nos
apresenta duas exemplificações desses meios, o primeiro veículo de controle se
concentra nos textos escritos e o segundo, na documentação imagética.

Os postos femininos não eram uma realidade generalizante, afinal, a categoria


mulher não é em si homogênea, antes elas “eram pessoas biologicamente
femininas que se moviam dentro e fora de contextos e papéis diferentes, cuja
experiência mudava, mas cuja essência – como mulher – não se alterava”
(SCOTT, 1992, p. 82). Mesmo que definidas pelo sexo feminino, essas mulheres
são mais do que um grupo que se adequou a um ideal, elas existem socialmente
(TILLY, 1994, p. 20). Elas são diversas. Logo, as instituições sociais não as
submeteram a um padrão de comportamento único. Pensar assim seria tomar “a
convicção de que a mulher é apenas uma vítima de opressão o que subestimaria
seriamente seu desenvolvimento histórico ativo” (HILL, 1995, p.12).

No início do texto foi feita uma suposição de que a mélissa que conhecemos
através dos livros didáticos não corresponde aos aspectos sociais. Primeiro,
porque, ser mulher não é se encaixar numa categoria fechada, homogênea. Em
segundo lugar, podemos questionar esse ideal através de algumas fontes. Por
isso, no próximo tópico desse trabalho, analisaremos uma fonte textual e uma
fonte imagética.

O “real” conceito: uma análise textual e imagética:

Na Atenas Clássica as mulheres eram tuteladas, por isso não tinham sua
cidadania plena reconhecida, após o casamento, entretanto, elas passavam para
uma nova jurisdição e seu status agora era de “esposa de cidadão”
(CABALLERO, 1999, p. 125). Como resultado, por muito tempo excluiu-se as
mulheres como sujeitos ativos, subjugando-as muitas vezes ao âmbito privado.
Dessa forma “a palavra privado tinha o sentido, de ser privado de, daquele
âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava a
sua utilidade no sentido de meios de sobrevivência” (FERRAZ JUNIOR, 1993, p.
27). Dessa forma o oîkos era o espaço privado feminino.

“Na nossa interpretação, o oîkos, local tradicionalmente de reclusão feminina,


será entendido como o principal espaço privado para os gregos antigos,
assumindo a concepção de uma “região protegida da vida”, de relações de
intimidade familiar. De acordo com Aristóteles, o oîkos é constituído por uma
família e por seus agregados (ARISTÓTELES, Política. I, 1253b, 1-9). Assim, é
a menor constituição da pólis, composto pelo homem, mulher e escravos”
(LACEY, 1972, p.15).
39
Porém, por conta das necessidades de manutenção desse espaço, coube as
mulheres por muitas vezes, exercer sua presença e influência fora do oîkos.
Desta forma, mesmo que a gama dos discursos atuais acerca do papel
desempenhado pelas mulheres se fixem majoritariamente no lar isso não foi uma
regra geral, era apenas um ideal grego (LESSA, 1997, p.119). Algumas
informações, sobretudo em análises imagéticas, nos revelam a necessidade da
mulher bem-nascida exercer atividades fora do espaço privado do lar. A seguir,
a foto de um vaso de figuras vermelhas, nele o autor da pintura nos mostra a
participação dessas mulheres no espaço externo do oîkos:

Localização: New York – The Metropolitan Museum of Art – inv. 07.28674.


temática: Colheita de frutas. Proveniência: Não fornecida. Forma: Kratér. Estilo:
Figuras. Vermelhas. Pintor: do pomar. Data: 460.

Essa imagem em particular nos permite ter um vislumbre do cotidiano do


trabalho feminino nas tarefas domésticas que não se limitavam ao lar e
adentravam no espaço público. Assim como foi salientado, o penteado, as
características da roupa, o cesto de frutos, tudo isso pode ser usado pelo
professor, a fim de construir uma outra narrativa em sala de aula, na qual os
alunos seriam chamados a serem agentes de construção do processo de
aprendizagem, desconstruindo esse modelo de mulher ligada ao privado.

Para salientar a vida de “trabalho público” Brock, (1994, p.336) discute que se
aceitarmos que as mulheres tomavam apenas atitudes de reclusão,
chegaremos à conclusão de que estavam confinadas apenas ao oîkos. Porém,
através da leitura imagética, podemos perceber que há outras formas de
representações cotidianas, como observamos através de vasos áticos, que
mostram mulheres que trabalharam na agricultura (LESSA, 2004, p.36).
“Segundo R. Brock, as contribuições das mulheres na agricultura ateniense têm
sido concebidas como mínimas por dois motivos básicos: o primeiro consiste
na força do ideal de reclusão feminina ou da separação entre um mundo interior
feminino e um exterior masculino, enquanto o segundo diz respeito às poucas
evidências apresentadas pela documentação.” (BROCK, p. 342) 40

É, entretanto, um assunto que necessita ser muito bem estudado. A afirmação


de Brock favorece o ideal feminino, colocando-o como um agente de forte
controle das atividades femininas fora da casa, mesmo que para procurar
materiais para manutenção do lar, pois o mundo exterior é masculino. De fato,
é um apontamento equivocado, porque, muito embora existam uma quantidade
pequena de documentação – no total contamos com sete pinturas – a
representação dessas mulheres, por exemplo, na colheita de frutos nos “revela
a necessidade da esposa deixar o gineceu para a própria manutenção do seu
oîkos” (LESSA, 2001, p.103) atuando, assim, no âmbito público. Sem contar
com as aparições femininas na pólis, tanto em festas, como em tíasos de
ensino, ou mesmo recitando em simpósios (CALAME, Claude. Op. cit., p. 150).

Assim, a partir dos estudos iconolátricos, pode-se contribuir para os novos


debates acerca do conceito da mulher mélissa e sua reclusão ao oîkos e ao
gineceu. Por outro lado, não há apenas evidências imagéticas. Para somar a
nossa discussão, podemos perceber como a mélissa pode criar e agir em prol
de seus sentimentos. Para isso, podemos observar a poetisa Safo de Lesbos.
Safo de Lesbos foi uma poetisa grega, conhecida pelas poesias amorosas e por
receber mulheres em seu tíaso e iniciá-las na arte do amor. A partir do momento
que os estudos de gênero se popularizaram no meio acadêmico, pudemos
conferir diversos trabalhos sobre essa personagem e sua relação amorosa com
suas alunas (MATA, 2009; FONTES, 1994; GOMÉZ, 2017; BRASETE, 2003).

Por mais que ela seja tema de diversos trabalhos hoje em dia, já em seu tempo,
conduzia sobre si fama pela sua erudição. Toda sua escrita tornou-a um
expoente que reflete tanto a si mesma, quanto o contexto em que viveu. Sabe-
se que, por ser de família aristocrática, Safo não apoiou os regimes tirânicos que
tomaram conta do período arcaico, sendo em 590 AEC exilada na Sicília. Mas
um dos aspectos mais marcantes desse período, o processo de orientalização,
adentrou na sua compreensão de mundo e em como essa percepção foi
expressa através de seus escritos.

Dessa forma, o que anteriormente designamos como funções de uma mélissa,


não encaixa em nada com a trajetória dessa poetisa. Mesmo que sua classe
social seja distinta em Lesbos e sua família conhecida, ela compôs, filiou-se ao
grupo contrário as usurpações políticas e em suas composições observamos o
enaltecimento do amor.

“Sinto que já não me queres, Átis, / e para os [braços de Andrômeda] alças vôo[”
/ E há muito tempo eu já te amava, ó Átis” (SAFO, 2017, p.40)
“Dizem uns que exércitos e uns que barcos / e uns que carros sejam o ser mais
/ belo sobre a terra negra - por mim seria o ser que se ama.” (SAFO, 2017, p.55)

Com uma lírica carregada de metáforas e referências à deusa do amor, Afrodite,


Safo contrasta com a passividade da mélissa. Talvez o leitor ainda não esteja 41
muito convencido sobre Safo ser ou não um viés de interpretação do
comportamento feminino na Grécia. Por isso, vamos traçar alguns paralelos que,
em minha leitura de Safo, mostram sua face não mélissa. 1) Evidentemente, não
seria comum em Atenas, uma mulher “protestar” contra uma forma de governo,
como ela agiu em contraposição a líderes tirânicos. Como mencionado
anteriormente, ela fez oposição ferrenha ao líder Pítaco, que chegou ao poder
em 610 AEC. Outrossim, 2) Do que nos resta dessa poetisa, tudo nos mostra
como ela transcende um papel até então não natural no território grego.
Somamos a essa afirmação o fato de ter ensinado mulheres na arte da lírica.
Além disso, 3) Ela não apenas ensinou, mas escreveu. Uma escrita carregada
de temas sobre o mundo feminino, pelos quais ficou tão marcada atualmente.

Uma proposta didática para a abordagem desse tema em sala de aula

O conhecimento histórico durante muito tempo foi considerado apenas como


uma construção acadêmica, da qual participava o pesquisador universitário,
responsável por produzir a bibliografia que seria transmitida em sala de aula pelo
professor. De acordo com Knauss (2019, p.17), isso criou uma hierarquia de
conhecimento, afastando os historiadores que atuam em sala de aula da
produção desse saber.

Já por volta de 1960 testemunhamos aqui no Brasil uma mudança enorme no


conceito de didática, influenciada pela escola francesa e alemã, e nomes como
o de Rusen. Essas transformações proporcionaram ver a didática da história,
não como uma ponte que leva o conhecimento acadêmico para a sala de aula,
mas como meios de compreender as formas, funções e usos da história na vida
pública. Ou seja, o conhecimento é também construído dentro da escola. (SILVA,
2019).

Diante disso, já não há mais hierarquias entre quem produz ou não a


historiografia. Pesquisadores, professores, alunos, pais, membros da escola,
todos, de certa forma, são sujeitos e agentes desse novo fazer historiográfico.
Pensando nisso, e na discussão que fiz a cerca tanto do conceito das melissas,
quanto das fontes que mostram a quebra de um padrão, separei esse momento
para trazer uma proposta didática de aplicação e construção desse
conhecimento em sala de aula.

A proposta está baseada na habilidade EF06HI19 da Base nacional comum


curricular. A partir dela tracei os objetivos, a metodologia, as fontes e recursos
que serão necessários para a aplicação dessas duas aulas. E ao final, propus
duas atividades que ajudarão na construção desse conhecimento junto com o
aluno.

42
43

Conclusão
Assim, diante da exposição e debate dos aspectos que compõe as faces
femininas das mulheres gregas, podemos voltar ao passado em busca de novas
percepções sobre elas. Não apenas utilizando como ferramenta a literatura, mas
fazendo uso também de vasos e das imagens que deles são extraídas. Sem
dúvidas isso aproximará muito nossos alunos do assunto proposto. 44

Vale ressaltar também que pode ser uma experiência riquíssima construir com
os alunos essas percepções sobre o feminino, inserindo-os dentro da pesquisa
e indagação historiográfica.

Referências biográficas

Ana Maria Lucia do Nascimento, mestranda em História pela Universidade


Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora do grupo de pesquisa Leitorado
Antigo da Universidade de Pernambuco. Trabalho financiado pela FACEPE.
Contato:anamarialuciadonascimento@gmail.com

Fontes

ARISTOTLE. Polítics. Trad. H. Rackham. Cambridge: The Loeb Classical,


Library, 1990.

XENOFONTE. The Economist. Tradução de H. G. Dakyns. [S.l.]: [s.n.], 1998.

SAFO, Fragmentos completos. Trad.: Guilherme G. Flores, São Paulo, Editora


34, 1ª ed, 2017.

Referências bibliográficas

BROCK, R. “The Labour of Women in Classical Athens.” In: The Classical


Quarterly. Oxford University Press, 1994, vol. XLIV.

CABALLERO, C. A Gênese da Exclusão: O Lugar da Mulher na Grécia Antiga,


n.38,1999.

CALAME, Claude. Eros na Grécia Antiga. Editora Perspectiva, São Paulo, 2013.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica,
decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 1993.

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M. M., OLIVEIRA, M. D. de. Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro:
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LACEY, W. K. The Family in Classical Greece. London: Thames and Hudson,
1972.

LESSA, F. S. O feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

____________. Mélissa do Gineceu À Ágora, Phoînx, Rio de Janeiro, 3, 1997. 45

____________. Mulheres de Atenas: mélissa do gineceu à agorá. Rio de Janeiro:


Laboratório de História Antiga/iFCS/UFRJ, 2001.

MAZEL, Jacques. As metamorfoses de Eros: o amor na Grécia antiga. Martins


Fontes,1988.

RICHTER, G.M.A. & HALL, L.F. Red-Figured Athenian Vases in the Metropolitan
Museum of Art. London/ New Haven: oxford University Press/ Yale University
Press, 2 vols, 1936.

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São Paulo: Edusp, 1992.

SILVA, Cristiani Bereta da. Conhecimento histórico escolar [verbete]. In:


FERREIRA, M. M., OLIVEIRA, M. D. de. Dicionário de ensino de história. Rio de
Janeiro: FGV, 2019, p. 50 – 54.

TILLY, Louise A. “Gênero, História das mulheres e História Social.” In: Cadernos
Pagu: desacordos, desamores e diferenças. Campinas: PAGU/Unicamp, 1994,
v. 4, 31.
ENSINO DE HISTÓRIA, GÊNERO E
HISTORICIDADE: UM OLHAR A
PARTIR DE REVISTAS FEMININAS 46

Beatriz Rodrigues e Flávia Mantovani


A emergência do gênero e o Ensino de História

Afora a considerável relevância, pensar a História pela abordagem de gênero


têm se tornado tema cada vez mais urgente. Nas últimas décadas do século XX,
assistimos a emergência do gênero nas Ciências Humanas, não sem embates e
tensões teóricas. Nos últimos anos, essas (in)tensas discussões seguem na
ordem do dia, caracterizando disputas políticas dentro e fora dos meios
acadêmicos.

Para legitimar a imprescindibilidade desse tipo de trabalho, podemos mencionar


situações e casos ocorridos recentemente - e que parecem chegar todos os dias
- envolvendo a presença do gênero em perspectiva, tais como: os ataques a
filósofa Judith Butler na ocasião de sua vinda ao Brasil em 2017; as estatísticas
de feminicídio que cresceram durante a pandemia, segundo relatório produzido
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgado em junho/2020;
ou ainda, a retirada de Dilma Rousseff, primeira presidenta eleita no Brasil, do
poder. É válido mencionar também, que vem crescendo a reação de setores
sociais conservadores ao trabalho com essas temáticas na educação a partir do
que é denominado de maneira pejorativa de “Ideologia de gênero”.

Sem a intenção de adentrar as minúcias do debate teórico que forjou esta


categoria analítica nas Ciências Humanas, podemos situar a década de 1990
como importante para a emergência do conceito, herdeiro de uma presença das
mulheres nas universidades e de epistemologias feministas elaboradas em
diversas áreas. No campo da História, pelo menos desde a década de 1970, se
formula o que viria a denominar-se uma História da Mulheres que questionava,
em termos teóricos, a ausência de mulheres nas narrativas oficiais. Daí a
importância de se pensar o gênero na interrogação do passado, questionando o
sujeito universal e a narrativa histórica colocada, antes, pelos estudos que
focalizavam a mulher como tema. De maneira geral, recusava-se a
universalização a partir do que era masculino.

Dito de outra forma, parte de historiadoras, tanto na França quanto na Inglaterra


e América do Norte, a exemplo de Michele Perrot com seu curso “As mulheres
têm uma História?”, uma indagação do “homem universal”, que escreve a história
sem visibilizar as mulheres no relato. (PERROT, 2017). Algumas perspectivas
de gênero foram aproximadas do campo da História por Joan Scott em seu texto
“Gênero: uma categoria útil de análise histórica, em 1990. Em trabalho seminal,
a autora busca elaborar um uso da categoria analítica gênero na pesquisa
histórica, tendo em vista que gênero na década de 1980 – artigo “Gender: a
useful category of Historical Analysis” é publicado originalmente na American
Historical Review em 1986; uma primeira tradução para o português é de 1990, 47
da versão em francês; a segunda, de 1995, revista com o original em inglês,
ambas traduções de Guacira Lopes Louro publicadas na revista
Educação&Realidade. Grosso modo, em que pesem as divergências em torno
do conceito, os argumentos têm por objetivo desnaturalizar noções e modos de
ser atribuídos ao feminino e ao masculino, isto é, recusar o determinismo
biológico para argumentar que tais identidades são construções históricas ou
culturais. Impõe-se a distinção do sexo – biológico e anatômico – e a identidade
de gênero.

No que diz respeito a educação, Tomas Tadeu da Silva aponta para os debates
de uma pedagogia feminista e a incorporação do gênero. Uma crescente teoria
feminista elabora uma crítica ao currículo preocupada com papel de gênero na
produção da desigualdade. O feminismo questiona a aparente neutralidade, em
termos de gênero, do mundo social. Na análise feminista, a ciência é masculina
e supõe uma separação entre sujeito e objeto, dominação e controle. Em suas
palavras:

A perspectiva feminina implica, pois, uma verdadeira reviravolta epistemológica.


Ela amplia o insight, desenvolvido em certas vertentes do marxismo e na
sociologia do conhecimento, de que a epistemologia é sempre uma questão de
posição. Dependendo de onde estou socialmente situado, conheço certas coisas
e não outras. Não se trata simplesmente de uma questão de acesso, mas de
perspectiva [...]. (SILVA, 2004, p. 94)

Abordar as questões de gênero no Ensino de História envolve esta mesma lógica


colocada por Silva e implica em uma reavaliação dos conteúdos, além da
problematização e da reescrita da História Oficial, com reestruturação tanto de
currículos quanto de práticas de ensino. As possibilidades são muitas: história
das relações de gênero (portanto, das relações de poder), a participação de
mulheres em eventos históricos ou mesmo o histórico dos movimentos
feministas. No que diz respeito à pesquisa em Ensino de História, há uma vasta
produção, tanto em trabalhos que envolvem os currículos –documentos oficiais
e diretrizes educacionais, livros didáticos, manuais, etc. – quanto na dimensão
do ensino e aprendizagem de História em seus métodos e práticas.

O uso escolar de fontes históricas: em busca de uma “literacia histórica”

O campo da Educação Histórica, onde se procura investigar como se dá o


aprendizado histórico dos sujeitos, ou, como determinado grupo se relaciona
com a disciplina da história, tem dado ênfase a trabalhos que, mais do que
pensar as estratégias de ensino, procuram investigar o modo como estudantes
aprendem História. Nesse sentido, o foco tem sido a cultura histórica do aluno,
ou, do sujeito que aprende em vários sentidos: a maneira pela qual se dá o
aprendizado, como ele é pensado historicamente, o que se sabe sobre História
ou como e onde se adquire tal conhecimento. Neste sentido, é muito profícuo o
conceito de “literacia histórica” proposto por Peter Lee, autor que dialoga com
este campo, postulando uma leitura de mundo baseada na epistemologia da 48
história como fundamental nas práticas de ensino.

Neste contexto, é possível e importante investigar o pensamento histórico de


estudantes, observando se eles constroem uma “literacia histórica” e se a
mobilizam em suas práticas de leitura, considerando tal literacia como um modo
de ler e interpretar o mundo historicamente. Assim sendo, apresentamos
possibilidades do uso de revistas de consumo femininas na disciplina de História
para se trabalhar com as questões de gênero.

A “literacia histórica” pensada por Peter Lee, em boa parte a partir dos trabalhos
de Jörn Rüsen sobre a consciência histórica, consiste em um pensamento
histórico, um modo próprio de interpretar, no qual a concepção de “historicidade”
é fundamental (LEE, 2011, p. 22). O autor aborda a historicidade como noção
que pressupõe não apenas relacionar passado e presente, mas também as
mudanças ao longo do tempo. Assim, na ideia de “historicidade”, para Lee, há
um elemento de mutabilidade das coisas, ou seja, a mudança como uma
constante. Historicidade, assim, se diferencia de “história”, que se define pela
ideia de “homem no tempo”, isto é, “falar que os seres humanos são no tempo e
estas ações referem-se a eventos do passado” (LEE, 2011, p. 42). Deste modo,
um pensamento histórico precisa, necessariamente, considerar não apenas as
coisas no tempo, mas a mudança das coisas no tempo.

Ainda, a história enquanto campo de produção de conhecimento sobre o


passado admite que esse mesmo passado não é fixo ou homogêneo, ou seja,
pode ser ressignificado na medida em que o que se conhece sobre ele muda ao
longo do tempo, tanto em relação às fontes/vestígios, quanto em relação aos
novos olhares e perspectivas. As explicações históricas são, portanto,
“contingentes” e, ainda, as considerações históricas sobre o passado não são a
sua cópia, mas respostas para as interrogações ao documento em questão (LEE,
2006, p. 136).

Revista Capricho, pedagogias do gênero

Antes de pensar o uso da revista Capricho como fonte histórica em contexto


escolar, é necessário recordar que se trata de uma revista de consumo feminina
voltada para jovens meninas de classe média. Historicamente, o gênero revista
surge no contexto da emergência da imprensa, no século XIX, ainda que
ressalvadas as peculiaridades deste tipo de publicação naquele momento.
Revistas vão adquirir status de fonte histórica, sobretudo, a partir da atuação da
escola de Annales, que visava ampliar a noção de fonte histórica, buscando a
interdisciplinaridade na construção do conhecimento. Uma das características
fundamentais das revistas de consumo é a sua segmentação de mercado, uma
vez que são mantidas pela publicidade e o público leitor é visto como consumidor
em potencial. (MIRA, 2003).

A revista Capricho nasce como uma revista de fotonovelas em 1952 (na onda
dos folhetins existentes no Brasil pelo menos desde a segunda metade do XIX), 49
mas é na década de 1980, a partir de campanha publicitária de Washington
Oliveto, que é transformada em uma revista de consumo para adolescentes sob
o slogan “A revista da gatinha”, trazendo temas da cultura juvenil como moda,
sexualidade, relacionamentos. Esta fórmula marcou a descoberta do mercado
adolescente, trazendo assuntos relacionados a este universo, como, sexo,
camisinha, homossexualidade, pessoas famosas, etc. (BUITONI, 2009).

Deste modo, os enunciados da revista envolvem a interpretação de temáticas


que pressupõem como central a categoria analítica gênero. Entendemos que a
mídia, sobretudo as revistas femininas, se constituem em um espaço de
constituição de sentido para a vida – tal como a escola, a família, a igreja/religião
– e, neste sentido, traz pedagogias culturais. No caso da Capricho, um tom de
prescrição em relação a “como ser menina” enfatiza normas de gênero e
sexualidade, na medida em que constrói um discurso que naturaliza posturas e
modos de ser ligados ao feminino e ao masculino. A Capricho se torna, portanto
(e apesar das plurais leituras e interpretações possíveis no momento da
recepção), um currículo cultural produtor de pedagogias do gênero e
sexualidade, como observa-se nas duas imagens a seguir:

Capa da edição n. 979, nov/2005


50

Capa da edição n. 970, jul/2005

Ao explorar a questão da sexualidade com estudantes do Ensino Médio,


interpelando-os sobre o porquê de a revista recomendar ser “sexy sem ser
vulgar” por meio da atriz/modelo em questão e por quais motivos ela deveria,
nos dizeres da chamada de capa, evitar a vulgaridade, obtivemos respostas
como: “tem que seguir os preceitos da sociedade”, ou ainda, “ela tem que ter um
corpo ideal”. Ao levantar problemáticas sobre ser “sexy” ou “vulgar”. Alguns
alunos fizeram relações com a referida revista e demonstraram compreender a
ideia de que o corpo e a sexualidade são disciplinados e moldados por
regulações sociais, ou seja, mobilizam um pensamento histórico por não
tomarem como pressupostos naturais e a-históricos as identidades de gênero
enunciadas pela revista. (MANTOVANI, 2014).

Considerações finais

Júlian Fúks no prólogo do livro Jamais o fogo nunca da escritora chilena Diamela
Eltit, do qual foi tradutor, lembrou o silenciamento da mulher e sua possibilidade
de fala/escrita. Em suas palavras: “a voz que fala para preencher o silêncio, a
voz que outros quiseram silenciar, não poderia ser diferente, é a voz de uma
mulher.” Essa mulher, que não pôde falar e/ou ser ouvida por décadas, séculos,
milênios, teve seu corpo, suas células e o próprio tempo, tomado de assalto pelo
conjunto da sociedade. “Tudo o que lhe resta é a voz, a possibilidade de indagar
o passado com obstinação e de ocupar com palavras o presente” (FÚKS, 2016).

Ocupar com palavras o presente diz bem sobre o intento deste artigo: pensar
sobre as questões de gênero não como algo pertencente exclusivamente ao
passado, o “ontem eterno” como dizia Jörn Rüsen, mas como pensamento que
reconstrói uma história no presente e para o presente.
As revistas analisadas aqui, tal qual as redes sociais como instagram, facebook,
twitter, destilam modos de vida, pensamentos e posicionamentos que são
considerados equivocadamente como superficiais, mas que são em realidade,
políticos, e envolvem questões que precisam ser problematizadas. As questões
de gênero e seus conteúdos históricos estão incrustrados nos textos, imagens e 51
vídeos que circulam por aí. Amiúde, eles carregam preconceitos que de tão
naturalizados, não os questionamos mais. Porém, é preciso vê-los e colocá-los
a falar. Acreditamos no papel da história e do professor de história em seu
potencial de orientação para uma vida prática e que respeite a diversidade
humana.

Referências biográficas:

Beatriz Rodrigues é professora do Departamento de História da UEM e doutora


em História e cultura Social pela UNESP.

Flávia Mantovani é professora da Secretaria de Educação do Estado de São


Paulo, mestre em História Social/UEL na linha de pesquisa “História e Ensino”.
Doutoranda no programa de Pós-Graduação em História/Unesp.

Referências bibliográficas:

ASSIS, Arthur. A teoria da história de Jörn Rüsen. Uma introdução. Coleção


Prumo. 2010.

BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher na


imprensa feminina. São Paulo: Summus Editorial, 2009.

FÚKS, Julian. Prefácio. In: ELTIT, Diamela. Jamais o fogo nunca. Traduzido por
Julián Fúks. Belo Horizonte: Editora Relicário, 2017.

LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar, Curitiba,


Especial, p. 131-150, 2006. Editora UFPR.

LEE, Peter. Por que aprender história? Educar em Revista. Editora UFPR:
Curitiba, n. 42, out./dez. 2011. p. 19-42.

MANTOVANI, Flávia. Pensamento histórico de jovens sobre “gênero” a partir da


revista Capricho (2005-2006). Dissertação. Mestrado em História Social –
Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2014.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas. A segmentação da cultura


no século XX. São Paulo: Olho D’Água/Fapesp, 2003.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na


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PERROT, Michele. [2006] Minha história das mulheres. 2ª Edição. 5
Reimpressão. São Paulo, Contexto: 2017.

SCOTT, Joan. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Educação e


Realidade. vol., 20, nº 2, 1995, p. 71-99. 52

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introdução às teorias do


currículo. Belo Horizonte, Autêntica, 2004.
O MAL QUE CAUSA O HOMEM DE
BEM: UM OLHAR SOBRE O HOMEM
BRANCO BRASILEIRO 53

Caroline Trapp de Queiroz e Flavio de


Souza
O início do fim

Seria impossível falar de todas as mazelas do homem caucasiano nas terras


tupiniquins sem começar pelo início da tragédia: a chegada dos portugueses ao
Brasil. Caro leitor, cremos que somente tal informação já seria suficiente para
entender todos os problemas que enfrentamos como sociedade até os dias
atuais, mas nosso interesse é pensar em uma educação que problematize
historicamente os atos do homem branco brasileiro, mergulharemos aqui no que
pode ser uma das raízes do Brasil que muitos preferem não enfocar – sobretudo
considerando que a própria educação institucional corroborou com a negligência
de nossa história, escrita com muita dor e sangue, sobretudo não branco.

Nós, autores desse texto, fomos educados em escolas primárias ainda na


década de 1990, um na capital do Rio de Janeiro e a outra em Curitiba, capital
do Paraná. Ambos aprendemos, nos primeiros anos escolares, que a chegada
dos portugueses ao Brasil foi um evento maravilhoso: chegada pacífica, troca de
artefatos por sementes e minérios, miscigenação das raças e a chegada da fé e
do progresso nessa nova terra. A verdade histórica foi bem mais macabra e
cruel. Este filme, que antes parecia com um conto lindo da Disney, está mais
para um roteiro escrito e dirigido por Quentin Tarantino (e talvez nem mesmo ele
conseguiria pensar em algo tão violento quanto o princípio da nossa história
enquanto nação). O que houve aqui, como muitos autores nos ajudam a
compreender, foi invasão seguida de saques, estupros e destruição da
natureza.

Sobre a “miscigenação das raças”, durante muito tempo perdurou o pensamento


equivocado do sociólogo Gilberto Freyre (2006, p. 83) que, com base em
informações extraídas da branquitude desvairada, então hegemônica na
produção da ciência e da cultura do momento histórico em que escreveu,
destacou tais uniões como “um verdadeiro processo de seleção sexual”, devido
ao modo como o europeu se servia das mulheres que encontrava em meio às
comunidades indígenas. Enfatiza ele que, “de semelhante intercurso sexual só
podem ter resultado bons animais, ainda que maus cristãos ou mesmo más
pessoas”.
A citação é tão absurda que fica até difícil analisar, pois para além das tantas
perspectivas de discussão possíveis, o único mundo em que uma mulher
indígena teria interesse sexual por um homem branco, fraco, com poucos hábitos
higiênicos, aparentemente doente é o mundo da literatura fantasiosa de José de
Alencar ou da animação Pocahontas. Gilberto Freyre, não satisfeito em errar 54
sobre a mulher indígena, lançando-lhe um olhar lascivo e pouco empático,
consegue também deturpar o “relacionamento” entre o homem branco e a mulher
negra, durante o período de escravização brasileira. Em outro de seus delírios
(ou talvez por propósito discursivo mesmo, já que era amigo de eugenistas
declarados como Raimundo Nina Rodrigues e Monteiro Lobato), afirma,

“Já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações


íntimas da criança branca com a ama-de-leite negra muito do pendor sexual que
se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos países escravocratas. A
importância psíquica do ato de mamar, dos seus efeitos sobre a criança, é na
verdade considerada enorme pelos psicólogos modernos; e talvez tenha alguma
razão Calhoun para supor esses efeitos de grande significação no caso de
brancos criados por amas negras. É verdade que as condições sociais do
desenvolvimento do menino nos antigos engenhos de açúcar do Brasil, como
nas plantações ante-bellum da Virgínia e das Carolinas - do menino sempre
rodeado de negra ou mulata fácil - talvez expliquem por si sós, aquela predileção.
Conhecem-se casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo:
homens brancos que só gozam com negra. De rapaz de importante família rural
de Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais promoverem-lhe o
casamento com primas ou outras moças brancas de famílias igualmente ilustres.
Só queria saber de molecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem
de conhecida família escravocrata do Sul: este para excitar-se diante da noiva
branca precisou, nas primeiras noites de casado, de levar para a alcova a camisa
úmida de suor, impregnada de bodum, da escrava negra sua amante. Casos de
exclusivismo ou fixação. Mórbidos, portanto; mas através dos quais se sente a
sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro”
(FREYRE, 2006, p. 367).

Mas o que esperar de um cidadão que em 1964, defendeu a queda de João


Goulart e, em 1969 passou a integrar o Conselho Federal de Cultura, durante a
ditadura militar brasileira, a convite do presidente general Emílio Médici?
(CPDOC, s.d.). Como dizem os jovens de 2020: “o golpe tá aí. Cai quem quer!”.

Quanto ao progresso trazido pelo homem branco, de Pedro Álvares Cabral a


Bolsonaro, podemos afirmar sem rodeio que seria muito melhor se os navios
portugueses nunca tivessem aportado por essas praias. O melhor trajeto
possível seria que tivessem parado na Antártica. Sim, colocar Bolsonaro e
Antártica na mesma sentença não é mera coincidência, desprevenido leitor,
afinal, Bolsonaro disse em vídeo, no último dia 28 de abril, a seguinte frase:
“Conheça o Brasil por dentro e por fora... Amazônia, Antártica... ”. Não sabemos
se ele havia bebido muita Antarctica no dia para cometer tal gafe, mas fica
registrada sua fala como imagem dialética do momento histórico em que
estamos sendo governados por um homem branco (como de costume) que
provavelmente seria reprovado na disciplina de Geografia do 3º ano do ensino
primário de qualquer escola brasileira, ou não passaria da pergunta de 1 mil do
Show do Milhão.
55
Porém, voltemos ao fim dessa unidade e vejamos onde o progresso português
nos deixou e como as autoridades atuais estão tratando nossa única terra e
nossa gente. Segundo Gortázar (2020),

“O Desmatamento na Amazônia dispara e atinge recorde em 12 anos. A maior


floresta tropical do mundo perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores no
ano passado, 9,5% a mais que no ano anterior. A Amazônia é tão vasta que o
Greenpeace fez algumas contas para que seja mais fácil entender a dimensão
da perda. São 626 milhões de árvores derrubadas. É como se a cada minuto do
ano passado a Amazônia tivesse perdido o equivalente a três campos de futebol,
até somar 1,58 milhão de estádios”.

Para os que se dizem patriotas e nacionalistas, além de nossa bandeira jamais


se tornar vermelha, ela também perderá o seu verde – e parece não haver
problema algum em relação a isso. Quando o assunto é população,
principalmente os mais empobrecidos desse país cheio de riquezas, o problema
é ainda maior.

“Hoje, mais da metade dos domicílios brasileiros – 55,2% ou 116,2 milhões de


pessoas – vivem algum grau de insegurança alimentar segundo pesquisas. É o
maior índice de fome desde 2004 em comparação com pesquisas realizadas
pelo IBGE naquele ano, um ano depois do início do programa Fome Zero, uma
das bandeiras do governo do então presidente Lula, que viria a perder espaço
para o Bolsa Família” (GAGLIONE, 2021).

Diante desses números assustadores, resta questionar como um país que se


declara cristão consegue dormir à noite sabendo que tantas famílias não têm o
que comer? Usaremos um pouco de estudos religiosos para tentar responder
essa e outras questões na próxima unidade desse texto.

O cidadão de bem sempre foi muito mal

Os homens brancos que fazem parte da classe média brasileira, ou acima desta,
são na maioria das vezes hipócritas. Isso não ser novidade é a parte mais leve
desse parágrafo, deixe-nos escurecer (porque olha onde esclarecer nos levou)
melhor o que temos com o típico cidadão de bem e todo o seu cinismo em cobrar
aquilo que nem ele mesmo é. Sobre ser branco, os estudos de Silvio Almeida
(2019) e Lia Vainer Schucman (2012) nos lembram que ser branco no Brasil é
diferente de ser branco na Alemanha ou nos EUA, por exemplo, pois são países
em que, em algum momento histórico, o debate em torno da “pureza racial” e da
“supremacia branca” atingiu o ápice da violência e, em contrapartida, da luta
pelos direitos civis.

Provavelmente você já ouviu um homem branco de meia idade dizer algumas


das seguintes frases: “Não sou racista. Tenho até amigos pretos”, “Tenho negros
na família”, “Já namorei uma negra”, etc. Quando diz coisas como essas, o 56
homem branco acredita estar legitimando o pensamento equivocado de não ter
privilégios quanto a sua cor. E mesmo que, de fato, ele não seja aceito como
branco na Europa ou nos EUA, como bem nos lembra Silvio Romero (1970), raça
não é um termo estatístico e seu sentido está atrelado às circunstâncias
históricas. Logo, um homem branco se relacionar com negros, usar drogas –
estereótipo que a polícia adora atrelar aos negros –, andar “descolado”, ser de
religião de matriz africana, decorar músicas de rap – como retratado no filme
Ponto Cego (ESTRADA, 2018), com o personagem Miles – nada disso o faz
negro ou menos branco.

Quem nasce no Japão é japonês, na França é francês e no Brasil é brasileiro.


Nosso adjetivo pátrio era, antes de mais nada, um adjetivo que remetia à ideia
de trabalho. Na língua portuguesa, as palavras com sufixo -eiro ou -eira
designam atividade laboral. São os casos de pedreiro, costureira, marceneiro,
torneiro, e etc. Depois de tanto tempo com essa nomenclatura, é possível
associar o homem branco brasileiro ao trabalho? Principalmente aos trabalhos
que sustentam toda uma metrópole, como o Rio de Janeiro, por exemplo? Será
que é o homem branco quem acorda ainda de madrugada para levantar novos
prédios? – Ressalva para a exclusão de muitos nordestinos “brancos” que
ajudaram na construção das grandes metrópoles do Sudeste desde o êxodo
rural. É o homem branco que varre nossas ruas? Recolhe nossos lixos? Abre as
padarias? Dirige os ônibus? Ou será que essa massa brasileira é formada, na
sua maioria, por pessoas negras periféricas?

E como questionar a sexualidade do homem branco heterossexual? Isso pode


ser mais arriscado do que questionar até mesmo sua moralidade. Essa casta de
homem tem na sua demonstração de heterossexualidade uma espécie de
estandarte nos advertindo que todas as suas atitudes grosseiras são “coisa de
macho”. E sabemos que um macho só idolatra, ama, cultua e fortifica laços de
amizade exclusivamente com aqueles que ele considera também machos.
Pergunte a um homem desse tipo quem é a sua figura heroica ou seu atleta
favorito. Quem não conhece um rapaz branco de camisa gola polo e sapatênis
que se esforça muito para gostar do sexo oposto? Em compensação, o mesmo
filtro parece não existir em relação aos homens com quem convive. Até mesmo
um dos mais brilhantes filósofos alemães não deixou de ser um belo macho
quando falou das mulheres,

“Aquilo que na mulher inspira respeito e não raramente temor é a sua natureza,
que é muito mais natural que a do homem, a sua mobilidade, a agilidade da
verdadeira besta fera, a unha felina que esconde, sob a luva perfumada, seu
egoísmo ingênuo, sua inépcia em ser educada, o seu ser intimamente selvagem,
o inconcebível, a ilimitada mobilidade de suas paixões e virtudes... o que inspira
piedade por esse felino perigoso que chamamos "mulher" é que ela é mais
sujeita a ;sofrer, mais sensível, mais amorosa e condenada às desilusões mais
que qualquer outro animal. Temor e piedade, eis os sentimentos que o homem
experimenta até agora diante da mulher, sempre com um pé na tragédia, cuja
desventura também entusiasma?” (NIETZSCHE, 2001, p. 165). 57

Além disso, nada se aproxima mais da figura de anti-herói dos quadrinhos do


que o pai brasileiro. Como bem citado na canção de Fábio Jr.: “Pai, você foi meu
herói, meu bandido. Hoje é mais muito mais que um amigo. Nem você, nem
ninguém tá sozinho. Você faz parte desse caminho. Que hoje eu sigo em paz.
Pai. Paz”. Mas não podemos falar sobre pais brasileiros sem falar delas: as
mães. Segundo Arrellaga e Monteiro (2021), no Brasil há mais de 11 milhões de
mulheres que são mães solteiras e, por mais que suas realidades sejam diversas
e atravessadas por diferentes questões regionais e de classe, a condição com
que vivem sua maternidade assemelha-se em alguns aspectos, sobretudo
quanto aos impactos causados pela pandemia da Covid-19, que aumentou suas
jornadas de trabalho por conta das escolas fechadas.

Dados do site “Mulheres na Pandemia” mostram que 72% das mulheres afirma
que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia; 41% das
mulheres que seguiu trabalhando durante a pandemia com manutenção de
salários afirmou trabalhar mais na quarentena; 40% das mulheres afirmou que a
pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa
em risco. Além disso, 58% das mulheres desempregadas são negras; 61% das
mulheres que estão na economia solidária são negras e 84% das mulheres
afirma ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento. Esses
dados culminam na triste realidade de um país que perde em média quatro
mulheres por dia, vítimas de feminicídio (LIMA, 2021). Assim, se no tópico em
que nos prontificamos a falar sobre os pais, falhamos em fazê-lo, afinal, como
geralmente se supõe, talvez eles tenham saído para comprar cigarro.

Escurecendo as ideias

O estilo de vida do cidadão de bem – seja o American way of life nos EUA ou a
classe média brasileira – tem como base a manutenção dos privilégios, não só
de gênero, como também de raça. Homens negros de periferia dificilmente
alcançarão esse estilo de vida e o conforto de não se darem ao luxo de aprender
algo que não seja com o intuito de complementar renda. O envelhecimento
precoce do jovem negro é uma realidade cruel, pois desde muito cedo ele ajuda
no cuidado da família, preocupando-se em ser educado, respeitoso, trabalhador,
e etc. Não deixando de lembrar o fato de jovens negros serem sempre
responsabilizados ainda criança ou adolescentes pelos seus atos, enquanto o
homem branco adulto quando erra “ainda está aprendendo”. Com isso, o
patamar “meritocrático” do padrão de vida imposto pela branquitude, será
sempre uma ilusão às possibilidades e quando finalmente consegue alcançar, é
tratado como impostor, desqualificado ou simplesmente não deveria estar
ocupando determinados espaços. Como bem defende o ministro da economia
Paulo Guedes, Bolsonaro e seus seguidores, o pobre não pode ter êxitos que
não sejam continuar em trabalhos braçais precários com baixa remuneração. De
acordo com a reportagem do dia 29/04/2021 do Correio Braziliense, o ministro
diz que: “ o programa (FIES) deu bolsa para quem não tinha a menor
capacidade. Não sabia ler, escreve”; “ Que as universidades estão em estado 58
“caótico”, e exemplificou: “Paulo Freire. Ensinando sexo para criança de 5 anos.
Todo mundo... maconha, bebida, droga. Dentro da universidade. Estado caótico.
Eu prevejo o mesmo fenômeno para a saúde”. “Fies bancou universidade até
para filho de porteiro ". O mesmo ministro que quando criticado pela
desvalorização do câmbio monetário e alta do Dólar, disse, segundo a
reportagem do jornal O Globo de 12 de fevereiro de 2020: “ que dólar alto é bom:
‘empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada ”.

Portanto, nossos problemas enquanto nação estão nas mãos do homem branco
ou são o próprio homem branco. Pensar um novo conceito de ser homem
brasileiro, uma masculinidade mais afetiva e sem preconceitos é um dever
(urgente) moral das famílias e educadores, pois perdemos diariamente diversos
jovens que não se encaixam nesse modelo de vida ou passarão o resto de suas
vidas frustrados por não serem “homens de verdade”. É muito difícil seguir o
trecho bíblico de 1 Coríntios 16:13, já que a meritocracia foi uma das mentiras
mais cruéis criadas por essas terras. Preferimos encerrar o presente texto, com
esperança de dias melhores, com uma mensagem de resistência do Rap que
sempre foi marginalizado e sofreu muita repressão (como o negro e o indígena):

Onde estiver, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor.

Referências biográficas
Caroline Trapp de Queiroz, doutoranda em Educação pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Flavio de Souza, graduando em Letras pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro.

Referências bibliográficas
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Pólen, 2019.

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<https://brasil.elpais.com/brasil/2021-03-17/os-estragos-invisiveis-da-pandemia-
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BÍBLIA SAGRADA. Bíblia online. Disponível em:


<https://www.bibliaonline.com.br/ >. Acesso em: 01 mai. 2021.
CORREIO BRAZILIENSE. Guedes critica FIES e reclama de bolsa para filho de
porteiro. 29/04/2021. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-
superior/2021/04/4921198-guedes-critica-fies-e-reclama-de-bolsa-para-filho-de-
porteiro.html>. Acesso em: 01 mai. 2021.
59
CPDOC. FGV. Gilberto Freyre. Biografias. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/gilberto_freyre>
. Acesso em: 01 mai. 2021.

ESTRADA, Carlos López. Blindspotting. EUA, 95 min., 2018.

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o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

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Nexo Jornal. 06/04/2021. Disponível em:
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GLOBO. Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo
para Disney, uma festa danada’. 12/02/2020. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-
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GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Desmatamento na Amazônia dispara e atinge


recorde em 12 anos. El País. 30/11/2020. Disponível em:
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feminicídios por dia. Pandemia agrava situação. Metrópoles. 13/01/2021.
Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/desde-o-inicio-do-ano-
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<http://mulheresnapandemia.sof.org.br/>. Acesso em: 01 mai. 2021.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma
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Olimpio,1960.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”.


Tese (Doutorado em Psicologia Social). Universidade de São Paulo. 2012.
HELOÍSA MARINHO: AS
EXPERIÊNCIAS QUE SE
CONSTITUEM NA EDUCAÇÃO 60

INFANTIL SÃO A FONTE DA


VERDADEIRA APRENDIZAGEM QUE
LÁ ACONTECE
Cláudia Sena Lioti e Márcia Marlene
Stentzler
Heloísa nasceu em São Paulo no dia 3 de setembro de 1903, e faleceu no dia 4
de julho de 1994, na cidade do Rio de Janeiro. Logo, seu legado, ao longo de
um período de transformações da educação brasileira em meados do século XX,
foi fundamental para o fortalecimento da formação de professores para a
Educação Infantil no período novecentista.

A história de vida de Heloísa Marinho e a sua formação sempre estiveram ligadas


ao “[...] espírito missionário protestante” (LEITE FILHO, 1998). Segundo
Machado (2015), Heloísa iniciou a vida acadêmica no colégio Americano de
Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. Esta era uma instituição de atendimento
escolar voltada para a educação de meninas e supervisionada pela Divisão de
Mulheres da Igreja Episcopal do Sul, dos Estados Unidos (EUA). Nesta
instituição Heloísa passou alguns anos de sua vida, concluindo o primário e o
ginásio.

Entre os anos de 1920 e 1923, cursou o ensino médio por meio de um Curso
Normal de Formação de Professoras para o Primário no Colégio Metodista
Bennett, uma escola pioneira, fundada em 1920, no Rio de Janeiro. Este
estabelecimento escolar, desde a sua fundação, praticava uma metodologia
moderna para a época. Acreditamos que as experiências vividas por Heloísa
nesse período, como parte da experiência social, tenham contribuído
significativamente para as escolhas que faria no futuro quanto a sua formação
nos Estados Unidos.

A metodologia da formação de professores na Escola Normal onde Heloísa


estudou tinha como alicerce formativo uma concepção que abarcava uma nova
perspectiva, moldando, alijando, organizando e subsidiando seus alunos,
crianças “[...] da classe média para a futura liderança no país e na Igreja”
(MACHADO, 2015, p. 105). Ainda segundo Machado (2015, p. 107), depois de
formada, Heloísa viajou para os Estados Unidos da América em busca de
especialização, tal estudiosa reitera que:

“Heloísa destacou-se pela ótima relação que tinha com as missionárias de


ambos os colégios em que se formou. E por esse excelente relacionamento da 61
aluna com as dirigentes do Colégio Bennett, em 1923, após se formar como
professora primária, as missionárias a indicaram para prosseguir seus estudos
nos Estados Unidos. Em dezembro desse ano, então, Heloísa Marinho partiu
para as terras norte-americanas”.

Sobre a formação acadêmica de Heloísa nos Estados Unidos da América, Leite


Filho (2011, p. 66), afirma que:

“[...] fez curso de férias, no verão de 1925, no Peabody College for Teachers, e
dois anos no Senior College da Universidade de Chicago, de janeiro de 1926 a
março de 1928, especializando-se em filosofia e psicologia. Em março de 1928,
foi diplomada pela University of Chicago. Ao completar o curso, teve a surpresa
de ser a única distinguida com menção de Hornos for Excellence in the Senior
Colleges”.

Em seus estudos sobre Psicologia e Filosofia, interagiu com discípulos de John


Dewey e conheceu a ideologia frobeliana para os Jardins de Infância. Tais
concepções permearam a sua especialização e foram fundamentais para que
ela passasse a defender a necessidade de uma transformação na Educação
Infantil brasileira, especialmente, no tocante à formação do professor em nível
superior. (MACHADO, 2015).

Ao retornar ao Brasil, em 1929, Heloísa Marinho trazia experiência e consciência,


no sentido atribuído por Thompson (1981), como conhecimento necessário para
transformações sociais. Esteve à frente da organização de Cursos Normais
objetivando formar docentes capacitados para atuarem na educação da primeira
infância. Também conduziu a organização do Curso de Formação Superior de
Educadores Pré-Primários no Instituto de Estudos Sobre o Rio de Janeiro (IERJ),
e sua atuação foi determinante para alicerçar o Centro de Estudos da Criança
(CEA).

A partir da trajetória de Heloísa Marinho, desejamos abordar aspectos históricos


da Educação Infantil no Brasil, principalmente, entre as décadas de 1930 e 1960,
momento em que, além exercer a docência, esta professora estava também
envolvida no planejamento e organização de vários cursos de formação de
professores, habilitando-os para atuarem na Educação Infantil. Leite filho (2011,
p. 80) destaca que “Essa é a marca muito forte em sua trajetória: formar
professores de educação infantil”.

Para construir este estudo, realizamos uma revisão bibliográfica em que nos
fundamentamos em obras deixadas pela própria Heloísa, e em outros estudos já
publicados sobre a intelectual, como os de Kuhlmann JR (2000; 2002); Leite
Filho (1998, 2008), Machado (2015), entre outros.

Nesta pesquisa bibliográfica, dialogamos com as fontes, conhecendo algumas


de suas estratégias, no sentido atribuído por Certeau (2007), para superar
contradições da Educação Infantil de seu tempo. Embora não tenhamos feito 62
pesquisa direta em arquivos documentais, as discussões a partir dos autores
citados permitem conhecermos e valorizarmos o trabalho de Heloísa Marinho.
Esperamos fomentar discussões sobre o papel desta intelectual para a formação
de professores e a Educação Infantil, em particular no contexto atual.

Nesta pesquisa, apresentaremos primeiramente pormenores de sua formação


acadêmica. Em seguida exporemos seu legado em forma dos principais títulos
escritos e, por fim, discutiremos as concepções presentes em seu trabalho.

Uma intelectual atuante na busca por transformações na educação infantil


brasileira

Ao retornar para o Brasil em 1929, Heloísa Marinho passou a desenvolver um


trabalho cujo eixo partiu da realidade educacional vivenciada pelo povo
brasileiro. Suas pesquisas e a trajetória profissional voltaram-se para a
compreensão da aprendizagem de crianças menores de 7 anos. Buscou
elementos para subsidiar a formação e a ação de professores que trabalhariam
com esta faixa etária, de forma que pudessem promover o desenvolvimento
integral e harmonioso da criança.

Machado (2015) afirma que, após chegar dos Estados Unidos da América,
Heloísa retornou ao colégio Bennet, a instituição onde ela se formou e que
facilitou a sua ida ao exterior para dar continuidade aos estudos. Lá passou a
atuar como docente no curso de Curso Normal de Formação de Professoras
para o Primário.

Conforme assegura Leite Filho (2011), em 1934, Heloísa Marinho passou a


trabalhar no Instituto de Educação do Rio de Janeiro (IERJ), uma instituição
escolar de ensino secundário e para a Formação de Professores, inaugurada em
1932. Em Anexo a esta escola estava um Jardim de Infância e uma escola
primária onde os alunos do curso de Formação de Professores poderiam colocar
em prática os conteúdos apreendidos.

No IERJ, Heloísa passou a fazer parte de um grupo de importantes intelectuais


da Educação Brasileira, como, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Fernando
Azevedo (Machado, 2015). Assumiu o cargo de assistente de Lourenço filho na
cadeira de Psicologia Educacional da Escola de Professores do IERJ. Este
educador “[...] a encarregou de dirigir os grupos de discussão e trabalhos práticos
no Curso de Formação de Professores Primários”. (LEITE FILHO, 2011, p. 67).
Em 1939, passou a coordenar a organização do Curso de Formação de
Professores Pré-Primários no Colégio Bennett. A partir de suas concepções e de
seu engajamento, em 1941, criou-se, neste colégio, um Instituto Técnico para a
Formação de Docentes. Nesse Instituto, “Heloísa Marinho ficou responsável pela
formação de educadores de Escolas Maternais e Jardins de Infância”.
(MACHADO, 2015, p. 110). 63

Leite Filho (2011) assevera que a concepção de ensino e aprendizagem que


permeava o curso de formação de professores para o pré-primário no colégio
Bennett era baseada em uma sólida fundamentação científica, em que o colégio
dava relevo e buscava desenvolver suas próprias pesquisas experimentais sobre
o desenvolvimento e o comportamento infantil.

No IERJ, em 1949, conduziu a criação do primeiro Curso de Especialização em


Educação Pré-Primária do Brasil e seguiu colaborando com o Curso de
Formação de Professores do Colégio Bennett, o qual, graças a Heloísa, foi
referência na qualidade de formação de professores para a Educação Infantil.
Leite Filho (2011, p. 88) reitera ainda que:

“Heloísa não era uma professora que sabia dar aula expositiva. Sua formação
americana e a pós-graduação na Europa deram características docentes pouco
comuns no Brasil. A biblioteca e os livros eram o centro de sua didática. A cada
tema do programa orientava as alunas com uma vasta bibliografia e solicitava
resumos e sínteses sobre o que os autores pensavam sobre os assuntos.
Associado a uma quantidade significativa de leitura, eram propostos trabalhos
práticos de observação direta de crianças em diferentes situações, podendo ser
em escolas, pré-escolas ou até na família das alunas. As sínteses das leituras e
as observações sobre as crianças vinham para os seminários em sala de aula.
Na verdade, sua prática docente, nos cursos de formação de professoras, nunca
dissociou pesquisa e ensino”.

Em 1974 veio a aposentadoria compulsória, por idade. A trajetória profissional


de Heloísa Marinho releva uma intelectual preocupada com a formação
adequada dos profissionais que atuariam com a educação da criança pequena,
e com metodologia que “Privilegiava a observação à criança como forma de
construir conhecimento a respeito do seu desenvolvimento” (LEITE FILHO,
2011, p. 88). Logo, para Heloísa, a formação docente deveria partir da reflexão
sobre a prática pedagógica e da atuação no espaço pré-escolar.

As pesquisas e as percepções de Heloísa para a educação infantil no Brasil

Heloísa Marinho deixou um extenso legado e uma importante bagagem cultural


em forma de pesquisas, bibliográficas, artigos, ensaios, apresentações e demais
escritos, tendo como foco, a aprendizagem e o desenvolvimento tanto do
professor, como das crianças da Educação Infantil. A partir dos estudos de
Machado (2015), realizamos um levantamento de suas principais publicações:
Em 1935, escreveu sua monografia apresentada na primeira Conferência Inter-
Americana de Higiene Mental, intitulada, “Da linguagem na formação do eu”. Um
estudo realizado em creches, escolas, abrigos e lares, em que se observavam
crianças de nove meses a sete anos de idade, e a partir das observações foi
possível constatar o papel constitutivo da linguagem e da mediação de adultos
e coetâneos. 64

Em 1937, Heloísa Marinho realizou uma pesquisa acurada sobre a influência dos
professores pré-primários na preferência alimentar das crianças, cujo título foi
“Da influência social na formação do gosto”. Este estudo contou com auxílio e
orientação do professor Lourenço Filho.

Seguiu pesquisando a linguagem infantil, e em 1942 publicou o estudo “O


vocabulário da criança de 7 anos”. Em 1944 divulgou “Métodos de Ensino de
Leitura” uma pesquisa cujo título já deixa especificado o intuito da autora, ou
seja, cujo teor se explica por si. Neste trabalho, Heloísa dedica-se ao estudo de
diferentes métodos de ensino de leitura.

Em 1945 estudou a “Lógica e Desenho”, uma pesquisa que visava criar


instrumentos de medida de maturidade da criança para aprendizagem da leitura
e da escrita. Seguiu estudando a leitura e a escrita infantil e em 1947 publicou
“A escrita na escola Primária”.

Em 1956 elaborou testes para medir a maturidade da criança a partir de seu


grafismo. Tal material foi nomeado “Prova de avaliação da idade gráfica”. Em
1957 iniciou suas pesquisas sobre “Escala do desenvolvimento físico,
psicológico e social da criança brasileira” e deu continuidade a estes estudos em
1977.

Além dos títulos a da divulgação de suas concepções em periódicos, Heloísa


Marinho também escreveu algumas obras literárias objetivadas em cooperar
com a aprendizagem da criança pré-escolar e dos profissionais docentes que
trabalhariam com ela, como: “Vida e Educação no Jardim de Infância” (1952);
“Vamos representar? ” (1953); “O Gato de Botas” (1954); “A linguagem na idade
pré-escolar” (1955); “Vida e Educação no Jardim de Infância” (1960); “O currículo
por atividades no jardim de infância e na escola de primeiro grau ” (1978); “Vida,
Educação e Leitura: o método natural de alfabetização” (1978); “Estimulação
Essencial” (1978); “Vida, Educação e Leitura: o método natural de alfabetização”
(1987).

Machado (2015, p. 117), lembra ainda que além dos títulos supracitados “[...]
foram encontrados alguns artigos, resenhas, comentários, palestras, relatórios e
bibliografias escritas por Heloísa Marinho, que buscam divulgar suas
publicações e pesquisas na época”.

Na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, entre os anos de 1944 e 1980,


Heloísa publicou os artigos: “Assuntos predominantes na Linguagem do Pré-
Escolar”; “Aspectos da Educação Primária nos Estados Unidos”; “A Linguagem
na Idade pré-escolar”; “A Linguagem na Idade pré-escolar”; “Magistério e
Vocação”; “Da influência do Jardim de Infância na promoção da primeira série”;
“A Tragédia das mãos vazias”; “A escrita na Escola Primária”; “Missão da
Educadora no Jardim de Infância”; “Formação do Professor Primário em Nível
Superior”; “Preparação do professor primário especializado em nível 65
universitário”; “Como a criança aprende a ler brincando” e “O Currículo da
Reforma e a Experiência do Colégio Bennett”.

A reflexão sobre as obras deixadas por Heloísa Marinho tem o objetivo de


lembrar que, conforme Kuhlmann Jr. (2000b, p.14), Heloísa dedicou a sua vida
a defender uma Educação Infantil em que as atividades voltadas para o
desenvolvimento da criatividade tivessem mais importância que os exercícios
formais do jardim de infância tradicional, “Não é possível traçar normas rígidas
de um programa pré-escolar. O desenvolvimento é criador. A criança conquista
os conhecimentos pela experiência própria. Resume-se a função educativa do
Jardim de Infância a proporcionar ambiente favorável à vida”. (Marinho, 1952,
p.10).

Era, portanto, uma nova percepção de educação para a criança pequena, uma
Educação Infantil em que o foco não fosse a preparação para o ensino primário,
fundamentada em metodologias focadas em acelerar o ritmo de aprendizagem
da criança, atropelando o seu desenvolvimento natural. Para Heloísa, “O Jardim
de Infância deve proporcionar à criança, meios de expressar livremente suas
experiências no convívio com as professoras e os colegas, na dramatização
espontânea, nas artes manuais e na música (MARINHO, 1952, p.11). Leite Filho
(2008), lembra ainda que Heloísa Marinho adotou pontos de vista progressistas,
críticos e inovadores acerca da Educação Infantil no Brasil:

“Fortemente influenciada na sua formação pelas idéias escolanovistas, através


da sua obra, propõe uma Educação Infantil que tem como função preparar a
criança para a vida e não somente para a escola. Para ela parece limitado
restringir seus objetivos à função preparatória. E, mais do que isso, Heloísa
sempre defendeu que não era qualquer pré-escola que contribuiria com o
sucesso das crianças na escola primária e muito menos na vida. Esse resultado
dependeria, do seu ponto de vista, diretamente da qualidade da Educação
Infantil”. (LEITE FILHO, 2008, p.90).

Tanto Redin (1998), como Kuhlmann Jr. (2002) reiteram que Heloísa Marinho,
integrada com Anísio Teixeira e Lourenço Filho, formaram o grupo de intelectuais
pioneiros na busca por transformações na Educação Infantil no Brasil por meio
de suas ações, suas pesquisas e publicação de livros e artigos. A compreensão
da formação adequada do professor, da utilização de recursos diversificados
para melhor prepararem as aulas, e a valorização da educação pré-escolar
focada no desenvolvimento e no aprendizado integral e não puramente uma
preparação para uma próxima etapa escolar, são marcos de seu trabalho. Para
esta educadora:
“A educação pré-primária não permite indicar matérias a serem cumpridas em
tempo determinado. Não é possível demarcar programas rígidos,
essencialmente diferentes para os três períodos do jardim de infância. Dentro
das mesmas idades cronológicas de quatro, cinco e seis anos, são infinitas as
diferenças individuais. Experiências variadas que a própria criança adapta ao 66
nível de sua maturidade constituem o fundamento da educação. (MARINHO,
1952, p.44).

A herança cultural, científica e acadêmica produzida por Heloísa Marinho ao


longo de sua vida e deixada para a posteridade, apontam para uma mulher que
dedicou a existência em busca de formação adequada para a docência na
Educação Infantil, assim como, para pesquisas que contribuiriam com esta
formação.

Considerações finais

Este estudo buscou apresentar de forma sinóptica a indispensabilidade do


trabalho de Heloísa Marinho para a Educação Infantil no Brasil, sendo ela, a
primeira intelectual a buscar formação superior para os professores da Educação
Infantil, assim como, a especialização específica para os docentes já formados
que atuavam com os pequeninos.

Heloísa dedicou sua trajetória profissional à pré-escola, à formação do professor


para atuar nesta etapa de educação, e colaborou com o Ministério da Educação
e Cultura (MEC) na estruturação do Curso Superior de Pedagogia. De modo que,
este ministério acabou por incorporar muitas de suas percepções à política de
formação de professores no Brasil, a título de exemplo está o Parecer 895/69,
do Conselho Federal de Educação (CFE), o qual defende a formação do
professor de educação infantil em nível superior.

Leite filho (1998, p. 5) a define como “[...] a educadora de quase todas as


educadoras dos Jardins de Infância na cidade do Rio de Janeiro, no período que
vai de 1934 até 1978”. Desde o início de sua carreira como professora, Heloísa
dedicou-se à formação daquelas que iriam lecionar na Educação Infantil,
compreendendo que “[...] o trabalho do professor consiste em dar à criança apoio
afetivo e em propiciar riqueza de experiências, que aos poucos alargam o âmbito
dos conhecimentos infantis”. (MARINHO, 1952, p.12).

Por fim, Heloísa Marinho destacou-se não apenas como coordenadora de cursos
de formação de professores pré-primários, mas, por encabeçar mudanças
necessárias para a melhoria e para a transformação da compreensão da
Educação para a infância no Brasil.
Referências biográficas

Cláudia Sena Lioti é Mestranda em Ensino: Formação Docente Interdisciplinar,


pela UNESPAR campus de Paranavaí. Graduada em Pedagogia e em Letras –
Vernáculas e Clássicas. Especialista em Atendimento Educacional
Especializado, Educação Especial e Alfabetização e Letramento. 67

Márcia Marlene Stentzler: Doutora em Educação, História da Educação; Mestre


em Educação, Formação de Professores; Docente no Colegiado de Pedagogia,
UNESPAR campus de Paranavaí. Docente no Programa de Mestrado em
Ensino: Formação Docente Interdisciplinar (PPIFOR). Líder do NUCATHE
(Núcleo de Catalogação, Estudos e Pesquisas em História da Educação).
Diretora de Programas e Projetos, Prograd- UNESPAR.

Referências:

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 13.ed. Tradução


de Epharim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

BRASIL, Parecer 895/1969 do Conselho Federal de Educação. Estrutura o


Curso Superior de Pedagogia. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F4
8164DE1A1A0BF8B6893624B4618DA1.proposicoesWeb1?codteor=1169584&
filename=Dossie+-PL+2361/1979

FARIA, Mariana de O. A teoria histórico-cultural e a brincadeira:(re) pensando a


educação infantil a partir dos autores contemporâneos.117f. Dissertação de
Mestrado (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de São Carlos. UFSCar, 2016.

KUHLMANN JR, Moysés. A circulação das idéias sobre a educação das


crianças; Brasil, início do século XX. In: FREITAS, Marcos Cezar de;
KUHLMANN Jr, Moysés. Os intelectuais na história da infância. São Paulo:
Cortez. 2002.

KUHLMANN JR, Moysés. Histórias da educação infantil brasileira. Revista


Brasileira de Educação, 14, 5-18, 2000. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n14/n14a02.pdf Acesso em 22 mar. 2021.

LEITE FILHO, Aristeo G. Heloísa Marinho: Educadora de educadoras na


educação infantil do Rio de Janeiro. PUC/Rio Nome do GT: História da
Educação No do GT: 02. 1998. Disponível em
http://23reuniao.anped.org.br/textos/0209p.PDF Acesso em: 17 mar. 2021.

LEITE FILHO, Aristeo G. Políticas para a educação da infância no Brasil nos


anos 1950/1960. Tese (Doutorado em Educação). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
MACHADO-VAROTO, Michele. A educação das crianças menores de 06 anos
sobre a perspectiva de Heloísa Marinho, Nazira Féres AbiSáber, Celina Airlie
Nina e Odilon de Andrade Filho: uma análise de suas ideias pedagógicas
(1934-1971). Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal de São
Carlos, UFSCar, 2015. 68

MARINHO, Heloísa. Da linguagem na formação do Eu. Comunicação lida


perante a Primeira Conferência Interamericana de Higiene Mental. Rio de
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MARINHO, Heloisa. Vida e educação no Jardim de Infância. Rio de Janeiro,


Conquista. 1952.

REDIN, Merita. A representação da criança: visão histórica. In: REDIN, E. O


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THOMPSON, Edward. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros.


Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
WERNER, Jairo. A relação linguagem, pensamento e ação na microgênese
das funções psíquicas superiores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 27, n. 1, p.
33-38, jan.abr. 2015. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1349 Disponível
em: file:///C:/Users/claud/Downloads/4995-Texto%20do%20Artigo-19269-1-10-
20150131.pdf Acesso em 25 mar. 2021.
PIBID E AS MULHERES NEGRAS NA
SOCIEDADE BRASILEIRA: RELATO
DE UM ESTUDO VIVENCIADO EM 69

SALA DE AULA
Daiane da Silva Vicente e Marlane Leite
da Silva
Este trabalho faz parte do subprojeto de História, “História e Direitos Humanos:
memória, condição feminina e resistência”, sendo este possibilitado pelo
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Essa temática
foi dividida em três módulos, com duração de seis meses cada um, iniciando-se
em agosto de 2018. No primeiro módulo intitulado “A literatura e o material
fílmico, para debater a questão dos Direitos Humanos na sociedade Brasileira”,
entre os objetivos, buscou-se sensibilizar – através de questões ligadas à
literatura e os Direitos Humanos – para a causa das mulheres. O segundo
módulo “O processo de construção, solidificação do machismo que provocou o
silenciamento e exclusão das mulheres na história”, abordou-se assuntos
referentes ao surgimento e atuação do Movimento Feminista; também
mencionamos em nossas intervenções a trajetória de figuras femininas que
tiveram um papel importante na construção histórica. Já no terceiro módulo,
denominado “Violências e condições históricas que construíram um lugar de
subalternidade para a mulher negra na história brasileira”, para tanto, essa
temática que corresponde a esse texto, possibilita uma compreensão da atuação
da mulher negra na sociedade brasileira.

Para a realização deste projeto, utilizou-se a pesquisa de ação. A princípio


apropriou-se de uma base teórica, iniciada primeiramente nos encontros do
PIBID que ocorreram na Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns,
junto à coordenadora e a supervisora do subprojeto de História, onde discutiu-
se produções acadêmicas relacionadas à temática proposta. Em seguida,
desenvolveu-se intervenções em uma escola localizada no município de São
João – PE, com uma turma de 7°/ 8° ano do ensino fundamental, no qual os
estudantes tinham em média 13 a 15 anos de idade.

Na elaboração das atividades intervencionistas, recorreu-se a um embasamento


teórico encontrado nos textos utilizados ao longo do PIBID, como também, no
auxílio pedagógico formativo advindo das sugestões dadas nos encontros que
ocorriam normalmente com a supervisora e a coordenadora. Ademais, buscava-
se outros meios que viessem a contribuir na produção dos materiais a serem
usados em sala de aula. Para isso, vídeos, filmes, músicas, imagens, textos e
sites que traziam uma relação com o assunto a ser discutido, foram de grande
importância na aplicação e construção de resultados significativos.

Quanto à coleta de dados, valeu-se do uso de questionários que possibilitaram


a obtenção de respostas embasadas no conhecimento prévio dos educandos, 70
essas considerações não foram descartadas, justamente por servirem como
ponderações para compreender a evolução da aquisição do saber por meio das
atividades. Essas intervenções possibilitaram inúmeras análises sobre as
perspectivas das/dos jovens a respeito dos afrodescendentes, e sobre a história
das mulheres negras e suas lutas na sociedade brasileira. Evidenciando
questões interessantes para indagações.

Discussão e experiência na sala de aula

A escola é um espaço importante para combater as discriminações. No terceiro


módulo do PIBID, pode-se falar sobre a mulher negra na sociedade brasileira e
os problemas enfrentados por ela na atualidade e em outros momentos
históricos. De acordo com as competências gerais da educação básica contidas
na BNCC – Base Nacional Comum Curricular (2017, p. 10) é necessário

“Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-


se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com
acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus
saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer
natureza”.

No que diz respeito a reconhecesse como afrodescendente, baseando-se no


atlas da violência de 2019, pode-se perceber que o quadro de análise referente
à cor da pele, pardos e negros são colocados em uma mesma categoria. Sendo
a que não corresponde ao mesmo quadro: branca, amarela e indígena.
Baseando-se nesses aspectos, foi desenvolvido um questionário que possibilitou
analisar como as alunas e alunos se identificavam. O resultado obtido com os 26
alunos que estavam presentes no momento da realização dessa intervenção
foram as seguintes: 42% assinalaram correspondendo a cor parda; 12% a cor
negra; 34% a cor branca e 12% assinalou referente ao que seria outro (não se
identificando com nenhuma das opções citadas). Evidenciou-se, que ao longo
que iam respondendo o questionário, mais dúvidas apareciam sobre o que é ser
negro ou ser negra, acarretando necessariamente, discutir ainda mais sobre
essas questões. Neste mesmo questionário, abordou-se a cultura afro-brasileira.
Ao serem questionados sobre o conhecimento que tinham a respeito de
elementos da cultura afro-brasileira, quase 90% afirmou não conhecer. Conclui-
se que os adolescentes com faixa etária entre 13-14 anos, não tinham
conhecimento de suas descendências e cultura africana. Os estudantes que
confirmaram conhecer, foram aproximadamente 10%, e não especificaram
muitos elementos, se restringindo aos mais populares, como por exemplo, a
capoeira. Análises como essas, permite refletir sobre como, e se é discutido
suficientemente assuntos como esse em sala de aula. Provavelmente, se um
tema tão abrangente não é trabalhado ou não é atribuída tamanha importância,
a ponto de fazer com que os alunos se recordem, acredita-se que a trajetória da
mulher negra na história é totalmente invisibilizada, não somente nas aulas de
História, como também na historiografia. 71

A análise mencionada acima foi comprovada. Quando mencionado em sala de


aula sobre o papel da mulher negra na sociedade, os educandos agiram com
estranheza, pois praticamente não havia conhecimento algum. Ficando evidente
que não era algo apenas deles, mas também tinha relação com a carência de
informações contidas no livro didático, demonstrada quando solicitamos para
que trouxesse alguns dados de figuras femininas que eles encontrassem no livro
de história. Eles relataram as dificuldades para acharem essas personagens.
Dessa forma, propomos em uma das atividades fazermos a exposição de
algumas figuras femininas negras que desempenharam um papel fundamental
na história. As personagens expostas, sendo elas heroínas ou ativistas foram:
Aqualtune, Dandara, Maria Firmina e Djamila Ribeiro. Pode-se perceber o
quanto ficaram encantados e surpresos com a trajetória e atuação dessas
mulheres.

É importante que os estudantes tenham contato com a cultura afro-brasileira, e


conheçam a trajetória da mulher negra na história, pois permite que eles
agreguem valores antes não atribuídos, tanto na sua formação escolar e como
indivíduo consciente, percebendo a importância de estudar o passado,
facilitando na compreensão do presente. Contudo, isto permite um rompimento
com a discriminação do desconhecido, levando em consideração que o
preconceito, às vezes surge devido a falta de conhecimento sobre algo.

No que diz respeito ao machismo e o preconceito racial, ambos fruto de um longo


processo encontrado na história brasileira. Por mais que existam leis que
assegurem tais direitos para as vítimas, ainda estamos longe de superar as
barreiras que impedem o desenvolvimento da sociedade, para um grau de
igualdade de direitos entre homens e mulheres de todas as etnias. Para
compreendermos melhor os espaços e papéis ocupados pelas mulheres negras
é interessante fazer referência ao período escravista, um se não o momento mais
triste de nossa memória histórica.

“[...] aos negros, a partir de características como a cor da pele (a mais escura)
aliada aos aspectos sociais e culturais, associa-se não apenas a feiura, mas a
subalternidade e a invisibilidade. Entretanto, isso ocorre de maneira ambígua e
perversa: de um lado, o homem negro é rejeitado como desinteressante, de outro
enaltecido como potente e viril, ou ainda temido como violento. Já a mulher negra
é rejeitada pela cor, enquanto muitas vezes, especialmente a mulata, é vista
como disponível e sedutora, cujo atributo maior seria o de “ser quente”, mas
desprovida de desejo próprio e feita apenas para “servir” ao outro.” (RIBEIRO,
2004, p. 89)
Dessa maneira, percebe-se que as consequências da escravidão no Brasil são
extensas e complexas. Atinge todos os remanescentes, homens e mulheres.
Fatores como esses, ocorrem pelo motivo de após a abolição, não ter ocorrido a
inclusão da população negra como cidadã. Provavelmente, com o devido
reconhecimento, teria sido possível superar tais discriminações por causa da cor 72
da pele. Mas isso não garantiria que a mulher negra deixasse de sentir as
investidas do machismo.

Para enfatizar essa marginalização, é importante ressaltar que as mulheres


negras no Brasil, atualmente, ainda são maioria ocupando funções ligadas aos
trabalhos domésticos e terceirizados, como aponta Djamila Ribeiro (2019). A
autora ainda menciona que algumas medidas políticas afetam ainda mais as
mulheres negras, dando um exemplo, a reforma da previdência quando salienta:

“A reforma da previdência, que caminha no Congresso sob forma de Emenda


Constitucional número 287, prevê aumentar o tempo de contribuição para 25
anos e a idade mínima para 65 anos para as mulheres. Essa medida não leva
em consideração a divisão sexual do trabalho imposta em nossa sociedade. Vale
dizer, pois mulheres ainda são aquelas moldadas para desempenhar o trabalho
doméstico e obrigadas a serem as maiores responsáveis pela criação dos filhos.
Mulheres, sobretudo, negras, partem de pontos diferentes e consequentemente
desiguais.” (RIBEIRO, 2019, p. 65)

Essa medida afeta as mulheres negras por serem a grande maioria no mercado
de trabalho doméstico. Isto acontece porque desde a escravidão elas
desempenharam um papel semelhante nas casas dos proprietários de escravos,
além de outras já apontadas. Por serem a maioria trabalhadoras dessas áreas
se evidencia a precariedade de sua situação. Outro exemplo que coloca em
evidência a realidade das mulheres negras antes e agora, é o fato de que desde
o processo de escravidão elas foram “sexualizadas”, visto que tinham a função
de reproduzirem, para que houvesse mais escravos, como já mencionado. Ainda
hoje elas são vistas como objeto sexual, como se pode perceber ao ouvir o
jargão popular, “da cor do pecado”.

“Pesquisas recentes demonstram que, na segunda década do século XXI, as


mulheres negras continuam sendo o segmento social menos favorecido do país,
recebendo os piores salários e sujeitas a um número muito maior de exploração
e discriminação de seus corpos.” (SANTOS, 2017, p. 45).

Ademais, as mulheres negras não se encaixam nos padrões de beleza impostos


pela sociedade, que é o da mulher branca, loira, de olhos azuis e pouco
curvilínea. Isso faz com que a não aceitação do que é ser negra seja maior,
fazendo com que ela se submeta a formas de mudanças para se adequar ao
padrão, acarretando à negação da identidade negra. Ao realizarmos um recorte
sobre a beleza negra, pode-se perceber como principalmente as meninas
ficaram inquietas por estar sendo feito alusão de forma indireta as suas próprias
condutas de comportamento, realçado em fatores como o alisamento do cabelo.

Em uma intervenção, levou-se algumas notícias acerca do índice de violência


contra a mulher negra e a população negra como um todo. Essa atividade teve
por objetivo destacar o agravamento do número de violências contra esse grupo. 73
Foi possível perceber uma certa surpresa dos estudantes em relação aos dados.
De acordo com o Atlas da violência (2019), a taxa de homicídio da mulher negra
em Pernambuco é maior que a taxa do Brasil, sendo 7,6% em 2017, enquanto a
da mulher branca é de 3,2%. Portanto, a mulher negra sofre mais violência que
a mulher branca.

A pouca representatividade da mulher negra nos espaços tidos como


importantes na sociedade, fora outra questão abordada. É evidente, a carência
da representação feminina negra em cargos políticos, e em profissões vistas
como elitizadas. Por outro lado, elas estão presentes ativamente na luta em
busca desses espaços.

“A participação de mulheres nos partidos, sindicatos, movimentos de bairro,


associações de mães, movimentos negros e grupos feministas, além de
inúmeros outros movimentos organizados, vem contribuindo de forma decisiva
na formação da mulher, onde ela atua como ser pensante, buscando, decidindo
e contribuindo nos mais diferentes espaços” (SOUZA, 1995, p. 11).

Essa visibilidade é importante para que o racismo não se faça tão presente, e
que haja uma aceitação da cultura afro-brasileira. Para compreendermos
questões como essa que está sendo abordada, é interessante ter em mente o
que é “lugar de fala”. Isso seria exatamente como bem descreve Djamila Ribeiro,
uma forma de “romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um
movimento no sentido de romper com a hierarquia” (2019, p. 89), ou seja, o lugar
de fala é ocupado por quem durante muito tempo foi silenciado. Outra questão
interessante é entender, justamente, que ao falar pelo outro não estamos dando
voz a essas pessoas. Voz elas sempre tiveram, o que não tinham era espaço
para se pronunciarem, fato este que levou ao processo de silenciamento, que
atualmente buscam superar. A mesma autora, também traz outra discussão que
se relaciona com a primeira. Ambas interessantes, pois quando mencionado o
papel ocupado por quem hoje é protagonista de sua luta e história, não quer
dizer que outros indivíduos, que não fazem parte de determinado grupo
específico, falem a respeito.

“Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus


social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência.
Absolutamente não tem a ver como uma visão essencialista de que somente o
negro pode falar sobre racismo, por exemplo.” (RIBEIRO, 2019, p. 64).

Por mais importante que seja ter mais pessoas defendendo a causa de um
grupo, do qual não compartilhem características pessoais semelhantes, é
sempre bom dispor além do lugar de fala, a atenção, ocupando o lugar de escuta,
enquanto aqueles mais íntimos com a causa de manifesta, como por exemplo,
que mais mulheres negras falem de suas dores, lutas e vitórias.

Considerações Finais
74
É fundamental compreender a história do país onde vivemos, não apenas os
acontecimentos considerados grandiosos, mas também ter uma noção dos
ocorridos trágicos que permeiam os grandes momentos. E entender que a
história tem suas nuances e que elas nos mostram o que somos. Uma vez que
possibilitado o conhecimento de fatos como este – período da escravidão no
Brasil – é possível estabelecer uma conexão com as atitudes discriminatórias
que ainda precisam ser superadas.

Com esse estudo, direcionado a mulher negra no Brasil foi possível perceber
que ao longo da história elas foram marginalizadas, e que a sua luta é diferente
da mulher branca. E por terem sido silenciadas, as suas reivindicações
demoraram a serem ouvidas. Para que assim houvesse transformações na
sociedade, como a aceitação do que é ser negra. E para isso, é preciso estudar
a sua história em todas as instâncias, para que ocorra uma superação do
machismo e do racismo. E falar de racismo no Brasil, é difícil, porque
determinados indivíduos acreditam que não existe. E desta forma, é válido
ressaltar que a educação como agente transformador possibilita a difusão desse
estudo, com a sua devida importância que merece ser atribuída, destacando a
tomada de consciência sobre as diferenças que permeiam a sociedade e além
de tudo, o fortalecimento da empatia, como foi possível perceber nas
intervenções em sala de aula.

Referências biográficas

Daiane da Silva Vicente é graduanda do 7° período do curso de Licenciatura em


História da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns. Entre agosto de
2018 a janeiro de 2020 foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID). (daianesv567@gmail.com)

Marlane Leite da Silva é graduanda do 7° período do curso de Licenciatura em


História da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns. Entre agosto de
2018 a janeiro de 2020 foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID). (laneleitedasilva2016@gmail.com)

Referências bibliográficas

CERQUEIRA, Daniel. et al. IPEA (org.). Atlas da Violência 2019. Brasil: Instituto
de Pesquisa Aplicada; Fórum brasileiro de Segurança Pública. 2019. Disponível
em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/19060
5_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 13 de outubro de 2019.
Ministério da Educação. BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. Disponível
em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofi
nal_site.pdf>. Acesso em: 13 de nov. de 2019.
75
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. 1° Ed. São Paulo: Pólen, 2019.

RIBEIRO, Matilde. Relações raciais nas pesquisas e processos sociais: em


busca de visibilidade para as mulheres negras. In.: A mulher brasileira nos
espaços público e privado. Gustavo Venturi, Marisol Recamán e Suely de
Oliveira (Orgs.). 1° ed. – São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. 87-105 p.

SANTOS, Ynaê Lopes dos. O feminismo negro como um lugar de pertença e


aprendizado. In.: Lugar de Mulher: Feminismo e Política no Brasil. Lívia
Magalhães (Org.). Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2017. 42-61 p.

SOUZA, Edileuza Penha de. Mulher negra: sua sexualidade e seus mitos. In:
QUINTAS, Fátima (org.). Mulher negra: preconceito, sexualidade e imaginário.
Ministério da educação, Governo Federal, Recife: INPSO-FUNDAJ, Instituto de
Pesquisas Sociais-Fundação Joaquim Nabuco, 1995. P. 10-21. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/Brasil/dipes-fundaj/20121203110837/quintas.pdf.
Acesso em: 12 de outubro de 2019.
O ENSINO DE HISTÓRIA E GÊNERO:
REFLEXÃO NA BASE NACIONAL
COMUM CURRICULAR 76

Darcylene Pereira Domingues e Rafaela


Lima de Oliveira
Nessa escrita nos destinamos a uma crítica da reestruturação do currículo
expresso no documento conduzido pelo Ministério da Educação e Cultura
intitulado Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que pode demonstrar um
breve esboço dos possíveis impactos na educação brasileira. Assim, arranjamos
essa análise porque observamos alguns pontos no mínimo inquietantes a
respeito de um dos nossos objetos de pesquisa, o debate de gênero, expresso
na fonte. Dessa forma, optamos por demonstrar como o novo currículo pretende
abordar a temática de gênero após a aprovação, além disso acreditamos que o
currículo citando Silva (2009) é um local de lutas sobre o social e o político e
deve ser questionado para além das práticas pedagógicas.

Assim temos o propósito de evidenciar que as escolhas curriculares


implementadas na base refletirão no processo de ensino e aprendizagem dos
alunos, principalmente focando a didática da História, pois ela se apresenta
como uma estrutura veiculada diretamente com o espaço escolar e relaciona-se
intrinsecamente a História com as necessidades da vida prática dos alunos.
Sendo assim, o objetivo da didática da História é o desenvolvimento da
consciência histórica, entretanto, o processo de experiência é necessário nesse
percurso, desde que ele não seja ceifado do currículo.

A nossa fonte de crítica possui diversas variantes, a primeira versão da BNCC


começa a ser desenvolvida no ano de 2015 após o I Seminário Interinstitucional
para a elaboração da Base e posteriormente em outubro do mesmo ano por meio
da Portaria 592 que instituiu a Comissão de Especialistas para a elaboração da
proposta. Essa versão segundo o Ministério da Educação (MEC) receberia
“contribuições da sociedade civil, de organizações e entidades científicas2”
dessa forma, seria produzida coletivamente. Em março de 2016 a proposta é
finalizada e divulgada3 para que ocorra novas discussões e aperfeiçoamento de
diversas temáticas que poderiam sofrer alterações. Esse documento com 302
páginas é assinado por diversas instituições como por exemplo, União Nacional
dos Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), Conselho Nacional de
Secretários da Educação (Consed), Ministério da Educação (MEC) e o Governo
Federal. E possui subdivisões entre as diversas áreas do conhecimento e os
componentes curriculares correspondentes tanto para a Educação Infantil, o
Ensino Fundamental como para o Ensino Médio.

O ponto que vamos destacar é o debate de gênero proposto por essa primeira
versão da BNCC e como esse tema foi desenvolvido atentando para a sua
inclusão ou exclusão no ensino de História. Observamos nas primeiras páginas 77
os princípios orientadores “sinalizar percursos de aprendizagem e
desenvolvimento dos estudantes” (BNCC, 2016, p.3). A temática de gênero já
aparece nesses princípios orientadores da base numa visão mais geral
englobando outras diferenças sociais que os estudantes devem:

“desenvolver, aperfeiçoar, reconhecer e valorizar suas próprias qualidades,


prezar e cultivar o convívio afetivo e social, fazer-se respeitar e promover o
respeito ao outro, para que sejam apreciados sem discriminação por etnia,
origem, idade, gênero, condição física ou social, convicções ou credos” (BNCC,
2016, p.7) [grifo nosso]

Desta forma, observamos que a temática de gênero aparece já no princípio como


um relevante assunto a ser desenvolvido nos diferentes níveis escolares como
a base propõe na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Médio.
Entretanto, ao longo de sua leitura essa discussão está restrita a algumas
disciplinas, como por exemplo, Artes, Educação Física, Biologia e Sociologia. O
debate de gênero que poderia ser desenvolvido pela área da História é
inexistente, o que demonstra que para os autores esse assunto não é
componente curricular destinado aos professores de História pois a construção
histórica deste tema é negligenciada. Consequentemente, não se possuí o
interesse de “incluir as mulheres no processo histórico e no ensino de história”,
porque “não significa apenas incluir metade da humanidade, mas democratizar
a história” (COLLING; TEDESCHI, 2017, p.295) Neste contexto de exclusão de
um determinado gênero, as experiências e vivências, elementos indispensáveis
no processo de ensino e aprendizagem como é demonstrado por Cardoso (2008)
não são proporcionados e, portanto, não se desenvolve um processo de auto-
reflexão.

Após apreciação da base fica evidente que a temática de gênero deve ser
discutida pelo professor de Educação Física no Ensino Fundamental, pois ela
aparece seis vezes como componente curricular obrigatório. Desta forma, o
assunto da diferença de gênero deve ser debatido por esse profissional que
segundo a BNCC pode “reconhecer as práticas corporais como elementos
constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos, identificando nelas os
marcadores sociais de classe social, gênero[...]” (BNCC, 2016, p.98). A
historiadora Guacira Louro em seu livro Gênero, Sexualidade e educação já
havia afirmado essa ocorrência no que ela denomina de “alfabetização corporal”:
“[..] algumas áreas escolares a constituição da identidade de gênero parece,
muitas vezes, ser feita através dos discursos implícitos, nas aulas de Educação
Física”. (LOURO, 2011, p.76). Portanto, fica evidente, segundo a base, o
professor de Educação Física por lidar com as práticas corporais fica
encarregado desse assunto ou melhor está capacitado segundo Louro (2011)
para “alfabetização corporal”. O professor deve realizar brincadeiras e jogos que
“reconheçam a diferença de gênero” (BNCC, 2016, p.99) e avalie os alunos
“independentemente do nível de desempenho, gênero ou qualquer outra
característica” (BNCC, 2016, p.111). Além disso, é delegado ao profissional
trabalhar as relações igualitárias e as discriminações entre os gêneros, mas não 78
indica as ferramentas necessárias.

O único ponto mais próximo que a área das Humanidades desenvolveria é o


componente curricular da Sociologia no Ensino Médio, segundo a base cabe ao
professor de sociologia no segundo ano do Ensino Médio desenvolver com os
estudantes os “processos de formação de identidades políticas e culturais” mais
especificamente “compreender a perspectiva socioantropológica sobre sexo,
sexualidade e gênero” (BNCC, 2016, p. 300) e “problematizar a divisão de classe
no modo de produção capitalista, a divisão do trabalho segundo o sexo e as
implicações para as relações de gênero” (BNCC, 2016, p. 301). Entretanto, a
construção histórica envolvida na temática de gênero novamente fica excluída,
assim o processo racional e de experiência desenvolvido pela didática da
História não possui lugar.

Portanto, como demonstrado nessa breve análise da primeira versão da BNCC


o debate de gênero e todas as problemáticas que envolvem esse tema não é
obrigatoriedade do professor de História desenvolver em sala de aula.
Consequentemente os alunos não compreenderiam a construção histórica sobre
esse conceito e as diferenças percebidas entre os sexos e “que gênero é uma
forma primeira de significar as relações de poder”. (SCOTT, 1990, p.86).Outro
ponto significativo, é que somente no Ensino Médios essas discussões seriam
realizadas e a Educação Básica e Fundamental não desenvolveriam essa
problemática, o que se apresenta como um equívoco pois segundo as
historiadoras

“O ensino de história na educação básica é fundamental para a formação de


sujeitos críticos, capazes de compreender as experiências sociais como
dinâmicas e múltiplas, sujeitas a relações de poder (e, portanto, a
desigualdades), além de ser também um campo de negociações, mudanças,
empatias e superações”. (SILVA; ROSSATO; OLIVEIRA, 2017, p.454)

Assim, o sentimento de alteridade perante os diferentes gêneros só poderá ser


concebido em espaço escolar a partir de experiências que respondam as
carências de orientação desses indivíduos, pois segundo Cerri “a possibilidade
do conhecimento se dá desde que possamos ver ou experimentar de algum
modo as coisas; o conhecimento é uma função da experiência” (CERRI, 2010,
p.269). Felizmente, essa versão não foi implementada e todos pontos negativos
a respeito do assunto aqui abordado foram novamente para uma nova análise e
discussão.
A segunda versão da BNCC fora construída após o lançamento e discussões da
primeira e publicada ainda no ano de 2016, após diversas polêmicas envolvendo
a retirada de conteúdos curriculares, como por exemplo, História Antiga e
Medieval. Esse documento é assinado pelos mesmo entes responsáveis da
anterior e se apresenta com o dobro de páginas e novas especificações por
área. O conceito gênero aparece primeiramente na etapa que está nomeada de 79
“Direitos à aprendizagem e ao desenvolvimento que se afirmam em relação a
princípios éticos”. Neste local está expresso os direitos que todo cidadão possuí
ao acesso da educação e

“ao respeito e ao acolhimento na sua diversidade, sem preconceitos de origem,


etnia, gênero, orientação sexual, idade, convicção religiosa ou quaisquer outras
formas de discriminação, bem como terem valorizados seus saberes,
identidades, culturas e potencialidades” (BNCC, 2016, p. 34)

Esse documento embora seja maior apresenta basicamente os mesmos debates


de a respeito da temática de gênero, concentrados na disciplina de Educação
Física, Artes e Biologia. A área de Educação Física alarga seus componentes
curriculares que deve compreender as diversas modalidades de atividades,
como por exemplo, dança, ginástica, luta, teatro e esportes atentando para as
diferenças de gênero no ambiente escolar. Como anteriormente observado,
gênero continua sendo restrito ao profissional preparado para lidar com os
elementos corporais, pois como nos afirma Louro (2011)

“o uso de alinhamento, a formação de grupo e outras estratégias típicas dessas


aulas permitem que o professor ou professora exercite um olhar escrutinador
sobre cada estudante, corrigindo sua conduta, sua postura física, seu corpo,
enfim, examinando-o/a constantemente. Alunos e alunas são aqui
particularmente observamos, avaliados e também comparados, uma vez que a
competição é inerente à maioria das práticas esportivas” (LOURO, 2011, p.79)

O olhar do professor dessa disciplina está envolvido com o corpo dos estudantes
e aparentemente para esse documento gênero é um assunto somente corporal.
Dessa forma, esses licenciados são os responsáveis pelo debate e ao combate
de discriminações que possa ocorrer no âmbito escolar.

Diferentemente da versão anterior da BNCC, o Ensino Religioso no Ensino


Fundamental deve discutir outras temáticas denominadas como “Ideias e Prática
Religiosas/ não Religiosas” que incluem “as instituições religiosas e suas
relações com a cultura, política, economia, saúde, ciência, tecnologias, meio
ambiente, questões de gênero, entre outros” (BNCC, 2016, p. 173). Essa
competência exigida na base seria uma pequena explanação das diferentes
formas que o humano escolheu para viver em sociedade, diferenças essas
culturais, políticas e de gênero. Aqui encontramos novamente um problema, qual
professor estaria apto para desenvolver essa disciplina? Ao nosso entendimento
os assuntos que devem ser abordados acima referente as diversidades sociais,
políticas e de gênero devem ser discutidos pelo professor de História. Destarte,
o assunto de gênero é citado por diversas áreas no Ensino Fundamental, mas
continua excluído da História.

Somente no Ensino Médio na área das Ciências Humanas é proposto “a


desnaturalização da cultura e da organização social e, em decorrência, a
sensibilização e o estranhamento com diversas formas de desigualdade 80
(socioeconômica, racial, de gênero) e identidades (culturais, religiosas, étnico-
raciais, geográficas)” (BNCC, 2016, p.628). No processo educativo proposto por
essa versão somente no Ensino Médio o aluno teria contato com essas
construções históricas tidas como naturais e normais, que segundo Scott “como
se essas posições normativas fossem o produto de um consenso social e não
de um conflito”. (SCOTT, 1990, p. 87). Desta forma, o processo de consciência
história que poderia ser desenvolvido a partir da experienciação fica restrito a um
momento o qual o estudante discutiria o assunto que fica acantonado nesta
proposta, pois não é englobado em outras competências da área da História que
poderiam fazer o estudante refletir. Lembramos também que

“Temas como gênero e sexualidade não pretendem e tampouco devem substituir


os conteúdos tradicionais das disciplinas que compõe o currículo escola. Uma
das possibilidades consiste no tratamento como tema transversal. Forma que
possibilita a inserção dessas questões sociais presentes no dia-a-dia do estudo
e em debate na sociedade, sem deixar de lado outros assuntos tão importantes
quanto” (FERREIRA, 2009, p.43)

O debate de gênero é praticamente negligenciado na educação brasileira e visto


como um tema transversal quase desnecessário na área da História, porque
novamente a disciplina que pretende discutir essa temática é a Sociologia que
tem como meta tornar os estudantes capazes de “articular identidades de classe,
de raça e de gênero a processos de conflitos de classe, a formas de produção
de violência e estigma e a formação de atores coletivos orientados para a luta
por direitos” (BNCC, 2016, p.634). Uma meta bem pretenciosa, já que os debates
serão bem limitados ao longo de todo Ensino Fundamental e Médio, e
novamente visualizamos que o foco não está na construção histórica do conceito
de gênero.

A terceira versão da BNCC atenta mais para a área de História e o debate de


gênero, o que é expresso por quatro momentos, um número significativo se
comparada as versões anteriores. Evidentemente ele também permanece nas
áreas de Artes, Educação Física e Biologia pois já se encontram consolidados
deste a primeira versão. Além disso, apresenta como uma competência
curricular geral que afirma que o aluno deve

“Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-


se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização
da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades,
culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, idade,
habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza,
reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se
comprometer” (BNCC, 2017, p.19)

Esse novo documento deixa sob reponsabilidade do professor de História no


Ensino Médio “promover a diversidade de análises e proposições, espera-se que
os alunos construam as próprias interpretações, de forma fundamentada e 81
rigorosa. Convém destacar as temáticas voltadas para a diversidade cultural, as
questões de gênero [..]” (BNCC, 2017, p.351). Acreditamos que esse assunto a
respeito do gênero e da diversidade não devem ficar restrito ao Ensino Médio, e
sim espalhado por todos os níveis escolares porque pensar, discutir, escrever,
falar sobre as relações de gênero junto com o ensino de história é uma tarefa
urgentíssima. O ensino de História como definido por Cerri (2010, p. 270) “como
a interferência de caráter de desenvolvimento cognitivo, capaz de ajudar o aluno
a abrir novas portas para a sua capacidade de pensar, definir e atribuir sentido
ao tempo” auxiliando assim o processo de orientação, tentando assim evitar
socialmente abusos em relação ao gênero ou a outras discriminações.

Um ponto significativo no componente curricular é a temática vinculada ao início


da República no Brasil, afirmando que o aluno deve “identificar as
transformações ocorridas no debate sobre as questões de gênero no Brasil
durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem
em relação ao tema.” (BNCC, 2017, p.379). Neste trecho visualizamos pela
primeira vez uma indicação direta do ensino de História e o debate de gênero
que deve ser promovido pelo professor de História, porém continua restrito a um
conteúdo especifico. E no último ano do Ensino Médio na competência da
História Recente o estudante deve “avaliar as dinâmicas populacionais e as
construções de identidades étnico-raciais e de gênero na história recente
(BNCC, 2017, p.380), uma competência mais vinculada a Geografia do que ao
ensino de História.

Deste modo, após essa breve análise sobre a BNCC comprovamos que a
construção histórica que está enraizada no conceito de gênero é praticamente
excluída do currículo e quase desnecessária ao professor de História. Porém,
acreditamos que o ensino de História deve acionar essa discussão ao longo de
todas as temáticas desenvolvidas na vida escolar do estudante, pois “o que fica
evidente, sem dúvida, é que a escola é atravessada pelos gêneros; é impossível
pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as
construções sociais e culturais de masculino e feminino” (LOURO, 2001, p.93).
Sendo assim, a escola como parte da sociedade também comporta essas
diferenças de gênero, que na maioria das vezes são silenciadas/escondidas.

Portanto, desejamos que o debate de gênero, assim como outros assuntos


considerados polêmicos, como por exemplo, sexualidade, sejam incluídos e
implementados de forma concisa e reflexiva no currículo e no espaço escolar.
Dessa maneira, aspiramos um ensino de História que problematize juntamente
com os alunos as diversas questões que cotidianamente se apresentam no
convívio social dos indivíduos, somente assim, sentimentos como respeito,
alteridade e empatia poderão surtir efeitos no ambiente escolar e em nossa
sociedade.

A presente escrita não incluiu a análise do último documento da BNCC que deve
ser publicada logo, pois infelizmente acreditamos que a temática continue sendo
negligenciada como nas versões anteriores. Afirmamos isso visto que assunto 82
como “ideologia de gênero” ou similares estão atualmente muito presentes em
mídias sociais e impressa o que desqualifica completamente o assunto sem
minimamente conhecer a sua construção social e as concepções.

Referências biográficas

Mestre Darcylene Pereira Domingues – pelo Programa de Pós-Graduação em


História na Universidade Federal do Rio Grande

Rafaela Lima de Oliveira – graduanda do curso de História Licenciatura na


Universidade Federal do Rio Grande

Referências bibliográficas

CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista


Brasileira de História. São Paulo, v. 28, nº 55, p. 153-170 – 2008.

CERRI, Luis Fernando. Didática da História: uma leitura teórica sobre a História
na prática. Revista de História Regional. Vol 15(2): 264-278, Inverno, 2010.

COLLING, A.M; TEDESCHI, L.A. O Ensino de História e os estudos de gênero


na historiografia brasileira. Revista História e Perspectivas, Uberlândia, v. n. p.
295-314, jan./jun. 2015 Disponível em: <> Acesso em: 05 de mai. 2017

FERREIRA, M. O. V. Docentes, representações sobre relações de gênero e


consequências sobre o cotidiano escolar. In: SOARES, Guiomar Freitas; SILVA,
Rosane Santos da; RIBEIRO, Paula Regina Costa, Org(s). Corpo, gênero e
sexualidade: Problematizando práticas educativas e culturais. Rio Grande: Ed.
FURG, 2009. p. 69-82

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva


pós-estruturalista. 13 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 184 p.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação &
Realidade, Porto Alegre, p. 71-99, 1990. Disponivel em:
<https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G
%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 7 fevereiro 2014.

SILVA, C. B.; ROSSATO, L.; OLIVEIRA, N. A. S. A formação docente em


História: Igualdade de gênero e diversidade. Revista Retratos da Escola.
Brasília, v. 7, n. 13, p. 453-465, jul./dez. 2013 Disponível em:
<http//www.esforce.orr.br>. Acesso em: 06 de set. 2017

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias


do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009
83
Fontes:
Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. Brasília, 2015.
Disponível em: < http://historiadabncc.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: 03
de nov. 2017
Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. Brasília, 2016.
Disponível em: < http://historiadabncc.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: 03
de nov. 2017
Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. Brasília, 2017.
Disponível em: < http://historiadabncc.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: 03
de nov. 2017
MARIA LACERDA DE MOURA E
SUBVERSÕES EM AMAI E... NÃO VOS
MULTIPLIQUEIS 84

Fernanda Loch
Introdução

A partir da temática da Escrita de mulheres e as subversões, buscamos nesse


artigo, localizar e analisar as subversões de Maria Lacerda de Moura (1887-
1945) presentes na sua obra Amai e... não vos multipliqueis. Maria Lacerda foi
uma escritora, professora, anarquista e feminista brasileira e se destaca pela sua
subversão em todas as instâncias da vida, inclusive seus escritos. Segundo a
autora, somente a liberdade sexual traria a emancipação feminina. No livro
selecionado, ela faz críticas à sociedade capitalista, moralista e clerical,
propondo ações individuais para o combate desse sistema, em especial quando
toca na questão da maternidade consciente, temática que colocamos em
destaque.

Neste tópico introdutório estaremos apresentando alguns aspectos biográficos


da trajetória da autora para posteriormente focar em alguns pontos subversivos
do livro intitulado Amai e... não vos multipliqueis, do ano de 1932.

Maria Lacerda de Moura nasceu em Manhuaçu, uma cidade do estado de Minas


Gerais, em 16 de maio de 1887. Os pais dela eram espíritas e anticlericais
(LEITE, 1984, p. 144), então ela já tinha influência de casa ao anticlericalismo.
Futuramente ela embasaria suas críticas sobre a Igreja Católica, elemento que
é muito presente nos seus escritos.

Maria Lacerda formou-se como professora em 1904 e participou de campanhas


nacionais de alfabetização e reformas educacionais. Os primeiros escritos dela
foram publicados em 1912, em formato de crônica num jornal local. Nesses
primeiros escritos alguns familiares da autora já pediram “mais moderação” nas
palavras. Segundo ela mesma na sua autobiografia “Que lucta interior e que lucta
mantive com o “que poderão dizer?”. (MOURA, 1929, p. 3 apud LEITE, 1984, p.
145). Neste momento podemos perceber uma primeira face de subversão ao
enfrentar os julgamentos morais da própria família ao continuar escrevendo,
apesar “do que poderiam dizer”.

Em 1921, aos 34 anos, ela se mudou para São Paulo. Importante salientar que
a partir de 1912, Maria Lacerda de Moura continuou escrevendo, participando
ativamente de associações de operários e fazendo discursos nessas
organizações. Foram essas conferências, inclusive, que formaram contatos e
que estabeleceram pontes para mudança dela para São Paulo. (LEITE, 1984, p.
IX). Em São Paulo, a autora se inseriu nos movimentos de mulheres, sendo
convidada a se unir com Bertha Lutz, com quem fundou a Liga para a
Emancipação Intelectual da Mulher, precursora da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino. Outra coisa interessante a se mencionar, foi que Maria 85
Lacerda foi presidente da Federação Internacional Feminina entre 1921 e 1922,
criando nos estatutos da organização uma cláusula pioneira, que dizia “trabalhar
pela criação de uma cadeira de História da mulher, sua evolução e sua missão
social em todas as escolas femininas”. (LEITE, 1984, p. 82). Como professora,
queria inserir essa discussão feminista e a história das mulheres nas salas de
aula, o que se configura como uma subversão ao que se era ensinado nas
escolas.

Em 1922, porém, Maria Lacerda de Moura começou a se afastar das


organizações femininas por ser contra a pauta do sufrágio feminino. (RAGO,
2007, p. 278). Ela entendia que a luta pelo direito ao voto atendia uma parcela
muito limitada das necessidades das mulheres.

Maria Lacerda de Moura se manteve próxima dos anarquistas durante o seu


tempo em São Paulo (LEITE, 1986, p. 83) e também nunca abandonou o
espiritualismo e as convicções teosóficas. (LEITE, 1984, p. IX). Na obra
escolhida para a análise, Amai e... não vos multipliqueis, podemos identificar
essas três bases nas quais os argumentos se fundamentam: a emancipação
feminina, o anarquismo, e as convicções teosóficas. A autora é muito sóbria nas
suas críticas à sociedade humana e em alguns momentos, parece que ela se
expande ao místico, aos mistérios da vida e da natureza. Então ao lermos a obra,
conseguimos perceber essa relação da autora com o espiritualismo e a teosofia.

Em 1928, Maria Lacerda se mudou para uma comunidade agrícola de


anarquistas individualistas e desertores europeus da primeira guerra mundial.
Essa comunidade ficava em Guararema, região metropolitana de São Paulo.
(LEITE, 1984, p. X) Nessa comunidade, viviam sem hierarquias, recusando as
normas tradicionais da sociedade e exercendo um pacifismo ativo ao se opor a
todas as formas de violência, de guerra e ao serviço militar. (LEITE, 1984, p. 90)
O recolhimento de Maria Lacerda a Guararema, vai corresponder ao seu período
de maior produtividade intelectual, tanto em número de livros, artigos e
conferências como em repercussão de suas obras. (LEITE, 1984, p. 20-21). E
foi esse o período em que Amai e... não vos multipliqueis, foi publicado, em 1932.

Amai e... não vos multipliqueis

Neste subtítulo apresentaremos alguns dos principais posicionamentos que


Maria Lacerda de Moura colocou no livro. Para melhor organização, ele foi
dividido em alguns eixos de análise: a não participação de nenhuma corrente
ideológica; a prostituição; a família e ao casamento;
Já no início da obra a autora revela que não se enquadra em nenhum partido
político, ideológico etc. e responde críticas que ela parece já ter ouvido:

“Por isso, repito: não sou advogado, não sou capitalista, não sou sacerdote, não
sou político, não sou académico, não sou comunista nem socialista, não
pertenço a nenhuma grei, embora todos os nomes batismais com que me 86
desfavorecem os críticos. (MOURA, 1932, p. 20).

E ela reitera essa ideia em vários momentos do livro, dizendo não se envolver
com nenhuma corrente ideológica. Isso nos ajuda a compreender, em partes, o
motivo de apagamento dessa figura que é a Maria Lacerda de Moura. Ela é
pouco conhecida e pesquisada porque não abraçou nenhum movimento, assim
como, nenhum movimento a abraçou, sendo que a corrente que ela mais foi ativa
e mais se identificou foi o anarquismo individualista. Então há a circulação da
bibliografia dela nesse meio, mas fora dele, é pouquíssimo conhecida.

Maria Lacerda de Moura também adentra no assunto da prostituição. A autora


coloca neste livro duas formas de usar o termo “prostituição”. O primeiro é a da
prostituição de uma forma mais comumente falada, da mulher vendendo o sexo.
Ela critica esse tipo de prática, mas de uma forma muito peculiar: não critica a
prostituta, mas os homens que compram e usam do serviço e também a
sociedade moral que se apoia na prostituição. Inclusive, a autora assinala que
esses homens hipócritas que consomem a prostituição “são os que enchem a
boca com as formulas de Deus! Patria! e Família!” (MOURA, 1932, p. 22). E
argumenta:

“E' natural e lógico. A prostituição é um dos esteios mais poderosos da moral


religiosa. As colunas sociais — governos, capital, militares e clericalismo — é
preciso acrescentar a coluna central — a prostituição. [...]
É no "Cabaret", é no "Casino", é nos hotéis das praias elegantes que as quatro
primeiras colunas sociais solidificam a solidariedade das suas formulas de
defesa: Deus, Patria e Familia!
Apoiam-se na coluna central — a prostituição.
Admirável organização social!” (MOURA, 1932, p. 22-23).

Ela enxerga a prostituição como uma das principais bases da moral religiosa e
de toda uma construção social pautada no capital, no militarismo, no clericalismo.
Por identificar a prostituição como uma coluna central nessa sociedade, ela se
posiciona contra, não pelo fato da prostituta em si, mas da sociedade que
condiciona as mulheres a isso e aos moralistas que usam esse serviço e se
dizem “honrados”.

O segundo uso do termo prostituição é com relação à sociedade. Qualquer


pessoa que entra para a vida política, se rende ao sistema capitalista ou outras
formas de dominação, estaria cometendo a sua própria prostituição.
Outro assunto que Lacerda se refere é à questão da família e do casamento.
Maria Lacerda de Moura tem ideias anticlericais muito fortes pelo fato de que,
segundo ela, a religião é um freio para manter a mulher dentro de uma suposta
moral social. Uma das ferramentas da religião para isso são os casamentos.
(MOURA, 1932, p. 29). Dentro do casamento ela critica o servilismo da mulher e
o “sujeitar-se ao marido”: 87

“A "missão social" da mulher, o seu servilismo de domesticada, a sua fidelidade


de escrava, leva-a a sujeitarse inconcientemente ás leis, a baixar a cabeça á
superioridade masculina "incontestável" sob todos os aspectos, a cultivar a
própria ignorância, a fazer filhos até se exgotar e a entrega-los estupidamente á
Patria que, por sua vez, os dará ás guelas dos canhões — para abarrotar os
cofres fortes de todos os Cesares do poder e do dollar.
Leva-a a sujeitar-se ao marido — "cabeça do casal", porque a mulher só deve
ter cabeça de gramofone.
Direitos?
Deveres apenas e nem pode merecer mais nada como "rainha e deusa e santa
do lar sagrado".” (MOURA, 1932, p. 66).

A autora argumenta que a base da família é a escravidão feminina. Nas palavras


dela: “Familia quer dizer: servilismo, ignorância, escravidão exploração da
mulher.” (MOURA, 1932, p. 69).

Maria Lacerda de Moura critica todo esse modelo de sociedade (capitalista,


moralista, clerical) e acredita que não é por meio do voto feminino que as
mulheres vão conseguir a sua emancipação, visto que continuariam sendo
exploradas por meio do casamento.

A maternidade consciente em Amai e... não vos multipliqueis

O último eixo que analisaremos é o da maternidade consciente. O primeiro trecho


que Maria Lacerda de Moura cita sobre o assunto é o seguinte:

“Descobriu-se agora que o século XX é o século da mulher. O homem se


apercebe que sua companheira não deu tudo quanto pôde dar. E' mais uma fonte
de energia a ser explorada.
Descoberta preciosíssima.
As inúmeras necessidades lançadas na vida pela civilização industrial, atiraram
também a mulher ao balcão do trabalho absorvente. Uma escravidão — a do lar
e da maternidade imposta veio juntar-se a outra escravidão — á do salário.”
(MOURA, 1932, p. 46-47).

A autora critica a maternidade imposta, e argumenta que esse elemento faz parte
da dupla escravidão que a mulher sofre: a do lar e a do trabalho. Maria Lacerda
defende que a mulher não deve ser mãe antes de tudo, mas sim realizar-se na
sua plenitude. “A questão não é dogmatizar que a mulher, antes de tudo, é mãe
e deve ser mãe acima de tudo. Não. Todo individuo, homem ou mulher, deve
realizar-se, na plenitude das suas forças.” (MOURA, 1932, p. 184).

Essa realização na sua plenitude, para a autora, inclui também a liberdade


sexual das mulheres:
88
“A liberdade sexual da mulher será a conquista que remodelará por completo o
velho mundo.” (MOURA, 1932, p. 165).

Para Maria Lacerda de Moura a única forma de se emancipar a mulher é através


da liberdade sexual feminina, porque segundo a autora, as reinvindicações civis
e políticas só incluiriam a mulher na “prostituição política”, e assim continuariam
nesse sistema desigual de privilégios masculinos, com os homens dominando o
seu corpo e as suas vontades.

A principal ideia do livro acerca da maternidade expressa justamente sobre as


ações individuais das mulheres para o combate de todo esse sistema social.
Maria Lacerda argumenta o seguinte:

“Não creio em reformas sociais: creio na realização individual. Assim, me são


indiferentes todas as cruzadas podais, todos os grupos, as coletividades, as
associações. (MOURA, 1932, p. 221).
E a greve dos ventres, a maternidade desejada e consciente, ou o protesto
contra a maternidade imposta pelo comodismo ou pela perversidade masculina
— é o metodo feminino de ação direta.” (MOURA, 1932, p. 225).

Assim, ela declara que as mulheres devem se recusar a dar munição para as
guerras exercendo uma maternidade consciente e uma greve dos ventres. Maria
Lacerda de Moura seguiu isso em sua própria vida, de fato, não teve filhos
biológicos, apenas dois filhos adotivos. Em 1912 adotou um sobrinho, Jair, e uma
órfã, Carminda. (LEITE, 1984, p. VIII). Jair, inclusive, deu muito desgosto à
autora posteriormente, porque se filiou aos integralistas em 1935. (LEITE, 1984,
p. 72).

Sobre as mulheres que não tem filhos, Maria Lacerda disserta o seguinte:

“Ha mulheres cuja existência é um gesto de nobreza e devotamento e nunca


tiveram filhos.
E ha mães que antes não o fossem.
Fazer da maternidade o "pivot" em torno do qual deve girar a vida da mulher, é
absurdo, é preconceito arraigado no subconciente de todos, inclusive dos
libertários ou dos cientistas.” (grifo nosso) (MOURA, 1932, p. 236).

Na segunda metade do século XX, o determinismo biológico da maternidade


começou a ser refutado. As mulheres começaram a questionar, inclusive
teoricamente, o destino social de serem mães. Um marco para isso é a
publicação do Segundo Sexo, em 1949, por Simone de Beauvoir, que acaba
dando bases ao feminismo contemporâneo, e a “politização das questões
privadas”, relativas à vida das mulheres. (SCAVONE, 2001, p. 2). Percebemos
que a Maria Lacerda de Moura já critica o determinismo biológico da maternidade
nos anos 1930 e esse é um dos aspectos mais subversivos de sua obra.

Segundo Marcela Nari, a maternalização das mulheres, ou seja, a progressiva 89


mistura entre mulher e mãe, feminilidade e maternidade, desenvolveu-se
gradualmente em diferentes âmbitos e planos da vida social, do mercado de
trabalho, das ideias, das práticas científicas e políticas. Foi um processo que
ultrapassou as fronteiras nacionais no Ocidente e que se apresentou mais nítido
em fins do século XVIII. (NARI, 2004, p. 101).

A maternalização - concepção que emanava, era legitimada e justificada pela


ciência médica e se pretendia irrefutável - estava inscrita na ideia da natureza
feminina e implicava na obviedade de que elas podiam ser mães ou que só
deveriam ser mães. Qualquer outro uso do corpo, desde a sexualidade até o
trabalho assalariado supostamente ameaçava a reprodução e tudo que a ela
estava vinculado, como a família, a sociedade, ou a “raça”. (NARI, 2004, p. 101).

Nesse sentido, Maria Lacerda também defende que a humanidade se reproduza


com qualidade, não quantidade:

“Comer e Amar.
Será solucionado no dia em que a humanidade, pelos seus maiores, tiver a
noção consciente da responsabilidade de se reproduzir em qualidade e não em
quantidade.
O problema humano, sob o aspecto social, é um problema sexual.” (MOURA,
1932, p. 113).

Para Maria Lacerda de Moura, comer e amar são as duas ações fundamentais
do ser humano, e tudo gira em torno disso. E a frase “O problema humano, sob
o aspecto social, é um problema sexual” (MOURA, 1932, p. 113; 121; 122; 131;
165; 241) vai se repetir em vários outros momentos do livro e é de fundamental
importância na mensagem central desta obra e do pensamento da autora, no
sentido da emancipação da mulher, da desigualdade entre os sexos e no
“problema da natalidade”, da maternidade consciente. É importante notar
também que o discurso de se reproduzir em “qualidade e não em quantidade” é
muito comum nas concepções eugênicas. (STEPAN, 2005, p. 115-148).

Maria Lacerda também concorda com as ideias malthusianas, como podemos


identificar no seguinte trecho:

“Quando li Malthus e Drysdale, convenci-me de que a lei de população é o


máximo problema social: envolve a todos os outros problemas: comer e amar.
A conclusão se impõe: toda e qualquer tentativa para a paz, para a diminuição
da miséria, para o bem estar, para a fraternidade é impossível, sem a restrição
consciente da natalidade e a maternidade livre e consciente e limitada.”
(MOURA, 1932, p. 121-122).

Ou seja, tem um discurso, em partes, contraditório, justificando a miséria e os


problemas sociais com a natalidade alta, ao mesmo tempo que defende a
“maternidade livre”, porém “limitada”. 90

Considerações finais

Através da análise dessa obra de Maria Lacerda de Moura pudemos perceber


que a crítica da autora quase sempre tem dois níveis. Essa dupla camada crítica
se refere, a princípio, ao âmbito das relações entre homens e mulheres e da
emancipação feminina e depois se expande a uma crítica a todo o sistema:
sistema capitalista, moralista, militarista e clerical, como podemos identificar no
caso da prostituição, da família, do voto, da maternidade, etc.

Maria Lacerda é muito subversiva em vários aspectos e neste artigo tivemos que
fazer recortes de alguns pontos principais da obra selecionada. Assim, desde
que começou a escrever, enfrentou julgamentos morais da própria família e da
sociedade. Preferiu não gestar uma criança e exercer uma maternidade adotiva,
contrariando o ideal de maternidade e de feminilidade da época. Sempre
discursou a favor da emancipação da mulher, da liberdade sexual, da realização
individual e assim buscou viver. Ou seja, tanto em sua vida privada e pessoal,
quanto nos seus escritos, é difícil pensarmos em algo que a autora não seja
subversiva.

Apesar disso, percebemos alguns argumentos com cunho eugenista, como a


noção de “qualidade” de reprodução e “evolução da humanidade”, revelando
como cada pessoa e intelectual é fruto do seu próprio tempo e transparece
algumas concepções dominantes do período no qual viveu.

Ainda que Maria Lacerda de Moura tenha tratado de maneira pioneira sobre a
educação e história das mulheres, por exemplo, ou acerca de questões centrais
do feminismo ainda hoje, são poucas as pesquisas que investigam a autora.
Como já mencionado anteriormente, ela é pouco conhecida por não ter
defendido nenhum movimento e esse é um fator que pode vir a explicar essa
escassez de trabalhos. É importante salientar que apenas em Amai e... não vos
multipliquei ainda há uma infinidade de eixos temáticos para a análise, assim
como outras obras a serem investigadas.

Ela faleceu em 20 de março de 1945, no Rio de Janeiro, com 57 anos. Teve uma
vida muito curta, porém intensa e que precisa ser lembrada. (MAIA; LESSA,
2019, p. 63-64).

A forma como Maria Lacerda de Moura critica o modelo de sociedade elitista,


capitalista, patriarcal e moral, foi, e ainda é, uma grande contribuição às ideias
feministas. Mesmo que ela não se denomine como uma, concordamos com
Margareth Rago ao considerar os feminismos como:

“linguagens que não se restringem aos movimentos organizados que se


autodenominam feministas, mas que se referem a práticas sociais, culturais,
políticas e linguísticas, que atuam no sentido de libertar as mulheres de uma 91
cultura misógina e da imposição de um modo de ser ditado pela lógica masculina
nos marcos da heterossexualidade compulsória.” (RAGO, 2013, p. 7-8).

Assim, a escrita de mulheres, suas linguagens e discursos se constituem como


instrumentos fundamentais para uma reformulação das representações sociais
de gênero, pelos quais se organizam a dominação cultural, bem como a
resistência.

Referências Biográficas

Fernanda Loch é mestre e licenciada em história pela Universidade Estadual de


Ponta Grossa. Atualmente é professora da rede básica de ensino do estado do
Paraná.

Referências Bibliográficas

LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Maria Lacerda de Moura e o anarquismo. In:


PRADO, Antonio Arnoni (org.). Libertários no Brasil: memória, lutas, cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1986.

LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de


Moura. São Paulo: Ática, 1984.

MAIA, Claudia; LESSA, Patrícia. Maria Lacerda de Moura e a luta antifascista


(1928-1937). Caderno Espaço Feminino, v.32, n.2, jul./dez. 2019.

MOURA, Maria Lacerda de. Amai e... não vos multipliqueis. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira Editora, 1932.

NARI, Marcela. Políticas de maternidad y maternalismo político: Buenos Aires,


1890-1940. Buenos Aires: Biblos, 2004.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e


invenções da subjetividade. Campinas: Editora Unicamp, 2013.

RAGO, Margareth. Ética, anarquia e revolução em Maria Lacerda de Moura. In:


FERREIRA, Jorge, REIS, Daniel Aarão (org.). As esquerdas no Brasil, vol. 1. A
formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.

SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências


sociais. Cadernos Pagu, 16, 2001.
STEPAN, Nancy Leys. A hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

92
DECOLONIALIDADE, GÊNERO E
ENSINO DE HISTÓRIA: UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA 93

Georgiane Garabely Heil Vázquez e


Mariana Barbosa de Souza
Notas preliminares

Entre temáticas atuais que permeiam o ensino de história, não se pode olvidar
das que envolvem as discussões a respeito de gênero e das sexualidades.
Nesse sentido, buscamos refletir acerca da importância de tais pesquisas, a
partir da construção de um evento de extensão universitária no âmbito da
Universidade Estadual de Ponta Grossa-UEPG, ofertado pelo Laboratório de
Estudos de Gênero, Diversidade, Infância e Subjetividades – LAGEDIS, em
parceria com o Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UEPG) e que
teve como intuito debater questões de gênero e suas implicações diante da
decolonialidade.

A partir deste evento, formulado na estrutura de minicurso, foram estabelecidas


relações com educação em geral e com o ensino de história em específico,
visando a promoção e construção de uma consciência crítica, conforme
assevera Paulo Freire (2009), levando em consideração a possibilidade de
correlacionar coisas e fatos acerca de determinadas situações e circunstâncias
que envolvem gênero e sexualidades.

Trabalhar com gênero implica também a apropriação de diferentes correntes


teóricas e metodológicas, porque em se tratando de gênero enquanto uma
categoria útil à história e, consequentemente, ao seu ensino, não é possível fugir
da própria lógica de construção conceitual que é europeia e norte-americana.
Assim, percebemos a necessidade de compreensão de questões de gênero (no
seu sentido mais amplo possível, envolvendo questões tocantes às mulheres, à
população LGBTQIA+ – (é uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas,
Gays, Bissexuais,
Transexuais/Travestis/Transgêneras/Queer/Questionando,Intersexo,Assexuais/
Arro-mânticas/Agênero e outras possibilidades de identidades de gênero e de
orientação afetiva-sexual –, às masculinidades, entre outras correlações), a
partir da decolonialidade. Logo, evitando o perigo de uma história única,
apresentado por Chimamanda Adichie (2019), entendemos que as diferentes
histórias importam, sobretudo porque elas têm o condão de empoderar e
humanizar um povo, um grupo social. Nesse sentido, demos ênfase à
decolonialidade, pensando-a a partir da América Latina, de autores e autoras
latino-americanos.

Outrossim, existem vertentes científicas, como a positivista, que percebem a


ciência como algo neutro e universal. A criação de uma categoria específica,
como a de gênero, para se analisar e compreender a sociedade adveio de 94
estudiosas feministas da década de 1970 (SAFFIOTI, 2015). O estabelecimento
de uma categoria analítica surgiu em decorrência da urgência de superação do
determinismo biológico relativo à utilização do termo sexo. Decorre desta
compreensão a construção social de identidades, tanto de homens, quanto de
mulheres. E a partir da criação do conceito de gênero surge, também, a
possibilidade de desconstrução de papéis relacionados.

E quando pensamos a História e a sua construção, não podemos ignorar o fato


de que por muito tempo houve um imaginário construído acerca de uma história
para homens, aceita como universal, que ignorava a diferença entre sexos e se
utilizava do trabalho gratuito de mulheres. Ademais, infelizmente persiste em
setores da produção histórica a ideia de que a historiografia que envolve as
discussões acerca da História das Mulheres, Gays, Lésbicas e da população
LGBTQIA+, é tida como uma história militante, não científica e ausente de
neutralidade (PEDRO, 2011).

Para Joan Scott (1995, p. 86), gênero é estabelecido a partir da concretização


de relações sociais que possuem como base a diferenciação entre o sexo e se
constituem no âmago das relações de poder. Para a autora “gênero é a
organização social da diferença sexual.” E nesse contexto, embora em muitas
situações recorramos a autores como a própria Joan Scott e Judith Butler (ambas
americanas), não podemos ignorar que estamos inseridos em uma realidade
muito particular, que envolve condicionantes raciais e de classe, significativos,
como é o caso de toda a América Latina.

A professora Joana Pedro chama atenção para as pesquisas que estão sendo
construídas na História. De acordo com Pedro (2005, p. 92):

“Com estes aportes, é necessário pensar que pesquisas estamos fazendo na


História. Estamos usando esta disciplina para reforçar a heterossexualidade ao
considerá-la como a norma? Como estamos observando os discursos da
constituição do Estado? O que é generificado nestes discursos? Quais relações
são feminilizadas e quais masculinizadas?[...] Ao observarmos, como
profissionais da História, as práticas que ensejam a divisão sexual do trabalho,
dos espaços, das formas de sociabilidade, bem como a maneira como a escola,
os jornais, a literatura, enfim, os diferentes meios de comunicação e divulgação
constituem as diferenças reforçando e instituindo os gêneros, estamos
escrevendo uma história que questiona as “verdades” sedimentadas,
contribuindo para uma existência menos excludente”.
É importante evidenciar como estas temáticas, sobretudo as que envolvem
gênero e sexualidades, adentram o campo da História muito em vista da
impossibilidade de se desconsiderar as propriedades constitutivas dos sujeitos.
A História e, obviamente o seu ensino, não formam um campo isolado e distante
dos debates sociopolíticos e justamente por isso, diante de sua complexidade, é
que se fomentam debates necessários. O processo de constituição de um campo 95
não deve ou não deveria estar distante dos debates que se colocam da arena
social.

Diante desse complexo debate no qual se inserem as questões de gênero, o


LAGEDIS-UEPG iniciou em suas reuniões de estudo e aprofundamento teórico
um profícuo debate sobre a produção historiográfica sobre gênero e a temática
da decolonialidade, do ser e do saber, e tal estudo se mostrou central e ainda
pouco abordado. Deste modo, a ideia de promover um estudo sistemático entre
mestrandas sobre esse conceito para posteriormente ofertar um minicurso para
comunidade interna e externa da UEPG ganhou corpo no âmbito do laboratório.

Decolonialidade: um conceito necessário ao ensino de História

Refletimos acerca do Ensino de História a partir do apontamento de que a


academia se coloca como um espaço necessário e importante para que tais
debates ganhem destaque e se coloquem como pautas políticas e científicas a
serem consideradas. O campo da Ensino de História possibilita que as diferentes
esferas e aspectos da sociedade se encontrem em um espaço diverso,
complexo, relacional e isso se expressa na produção de conhecimento no
campo. Entretanto, a amplitude dimensional do campo, o encontro de
perspectivas, abordagens, temáticas de pesquisa e pautas em debate, traz o
questionamento sobre como as discussões têm sido construídas e interpretadas
pelos pesquisadores e pesquisadoras.

Neste interim e a partir da perspectiva epistemológica da decolonialidade, se faz


urgente a apreensão das formas como o debate sobre gênero e sexualidades
tem sido assimilado pelos pesquisadores e pesquisadoras e impresso na
produção de conhecimento. Sem essas questões, corre-se o perigo de recair na
universalização da problemática, apagando as diferentes realidades que se
apresentam como resistência e transformação a partir dos territórios que os
conformam tensionando a normatividade.

Ao tratar do gênero, enquanto uma categoria analítica, entendemos que ele é


um conceito socialmente estabelecido, a partir das práticas, performances e
identidades construídas, fundamentadas em um papel social assumido. O
sistema de significação de gênero é relacional, mutante e individual, além de
posicionamento político e dependente do lugar que cada corpo assume diante
de relações sociais de poder (SCOTT, 1989; BUTLER, 2003; SAFFIOTI, 2015).
Nesta concepção do conceito de gênero, a construção de identidades masculina
ou feminina não é inerente ao chamado sexo biológico, e sim calcado em
subjetividades, em que o sujeito está em processo constante de construção.
Então, aqui tratamos o termo gênero como não necessariamente associado ao
sexo biológico, mas na percepção de que é culturalmente construído, ou seja,
“são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado” (BUTLER, 2003,
p. 24).

A ocupação de diferentes espaços por pessoas LGBTQIA+, por mulheres e por 96


minoriais sociais em geral implica ainda no entendimento de processos de
exclusão espacial, nos quais a pobreza soma-se ou intensifica-se mediante à
ineficiência das políticas públicas ao tentar solucionar as questões relacionadas
ao gênero. Nesse sentido é importante demarcar que este texto é proposto por
mulheres pesquisadoras, ao sul do mundo, relacionando com o que é
apresentado por Mignolo (2008, p. 290) sobre identidade política ao pensar de
maneira decolonial: Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem
com a organização do conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente,
ou seja, formas que não são decoloniais, significam permanecer na razão
imperial; ou seja, dentro da política imperial de identidades. Refletir a partir da
decolonialidade exige entender de onde se vem, de onde se fala, mas sobretudo
de onde se pretende falar e quem desejamos possuir como destinatário, como
interlocutor.

Assim, este relato mostra-se também como uma desobediência epistêmica, que
apresentada por Quijano (1992 apud MIGNOLO, 2008, p. 288), pode ser
compreendido como

“La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/ modernidad es


indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino consista en la
negación simplede todas sus categorias; en la disolución de la realidad en el
discurso; enla pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en el
conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones de
la racionalidad-modernidad con lacolonialidad, en primer término, y en definitiva
con todo poder no constituido en la decision libre de gentes libres. Es la
instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que
produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas
liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la
destrucción de la colonialidad del poder mundial.”

Então, a partir da desobediência epistêmica, compreendemos que a elaboração


do conhecimento embasado na colonialidade e em suas formas de racionalidade
oprime a libertação de diferentes maneiras e com distintas formas de opressões.
Por essa razão, apresentamos o presente relato enquanto uma desobediência
epistêmica, tendo em vista quem a escreve, onde a escreve e o que se
questiona.

Relato de experiência: um minicurso articulando gênero e decolonialidade

Tratamos de um relato de experiência do Curso Gênero e Decolonialidade,


evento em forma de minicurso elaborado no cerne do Núcleo de Pesquisas em
Estudos de Gênero, do Mestrado em História da Universidade Estadual de Ponta
Grossa – PPGH/UEPG. O curso também foi construído e ministrado com
respaldo e apoio institucional e acadêmico do LAGEDIS. Intencionamos com
isso a divulgação científica, além da contribuição para com diferentes áreas de
conhecimento, funcionando como um exemplo de estratégia que pode ser
reproduzida em outras realidades e contextos, como é o caso do ensino 97
presencial.

É necessário destacar a ousadia da proposta, que inverteu papéis


tradicionalmente estabelecidos nos espaços universitários pois foram as
acadêmicas, mestrandas de primeiro período, que tomaram a frente do curso.
As professoras coordenadoras do LAGEDIS, Angela Ribeiro Ferreira e
Georgiane Garabely Heil Vázquez acompanharam a formulação e execução de
minicurso, mas o protagonismo foi conquistado pelas mestrandas, numa clara
proposta de estrutura decolonial do saber.

O curso foi desenvolvido em duas fases gerais: a fase inicial constituiu-se de


contatos intrauniversitários e concepção do curso detalhado submetido à
Professora Georgiane Heil Garabely Vázquez, que o aprovou; houve, então, um
momento de contatos extrauniversitários para divulgação do curso; e, por fim, a
segunda fase que foi a execução do curso no dia 26 de novembro de 2020.

O evento foi liderado pelas mestrandas Mariana Barbosa de Souza, Marieli Rosa
e Micheli Rosa, com a participação da Professora Georgiane, responsável pelo
Núcleo de Pesquisas em Estudos de Gênero e também da professora Angela
Ribeiro Ferreira, co-coordenadora do LAGEDIS. A primeira etapa do curso
consistiu em leitura prévia do texto de América Latina e o giro decolonial, de
Luciana Ballestrin, publicado na Revista Brasileira de Ciência Política, em 2013,
enviado com antecedência aos participantes. Atribuímos a essa etapa quatro
(04) horas de desenvolvimento. No dia da realização do curso, realizamos uma
sessão de abertura, de no máximo 30 minutos, em que foram apresentados os
motivos da realização do curso, contexto e justificativa. Recebemos, no total,
cinquenta e sete inscrições. No dia do evento somamos mais duas horas de
trabalho contínuo e, ao final, a certificação foi emitida com 06 (seis) horas.

A abertura do evento foi feita pela Professora Georgiane, que recepcionou o


público em ambiente virtual (recorremos à utilização da ferramenta google meet),
com uma breve explanação sobre as características do curso e um pouco das
especificidades da realidade que seria debatida.

O curso foi amplamente divulgado por meio de mídias sociais, e-mails e outros
meios. Com isso, foram convidados alunos(as) que estão cursando bacharelado
e licenciatura em História, além de outros(as) interessados(as) como mestrandos
e doutorandos da área da História. O principal critério de inclusão de estudantes
oriundos das graduações foi a proximidade que o mestrado em História da UEPG
possui com os Cursos de Licenciatura e Bacharelado em História. O trabalho do
Núcleo de Pesquisas em Estudos de Gênero é tradicionalmente conhecido por
seu trabalho de vínculo com estudantes da graduação. A interface
graduação/pós-graduação é a regra no PPGH/UEPG via LAGEDIS, rompendo
desta forma certa ideia de “hierarquia” acadêmica entre alunos/as da graduação
e do mestrados.

O curso contou com dois momentos. O primeiro momento envolveu a 98


apresentação do texto indicado para leitura prévia. Em um segundo momento
abrimos espaço para discussão e debate, ocasião em que foram apresentados
argumentos acerca da utilização da decolonialidade enquanto percurso
metodológico. As discussões perpassaram, principalmente, pesquisas dos(as)
participantes, que buscam utilizar a decolonialidade enquanto postura
epistemológica. Ao final, foram tratados os desafios para a construção de uma
pesquisa decolonial.

Destacamos que o evento, realizado em período de pandemia, teve que ser


construído remotamente, apresentando limitações e também potencialidades.
Assim, conseguimos atingir pessoas que não teriam condições de participar do
curso caso ele fosse realizado de maneira presencial, por conta da distância
entre cidades. Estudantes externos à UEPG e, também, ao Paraná,
participaram, fato que consideramos positivo.

Considerações finais

Estudantes dos cursos de bacharelado e licenciatura em História da UEPG e de


outras universidades participaram do evento, além de pesquisadores(as) do
LAGEDIS, somando um total de aproximadamente 20 (vinte) pessoas. Os
participantes do evento puderam ter suas dúvidas sanadas no momento
posterior à apresentação do texto discutido, momento em que participaram as
idealizadoras do evento e a professora responsável pelo Núcleo de Pesquisas
em Estudos de Gênero. Nesse momento, foi apresentada uma noção geral da
apropriação da decolonialidade enquanto posicionamento epistemológico e os
desafios diante da sua utilização.

Destacamos a importância do trabalho realizado pelo mestrado em História da


UEPG que visa a aproximação com estudantes da graduação. É um trabalho
conjunto entre professores(as) do Programas e estudantes do mestrado, que
tem se revelado enquanto uma estratégia vantajosa de aproximação entre esses
dois públicos. Tal aspecto aumenta a visibilidade universitária e ajuda na
continuidade da formação universitária.

Nesse sentido, o ensino e, nesse caso em específico o ensino de história, abre


possibilidade para ir além das barreiras da sala de aula e do ambiente da
universidade, na medida em que pode proporcionar uma troca de conhecimentos
inclusive em caráter interdisciplinar. Acreditamos que esses momentos são
importantes, pois além de sanar dúvidas de interessados em cursar o mestrado
e dar continuidade à formação acadêmica, estimula-os na medida em que
propõe temas de pesquisa.
O delineamento das ações desenvolvidas no curso ocorreu de forma a propiciar
um maior contato dos participantes com estudos de gênero e de sexualidades e
a decolonialidade, a partir de um viés do campo científico da História.
Observamos um interesse preponderante dos participantes nas discussões que
relacionamos com a população LGBTQIA+ e a História das Mulheres. A 99
interação proporcionada nesse evento entre estudantes universitários,
mestrandos e professores, ainda que de forma remota, permitiu a construção de
um olhar diferenciado para estratégias que aproximem os estudantes de
graduação da pós-graduação.

Referências biográficas

Dra. Georgiane Garabely Heil Vázquez, professora da Universidade Estadual de


Ponta Grossa (UEPG)
Dra. Mariana Barbosa de Souza, professora da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA) e mestranda em história (PPGH/UEPG)

Referências bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. Trad. Julia Romeu. São
Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc.


Polít. N. 11. Brasília May/Aug. 2013, p. 89-117.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


2009.

MIGNOLO, MIGNOLO, W. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o


significado da identidade em política. Cadernos de Letras da UFF –Dossiê:
Literatura, língua e identidade, 2008, nº 34, p. 287-324.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na


pesquisa histórica. História [online]. 2005, vol.24, n.1, pp.77-98.

PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na


historiografia contemporânea. Topoi (Rio J.) [online]. 2011, vol.12, n.22, pp. 270-
283. ISSN 2237-101X. https://doi.org/10.1590/2237-101X012022015

SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular:


Fundação Perseu Abramo, 2015.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
realidade, Porto Alegre, v.2, n.20, p.71-100, jul.-dez. 1995.

100
MENSTRUAÇÃO E LEITE
MATERNO: CONCEPÇÕES MÉDICAS
ACERCA DAS MANIFESTAÇÕES DO 101

CORPO FEMININO EM ERÁRIO


MINERAL (1735) DE LUÍS GOMES
FERREIRA NO SETECENTOS
Gessica de Brito Bueno e Christian
Fausto Moraes dos Santos
A menstruação feminina e o leite materno tiveram em comum, nos discursos
médicos do setecentos, o fato de serem ajustadas e acomodadas na teoria
humoral hipocrático/galênica, as duas carregaram imagens ambíguas,
transformando-se ora em uma benção, ora em uma maldição, a menstruação
carregou a carga de ter sido considerada um excremento impuro e ao mesmo
tempo o líquido que dá a vida, já os seios femininos dividiam-se também em
duas categorias, o seio corrupto ou poluente e o seio maternal que alimenta a
vida (YALOM, 1997, p. 133).

O manual de medicina Erário Mineral escrito pelo cirurgião Luís Gomes Ferreira,
no qual foi possível iniciar a discussão acerca da menstruação e do leite materno,
foi publicado em 1735 e reeditado em Lisboa e 1855, em 2002 foi reeditado em
parceria entre Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João
Pinheiro e a Editora Fiocruz, tendo sido organizado pela historiadora Júnia
Ferreira Furtado. Ele contém estudos críticos sobre o autor, o contexto histórico
do setecentos, as características da sociedade de Minas Gerais, bem como, no
segundo volume se encontram os doze tratados médicos, assinalando os
diagnósticos, receitas, remédios, sintomas de doenças e práticas cirúrgicas do
cirurgião-barbeiro (GUIMARÃES, 2016, p. 46).

Embora Luís Gomes Ferreira se colocasse na vanguarda do pensamento


científico da época sua obra é um exemplo de manual de medicina doméstico
auto instrutivo, possuindo uma linguagem mais acessível, e, para além disso,
estava carregado de concepções de cura por simpatia à distância, cujo saber se
encontrava em teorias astrológicas, climáticas, vinculadas a conceitos de
influência, simpatias e antipatias de natureza antropomórfica (EDLER, 2011).
Esse manual fornece relatos imprescindíveis acerca do cotidiano das mulheres
em Minas Gerais, a partir deles é possível discutir sobre como a menstruação
feminina e o leite materno se enquadraram na Teoria Humoral, bem como o que
leva a compreensão de vários aspectos do processo de construção da imagem
da mulher durante o desenvolvimento de nossa civilização. (DEL PRIORE,
2004). Por meio desse manual foi possível compreender algumas das teorias e 102
demonstrações científicas da época, que buscavam afirmar a ideia de que a
loucura ocorreria, em muitos casos, na mulher, e o seu ciclo menstrual seria um
fator primordial responsável por desencadear esse transtorno mental, fazendo
da mulher um ser inferior ao homem por sua estrutura “natural” e natureza
patológica de degeneração hereditária (HARRIS, 1993, p. 218), bem como,
entender como as concepções médicas associaram o leite materno a
menstruação e ao esperma masculino.

A medicina do século XVIII, e, particularmente o Erário Mineral, herdou, portanto,


a tradição médica da Antiguidade, que estava pautada na teoria dos “humores
corpóreos”, uma vez que, esses determinariam “o temperamento e sua relação
com a saúde e doença”. Esse discurso terapêutico foi elaborado por Hipócrates,
no qual produziu diversos tratados que constituem o chamado Corpus
Hippocraticum ou Coleção hipocrática. É seguro dizer que, de acordo com as
historiografias mais recentes, posterior aos seus escritos, vários autores ao
longo de 400 a 450 a. C. se apropriaram e acrescentaram suas considerações
acerca da teoria, visto que, elas também podem ser encontradas na obra do
conhecido médico grego Claudio Galeno (129-199 d.C.) que teria as absorvido
e acrescentado mais alguns aspectos à teoria (MARTINS; SILVA e MUTARELLI,
2008, p. 9-10).

Em Erário Mineral há indícios tangíveis tanto das concepções médicas acerca


da menstruação quanto do leite materno, em relação a esse último, o cirurgião-
barbeiro, dentro de uma ideia positiva em relação ao leite, coloca o leite materno
como ingrediente de origem humana que possibilitaria a cura de algumas
doenças, o leite era usado para quando o queixo estava inchado por dor de
dente, para ferida nos olhos, cicatrizes, para chagas podres, para escoriações
do escroto, ou seja esfoladuras na pele do pênis causado por chagas e para
corrupção-do-bicho (FERREIRA, 2002, p. 342, 343, 628).

Essa medicina, no entanto, dita erudita que tentava interpretar os domínios do


corpo, estava, pois, se afastando de compreender seu funcionamento interno,
em sua totalidade anatômica, no diagnóstico de doenças se pautavam
prioritariamente no esvaziamento do excesso e acúmulo de humor que a pessoa
apresentava quando estava enferma, pois a Teoria Humoral se baseava em
curar ou equilibrar perturbações entre os constituintes do corpo que são eles os
quatro elementos ar, água, fogo e terra, com suas qualidades seco, frio, quente
e úmido. A cura se baseava no tratamento por meio de uma dieta “que
compreende os fatores ambientais, o sono, a alimentação, as condições de
trabalho[...]” (COELHO, 2002, p. 157). Embora a doutrina Hipocrática tenha
concebido a doença como uma etiologia natural, desconheciam o conceito de
nosologia, logo, para eles a doença era causada por desiquilíbrios humorais do
corpo.

Em relação a menstruação, segundo os pesquisadores Roy Porter e Georges


Vigarello (2008, p. 443, In: CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, 2008), “Não é
aberrante fazer do “estado” do fluídos, indícios do “estado” do corpo”. Ou seja, a 103
comparação da menstruação como excremento ou fluído venenoso, dado o
mistério no interior dos corpos, levando em consideração que o diagnóstico pela
observação inspecionava mais os líquidos do que os sólidos, levava a
menstruação regular das mulheres a serem interpretadas como resultado de um
desiquilíbrio interno constante, onde curiosamente o mesmo sangue era
provedor de vidas.

Dentro do esquema da teoria humoral o fígado era considerado como o forno do


corpo, ele seria o responsável por cozinhar lentamente o excesso de sangue que
causava a doença e agia de modo a provocar uma sangria natural, retirando o
sangue considerado poluído ou maligno. A teoria da pletora também advinda da
Antiguidade explicava que a doença era resultante do excesso de sangue ou
acúmulo de humores e que por isso as mulheres apresentavam perturbações
sanguíneas (COURTINE, 2010, In: CORBIN, COURTINE, e VIGARELLO, 2010).
Os médicos do século XVIII afirmavam que a mulher tinha um estado natural de
pletora e que a menstruação agia como um agente regulador do sangue
(CESAR, 1924).

Nesse interim, é possível perceber que a menstruação e leite materno seguiram


uma dinâmica parecida quando foram sendo enquadradas na Teoria Humoral,
pois ambos são líquidos produzidos pelo corpo feminino, e, de certo modo, era
um grande mistério ainda para muitos pensadores e médicos. A frequência com
que o sangue descia e o leite saía causava a instabilidade no corpo feminino, se
instaurava uma incerteza de sua origem, forma de produção e os danos que
poderiam causar, assim, os médicos resolveram definir esses traços e
manifestações femininas, estando convencidos de que se tratavam de líquidos
com conotações ambíguas, e, dentro desse determinado contexto, as mulheres
se tornam emblema de perigo para a segurança pública e social. O discurso de
que a menstruação tinha uma imagem ambígua entre veneno e poder de dar a
vida e o leite materno como antídoto natural e corrupto passaria a fazer parte
das concepções tanto médicas como populares ao longo do século XVIII
(YALOM, 1997, p. 133).

Usos do seio na história e o leite materno na concepção da medicina do


século XVIII

Considerando que a história do seio é vasta e as várias representações que o


homem e a mulher fazem dele é significativamente complexa, focar em aspectos
pontuais, particularmente, em como algumas culturas concebiam, se
comportavam e faziam uso do seio, assim como, quais as concepções médicas
acerca de seu funcionamento no século XVIII, permitirá compreender como o
seio ultrapassou o quadro biológico e nutricional, contudo, não será possível
compactar o assunto somente no período do setecentos, devido ao fato de que
as teorias médicas que regiam a forma de se pensar o corpo e a passagem da
saúde pra doença que nasceram no século IV permaneceu no transcorrer dos
séculos, e sua base discursiva e prática ainda estava presente nos manuais de
medicina dos médicos e cirurgiões na colônia mineira no Novo Mundo. Sendo 104
assim, um recuo na história será imprescindível para a compreensão dos
discursos e mentalidades que se destacaram no que tange ao estudo do seio e,
por extensão, do útero (MIRANDA, 2017).

As várias representações da mulher ao longo da história focaram em elementos


ou regiões específicos de seu corpo ou de seu funcionamento para caracterizá-
las e diagnosticá-las, e, a partir dessas análises, se originaram as chamadas
doenças femininas. O seio e, por extensão, o leite materno, possuiu e ainda
possui forte aspecto simbólico, dependendo da cultura o aleitamento materno
ultrapassa o quadro biológico e nutricional, o leite, estando entre outras
substâncias corporais, tem um importante papel nas representações do corpo,
seja dando origem nas relações de parentesco, seja presente nas interdições
sexuais (SANDRE-PEREIRA, 2003).

As sociedades pré-históricas concebiam o seio a partir de suas necessidades


nutricionais, a amamentação era uma condição primeira para a sobrevivência
dos povos, assim, não é estranho que esses antepassados dotassem os seus
ídolos femininos de seios enormes, essas estátuas apareceram em lugares
como a Espanha, Europa Central e nas Estepes da Rússia, muito antes do
aparecimento da agricultura. Nisso observa-se que a representação de seios
fartos em estatuetas era o indício de que esses habitantes possuíam poucas
fontes de alimentos, ou, no mínimo, precárias, assim, por exemplo, a obesidade
era tida como uma benção, elas simbolizavam as deusas da fertilidade, pois
representavam poderes femininos da procriação e a lactação era digna de
veneração (YALOM, 1997, p. 21-22).

Quase todos os ídolos do período bíblico são do sexo feminino, isso é nítido nas
estatuetas dos pilares do século VIII a VI a. C. conhecidas como “Astarte”, essa
era a deusa fenícia do amor e da fertilidade, a dea nutrix, a deusa nutritiva era
uma espécie de árvore com seios e consistia em um ritual em busca da fertilidade
e do alimento (FRYMER-KENSKY, 1992). No Egito Antigo a deusa- mãe
assumiu a imagem da Ísis, associada a vaca dadora de leite, árvore da vida e
também ao trono do faraó, em relação a esse último, subir ao trono real e sugar
o leite de Ísis significava que o faraó iria receber o alimento divino, esse leite
seria responsável por dar ao rei as qualidades necessárias para ele reger, esse
ato confirmaria e atestaria sua divindade (BARING e CASHFORD, 2005). E nas
principais civilizações do mundo antigo como as ilhas pré-Helênias de Creta e
Cíclades também havia ídolos femininos, com seios redondos nus e discretos, é
provável que elas tenham sido usadas na prática de um culto de afirmação ao
alimento da vida, ligados aos ritos de passagem como o nascimento e a morte
(RENFREW, 1991).
Curiosamente em Éfeso, a deusa Artemisa, estátua polimastia, por ser um
símbolo de abundância mamária, poderia ter sido inspirada em uma anomalia
física, na qual algumas mulheres tem mamilos supranumerários, dispostos em
fila, e essa situação levou a associação da mulher a outros mamíferos. Essa
concepção duradoura entre o corpo físico feminino, a natureza e o alimento 105
advêm de teorias que relacionam as mulheres ao reino das plantas e dos
animais, frequentemente originadas do pensamento e fantasia dos homens
(YALOM, 1997, p. 30). A escritura bíblica, escrita por alguns homens, delegou a
ação de amamentar à mulher, como condição natural e intimamente ligada à
mulher. O seio ligado aos primórdios do judaísmo é inerente ao próprio Deus,
pois o nome de Deus estava sempre associado a bençãos de fertilidade, e, desse
modo, é possível perceber que em outras regiões, como Israel, a fertilidade era
central nos primórdios dessa cultura, assim como, pelas religiões pagãs, e o seio
era celebrado abertamente entre elas (BIALE, 1997).

A figura das amas de leite existiu desde o mundo antigo, na sociedade grega
clássica já havia amas e na sociedade medieva há várias histórias e registros
onde a mãe confiava o próprio filho a ama. No século XIV, em alguns países da
Europa, acreditava-se que as crianças amamentadas pela bàlia ou ama de leite
herdavam as características mentais e físicas da pessoa que as amamentava, e
é por isso que os pais, que eram da classe médica urbana, sempre escolhiam a
ama que tivesse mais prudência, sempre na esperança de que ela não
transmitisse características indesejáveis aos filhos. A opinião entre os moralistas
era de que as amas de leite que eram, geralmente, de baixa condição, tinham
hábitos sujos ou cuidados de higiene duvidosos acerca de seus corpos (YALOM,
1997, p. 59). Do século V a.C. passando pela Idade média e ao longo do século
XVIII o leite e o sangue, produzidos pelo corpo feminino, então, foi investido de
forte aspecto simbólico, entendido ora como maléfico, ora como milagre divino,
o leite era entendido como composto a partir do sangue, servindo de alimento
para as crianças, tal como símbolo de fertilidade (PORTER e VIGARELLO, 2008,
In: CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, 2008).

De acordo com a filósofa francesa Elizabeth Badinter (1985) que estudou


vastamente a prática das amas de leite desde a época medieval até a
contemporânea na Europa, é importante salientar que no século XVIII, a forma
como a sociedade era organizada e a forma como concebiam a imagem do seio
tanto no ocidente quanto no Novo Mundo foi diferente em alguns aspectos.
Enquanto que na Inglaterra e na França a prática das amas de leite foi fortemente
presente, na América Portuguesa foi bem menos.

Os seios no ocidente se tornaram os germes da doença e do bem estar, porque,


a partir do discurso de médicos filósofos e cientistas, começou-se a difundir a
teoria de que o corpo humano estava relacionado ao organismo político, pois
devido a recorrentes guerras na Europa muitos pensadores tinham temiam do
despovoamento, e isso significa que estavam em busca de uma sociedade
idealizada, logo, a imagem das amas de leite começava a se deteriorar perante
a sociedade, pois o discurso nacionalista afirmava que a regeneração familiar e
social seria construída por meio do seio maternal e não mais das amas. Já em
Portugal era costume que as famílias pertencentes às classes dominantes
entregarem seus filhos às saloias, que eram camponesas pobres da periferia e
esta prática foi introduzida no Brasil pelos portugueses (ALMEIDA e NOVAK,
2004), contudo, amas de leite não foram tão populares como no ocidente, pois a 106
maioria das mulheres coloniais amamentavam seus próprios filhos, inclusive
muitas estendiam o tempo de mama como forma de controle da gravidez, uma
vez que, a mortalidade infantil era muito elevada (SCHOLTEN, 1997).

Na América Latina, nos anúncios de jornais do século XVIII, havia avisos sobre
serviços prestados por amas de leite, de fato, não era raro ter amas, e elas eram
formadas por imigrantes recém-chegadas e nativas americanas, e mais ao Sul
do país eram as escravas negras. Os seus serviços eram solicitados quando
após o parto a mãe necessitava se recuperar ou em substituição a mãe que havia
falecido (HOFFERT, 1988).

Sob a ótica dos médicos, embasados na teoria humoral, a amamentação deveria


ser vigiada e regulada de modo a equilibrar os temperamentos das crianças e
para permitir o seu desenvolvimento, assim que a criança nascia eles não
recomendavam administrar drogas para purgar o ferrado, ou seja, excremento
escuro chamado de humor negro que, ficando preso nas tripas do bebê, deve a
mãe dar leite materno ou água com mel para expurgar e equilibrar seu corpo. Os
tratados médicos em circulação em Portugal e na América Portuguesa se
interessaram pela saúde e doença, onde ambas seriam de interesse político e
econômico, de modo que o estado e o corpo médico instituíram discursos que
preconizavam os comportamentos e hábitos dos habitantes, havia uma
preocupação quanto ao contágio de doenças, moderação das paixões e
equilíbrio corporal, certamente baseados na teoria dos humores e fluídos (CRUZ,
2016).

De acordo com a pesquisadora Gilza Sandre-Pereira (2003, p. 469) “O leite


materno é, além de uma substância produzida pelo corpo, um alimento” e, nesse
sentido, devido a esse aspecto duplo, na época, ele teve “um significado peculiar
em relação a outras substâncias corporais (especialmente o sangue e o
esperma) nas representações do corpo”. É nesse momento que é imprescindível
evidenciar a importância e longevidade que tiveram as teorias médicas
originadas a partir do século V. a.C., o Modelo ou Teoria Humoral de Hipócrates
(V a.C.) afirmava ser a doença decorrente do desequilíbrio ocasionado entre os
quatro elementos, sendo esses bile, melancolia, sangue e fleuma (COELHO,
2002, p. 156). Posteriormente, Aristóteles propôs uma teoria geral, com base na
teoria de Hipócrates, sobre a formação das substâncias corporais que serviu
como base para o pensamento ocidental até o final do século XVIII.

Para Aristóteles a mulher era considerada como não sendo suficientemente


quente para operar a cocção do sangue em esperma, mas por outro lado, “a
partir do sétimo mês de gestação, ela era capaz de operar a cocção do sangue
em leite, considerado, por ele, como um produto menos perfeito que o esperma”.
A relação entre as substâncias corporais – sangue, especialmente o sangue
menstrual, esperma e leite – está na base de várias explicações simbólicas sobre
a procriação, relações parentais, orienta as relações homem–mulher e explica
representações culturais (SANDRE-PEREIRA, 2003, p. 670).
107
A ideia de parentesco pelo sangue que já foi mencionada coloca em evidência o
papel dos fluídos vitais (sangue, esperma e leite) na construção das relações de
parentesco (HÉRITIER, 1993, In: BONTE, 1993). De acordo com a pesquisadora
Elisabeh Badinter (1980) o tabu sexual durante o aleitamento materno está
presente entre algumas tribos indígenas brasileiras na forma do ritual da
‘covada’, como também essa interdição sexual é encontrada na Europa,
particularmente na França dos séculos XVII e XVIII. A medicina baseada nos
princípios hipocrático-galênicos e aristotélico defendia que o esperma
contaminava o leite materno e o tornava azedo, o que colocava em perigo a vida
do bebê, e, por essa razão, os médicos e cirurgiões prescreviam a abstinência
sexual durante o período da amamentação, e seriam geralmente nesses
momentos, seria um dos motivos da prática de contratar amas-de-leite.

A representação da maternidade como sendo sagrada permanece no imaginário


social, bem como, os estigmas relacionados as manifestações das substâncias
que são produzias pelo seu corpo. Nesse sentido, as mudanças corporais das
mulheres foram sendo caracterizadas de acordo com quem tinha autoridade
para falar sobre seus corpos.

Referências biográficas

Gessica de Brito Bueno, Curso de História, UEM - Universidade Estadual de


Maringá.

Christian Fausto Moraes dos Santos, professor da UEM – Universidade Estadual


de Maringá.

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EVA PERÓN: ENTRE O SANTO E O
PROFANO
Ivana Aparecida da Cunha Marques 110

A figura histórica de Eva Perón (1919-1952), primeira-dama argentina entre os


anos de 1946 e 1952, está atrelada ao engendramento de um imaginário social
composto por aversão, curiosidade, doses de religiosidade, etc., e que possui
vínculos com a memória do indivíduo e da coletividade. Então, considerar esta
construção, significa, entre outras coisas, refletir sobre as representações e
apropriações elaboradas sobre Evita, as quais resultaram em produções
literárias, cinematográficas, artísticas e historiográficas.

Para Delgado (2003), a memória tem funções limítrofes que se relacionam com
o estabelecimento e legitimação de identidades. Nela se encontram níveis e
esferas consolidadas, ou seja, lembranças evidentes ligadas às emoções, assim
como, componentes inconstantes e flexíveis, por intermédio dos quais é possível
a reestruturação dos fatos históricos.

“Tempo, memória e história caminham juntos. Inúmeras vezes, através de uma


relação tensa de busca de apropriação e reconstrução da memória pela história.
(...) Sem qualquer poder de alteração do que passou, o tempo, entretanto, atua
modificando ou reafirmando o significado do passado. Sem qualquer
previsibilidade do que virá a ser, o tempo, todavia, projeta utopias e desenha
com cores do presente, tonalizadas pelas cores do passado, as possibilidades
do futuro almejado (DELGADO, 2003, p .10).”

Não é possível, então, analisar a questão da memória em termos de linearidade,


já que ela abarca negociações e temporalidades sui generis, existentes, em
muitos casos, em estratos profundos em relação à marcação didática do tempo.
Ou seja, é preciso considerar os conchavos mantidos entre a memória do
indivíduo e a dos demais agentes histórico-sociais, sendo que elas se conectam,
da mesma forma que os sujeitos dialogam com seu agrupamento e com elas.

Socialmente, as memórias se reconstroem de maneira amiúde, sendo que não


estão alheias ao passar do tempo e aos acontecimentos historicizados – e suas
relações com os indivíduos e as novas discussões trazidas à superfície em
diferentes contextos. Elas, mesmo que plurais, só adquirem solidez e
significados por intermédio das ações humanas, que se tornam objeto de estudo
dos historiadores (DELGADO, 2003).
Equilibrada entre os pólos do maniqueísmo ‘meretriz’ e ‘santa’, as interpretações
e memórias recuperadas sobre Eva Perón ainda estão muito presas às
dicotomias, especialmente quando os debates deliberam sobre a origem desta
primeira-dama e os interesses dela no projeto político do peronismo.

Não obstante, de acordo com Teixeira (2013), que teceu uma pesquisa acerca 111
da produção Santa Evita, livro do jornalista Tomás Eloy Martinez, lançado no ano
de 1995, existem possibilidades interpretativas – periféricas e não ‘oficiais’, em
muitos casos – que passam ao largo desta lógica dicotômica.

Ao se falar em Eva Perón, é importante ponderar que em seu contexto, ou seja,


a Argentina da primeira metade do século XX, o espaço público ainda era um
esfera quase que completamente dominada pela atuação masculina, de modo
que a movimentação de Evita - como figura política, em meio a este espaço -
significou um motivo de espanto para os grupos conservadores argentinos. Além
disso, contar, neste âmbito, com uma mulher de origem considerada baldia e
controversa, e que possuía uma imagem tida como imoral e hiperssexualizada,
representava “O retorno dos piores resíduos da barbárie” (TEIXEIRA, 2013, p.
04).

Conforme apontou Sebreli (2000), a personagem de Evita envergonhava o


Exército, a Igreja, as famílias burguesas e, consequentemente, os valores
tradicionais defendidos por estes grupos e instituições. Assim, ao ter galgado ao
posto de primeira-dama da Argentina, Eva afrontou as imposições moralistas
desta sociedade, considerando que, em sua figura, ela manifestava e
representava a periferia social, já que era fruto da pobreza e de uma carreira
artística de pouco sucesso, num contexto em que as profissões de atriz e cantora
eram, de certa forma, vinculadas ao meretrício.

“Evita encarnou o caráter da personagem do bastardo de Sartre: filha natural, e


também à margem de duas classes, classe média alta por parte de pai, classe
baixa pela mãe. Sua condição marginal fixada pela memória infantil traumática
de discriminação pela família no velório do pai levou-a a rejeitar a vida
convencional, ao desejo de ser outra que ela mesma [...]” (SEBRELI, 2000, p.
73-74) (Tradução livre da autora).”

Evita foi uma personalidade múltipla que se desdobrou em versões,


contraditórias e divergentes, à ela designadas, como, por exemplo, a da atriz
imoral e da esposa santificada. Neste segundo caso, Evita foi e continua sendo
percebida, segundo Sebreli (2000), num espaço de submissão, falta de
mobilidade, e de reprodução de ideais do antifeminismo.

No entendimento dos antiperonistas que, desde o início da carreira política de


Evita já buscavam desqualificar sua imagem, a primeira-dama teria se utilizado
de sua capacidade retórica e da promoção de ações sociais realizadas junto às
crianças e trabalhadores(as) argentinos(as), para manipular as massas e
persuadi-las em benefício de Perón que, de acordo com esta interpretação,
preservava relações com o nazifascismo.

Porém, esta é apenas uma das leituras possíveis de se fazer acerca de Eva
Perón, já que sobre ela não há coesão sem contradições, nuances e
sinuosidades. Silva (2014), por exemplo, analisou que a chamada Lenda Negra, 112
se trata de uma compreensão construída com a finalidade de dessacrar Evita,
contestar as informações sobre seu passado e ratificar o seu discurso
demagógico que, de acordo com tal apropriação, fora utilizado pelo peronismo
para forjar uma aproximação entre ela e os descamisados, que serviria como
instrumento de fortalecimento daquele projeto político.

Acerca do conceito de descamisado, Waissbein (2018), por intermédio da


análise de fontes orais e escritas, datadas do início do governo de Perón,
esclareceu que esta expressão só foi usada em 14 de dezembro de 1945,
quando ocorreu o primeiro discurso marcante da campanha política do
peronismo. Neste evento, Juan Perón respondeu uma declaração da imprensa
que, no dia 07 de dezembro daquele ano, afirmou: “Ao ex funcionário Perón e à
ralé descamisada” (WAISSBEIN, 2018, p. 131). Ofendido, o candidato à
presidência e esposo de Evita, rebateu:

“Desfilaremos em nossas ruas tranquilas, estudantes de nossa causa, sem


qualificar ninguém como ralé ou descamisado para contrabalançar os [sic, para
"o"] que lançaram o qualificativo desdenhoso. Tenhamos um bom coração
debaixo de uma camisa, o que é melhor do que ter um ruim debaixo de uma
jaqueta!” (WAISSBEIN, 2018, p. 131) (Tradução livre da autora).”

Se sentindo afrontado, Perón deixou evidente o seu desagrado com a


adjetivação dada aos apoiadores do peronismo que, segundo sua assimilação,
foram tomados como ‘populacho’.

A forma com que Perón percebia e empregava publicamente esta qualificação


só se alterou em 17 de outubro de 1946, quando ele a utilizou como uma
identificação relacionada à um movimento de maiores proporções. Assim,
os descamisados, antes apropriados como agrupamentos de esfarrapados, a
partir daquele marco, se transformaram numa classe social liderada por Perón e
dotada de natureza, estruturação e demandas particulares.

Não obstante, por parte de Perón, a adoção definitiva deste conceito ocorreu
paulatinamente, diferente do que sucedeu com Eva, quem se valeu deste termo
de modo frequente e apaixonado. De acordo com ela, tal expressão não abrangia
apenas questões simbólicas, mas elementos materiais de existência, já que o
reconhecimento de um descamisado levava como critério o pertencimento do
sujeito ao povo. Segundo ela:

“Eu não sou mais do que uma mulher do povo argentino, uma descamisada da
Pátria, mas uma descamisada de coração, porque eu sempre quis me misturar
com os trabalhadores, com os idosos, com as crianças, com os que sofrem,
trabalhando lado a lado, coração com coração com eles para fazê-los querer
mais a Perón e para ser uma ponte de paz entre o general Perón e os
descamisados da Pátria (MUNDO PERONISTA, nº 04, setembro, 1951, p. 29).”

Para Avelino (2014), a origem humilde de Evita contribuiu para a potencialização 113
e sensibilização das ações sociais promovidas por ela, de modo que a primeira-
dama se converteu em mãe e conselheira dos necessitados, rezando por eles e
os ouvindo e norteando.

Como personalidade política, sua figura se destacou devido à sua capacidade


discursiva, envolvida por candência e afeto quando ela a utilizava para se
direcionar aos descamisados. Porém, quando as oligarquias eram as receptoras,
o seu tom ganhava traços de agressividade, de tal modo que as populações
marginalizadas da Argentina passaram a perceber Eva como um alguém que
dava forma ao peronismo e reconhecia as bandeiras do povo pobre (AVELINO,
2014).

A postura marcante de Evita fez com que a possibilidade da sua candidatura


como vice-presidente às eleições de 11 de novembro de 1951 fosse muito
apoiada pelos descamisados, mas, por outro lado, grandemente combatida
pelos grupos sociais tradicionais da Argentina. Tais embates se mantiveram,
inclusive, mesmo após o conhecimento público de que a primeira-dama estava
sendo acometida por um câncer de útero.

“Era o confronto estabelecido entre dois grupos heterogêneos, que surgiu nas
oportunidades mais desumanas e maléficas[...] Nos muros que ladeiam a
estação Retiro, não muito longe da residência presidencial onde Evita agonizava,
alguém pichou uma divisa de mau agouro: ‘Viva o câncer’ (AVELINO, 2014, p.
54).”

Nesse contexto, as divergências existentes entre peronistas e antiperonistas se


acentuaram, e movimentos de massa emergiram. As mobilizações de posição,
apoiadoras do governo de Perón, obtiveram destaque no comício peronista de
22 de agosto de 1951, quando defenderam a candidatura de Evita para as
futuras eleições, o que, de fato, não ocorreu devido ao avançar de sua doença.

“Crescem as manifestações de adesão a Eva no grande comício da Avenida 9


de Julho, a 22 de agosto de 1951, que se limitara em sua fala a declarações de
apoio a Perón. Este, em dado momento, toma o microfone, provocando protestos
da multidão, que exige a palavra de Evita assumindo sua candidatura, propondo-
se uma greve geral, diante da oposição que ela sofria de certos setores
(SOIHET, 2000, p. 44).”

Para Siva (2004), naquela ocasião o presidente teve medo de ser ocultado pela
figura política crescente e central de Evita, a qual havia ganhado muitos
admiradores devotados. Deste modo, a aversão dos antiperonistas não se
justifica por uma possível cooptação de Eva pelo peronismo, mas,
contrariamente, devido à sua autonomia e interferência em questões político-
sociais.

“Era uma mulher atuante, que interferia; uma ‘ponte’ que leva o povo ao General
Perón. Eva Duarte de Perón não era mera coadjuvante, nasceu para ser atriz 114
principal da política argentina. Já que não se consagrou nos palcos da ficção,
firmar-se-ia nos palcos da realidade (SILVA, 2004, p. 27).”

Assim, por intermédio da atuação e dos trabalhos ensejados por Evita no


peronismo, as mulheres argentinas, por exemplo, ascenderam ao cenário
político e puderam se movimentar num espaço que era marcado, entre outras
coisas, por possuir um molde que privilegiava a participação dos homens -
independentemente das ideologias e posicionamentos políticos dos sujeitos. De
acordo com Avelino (2014, p. 56): “Podemos, sem receio de erro, afirmar que
uma das bases teóricas do incipiente movimento de liberação da mulher na
Argentina tem em Eva Perón uma de suas mais fortes precursoras.”

A partir destas leituras, é possível compreender que Evita se convertera em uma


liderança popular relacionada à uma concepção maternal, o que explica a
denominação de madre de los descamisados (a mãe dos descamisados),
maneira carinhosa com que a primeira-dama era conhecida nos círculos
peronistas. Artística ou politicamente, com sua retórica apurada, ela direcionava
discursos efervescentes às multidões, propagava ideais do peronismo e atuava
a favor da classe trabalhadora e suas demandas.

Ela pode ser reconhecida como uma ‘ponte’ entre o povo e Perón, ou ainda, um
elemento de ligação que intermediava as exigências sociais e o Estado
peronista. De acordo com ela: “Sou uma ponte entre Perón e o povo. Passem
por mim” (ORTIZ, A., 1995, p. 168 apud SILVA, 2004, p. 35) (Tradução livre da
autora).

As querelas interpretativas sobre Eva Perón, apesar de entenderem as


incoerências de tal figura, têm suas discussões norteadas por abordagens
maniqueístas, (como, por exemplo, a de ‘tradicionalista versus feminista’ e
‘santa versus meretriz’), que em sua maioria, se relacionam à lógica da disputa
política-ideológica dos peronistas e antiperonistas. Suplantando extremos, Evita
deve ser reconhecida como uma figura historicizada, para assim ser analisada
com base em sua localização num contexto, com demandas e valores
específicos. Só deste modo será possível compreender os vínculos existentes
entre a sua trajetória artística e o seu desempenho político, e as contradições
entre um alguém que, ora se mostrava fiel às normais sociais impostas, ora se
reconhecia como uma personalidade pioneira em diversos aspectos. De
qualquer forma, é necessário apreendê-la a partir de perspectivas múltiplas e
distintas, que deem conta de identificar os matizes aparentes e tácitos,
reconhecer suas motivações como sujeita político-social, e ultrapassar as
apropriações míticas, religiosas e estereotipadas.
Referências biográficas

Ma. Ivana Aparecida da Cunha Marques, doutoranda pelo Programa de Pós-


Graduação em História (PPH) da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
115
Referências bibliográficas

AVELINO, Yvone Dias. La madre dos descamisados. Eva Perón: vida e trajetória
política. Cordis. Mulheres na história, São Paulo, v. 2, n. 13, julho-dezembro,
2014.

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e identidades. Historia Oral, v. 6, 2003, p. 9-25.

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Editorial Sudamericana, 2000.

SILVA, Ana Carolina Ferreira. Santa Evita e suas aparições. Juiz de Fora, 2004,
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Paulo, n. 170, janeiro- junho, p. 143-173, 2014.

SOIHET, Rachel. Alguns comentários a partir do artigo de Marta Zabaleta: o


Partido Peronista feminino: História, características e consequências. (Argentina
1947- 1955). Diálogos, DHI/UEM, Maringá, v.4, n. 4, 2000, p. 41-47.

TEIXEIRA, Luciana Medeiros. Essa mulher: as múltiplas representações de Eva


Perón. A construção do mito e as disputas políticas em Santa Evita de Tomás
Eloy Martínez. Anais do SILEL, Uberlândia: EDUFU, vol.3, nº1, 2013.

WAISSBEIN, Daniel. Descamisado(s), descamisada(s). Palabra y concepto


durante el peronismo. Prohistoria, n. 30, 2018, p. 129-154.
A HISTÓRIA DAS MULHERES NO
MEDIEVO: A REPRESENTAÇÃO
FEMININA NO DECAMERÃO (1348- 116

1353) DE GIOVANNI BOCCACCIO


(1313-1375)
José Carlos da Silva Ferreira
Introdução

O objetivo deste trabalho é utilizar a História das Mulheres em diálogo com O


Decamerão para entendermos melhor a representação do mundo feminino nesta
obra. Desse modo, este trabalho apresenta a escrita da História das Mulheres
enquanto campo do saber histórico. De antemão, faremos esse exercício para
mostrar sua construção historiográfica, que começou ainda no século XX e se
estende até os dias atuais.

O surgimento da história das Mulheres não é um acontecimento isolado. Desde


os séculos anteriores, as mulheres lutavam por reconhecimento, muito embora
fossem censuradas. No início do século XX, as sufragistas lançaram as bases
para o movimento feminista, o qual surgiu nos anos de 1960 voltado para as
demandas sociais para o público feminino. Assim, intelectuais e ativistas
feministas iniciaram a construção de uma nova história que incluísse nas suas
narrativas as mulheres a séculos silenciadas e propositalmente esquecidas.

Dentro desse contexto, devemos destacar autoras que não apenas vivenciaram
o mesmo, mas escreveram sobre este advento feminino. Joan Scott, por
exemplo, apresenta a História das Mulheres como um movimento no qual a
política esteve na base da sua consolidação. Em seu texto História das Mulheres
(1992), ela aponta o início do movimento e um dos seus primeiros impasses: se
desvincular, ou pelo menos ficar mais independente, do âmbito político. Para a
autora, com essa separação a História das Mulheres expandiu seus objetos de
estudo, suas discussões e passou a documentar a vida das mulheres no
passado, se tornando um campo com mais vigor (SCOTT, 1992, p. 64).

Mesmo com esses impasses, o movimento que reivindicava a História das


Mulheres também era político. Joan Scott discorre sobre uma série de
reivindicações, conflitos e leis que na década de 60 do século XX, nos Estados
Unidos, inseriam, ainda que lentamente, as mulheres em postos acadêmicos.
Assim, o movimento buscava completar uma lacuna que há tempos era evidente.
Existia, portanto, um desequilíbrio social no qual as mulheres estavam em uma
situação crítica. A história deveria ser reescrita, adicionando a História das
Mulheres.

A ascensão da História das Mulheres deu espaço para discussões mais


profundas sobre a ausência delas durante todo esse tempo. Por isso, para se 117
debruçar sobre o porquê do silenciamento das mulheres, recorremos a autoras
que escreveram bem sobre isso. Michele Perrot diz que “escrever a história das
mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas” (PERROT, p. 17).
Mais do que isso, o silêncio das mulheres era proposital, pois “em muitas
sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das
coisas. É a garantia de uma cidade tranquila. Sua
aparição em grupo causa medo.” (PERROT, p. 17).

Sem espaço, as mulheres não eram vistas. “A presença da mulher foi sempre
complemento da presença do homem. O protagonismo feminino se mostrava
inexistente. Os nomes delas eram removidos, pois já aviam os nomes dos
homens como principais. Por tudo isso, os relatos delas eram ignorados, pois
são uma leve sombra dos homens” (PERROT, 1997, p. 22). Assim, escrever uma
história das mulheres hoje é romper com o ciclo de silêncio que durante muito
tempo foi gritante, em termos historiográficos.

Por efeito do Positivismo, vastamente utilizado no século XIX, os documentos


considerados históricos não apresentavam outra vertente histórica, senão
aquela econômica ou política. A Escola dos Annales, que iniciou em 1929,
possibilitou essa ampliação das fontes e discussões que a História das Mulheres
se beneficia. Mas na própria Escola houve resistências quanto à historicidade
dos relatos femininos e discussões de gênero.

Assim, documentos sempre falavam de homens poderosos e heróis, nunca de


mulheres. E quando o faziam, as mulheres eram citadas como referências dos
homens, sempre lembrando de quem elas eram esposas, quase nunca pelo que
elas fizeram ou influenciaram. Em um debate mais específico, é possível
observar que, do ponto de vista pedagógico, esse pensamento ainda pode ser
percebido em alguns livros didáticos, muito embora isso venha mudando
gradativamente.

O Decamerão e os aspectos conceituais

O Decamerão, escrito entre 1348 e 1353, ou seja, bem próximo à chegada e


disseminação da peste em Florença, foi escrito pelo autor italiano Giovanni
Boccaccio quando este estava em refúgio em Fiésole, justamente por conta da
peste. O contexto no qual ele estava inserido era, portanto, de certa complicação:
uma grande fome e uma pandemia, que assolavam a região. A situação de caos
descreve bem o que a sociedade florentina do século XIV passava.
O livro é composto de cem novelas ou histórias que são contadas em dez dias
por dez personagens, sendo estes três rapazes (Dioneio, Pânfilo e Filóstrato) e
sete damas (Fiammetta, Pampineia, Laurinha, Elisa, Emilia, Filomena e Neífile).
O objetivo do livro, segundo o autor, era oferecer deleite e/ou alento para as
mulheres que ficavam em casa melancólicas e solitárias (BOCCACCIO, 2018, p.
23). Nesse primeiro momento, podemos observar que se trata de uma obra 118
escrita para as mulheres e na qual elas são personagens que narram em maior
número.

Em termos de pesquisa voltada para o contexto feminino, a obra de Boccaccio


apresenta uma possibilidade de pesquisa considerável, uma vez que sete das
dez personagens da obra são compostas por mulheres, as quais algumas serão
analisadas neste Plano de Trabalho. A obra de Boccaccio, que é influenciada e
tem relação com a Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), traz à tona a
condição feminina em seu período, e as personagens que são representadas
apresentam temas voltados para o amor, a moralidade, além de apresentar uma
visão “realista, plural e crítica da sociedade de sua época”. E, devido a esta
pluralidade, característica da obra de Boccaccio, e também devido ao fato de
que a maior parte das novelas são apresentadas por mulheres, e, além disso,
que seu “público-alvo” são as mesmas (ALMEIDA, 2009, p. 104), é que
analisaremos esta obra a partir da perspectiva da representação feminina.

É importante fazer uma problematização ao fato de que ele as descreve como


“tristes” e “melancólicas”. Por vezes, essa é a representação mais comum que
se faz de mulheres no medievo. A própria Idade Média é na maioria das vezes
retratada como escura, triste, soturna e violenta. Afirmar isso é negar que muitas
mulheres tinham suas vidas movimentadas entre cortes e trabalhos para o
sustento da casa. É verdade que poucas tinham acesso às letras, como Cristine
de Pizan, porém, essa retratação apaga a vida movimentada que era o Medievo.
Quando falamos nas mulheres mais pobres, essa monotonia é plausivelmente
inexistente.

O propósito de observar o Medievo através dessas representações requereu


bastante cuidado, pois segundo Rachel Soihet “a escassez de vestígios acerca
do passado das mulheres produzidos por elas próprias, constitui-se num dos
grandes problemas enfrentados pelos historiadores” (2011, p. 282). Com isso,
muito do que se sabe sobre as mulheres no período Medieval são vestígios.
Além disso, “encontram-se mais facilmente representações sobre a mulher que
tenham por base discursos masculinos determinando quem são as mulheres e
o que devem ser”, complementa Soihet (2011, p. 282).

Boccaccio, ainda que seja um homem burguês e letrado, escreveu sobre as


mulheres. Essa narrativa pode fornecer vestígios aproximados sobre como
viviam as mulheres em um período histórico marcado pela hegemonia cristã e
masculina. No entanto, nem mesmo esse autor é isento de crítica, pois sua
representação também obedece a um discurso. Por isso, lembramos Roger
Chartier quando ele diz que “as percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros.” (1988, p. 17).

Neste sentido, nos apoiaremos nas perspectivas de Soihet e de Chartier para


nos aproximarmos brevemente da representação feminina feita por Boccaccio
em sua obra. 119

Breve análise das representações femininas presentes no Decamerão:


alguns exemplos

A seguir, apresentamos alguns fragmentos que selecionamos para a análise do


tema na obra. No Decamerão, algumas passagens evidenciam o pensamento
do autor. Na décima história da 2ª jornada (X, II), por exemplo, conta-se a história
de Bartolomeia e do juiz Ricardo. Ela vive um casamento infeliz com seu marido.
Essa triste situação é resolvida quando ela é raptada por piratas e passa a viver
mais livremente com Paganino, um dos piratas. Ao tentar reconquistar sua
amada, o juiz se choca ao saber que Bartolomeia vive feliz longe dele e ao lado
de Paganino, o pirata. Nessa novela, Boccaccio tenta mostrar uma mulher
dotada de desejos. Essa forma de representação é utilizada para mostrar uma
mulher diferente dos padrões do período. Bartolomeia se recusa a ser religiosa,
estar sob casamento arranjado e não ter relações sexuais de forma prazerosa.
Tal comportamento está em contraposição à moral da Igreja que norteava,
moralmente e religiosamente, o casamento daquele período.

Outro exemplo de representação feminina no Decamerão está na terceira novela


da 3ª jornada (III, III). Essa história apresenta uma mulher casada, da qual o
autor prefere não citar o nome (BOCCACCIO, 2018, p. 271), mas que se
apaixona por outro homem. Para conseguir se comunicar de forma discreta com
o rapaz, ela usa o padre. A estratégia da mulher é dizer ao clérigo que o homem
estava molestando-a. O rapaz, ao ser reprimido pelo clérigo algumas vezes,
entende o recado da mulher e os dois passam a ter encontros amorosos. A
representação feita pelo autor é de uma mulher sagaz que se comporta fora dos
padrões morais da época. É importante destacar que essa forma de
representação também era uma crítica ao sacramento da confissão, muitas
vezes imposto pela Igreja. O autor representa um amor de cunho sensual e
terreno, não mais divino e cortês. Todas as histórias, com exceção daquela
contada por Dioneio (III, X), estão dentro da temática na qual os personagens
almejam algo e por fim conseguem o que desejaram.

Para compreender tais representações é essencial destacar que existe uma “(...)
apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o
conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo.”
(CHARTIER, 1988, p. 24.). Outros exemplos de representações são as próprias
personagens que narram as novelas. Como supracitado, elas são sete, sendo
todas entre dezoito e vinte e oito anos. Nas palavras do autor, a mais bem
resolvida, ou com maior maturidade, é Fiammetta, com vinte e oito anos. Alguns
adjetivos reforçam as representações do autor em relação ao mundo feminino
representado na obra: “delas, nenhuma havia transposto o 28º ano de idade,
nem era menor de 18. Todas eram ajuizadas e de sangue nobre; belas de
formas, prendadas de costumes, e de comportamento honesto. (BOCCACCIO,
2018, p. 39). Com essas características, a ideia de um mundo construído por
mulheres nobres fica evidente. A dignidade também aparece quando em seguida
ele relata que a honestidade de tais damas está protegida na sua narrativa. 120

Considerações finais

A obra é plausível de ser utilizada no ensino pelo fato de ser uma fonte histórica
rica em narrativas que auxiliam no entendimento de um período histórico tão
negligenciado como foi o da Idade Média. Assim, o Decamerão, enquanto fonte
primária, carrega consigo aspectos do seu contexto, como os cavaleiros, as
ordens religiosas, a peste e as mulheres. As representações sobre as mulheres
são importantes fontes de estudo, pois elas estão fundamentadas no caráter
verossímil da obra, uma vez que “as referências do universo narrado, embora
sejam principalmente literárias" ligam-se ainda ao cotidiano do autor e a
realidade das cidades-estados italianas daquele período.” (CAVALLARI, 2010,
p. 10). Desse modo, a história das mulheres também pode contribuir para o
ensino e a aprendizagem que dá voz as mulheres por séculos esquecidas na
história.

Concluindo, podemos destacar que a história das mulheres é um importante


campo de saber histórico que pode auxiliar o pesquisador/professor a descobrir
e a compreender melhor sobre as mulheres que não aparecem nos documentos
oficiais. Nesse sentido, escrever uma história das mulheres é lançar luz sobre as
sombras historiográficas nas quais elas estavam. O protagonismo feminino deve
estar cada vez mais evidente na escrita da História, pois, assim, as mulheres
poderão escrever suas próprias histórias. Com o Decamerão, encontramos uma
possibilidade de desconstruir um pouco dessa visão patriarcal do medievo.

Referências biográficas

José Carlos da Silva Ferreira é graduando no curso de História da Universidade


de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de
Estudos e Pesquisa Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente
desenvolve sua monografia sob a orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna,
cujo título é “A história das mulheres no Medievo: a representação feminina no
Decamerão (1347-1353) de Giovanni Boccaccio (1313-1375).”

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Ana Carolinea Lima. A exemplaridade nas representações do


feminino no final da Idade Média – o exemplo do Decamerão e do De mulieribus
claris de Boccaccio (Florença – século XIV). 2009. Dissertação de Mestrado.
Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, 2009.
BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Tradução Raul de Polillo. 2ª Ed. Rio de
Janeiro, NovaFronteira, 2018.

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Historiografia.Trad. Nilo Odalia. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997.
121
CAVALLARI, Doris Natia. A palavra astuta: as estratégias discursivas e a
modernidade do Decameron de G. Boccaccio. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1,
n. 4, p. 6-16, 2o sem. 2010.

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PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Angela M. S. Côrrea.


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Universidade Estadual Paulista, 1992.

SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;


VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. 1.ed.
Rio de Janeiro: Campus,1997.
ASPECTOS DO MUNDO FEMININO
MARGINALIZADO NO TRATADO DO
AMOR CORTÊS (C.1186) DE ANDRÉ 122

CAPELÃO (1150-1220)
Juliana Caroline de Souza Araújo
Introdução

A proposta deste trabalho consiste em refletir sobre as práticas e os


comportamentos dos grupos sociais femininos marginalizados (prostitutas,
camponesas e cortesãs) presentes no Tratado do Amor Cortês de André
Capelão. Segundo Joan Scott, a política feminista foi uma das perspectivas
existentes nos anos 60 do século XX que expressava a ideia de igualdade de
gênero e de uma uniformidade coletiva feminina. Tais aspectos ofereceram, mais
tarde, uma sustentação para a análise e contextualização do campo da História
das Mulheres no contexto universitário (SCOTT, 1992, p. 64-67; NASCIMENTO,
1997, p. 82).

Este é um movimento historiográfico que surgiu a partir da década de 1960 e


ganhou a atenção da academia e do público em geral (SCOTT, 1992, p. 64-67;
NASCIMENTO, 1997, p. 82). Com o passar do tempo, iniciaram-se de forma
massiva os estudos sobre as mulheres no âmbito acadêmico, principalmente na
década de 80 do século XX, momento no qual identificamos a publicação de
várias obras voltadas para o estudo sobre as mulheres no Medievo. Logo, a
história das mulheres no período medieval tem cada vez mais se desenvolvido
como campo de estudos de forma ampla e apresentado pesquisas que revelam
um mundo ainda em descobrimento.

A representação dos grupos sociais femininos marginalizados (prostitutas,


camponesas e cortesãs) foi problematizada devido às questões que giram em
torno da misoginia presente na visão masculina e religiosa de André Capelão.
Apesar disso, a obra possui elementos importantes do cotidiano feminino e da
sociedade feudal em que esses grupos sociais de mulheres estavam inseridos,
como veremos posteriormente. No período medieval, as mulheres, em muitas
fontes de época, eram representadas de forma negativa. Elas eram restringidas
aos seus corpos, os quais eram alvos de críticas desagradáveis, principalmente
nos claustros, onde estavam os monges que renunciavam o mundo (KLAPISCH-
ZUBER, 2002, p. 145).
O corpo feminino estava diretamente ligado ao pecado da luxúria e da
sensualidade, visto pelos eclesiásticos como uma máquina da tentação
(CORREIA, 2016, p. 8). Os atos libidinosos eram definidos por órgãos sensoriais,
que estavam comprometidos como elementos que geravam a volúpia: “[...] a
boca que está relacionada ao discurso sobre excessos, o cheiro, o olhar, a voz
sedutora, as mãos que vão evocar os atos. Ou seja, a luxúria é o único vício que 123
utiliza as cinco partes sensoriais do corpo” (FONSECA, K., FONSECA, P.,
2010/2011). O discurso a respeito da sexualidade era dominado pelos homens
de Igreja, que não possuíam um conhecimento prático e preservavam uma moral
extremamente severa (CORREIA, 2016, p. 5).

O Tratado do Amor Cortês

O Tratado do Amor Cortês de André Capelão (1150-1220) foi composto no final


do século XII, por volta de 1186, no norte da França, e está dividido em três livros
que comentam sobre o que é o amor, como mantê-lo e a sua condenação,
respectivamente. O objetivo principal do Tratado é tratar da concepção do amor
nas cortes feudais, uma vez que ele é uma representação ideológica da nobreza,
possuindo um conteúdo que pretendeu doutrinar e conduzir o grupo nobre
(MARTÍNEZ, 2019, p. 150). O contexto no qual a obra foi composta coincidiu
com o que denominamos feudalismo, um período tradicionalmente visto apenas
a partir da ótica masculina, principalmente a partir da relação entre senhores e
vassalos (BLOCH, 2001).

Nesta perspectiva, em termos de procedimento metodológico, verificamos que


as práticas e os comportamentos presentes no Tratado do Amor Cortês são
reflexos do contexto feudal, uma vez que ele se caracteriza como um tratado
normativo, sendo necessário, portanto, compreendê-lo a partir do seu contexto
de produção. Além disso, é preciso salientar que para se trabalhar com a
perspectiva feminina no Medievo é necessário considerar o filtro masculino
encontrado na maioria das fontes (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 16).

Constatamos, desse modo, que foi importante realizar uma avaliação crítica do
Tratado do Amor Cortês, uma vez que a atenção disponibilizada para a
perspectiva de André Capelão possibilitou uma aproximação à realidade dos
grupos sociais femininos marginalizados e não uma reprodução do pensamento
do autor da obra. Capelão estava vinculado à condessa Maria de Champagne
(1145-1198), filha de Leonor da Aquitânia (1122-1204) e do seu marido Luís VII
(1120-1180), rei da França (PERNOUD, 1984, p. 101-102; MARTÍNEZ, 2019, p.
149-150). Ele era um clérigo secular francês.

Como base teórico-conceitual para estudar os grupos sociais femininos


marginalizados representados no Tratado do Amor Cortês, utilizamos o conceito
de representação cunhado por Roger Chartier (1998) e o conceito de memória
social elaborado por Patrick Geary (2002). Segundo Chartier, as percepções do
âmbito social estão imbuídas com as intenções dos indivíduos ou grupos. Dessa
forma, entende-se que os discursos consistem em representações do mundo
social (CHARTIER, 1998, p. 17). O Tratado do Amor Cortês, portanto, é
composto por diversas representações sociais femininas, uma vez que Capelão
apresentava interesses em moldar as características dos grupos sociais
femininos marginalizados (prostitutas, camponesas e cortesãs) de acordo com o
seu contexto histórico.
124
Segundo Geary, os incentivos do presente proporcionam a busca no passado e,
assim, a memória é recuperada e reformulada de acordo com seu contexto
histórico (GEARY, 2002, p.178). Nesse sentido, Capelão, ao escrever sua obra,
buscou um incentivo no presente e se voltou para o passado, conseguindo,
dessa forma, recuperar a memória dos grupos sociais de mulheres
marginalizadas (prostitutas, camponesas e cortesãs) e reformulá-la com
objetivos específicos para utilizar no seu discurso.

As práticas e os comportamentos dos grupos sociais femininos


marginalizados (prostitutas, camponesas e cortesãs) presentes no Tratado
do Amor Cortês

De início, salientamos que os grupos sociais femininos (prostitutas, camponesas


e cortesãs) presentes na obra de André Capelão, são marginalizados em relação
ao amor cortês. No capítulo IX do Tratado do Amor Cortês, intitulado “Do amor
que se obtém pagando”, André Capelão apresentou os diversos motivos pelos
quais Gautier, um homem nobre, não poderia buscar o amor das mulheres
prostitutas. Na concepção de Capelão, as prostitutas demonstravam um amor
fingido para se apropriar das riquezas dos homens, uma vez que isso se
constatou como comércio do amor. Aliás, não apresentavam pudor e somente
distribuíam sua libertinagem (CAPELÃO, 2000, p. 189-201.) E, portanto,
advertiu:

“Mas queira Deus que nunca se compre o amor como mercadoria. O amor é uma
dádiva graciosa que nasce apenas da magnanimidade do coração e da pura
liberalidade do espírito; por isso deve ser dado gratuitamente, banindo-se a
troca. [...] Se, no entanto, for descoberto que eles se dedicam ao serviço do amor
unicamente em vista do dinheiro, não caberá mais considerar sincero o
sentimento que demonstram: é um sentimento fingido” (CAPELÃO, 2000, p. 177-
178).

Na visão de André Capelão, o intuito dos prazeres físicos era menosprezar as


alegrias do espírito. Para ele, as prostitutas praticavam o meretrício com o
objetivo de enganar os homens, sendo dominadas por um comportamento
ganancioso. “Mas quando essas riquezas desaparecem e o patrimônio se reduz
a nada, o homem passa a ser para elas alvo de desprezo e ódio, a ser rejeitado
como abelha improdutiva, e elas começam a aparecer como de fato são”
(CAPELÃO, 2000, p. 199). Através desse fragmento, verificamos mais um
comportamento direcionado pelo autor ao grupo social de mulheres prostitutas:
a cólera. Além disso, em sua perspectiva, elas se comportavam como devassas
desprezíveis e possuíam grande astúcia para eleger um homem para se aprazer
(CAPELÃO, 2000, p. 198-199).

É necessário destacar que, segundo o autor, as mulheres prostitutas eram


tomadas pelos impulsos da sensualidade, um comportamento que devia ser
controlado pelas esposas nas relações conjugais, justamente para elas não se 125
assemelharem a uma meretriz. As prostitutas eram apontadas pelos homens de
Igreja, como André Capelão, como as principais responsáveis pelo pecado da
luxúria (CORREIA, 2016, p. 55). É importante pensar que elas ingressavam no
meretrício por diferentes fatores, como “[...] pobreza, inclinação natural, perda de
status, um passado familiar perturbado, violento, com estupros ou atos
incestuosos” (FONSECA, K., FONSECA, P., 2010/2011).

Segundo José Rivair Macedo, a prostituição estava concentrada na zona rural e


urbana: na primeira, as autoridades não possuíam o controle; já na segunda,
existiu a sistematização e demarcação dos locais onde poderiam ocorrer o
meretrício (MACEDO, 2002, p. 57-59). Esse serviço era comumente oferecido
em bordéis e em inúmeras tabernas que abrigavam viajantes (ALVES, 2019, p.
61). As mulheres prostitutas eram visitadas na maioria das vezes por
camponeses, mercadores, peregrinos, mendigos, servos, fugitivos e indigentes
(MACEDO, 2002, p. 57-59; FONSECA, K., FONSECA, P., 2010/2011). E como
as prostitutas evitavam a gravidez? Havia meios contraceptivos baseados no
saber popular, como a ação do coito interrompido, infusão de plantas venenosas
ou mágicas, a utilização de amuletos e supositórios vaginais de óleo de cedro,
ou, ainda, a prática de uma posição sexual censurada pela Igreja – a mulher ficar
por cima do homem – e, logo após, expelir a urina (ALVES, 2019, p. 63).

A seguir, André Capelão reservou o capítulo XI para tratar do amor entre os


rústicos, no qual mencionou as camponesas. Vale ressaltar que Capelão não
especificou as mulheres camponesas, mas o objeto deste estudo estende-se
para estas mulheres. De acordo com o autor, a prática do amor cortês entre as
mulheres camponesas se constituiu como impossível, uma vez que elas
possuíam funções para trabalhar a terra e a lavoura (CAPELÃO, 2000, p. 206-
207). Como defendeu o autor:

“Mas mesmo que, contrariando a sua natureza, lhes aconteça – raramente, é


verdade – ser instigados pelo aguilhão do amor, não convém iniciá-los na arte
de amar: seria de se temer que, desejando comportar-se em oposição às suas
disposições inatas, eles abandonassem a cultura das ricas terras que frutificam
habitualmente graças aos seus esforços, e que estas se tornassem improdutivas
para nós” (CAPELÃO, 2000, p. 207).

De acordo com Christine Rufino Dabat, as mulheres camponesas realizavam um


papel fundamental no Medievo, assim como os camponeses, pois abasteciam a
sociedade medieval. No âmbito rural, o consumo diário era produzido e
preservado em casa e, nesse espaço, as mulheres eram consideradas altamente
relevantes, pois estavam no comando da unidade familiar. Em geral, as
camponesas eram pobres e se desdobravam para assegurar a alimentação de
sua família ao longo do ano. Elas dominavam os conhecimentos particulares de
abastecimento e manutenção de alimentos, principalmente no decorrer dos
prolongados invernos europeus, sendo necessário separar racionalmente no
tempo os poucos recursos e não se aventurar a ficar completamente sem comida
(DABAT, 2002, p. 28). 126

Para as mulheres camponesas não existiam muitas preferências, dessa forma,


o cardápio era formado pelos grãos em forma de papa, pão ou sopa com
legumes, através da coleta de cogumelos e frutas silvestres. Na produção têxtil,
as camponesas fabricavam as vestimentas de todos, inclusive dos indivíduos da
sua casa. Além disso, elas concediam ao castelo ou monastério extensas
quantidades de lã, fio e tecidos rudimentares. O grupo social feminino camponês
realizava várias atividades que exigiam esforço, como cavar, semear, colher,
amassar os cereais, revestir as casas com palha e manobrar moinhos (DABAT,
2002, p. 29-30).

Os comportamentos sociais destacados acima provocavam a exclusão das


camponesas da corte do amor, pois, abandonar a labuta para se dedicar ao amor
prejudicaria o modo de vida nobre, uma vez que os nobres usufruíam das
culturas da terra e dos produtos têxteis. Nesse caso, Capelão defendeu o lugar
social em que uma camponesa estava inserida e a necessidade dela para a
manutenção do padrão de vida da nobreza. Ademais, para o autor, os prazeres
do amor que elas podiam obter se baseavam em suas percepções naturais, ou
seja, um furor estapafúrdio e sem dissimulação. Ele sustentou, ainda, que as
mulheres camponesas apresentavam um comportamento rígido e ostentavam
pudor. Com isso, não facilitavam a obtenção dos seus prazeres, levando-as a
serem tomadas à força pelos homens nobres (CAPELÃO, 2000, p. 206-207).

No capítulo XII, André Capelão comentou a respeito do amor das cortesãs.


Dessa maneira, existe uma diferenciação básica entre a cortesã e a prostituta no
Tratado do Amor Cortês, uma vez que a primeira era encontrada nas cortes
feudais e a última em bordéis nas ruas. Porém, embora o conteúdo presente na
obra sobre as prostitutas e as cortesãs seja escasso, é possível elencar outra
distinção além da localização. Quando André Capelão escreve sobre as
prostitutas ele é mais detalhista, pois, pretendeu alertar os homens nobres sobre
a cupidez dessas mulheres que fingem amá-los para apoderar-se de suas
riquezas. Tratando-se do fingimento delas, ele compreendeu que a devassidão
das prostitutas é mais indigna do que a das cortesãs, porque estas realizam um
comércio público, ou podemos interpretar como transparente. Assim, Capelão
afirmou que as cortesãs “fazem aquilo que delas se espera e não enganam
ninguém, já que suas intenções estão perfeitamente claras” (CAPELÃO, 2000,
p. 199).

A proximidade do autor em relação às cortes feudais francesas determinou que


o seu contato fosse maior com os grupos sociais de mulheres presentes nesses
ambientes, como as mulheres nobres e cortesãs. Por isso, estas foram muito
mencionadas ao longo da obra. De acordo com André Capelão, elas são
conhecidas nas cortes por sua sensualidade e apetite sexual, sendo
compartilhadas por muitos homens (CAPELÃO, 2000, p. 204-205).

O personagem da quinta conversação no primeiro livro do Tratado do Amor


Cortês descreveu o palácio do amor e todos que lá fazem morada. Ele afirmou 127
que as mulheres que exigiam um lugar na porta oeste eram obscenas e
entregavam-se aos prazeres de todos os homens. Nesse diálogo, André
Capelão se referiu às cortesãs, as quais não amavam e eram menosprezadas
por qualquer homem. Dessa forma, a prática do amor para as mulheres cortesãs
se constituiu como inviável, pois elas corrompiam os seus mandamentos e seus
serviços. Nas palavras de Capelão: “Por isso, como residem a oeste, o raio
afogueado do amor que vem do oriente não pode tocá-las” (CAPELÃO, 2000, p.
19-83).

Ademais, na representação do palácio do amor o autor destacou os sofrimentos


que estariam reservados para as mulheres cortesãs, os quais eram
determinados pelo rei do amor. Elas seriam atormentadas por uma variedade de
homens e estariam destinadas à um local específico do palácio, intitulado
Umidade. Nesse caso, os arroios que irrigavam a Amenidade – o lugar onde
residiam as damas da porta sul, que são dignas de louvores – escoavam por
Umidade e inundavam-no por completo. O fragmento seguinte expressa os
tormentos que as cortesãs enfrentariam:

“[...] As mulheres impudicas, que em vida não temeram entregar-se ao prazer de


todos os homens e ceder aos desejos de todos os que as solicitavam, não
vedando a pretendente algum a entrada de sua morada. Por isso, nessa corte,
elas mereceram ser assim tratadas; pela excessiva dádiva que fizeram de si,
pela acolhida que deram a todos os homens, indiscriminadamente, são
fustigadas sem medida nem distinção pelos serviços de uma multidão infindável.
Para elas, tais serviços produzem efeito contrário ao objetivo: só as molestam,
afligem e ultrajam ao máximo. [...] As mulheres começaram a soltar as rédeas
na região de Umidade para, ali mesmo, fruir dos prazeres que pudessem
encontrar, pois aquele era o lugar que o Amor lhes havia reservado” (CAPELÃO,
2000, p. 90-96).

Ainda segundo André Capelão, as cortesãs esbanjavam enfeites e, por isso, não
eram constituídas por nenhuma virtude (CAPELÃO, 2000, p. 208). Os adereços
estavam ligados a elas e serviam para despertar a atenção dos rapazes
(FONSECA, K., FONSECA, P., 2010/2011). De acordo com a ideia seguinte: “Eis
que uma mulher sai-lhe ao encontro, ornada como uma prostituta e o coração
dissimulado” (Provérbios 7: 10). Assim, era predominante entre os homens de
Igreja a aversão ao poder de sedução e ao esbanjamento sexual dessas
mulheres, sendo confortante naturalizá-las como obscenas, libidinosas e
insuficientes de inteligência (FONSECA, 2012, p. 175-177).
De acordo com o escritor, era necessário evitar a prática do amor das cortesãs,
pois este é revestido pelo poder da sedução e conduz o homem nobre ao
pecado. Como ocorre com as mulheres prostitutas mencionadas anteriormente,
na perspectiva de Capelão os deleites do corpo em troca de presentes e dinheiro
são considerados comportamentos nefastos. O fragmento seguinte mostra essa
ideia. “Aliás, mesmo ocorrendo que uma mulher dessas se apaixone, não resta 128
dúvida de que seu amor é funesto para os homens: todos os que tenham bom
senso reprovam o comércio íntimo das cortesãs, e quem as frequenta perde a
boa reputação” (CAPELÃO, 2000, p. 208).

Considerações finais

A grande maioria dos discursos masculinos no Medievo são marcados por


críticas negativas ao mundo feminino. No caso do Tratado do Amor Cortês,
verificamos a presença consistente de comentários inconvenientes direcionados
aos grupos sociais femininos marginalizados (prostitutas, camponesas e
cortesãs), surgindo a necessidade de problematizá-los, filtrando a perspectiva
religiosa de André Capelão, marcada pela aversão ao feminino e,
consequentemente, pelas concepções a respeito do corpo feminino. A partir
disso, conseguimos evidenciar os motivos pelos quais essas mulheres eram
marginalizadas do amor cortês, assim como suas particularidades e atividades
cotidianas.

Na análise das práticas e dos comportamentos dos grupos sociais femininos


marginalizados (prostitutas, camponesas e cortesãs), agregamos, de forma
aproximada, um saber sobre as realidades sociais desses grupos de mulheres
no período feudal. Até porque a abordagem sobre esses grupos sociais de
mulheres é imprescindível para tornar íntegro o entendimento a respeito do
século XII. Foi dessa forma que o Tratado do Amor Cortês possibilitou o estudo
sobre esses grupos, que até o momento foram pouco analisados em pesquisas
historiográficas na área de História Medieval, especificamente no período
histórico feudal.

Referência biográfica

Juliana Caroline de Souza Araújo é graduanda do Curso de História da


Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti –
Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina).
Atualmente realiza seu projeto de Iniciação Científica como bolsista da Fundação
de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) sob a
orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna, cujo título é “A representação dos
grupos sociais femininos marginalizados no Tratado do Amor Cortês (c. 1186)
de André Capelão (1150-1220).”
Referências bibliográficas

Fontes

Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


129
Bibliografia

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DABAT, Christine Rufino. “Mas, onde estão as neves de outrora?” Cadernos de


História (UFPE) – Gênero & História. Ano I, Número 1, 2002, p. 23-68.

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Novas Perspectivas. Trad.: Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992, p. 63-95.
PUBLICIDADE, GÊNERO E ENSINO
DE HISTÓRIA: POSSIBILIDADES
DIDÁTICAS NAS PÁGINAS DA 131

REVISTA MANCHETE
Karen Aparecida de Oliveira Leal e
Angela Ribeiro Ferreira
Os debates de gênero se consolidaram nos últimos anos dentro das ciências
humanas e representam um importante campo de pesquisa. Mesmo assim a
área vem sofrendo constantes ataques e silenciamentos. Prova disto são ações
contra professoras da, projetos como escola sem partido e a retirada do termo
“gênero” dos planos municipais e estaduais da educação, negando o livre ensino
e pesquisa da temática. Por isso seu estudo torna-se tão relevante neste
momento.

Partimos das reflexões de Joana Maria Pedro (2005), que diz que o termo gênero
é tributário dos movimentos sociais e carrega a carga de referir-se às
diferenciações sociais existentes entre mulheres e homens (plurais mesmo entre
si) a partir de construções culturais, econômicas, políticas e históricas. A própria
historiografia vinha sendo, até bem pouco tempo, responsável pela perpetuação
destas diferenças:

“A história era, ela mesma, responsável pela “produção sobre a diferença


sexual”. Pois uma narrativa histórica que nunca é neutra, e que apenas relata
fatos em que homens estiveram envolvidos, constrói, no presente, o gênero. A
história, neste caso, é uma narrativa sobre o sexo masculino, e constitui o gênero
ao definir que somente, ou principalmente, os homens fazem história.” (PEDRO,
2005)

Apresentamos aqui uma tentativa de compreender os papeis de gênero a partir


de peças publicitárias que se voltavam, majoritariamente, a camadas médias e
altas da sociedade. Buscando entender como esse discurso fora construído na
publicidade da Revista Manchete nos debruçamos sobre nossas fontes, as quais
foram previamente selecionadas em um sistema de amostragem para abranger
todo o recorte temporal escolhido usando por critério: peças publicitárias
contidas nas revistas da semana do Dia das Mães e na semana do Dia dos Pais
em cada ano destacado (1958, 1960, 1964, 1968, 1970, 1975, 1977, 1980)
perfazendo um total de 16 revistas e 356 peças publicitárias. Iniciamos a seleção
em 1958 e acabamos em 1980 por ser o período disponível no acervo do Museu
Campos Gerais, em Ponta Grossa, onde a coleta das fontes se iniciou.
Entendemos também que a observação das modificações, ou não, se dariam de
uma melhor forma com a amostragem de cada década desde a de lançamento
da revista.

A Revista Manchete foi lançada em 1952 e encerrou as atividades nos anos 132
2000, desbancou no caminho a maior revista de circulação nacional “O Cruzeiro”
e conquistou o espaço de uma média de 200 mil tiragens semanais, com
reportagens especiais de assuntos densos acerca de política, segurança e
economia; outras com temas gerais como casamentos reais, concursos de miss,
carnaval ou a última moda em Paris.

Por esse variado repertório e por uma característica muito própria de estar
sempre se moldando ao governo que estivesse no poder, tal qual apresenta
Guesner Duarte Paduá (2013) no seu trabalho “Manchete, a cortesã do poder”,
a revista já foi alvo de várias investigações acadêmicas. Trabalhos, inclusive, na
própria perspectiva de gênero, como bem elucida o trabalho de Marlene de
Fáveri (2014) “O mundo é das mulheres - Heloneida Studart e o feminismo na
revista Manchete”. E ainda serviu de fonte e inspiração para tantos outros, a
exemplo: “Brasília: A representação do poder moderno. A desconstrução do país
passado e a construção do país futuro na narrativa jornalística” (SILVA, 2011);
“Aconteceu, virou Manchete” (ANDRADE; CARDOSO, 2001); “Ditadura militar e
propaganda política: a revista manchete durante o governo Médici” (MARTINS,
1999). E ainda outros. Nesses trabalhos encontramos perspectivas diferentes,
como estudos sobre a feminista Heloneida Studart, presa pelo AI-5 em 1969,
que contraditoriamente foi contratada pela revista, a mesma que apoiava e
divulgava campanhas do governo militar.

O que se constata é a grande capacidade da Manchete permanecer em voga


com qualidade de imagem e atrativa para um grande público, qualidade que
também despertou o interesse de diversas empresas que decidiram anunciar
seus produtos e serviços nas páginas da revista.

A publicidade, aqui entendida em seu completo, imagem e/ou texto que visam a
venda de um produto, ou melhor dizendo, de um padrão de vida:

“A publicidade é uma das interfaces da comunicação de massa. Como símbolo


da abundância de produtos e serviços que o progresso tecnológico coloca
diariamente à disposição do homem, cria a noção de status, conferido pela
aquisição de objetos ligados ao conforto e ao lazer. Os objetos que ela toca
conferem prestígio, porque o produto anunciado extrai seu valor menos de sua
utilidade objetiva do que de um sentido cultural, servindo para manter um status
efetivo, ou sonhado.” (MONNERAT, 1999, p.98)

Ou seja, a publicidade visa não somente a venda, gerando lucro direto ao


sistema capitalista, o qual é a grande razão de ser da publicidade, mas também
vende promessas de vidas perfeitas, utilizadas como mantenedoras do mesmo
sistema. A publicidade alimenta dessa forma o Imaginário Social, que para
Baczko (1985) trata-se de uma das forças reguladoras da vida coletiva. A qual
através de uma complexa rede de símbolos produzem sentido, e domínio, à
sociedade humana. As relações de poder são manipuladas e legitimadas
visando manter um poder hegemônico através deste imaginário “Isso vai desde
produções legais, coercitivas, às formas sofísticas de formação de opiniões” 133
(FERREIRA, EIZIRIK, 1994, p.7).

“A influência dos imaginários sociais sobre as mentalidades depende em larga


medida da difusão destes e, por conseguinte, dos meios que asseguram tal
difusão. Para garantir a dominação simbólica, é de importância capital o controlo
destes meios, que correspondem a outros tantos instrumentos de persuasão,
pressão e inculcação de valores e crenças. É assim que qualquer poder procura
desempenhar um papel privilegiado na emissão dos discursos que veiculam os
imaginários sociais, do mesmo modo que tenta conservar um certo controlo
sobre os seus circuitos de difusão.” (BACZKO,1985, p.18)

Podemos destacar como a publicidade é uma rica fonte para a pesquisa e o


ensino de História, dado que é palco visual de relações de poder perpassadas
pelo gênero e com distintas categorias narrativas apresentadas. Essas
categorias foram elaboradas durante a seleção e análise das peças a partir da
sua repetição e as possibilidades de se discutir como se dão as amarras
discursivas de papéis de gênero. Temos dessa maneira algumas categorias
mais “visuais”, com elementos presentes e explícitos como “feminilidade e
masculinidade”, “maternidade e paternidade”, “trabalho” e “sexualidade”.
Apresentamos abaixo alguns elementos de cada categoria e um exemplo de
publicidade da categoria sexualidade:

Feminilidade x Masculinidade
As noções de feminino e masculino foram definidas como categoria de análise
para o trabalho por se tratar de uma ideia bastante presente nas peças
publicitárias. De maneira conservadora as mulheres são, geralmente, mostradas
como donas de casa preocupadas com a beleza e com o bem-estar da família,
só aparecendo fora dessa perspectiva quando colocadas no mercado de
trabalho como secretárias ‘sexys’.

Maternidade x Paternidade
É notório que família é um valor sempre em alta para publicidade, sendo um dos
preceitos mantenedores da moral e bons costumes do público conservador da
Revista Manchete. Nesta família arraigada na tradição, os papéis de pai e mãe
são muito bem desenhados. A função de formadora de cidadãos e gestora do lar
atribuída à mulher é amplamente divulgada nas peças publicitárias da revista
manchete.

Trabalho
As relações de trabalho demonstradas nas peças publicitárias podem ser vistas
em duas frentes: em primeiro vem o trabalho doméstico destinado às mulheres
e o trabalho fora de casa aos homens; em segundo temos os trabalhos
“inferiores” como secretárias destinados ao público feminino e os seus chefes
sendo homens.

Sexualidade
Uma ideia de mulher máquina, objeto de mesa, cama e banho pode ser 134
observada relacionada à maternidade, mas não se esquiva, já na década de
1970, da sexualidade. Na figura 1 a diferença é que a máquina de lavar roupa
irá fazer as vezes da mulher: lavar e manter as roupas em ordem para que a
esposa “[...] de carne, osso e amor” tenha tempo de cumprir sua função de objeto
sexual. Ela deveria, portanto, gerar prazer como uma das “suas” funções
domésticas. Não diferente a figura 2 mostra “Quando êle não consegue resistir
de longe a um cheirinho tão apetitoso...” possuindo uma dupla intenção como
demostra a fotografia que preenche a peça publicitária. É justamente a partir das
peças da década de 1970 que começamos a perceber uma maior
sexualização/erotização das mulheres como receita para venda de produtos.

Figura 1 – Brastemp, fogão Figura 2 – Brastemp, lavadora de


roupa

Fonte: Revista Manchete, 1970,


edição 942, p.87 Fonte: Revista Manchete, 1970, edição
942, p.145

Gênero, publicidade e ensino de História

A pesquisa histórica e o seu ensino não são, e jamais poderão ser


desvinculados. Assim o professor pesquisador deve estar em constante trabalho
de reflexão e atualização com a disciplina. Mas como fazer isso na prática? De
que forma os estudos de gênero podem (e devem) atuar diante da realidade
educacional brasileira? Quais são os caminhos possíveis a serem trilhados entre
ensino de história, gênero e publicidade?
Para Janaina Jaskiu (2018) a escola é um espaço privilegiado aos debates de
gênero ao poder, cientificamente, dar sentido as vivências e experiências dos
nossos estudantes. Considerando que estas vivências estão postas em meio à
feminicídios corriqueiros, violências sexuais, desigualdades salariais, pressões
estéticas, masculinidade tóxica e outras tantas formas de violência nascida da 135
desigualdade de gênero que existem, inclusive, dentro próprio ambiente escolar,
é urgente que encontremos caminhos por meio da educação para construção de
uma sociedade justa e segura para todas e todos. A história precisa assumir
essa responsabilidade uma vez que pode desnaturalizar os processos de
sedimentação de valores machistas e patriarcais, levando ao entendimento de
que “[...] são produtos da história e não naturalmente dadas, portanto, passíveis
de mudanças.” (JASKIU, 2018, p.33)

Para tanto não basta o ensino de história das mulheres, ou de notas pequenas
de feitos femininos ao longo da história, como, por exemplo, os recorrentes “as
mulheres durante a segunda guerra mundial” ou “a participação das mulheres no
governo Vargas” é necessário “[...] reconhecer o processo histórico de exclusão
de sujeitos.” (COLLING, 2015, p.308). Ana Maria Colling (2015) destaca que para
um ensino efetivamente não sexista é fundamental atentar que a própria
dinâmica historiográfica e de ensino é intencional.

Defender uma proposta de educação a partir da categoria gênero é assumir uma


posição política, combativa e de resistência, especialmente diante das tentativas
de silenciamento da temática dentro do ensino de História.

E como podemos fazer isso? Uma possibilidade é o uso de fontes históricas na


sala de aula. Aqui buscamos nos dedicar a publicidade, uma fonte muito
explorada por ser caricata da sociedade e estar próxima da vivência cotidiana
dos nossos estudantes.

O uso de fontes primárias em sala de aula é fundamental por oferecer ao


estudante a possibilidade de entender a construção metodológica da ciência
histórica. Conhecer como os processos narrativos são construídos, que
possuem eles próprios uma historicidade, ajuda a combater revisionismos
equivocados e desenvolver senso crítico às narrativas que criam falácias sem
precedentes como o caso do “nazismo de esquerda”, ao mesmo tempo que
elucidam que a história não é estanque e está em constante relação com o
presente. Para Jaskiu (2018, p.173)

“O uso de documentos no ensino de História contribui para problematizar os


estereótipos e as relações de gênero. Ao usar outras fontes além da narrativa
proposta pelo livro didático, que normalmente parte da história política e/ou
econômica, os estudantes compreendem como se constrói o conhecimento
histórico. Utilizar fontes históricas para produção de conhecimento em sala de
aula pode ser um método fértil para sugerir uma outra História, que apresente
sujeitos até então marginalizados pela memória oficial”
Entendemos as peças publicitárias como fontes ricas para tanto, uma vez que
estão diluídas pelo nosso cotidiano e de nossos estudantes. O processo de
consumo que alimenta as estruturas capitalistas precisa ser questionado e a
criticidade às peças publicitárias é essencial para tanto.
136
A seguir, apresentamos uma proposta de atividade didática com o uso das peças
publicitárias para o debate de gênero no ensino de História escolar. A intenção
é apresentar para além da análise das fontes, uma parte propositiva para a sala
de aula.

Proposta didática com publicidade

A atividade aqui proposta se enquadra nas habilidades requeridas pela Base


Comum Curricular do Ensino Médio dentro da grande área de Ciências
Humanas, Sociais e Aplicadas. Podemos destacar as seguintes habilidades em
questão: (EM13CHS403) Caracterizar e analisar processos próprios da
contemporaneidade, com ênfase nas transformações tecnológicas e das
relações sociais e de trabalho, para propor ações que visem à superação de
situações de opressão e violação dos Direitos Humanos. (BRASIL, p. 563) e
(EM13CHS404) Identificar e discutir os múltiplos aspectos do trabalho em
diferentes circunstâncias e contextos históricos e/ou geográficos e seus efeitos
sobre as gerações, em especial, os jovens e as gerações futuras, levando em
consideração, na atualidade, as transformações técnicas, tecnológicas e
informacionais. Concebemos a seguinte atividade pensando que pode ser o
pontapé inicial para uma unidade temática mais completa acerca de questões
trabalhistas.

O objetivo: Avaliar criticamente a conjuntura do trabalho feminino no Brasil;


compreender a divisão sexual do trabalho; posicionar-se a respeito da dupla
jornada de trabalho feminino; interpretar a situação contemporânea do trabalho
feminino; reconhecer os privilégios masculinos dentro da lógica trabalhista.

O trabalho é proposto a partir da peça publicitária da Sanyo:

Figura 3 – Sanyo
137

Fonte: Revista Manchete, 1980, edição 1477, p.119

Figura 4 – destaque da área escrita da figura 3


138

Fonte: Revista Manchete, 1980, edição 1477, p.119

Figura 5 - destaque da área escrita da figura 3


139
Fonte: Revista Manchete, 1980, edição 1477, p.119

1ª Parte:
• Apresentar a peça publicitária (figura 3, 4 e 5) aos/as estudantes, podendo
ser projetada ou de maneira impressa e iniciar um debate acerca da 140
composição dela. Quais são os personagens presentes? Quais cores
aparecem em destaque? É possível identificar na imagem qual produto se
trata?
• Iniciar a leitura da parte textual da peça, começando pela chamada “Uma
nova receita pela liberação da mulher” e questionar os estudantes sobre
o que eles entendem como “liberação da mulher” e como essa chamada
se relaciona com a imagem. Dar continuidade a leitura de maneira
integral, visando uma assimilação completa da argumentação. Também
vale destacar o estilo “jornalístico” que o texto assume e confrontar os/as
estudantes acerca dessa escolha, visando apontar o interesse em conferir
credibilidade ao produto e à argumentação.
• O professor ou professora pode destacar o trecho inicial da peça, onde:

“Até alguns anos atrás – não muitos – a maioria das mulheres aceitava como
sua responsabilidade máxima assumir a chefia de um reino de poucos metros
quadrados: o seu lar. Rotulada como uma perfeita dona de casa, uma boa parte
do seu talento e da sua vida eram absorvidos pelas mil e uma tarefas
desenvolvidas dentro dos limites das quatro paredes de uma cozinha. Agora,
recém liberada para um mundo que transpõem as barreiras impostas pela
escravidão das prendas domésticas, esgrima com o inevitável acúmulo de
funções.”

Continuando com o início do parágrafo seguinte:

“Com o surgimento desse novo quadro, a mulher que enfrenta, simultaneamente,


vida profissional e vida doméstica – uma aventura que virou rotina – vai se
transformando em uma anônima superatleta do dia a dia. Mas, como em
qualquer situação desgastante, a corda sempre acaba arrebentando de algum
lado. A mulher pode até escapar de um stress bem justificável, mas,
provavelmente, não escapará com tanta facilidade daquela situação
constrangedora de verificar que o assado magnífico, que tinha planejado para
um jantarzinho especial simplesmente queimou. Afinal ninguém é de ferro.”

O professor ou professora pode a partir desses trechos, após explorar as


primeiras impressões dos/das estudantes, trabalhar o conceito de dupla jornada
de trabalho feminino e a desigualdade entre mulheres e homens na divisão dos
trabalhos domésticos.
• Pesquisar e expor dados sobre a dupla jornada de trabalho.
• Historicizar a divisão sexual do trabalho e como as relações de poder se
constroem a partir do trabalho.
2ª Parte
• Solicitar aos/as estudantes que entrevistem ao menos três mulheres com
questionamentos como: quando começou a trabalhar; possui filhos ou
não; já sentiu que a responsabilidade com tarefas domésticas afetou a
vida profissional; os membros homens da família, como pai, irmãos ou
marido também realizam as tarefas domésticas, se sim se essa divisão é 141
igualitária; como ela enxerga a responsabilidade feminina nos trabalhos
domésticos.
• Após a coleta das entrevistas os estudantes deverão, em sala, debater se
a realidade apresentada na peça publicitária ainda persiste ou não.
• Questionar os/as estudantes acerca de porque eles acreditam que peça
publicitária foi montada de tal forma e se hoje ela seria socialmente aceita
ou não e o que essa mudança (presumindo que ela existe) significa para
o meio publicitário e para sociedade. Destacar a peça publicitária como
fonte histórica, o perigo de recorrer em anacronismos ao observá-la a fim
de que os/as estudantes a entendam como uma construção do seu
contexto social, político e cultural.
• Como atividade final os/as estudantes deverão desenvolver um texto
relacionando as questões trabalhistas, a peça publicitária e as entrevistas
coletadas.

Considerações finais

O uso de fontes em sala se mostrou potencialmente proveitoso para um “pensar


historicamente”, para que os/as estudantes possam entender como a ciência é
construída, que são necessárias fontes e debates para se estabelecer teorias
que, longe de serem a verdade absoluta, podem ser refutadas ou
complementadas desde que o seja feito dentro do esquadro científico. Em
tempos de negação, reafirmar nossos modos de trabalho não torna os/as
estudantes historiadores, mas os oferece ferramentas para entender que as
construções são intencionais e que é necessário observá-las. É também o
documento em sala que estimula ao estudante uma leitura histórica do mundo e
que o auxilia na sua vida prática.

No caso da publicidade, que ganha a cada tempos novos recortes e espaços e


está inserida de maneira rotineira na cultura juvenil torna-se rica a possibilidade
de os estudantes poderem questionar suas intenções no dia a dia. No ensino de
história, demonstrou-se ser um objeto de muitas possibilidades para trabalhar
temáticas diversas em sala a partir da categoria gênero, já que evidenciamos
que a publicidade cria nichos de reconhecimento para sociedades diferentes, em
tempos diferentes, aprisiona as noções de gênero e define o que é ou não ser
mulher e o que elas fazem ou deixam de fazer.

Referências biográficas
Karen Aparecida de Oliveira Leal. Graduada em Licenciatura em História pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG.

Dra. Angela Ribeiro Ferreira, professora adjunta do Departamento de História,


da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. 142

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Instituto de Artes e Comunicação Social
A LITERATURA DE FRANCISCO J.C.
DANTAS COMO RECURSO
DIDÁTICO NO ENSINO DA 144

HISTÓRIA: TRABALHANDO AS
RELAÇÕES DE GÊNERO NA
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
Krishna Luchetti
Este trabalho tem por objetivo propor uma sequência didática mobilizando as
obras literárias de Francisco José Costa Dantas, “Coivara da Memória” (1991),
“Os desvalidos” (1993) e “Cartilha do Silêncio” (1997), como fonte para estudar
as relações de gênero no Brasil do início do século XX. Uma vez que esse autor
recria em suas narrativas o Sergipe da primeira metade dos anos 1900, partindo
muitas vezes da própria memória. Dessa forma, vê-se as tensões entre gêneros,
assim como o papel que se esperava que homens e mulheres do interior do
Nordeste assumissem naquela sociedade. Vale lembrar, que aqui vejo o
Nordeste enquanto uma construção histórica, sociocultural e política, tal como
indicou Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em “A invenção do Nordeste”.

Sendo assim, para dar início a esta reflexão, lhes apresento Francisco Dantas,
como um homem que nasceu em Riachão do Dantas, interior do estado de
Sergipe, no ano de 1941. Dantas, cresceu nas fazendas de seus familiares,
muito próximo do avô materno que lhe serviu de inspiração para muitas de suas
obras literárias (DANTAS, 2013, p.194). Aos 30 anos, nosso autor cursou Letras-
Português na Universidade Federal de Sergipe, e seguiu sua formação
acadêmica até o doutoramento. Foi professor de Literatura na UFS, e como
escritor já publicou seis livros de literatura (TIBÉRIO, 2011, p.19).

Nas narrativas de Dantas veremos as experiências dessas mulheres oníricas,


forjadas na literatura, em meio a uma sociedade profundamente machista. O que
se esperava dessas mulheres nordestinas do início do século XX, era a
submissão. “Pois o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mundo, das
famílias e dos corpos [...] O pudor é sua virtude, o silêncio sua honra, a ponto de
se tornar sua segunda natureza. A impossibilidade de falar de si mesma acaba
por abolir seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele.” (PERROT,
1988, p.10). Ou seja, esperavam que essas fossem subservientes aos homens,
um apoio ao qual eles pudessem contar. Em “Coivara da Memória”, “Cartilha do
Silêncio” e “Os desvalidos”, veremos tanto essas mulheres silenciadas,
dependentes de seus maridos, quanto aquelas que desafiam a ordem social, e
são tachadas de loucas, indecentes etc.

Usando um documento literário enquanto fonte e recurso didático, levo em


consideração que “Existe o problema de escolher documentos que sejam
atrativos e não oponham muitos obstáculos para serem compreendidos, tais 145
como vocabulários complexos (textos escritos em outras épocas usam termos
desconhecidos na atualidade), grande extensão, considerando o tempo
pedagógico das aulas (...) e a inadequação à idade dos alunos.”
(BITTENCOURT, 2011, p. 330). Portanto, pretendo articular essa proposta
didática para os alunos dos últimos anos do Ensino Médio, ou para todo o Ensino
Médio da Educação de Jovens e Adultos.

Os livros literários serão trabalhados em recortes, vide o “tempo pedagógico”


limitado das aulas de História destinadas a esse nível de ensino. Nesta proposta,
trabalharei justamente com os trechos selecionados para elaborar uma reflexão
histórica sobre as questões de gênero no início do século XX. Dessa forma,
também pretendo instigar o alunado a se interessar pela literatura de um autor
brasileiro e nordestino, a fim de estimulá-los a valorizar a arte produzida em
nosso país. Portanto, também irei levar em consideração na construção desse
trabalho, que “Os estudos de textos literários têm assim como objetivo não
apenas desenvolver “o gosto pela leitura” entre os alunos, mas também fornecer
condições de análises mais profundas para o estabelecimento de relações entre
conteúdo de forma.” (BITTENCOURT, 2011, p. 340).

Dado que, alguns temas podem parecer inadequados para alunos de uma faixa
etária mais jovem, visto o conteúdo mais “adulto” presente nas obras, foram
escolhidos os últimos anos do Ensino Médio regular, ou o Ensino Médio da EJA.
Seja devido a violência de algumas cenas, ou as referências a relações sexuais
entre os personagens nas obras. Além desses aspectos, é preciso levar em
consideração o linguajar da narrativa, que pode apresentar difícil compreensão
para leitores mais jovens, assim como para aqueles de outras regiões para além
do Nordeste brasileiro. Esse “sotaque” sergipano, apesar de apresentar um
possível entrave aqueles que não estão habituados com o falar da região, pode
ao mesmo tempo, proporcionar um debate muito interessante acerca dos “vários
falares” do Brasil.

Dessa forma, além de despertar um debate acerca da questão de gênero, essas


narrativas literárias também poderão incentivar um trabalho interdisciplinar com
as disciplinas de Português (com relação a forma de escrita da obra) e de
Literatura (trabalhando o regionalismo, por exemplo). Afinal, “Romances,
poemas, contos são textos que contribuem, pela sua própria natureza, para
trabalhos interdisciplinares.” (BITTENCOURT, 2011, p. 338). Visto que, o próprio
tema das relações de gênero constitui um tema transversal entre as disciplinas
escolares, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais. Portanto, “O trabalho
articulado de maneira transversal faz com que as atitudes desenvolvidas em
diferentes atividades sejam complementares entre as áreas. Os temas
transversais como questões sociais urgentes são norteados pela construção da
cidadania e pela democracia.” (LIMA; AZEVEDO, 2013, p. 137).

Isto posto, vamos trabalhar tanto a forma com que foi escrita a narrativa, ao
elaborar uma relação interdisciplinar com a matéria de Português. Assim como
vamos trabalhar com o seu conteúdo, no que concerne das relações de gênero. 146
Para tanto, “É master trabalhar na perspectiva problematizadora, com
metodologias congruentes, apropriadas em relação à construção do
conhecimento histórico, tanto no horizonte da pesquisa científica, quando no
âmbito do saber escolar. Desafiar constantemente é uma das características do
ato de educar; do contrário, contribui-se para o obscurantismo, para o “silenciar”
de consciências.” (ECCO, 2007, p. 129).

Portanto, durante toda a sequência didática proposta para análise de “Coivara


da Memória”, “Os Desvalidos” e “Cartilha do Silêncio” nas aulas de História, será
recomendada uma dinâmica em que os próprios alunos irão analisar esse
recurso didático e irão elaborar pontos para explicar aos seus colegas o “porquê”
aquele trecho diz respeito, ou não, a uma questão de gênero. Sendo assim, um
trecho de cada obra será entregue a um grupo de alunos, entre quatro e a seis
pessoas por equipe, e eles colaborando juntos irão dividir suas informações com
os demais grupos.

Dos alunos será exigido que abordem alguns pontos, como por exemplo, um
resumo da situação tratada no trecho selecionado, qual o recorte espacial e
temporal que eles supõem (baseados nas narrativas, nas aulas e no livro
didático) que se passam na obra, e afins. Acredito que durante a dinâmica seja
importante que o professor lembre ao alunado que se trata de uma obra literária,
ou seja, da construção de um autor, e não necessariamente do “real”. Mas que
apesar disso, “As relações entre espaço e literatura, mapeamento e escrita, e
descrição e narração são tão complexas e numerosas quanto interessantes.”
(TALLY, 2019, p. 63).

Além de ter como ponto de partida o conhecimento dos próprios alunos acerca
do tema sobre relações de gênero, irei trazer para sala de aula o livreto “Sejamos
todos feministas” de Chimamanda Ngozi Adichie. Essa autora nigeriana trabalha
justamente com as relações de gênero e machismos que vivenciou em seu dia
a dia, e traz alternativas para que sejamos, literalmente, todos feministas, a fim
de findar as diferenças gritantes entre os gêneros, assim como a violência e
subordinação intrincadas nessa relação. Dessa forma, irei mobilizar essa autora,
que trás uma linguagem simples para estimular a turma a pensar sobre o
assunto.

Também proponho a discussão de trechos da obra “As mulheres ou os silêncios


da História” de Michelle Perrot, na qual a autora denota justamente o
silenciamento das mulheres na sociedade. Ela também discute as violências
sofridas por esse gênero, as desigualdades diárias e assim por diante, no
contexto histórico europeu.
Assim, com base primeiramente nos conhecimentos prévios dos alunos, as
discussões em sala de aula, e os livros de Adichie e Perrot, darei ao aluno “a
possibilidade de efetivar suas próprias idéias sobre os fenômenos e objetos do
mundo social, em vez de ser um mero receptor passivo das informações do
professor.” (SCHMIDT, 2004, p. 62). Ou seja, será proposta uma atuação ativa 147
dos estudantes, provocados durante toda a atividade, e as aulas anteriores e
posteriores a tal sequência didática, a pensarem as implicações das relações de
gênero hoje e no passado.

Portanto, indico que nas aulas que antecedam a dinâmica com o uso da literatura
de Dantas, sejam debatidas de forma contundente as questões de gênero ao
longo dos próprios conteúdos, deixando os alunos familiarizados com o tema. A
título de exemplo, o professor poderia trabalhar a participação das mulheres na
vida política na Primeira República, visto que esse é o recorte temporal abordado
nas aulas aqui propostas. Ou ainda, usar dos livros de Perrot e Adichie para
abordar e refletir sobre os tipos de subordinações forçadas em que as mulheres
do período estudado eram submetidas.

No dia de início da atividade, é importante que o professor resuma oralmente, ou


até por meio de apresentações de slides, em diálogo com os alunos, as obras
que eles lerão os trechos. Pois, os mesmos deverão ser contextualizados daquilo
com que irão trabalhar. Também considero pertinente que o docente elabore
uma ligação entre a literatura escolhida, o período histórico trabalhado e o tema
que será desenvolvido na sequência didática acerca das relações de gênero.

Logo, explicada a proposta de dinâmica, irei simular a mesma por meio deste
trabalho, para torná-la ainda mais viável de prática no âmbito escolar. Para
começar, lhes apresentarei possíveis trechos das obras que podem ser usados
em sala de aula, em um dos possíveis grupos de trabalho.

Como primeiro, selecionei a seguinte passagem de “Coivara da Memória”, essa


obra trata de um escrivão que foi preso no próprio cartório acusado de assassinar
um dos poderosos coronéis da região. A narrativa se passa no estado de
Sergipe, nos primeiros anos do século XX. Nosso narrador personagem falando
sobre o avô, que era um senhor de engenho, destaca que: Enquanto isso, suas
irmãs vivem a ciscar no borralho doméstico, entorpecidas pelos servicinhos
miúdos – sem falas, coitadas! – buscando consolo em missas e novenas, nas
procissões e penitências. Se casam, se tornam para sempre senhoras, cativas
de garanhões e tamancudos; se ficam solteiras, que nem tia Justina, coíbem o
corpo a ferro e fogo [...] É toda uma estirpe de fêmeas caladas, que a tudo
renunciam com medo de viver, de antemão resignadas porque lhe inculcaram o
costume de não se meter em conversa nem segredo de homem, proibidas de
saber e perguntar.” (DANTAS, 2001, p. 106-107).

Supondo que um grupo pegou esse trecho, os alunos iriam ler, e discutir entre
eles a situação narrada pelo narrador literário, tentando ligá-lo as discussões
prévias em sala de aula acerca da temática, assim como suas leituras. Lhe serão
dados trinta minutos para ler, analisar e pontuar os aspectos demandados: se o
trecho trata de uma relação de gênero; que tipo de relação é essa; como a mulher
aparece no texto; qual o período em que se ambienta a narrativa; qual o espaço
em que se dá essa situação. Para posteriormente apresentar aos demais
colegas suas percepções acerca da passagem do livro. 148

Tal atividade iria se repetir também com o seguinte trecho da obra “Os
Desvalidos”, na qual trata da profunda violência vivenciada na década de 1920.
Nesse ponto, deve-se alertar a turma do conteúdo sensível, e novamente os
lembro de só realizar essa sequência didática, com alunos mais velhos, de 17
anos em diante. “Os desvalidos”, conta a história de Coriolano, que relembra o
passado com o amado tio Filipe, seu amigo Zerramo e outros personagens que
compõem sua vivência no sertão sergipano. Ao mesmo tempo que também são
narradas as memórias de Lampião e seu bando, e as diversas violências que
permeia a vida desses personagens desvalidos.

O narrador nos conta que “Arrebatado do punhal de Lampião pelo amor de Maria
Melona [ela foi membro do bando de Lampião, mas por amor salvou a vida de
Filipe do próprio capitão], no dia seguinte já em terras da Bahia, Filipe caiu na
mão da força volante [os homens que caçavam Lampião e o cangaço], que o
amarrou a nó-de-porco a dois passos da mulher desarvorada, que a gritos,
coices e dentadas, serviu de pasto a todo um batalhão, estuprada ante seus
olhos vidrados, para depois ser retalhada a facadas, oferecida de bandeja aos
urubus. Logo ela, a criatura mais direita e mais honrada desde mundo!”
(DANTAS, 1993, p. 216).

Tal trecho serve apenas como uma sugestão, assim como os demais
apresentados nesse artigo para se trabalhar as obras de Francisco Dantas em
sala de aula. Fiz essa escolha, justamente para denotar os sofrimentos
vivenciados pelas mulheres naquela sociedade e naquele período. E o caso da
personagem Maria Melona me parece emblemático, ela casou-se com Filipe
antes da tragédia acima. Porém, Coriolano, acabou por espalhar boatos, falsos,
de que Maria estivesse traindo Filipe, e por isso ela acabou sendo expulsa de
casa e como única opção se juntou ao bando de Lampião. Por fim, em um último
sacrifício pelo amado marido, Maria o salva da fúria de Lampião, e acaba tendo
este final no mínimo trágico.

Por fim, será proposta a análise de um trecho da obra “Cartilha do Silêncio”,


nessa são contadas as histórias de diversos personagens da família Barroso e
de seu empregado Mané Piaba, todos residentes de Aracaju. A história começa
em 1915 e alonga-se até a década de 1970, perpassando diversos narradores
diferentes, como dona Senhora, Arcanja (cunhada e sobrinha de dona Senhora),
Remígio (filho de Arcanja com Cassiano, esse último filho de dona Senhora),
Mané Piaba (empregado da família desde a geração de dona Senhora) e por fim
Cassiano Barroso (pai de Remígio, viúvo de Arcanja, empregado de Mané Piaba
e filho de dona Senhora).
Dessa forma, proponho a análise do seguinte trecho, no qual Cassiano comenta
sua má relação com o filho, e atribui a isso a morte de Arcanja; “[Remígio] cobra
que ele fora negligente por não ter agido com mais urgência afanosa e mais
teimoso rigor em benefício de sua cura. Se é assim, lá se vai um argumento
irresponsável: como podia ele passar na frente se Arcanja era o pivô no comando 149
dele mesmo, e do filho, regulando o sobrado [casa na cidade] e a Varginha
[fazenda da família], quanto mais perante a si mesma? Se eu metesse os tampos
pra lhe levar a um sanatório de fora, então não era Arcanja quem ia se conformar!
Partisse desta boca a opinião mais fundamentada e carteira – no entendimento
da mulher, virava alvitre defeituoso e não servia pra nada. Arcanja desabonava
todas as empreitadas em que eu tomava a dianteira; só aceitava decisões
calçada nas razões que ela mesmo aduzia.” (DANTAS, 1997, p. 320).

Usando esses três trechos de base, pode ser feito um rico debate acerca das
questões de gênero, seja por parte da desigualdade, ou violência sofrida pelas
mulheres, e as posições por elas esperadas pela sociedade. Ou ainda, pelas
formas como elas resistem a esse tipo de opressão. Por fim, para finalizar a
sequência didática, proponho que o professor peça aos alunos para escreverem
os pontos que discutiram entre os grupos e acrescentarem se eles conseguem
ligar o que analisaram na obra literária com suas experiências no presente.

Assim, cada grupo teria 30 minutos para analisar cada um desses pequenos
trechos e responder aos pontos demandados, totalizando uma hora e meia para
tal atividade. Se seguindo a isso, seria realizado um breve debate acerca das
impressões de cada grupo acerca dos documentos analisados, e como eles
identificaram as questões provocadas pelo professor. Por fim, será entregue ao
docente em forma de tópico ou um pequeno texto, as impressões de cada grupo.
Para avaliação da atividade, sugiro ao professor perceber tanto o empenho do
alunado no debate e análise das fontes, quanto na elaboração dos tópicos.

A partir desde trabalho espero ter conseguido instigar meus pares a fazer uso da
literatura forjada por Francisco Dantas em suas aulas de História, ou até de
outras áreas. Afinal, buscando dar uma formação crítica em que os alunos
possam analisar e elaborar conhecimentos a partir de fontes, tenho em mente
que “A escolha dos materiais depende, portanto, de nossas concepções sobre o
conhecimento, de como o aluno vai apreendê-lo e do tipo de formação que lhe
estamos oferecendo.” (BITTENCOURT, 2004, p. 299). Portanto, o trabalho com
essa fonte literária buscou servir aos objetivos de discutir com afinco e
sensibilidade as questões relativas às desigualdades de gênero.

Referências biográficas:

Mestranda no Programa de Pós Graduação em História e Espaços da UFRN.


Graduada em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Desenvolveu pesquisa sobre Historiografia do IHGRN e trabalha com a
criação do espaço de memória da obra literária de Francisco J.C. Dantas. Integra
o Grupo de Pesquisa Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços.

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Estadual de Londrina, Londrina, 2011.

151
A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES
AFETIVO-SEXUAIS DO MARANHÃO
OITOCENTISTA 152

Laura Elisa de Albuquerque Leite Alves


e Nila Michele Bastos Santos
Introdução

A figura feminina foi por séculos colocada em um papel de submissão perante o


homem dentro das estruturas sociais de poder, ser mulher era - e ainda é – estar
exposta a sofrer com os mais variados tipos de abusos apenas por seu gênero.

No rol dos abusos a violência doméstica é uma que segue enraizada até hoje.
Por meio de uma construção patriarcal, meninas e mulheres foram ensinadas a
normalizarem essa violência, tal padrão comportamental foi-lhes imposto
baseado na objetificação feminina, na concepção de que uma mulher depende
majoritariamente de um homem e que, portanto, deve pertencê-lo. A veracidade
dessa informação se exemplifica a partir da investigação sobre o Maranhão
oitocentista, é possível perceber nas fontes do período que havia uma
dependência financeira, emocional e social por parte dessas mulheres, não
intencional, mas ainda assim constituída sob a ótica marginalizadora da
sociedade, que por muito tempo optou por invisibilizar e até anular a posição
dessas mulheres na História.

Nesse contexto, buscamos contribuir para compreender as vivências e


experiências das mulheres desse período no claro intuito de demonstrar que
estas foram importantes sujeitos da História e que jamais podem ter suas
existências e lutas apagadas. Para isso utilizaremos como referencias
bibliográfica os conceitos de afetividade, gênero e violência postos por Santos,
Butler e Arendt, com o intuito de compreender a construção social das violências
sofridas e os motivos de sua permanência na sociedade atual, além de
problematizar a forma como os jornais maranhenses do século XIX abordavam
a temática.

Sobre as afetividades e violências: os referenciais teóricos da pesquisa

Desse modo, é imperioso, entendermos que a afetividade é tudo aquilo que afeta
o ser-humano gerando internamente sentimentos e emoções. São das
afetividades tantos os sentimentos negativos quantos positivos, que são
responsáveis por gerar influenciar comportamentos,
“Quanto maior é o amor com que alguém imagina a coisa amada afetada em
relação a si mesmo, mas se glorificará, isto é, mais se alegrará. [...]. Mas supõe-
se que este esforço ou apetite é contrariado pela imagem da própria coisa amada
concomitante à imagem daquele a quem a coisa amada se uniu. Assim, [o
amante] será afetado de Tristeza, concomitante à ideia da coisa amada como 153
causa e simultaneamente à ideia do outro, isto é, será afetado de ódio com
relação à coisa amada e simultaneamente com relação ao outro, que ele invejará
por se deleitar com a coisa amada.” (SPINOZA, 1677)

Ao compreender isso podemos inferir que quando a afetividade de quem possui


o poder dentro da relação (nesse cenário o homem) não é correspondida, da
forma como esse indivíduo esperava, os sentimentos negativos que surgem
podem se refletir sobre seu objeto de desejo (no caso a mulher) sentindo
ameaçado ou frustrado este indivíduo pode, a luz de uma cultura que o ensinou
a sempre estar em uma posição privilegiada de poder, e que portanto, a mera
contestação de sua posição deve ser subjugada, o leva a agir de forma violenta
para seu objeto de desejo. Assim, por mais que essa mulher não tenha culpa, ou
sequer consciência, da forma em que ela afeta esse homem, ainda sim esta vai
ser culpabilizada por ele, pois nas relações de poder postas ele está acima delas.

“Foucault (2001) afirma que a violência pode ser um instrumento utilizado nas
relações de poder embora sejam fenômenos distintos, estão diretamente
relacionados, e que a chave para a compreensão da violência é a forma como
se concebe o poder. Assim, a violência surge como recurso ou alternativa para
manter a estrutura de poder. (OLIVEIRA. CAVALCANTI, 2017)”

É importante destacar que não se trata de algo da Natureza Humana, ao


contrário, por mais que o objeto de desejo o afete e os sentimentos sejam
gerados é a Condição Humana que o leva a se comportar de forma violenta com
a mulher pelo simples fato desta ser uma mulher, acarretando o que chamamos
de violência de gênero.

Deverás não existe uma definição específica para o termo “violência de gênero"
por isso a Organização das Nações Unidas (ONU) utiliza uma concepção mais
abrangente do conceito de violência contra a mulher para abordar a temática,
entretanto é válido ressaltar que violência de gênero e violência contra a mulher
não são necessariamente sinônimos, pois este último é apenas um dos vários
aspectos da violência de gênero, que pode se caracterizar como todo e qualquer
tipo de ato danoso feito contra a mulher baseado no gênero dela, podendo ter
várias facetas desde agressões físicas até emocionais.

Segundo Arendt (1969) a violência é aplicada em situações propícias como a


perda de autoridade, sendo utilizada como um instrumento de repreensão, e
embora a autora se refira somente ao poder público acreditamos que podemos
utilizar seus conceitos na esfera privada das relações que formavam o Maranhão
oitocentista. Nesse contexto, entendemos que o homem desse período usava a
violência como uma forma de manutenção do seu poder, era o modo que este
utilizava para se reafirmar dentro da relação retomando sua posição de
superioridade.

Por conseguinte, segundo Santos (2016) quando a afetividade criada entre os


sujeitos é oposta à desejada por quem tem o poder, a violência acaba sendo a 154
principal forma de resposta, assim o objeto de desejo também passa a construir
um vínculo afetivo com quem o deseja, podendo ou retribuir a agressão sofrida
com ódio por quem lhe causou dor, ou aceitar o afeto que é dedicado a ele,
buscando sobreviver e garantir o seu bem-estar. Esse tipo de violência nascida
da afetividade que era destinada às mulheres foi extremamente normalizado e
banalizado, outrossim essas mulheres também eram culpadas por sua condição,
mesmo ocupando a posição de vítima, já que composição machista do corpo
social as colocavam na subserviência, como pertences masculinos. (tem que
colocar as aspas e a pagina de onde está essa parte que é da minha dissertação
desse jeito a referência está errada).

A partir da leitura de artigos e dos referenciais teóricos clássicos sobre Gênero


e Violências de Butler e Arendt, respectivamente, se destacaram aqueles que
proporcionaram o cabedal teórico acerca dos conceitos de gênero e violência,
que são necessários para problematizar a documentação da pesquisa, no caso
os jornais maranhenses do século XIX, assim escolhemos discutir a noção de
gênero e sua desconstrução, na obra de Judith Butler, Problemas De Gênero:
feminismo e subversão da identidade (2003). O dualismo gênero/sexo é um dos
principais elementos debatidos, eles foram fundamentais para teoria feminista,
sendo o gênero visto como uma construção e o sexo como natural. Entretanto,
é nítido que o gênero continua a ser pressuposto, tratado como uma essência
atribuída ao sujeito mulher, assim como sexo. É nesse ponto que se constrói
questões e tentativas de ressignificação e dissociação de ambos os conceitos,
porque havia uma noção do gênero sendo derivado do sexo, e isso é
questionado por Butler, bem como a identidade da mulher, que era representada
restritivamente, unitariamente e em um certo padrão, o papel do ser feminino
dentro da sociedade era extremamente limitado e marcado por condições
desiguais entre homens e mulheres que só reforçavam uma manifestação de
poder estrutural e dominante do masculino.

Em sua obra, Butler propõe que o gênero, o sexo e a identidade, são construídos
socialmente,

“[...] o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como
preexistente à obra. [...] não há identidade de gênero por trás das expressões do
gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias
“expressões” tidas como seus resultados.” (BUTLER, 2003)
Ou seja, pela forma como o sujeito se apresenta, como ele se comporta, são as
repetições das ações ou gestos que lhes foi apresentado, no caso das mulheres
a sua construção social e sua posição de subserviência perante o masculino
propiciou que toda uma cadeia de violência baseada no seu gênero fosse criada
e normalizada dentro da sociedade patriarcal.

O percurso da pesquisa

Optamos por uma pesquisa exploratória com uma abordagem de caráter 155
qualitativo, ela seguirá a perspectiva fenomenológica, uma vez que a realidade
não é um objeto passível de ser explicada, mas sim interpretada, comunicada e
compreendida (GIL, 1999, p. 32), o estudo se concentra no entendimento da
dinâmica das relações afetivo-sexuais que produziram violências, nós utilizamos
somente dois procedimentos técnicos: A pesquisa documental e Bibliográfica.
Os documentos que servem de arcabouço para nosso projeto são as páginas
policiais dos jornais maranhenses do século XIX, a escolha dessas páginas se
deu pelo fato de que eram nelas que conflitos entre homens e mulheres que se
relacionavam de forma afetivo- sexual eram descritos, pois não eram raras as
vezes que tais desentendimentos precisavam da interferência de terceiros, no
caso a polícia, tabulamos o máximo de ocorrências encontradas nos jornais por
meio de palavras-chaves como mulher, desordem e polícia dentre outras, para
facilitar a busca por esses relatos.

A documentação é datada entre os anos de 1800 a 1899, uma vez que esse
período corresponde a uma importante fase da sociedade maranhense, sendo
registros extremamente ricos em informações historiográficas da época.
Entretanto, por se tratarem de fragmentos do todo, muitas vezes não sabemos
ao certo qual tipo de vínculo afetivo está sendo descrito neles, o que dificulta a
compreensão dos documentos, então é necessário uma análise minuciosa para
que possamos lê as entrelinhas dos jornais, a fim de entendermos tais relações.
O acesso aos dados documentais é feito pela própria internet, por meio de um
corpo de registros que podem ser encontrados de forma online na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional, alguns exemplos dos jornais utilizados são:
Publicador Maranhense, A pacotilha e A Bandurra. Já parte da pesquisa que tem
como base os aspectos bibliográficos são feitos a partir dos referenciais teóricos
de gênero, afetividade e violência que se baseiam nos estudos e conceitos de
Judith Butler, Nila Michele B Santos, Hannah Arendt, respectivamente, e se dá
por meio de pesquisas por obras e artigos que tenham ligação com o projeto,
desse modo nos orientamos pela história cultural da sociedade que fornece
incontáveis pontos de vista diferentes.

Buscamos então nesse estudo, nos focar nas relações afetivo-sexuais entre
homens e mulheres que causaram eventos violentos o suficiente para que a
interferência de terceiros fosse necessária e consequentemente registrada nas
páginas policiais, apesar de que esse tipo de pesquisa documental se torna
complicada, visto que possuímos apenas fragmentos de todo o contexto, o que
acaba impossibilitando saber qual era o nível afetivo dos envolvidos, ou seja se
são ou não um casal. As páginas policiais dos jornais Maranhenses do século
XIX são essenciais para a pesquisa, pois são nesses documentos que podemos
encontrar os conflitos entre casais que precisaram da intervenção policial, um
exemplo disso é a edição de 19 de fevereiro de 1843 pelo jornal Publicador
Maranhense:

“A 3º patrulha composta dos soldados da 2º companhia nº 114 José Antônio de


Moraes rego, e da 3ª nº 221 Lino Gonçalves Vieira, prendeu ao ½ dia o paisano
cego Basilio Francisco Xavier, e a mulher branca Francisca Benedita da Costa, 156
por estarem em desordem e querer o dito cego incendiar a casa em que mora a
mencionada Francisca Benedita. A molher é concubina do cego e morão juntos.
Forão soltos depois de admoestados”

Sabemos que as violências presentes nos documentos que analisamos


possuem sua própria historicidade, todavia isso não nos impede de
problematizar a forma como os casos apresentados eram tratados, a fim de
colaborar para a quebra de pensamento arcaico e tradicional que sobre o papel
feminino e a normalização da violência de gênero. À vista disso, nossos
principais objetivos dentro da pesquisa são concentrados em perceber o que são
e como as violências de gênero são formadas, investigar as correlações entre
afetividade e violência, catalogar o maior número possível de conflitos que
tiveram intervenção policial e foram relatados nos jornais do século XIX,
identificar na documentação tipos de conflitos que permanecem até hoje e por
fim contribuir para ampliação de estudos que valorizam a equidade de gênero.

Registro dos jornais do século XIX

Acreditamos que as violências de gênero estão diretamente relacionadas aos


vínculos afetivos dos indivíduos envolvidos, tal acepção proveio das pesquisas
bibliográficas e documentais já realizadas por outros. Todavia, quando se trata
das páginas policiais dos Jornais Maranhenses do século XIX temos uma grande
limitação em saber se os conflitos relatados pertenciam a casais que se
relacionavam de forma afetivo-sexual ou a desconhecidos. No total foram
pesquisados 127 jornais e destes somente 13 apresentam os tipos de
desentendimentos que procuramos.

Especificamente foram: 56 exemplares do Publicador Maranhense, com 8 casos


encontrados, 30 jornais de A Pacotilha com apenas 1 caso encontrado, 12 da A
Bandurra também com só 1 caso, 7 de O Progresso: Jornal político, litterario e
commercial do Maranhão com só com 1 caso, 5 do O Telegrapho também com
só com 1 caso, 2 jornais da Argos da lei com 1 caso encontrado, e 7 do Farol
Maranhense, 4 de A Cigarra, 3 de O Conciliador do Maranhão e 1 do O
Despertador Constitucional: Liberdade e Obediências às Leis todos sem nenhum
caso encontrado.

A grande dificuldade em encontrar mais casos nos jornais é que mesmo usando
palavras-chaves uma grande parcela deles se encontravam em um estado
deteriorado o que somado ao uso de uma linguagem mais arcaica prejudica
bastante a leitura e interpretação dos documentos.
Fundamentando-se no número limitado de casos encontrados é possível
perceber que mesmo quando abordados, esse era um tema tabu, em somente
1 dos casos que encontramos há uma determinada crítica ao homem que
cometia os atos violentos, essa era a edição de 14 de junho de 1825 do jornal
Argos da Lei:
157
“[...] Pergunto agora se também não é indecente e escandaso (além de cruel) o
despir-se uma mulher n’ uma praça e darem lhe surras e surras? E tanto peior,
que a praça em que se fazem taes sevicias, é habitada em rodas por familias
honestas, a cujo os olhos se deve roubar tão indigno epectaculo.”

Contudo, é possível que a crítica se dirija mais a “imoralidade” de despir a mulher


em praça pública que a violência propriamente dita, pois o autor se refere a
“famílias honestas” que presenciaram a violência, tratando como uma forma
escandalosa que outras pessoas tenham visto o que aconteceu na praça, ou
seja poderíamos inferir que a crítica está em tornar público o que deveria ser
tratado no privado e não necessariamente à crueldade do ato em si.

Outrossim, em 7 dos jornais os nomes das mulheres não chegam a ser citados,
um exemplo disso, é um dos casos achados no jornal Publicador Maranhense
de 1 de setembro de 1851 explicita o seguinte trecho:

“Os soldados da 2.° companhia. 229 Pedro Antonio do Rego, conduzirão preso
ao quartel ás 9 horas da noite, por mandado do Inspector de quarteirão n 46
João Fernandes Barreto, o Soldado do meio Batalhão do Pianhy Vicente Jacaré,
por estar espancando uma mulher cuja o nome ignora-se, e ferir a um Soldado
do referido Batalhão que agia em socorro da dita mulher” (grifo nosso)

É possível perceber a invisibilidade da figura feminina nesse cenário, pois o texto


chega literalmente a ignorá-la focando apenas no soldado que interferiu na
agressão, mas não podemos anular as formas de resistência delas, muitas
dessas mulheres lutaram contra o papel de submissão que lhes fora imposto,
utilizando de diversas estratégias para sobreviver, que poderiam ir desde a
aceitação da afetividade que era direcionada a elas, até tentativas de defesa
física.

Considerações finais

O presente trabalho é um estudo feito com base na leitura das entrelinhas de


fragmentos históricos presentes nas páginas policiais dos jornais maranhenses
do século XIX, tabulamos o maior número possível de conflitos que precisaram
da intervenção policial e foram registrados na documentação, pois buscamos
com isso compreender a violência de gênero nas relações afetivo- sexuais da
época, contudo o estudo do passado também nos permite problematizar temas
contemporâneos e assim questionar sobre os tipos de violência contra a mulher
dos dias de hoje.
Segundo a Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE/MA), de janeiro a
outubro de 2020 foram registrados 2400 casos de violência contra a mulher, esse
número um extremamente alarmante, ele equivale a um total de 300 casos por
mês. Fazendo um paralelo com os casos dos jornais, percebe-se que embora já
tenham se passado 2 séculos do período que estudamos e investigamos os
casos policiais, a violência contra a mulher ainda persiste vigorosamente. Por 158
vezes, essa violência ocorre no campo privado das relações afetivas-sexuais de
casais, isso implica que, juntamente com tantas outras situações em que a
mulher é subjugada, a noção do homem como dominador e da mulher como
dominada ainda perdura.

Logo precisamos ampliar os debates e avançar nas lutas de uma educação


antimachista e com equidade de gêneros de modo que alunos e alunas possam
perceber que determinados atos ou mesmos ditados como “em briga de marido
e mulher, ninguém mete a colher” perpetuam e naturalizam as violências de
gênero entre casais e que os conflitos entre estes, por mais que possam
pertencer ao campo do privado, jamais podem ameaçar a dignidade humana e
que, portanto, precisam ser detidos.

Assim estaremos ampliando e treinando olhares críticos sobre esse tipo de


violência e assim preparar meninas e meninos para combater o preconceito e
desigualdade entre os gêneros.

Referências biográficas

Nila Michele Bastos Santos, Doutoranda em História (UEMA), Mestra em História


Social (UFMA), professora EBTT de História no Instituto Federal do Maranhão -
Campus Pedreiras, Integrante do NEABI-IFMA e Coordenadora do LEGIP-
Laboratório de Estudos de Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail:
nila.santos@ifma.edu.br

Laura Elisa de Albuquerque Leite Alves, Bolsista do projeto financiado pelo


CNPQ/ IFMA do EDITAL PRPGI 08/2020 - Aluna do ensino médio integrado ao
Curso de Petróleo Gás do IFMA campus Pedreiras. Membro do Neabi Campus
Pedreiras e do Laboratório de Estudos de Gênero do IFMA campus Pedreiras -
LEGIP. E-mail: laura.alves@acad.ifma.edu.br

Referências bibliográficas

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Drummond. Digitalização: 2004. Disponível
em: http://pavio.net/download/textos/ARENDT,%20Hannah.%20Da%20Viol%C
3%AAncia. Pdf

________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad.


José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Argos da Lei. São Luís. 14 de junho de 1825. Disponível em:
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BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE/MA). São Luís, 2020. G1 MA.


Disponível em:
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Maranhão. Caxias, 15 de janeiro de 1847. Disponível em:
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OLIVEIRA. Roseane. CAVALCANTI. Elaine. Políticas públicas de combate e


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SANTOS, Nila Michele Bastos. Paixões, poderes e resistências: as relações de


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Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História/cch,
Universidade Federal do Maranhão, São Luís - Ma, 2016. 160 f.

SPINOZA, Benedictus. Ética demonstrada em ordem geométrica e dividida em


cinco partes que tratam. 1677. Tradução Roberto Brandão. Disponível
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Demonstrada-a-maneira-dos-Geometras-PT-BR.pdf
EDUCAÇÃO E GÊNERO: SUJEITOS E
SUAS REALIDADES
Leandro Cordeiro da Silva 160

Na atual conjuntura brasileira, as universidades, as escolas e as demais


instituições de ensino estão profundamente marcadas por grandes
desigualdades sociais. Nesse contexto, essas diversidades são distinguidas pela
cor da pele, pela cultura, pela origem, pela classe social, pela identidade de
gênero, pela sexualidade, entre outros marcadores sociais. A prática do
preconceito e da discriminação em instituições laicas e para todos acaba por
acarretar para os alunos e alunas, não apenas o difícil acesso à educação, mas
também sua permanência tanto no nível médio como no superior. Evidentemente
os mais atingidos/as são os alunos e alunas que pertencem aos grupos de
sujeitos marginalizados pela sociedade.

Segundo Miguel Arroyo (2011, p. 147), “são sujeitos de história, culturas, valores
e conhecimentos e exigem reconhecimentos.”. Por muito tempo a pluralidade
dos sujeitos foi ocultada pelos currículos de formação docente deixando essa
complexa diversidade ficar à margem sob um termo de uma identidade genérica,
a identidade escola e o famoso termo “aluno”. E como sujeitos exigem direitos
ao reconhecimento, sabendo que lhe são garantidos em diversos e diferentes
espaços; mas ainda nos encontramos numa sociedade de grande
conservadorismo, mesmo nomeada por muitos de sociedade liberal. Partindo
desse pressuposto as escolas reconhecem esses sujeitos, mas nunca na plena
forma de igualdade, fazendo com que esses sujeitos plurais permaneçam na
forma de submissão perante a sociedade.

Segundo Sousa Santos citado por Arroyo (2011, p.149), “todos os


conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos”, então se houvesse o
reconhecimento dessa rica diversidade de sujeitos plurais os currículos também
seriam enriquecidos, fazendo com que o modelo arcaico e conservador fosse
quebrado. Ao trazer os sujeitos marginalizados pela sociedade para os currículos
isso aproximará cada vez mais mestres/as e alunos/as, promovendo a troca de
saberes e experiências, o aprender e o ensinar e o respeitar das realidades dos
diferentes sujeitos que compõem a escola e não só de realidades distantes e
abstratas.

Quando nos referimos à educação em gênero, o movimento LGBTQI+ nos traz


uma grande problematização, e para entendermos melhor devemos saber que
esse movimento, é formado por um grupo de indivíduos que não estão inseridos
na cultura sexual e de gênero dominante (os homens e mulheres Cis
Heterossexuais). A sigla representa os sujeitos pertencentes a esse determinado
grupo (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, Queers, Intersexuais
e o sinal de +, engloba os assexuais, pansexuais, binários, não binários, entre
outros).

Na cultura opressora e preconceituosa, propagada pela sociedade conservadora


em que vivemos, se faz difícil o indivíduo compartilhar de diferentes valores; a 161
visibilidade da comunidade LGBTQI+ está aumentando, e mesmo assim ainda
vemos com frequência inúmeros casos de violência, agressões físicas e
psicológicas, além de inúmeras mortes por dia. Esse movimento foi criado para
lutar por diversas causas, entre elas estão o direito ao casamento homoafetivo,
à adoção, à igualdade na questão de dignidade no mercado de trabalho e
possibilidade de ocupar diferentes espaços, entre outras coisas, dando ênfase
ao famoso reconhecimento.

As três principais instituições que compõem a sociedade têm por si só a própria


disseminação do preconceito e do ódio aos sujeitos plurais, são elas: as
instituições de ensino, a igreja e a família. Todos sabemos que as escolas têm
um papel fundamental em nossa sociedade, são dos mais importantes espaços
de formação para cidadania e de socialização de crianças e adolescentes.
Porém, um grande problema que se encontra nelas é a dificuldade de lidar com
a diferença existente em nossa sociedade, principalmente aquelas ligadas à
sexualidade e ao gênero. Essa dificuldade é extremamente prejudicial, pois
acarreta problemas como bullying e atrapalha na formação, no ensino e na
aprendizagem dos alunos e alunas, sem dizer na dificuldade do fortalecimento
de uma sociedade em que a cultura da diversidade seja respeitada e valorizada.

Uma pesquisa feita pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da


USP) atendendo ao pedido do Ministério da Educação (2009), mostra que os/as
homossexuais negros/as e pobres são as principais vítimas de bullying e
discriminação no ambiente escolar. Nessa pesquisa a FIPE, mostrou que grande
parte da discriminação e preconceito no âmbito escolar é contra a comunidade
LGBT, negros/as e pobres, tendo um percentual de 40%. Isso leva as minorias
a terem que enfrentar dificuldades cotidianamente precisando lutar contra o
preconceito em um ambiente que a princípio deveria ser agradável e de
acolhimento, um lugar de bem estar e de constituição de saberes e laços de
amizade.

Uma boa forma de combate à discriminação e preconceito no ambiente escolar


é a inclusão de trabalhos sobre identidade de gênero, identidade social, e
sexualidade. A inclusão desses trabalhos pode ser dar na forma de rodas de
conversas e palestras, ressaltando que isoladamente não cumpre uma
suficiência, embora possamos a configurar como um grande passo, levando em
consideração o grande tabu ao ser tratar desses temas nas instituições escolares
do nosso país. Trazemos em grande ênfase que o ideal seria a ocorrência de
uma reconfiguração dos currículos para que esses componentes façam parte
obrigatória das disciplinas escolares. O acompanhamento psicológico nas
escolas, também se faz de grande valia nesse combate a discriminação de
gênero, assim como a diversas outras ações discriminatórias que ocorrem no
ambiente escolar, fazendo com que os alunos sanem suas dúvidas sobre a sua
própria identidade e passem a olhar as diferenças com respeito.

Todos/as sabemos que a ação proativa de professores/as, gestores/as e


diretores/as das instituições escolares pode contribuir para a redução da 162
homofobia e até melhorar o clima escolar. Para combater o preconceito e a
discriminação de gênero e sexualidade, o governo federal nos anos dos
governos do PT (Partido dos Trabalhadores) teve como iniciativa investir na
produção de ações e materiais didáticos voltados à formação docente. O projeto
‘Escola sem homofobia’ (BRASIL, 2009) que causou na sociedade uma enorme
problematização também ficou conhecido pejorativamente como o kit gay e foi
vetado em 2011.

Ressalto que a instituição escolar é um espaço privilegiado, na qual sujeitos às


margens da sociedade e que nela sofrem, precisam sentir-se seguros e
acolhidos. E em relação ao que diz respeito ao material didático educativo do
projeto “Escola sem homofobia”, que apelidaram de forma pejorativa como “Kit
gay“, ele tinha como objetivo problematizar relações dos alunos e alunas,
uns/umas com os/as outros/as para tentarmos discutir e solucionar o problema
de uma falta e de uma dificuldade de combate à homofobia nas escolas, assim
também trazendo abordagens e reflexões acerca de sexualidade e Gênero no
contexto educacional.

Denominado como “kit gay” pelo atual governo Bolsonaro, o projeto “Escola sem
homofobia”, foi pensado e teve início através de um programa que visava
combater a violência contra LGBT+ nas escolas. A criação do projeto e toda
articulação percorreu o governo do PT, desde o ano de 2004. Embora toda
importância e relevância desse projeto que poderia impactar positivamente as
vidas dos alunos e alunas, sujeitos sendo eles marginalizados ou não; em 2011,
o projeto foi barrado e depois suspenso pelos representantes conservadores do
Congresso Nacional que tinham como premissa que o conteúdo presente no
projeto estimularia o “homossexualismo” – cabe aqui ressaltar que o uso desse
termo em lugar de ‘homossexualidade’ já demonstra desconhecimento e
preconceito das pessoas envolvidas na crítica à proposta educacional inclusiva.

Quando se levanta o discurso sobre o projeto ‘Escola sem homofobia’, as duas


narrativas de análise obtidas são opostas, uma com discurso favorável e coeso
aos conteúdos abordados no projeto e do outro lado, uma narrativa conservadora
da desinformação, preconceito e de um jogo político. O projeto seria de grande
valia ao levar a discussão de gênero e sexualidade para as escolas, pois para
além de ajudar os alunos e alunas a se identificarem como sujeitos com direito
à dignidade, poderia também combater as injustiças criadas a partir de uma
supremacia heterossexual. O projeto se tornou um jogo político usado nas
campanhas eleitorais pela extrema direita contra os candidatos ou os partidos
de esquerda, principalmente os vinculados ao partido PT. Nas campanhas, de
forma errada e maliciosa, dissimularam que o projeto iria ensinar seus filhos e
filhas a serem homossexuais, e levando em consideração a sociedade patriarcal,
homofóbica e machista existente, tal afirmativa causou grande alvoroço.

O ‘Caderno Escola sem Homofobia’ está disponível no site Nova Escola


(SOARES, 2015). É importante conhecê-lo para compreender a proposta de
educação inclusiva nele presente. O material é composto por três capítulos, no 163
primeiro explicita os conceitos de gênero, diversidade sexual e homofobia,
apresentando também as lutas pela cidadania LGBT. No segundo capítulo,
apresenta reflexões sobre a homofobia no contexto escolar, refletindo sobre
práticas escolares e currículo. No terceiro, aborda a diversidade na escola
promovendo o pensar sobre uma escola sem homofobia.

O Plano Nacional de Educação (PNE, 2011) deveria referenciar a promoção da


igualdade de gênero, racial, regional e de sexualidade. Porém, tramitando no
Congresso Nacional, as mudanças que compuseram e escrita da versão final
preconizam a promoção de cidadania e a erradicação de todas as formas de
discriminação de maneira genérica, retirando termos como gênero e sexualidade
do texto, o que promoveu também as alterações nas referências em planos
estaduais e municipais de educação. Dos 23 estados brasileiros, 10 não
mencionaram a questão de identidade de gênero e/ou sexualidade em seus
planos. (Aprendizagem Em Foco, 2016)

As publicações infanto-juvenis de importância para as políticas anti homofóbicas


e anti discriminação de gênero, poderiam tornar a sala de aula um lugar seguro,
onde os alunos e alunas poderiam se expressar sem sentir que seriam
maltratados por serem quem são. É importante ressaltar que as escolas devem
abordar situações de desigualdade no ambiente escolar e criar condições de
igualdade, sem procurar estereotipar as crianças que são diversas, respeitando-
as. Reproduzir uma cena de falsa igualdade só silencia e mascara as
desigualdades em nome de supostas normalidades.

Gênero também deveria ser uma categoria de estudo a ser incorporada nos
currículos e, visando a sua importância na sociedade como crítica e reflexiva e
na ciência como forma de pesquisa e análise. Já em relação à realidade das
universidades, a autora Joana Maria Pedro (2005), escreve sobre a entrada da
categoria de análise “gênero”, como uma de várias narrativas a se estudar na
história. Essa narrativa permite compreender que os pesquisadores e
pesquisadoras nos estudos de gênero observam as relações entre homens e
mulheres analisando a diferença em seus contextos históricos diversos. Tais
reflexões devem também ganhar o espaço escolar.

Referente à importância desta narrativa o campo da história faz o movimento de


trazer uma imersão ao passado oferecendo essa nova perspectiva das questões
velhas (um novo olhar sobre a história, de uma nova narrativa); tornar as
mulheres e outros sujeitos visíveis na história, assim como tudo que engloba o
conceito de gênero, estabelece uma distância analítica entre a linguagem fixada
no passado e a própria terminologia, tanto nas instâncias política, social,
histórica, econômica e principalmente de poder. Esse novo olhar de pensar a
história, assim como a inserção dessas discussões dentro dos currículos
escolares, nos abre possibilidades para a reflexão sobre as estratégias políticas
do tempo presente (feminismo, Movimento LGBTQI+, Queers, entre outros) e
um futuro de utopia.
164
Referências biográficas:

Leandro Cordeiro da Silva é graduando em História pela Universidade Federal


do Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina e bolsista PIBID – Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.

Referências bibliográficas:

APRENDIZAGEM EM FOCO. Silêncio da escola em relação à diversidade


sexual prejudica a todos. São Paulo, SP: Instituto Unibanco, n.11, mai. 2016.
Disponível em: https://www.institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-
foco/11/index.html. Acessado em: 13/04/2021.

ARROYO, Miguel. A emergência dos sujeitos na sociedade e na escola. IN:


ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. 5 ed. Petrópolis,RJ: Vozes,
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BRASIL. Caderno Escola sem Homofobia. Brasil sem Homofobia – Programa de


Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e Promoção da Cidadania
Homossexual. Brasília: Ministério da Educação, 2009. Disponível em:
https://nova-escola-
producao.s3.amazonaws.com/bGjtqbyAxV88KSj5FGExAhHNjzPvYs2V8ZuQd3
TMGj2hHeySJ6cuAr5ggvfw/escola-sem-homofobia-mec.pdf. Acessado em:
13/04/2021.

BRASIL. Ministério da Educação – MEC, Instituto Nacional de Pesquisas


Educacionais – INEP. Projeto de estudo sobre ações discriminatórias nome
escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial,
gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, Sócio econômica e
orientação sexual. Produto 07. Relatório analítico final. Coordenador
responsável: MAZZON, José Afonso. São Paulo, maio de 2019.

Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade (2010).


Unesco: bit.ly/Orientacao_ Unesco_sexualidade

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na


pesquisa histórica. História, São Paulo, v. 24, N. 1, p. 77-98, 2005.

Pesquisa Nacional Diversidade na Escola (2009). MEC e Fipe/USP: bit.ly/


pesquisaDiversidadeEscola.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, 16(2): 5-22, jul/dez. 1990.

SOARES, Wellington. Conheça o “kit gay” vetado pelo governo federal em 2011.
Nova Escola, 01 de fevereiro de 2015. Disponível em:
https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo- 165
federal-em-2011. Acessado em 27/04/2021.
PSICOLOGIA E ERRÂNCIA
FEMININA
Luciana Codognoto da Silva 166

Introdução

Nosso interesse pelo tema “mulheres, errâncias e nomadismos” surgiu a partir


de nosso ingresso no Grupo de Pesquisa “Figuras e Modos de Subjetivação no
Contemporâneo” (cadastrado no CNPq) e filiação a uma das linhas de pesquisa
do Pós-Doutorado em Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - UNESP/Assis, voltada à investigação dos processos de
subjetivação constituídos em torno das condições de mobilidade e dromologia
femininas contemporâneas.

Para Justo (2011), Nascimento (2012) e Freitas (2014), o que diferencia


andarilhos e trecheiros seria justamente o grau de deambulação, ou seja,
enquanto que os andarilhos buscam abrigos em pontos fixos ou em
determinados lugares de rodovias e acostamentos de estradas e cidades, os
trecheiros visam apenas lugares de passagem, sendo a cidade o local de parada
para visitação ou para fins de ajuda para prosseguimento de sua viagem. Estas
figurações dromológicas, metamórficas, nômades e plurais visam indagar e
legitimar a ação destes sujeitos, sobretudo das mulheres na sociedade, tomando
como prova histórica, cultural e política a decadência das identidades ditas
estáveis e metafisicamente fixadas.

A partir dos estudos realizados sobre as mobilidades de andarilhos, trecheiros e


população em situação de rua, o objetivo deste estudo é discutir as questões de
gênero relacionadas à mobilidade, mediante relatos de experiências de mulheres
que vivem em condição de perambulação de cidade em cidade, passando a
abrigar-se, temporariamente, em um município de pequeno porte populacional,
localizado no interior do Estado de Mato Grosso do Sul (MS). Buscaremos
examinar, por meio da pesquisa qualitativa em Psicologia e a partir do método
cartográfico, como as mulheres, denominadas pela literatura científica de
trecheiras, vivem as diversas facetas da feminilidade em um espaço
radicalmente oposto àquele ambiente de confinamento e de subalternidade,
tradicionalmente reservado à mulher na nossa sociedade e cultura, a saber, o
espaço domiciliar, vinculado ao trabalho doméstico, à função materna e de
esposa subordinada ao marido.

Trajetividade e Errância Feminina: revisitando as pesquisas em Psicologia


Constatamos a inexistência de estudos, sobretudo da Psicologia, que retratam o
modo de vida de mulheres trecheiras. Para Costa (2005), a negligência em
relação às mulheres andarilhas ou trecheiras pode ser verificada pela extrema
carência de pesquisas e falta de quaisquer dados sobre elas em censos
demográficos ou outro tipo de levantamento de dados e estudos sobre população
e pela ausência de políticas públicas de assistência social dirigidas, 167
especificamente, para elas. Em nossos levantamentos bibliográficos
preliminares, verificamos que os estudos realizados, até o presente momento,
sobre trecheiros encontram-se vinculados às realidades locais do Estado de São
Paulo, sendo problematizadas, com maior frequência, por universidades, como
em (JUSTO, 1998; 2011; 2012; 2015), (NASCIMENTO; 2008; 2012) e (FREITAS,
2014).

O que encontramos, no campo da assistência social, são projetos e iniciativas


destinados a pessoas em situação de rua, cada vez mais crescentes no país,
principalmente a partir do ano de 2004, quando se deu a implantação do Sistema
Único da Assistência Social, criado pela Lei Orgânica da Assistência Social n°
8742 - LOAS, e que podem fazer alguma referência a trecheiros.

Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional sobre População em Situação


de Rua (BRASIL, 2008) apontam que esta população é composta
majoritariamente por homens, uma média de 82%. Estes dados ainda sofrem
interferência, quando percebemos que tal pesquisa, assim como tantas outras,
considera apenas algumas cidades de grande porte como fonte de dados oficiais
e estatísticos dessa população no país.

Quando recortamos, especificamente, andarilhos, trecheiros e questões de


gênero, fica ainda mais evidente a inexistência de estudos e pesquisas – seja no
âmbito acadêmico, seja no governamental – de mulheres trecheiras. No
levantamento realizado, encontramos as pesquisas de Tiene (2004), intitulada
“Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais”, de Alves (2013),
intitulada “As moradas de rua entram em cena: a violência contra a mulher
moradora de rua como uma das expressões da questão social” e de Rosa e
Brêtas (2015), denominada “A Violência na vida de mulheres em situação de rua
na cidade de São Paulo”. Trata-se de duas pesquisas vinculadas ao curso de
Serviço Social e uma, de Enfermagem, ligadas, restritamente, à população de
rua feminina, e não à temática específica de mulheres vivendo no trecho, se
deslocando de uma cidade à outra.

No âmbito da Psicologia, encontramos apenas uma pesquisa, referente à


dissertação de mestrado de Verônica Bem dos Santos, intitulada “Mulheres em
vivência de rua e a integralidade no cuidado em saúde”, defendida no ano de
2014, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
de Santa Maria - UFSM. Todas as pesquisas, antes mencionadas, estão voltadas
à problematização exclusiva da violência e da saúde coletiva de mulheres que
vivem em situação de rua, e não de trecheiras, centralizando suas análises em
grandes centros urbanos, como as cidades de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE),
e um munícipio que se constitui em um importante pólo universitário no Estado
do Rio Grande do Sul (RS).

Observamos que existe uma quantidade expressiva de pesquisas sobre pessoas


em situação de rua, poucas sobre andarilhos e trecheiros, concentradas no
grupo de pesquisa da UNESP-Assis, porém, não localizamos, em nossos 168
levantamentos, nenhuma pesquisa específica sobre trecheiras ou andarilhas
conduzida na perspectiva dos estudos de gênero. Até mesmo as pesquisas com
mulheres em situação de rua não privilegiam, com maior clareza, a questão
específica do gênero e do trecho.

A partir desses dados, consideramos complacente levar adiante as nossas


pesquisas com mulheres trecheiras, publicando parte dos seus resultados em
anais de eventos científicos e em publicações de dois artigos científicos em
revistas bem conceituadas em Psicologia no Qualis/Capes, a saber, a Revista
Psicologia & Sociedade (SILVA; JUSTO, 2020), ligada à Associação Brasileira
de Psicologia Social, e a Revista Subjetividades (SILVA; JUSTO, 2020),
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de
Fortaleza.

Metodologia

Recorremos à abordagem qualitativa de pesquisa em Psicologia. Por meio da


cartografia, realizamos entrevistas abertas com quatro mulheres trecheiras, que
procuravam abrigo na Casa do Migrante de um município de pequeno porte
populacional, localizado na região sudeste do Estado de Mato Grosso do Sul –
MS. São mulheres com idades entre 18 e 59 anos, que buscavam abrigo
temporário na Instituição mediante demanda própria. Em sua maioria, eram
consideradas pessoas mais fechadas e de pouco diálogo e contato afetivo e
interpessoal, se comparadas aos homens, que também passavam pela
Instituição.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e, posteriormente autorizadas pelas


participantes, mediante a assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre
Esclarecido – aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) de uma
Universidade Pública do Estado de São Paulo. Elas foram realizadas nas
dependências da Casa do Migrante do referido município, em uma sala
reservada, tendo a duração de, aproximadamente, uma hora. Tivemos, como
eixos disparadores, os seguintes pontos: perfil das participantes, momento de
ruptura, acontecimentos e conflitos que deflagraram a deserção, vida no trecho
e perspectivas de futuro.

Por questões éticas, optamos em não revelar os nomes das participantes, bem
como do município onde ocorreu esta pesquisa, destacando apenas a sua
localização geográfica.

Resultados e Discussões
As experiências de nomadismo ou de errância, vividas por aqueles classificados
como “pessoas em situação de rua”, “trecheiros”, “andarilhos” e outros
transumanos distanciados da norma, recebem rotulações pelas quais seus
atores são equivocadamente reconhecidos e tratados socialmente. Via de regra,
são percebidos como “vagabundos, loucos, sujos, perigosos e coitadinhos” 169
(JUSTO, 1998), ou ainda, como “pilantras, aproveitadores, coitados, sofredores
e filhos desgarrados de Deus” (JUSTO, 2011).

Em Nascimento (2012) e Justo (2012), vemos que, mesmo em uma época de


constantes movimentos e transformações, a errância se configura como um
fenômeno complexo e multifacetado, no qual os andarilhos e trecheiros passam
a serem vistos como um de seus exemplos mais radicais. Assim,
“vagabundagem, doença mental, desvinculação familiar e opção de vida”
(NASCIMENTO, 2008; 2012) e tantas outras denominações que: “[...] fugindo à
racionalidade citadina moderna dominante, passam a ser vistos e tratados como
enjeitados e indesejáveis, carregando consigo a marca indelével da
discriminação do senso comum” (FREITAS, 2014, p. 19).

Para Justo (2015), são muitas as condições que levam as pessoas em situação
de nomadismo a desancorar de uma vida territorializada. A busca por um
trabalho, o “fazer bicos”, a procura por serviços de assistência social para
completar a viagem e a condição financeira estão entre as principais. Mas
também, não podemos nos esquecer de três importantes aspectos: a busca por
uma situação melhor de vida, a fuga dos problemas gerados por uma vida
indesejada e o mais evidente – as relações interpessoais e afetivas, permeadas
por formação ou não de vínculos e um possível compartilhamento de histórias
de vida entre essas mulheres.

Constatamos que a precarização e a divisão sexual do trabalho, a segregação,


o desemprego, a pobreza, a vivência de conflitos familiares, sobretudo a
violência estrutural e de gênrero contribuíram para que nossas participantes
optassem radicalmente pelos caminhos da errância, tal como apontam os
estudos desenvolvidos por Justo (1998) e Nascimento (2008). Mas também,
observamos que este caminho, muitas vezes, torna-se um ato de coragem,
sobretudo de muitas mulheres, de abandonar os referencias hegemônicos de
identidade feminina – como o casamento, a vida doméstica, a procriação e a
docilidade – para viverem cotidianos transitórios, inesperados e improvisados,
que rompem, drasticamente, com o modelo de mulher esperado, idealizado e
normatizado pela sociedade.

Acreditamos que um evento isolado, por mais desgastante que seja, não é, por
si só, o condicionante para a deserção, tal como apontam as pesquisas com
andarilhos e trecheiros, de Justo (2011), quanto com mulheres em situação de
rua, enfatizadas por Santos (2014) e Rosa e Brêtas (2015). Especificamente no
caso das mulheres trecheiras, observamos que tanto as histórias de vida de
Cristal quanto de Topázio foram marcadas por conflitos e divergências familiares
importantes, vividos em especial com as mães.

Logo, faz-se necessário pensar em tais pressupostos a partir de uma perspectiva


mais ampla, de forma a conceber não mais o termo mulher, mas mulheres no
plural, haja vista que cada uma delas carrega em si as marcas das relações de 170
poderes, pressupostos de saberes e também de resistências a dados modelos
considerados, até então, inquestionáveis em grande parte das instituições
regulatórias de produção e manutenção de certo modelo de sociedade, como é
o caso das mulheres que vivem em condição de errância, as chamadas
“mulheres trecheiras”.

Considerações Finais

Verificamos uma quantidade expressiva de estudos sobre pessoas em situação


de rua e pouca sobre andarilhos e trecheiros, concentrada no grupo de pesquisa
da UNESP-Assis, porém, não localizamos outras pesquisas sobre mulheres
trecheiras ou andarilhas conduzidas na perspectiva dos estudos de gênero e
Psicologia. Até mesmo as pesquisas com mulheres em situação de rua não
privilegiam, com maior clareza, a questão específica do gênero e do trecho e os
fatores que deflagraram o momento de deserção destas mulheres, as quais
passaram a viver como trecheiras.

Dentre os motivos que deflagraram a derserção estão: a violência de gênero


vivida, sobretudo na família, conflitos familiares, violência estrutural, decorrente
do desemprego e de falta de oportunidades para estas mulheres se inserirem e
permanecerem no mercado de trabalho, e o espírito de aventura, de lançar-se
por caminhos desconhecidos, tal como a vida no trecho.

Acreditamos que essa pesquisa contribuirá com os estudos de gênero,


focalizando um aspecto relevante dessa questão praticamente inexplorado:
contribuir com subsídios para a formulação de políticas e assistências públicas
voltadas às mulheres trecheiras, principalmente no âmbito da saúde e da
assistência social, para a situação de mulheres em situação de rua,
especialmente de trecheiras, deixando, assim, de privilegiar apenas os homens,
incluindo em suas ações e problematizações as particularidades do feminino em
um espaço historicamente ocupado e destinado aos homens – o lugar do
nomadismo, da transição, da ebulição e do movimento.

Referências biográficas

Dra. Luciana Codognoto da Silva – Professora Adjunta da Universidade Federal


de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPNA. Doutora em Psicologia e Pós-Doutorado
em Psicologia – UNESP/Assis.

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Campinas: Alínea, 2004
DESAFIOS EDUCACIONAIS: ENSINO
REMOTO E A SEXUALIDADE
FEMININA NA AMÉRICA 173

PORTUGUESA
Mariana Ponciano Ribeiro Rennó e
Nataly Souza Silva
O presente texto tem por finalidade socializar a experiência do Estágio
Supervisionado Obrigatório vinculado ao Programa Residência Pedagógica,
financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) realizado no ano de 2020. Será abordado, em específico, o
desenvolvimento de uma sequência didática enquanto regência aplicada pelos
alunos do último ano do curso de História da Universidade Estadual do Norte do
Paraná (UENP), campus Jacarezinho/PR. Serão evidenciados os desafios
encontrados durante esse processo, como o Ensino Remoto imposto devido à
pandemia da COVID-19, as novas tecnologias e plataformas como recursos
metodológicos e a temática de caráter sensível, que foi abordada.

Segundo Lima e Pimenta (2012, p.34) “O estágio se torna uma atividade


investigativa que a partir da intervenção no cotidiano escolar promove uma
reflexão por parte dos alunos, professores e da sociedade”. Entretanto, devido à
pandemia do COVID-19, nosso processo investigativo tornou-se prejudicado, e
não foi possível conhecer o espaço escolar físico. Todavia, enfrentando esse
desafio imposto por fator externo de calamidade pública, fez-se necessário
ampliar as lentes da investigação para um novo ambiente, em suma aqueles
ofertados pelo Google de forma gratuita, os tão mencionados nesse ano que se
passou: Google Meet, Google Sala de Aula, Google Drive e Formulário do
Google.

Nessa perspectiva é interessante mencionar Silva (2001), que compreendem a


Internet como um potencial democrático devido a sua constituição como um
espaço antropológico. Essa consideração se evidencia diante desse novo
cenário, no qual a internet vem desempenhando um papel fundamental para a
manutenção das relações sociais, onde inserem as de trabalho, entretenimento
e escolar.

Frente a essa realidade, o estágio foi realizado no Instituto Federal do Paraná,


campus Jacarezinho, aplicando a intervenção para os cursos sequenciais de
técnico em alimentos, técnico em elétrica, técnico em informática, técnico em
eletromecânica e técnico em mecânica, que estavam divididos em duas turmas
(turma A e turma B), sob a Unidade Curricular (UC): “Brasil Colonial: Política,
Economia, Cultura e Sociedade”, que já havia sendo desenvolvida pelo professor
preceptor. Aplicamos dentro dessa UC um recorte que versou sobre a
“Sexualidade Feminina no Brasil Colonial”. A intervenção foi desenvolvida em
um grupo que constava com três residentes, focando sobre a questão do gênero, 174
desenvolvendo-a em três momentos, divididos em Sexualidade no
Contemporâneo; Sexualidade no Brasil Colonial; e Sexualidade no Brasil
Colonial: um recorte racial.

A escolha do tema central ocorreu devido a emergência para a superação de


padrões repressivos da sociedade organizada pelo sexismo institucional. Já a
escolha da abordagem “sexualidade feminina no Brasil Colonial”, ocorreu pelo
fato de existirem permanências patriarcais, racistas, eurocêntricas e capitalistas
na sociedade, sendo primordial elucidá-las, propiciando críticas e reflexões.
Carneiro (apud Linhares 2005, p.23) evidencia tal permanência ao dizer que: “O
que poderia ser considerado histórias ou lembranças do período colonial
permanecem vivas no imaginário social e adquirem novas roupagens e funções
em uma ordem social supostamente democrática [...]”.

As intervenções desenvolveram-se buscando os seguintes objetivos: apresentar


a sexualidade no Brasil Colonial; compreender a objetificação e
hiperssexualização feminina; questionar o sistema patriarcal; apresentar o
debate racial; desconstruir estereótipos; enfatizar o respeito e a valorização dos
corpos negros; problematizar permanências e resistências; ressignificar a
sexualidade feminina.

Para efeito, dividíamos em três momentos que serão descritos a seguir. A


primeira intervenção síncrona versou sobre a Sexualidade Feminina nos dias
atuais, de forma interativa buscamos dar significado a temática, trazendo o aluno
pro polo ativo da construção histórica. Nessa aula compartilhamos experiências
do dia a dia sobre essa opressão de gênero, exemplificamos sobre
problemáticas envolvendo vestimentas, utilizamos memes e termos como o
famoso “Bela, Recatada e do Lar”, e problematizamos a temática junto aos
alunos. Para sustentar esse debate, utilizamos da ferramenta Formulário do
Google, pois por meio de perguntas estabelecíamos um diagnóstico dos
conhecimentos prévios dos estudantes.

Na segunda intervenção síncrona foi enfocado sobre a Sexualidade Feminina no


Brasil Colonial, de modo amplo, subtendido com destaque nas mulheres
brancas, partindo da questão problema: “Onde encontravam-se a mulher na
estrutura do Brasil Colônia?” Assim, foi frisado o recorte histórico temporal do
conteúdo, e a partir disso refletido sobre as permanências dessa estrutura
patriarcal. Em seguida, enfocamos o papel da mulher na estrutura colonial e os
meios, tais como a tríade: Igreja, Estado, e a Moral, que desenvolveram
mecanismos de repressão para, como indica, Emanuel Araújo (2018), “Domar a
megera”. Neste momento utilizamos como fonte alguns poemas do importante
poeta barroco do século XVII, Gregório de Matos, popularmente conhecido como
Boca do Inferno. Por fim, apresentamos e discutimos as possibilidades do
período para que as mulheres pudessem exprimir sua sexualidade diante de
tanta repressão, a partir de uma perspectiva cultural, como: as festas, as
vestimentas e práticas sexuais, como a sodomia.
175
Por fim, a sequência didática se encerra no formato assíncrono, utilizando como
ferramenta metodológica o PODCAST. Nesse momento é feito um necessário
recorte racial, dentro do mesmo período e da mesma temática. Intitulado
“Sexualidade Feminina no Brasil Colonial: um recorte racial”. O objetivo
primordial dessa intervenção foi problematizar ainda a desigualdade e opressão
de raça que atravessam as mulheres negras para além da repressão sexista.
Portanto, partiu-se da questão problema: “E as mulheres negras? Onde
encontravam-se nessa estrutura?”. A partir disso, buscamos refletir sobre a
existência, ou inexistência de Divisão Sexual entre mulheres negras e homens
negros em diferentes contextos do período, sendo esses: Trabalho; Resistência;
e Opressão. Retomamos ao poeta Gregório de Matos e seu poema intitulado: “A
carne e o espírito”, para questionar a objetificação e hiperssexualização dos
corpos negros e o mito da mulher negra “depravada”. Agregamos a esta
discussão a personalidade da Escrava Anastácia, como um objeto de estudo que
sintetizou toda a discussão desenvolvida ao longo da intervenção, uma vez que
se trata de uma escrava brasileira, brutalmente violentada, que resistiu
bravamente mesmo com uma mordaça de ferro em seu rosto. Ainda nesse
podcast, reafirmamos a existência de “Permanências e Resistências” do
movimento negro, e trabalhamos quanto a dualidade do empoderamento e do
racismo, através de multimídias, principalmente, músicas e videoclipes.
Finalizando a sequência didática com a ponte presente, passado e presente.

Durante as intervenções, buscamos o reconhecimento dos estudantes do ensino


médio como sujeitos ativos do processo histórico. Assim, no início e no final das
intervenções aplicamos avaliações diagnósticas que aferiram o grau de interesse
dos alunos pela temática e a atribuição de significado ao conteúdo apresentado.
Para tanto, desenvolvemos questões que abordavam o dia a dia dos alunos,
provocando-os a refletir sobre permanências do racismo e sexismo. Nesse
momento, buscamos a participação dos alunos, e instigamos essa participação
desenvolvendo questões criativas, com o auxílio de ‘memes’, por exemplo, como
forma de buscar empatia na cultura midiática conhecida pelos estudantes jovens
e adolescentes. Como apontado por Silva (2019, p. 176): “Em uma época em
que estudantes estão cada vez mais familiarizados com esse tipo de linguagem,
o uso da mesma para assimilar conteúdo representa uma válida iniciativa como
maneira de trazer professores e alunos a uma linguagem digital comum”. Com o
resultado do formulário diagnóstico foi possível traçar a melhor estratégia para
alcançar os objetivos da aula.

Foi aplicada no final das intervenções uma atividade avaliativa, desenvolvida


para aliar a criatividade e a criticidade, em consonância as atividades de
avaliação propostas pelo professor preceptor da Unidade Curricular. Foi pedida
uma atividade na qual o aluno deveria descrever, em um formato de poema, as
mulheres de seu tempo, já que como fonte histórica principal utilizamos os
poemas de Gregório de Matos, que descreveu as mulheres de seu tempo, a
partir de seu ponto de vista. As respostas das atividades foram satisfatórias, pois
recebemos 39 atividades, ultrapassando a média das nossas interações virtuais,
que não ultrapassavam um total de 15 estudantes presentes nas aulas 176
síncronas. As avaliações apresentaram de forma criativa a necessidade de
empoderamento e valorização das mulheres nos dias atuais, sempre
mencionando pontos abordados nas intervenções. A partir da atividade
verificamos que os objetivos pressupostos foram alcançados.

Contudo, a experiência de estágio remoto, evidenciou a já sabida, importância


do ensino presencial, fato inegável. Pois, o espaço escolar desempenha também
uma função social que é importante para o processo de ensino-aprendizagem.
Palú (2020, p. 101) aponta criticamente:

“[...] esse espaço não pode ser substituído por plataformas digitais,
principalmente associadas aos interesses neoliberais, mercantis cujos valores
não são a educação que promove a emancipação humana, uma educação de
qualidade social. O ensino remoto deve ser uma ferramenta a ser utilizada
somente em momentos de exceções na educação básica, como o atual.” (PALÚ,
2020, p.101)

No mesmo sentido, temos a metáfora de Mike Davis (2020, p. 5) “A Caixa de


Pandora está aberta, e o nosso implacável sistema econômico está tornando
tudo muito pior.”, que sendo interpretada no que diz respeito a educação é
importante ressaltar que a desigualdade social representa a maior dificuldade na
qual os professores e estagiários se deparam, atualmente, e tentam “manobrar”.

Todavia, com as dificuldades e os contratempos que o ano de 2020 enfrentou no


sistema educacional, o Residência Pedagógica se comprometeu em ser
realizado, agregando ao nosso currículo a experiência que consolidou-se como
única. Portanto, os residentes, os orientadores e o professor preceptor,
pensaram conjuntamente em reuniões de orientação nas possíveis metodologias
alternativas e estratégicas para inserção no contexto, sempre pensando no
melhor interesse do aluno e do processo de aprendizagem.

Com isso, ao trabalharmos coletivamente em ações de intervenção pedagógicas


nas aulas de História destinadas ao Ensino Médio auxiliamos os estudantes a
compreenderem historicamente a sociedade na qual estão inseridos, ajudando-
os a transformar sua realidade conscientemente. A educação é sempre
intencional, para tal, Moreno (2021) aponta que devemos promover atividades
teórico-metodológicas inteligentes, que fujam do simplismo e abalem idéias
concebidas, superando o autoritarismo. O autor nos ressalta que: “(...) ensinar a
pensar historicamente não formará pessoas que têm exatamente o mesmo
posicionamento político que o nosso, mas poderá possibilitar que cada um reflita
sobre suas atitudes, entendendo melhor a sua sociedade e a responsabilidade
que tem perante ela”. (2021, p. 34).

Foram muitas as dificuldades que encontramos diante desse contexto


pandêmico e o ensino remoto, desde a mudança nas metodologias até a
ausência de estudantes nas aulas online por diversos motivos. Mas um fator que 177
se destacou foi o uso da internet como um novo espaço antropológico, este que
potencializa novas interações e emerge com novas discussões, como apontado
por Silva (2001, p. 153): “Nestes novos espaços sociais geram-se novas
solidariedades, novos excluídos, novos mecanismos de participação, novas
formas de democracia, de negociação, de decisão, de cooperação, de
afetividade, de intimidade, de sociabilidade que potenciam a emergência de
sujeitos coletivos ou de inteligências coletivas conectivas.”

Mas esse espaço antropológico acaba que não oferecendo uma análise
completa sobre o ensino-aprendizagem dos estudantes e a eficácia das novas
práticas pedagógica propostas, por conta da ausência dos estudantes em muitos
dos espaços metodológicos utilizados. Outro fator que evidencia uma
problemática nesse espaço antropológico foi o déficit de políticas públicas na
formação do professor, denunciada no inicio das adequações dos calendários
escolares do ano de 2020 para o ensino remoto, pois a maioria não estava
preparada pra esse tipo de ensino (PALÚ, 2020, p. 94). Desse modo, Cordeiro
(2020, p. 10) aponta que “(...) nem todos os educadores brasileiros, tiveram
formação adequada para lidarem com essas novas ferramentas digitais,
precisam reinventar e reaprender novas maneiras de ensinar e de aprender”.

Em contrapartida as dificuldades expostas, a experiência do Instituto Federal do


Paraná, foram produtivas e recompensadoras para nossa formação como
licenciadas em História. Essa qualidade emerge devido ao Projeto Escolar de
currículo inovador aplicado. Esse currículo está de encontro com o currículo
flexível, que por intermédio da criação de Unidades Curriculares diversas, ocorre
o desengessamento do currículo tradicional, promovendo um ensino de
qualidade crítica e dinâmica distante da ótica “vestibulanda”.

Felizmente, a experiência permitiu crescimento profissional, frente a um novo


leque de opções metodológicas e curriculares pelo qual nos deparamos
desenvolvendo o projeto desde 2020 até o presente momento. Ainda, vale frisar
que a experiência se deu de forma gratificante, sendo possível, alcançar os
objetivos planejados para a aula. Percebemos que ao posicionarmos e exigirmos
criticidade no estudo da história na sala de aula, mesmo que virtual, e conseguir
efetivar a ponte “presente/passado/presente”, remetendo o conteúdo para a
realidade dos alunos, mais positivo será o processo de aprendizagem.

Para finalizar, é necessário reconhecer que nosso país ainda está longe de um
cenário ideal de educação com base no ensino remoto, dado que muitas escolas
e alunos enfrentam dificuldades sobre a conectividade e que o acesso a recursos
tecnológicos acaba se tornando privilégio apenas a algumas classes sociais,
bem como as metodologias e didáticas são um novo contexto que nem sempre
faz parte da realidade de todos os professores, que estão tentando se adaptar.
Porém, nem sempre isso se torna possível pela complexidade da nova situação
ou por falta de investimentos/recursos educacionais.

Referências biográficas 178

Mariana Ponciano Ribeiro Rennó, graduanda de História pela Universidade


Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Jacarezinho-PR.

Nataly Souza Silva, graduanda de História pela Universidade Estadual do Norte


do Paraná (UENP), campus Jacarezinho-PR.

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LEMOS, A.; PALACIOS, M. (orgs). Janelas do Ciberespaço. Porto Alegre:
Editora Sulina, 2001. p. 151 – 171. 179
“QUE SE CALEM!” (OS HOMENS): A
DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO
MISÓGINO POR CHRISTINE DE 180

PIZAN (1364-1430) NA OBRA A


CIDADE DAS DAMAS (1405)
Maristela Rodrigues Lima
Historiografia e História das Mulheres

A História das Mulheres proporcionou uma nova forma de análise histórica. O


século XX marcou um novo momento dentro do campo da historiografia, uma
vez que adicionou a esse campo as silenciadas e excluídas da História, as
Mulheres. A História que antes era apenas do homem branco e ocidental passou
a ter novas integrantes, integrantes que gradativamente foram sendo
reconhecidas e cujas vozes foram escutadas mesmo sobre o barulho dos
homens.

Ao longo do século XX a História das Mulheres tornou-se um campo definível,


no entanto, o percurso que as mulheres traçaram não foi nada tranquilo, uma
vez que estavam adentrando em um campo dito masculino. Cobrar por serem
objetos e sujeitos da história em uma sociedade formado com base no
patriarcado, desconstrói a noção de uma história única e verdadeira, e mais que
isso, evidencia que a história está incompleta e necessita de uma
suplementação, dado que o projeto da história das mulheres não foi algo simples,
como adicionar algo que faltava. Segundo Joan Scott, esse projeto “(...) é ao
mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento
radical dessa história” (SCOTT, 1992, p. 75), além de que o termo suplemento
“(...) sugere, não apenas que a história como está é incompleta, mas também
que o domínio que os historiadores têm do passado é necessariamente parcial”
(SCOTT, 1992, p. 79). Assim, os/as historiadores/as das mulheres têm um
trabalho pela frente, uma vez que a mulher sempre esteve em interação com a
sociedade, todavia, foi privada de ser compreendida, ouvida e lida, o que
ocasionou uma lacuna na história.

Portanto, ao estudar o campo da História das Mulheres, e principalmente da


Mulher Medieval, é de grande importância abranger o conceito de gênero, tendo
em vista que não é algo neutro, pelo contrário, a sociedade modifica a sua
maneira o que é ser homem e ser mulher, carrega em si construções culturais e
hierárquicas, o que acabou desfavorecendo o feminino. Segundo Klapisch-
Zuber, “aquilo que se convencionou chamar gênero é o produto da reelaboração
cultural que a sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define,
considera – ou desconsidera –, representa-se, controla os sexos biologicamente
qualificados e atribui-lhes papéis determinados” (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p.
11). Desse modo, os homens que detinham maior autoridade trataram de traçar
e subjugar o segundo sexo, não partindo das suas predisposições biológicas, 181
mas sim, a partir da ideologia. Destaca-se no final do Medievo Aristóteles e sua
influência no pensamento político e social, que resultou na dicotomia do feminino
e masculino baseado nos espaços público e privado, visto que a mulher se
encontra no espaço doméstico, enquanto que o homem se encontra com a
autoridade e autonomia política (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 12).

Assim, perante a exclusão e silenciamento da mulher medieval, durante esse


período foram propagadas calúnias e difamações sobre o feminino, o que
resultou na cultura misógina. Segundo Fonseca, “a prática do discurso
antifeminista medieval, muitas vezes representada pelo simples costume ou
gosto da denúncia pela própria denúncia” (FONSECA, 2012, p. 179). Dado que,
os homens da igreja são os principais a disseminar a aversão sobre a mulher,
sendo que “para eles estavam claríssimos que a mulher era um perigo carnal e
espiritual a ser evitado” (NASCIMENTO, 1997, p. 86). Eles propagaram a
negatividade da menstruação, crendices que inferiorizavam a mulher, e que
eram utilizados para justificar a proibição das mulheres em determinados
espaços, como, por exemplo, participar da missa, tocar nos ornamentos ou ter
qualquer função sacerdotal. Em vista disso, a igreja se preocupou em determinar
e julgar a mulher, e como detentora do saber e da escrita trataram de escrever
o que achavam e interpretavam sobre esse sexo, tornando uma problemática
para sua temporalidade e para a posteridade, uma vez que “(...) a maior parte
desta produção literária foi escrita por homens celibatários, o que sem dúvida
terminou por refletir suas convicções, desejos e fobias com relação à mulher”
(NASCIMENTO, 1997, p. 86).

Memória e Representação na escrita cristiniana

A obra A Cidade das Damas é marcada ao longo dos seus três livros pelo resgate
de mulheres valorosas e virtuosas, no entanto, só é possível esse resgate a partir
da memória, e é a partir dessa memória que Christine de Pizan constrói a
representação do feminino, desvinculando a antiga representação forjada pelos
grupos masculinos medievais, na qual tinha a mulher como um ser subalterno e
submisso.

A partir da memória, o historiador Patrick Geary ressalta, “assim, pode-se


estudar a memória do social considerando-a como o processo que permite à
sociedade renovar e reformar sua compreensão do passado a fim de integrá-lo
em sua identidade presente” (GEARY, 2002, p. 167), dado que, Pizan ao
contrariar aquela sociedade, vai buscar nas brechas da memória o caminho que
a levará para os arquivos predestinados para o esquecimento, e irá reformular e
adaptar a sua realidade.
Assim, constrói uma representação feminino desvinculado da cultura misógina.
Segundo Roger Chartier, “as representações do mundo social assim
construídas, (...) são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as
forjam” (CHARTIER, 2002, p. 17). Isto é, Pizan cria por meio do seu dom da
escrita uma sociedade utópica que servirá para desconstruir o pensamento 182
misógino que está engendrado na sociedade medieval, e constrói uma
representação feminina desvinculada do discurso de subalternização e
submissão, a partir do resgate de diversas mulheres virtuosas do passado e do
presente, históricas e mitológicas, reajusta-las segundo o seu entendimento,
enfrentando os homens que repudiavam as mulheres, elevando suas virtudes e
suas contribuições para com a sociedade.

Christine de Pizan (1364-1430) e A Cidade das Damas (1430)

Christine de Pizan era natural da Itália, no entanto, aos 4 anos mudou-se para o
Reino da França, onde cresceu em um ambiente intelectualizado. Frequentou a
biblioteca de Carlos V, o que facilitou seu acesso ao campo do saber, e ao
debruçar sobre os livros começou a questionar o seu lugar social, tornando-se
uma leitora ativa, criticando os livros que contradiziam os fatos (SOUZA, 2013,
p. 36). Seu pai, um grande astrólogo e astrônomo da corte real, influenciou a
permanecer nos estudos, indo contra a concepção masculina que temia o acesso
feminino as Letras. Contudo, foi aos 25 anos de idade que iniciou as suas
produções, levada pela dor da perda, desabafava por meio das suas baladas o
luto pelo seu marido, a qual conviveu por aproximadamente dez anos e teve três
filhos. (SOUZA, 2013, p. 20-23).

Na escrita cristiniana, segundo Calado, ela deixou registrado o seu “eu”, como
modo de dar voz às mulheres, visto que elas por muito tempo foram silenciadas
e deixadas no esquecimento, dado que, “a busca por esse espaço significante
na História constitui a essência da escrita feminina como meio de libertação
através da autonomia de expressão” (CALADO, 2006, p. 17). Isto é, a escrita
feminina no medievo foi o meio de desacorrentar as mulheres daquela sociedade
impregnada de calúnia e difamação, dando voz e vez para que elas pudessem
desconstruir essa cultura misógina, e ocupar o seu lugar de fala, que antes era
de domínio masculino. Mediante a isto, apresenta na sua obra mulheres
virtuosas, com o objetivo de resgatar a honra que foi deturbada pelas narrações
caluniosas dos homens, ao mencionar diversas mulheres míticas e religiosas, do
passado e da sua contemporaneidade, para fundamentar e valorar sua narração
(NERI, 2013, p. 75-76).

A obra A cidade das Damas foi dividida em três livros, em cada livro é marcado
com o diálogo de Christine com as três damas – Razão, Retidão e Justiça. Tendo
vista que Pizan inicia sua obra esclarecendo o que a fez a escrever uma obra
contra a cultura misógina, evidenciando o livro Mateolo, que atribuía as mulheres
as maiores mentiras, e levada pela inquietação e insatisfação, não apenas diante
desse livro, mas de tantos outros que já lera, ela busca no campo das Letras os
caminhos para contrariar e desmentir os discursos difamatórios (NERI, 2013, p.
76-77).

Já no primeiro livro, Christine inicia o diálogo com dama Razão, e a partir das
suas indagações levantará as paredes e os altos muros, e incita a pegar as
mesmas obras ditas caluniosas, e revertê-las ao seu favor, enquanto que dama 183
Retidão no segundo livro constrói as edificações das cidades, acolhendo ao logo
das narrações mulheres da família real francesa que são dignas de morar nesta
almejada cidade, e por fim, dama Justiça constrói as altas e fortificadas torres,
além de convidar a rainha dos céus, Nossa Senhora, a habitar e governar aquela
cidade. E, ao encerrar a missão, Christine volta-se a todas as damas, e esclarece
que aquele lugar é apenas para as mulheres virtuosas, e que todas continuem
nos caminhos bons.

A construção do discurso misógino

Para desconstruir a cultura misógina, se faz necessário compreender como essa


cultura foi construída. Desse modo, Pizan evidencia que muitas foram as
calúnias levantadas contra as mulheres para que elas fossem inferiorizadas, e
consequentemente menosprezadas diante da sociedade, e com isto, inicia a
exposição desse discurso afirmando que foram acusadas de se arrumarem com
o intuito de atrair os homens, além de terem caráter fraco, comparando-as com
uma criança, e que apenas servia para falar, chorar e tear. Afirmavam que se
Jesus primeiramente apareceu diante de uma mulher é porque sabia que ela não
ficaria quieta, e com isto, os homens trataram de negativar a anunciação de
Cristo por uma mulher (PIZAN, 2012, p. 84-88). É notório que tudo que tratava
sobre a mulher era construído um discurso para negativar a ação, tendo por
objetivo a repulsa da sociedade sobre esse sexo que era vítima do patriarcado.

Além disso, Pizan não entendia o porquê de tantos homens renomados e ilustres
se ocuparam em difamar e propagar mentiras sobre as mulheres, citando em
seu livro escritores renomados da época, como Ovídio e Cecco d’Ascoli, ambos
se dedicaram em suas obras a falar com tamanho desgosto sobre o feminino.
Diante de tantos escritos, a autora questiona se todos seriam verdadeiros, tendo
a possibilidade de estarem sendo equivocados, dado que, diante da mulher
medieval aquelas obras não passavam de uma imensa injustiça perante o seu
sexo, pois não representavam a realidade (PIZAN, 2012, p. 79-83). Posto isto, é
perceptível o quanto Pizan era consciente da sua posição enquanto mulher, e
como era contraditório todo aquele discurso.

Christine de Pizan ao expor os discursos misóginos tinha como propósito


compreender o motivo de tantas calúnias do sexo oposto ao feminino, e se seria
possível de tantos autores estarem errados diante das suas afirmações sobre a
mulher. E, por mais que soubesse que tudo o que declaravam não passava de
grandes mentiras, entretanto passa a questionar pela recorrente negativação
presente em tantas obras que teve contato, uma vez que “(...) o testemunho de
vários garante a credibilidade” (PIZAN, 2012, p. 60), e a partir dessa
inconformidade que ela traçará novos rumos para as mulheres virtuosas, porque
diferentemente do que os homens afirmavam que elas eram más e inclinadas ao
vício, Pizan com a ajuda das damas – Razão, Retidão e Justiça –, reverte essas
acusações e busca na histórias as cheias de virtudes e de tamanha contribuição
para com a sociedade.
184
A desconstrução do discurso misógino

Assim, a Dama Razão, a partir dos questionamentos de Christine, inicia a


desconstrução da misoginia esclarecendo que muitos homens se empenharam
em difamar as mulheres pelos seus próprios vícios, ou seja, eles condenavam
as mulheres por defeitos que eles tinham. Enquanto outros as difamavam por
inveja, enfermidade do seu próprio corpo e até pelo simples gosto de maldizer.
Dado que diferentemente do que afirmavam que as mulheres eram depravadas,
com o objetivo de tornarem abomináveis, a dama Razão ressalta que a natureza
da mulher é simples, honesta e comportada, indo contra os discursos proferidos
pelos homens (PIZAN, 2012, p. 74-75). E, para validar essa afirmação, esta
dama fala sobre os discursos de Ovídio contra as mulheres, uma vez que se
fundamenta na sua própria vida, que foi depravada, que resultou no seu exílio, e
terminou sendo castrado, como consequência da sua vida desmedida, de
prazeres e vaidades. E, se fala sobre a obra de Cecco d’Ascolli, ele desprezava
e abominava todas as mulheres, evidenciando isso em suas obras, e sobre o
livro “Do segredo das mulheres”, obra recomendado para não ler diante das
mulheres, pois era baseado em inverdades e calúnias sobre elas. (PIZAN, 2012,
p. 79-80).

Quanto a imperfeição e fraqueza da mulher, a dama Razão logo explica que


desde o princípio Deus já arquitetara o homem e a mulher, e se a mulher formou-
se da costela de Adão, isso justifica que a mulher não é inferior e nem superior
ao homem, mas sim, igual, devem andar lado a lado, e questiona como Deus iria
fazer alguém de natureza tão ruim, visto que é a imagem e semelhança Dele,
entretanto, essa imagem confere a alma, e essa alma é boa e nobre, tanto a do
homem como a da mulher. Diferentemente do que afirmava Cícero de que o
homem não deveria se rebaixar ao se colocar à disposição da mulher, todavia,
a superioridade e inferioridade dos corpos condiz a sua virtude e seus costumes,
não sendo definida pelo sexo, e sim, pelo mérito. E, ao falar sobre Catão, sobre
uma sociedade sem mulheres e a comunicação com Deus, a Dama afirma, maior
foi a elevação do homem pela mulher, a Nossa Senhora, se outrora o ser
humano fora banido por uma mulher, elevação maior teve quando Maria
concebeu Jesus (PIZAN, 2012, p. 80-83).

Além disso, Pizan afirma que os homens cobram das mulheres uma constância
e bondade que eles não têm, tendo em vista que ao cometerem erros, justificam-
se com o pecar é humano, mas para as mulheres é inaceitável, julgando-as como
fracas e inconstantes, autoconferindo-se uma autoridade moral, nunca
reconhecendo a constância e a força da mulher, apenas atribuindo-lhes os piores
crimes (PIZAN, 2012, p. 239). E, se Pizan questiona o motivo de tantas mulheres
virtuosas terem permanecido em silêncio diante de tamanhas calúnias, a Dama
esclarece que essas mulheres depositaram suas contribuições para a ciência e
para as artes, portanto a missão de debater e combater os discursos misóginos
era de Christine (PIZAN, 2012, p. 261-262).

Destaca-se que após os questionamentos de Christine de Pizan para as Damas, 185


e após escutar atentamente a cada resposta e compreender os grandes
benefícios que graças as mulheres foram realizadas, ela ordena que, “Ah, Dama,
ao escutar-vos, dou-me conta, mais do que nunca, como é grande a ignorância
e ingratidão de todos esses homens que maldizem tanto as mulheres! (...) Que
se calem!” (PIZAN, 2012, p. 145).

Considerações Finais

Em suma, estudar a Idade Média tendo como campo de pesquisa a História das
Mulheres é inovador e curioso. Recorte histórico por tanto tempo reduzido
apenas a imagem das três ordens – Clero, Nobreza e Campesinato -, hoje nos
mostra diversos campos possíveis de pesquisa, entre eles, o da mulher. Estudar
a mulher em um contexto em que o patriarcado tem seu monopólio é resgatar
por meio de registros escritos a representação de um indivíduo posto pelos
detentores do saber medieval como inferior e subalterno.

Christine de Pizan, na Baixa Idade Média, desconstruiu toda uma


contextualização sobre a mulher, enquanto ser passivo e quieto, conformado
com o destino que os homens impuseram. Ela reivindicou seu lugar, o lugar da
mulher, dentro do meio educacional, pois tinha a consciência que muitos
discursos que eram levantados contra as mulheres não correspondiam à
realidade. Por fim, A Cidade das Damas evidenciou o desejo de Pizan que
vivendo à mercê dos julgamentos masculinos, apenas queria um lugar de paz,
não apenas para ela, mas para todas as virtuosas mulheres. Queria um lugar
justo, onde suas vozes não fossem caladas, onde suas memórias não fossem
deixadas no esquecimento, onde ser mulher seria algo positivo, e não um
castigo.

Referências

Maristela Rodrigues Lima, graduanda do Curso de História da Universidade de


Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos
e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente realiza seu
projeto de Iniciação Científica como bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob a orientação do Prof. Dr.
Luciano José Vianna, que tem por título “A desconstrução do discurso misógino
nos espaços literário, intelectual e político na obra A cidade das damas – 1405 –
de Christine de Pizan – 1364-1430”.

Fonte
PIZAN, Christine. A cidade das damas. Trad. Luciana Eleonora de Freitas
Calado Deplagne. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012.

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doutorado] Recife, 2006.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. trad.


Maria Manoela Galhardo. 2° ed. DIFEL, 2002.

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Disponível em:
http://gtestudosmedievais.com.br/index.php/publicações/fontes.html. Acesso
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GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude


(Org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. II. São Paulo: EDUSC,
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1992, p. 9-23.

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História. Revista do Programa de Pós-Graduação da UNB. v. 5, n. 1, p. 82-91,
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NERI, Christiane. Feminismo na Idade Média: conhecendo a cidade das


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SOUZA, Daniele Shorne de. A cidade das damas e seu tesouro: o ideal de
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Dissertação de Mestrado em História – Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2013.
200 ANOS DE ENCERRAMENTO DO
TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO
PORTUGUÊS: REFLEXÕES SOBRE O 187

PROCESSO INQUISITORIAL DE
IZABEL MARIA DA SILVA NA VISITA
DO SANTO OFÍCIO AO GRÃO PARÁ
E MARANHÃO (1763)
Marize Helena de Campos
O Tribunal do Santo Ofício português foi um Tribunal Eclesiástico instituído em
1536 e extinto em 1821. Ao longo de quase 300 anos de sua vigência, foi uma
das instituições mais temidas em Portugal mantendo constante vigilância e
punição contra os considerados desviantes da fé católica e praticantes de
heresias e, ou, práticas pagãs. No âmbito do tema, trataremos aqui do processo
movido contra Dona Izabel Maria da Silva por supostas práticas de feitiçaria e
bruxaria e que se encontra alocado e disponibilizado online no site DigitArq do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Portugal. A escolha deste processo deve-
se ao fato de que, embora os principais alvos da Inquisição portuguesa tenham
sido os judeus, islâmicos e protestantes, os crimes sexuais (bigamia, adultério e
sodomia) e os crimes de heterodoxia (feitiçaria, pacto com o demônio e curas
supersticiosas) também constituíram fonte de preocupação. O caso envolvendo
Dona Izabel Maria da Silva, ocorrido em Belém do Pará em 1763 apresenta uma
rica e importante narrativa de rituais e práticas mágicas, bem como as
motivações dos elementos envolvidos explicitando a complexidade das redes de
sociabilidades na dinâmica social colonial do século XVIII. Finalizamos com uma
proposta de aplicação do tema no 7º ano do Ensino Fundamental.

O processo de Dona Izabel Maria da Silva compõe os Autos da Visitação do


Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769).
Esta Visitação, considerada a última em terras da América Portuguesa, teve
como visitador o Padre Doutor Geraldo José de Abranches que, além de
Inquisidor, foi nomeado Vigário Capitular. Com isso, passava, também, a receber
denúncias e confissões, sentenciar e determinar prisões dos acusados.

Era o dia vinte e seis de outubro de 1763 quando Dona Jozepha Coelha
apresentou-se à Mesa Inquisitorial, instalada no Hospício de São Boaventura,
cidade de Belém do Pará para fazer uma acusação. Natural daquela cidade,
tinha “pouco mais ou menos” quarenta anos de idade e era casada com Antônio
Gomes, oficial de fazer meyas, com quem morava na Rua da Atalaya.

Perante o Inquisidor expôs um episódio que tinha como protagonista Dona Izabel
Maria da Silva.
188
Disse que há cerca de dez anos, encontrava-se em sua casa com Luiza de
Souza, casada com Onofre da Gaya, carpinteiro e Joanna da Gaya, casada com
Antônio José de Morais, soldado da Companhia do Capitão Domingos da Silva
Pinheiro, quando ali entrara a moça Ana Bazília, natural do Maranhão e
moradora em Belém, na Rua do Convento de Santo Antônio, a contar que
estando em casa de Dona Izabel Maria da Silva, casada com o referido Capitão
Domingos da Silva Pinheiro, da guarnição da Praça de Belém, vira, não se
lembra se de dia ou de noite, Dona Izabel entoar cantigas e que, logo no meio
da casa, apareceram dançando ao som de cantigas três pretinhos ou diabretes,
que saíram do canto da mesma casa, quando a mesma lhes fora perguntando
por palavras que ela não percebia, mas que lhe parecia Dona Izabel queria saber
e que os ditos pretinhos respondiam. Depois disto desapareceram, ficando Ana
Bazília assustada do que tinha visto e que, sem demora, fora contar o que vira à
Luiza de Souza e Joanna da Gaya que concluíram ser aquele o meio pelo qual
Dona Izabel sabia de “tudo o que se passava”, por ter familiaridade e tratamento
com os demônios e que era constante e público na cidade, e principalmente na
vizinhança, que ela tinha comércio e comunicação com uns xirimbabos ou
demônio e que por esta via sabia tudo o que queria saber.

Perguntada, ainda, se Dona Izabel Maria tinha bom entendimento ou era douda
e dizavizada ou se costumava tomar vinho ou outras bebidas, respondeu que a
achava bem entendida e que nada tinha de doida, porém tinha ouvido dizer que
algumas vezes tomava bebidas, mas que não perdia de todo o juízo e sobre o
tempo que conhecia Dona Izabel Maria, que opinião tinha dela acerca de sua
crença e vida e costumes, respondeu que a conhecia desde que “se entendia” e
que dela não tinha boa opinião, por ver que não ia a Missa nem “puxava” rezas
em sua casa, ressaltando que sua denúncia fora movida para o cumprimento do
que entendia ser sua obrigação e não pelo fato de ter-lhe ódio nem má vontade.

Percebe-se aí um fato que pode ter intensificado a ocorrência das denúncias


contra Dona Izabel Maria, qual seja: o de ter uma posição diferenciada no que
se refere ao status social, já que era esposa do Capitão da Guarnição. Note-se
que uma delas, Joanna da Gaya, era casada com Antônio José de Morais,
soldado da Companhia do Capitão Domingos da Silva Pinheiro. Além disso, as
falas que recorrem a afirmação de Dona Izabel Maria “saber de tudo” sugerem
uma espécie de poder, pois, supostamente sabia de acontecimentos que,
possivelmente, envolviam a vida de muitas pessoas.

Três dias depois, quem compareceu à mesma Mesa foi a própria Dona Izabel
Maria da Silva.
Chamada perante o Inquisidor, disse chamar-se Izabel Maria da Silva, com “mais
ou menos” 55 anos de idade, casada com o Capitão Domingos da Sylva, do
Regimento da Praça de Belém, moradora na Rua de São João naquela
cidade. Disse que, havia anos, não se lembrava quando, somente que ainda se
achava solteira, viu uma mulher, que não lembrava o nome, viúva, natural de
Belém do Pará e moradora na Rua das Mercês, e já falecida, fazer uma sorte 189
chamada de “São João”, a qual consistia em molhar um copo de vidro com água
da noite do dito Santo e lançar dentro, no mesmo copo, um ovo quebrado, nele
fazendo uma cruz ao lançar de certo óleo no referido copo rezando-se um Padre
Nosso e uma Ave Maria ao dito santo para que mostrasse o que havia de suceder
a tal ou qual pessoa que se nomeasse e que, aprendendo este modo de fazer a
sorte as fizera e lançara em três anos sucessivos no dito dia de São João, dois
no estado de solteira e um já casada, sendo a sorte do primeiro ano para saber
que estudo havia de tomar um estudante, que não lembrava o nome, nem de
seu pai, nem de sua mãe, que também moravam na Rua das Mercês.

Segundo suas palavras, lançando a sorte na dita forma, lhe apareceu a figura de
uma Igreja e dentro dela um altar, em que se apresentava um sacerdote para
dizer missa, que ela vira clara e especificamente junto a mãe do dito estudante
que, de acordo com suas palavras, de fato veio a tornar-se sacerdote.

A “sorte” do segundo ano disse ao Inquisidor que foi para saber se uma moça,
de quem não lembrava o nome, nem de quem era filha, e que morava na Rua do
Limoeiro, haveria de se casar com um “mazombo” ou com um homem que viria
do Reino e, lançando ela a sorte, lhe apareceu e, claramente, viu um navio e a
moça, donde veio saber que havia de casar com homem do Reino, o que
segundo ela, assim sucedeu.

E sobre a sorte feita no terceiro ano, disse ter sido feita para uma moça chamada
Nazária, parda, filha de Maria parda e de pai incógnito, moradora na Vila de
Bragança, que também queria saber com quem havia de se casar, com um
homem do Reino ou com um homem “da terra”, e como no copo se não vira o
navio, logo soube que havia de se casar com um homem “da terra”, segundo
Izabel Maria, como assim sucedeu.

Concluiu que, era o que tinha para confessar e que havia deixado de fazer as
observações da sorte porque seu marido a repreendeu asperamente logo que
soube que as fazia, e que tinha ficado muito arrependida de tê-las feito, motivo
pelo qual pedia perdão e misericórdia à Meza e seus representantes
eclesiásticos.

Ao lhe ser dito que havia tomado muito bom conselho em se apresentar à Meza,
mas que convinha muito trazer todas as culpas a memória para fazer inteyra
confissão para desencargo de sua consciência e salvação de sua alma e assim
merecer a mizericórdia que a Santa Madre Igreja se costuma conceder aos bons
e verdadeyros confitentes, Dona Izabel Maria respondeu que não se lembrava
de mais nada, ante o que foi determinado que não se ausentasse se expressa
licença da Meza e que ali se apresentasse diariamente, exceto aos feriados, das
sete às onze horas da manhã, até que findasse sua causa, o que ela prometeu
cumprir.

A partir de um olhar mais detido sobre o cotidiano religioso colonial encontramos


práticas heréticas no Grão-Pará e Maranhão, que segundo Maria Olindina 190
Andrade de Oliveira, em sua dissertação de mestrado “Olhares inquisitoriais na
Amazônia portuguesa: o tribunal do Santo Oficio e o disciplinamento dos
costumes (XVII-XIX)”, evidenciam que “o processo de evangelização
empreendido pela Igreja para contribuir com a difusão do cristianismo e, desse
modo, garantir a manutenção da integridade religiosa do Império Colonial
Português, resultou em conflitos e na criação de comportamentos que violavam
as normas do sistema social, exigindo desta, medidas disciplinares para
combater essas atitudes”. (OLIVEIRA, 2010, pág. 18).

A denúncia e a consequente apresentação de Dona Izabel, sugerem ainda


pensar os conflitos sociais que resultavam em processos inquisitórios, tanto na
metrópole quanto na colônia, como nos aponta Ângelo de Assis (2008), e que
muitas vezes eram resultantes de inimizades e tensões cotidianas.
As falas destoantes entre denunciante e acusada foram possivelmente o
principal motivo da continuidade do processo de Dona Izabel Maria e em 12 de
dezembro de 1763 foi chamada, perante a Meza e o Inquisidor, Luiza de Souza,
pessoa que supostamente estivera presente no dia em que, de acordo com Dona
Josepha Coelha, Ana Bazília contara o episódio passado em casa de Dona
Izabel Maria Silva.

Disse chamar-se Luiza de Souza, de “mais ou menos” 35 anos de idade, casada


com Onofre da Gaya, carpinteiro, natural e moradora em Belém do Pará, na Rua
da Atalaya detrás de Sam João.

Perguntada se sabia ou suspeitava o motivo pelo qual fora chamada, disse que
não. Perguntada se sabia de alguma pessoa que tivesse feito ou dito alguma
coisa contra a Santa Fé Católica e Lei Evangélica, ou se conhecia outra culpa
pertencente ao Santo Ofício e que devesse denunciar naquela Meza, disse que
não.

Começava, então, uma sequência interpelativa que notadamente buscava


elementos que confirmassem a denúncia de Dona Josepha Coelha, pois ali
estava o crime herético mais grave, o pacto com demônios. As alegações
apresentadas por Luíza permitem vislumbrar traços do medo, comum a muitas
pessoas inquiridas, especialmente se considerarmos a parte final suas
respostas, quando ressalta que “nada ouviu”.

Outra versão foi apresentada dois dias depois, aos quatorze dias de dezembro
de 1763, por Joanna da Gaya, “mais ou menos” 20 anos de idade. Após os
juramentos e perguntas de praxe foi indagada se sabia ou suspeitava do motivo
pelo qual fora chamada perante aquela Meza, ao que respondeu não saber por
que fora chamada e que nenhuma pessoa havia lhe dito.

Perguntada de certas coisas que ouviu de dona Bazília, solteira, mulher branca,
natural do Maranhão respondeu que ouviu Ana Bazília contar que, estando com
Dona Izabel, a referida Dona Bazília, tivera na sua presença um pretinho que 191
saíra debaixo da cama da mesma Dona Izabel ao qual ela perguntara várias
cousas ao que lhe respondeu e que depois de dar as respostas às suas
perguntas desaparecera o que tudo disse Ana Bazília presenciara e outras mais
coisas, que ela testemunha já não tinha lembrança, concluindo Ana Bazília que
já sabia os meios que Dona Izabel tinha para saber tudo o que se passava, fosse
de dia ou de noite porque tudo perguntava aos pretinhos e eles tudo lhes
respondiam, porque era o demônio e que o dito caso o tinha visto de dia a dita
Ana Bazília e que isto era o que lhe tinha ouvido contar.

Perguntada se ouviu Ana Bazília dizer que Dona Izabel chamara por cantigas,
não só um, mas dois pretinhos mais e que todos três apareceram dançando ao
som das cantigas saindo do canto da casa em que estava Dona Izabel, Joanna
respondeu que não tinha essa lembrança. Perguntada se ouviu Ana Bazília
contar que Dona Izabel fora perguntando aos “tais pretinhos” o que deles queria
saber e que eles lhes respondiam, afirmou que não tinha lembrança disso e que
ouviu Ana Bazília falar em um pretinho e não três pretinhos.

Disse ainda que não lembrava se Ana Bazília tinha dito ter ficado assustada por
ter visto aparecer e desaparecer os ditos pretinhos e que conhecia Dona Izabel
desde que se lembra e não tinha dela boa opinião, porque não ouvia missa nem
em sua casa se ouvia couza que paresa religião e que geralmente é tida muita
maligna principalmente não estando o marido em casa como publicão os
próprios vizinhos e ela testemunha o tem ouvido assim contar a Luzia Machado
e Catarina da Costa, ambas suas vizinhas e geralmente a todos os vizinhos da
rua e que fez a denúncia sem motivos de ódio ou má vontade.

Por fim, naquele mesmo dia apresentou-se perante a Meza, Ana Bazília. Disse
ser solteira, de “mais ou menos de vinte e cinco anos de idade”, filha de Antônio
Sarayva, que foi soldado, e de Luzia dos Reis, natural da Vila de Tapuitapera do
Bispado do Maranhão, moradora em Belém, onde vivia de suas costuras.

Ana Bazília foi perguntada se sabia ou suspeitava o motivo pelo qual fora
chamada e se alguma pessoa a persuadira, respondeu que não. Perguntada se
sabia de alguma pessoa que obrasse, dissesse ou fizesse alguma coisa contra
a Santa Fé Católica, Lei Evangélicas ou cometesse outras culpas que
reconhecidamente pertenciam ao Santo Ofício e que devesse denunciar naquela
Meza, também disse que não.

Perguntada se sabia de alguma pessoa, que por meio de cantigas fazia aparecer
três pretinhos ou diabretes que sahirão do canto de huma caza e que estes se
pozessem a dansar no meyo da mesma caza e que tal pessoa lhes fosse
perguntando por palavras imperceptíveis aquilo que queria saber e que os ditos
pretinhos dessem suas resposta se depois desaparecessem e se certa pessoa
que presenciou todo o referido ficando naturalmente assustada de ter visto fosse
contar tudo a outras certas pessoas dizendo lhes que já sabia que aquele era o
meyo por onde a tal pessoa sabia tudo o que se pasava porque tinha
familiaridade e tratamento com os demônios a que dão o nome de xiribabos, 192
disse que não era sabedora de nada, nem de tais couzas tinha notícia algumas.

Em contra argumentação foi lhe dito, de forma contundente, que na Meza


daquela Visita, havia informação de que ela sabia, tinha notícia, presenciara e
contara as coisas das quais foi perguntada e que tratasse de descarregar sua
consciência e manifestar toda verdade.

Por suas respostas, Ana Bazília fora outra vez interrogada e mandada para fora
da sala, depois de lhe ser lido todo o referido que declarou estava escrito na
verdade.

Não foram chamadas mais testemunhas, nem a própria acusada, e o processo


de Dona Izabel Maria encerrou sem sentença. Não obstante, seu conteúdo deixa
entrever como a América portuguesa foi lugar de amálgamas e entrelaçamentos
de crenças indígenas, lusitanas e africanas, que aqui se encontraram e
moldaram a nossa identidade religiosa e cultural.

Sua vivência, narrada em parte nas acusações, indica as inúmeras


possibilidades verificadas no cotidiano colonial, especialmente no que diz
respeito à teia de relações sócio religiosas e práticas, que escapam aos modelos
e lugares cartesianos definidos para os sujeitos históricos daquele período.

Em outras palavras, evidencia, como sugere Karina Kosicki Bellotti, “a tensão


entre o individual e o coletivo, a tolerância e intolerância religiosa e o
entrelaçamento entre o religioso e o social” vivenciados no cotidiano colonial
(BELLOTI, 2005).

Por fim, cumpre assinalar que o Tribunal da Inquisição deixou de funcionar em


Portugal em 1821, um ano antes da independência do Brasil e o resultado dos
séculos de seu funcionamento foram milhares de processados, centenas de
relaxados ao braço secular, encarcerados, enviados para as galés reais ou
degredados e profundas marcas que ainda permanecem perceptíveis nas
dinâmicas sociais e que, por esse e outros motivos, deve ser revisitada,
destacadamente neste ano de 2021, em que se assinalam os 200 anos de sua
extinção.

Nesse sentido, sugere-se que o tema seja abordado em sala de aula,


especialmente no 7º. Ano do Ensino Fundamental, para o qual estão previstos
na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): a unidade temática “Humanismos,
Renascimentos e o Novo Mundo; os objetos de conhecimento, “Reformas
religiosas: a cristandade fragmentada” e as habilidades (EF07HI05) Identificar e
relacionar as vinculações entre as reformas religiosas e os processos culturais e
sociais do período moderno na Europa e na América, plenamente alinhados ao
tema aqui apresentado.

Referências Biográficas
193
Marize Helena de Campos é Professora do Departamento de História da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA e do Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História (ProfHistória - UFMA). Possui Mestrado em
História Social e doutorado em História Econômica pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas - FFLCH / Universidade de São Paulo - USP. É
Investigadora Correspondente no Centro de Humanidades (CHAM) da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e
Universidade dos Açores, vinculada ao Grupo de Investigação "Cultura, história
e pensamentos ibéricos e ibero-americanos" Desenvolve atualmente o Projeto
de Pesquisa “Mulheres no Santo Ofício: elementos para a compreensão do
trabalho feminino nos séculos XVI e XVII em Lisboa segundo a documentação
inquisitorial”. As suas áreas de interesse são História das Mulheres, História da
Inquisição e Ensino de História.

Referências Bibliográficas

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In História da vida privada:


cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras. 1997.

BELLOTTI, Karina Kosicki. Identidade, Alteridade e Religião na Historiografia


Colonial. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais janeiro/ fevereiro/ março
2005 Vol. 2 Ano II nº 1.
http://www.revistafenix.pro.br/pdf2/Artigo%20Karina%20Kosicki.pdf

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 1987.

MELLO E SOUZA, Laura de. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e


religiosidade popular no Brasil colonial. SP: Companhia das Letras. 1986.

OLIVEIRA, Maria Olindina Andrade de. Olhares inquisitoriais na Amazônia


portuguesa: O Tribunal do Santo Ofício e o disciplinamento dos costumes (XVII-
XIX). 2010. 153f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do
Amazonas, Manaus, 2010.

VAINFAS, Ronaldo. TRÓPICO DOS PECADOS: Moral, Sexualidade e


Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

PROCESSO DE D. ISABEL MARIA DA SILVA. O processo é do trâmite da


inquisição na Mesa da visita no hospício de São Boaventura da cidade do Pará,
Brasil, em que era visitador do Santo Ofício Geraldo José de Abranches.
Disponível em:
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2313097

194
OS MANUAIS DE MODA COMO
POSSIBILIDADES
METODOLÓGICAS PARA O ENSINO 195

DE HISTÓRIA E QUESTÕES DE
GÊNERO NA SALA DE AULA
Marta Gleiciane Rodrigues Pinheiro e
Jakson dos Santos Ribeiro
O presente texto discorrerá sobre os manuais de moda como possibilidades
metodológicas para o ensino de História. Como também para discussão sobre
questões de gênero na sala de aula, pois os estudos que envolvem a moda vão
além da apresentação estética da mesma, mas como algo que nos possibilita a
entender a dinâmica social das sociedades e a influência alcançada por quem
as trajava determinada vestimenta, nas relações sociais, portanto a moda
funcionava e ainda funciona como uma significação simbólica acerca da
representatividade imposta pela roupa usada, seja de classe social ou de
gênero.

A moda é um fenômeno social poderoso de comunicação e suas entrelinhas são


um vasto campo de estudo. Devido as várias possibilidades de estudo que a
moda nos proporciona, vamos aqui apresentar algumas possibilidades
metodológicas utilizando-a para a aprendizagem dos alunos os manuais de
moda e, a partir disso, trabalhar a inserção do estudo de gênero no ensino de
História, uma vez que o estudo de gênero no ensino de História proporciona para
um aprofundamento nas questões do dia-a-dia dos alunos, visto que esta
temática é apenas estudada de modo “superficial” em sala de aula, porém,
vivenciada fora da mesma por grande parte dos alunos.

A discussão de gênero é uma temática pertinente pois não restringe-se somente


a sala de aula ou a uma disciplina isolada, mais que envolva a escola de modo
geral incluindo os gestores, coordenadores, professores, merendeiras, zeladores
e vigias, dado que a comunidade escolar tem papel primordial na formação da
identidade das criança e adolescentes, assim, formando alunos/cidadãos críticos
e com consciência da importância da diversidade e pluralidade de identidades,
posto isso, é necessário problematizar e inserir
nas práticas de ensino estratégias capazes de articular a História e
o estudos de gênero.
O texto traz como fontes primarias as revistas de moda e os jornais que
circulavam na cidade de Caxias/Ma no período da Primeira República. A
utilização dessas fontes se tornou possível por conta da ampliação do conceito
de fonte proposta pela Escola dos Annales em contraponto a História positivista
tida como tradicional e oficial baseada apenas nos documentos escritos do
Estado, como aborda Reis [1996]: 196

“A função do historiador seria a de recuperar os eventos, suas interconexões e


suas tendências através da documentação e fazer-lhes a narrativa”. [REIS, 1996,
p.12]

Ou seja, a História era apenas o que o senso comum define, simples estudos
que servem apenas para reconstruir fatos históricos (a disciplina que se decora
datas de acontecimentos), não permitindo a aproximação do historiador com o
objeto de estudo, pois segundo esses autores:

“A história – res gestae – existi em si, objetivamente, e se oferece através dos


documentos” [REIS, 1996, p.13]

Mas os Annales ampliaram as possibilidades e abordagens em relação as fontes


e a escrita histórica:

“O conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles


no presente, dever ser, [segundo a feliz expressão de François Simiand,] um
conhecimento através de vestígios. Quer se trate das ossadas emparedadas nas
muralhas da Síria, de uma palavra cuja forma ou emprego revele um costume,
de um relato escrito pela testemunha de uma cena antiga [ou recente], o que
entendemos efetivamente por documentos senão um “vestígio”. [..]. [BLOCH,
2001, p.73]

E o ensino de História carecendo de metodologias que atendam às necessidades


e especificidades da nova geração de alunos. Principalmente quebrar o
preconceito que estudar é apenas decorar datas, pois a História não é somente
um amontoado de acontecimentos passados. Aprender História não é apenas
decorar datas:

“Aprender história é uma experiência na qual o pensamento histórico é


desenvolvido não por meio de um acúmulo de conhecimentos, mas pela
mobilização desses para pensar o passado em relação ao presente”. [RÜSEN,
2010 apud ESTACHESKI; ZARBATO 2020, p.8]

Os professores de História necessitam incorporar novas metodologias de ensino


para quebrar o preconceito citado anteriormente, e que facilite o ensino-
aprendizagem dos alunos, de forma que possam refletir de modo humanizado
sobre questões como racismo, homofobia, assédio e bullying, pois:
“à consciência crítica possibilita a inscrição dos sujeitos na realidade para melhor
conhecê-la e transformá-la, formando-o para enfrentar, ouvir e desvelar o
mundo” [SCHMIDT, 2002]

Desta forma, tornando-os sujeitos com consciência histórica, como aponta


Schmidt [2002]: 197

“A aula de História é o momento em que, ciente do conhecimento que possui, o


professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do conhecimento histórico
existente, através de um esforço e de uma atividade com a qual ele edificou esse
conhecimento. [...] A sala de aula não é apenas um espaço onde se transmite
informações, mas onde uma relação de interlocutores constrói sentidos”.
[SCHMIDT, 2002, p. 298].

Os livros didáticos sempre foram/serão ferramentas essências para o fomento


crítico e instrutivo dentro e fora da sala de aula. Desse modo, propomos aliar tal
ferramenta com as novas possibilidades de ampliar e dinamizar o ensino, para
isso, faz-se necessário um empenho de educadores, gestores e todos aqueles
que agem de maneira direta e/ou indiretamente na criação e articulação dessas
novas metodologias para o ensino de modo geral e, nesse caso, de História,
como afirma Schmidt [2002]:

“A relevância do conhecimento histórico, ou seja, do saber a ser ensinado,


encontrado nos indícios documentais e na experiência cultural de alunos e
professores, em confronto com outras fontes de conhecimento histórico como,
por exemplo, os manuais didáticos; pode contribuir para a construção da
consciência histórica crítica de alunos e professores. “[SCHMIDT, 2002, p.304]

Os “manuais” de moda e a moda na sala de aula: uma relação possível?

O uso dos manuais de moda na sala de aula é uma nova perspectiva no ensino
de História, possibilitando uma nova abordagem no ensino-aprendizagem, como
também mostrando a eles a importância dos documentos, sendo os mesmos são
de fácil acesso, disponibilizadas em sites como o da Biblioteca Benedito Leite,
de São Luís. Aliando também a utilização da tecnologia no ensino, facilitando a
consulta desses periódicos tanto pelos alunos como pelos professores, caso a
escola não possua uma estrutura tecnológica ou os próprios alunos, pode-se
converter em pdf e ser salvo no aparelho celular do professor e posteriormente
está mostrando para os alunos, assim, todos podem ter contato com essas
fontes.

Por intermédio da moda podemos abordar as mudanças ocorridas de uma época


para outra, pois eram adotados novos costumes pela população para assim
adequar-se às novas exigências impostas, fazer o mapeamento dos trajes mais
famosos de determinado período, quais as pessoas que o utilizavam e a partir
disso demonstrar as principais classes sociais do lugar estudado, pode-se
perceber aspectos da econômicos, políticos e principalmente culturais.
É importante salientar que a vestimenta, dada a diferenciação atribuída à design,
cor, tamanho, a roupa assumi uma relação de poder e, consequentemente, de
gênero, situação apontada por Lipovetsky (1987).

O traje marca, desde então, uma diferença radical entre o masculino e o


feminino, sexualiza como nunca a aparência [...]. O vestuário empenha-se, 198
assim, em exibir os encantos dos corpos acentuando a diferença dos sexos: o
gibão estofado dá relevo ao tórax masculino, as braguilhas terão por vezes
formas fálicas; um pouco mais tarde, o espartilho, com sua armação, permitirá
durante quatro séculos afinar a cintura feminina e erguer o colo [...]. O traje de
moda tornou-se traje de sedução: não mais apenas símbolo hierárquico e signo
de estatuto social, mas instrumento de sedução, poder de mistério e segredo,
meio de agradar e de ser notado no luxo, na fantasia, na graça amaneirada.
[LIPOVETSKY, 1987, p.65-66].

Com isto, especulamos que os manuais de moda e jornais estão inclusos nessa
relação da construção social do que era ser mulher, como vestir-se e comportar-
se na Primeira Republica e a elegância da roupa trajada por esses homens
republicanos está além da estética, partindo disso, podemos perceber que a
moda funciona como fator social possuindo suas significações.

A partir das vestimentas usadas, os indivíduos afloraram o sentimento de


pertencimento a uma determinada classe ou grupo de pessoas com um certo
prestigio na sociedade, como aponta Rainho:

[...] a moda vai somar-se ao refinamento dos modos e ao polimento dos


costumes, passando a significar também marca da boa “sociedade”. Seguir a
moda torna-se um imperativo para essa camada que, por meio dela, procurava
por um lado, nivelar-se, pelo menos na aparência, aos seus pares europeus, e,
por outro, distinguir-se do resto da população [...]. [RAINHO,2002, p.56].

Com embasamento nessa afirmação percebemos que, aos poucos, a moda foi
ganhando espaço na sociedade burguesa. Esse fato é bem visível nos manuais
de moda. A mesma então funcionava e ainda funciona como uma significação
simbólica acerca da representatividade imposta pela roupa usada seja de classe
social ou de gênero. Desta forma, fica explicito que a moda e a publicidade
andavam lado a lado e mediante as representações e os discursos evidenciados
pelos periódicos, a imprensa difundia o que os interesses da elite, em prol da
moral e dos bons costumes. Ficando explicito o quão proveitoso e rico pode ser
o uso dos manuais de moda e a própria moda no ensino de História, a
diversidade de temáticas que podem ser trabalhadas pelos professores.

Gênero: uma discussão imprescindível no ensino de História

Quando falamos no estudo de gênero, automaticamente, associamos a temática


a divisão binária do sexo pelo determinismo biológico, conceito formado
socialmente e culturalmente na formação das pessoas em consequência da
carência de debates/discussões e esclarecimentos do que é gênero na
formação escolar dos alunos, sendo taxado por pessoas conversadoras como
uma ideologia que corrompe a moral e os bons costumes na vida dos educandos,
uma vez que, o conteúdo produzido sobre o assunto é restrito as universidades
(onde é produzido grande parte desses estudos), com isso, fica evidente o quão
emergente é essa temática na atual conjuntura social. Assim sendo, os 199
professores devem levar a discussão sobre gênero para a sala de aula, pois é
um assunto de significância na formação dos pequenos cidadãos.

Levar esse debate para a educação básica é uma situação delicada, pois como
citado anteriormente existem pessoas/famílias que associam a temática com
ideias distorcidas sobre o assunto em questão, sendo os próprios líderes
políticos na atual dinâmica social, lamentavelmente, os principais
disseminadores desses preconceitos

Com isso, percebemos a necessidade de abordar o assunto não apenas na


História enquanto disciplina, tão pouco somente pelos professores da área, e sim
nos mais amplos campos do conhecimento. Deve-se, primeiramente, quebrar o
tabu de que gênero é ideologia, pois esse trata de um tema que leva os
alunos/cidadãos a viver em uma sociedade menos preconceituosa e desigual,
gênero não discuti somente sexualidade, como afirma Vázquez [2017]:

“Os Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo modificar a sexualidade de


ninguém (...). Nunca defenderam pedofilia ou incentivaram a erotização infantil.
Nunca foram “ideologia”. (...) Pesquisas sobre sexualidades existem dentro dos
Estudos de Gênero, porém –e parece ser necessário repetir –não se trata de
conspirar para mudar a orientação sexual de ninguém. (...). Também são temas
dentro dos Estudos de Gênero: a maternidade, os sentimentos, a religiosidade,
a assistência, a participação política, os racismos, as interseccionalidade se o
próprio movimento feminista, isso só para citar algumas poucas áreas. Não
existe ideologia de gênero! E se os Estudos de Gênero puderem impactar de
forma transformadora em nossa sociedade, será na construção de um mundo
mais justo e igualitário (grifo no original).” [Vázquez, 2017].

E o estudo de gênero não é fundamentado no sexo biológico, mas na relação de


poder construído socialmente e historicamente entre as mulheres e os homens.
Sendo o próprio conceito de gênero uma definição socialmente construída,
fazendo com que os alunos entendam como determinadas situações de
desigualdade entre ambos é imposta pela sociedade, por exemplo, a
determinação de tarefas seja no trabalho ou em casa. Assim, esses
“determinismos” foram concretizados, como trata Scott [1991]:

“O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais”: a


criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa
definição, uma categoria social imposta sobre o corpo sexuado.” [SCOTT, 1991,
p. 3].

E essa questão do binarismo masculino/feminino levando em consideração o


sexo biológico é um “conceito” construído historicamente, como aborda Foucault
(2003) apud Sena, Castilho: 200

“O discurso só existe por que se torna prática. Faz-se necessário deixar claro
que o que entendemos por tipicamente feminino e tipicamente masculino não
são imagens que correspondem a qualquer valor essencial, universal e
atemporal, mas a imagens construídas historicamente e que, desde a
modernidade, vêm sendo profundamente alteradas graças à simulação de
confusão entre fronteiras simbólicas do masculino e do feminino.” [FOUCAULT,
2003 apud SENA, CASTILHO, 2011, p.51].

Pois os comportamentos, ocupação de tarefas, tanto no ambiente de trabalho


formal quanto em casa, são construídos através da imposição do masculino
sobre o feminino, além desses, o tipo de vestimenta, as restrições de presença
em determinados locais acabam por escancarar as disparidades embutidas na
separação do que é pertencente ao "homem" e a "mulher". Porém estudos feitos
nos últimos anos obtiveram êxito em expor essas dualidades e como modificar
essas restrições, com isso, foi possível descontruir conceitos não mais aceitáveis
em sociedade e ampliar a participação de todos em todos os ambientes quais
quer que sejam eles. E é importante a compreensão desses processos pelos
alunos, pois funciona como:

“Um meio de decodificar e de compreender as relações complexas entre


diversas formas de interação humana” [SCOTT, 1991, p. 23]

Dito isso, é notável que:

“nas aulas de História no Ensino Básico em relação ao estudo de gênero


têm o papel de: conscientizar, sensibilizar e
informar alunas/os, professoras/es, funcionárias/os, mães e pais sobre a
necessidade urgente do trabalho com questões de gênero e diversidade na
escola”.[ FERNANDES, 2020, p. 411]

Uma grande conquista na educação brasileira foi a implantação da lei nº 11.645,


de 10 março de 2008, que obriga a inserção no ensino de história a cultura afro-
brasileira, africana e indígena, do ensino de direito das crianças; do ensino da
música e o ensino da filosofia e sociologia. Assim, fica evidente que os
professores da área de humanas são obrigados pela lei a trabalharem os
assuntos supracitados, assim, tendo amparo legal. Mas no que diz respeito ao
gênero, tema tão importante para se pensar os lugares e identidades dos alunos,
a compreensão das subjetividades dos mesmos, ainda não se há nenhum
vestígio de uma possível promulgação de lei que torna o estudo de gênero
obrigatório no currículo escolar.
Enquanto isso não acontece, a pauta sobre essa temática depende da
sensibilidade dos professores de história para realizar essas discussões,
levando para a escola e a sociedade de forma geral, o despertar da consciência
sobre o quão importante é o tema. Realizando adaptações metodológica de
comunicação e de linguagem para o ensino, no caso do referente texto os 201
manuais de moda, causando nos alunos o encanto de aprender História, como
aborda Schmidt [2003]:

Ensinar o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessárias; o saber-fazer,


o saber-fazer-bem, lançar os germes do histórico. Ele é o responsável por
ensinar o aluno a captar e a valorizar a diversidade dos pontos de vista [...]
Ensinar História passa a ser, então, dar condições para que o aluno possa
participar do processo do fazer, do construir a História. O aluno deve entender
que o conhecimento histórico não é adquirido como um dom” [SCHMIDT, 2003.
In. BITTENCOURT, 2003, p. 57]

E através da moda podemos perceber diversos fatores, uma vez que as roupas
nos permiti a revelação de costumes, práticas e histórias de uma sociedade,
além de ser uma vertente que nos permite uma análise inovadora da história
local, como é explicado Reis da Silva (2015):

O vestuário usado em uma certa ocasião permite abranger melhor a co-relação


existente entre o fenômeno que é a moda e os hábitos e costumes de uma
sociedade induzidos por acontecimentos políticos, econômicos e sociais. Os
diferentes significados relacionados às práticas do vestuário são enquadrados
histórica e socialmente de modo a relacioná-las às estruturas sociais, às
mudanças de comportamentos, na política e na economia. [REIS DA SILVA,
2015, p.36].

Por fim, é notório a importância da escola tanto no combate à discriminação,


preconceito e bullying. Pois, a partir do momento que se discute o assunto com
as práticas cotidianas dentro da escola, teremos cidadãos educados na
igualdade e formando uma sociedade mais igualitária, desconstruindo os
preconceitos e julgamentos errôneos já estabelecidos e vigente na sociedade.

Considerações finais

Por fim, percebemos que a moda é uma forma de expressão tendo a imprensa
como uma forte aliada, como as revistas e os jornais para a construção e
propagação desse fenômeno característico da modernidade. Dessa forma, o
texto buscamos estabelecer um diálogo educativo no âmbito do ensino de
história sobre gênero através dos manuais de moda, assim como as múltiplas
possibilidades do uso desses manuais para aprendizagem dos educandos e,
consequentemente, a importância das vestimentas para o estudo da História,
tendo em vista que esses trajes também são uma espécie de documento. A
moda, muito ao contrário do que grande parte das pessoas pensam não serve
apenas para estabelecer uma distinção de classe social, depois do estudo aqui
realizado podemos perceber que a moda vai além das aparências, é possível
notar a subjetividade das pessoas, a mesma funciona como um interlocutor entre
vários assuntos da sociedade como gênero, idade, cultura e profissão.

Referências biográficas 202

Marta Gleiciane Rodrigues Pinheiro é graduanda em Licenciatura Plena em


História, pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade
Estadual do Maranhão-CESC/UEMA. Membro do Grupo de Estudos de Gêneros
do Maranhão- GRUGEM/UEMA e Grupo de Teatro do Centro de Estudos
Superiores de Caxias – CESC – Campus /UEMA.

Jakson dos Santos Ribeiro - Professor Adjunto I, Doutor em História Social da


Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História Social
pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em História do
Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano) (2011).
Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual
do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA) (2011).
Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão- GRUGEM/UEMA
Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro de Estudos Superiores de
Caxias – CESC – Campus /UEMA.

Referências bibliográficas

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2001.

FERNANDES, Robson Ferreira, Projeto “gênero e diversidade na escola” e o


ensino de História: os cartazes como fontes para as subjetividades. In: Ensino
de História e Estudos de Gênero. 1ª Ed. Rio de Janeiro/Nova Andradina: Sobre
Ontens/UFMS, 2020.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas


sociedades modernas. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.

Rainho, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas


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REIS DA SILVA, Ludéllen. Do espartilho à minissaia jeans: reflexos da


emancipação feminina na moda vestimentária da mulher caxiense (1980-1990).
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REIS, José Carlos. A escola metódica, dita “positivista”. p: 11 – 26. In. A História,
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SCHMIDT, Maria Auxiliadora; GARCIA; Tânia Maria F. Braga. A Formação da 203


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SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de História e o cotidiano


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POR UM ENSINO DE HISTÓRIA
FEMINISTA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA NO ENSINO MÉDIO 204

PRÉ-PANDEMIA
Miléia Santos Almeida
São tempos muito difíceis para sonhadoras/es. São tempos difíceis para
professoras/es e estudantes que tiveram que se adaptar a um modelo de ensino
remoto emergencial que impede os afetos e aprofunda desigualdades, mas que
se tornou a única alternativa viável diante de uma pandemia que ceifou centenas
de milhares de vidas no Brasil. Para recordar as boas vivências nos espaços
presenciais antes que o covid19 mudasse radicalmente as nossas vidas,
enquanto aguardamos que seja absolutamente seguro o retorno às salas de
aula, esse trabalho procura analisar os resultados de uma experiência de ensino
de história das mulheres para turmas concluintes do ensino médio em 2019.
Como afirma bell hooks: “os professores progressistas que trabalham para
transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas de
dominação nem reflita mais nenhuma parcialidade são, em geral, os indivíduos
mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer
de sua prática de ensino um foco de resistência”. (2017, p. 36). Assim, em
tempos tão complicados para quem escreve e ensina História, enfrentando uma
epidemia de negacionismo, desvalorização intelectual, desigualdades e
violências estruturais, lecionar uma História feminista é um reduto de resistência.

A História das Mulheres, como campo de pesquisa historiográfico, começou a


ganhar espaço, relevância e visibilidade a partir das transformações que
marcaram o século XX e renovaram os métodos, objetos, fontes, problemas e
sujeitos da História. Todavia, foi nas décadas de 1970 e 1980 que a História das
Mulheres se consolidou, inclusive como campo de disputa teórica, dando a
origem a discussões sobre os limites de uma análise descritiva e abrindo
caminho para a análise de gênero, que investiga os aspectos das relações
culturais entre os sexos. Para Rachel Soihet: “divergência de posições, debates,
controvérsias, este é o quadro hoje da história das mulheres; quadro que se
afigura dos mais promissores e que coincide com a diversidade de correntes
presentes na historiografia atual” (1988, p.83).

Dessa forma, a História das Mulheres possibilitou a emergência de uma


epistemologia feminista nas Ciências Humanas, enquanto campo cientifico e
político, pois deve sua formulação teórica à prática militante de transformação
social. Como afirma Louise Tilly: “Um aspecto da história das mulheres que a
distingue particularmente das outras é o fato de ter sido uma história a um
movimento social: por um longo período, ela foi escrita a partir de convicções
feministas. Certamente toda história é herdeira de um contexto político, mas
relativamente poucas histórias têm uma ligação tão forte com um programa de
transformação e de ação como a história das mulheres. Quer as historiadoras
tenham sido ou não membros de organizações feministas ou de grupos de 205
conscientização, quer elas se definissem ou não como feministas, seus trabalhos
não foram menos marcados pelo movimento feminista de 1970 e 1980”. (1994,
p.31)

Por sua vez, o ensino de História percorreu também um caminho de alterações


em seu currículo e método de ensino e aprendizagem, muitas vezes com o
objetivo de se adequar a uma formação esperada pelo mercado de trabalho e,
não necessariamente a uma formação humana de cunho transformador da
sociedade. Assim: “A partir das novas exigências curriculares de formação para
cidadania e democracia, impõe-se cada vez mais a necessidade de articular as
discussões feministas, sobre as identidades e relações de gênero, com o saber
histórico a ser ensinado, no caminho da promoção de uma educação escolar
transformadora, que eduque para o respeito e a igualdade entre homens e
mulheres”. (OLIVEIRA, 2014, p.286).

Documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) incluíram na


prática curricular dos planos de ensino os chamados “temas transversais”,
possibilitando uma relação entre os conteúdos escolares e o cotidiano dos/as
estudantes. Os livros didáticos passaram a se adequar aos novos padrões
curriculares e o papel das mulheres nos acontecimentos e conjunturas históricas
começou a ser destacado com mais ênfase, embora ainda restrito a boxes
temáticos ou textos complementares. Diante desta ausência nos programas
curriculares da Educação Básica, o trabalho da/o professor/a de História dentro
e fora da sala de aula, quando se compromete em mudar esse quadro
corresponde ao de pesquisador/a e provocador/a do debate para despertar em
seu alunos e alunas, a necessidade de romper silêncios historiográficos sobre
as mulheres em diferentes épocas e lugares para compreensão da formação da
sociedade contemporânea.

Sob tal perspectiva, este trabalho, de caráter introdutório, tem a finalidade de


analisar as percepções de estudantes do 3º ano do Ensino Médio do atual
Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo, localizado na cidade de São
Desidério, região Oeste do estado da Bahia. Outrora Colégio Presidente Médici,
foi renomeado em 2020 para que o nome de um dos educadores da cidade
substituísse o título de um presidente da ditadura militar. Esses/as estudantes
cursaram os turnos matutino, vespertino ou noturno em 2019 e participaram de
um projeto denominado Painel de História das Mulheres.

Em tempos de isolamento e distanciamento social ocasionados por um contexto


de pandemia mundial do covid19, momento em que as escolas se encontram
fechadas e, muitas/os professoras/es e alunas/os tentam se adequar a rotinas
de estudos não-presenciais, surgiu a oportunidade de entrar em contato com
estudantes egressos do Ensino Médio e mapear algumas informações, por meio
de um formulário eletrônico. Vale ressaltar que o acesso à internet em um
município de grande população rural, nem sempre é satisfatório e
democratizado, além de que os estudos a distância esbarram em outras
dificuldades tais, como a inexistência de uma disciplina anterior de organização 206
e rotina, assim como fatores socioeconômicos diversos.

Resultados

O formulário online, respondido por um total de 14 pessoas, de um universo total


de cerca de 90 estudantes, em sua maioria do turno matutino, reflete também a
falta de disponibilidade e/ou acesso à internet de uma parcela dos/as alunos/as
egressos/as. É possível identificar, por meio de perguntas de múltipla escolha,
que os/as estudantes demonstram ter noção da importância do conteúdo no
componente curricular de História e já reconhecem a necessidade do
aprendizado do tema, o que podemos observar por meio dos gráficos abaixo.

Fonte: Dados coletados por meio de formulário google, 2020.


207

Fonte: Dados coletados por meio de formulário google, 2020.

Em relação aos livros didáticos de História, a percepção das entrevistadas e


entrevistados da pesquisa, é de que o conteúdo está presente, porém não de
forma completamente satisfatória. De fato, o livro utilizado entre os anos de 2018
e 2020, se adequa às exigências editoriais, além de trazer novas perspectivas
da historiografia, mas ainda é um material bastante limitado, o que exige a busca
por outras bibliografias não apenas para a professora, mas para o público
estudantil.

Fonte: Dados coletados por meio de formulário google, 2020.

Vale ressaltar que o livro didático não pode nem deve ser o único recurso
pedagógico, e sim um auxílio metodológico. No entanto, muitas vezes, é o único
material ao qual a/o estudante de escola pública tem acesso. Para Susane
Oliveira, “sabemos que os livros didáticos não são os únicos culpados pela
veiculação de concepções de gênero sexistas e machistas. Neste sentido,
questioná-los em sala de aula ajuda a promover uma atitude de questionamento
e crítica diante da multiplicidade de saberes históricos que circulam no cotidiano
das/os estudantes. Assim, serão capazes de “ler o mundo” à sua volta, de
interpretar a sociedade, para que saibam se posicionar de forma consciente
diante da multiplicidade de informações que confrontam todos os dias”. (2014, p.
289) 208

Por sua vez, a internet tem representado o principal recurso de pesquisa para
realização de trabalhos avaliativos individuais e/ou em equipe, como a atividade
“Painel de História das Mulheres”, na qual equipes se organizaram para
pesquisar, produzir e apresentar um mural com fotografias e legendas sobre
mulheres em diferentes contextos da História.

Fonte: Dados coletados por meio de formulário google, 2020.

A valorização dos recursos digitais e tecnológicos, para uma geração de


adolescentes ultra conectada, mesmo em regiões com um acesso reduzido e
oriundas de famílias sem tantos recursos para aquisição de aparelhos
eletrônicos e de informática, é um fato a ser considerado. Os celulares
smartphones se tornaram uma ferramenta de estudos, pesquisa e até mesmo
produção de trabalhos, ainda que não possua as funções mais adequadas para
esses fins. Além disso, possibilitam acesso a outros recursos como literatura,
filmes, músicas, entre outros, que são apontados pelos/as estudantes como
apoios pedagógicos importantes e foram utilizados em algumas aulas do ano
letivo. Um plano de ensino remoto emergencial na rede estadual da Bahia só foi
efetivado em 2021 diante das inúmeras dificuldades de alcance de muitos/as
discentes, e a utilização de meios como Google Meet, Google Classroom, entre
outros aplicativos, nos telefones celulares se tornou uma realidade cotidiana, que
reflete também as desigualdades e a falta de inclusão digital e tecnológica que
aumenta o abismo social no Brasil.
209

Fonte: Dados coletados por meio de formulário google, 2020.

As sugestões oferecidas para melhoria do ensino de História das Mulheres


pelas/os entrevistadas/os do questionário, em uma questão de resposta aberta,
servem como subsidio ao planejamento das aulas. Entre os apontamentos,
sugerem uma aproximação maior com experiências práticas do cotidiano. A
sugestão de M.E.G.S. é: “Aulas mais práticas e dinâmicas, com exemplos reais
de mulheres em nossa cidade assim fazendo pesquisas/entrevistas com essas
mesmas”. Para P.M., “A participação de mulheres que viveu algum fato,
mulheres que lutam contra a escravidão por exemplo. Mulheres que tenham
algum projeto para ajudar outras mulheres”.

Além disso, surgiram alguns relatos sobre aprendizados referentes a recursos


utilizados nas aulas como feedback do trabalho, em alusão a implementação
desses apoios pedagógicos. Para I.F.: “Passando filmes e séries sobre a história
das mulheres. No terceiro ano aprendi muito mais sobre a história das mulheres
por uma série que passaram que foi 'As telefonistas’. Lá resume bem sobre as
mulheres e seus direitos, é bem interessante para o aprendizado”. Esse
depoimento auxilia na avaliação positiva de uma das metodologias utilizada no
plano de curso, sendo essa a utilização de recursos audiovisuais (filmes,
episódios de séries) de cunho ficcional, porém localizado em determinado
período histórico, como a série espanhola Telefonistas, que apresenta o contexto
europeu anterior a posterior a Primeira Guerra Mundial, as transformações
tecnológicas do século XX e os novos papeis assumidos e disputados pelas
mulheres.

Outros comentários de sugestões para o planejamento das aulas apontam para


necessidade de debates e aprofundamentos teóricos sobre conceitos como
“machismo” e “feminismo”, assim como seus reflexos na sociedade. J.V.M.
enfatiza a necessidade de “Debates que promovam a discussão das mazelas
que as mulheres sofrem atualmente, assim como as concepções machistas do
passado que ainda prevalecem no presente, implícita ou explicitamente; estudo
de grupos estigmatizados e submetidos ao etnocentrismo (como as mulheres
negras e indígenas), a fim de contribuir para o senso crítico dos alunos”. Para
S.S.N., “Infelizmente em história vemos como a mulher sofreu para ter um
mínimo de reconhecimento. Até hoje, a mulher sofre preconceito pelo simples 210
fato de ser mulher num país machista como é o Brasil. É preciso respeito por
parte dos alunos é igualdade de gênero perante a todos. É importante deixar
bem claro o que é machismo, feminismos e femismo”. Pelo relato desse
estudante, percebemos também a importância da história dos conceitos no
ensino e aprendizagem da História, pois “a história conceitual abarca aquela
zona de convergência em que o passado, junto com seus conceitos, afeta os
conceitos atuais. Precisa, pois, de uma teoria, pois sem ela não poderia conceber
o que há de comum e de diferente no tempo. (KOSELLECK, 1993, p. 24).

Entre as sugestões de planejamento das atividades, uma se destaca, pelo seu


caráter prática e de transposição didática. A aluna L.A.C.R. sugere a criação de
um livro de auxílio ao trabalho pedagógico. Para ela: “Como o tema é abordado
de forma muito vaga em alguns livros, isto é, quando o livro retrata algo, o que é
muito raro, seria interessante se os próprios alunos juntamente com a professora
elaborassem um livro na qual seria utilizado por cada um sobre o tema, contendo
no mesmo a história de mulheres ou até mesmo mulheres da sociedade atual
que tem um exemplo de vida. Assim como as da história lutaram e lutam por uma
vida melhor para a nossa sociedade, o livro também teria exemplos de livros,
filmes, séries, artigos e músicas que fale sobre essas mulheres, podendo assim
influenciar outras pessoas a ver essas histórias e também incentivar os próprios
alunos a buscarem novas histórias e consequentemente aprendendo mais sobre
esse tema que ainda precisa de muita atenção”.

Considerações finais

A historiadora francesa Michelle Perrot, ao problematizar os silêncios da


historiografia oficial sobre as mulheres, afirma: “É o olhar que faz a História. No
coração de qualquer relato histórico, há a vontade de saber. No que se refere às
mulheres, esta vontade foi por muito tempo inexistente. Escrever a história das
mulheres supõe que elas sejam levadas a sério, que se dê à relação entre os
sexos um peso, ainda que relativo, nos acontecimentos ou na evolução das
sociedades” (2002, p.14). Essa vontade de saber acerca da história das
mulheres está presente nos depoimentos das/os estudantes egressas/os do
Ensino Médio e em suas propostas para a melhoria do ensino e aprendizagens,
que devem ser levadas a sério e incorporados no planejamento do curso,
atribuindo um papel de sujeito do próprio conhecimento ao estudante e
relacionando o conteúdo ao seu cotidiano, o que atribui significado ao
aprendizado escolar.

A escola C.E.P.M.M.C., onde foram realizadas as atividades que originaram os


formulários, ainda não adotou a Base Nacional Curricular do Novo Ensino Médio,
que deverá ser implementada nos próximos anos, a depender da implantação
da carga horária do ensino remoto. Todavia, as reformas que remodelam a
estrutura curricular, em nosso país, retiram da História o caráter de
obrigatoriedade nessa modalidade de ensino, tornando-a disciplina optativa do
itinerário formativo de Ciências Humanas. Como salienta Circe Bittencourt: “O
controle dos currículos pela lógica do mercado é, portanto, estratégico e 211
proporciona o domínio sobre o tempo presente e futuro dos alunos” (2018, p.
144) e, desse modo, a adequação do currículo do Ensino Médio a um caráter
mais profissionalizante e nos moldes do capitalismo neoliberal e globalizado
concorre com uma formação humana voltada para o exercício da cidadania. É
nesse sentido que o ensino de História das Mulheres deve assumir um papel de
resistência frente a retrocessos e desafios como os que se impuseram aos
Planos Municipais de Educação, diante da reação de setores religiosos e
políticos conservadores a inclusão do termo “gênero” nas propostas curriculares.
O ensino de História das Mulheres não pode assim, se restringir a um caráter
descritivo, biográfico ou ilustrativo, mas ser um instrumento de formação crítica
para as/os estudantes de Ensino Médio.

Referências biográficas

Ma. Miléia Santos Almeida, professora da Secretaria de Educação do Estado da


Bahia. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
de Brasília.

Referências bibliográficas

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212
O COMBATE À VIOLÊNCIA DE
GÊNERO UTILIZANDO OS
PROCESSOS CRIMINAIS DE UNIÃO 213

DA VITÓRIA DENTRO DA SALA DE


AULA
Milena Silvério Ferreira
União da Vitória é uma cidade localizada no sudeste paranaense, é um município
interiorano, no entanto engana-se quem pensa que foi um lugar tranquilo ou
pacato, havia vários crimes acontecendo no dia a dia da população, dentre os
quais aqui serão expostos os crimes de ordem sexual contra as mulheres, dessa
forma serão utilizados como fontes históricas os inquéritos judiciais do LAFJUR
(LABORATÓRIO DE PROCESSAMENTO, RESTAURO E CONSERVAÇÃO DE
FONTES HISTÓRICAS) pertencente ao curso de História da UNESPAR de
União da Vitória.

Para as historiadoras e historiadores fica a missão de entender essas situações,


compreendendo vários fatores do contexto de tal sociedade através dos
processos criminais, pois cada processo é uma história que possui inúmeras
representações, como disse o autor Hélio Sochodolak (2016, p. 03) citando o
escritor Sidney Chalhoub (1986, p. 41-42) “cada história recuperada através dos
jornais e, principalmente, dos processos criminais é uma encruzilhada de muitas
lutas [...] Resta ao historiador a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu
caminho em direção aos atos e representações que expressam”, portanto
através dos processos crimes se pode analisar inúmeros fatores, percebendo a
maneira das pessoas de agirem no particular e no coletivo. Com certeza ver os
crimes que foram cometidos contra essas mulheres é reconhecer os fatos
(muitas vezes negligenciados) e compreender suas lutas, leva-los para a sala de
aula é um caminho para ir na contra mão dessa intensa violência.

É fato que os crimes são resultados da convivência humana, levando em


consideração a estrutura social de pensamento de cada indivíduo que definem
suas atitudes perante as pessoas e na sociedade. Deve-se também falar que
existiam maneiras consideradas corretas de se portar na sociedade,
principalmente para as mulheres, que poderiam trazer consequências, como
bem explicou Caufield:

“É possível encontrar, nas entrelinhas dos depoimentos, evidências de como


vítimas, réus e testemunhas descrevem não somente os acontecimentos que os
levaram à Justiça, mas também diversos relacionamentos sociais e condutas
que eles consideravam corretos ou errados. Mesmo quando mentem ou
inventam posturas morais, fazem-no de uma forma que acreditam ser verossímil
e, portanto, ajudam a traçar os limites da moralidade comum”. (CAUFIELD, 2000,
p. 39-40).
214
Por isso é extremamente importante levar assuntos como este (violência de
gênero) para a sala de aula para que as nossas alunas e alunos compreendam
como isso está institucionalizado na sociedade brasileira.

Maria Augusta Belucci pontua através de Miranda o quanto os processos


criminais podem auxiliar os alunos e alunas a criarem empatia histórica:

“Miranda pontua que “[...] o desafio hoje interposto ao ensino de História


consiste, portanto, em aprofundar os caminhos de diálogos possíveis entre os
dois campos de saber para promover uma educação que evidencie as operações
de memória como elementos potentes para a formação do pensamento histórico”
(2012, p.267). E ainda nos traz que “[...] quando o saber histórico escolar,
mobilizado pela discussão procedimental da História e das operações de
Memória, possibilita um novo olhar sobre o passado e sobre a História, ele se
torna capaz de conferir ao aluno um lugar de protagonismo imprescindível à
construção de empatia histórica”. (BELUCCI, 2019, p. 01).

Neste caso específico espera-se que os alunos e alunas dentro da sala de aula
criem empatia pelas mulheres, entendendo o quanto elas sofreram e sofrem
diversas violências, portanto desenvolvendo empatia histórica por elas.
Um dos processos mais tristes que se pode citar é de Margarida Lina, ela foi
abusada dentro de casa por seu padrasto, um parente até então próximo e de
extrema confiança da família, como se pode ver:

“Em dia e hora indeterminada, no lugar de sua residência, o indiciado Germano


Meier manteve relações carnais com sua enteada Margarida Lina, alemã,
solteira, com 38 anos de idade, aproveitando-se o indiciado de circunstâncias de
ser a ofendida incapaz mentalmente, conforme laudo pericial de fls. 12”.
(Processo-crime, nº 1, 1944, LAFJUR).

Infelizmente esse tipo de acontecimento (onde a vítima é violentada dentro da


sua residência) não era único, outro processo que descreve mais uma violência
sexual é o da senhora Joana Kaviuk, ela estava no pátio da sua fazenda, às nove
horas da manhã cuidando das suas plantações quando foi surpreendida por
alguns indivíduos, sendo que um deles tentou violenta-la, conforme a queixa
prestada pelo seu marido.

“Que no dia 26 de Novembro de 1954, as 9 horas da manhã, na referida fazenda


sua senhora ao plantar milho foi agredida por o indivíduo de nome Silvano
Filleno, também residente nesta fazenda acompanhada por mais três indivíduos
armados de espingardas (inelegível) agiram da seguinte maneira: Que a sua
senhora estava plantando a sua roça quando apareceram o dito indivíduo
acompanhado de mais quaro pessoas investindo contra referida, afim de
violenta-la, que não conseguiram seu entento por ter a mesma reagido, e ter a
mesma conseguido escapar das mãos dos tarados, sofrendo sérias lesões
corporais como demonstra o atestado médico incluso” (Processo-crime, nº 2,
1955, LAFJUR). 215

Comparando os dois casos, o de Margarida e o de Joana se deve atentar que


as duas vítimas estavam nas suas casas, onde deveriam se sentir seguras,
próximo a pessoas de confiança que viviam nos mesmos lugares que as
referidas e ainda assim uma delas foi estuprada pelo seu padrasto e a outra
sofreu uma tentativa de estupro da qual conseguiu se defender e escapar de
homens armados, ficando com lesões físicas sérias.

Fazendo uma análise do auto de declarações, ou seja, atendo aos detalhes do


processo, é perceptível certa justificativa do acusado para com a agressão
sofrida pela Joana, algo que aconteceu e ainda acontece muito na sociedade
atual, quando se joga a culpa da violência na mulher, nesse caso específico o
agressor alegou que Joana por desentendimentos econômicos relacionados
com as suas plantações de milho, partiu para agredi-lo e ele se defendeu.

“O declarante é capataz da Vila Zulmira neste município de propriedade do


senhor Otávio de Oliveira Castro; que o declarante encarregado de cuidar das
criações e dos pastos e terra de cultura; naquela propriedade reside Pedro
Kaviuk há uns nove anos (inelegível) naquela fazenda na condição de agregado
do senhor Otávio; que de quatro anos para cá Pedro Kaviuk, não vinha plantando
suas roças naquela terras, que porém continuava com sua família residindo na
fazenda e ele reside nesta cidade e trabalha como barbeiro; que novembro do
ano próximo passado a esposa de Pedro Kaviuk, resolver fazer uma derrubada
de capoeira fina de meio alquer de área (inelegível) menos para plantar milho e
feijão; que assim que o senhor Otávio teve conhecimento da roçada mandou o
declarante que fosse dizer para a mulher de Pedro Kaviuk que ela não tinha sua
licença para plantar naquela fazenda; que nessa ocasião Pedro Kaviuk, estava
na casa e respondeu ao declarante que ele queimava a roçada e plantava e não
obedecia ordem de ninguém; que no dia seguinte queimou a roça e depois disto
o declarante foi a casa comercial de Horelio Menezes, também é administrador
da fazenda, mandou o declarante e mais João (inelegível) Francisco Souza e
Marcelino Roma que fossem plantar milho (inelegível) queimada, que o
declarante como precisava de ganhar as diárias de quarenta cruzeiros oferecido
por Horelio, foi com seus colegas para a roça; que chegando lá que encontrou-
se com a mulher de Pedro Kaviuk que também estava plantando milho; que o
declarante disse para ela não podia plantar aquela roça e ele declarante e seus
colegas haviam recebido ordem de Horelio Menezes para plantar milho alí; que
a mulher tentou dar no declarante com a cavadeira, que então o declarante
tomou a cavadeira da mão de sua agressora; que em seguida a mulher
(inelegível) e disse ao declarante esta bem eu não planto a roça e o (inelegível)
também não vai plantar” (Processo-crime, nº 2, 1955, LAFJUR).
Aqui se desmistifica a ideia incorreta de que os lugares e horários fazem alguma
diferença para que a violência sexual contra as mulheres não ocorra, já que as
duas vítimas estavam nas suas respectivas residências, mostrar estas fontes
para os estudantes é essencial para mostrar aos discentes que as mulheres
podem ser violentadas em diversos lugares, inclusive nas suas próprias casas. 216

“Como o conhecimento não é produzido exclusivamente pelo professor, o aluno,


através do trabalho direto com fontes ou documentos, pode ser levado a construir
o conhecimento da História e a descobrir os seus conteúdos através destes, pois
que todo documento sendo um conjunto de signos, visual, textual, constitui-se
como fonte de informações sobre um objeto determinado” (BELUCCI, 2019, p.
02).

Como afirmou a autora acima, é necessário compreender que esse


conhecimento não é de exclusividade do professor ou professora, visto que é
organização de ideias desenvolvidas em conjunto, pois as experiências e os
fatores dos contextos vividos por eles e elas devem ser levados consideração
para focar no principal objetivo, o combate à violência.

Os inquéritos apontam para uma violência de gênero que segundo Heleieth


Saffioti (2001, p. 116) é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como
mulheres, adolescentes e crianças, onde uma sociedade patriarcal, ou seja,
dominada pelos sujeitos do sexo masculino possuem o poder de organizar a
sociedade como bem entenderem, e, diga-se de passagem, as nossas
estudantes podem ser vítimas desta violência e infelizmente a lei em muitos
momentos não as apoia.

Sobre isso também é interessante frisar a organização da lei, como bem explica
a escritora Sandra Jatahy Pesavento, geralmente a constituição das leis para
que ocorra a justiça é um acordo para favorecer um lado, quase sempre os
grandes favorecidos por ela são os homens ou aqueles que ajudam a produzir a
mesma:

“A lei é, pois, fruto de uma vontade e de um acordo entre os homens, ou, pelo
menos, do comum acordo entre aqueles que a fazem. É resultado de uma
negociação entre seus autores em face de uma questão posta pelo convívio
social. Sendo determinação e vontade, é uma forma objetiva de normatização
da vida ou do controle social que pressupõe uma representação da sociedade
desejável. Ou seja, a lei dispõe, interdita, concede, tendo como referência
padrões que os homens estabelecem através da história”. (PESAVENTO, 2004,
p. 27).

Outro fator determinante, como muito bem é ressaltado pela Maria Augusta
Belucci, é que os processos criminais trazem uma versão do vencedor, por isso
a importância de ter professoras e professores capacitados e que compreendam
isso, para poder ajudar os/as discentes nesta análise mais complexa dos
inquéritos.

“Destacamos ainda que, como os documentos oficiais tendem a trazer a versão


dos vencedores, daqueles que triunfaram sobre os oprimidos, não podemos nos
esquecer de que Benjamin entende estes como documentos da barbárie, 217
testemunhos da civilização como testemunhos da barbárie deveremos trabalhar
sob outro olhar, como “tesouros de valores, dos processos que sobreviveram
(2009, p. 509). Para Benjamin o historiador é obrigado a explicar de uma ou outra
maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em
representá-los como modelos da história do mundo. (BELUCCI, 2019, p. 04).

Para estruturar essa citação, se pode falar sobre os processos criminais de


defloramento, neles está embutida uma história oficial, onde em diversos
momentos o pai, chefe de família é visto como grande vítima do ato, tanto é, que
quem presta a queixa na delegacia é ele. Os crimes de defloramento eram
previstos pelo código penal brasileiro vigente da época (1940), normalmente
estes inquéritos eram abertos quando a mulher ou adolescente mantinham
relações sexuais com seus noivos ou namorados antes do casamento, então o
representante da família, maior de idade, habitualmente o pai (como no caso
abaixo), prestava queixa na delegacia como um meio de restaurar a honra
feminina que havia sido corrompida por tal ato, deste modo poderia ser realizado
o casamento entre os pares, até mesmo pela própria descrição de certos
processos a tentativa de fazer a cerimônia era para reparar o mal feito, como é
o caso de Anair Soares que foi deflorada pelo seu namorado e veio a engravidar.

“Que, há mais ou menos um ano, Alvino Lemos de Souza, começou com


namoros com a sua filha Anair Soares Cunha, brasileira, solteira, com 16 anos
de idade; que desse namoro, mais tarde, a amizade entre ambos foi se
avolumando, tendo o mesmo namorado frequentado a casa da mesma menor;
que em agosto do passado ano, o referido namorado, aproveitando-se dessa
amizade e da confiança da família da ofendida, violentou a dita menor mantendo
com ela conjunção carnal; que, em decorrência dêsse fato, a menor Anair Soares
Cunha veio de engravidar, com conhecimento do mesmo namorado que, ante
isso, se tem equivalo reparar o mal feito). (Processo-crime, nº9, 1954,
LAFJUR).

De acordo com a lei vigente nessa década o casamento deveria ser realizado,
não pelos sentimentos, mas sim como um entendimento entre o pai da vítima e
seu futuro marido para que ela fosse uma mulher considerada novamente
honrada. Conforme o processo, Alvino tinha concordado em casar-se com
Anair, no entanto chegando próximo a data do casório ele se desentendeu com
a moça recusando-se a participar do casamento, abandonando Anair grávida,
dessa forma se compreende o dinamismo desta violência, que aparece em
vários segmentos sociais e de diversos jeitos, afetando mulheres de todas as
idades.
O ensino da história pode mover ideias, transformar pensamentos e sem
sombras de dúvidas, mudar a realidade, principalmente daqueles e daquelas que
são injustiçadas pela sociedade. Por conseguinte fica nítido que os documentos
judiciários são um importante instrumento pedagógico na sala de aula na
tentativa de combater a violência contra as mulheres.
218
Referências biográficas

Milena Silvério Ferreira. Graduada em História pela Universidade Estadual do


Paraná – Campus União da Vitória.

Referências bibliográficas

BELUCCI, Maria Augusta. OS PROCESSOS CRIMES DO PODER JUDICIÁRIO


COMO FONTES HISTÓRICA EM SALA DE AULA. 30º Simpósio Nacional de
História – Recife, 2019.

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação


no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000.

PESAVENTO, S. Jatahy. História & história cultural. 2. ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2008.

Processo-crime de estupro. Margarida Lina. nº 1. Ano: 1944. LAFJUR.

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LAFJUR.

Processo-crime por defloramento. Anair Soares. nº 9. Ano: 1954. LAFJUR.

SAFFIOTI, Heleieth I B. Contribuições feministas para o estudo de gênero.


Cadernos pagu. (16). 2001. pp. 115-136.

SOCHODOLAK, Hélio. REGIÕES, VIOLÊNCIA E PROCESSOS CRIMINAIS.


UFPR, Curitiba: XV Encontro Regional de História, 2016.
PROJETO JUNTANDO OS CACOS:
RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA
COM ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO 219

BÁSICA
Rafael Sampaio de Queiróz
O projeto Juntando os Cacos se desenvolveu com as turmas do ensino médio
na Escola Estadual Luiz Soares Andrade de Nova Andradina – MS, com a
finalidade de proporcionar e estimular os estudantes na compreensão da
pluralidade cultural e social, considerando que o ambiente escolar é propício
para abordagens destes temas, bem como para a manifestação de conflitos
relacionados a eles. O projeto foi voltado ao enfrentamento e à prevenção de
diversas práticas de preconceito e discriminação, tratando de questões como as
novas configurações familiares e o uso de substâncias psicoativas.

Por meio de uma pesquisa em fichas elaboradas pelo professor e equipe


pedagógica da unidade escolar foi notório que em muitas famílias a violência
doméstica está presente e acontece pela falta de entendimento e aceitação da
“diferença do outro”, desta forma, a dinâmica das oficinas realizadas era de
enfrentar e superar o preconceito estrutural enraizado na sociedade, onde o que
não está dentro dos padrões sociais impostos é considerado como errado e sofre
represálias.

A dinâmica de desenvolvimento do projeto se dava em culminância com as aulas


de História e se relacionava no que foi chamado de teia: um trabalho com o apoio
de outros profissionais que puderam auxiliar a escola e os estudantes a imergir
na dinâmica da temática sem perder o foco e a seriedade, bem como o intuito
era flexibilizar os encontros para que os estudantes não desanimassem da
participação, visto que a mesma não era obrigatória. Por vezes foi notado na fala
dos participantes relatos pessoais que os estudantes viveram ou estavam
vivendo e com isso outros se identificavam e motivavam-se em também se
abrirem à proposta e com isso integrar a teoria que estudávamos na prática de
sua vida, atividades para ser trabalhar em família também foram propostas tais
como: produções textuais sobre a importância de valorizar o outro, análise de
imagens, vídeos extraídos do youtube que apresentavam a relação de jovens
que passaram problemáticas referente a sua sexualidade e falta de aceitação do
meio em que viviam, para serem assistidos com os familiares e que
posteriormente as famílias fariam um relato de aprendizagem e também
ocorreram palestras com psicólogos e advogados.
Todo o projeto foi pensado com base nos livros ‘Caco e Tosco’, de Gilberto Mattje
que possui trajetória acadêmica com graduação em Psicologia pela
Universidade Católica Dom Bosco (1996), graduação em Curso Integrado de
Filosofia e Teologia pela Escola Superior de Estudos Filosóficos e Sociais
(1988), especialização em Especialização em Psicanálise pela Universidade
Católica Dom Bosco (2008) e mestrado em Psicologia pela Universidade 220
Católica Dom Bosco (1999). O autor apresenta o personagem Caco que busca
soluções críticas para a resolução de seus conflitos enquanto adolescente, o
mesmo com o psicológico abalado, enfrenta dificuldades, mas também encontra
a compreensão em uma pessoa, o Tosco, que agora é seu professor. O livro
instiga a auto - percepção de atitudes, pensamentos, sentimentos e,
consequentemente, o entendimento de si e do outro bem como a superação dos
problemas.

Dentre várias abordagens sobre preconceito, a ênfase foi na questão da


orientação sexual, de modo que os estudantes realizaram a leitura do livro em
grupos, desenvolveram pesquisas no laboratório de tecnologias da escola,
resumos e apresentações de seminários para melhor aprendizagem e
principalmente para a quebra de preconceitos. Um dos pontos mais relevantes
trabalhados nas oficinas foi a compreensão da dicotomia do masculino e
feminino e dessa forma foi possível perceber que mesmo diante do sexo
biológico, homens e mulheres podem ter diferentes orientações sexuais e que
as mesmas devem ser respeitadas e tratadas com naturalidade, visto que a
orientação de uma pessoa não a condiciona em classificação de certo e errado,
e essa compreensão de julgar mediante as crenças ou até mesmo por meio do
senso comum foi perceptível na fala de alguns estudantes e de suas famílias,
com isso foi visto pela equipe pedagógica da escola a importância de aprofundar
os eixos temáticos e também aproximar não apenas os estudantes destes
debates, mas também a comunidade escolar como um todo.

Em ação o projeto promoveu debates com os seguintes temas: Diferença entre


sexo biológico, orientação sexual, identidade de gênero e sexualidade;
Afetividade e Sexualidade; Preconceito x Discriminação, A Violência contra o
diferente e as leis sociais; Conceito de família. Todas essas abordagens foram
de suma importância para a comunidade escolar, visto que os que não estavam
familiarizados com os termos, poderiam então confundi-los, por isso foi
necessário entender que cada um deles possui a sua particularidade e
compreender a importância de cada um deles para o desenvolvimento integral
da pessoa como algo fundamental.

No que tange ao campo do gênero e sexualidade humana, entende – se que o


sexo é uma parte integrante de nossa formação biológica, a identidade de gênero
é a parte psicológica íntima da pessoa, que pode ou não se conformar ao seu
meio externo, sendo assim o sexo define aquilo que socialmente foi constituído
com masculino, feminino ou intersexuais que apresentam geralmente apenas um
órgão sexual, mas possuem características sexuais masculinas e femininas.
A identidade de gênero é a percepção que o indivíduo tem sobre si, trata-se de
uma experiência interna e individual que pode ou não corresponder àquela
atribuída ao seu sexo biológico no nascimento, isso acaba incluindo o senso
pessoal do corpo que pode envolver por livre escolha a modificação da aparência
ou função corporal por meios cirúrgicos e outras expressões de gênero, como a
mudança na forma de se vestir. Uma outra expressão a ser compreendida é da 221
assexualidade, ou seja, quando um indivíduo não sente nenhuma atração ou
desejo sexual por ninguém, seja de gênero oposto ou igual ao seu.

Um viés muito importante trabalhado no decorrer dos encontros e oficinas foi a


compreensão dos danos emocionais causados pela não aceitação de si mesmo,
da sua orientação e também da gravidade psicológica ocasionada por meio da
violência verbal, emocional e física, sofrida por muitas pessoas mediante sua
orientação sexual, o que por vezes gera graves transtornos. Um exemplo claro
disso era o personagem Caco que foi um menino comum, mas que sempre
sofreu bullying por ser acima do peso e tal fato o deixava muito triste. Para
compensar essa tristeza, Caco buscava se refugiar em jogos além de fazer
amizades com garotos skinheads extremistas muitas vezes pertencentes a
movimentos neonazistas que segregam a sociedade com discursos
preconceituosos contra negros e negras, homossexuais e imigrantes.

A leitura e as oficinas passaram a ficar mais atrativas conforme os estudantes


avançavam na leitura e passavam a ter acesso à história de vida do Caco,
inclusive muitos se emocionavam, se identificavam por viverem a mesma
realidade consigo ou com pessoas próximas, na leitura ficava nítido como aquele
menino era semelhante ao cotidiano real dos envolvidos no projeto, eles notam
que com o tempo, Caco passa por mudanças comportamentais, troca os
videogames por bicicleta e academia e isso o levou a ter muitos músculos e, se
sentindo forte, arrumava brigas com todos, além de se tornar um skinhead e
zombar constantemente de homossexuais, ele entrou em choque quando sua
irmã diz que é homossexual. Caco vai parar no hospital por conta do uso de
anabolizantes e daí começa a namorar Cici, que lhe visitava sempre no hospital.
Pouco tempo depois Cici declara estar grávida e Caco não aceita tal fato e
começa a usar drogas pesadas. Essa realidade foi um meio pelo qual
conseguimos evidenciar tantos problemas na escola tal como a evasão, onde
muitos estudantes abandonam por pressão psicológica, falta de aceitação e por
não terem parte na comunidade escolar onde estão inseridos.

Quando chegamos ao final da leitura, Caco é expulso de casa e passa a morar


com a sua irmã, a única que lhe deu apoio. Entretanto, ele não muda sua atitude:
foi preso algumas vezes pelos espancamentos aos homossexuais e bebia muito.
O personagem começou a ficar com distúrbios emocionais, não dormia e
continuava a beber e então a sua irmã decide o levar a um grupo de apoio. Nesta
fase ele começou a trabalhar e suas notas melhoraram, além disso, ele tentou
encontrar Cici e o bebê por toda a cidade e, após inúmeras tentativas, descobriu
que o nome da sua filha era Jéssica. Caco se aproximou da sua filha e cuidou
dela junto com a sua mulher sendo felizes depois de tantos dias de tristeza. Com
esse aspecto trabalhamos com as famílias dos estudantes a importância do
acolhimento e aceitação da família, e a relação de diálogo com os seus para o
enfrentamento e combate ao preconceito.

Um ponto nisto tudo que foi apresentado é a importância de que quanto mais as
pessoas se sentirem oprimidas, com receios e medos e adiar a sua própria 222
transformação, compreensão e aceitação, mais dolorosa e difícil serão as suas
vidas, é importante procurar entender o outro, e mesmo que à primeira vista os
termos sexo biológico, orientação sexual, identidade de gênero e sexualidade;
podem parecer similares, porém quando conhecemos cada um deles fica
evidente a diferença entre sexo e sexualidade, por exemplo e com isso não
condicionamos as pessoas com julgamentos baseados no senso comum e em
preconceitos herdados de gerações e por desinformação.

Desta forma notou - se a importância do ensino da disciplina alinhado a projetos


que possuíssem o atendimento a realidade dos estudantes, visto que com isso
o espaço da escola torna - se dinâmico e mais atrativo e também as aulas, e o
reflexo desse trabalho foi notório na comunidade escolar, onde, com o empenho
de todos conseguimos humanizar ainda mais as relações entre as turmas e
também alguns puderam ser atendidos por profissionais especializados, já que
o projeto causou estímulo para exporem seus conflitos e necessidades.

O ensino de História na escola passou a ser visto com outros olhos, a disciplina
causou um olhar de reflexão e desconstrução histórica e não apenas como um
trabalho com fatos e memórias sem entender o que eles trazem consigo, o
projeto de história justificou-se na intenção de compreender que diversidade é
uma construção social e isso significa que as distinções não existem em si
mesmas, elas são sempre produto da cultura, e esse produto cultural, foi o
objeto de estudo, onde pode ser analisado a questão de valores sociais e
também como a escola em seu PPP (projeto político pedagógico) aborda as
questões sociais.

O projeto encerrou-se com a apresentação de entrevistas realizadas pelos


estudantes com pessoas de seu meio social e comunidade que passaram por
experiências de superação: tanto pessoas que passaram por preconceito contra
elas e outras que aprenderam a desconstruir o preconceito enraizado nelas
mesmas a partir do contato com realidades dentro de sua família e círculos de
amizade.

As apresentações ocorreram para as turmas do ensino médio no auditório da


escola e a utilização da história oral se tornou de suma importância e com o uso
do recurso puderam ser preenchidas lacunas deixadas em aberto no
desenvolver do projeto, visto que oportuniza a obtenção dos relatos de pessoas
que passaram pela experiência de preconceito contra sua identidade e dessa
forma compõem as memórias abordadas ao longo do projeto. Nas palavras de
Verena Alberti: “Sendo um método de pesquisa, a história oral não é um fim em
si mesma, e sim um meio de conhecimento. Seu emprego só se justifica no
contexto de uma investigação científica, o que pressupõe sua articulação com
um projeto de pesquisa previamente definido (ALBERTI, 2005, p. 29).

A construção desse debate proporcionado nas aulas e o olhar para as questões


sociais gera disposição e mudança, os estudantes podem associar os temas com
seu cotidiano e introduzir a “história do cotidiano” de forma com que ela seja de 223
fato percebida e interpretada, e isso se faz necessário para que ocorram
posturas diferentes e o ensino de história precisa ser esse mediador que
apresente as diferenças historicamente e como algo natural que sempre se fez
presente na humanidade, e desta maneira o ensino - aprendizagem da História
torna – se referência para o processo de construção e respeito das identidades
destes sujeitos e de seus grupos de pertença.

As aulas de História devem se tornar espaços de reflexão e não apenas de


aplicabilidade de conteúdo a ser cobrado em uma avaliação, o ensino histórico
se bem trabalhado e dinamizado pode ter um papel importante na configuração
da identidade ao incorporar a reflexão sobre o indivíduo nas suas relações
pessoais com o grupo de convívio, suas afetividades, sua participação no
coletivo e suas atitudes de compromisso com classes, grupos sociais, culturais,
valores e com gerações passadas e futuras.

O ensino de História gera possibilidade aos seus alunos para capacidade de


compreensão e análise crítica sendo que professor é o principal responsável pela
mediação e criação das situações de troca, de estímulos na construção de
relações entre o estudado e o vivido, assim a apreensão das noções de tempo
histórico em suas diversidades e complexidades podem favorecer a formação do
estudante como cidadão, fazendo - o aprender a discernir os limites e
possibilidades de sua atuação na permanência ou na transformação da realidade
histórica em que vive.

O grande trabalho do professor é mostrar que a história não é o passado apenas,


mas a sua reconstrução a partir das evidências e fatos, sejam eles de qual tempo
histórico for, e a partir dessa compreensão com suas rupturas e permanências o
estudante pode apropriar-se de um olhar consciente para sua própria sociedade
e para si mesmo. A História se concebida como processo interligado e não
isolado em si, uma ciência que percebe as diferenças e semelhanças, os
conflitos, as contradições e as solidariedades, igualdades e desigualdades
existentes na sociedade pode comparar problemáticas atuais e de outros
momentos e assim posicionar-se de forma crítica no seu presente e buscar as
relações possíveis com o passado, desmistificando ao estudante o conceito de
uma disciplina que não aborda a atualidade e que causa por vezes falta de
interesse por ser apresentada com o valor que de fato possui.

Em suma, o ensino de História não pode ser transmitido ou visto como uma
simples repetição de fatos, mas sim com a dimensão verdadeira que se tem, na
qual as práticas sociais e o resgate de memórias sociais devem ser utilizadas
para uma maior compreensão das identidades individuais e coletivas, onde o
estudante começa a construir sua identidade e não apenas construir, mas refletir
sobre a mesma e assim se tornar membro ativo da sociedade no sentido de que
tem consciência de seu espaço e seu direito e também o espaço e direito do
outro e assim perceber a importância de se estabelecer relações sem julgarmos
tanto no passado quanto no presente, e assim educar o aluno para que possa
perceber-se como sendo parte integrante da história, não simples espectador do 224
ensino desta.

Referências biográficas

Rafael Sampaio de Queiróz, professor de História da rede estadual de educação


de Mato Grosso do Sul.

Referências bibliográficas

ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2005.

MATTJE, G. Caco. Cuiabá: Alvorada, 2014.


CHRISTINE DE PIZAN (1363-1430) E A
DESCONSTRUÇÃO DA MISOGINIA
MEDIEVAL EM A CIDADE DAS 225

DAMAS (1405): ALGUNS ASPECTOS


EDUCACIONAIS
Raiely Godoi Melo
Introdução: Idade Média a “Idade dos Homens”

A Idade Média, ou “Idade das Trevas” como é comumente taxada, é um período


histórico nomeado também como a “Idade dos Homens”, pensamento esse que
foi construído historicamente por meio dos escritos medievais (DABAT, 2002, p.
22). A misoginia foi praticada veementemente na literatura Medieval, sendo os
clérigos, àqueles ligados às práticas religiosas, e outros responsáveis pelos
escritos do gênero secular, os agentes dessas obras. Os textos de caráter
misógino eram produzidos em uma quantidade maior do que aqueles em defesa
das mulheres (FONSECA, 2012, p. 168).

Por exemplo, alguns autores de época consideravam o matrimônio uma


desgraça, sendo o celibato uma condição de excelência moral, intelectual e
espiritual. Politicamente falando, isso servia como forma de eternizar o ideal do
estado civil masculino e das mulheres piedosas e devotas à Cristo (FONSECA,
2012, p. 169). Visando atender a ideologia religiosa da Idade Média, Aristóteles
e Galeno caracterizaram o corpo feminino como impuro e deformado comparado
ao corpo masculino, que possuía propriedades gerativas e intelectivas. Isidoro
de Sevilha fala sobre a “impureza” e “maleficência” da mulher por menstruar
(Idem, p. 170). Alguns nomes vinculados ao cristianismo, como Santo Agostinho,
Santo Ambrósio e os primeiros padres da Igreja, sempre alertavam sobre os
perigos da proximidade feminina (FONSECA, 2012, p. 173). A grande
disseminação dessas informações, fossem elas textualizadas ou faladas, fez
com que se consolidasse uma tradição antifeminista, que atribuía às mulheres
os mais diversos insultos: compulsiva, egoísta, dissimulada, frívola.

Os textos medievais expressamente misóginos refletem a ideia de que existia


uma tradição anterior. Ao se investigar as raízes desse comportamento, somos
levados em direção à antiga lei judaica e ao alvorecer da cultura grega. Hesíodo
e Ovídio são nomes que já se referiam à mulher de forma negativa (FONSECA,
2012, p. 170).
A História das mulheres

Joan Scott define gênero como: “um elemento constitutivo das relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (DEPLAGNE, 2019, p. 31).
O “gênero” é construído de acordo com concepções culturais que levam em
consideração as diferentes relações sociais com base em verdades forjadas, e 226
delineiam os papéis e espaços sociais femininos e masculinos. Ser homem ou
mulher está diretamente ligado ao papel que a sociedade lhe impõe, e não
essencialmente as suas qualidades inatas. Essa forma determinada de
imposição adotada pela sociedade há muito tempo recaiu um grande peso sobre
os ombros femininos, que ainda hoje é carregado, mas que vem sendo
contrariado e ocasionou uma luta social, política e intelectual que visa retirar um
peso indevido da figura feminina.

A Nova História, vertente que ganhou força dando continuidade ao movimento


da Escola dos Annales, alargou as temáticas para o estudo da história, que junto
ao crescimento do movimento feminista contemporâneo deu lugar para as
mulheres como objetos de estudo em perspectivas históricas. Muitos
historiadores se debruçaram sobre as questões femininas e optaram por analisar
registros deixados pelas próprias mulheres (DABAT, 2002, p. 23). Tendo em
vista as lutas femininas a partir de 1960, que buscaram questionar os papéis
construídos historicamente e a regulamentação do que é ser mulher, observa-se
que é necessário não somente a produção de uma nova história das mulheres,
mas também uma história dos escritos femininos. Ao estudar os escritos de
mulheres medievais nasce um novo olhar sobre ideias preconcebidas acerca
delas e as relações de gênero no Medievo (DEPLAGNE, 2019, p. 31).

O protagonismo feminino na Idade Média

Se investigarmos perceberemos que em algumas situações, na Idade Média, a


mulher não estava inteiramente em lugares de submissão (DEPLAGNE, 2019,
p. 28). Estudos apontam que a supremacia masculina se inicia aos poucos com
o início das caças de animais de grande porte, e com ela a guerra, a competição
e assimetrias de poder entre homens e mulheres. No entanto, mesmo a Idade
Média sendo um período marcadamente patriarcal, principalmente na Alta Idade
Média as mulheres possuíram um lugar de relevância na sociedade (Idem, p.
29). Trotula de Ruggiero foi responsável por um dos mais importantes tratados
de medicina durante a Idade Média. Hildegarda de Bingen é outro nome que
merece destaque, foi uma das pessoas de maior prestígio em sua época pelo
protagonismo social, político e cultural (DEPLAGNE, 2019, p. 40). Diversos
escritos comprovam a presença feminina em quase todas as situações sociais,
escritos esses que são: obras de mulheres eclesiásticas, massas de documentos
laicos fiscais e notariais – contratos de casamentos, inventários, testamentos –
doações de senhoras, transações de mosteiros femininos, regulamentos de
corporações femininas, atas de tribunais (DABAT, 2002, p. 27).

Christine de Pizan (1363-1430) e a defesa das mulheres


Christine de Pizan, filha de Tommaso di Benvenuto Pisano, nasceu em Veneza,
Itália (COSTA; COSTA, 2019, p. 249), mas, ainda criança, sua família se
transferiu para o Reino da França, pois seu pai foi nomeado secretário do rei
Carlos V. Christine viveu sua infância em contato com a vida palaciana e tendo
acesso à grande biblioteca do monarca. Seu pai foi um grande incentivador da 227
sua vida intelectual e por meio de sua influência colocou-a em contato com o
meio erudito de sua época (COSTA; COSTA, 2019, p. 249). Ainda muito jovem,
ficou viúva e pouco tempo depois perdeu também o pai. Desamparada de
qualquer proteção masculina após a morte do pai e do marido, sofreu situações
difíceis em uma época misógina. Vendo a necessidade de sustentar a si e a sua
família, utilizou-se de sua educação e saber para tornar-se escritora e tirar de
suas poesias o seu sustento. Ela tomou consciência de si como escritora e
dedicava-se fielmente a isso (MACEDO, 2002, p. 93).

Christine de Pizan, pelo que se sabe, foi a primeira mulher a defender as


mulheres em seus escritos e ir contra a tradição literária misógina. Sendo ela
uma mulher medieval, e entendendo-se muito diferente do que era disseminado,
Pizan contrariou a opinião masculina e justificou suas afirmações em defesa das
mulheres em seu livro A cidade das damas (1405). A obra em questão trata-se
de um tratado que visou orientar tanto a sociedade na qual Christine estava
inserida quanto as futuras gerações sobre a figura feminina e o seu papel na
história. A autora fez sua defesa construindo uma fortaleza literária, o próprio
livro, onde ela ofereceu uma morada segura e longe dos ataques masculinos,
para as diversas damas dotadas de virtudes e que tiveram papel fundamental na
construção histórica. Analisando o contexto histórico que Christine de Pizan
esteve inserida é muito interessante observar que ela teve a coragem, mesmo
naquela época, de refutar as falácias ditas contra as mulheres (KULKAMP, 2020,
p. 322).

A cidade das damas e a desconstrução da misoginia

O livro A cidade das damas é uma obra repleta de exemplos que comprovam a
participação ativa da mulher ao longo da história, e sua autora Christine de Pizan
é também um exemplo ímpar para as nossas considerações. Christine realizou
experimentações com as identidades femininas ao trazer diferentes histórias de
vida e quando se auto representou. Ela primou pela importância do jogo
simbólico, e esse recurso possui caráter moralizante, pois ao citar as mulheres
como sujeitos ela atrelou a elas características positivas (KULKAMP, 2020, p.
323). A autora mostrou a pluralidade de histórias de mulheres virtuosas, que não
foram seres estanques na sociedade. Ela mostrou que as mulheres podiam e
deviam construir espaços políticos de convivência (Idem, p. 325).

A obra de Pizan e o seu intuito em defesa das mulheres nasce por meio de um
grande questionamento que a perturbou durante a leitura de um livro de Mateolo,
onde ele ousava caluniar as mulheres. Indignada com as acusações e sendo
uma mulher tão sábia e louvável por seus feitos Christine foi agraciada pela
aparição de três damas celestiais – Razão, Retidão e Justiça – que a guiaram
na construção da cidade das damas. A construção da cidade aconteceu de
acordo com dois movimentos metafóricos: desconstrução dos argumentos
misóginos, escavando assim as bases da cidade e apresentação de mulheres
com histórias de vida virtuosas, construindo dessa maneira o edifício
(KULKAMP, 2020, p. 320). Neste texto iremos analisar a desconstrução da 228
opinião masculina acerca da educação feminina feita por Christine de Pizan na
obra A cidade das damas.

As damas orientaram Christine a utilizar dos próprios escritos misóginos a seu


favor, e ela foi durante toda a obra apresentando as calúnias ditas pelos homens
e utilizando exemplos que contrariavam as afirmações.

Christine colocou-se à disposição das damas para realizar o que foi proposto,
colocando-se como uma simples e ignorante estudante, mas admitindo ser
capaz de conseguir aprender tudo o que fosse necessário para a edificação da
cidade. Ao se colocar à disposição como uma estudante, já notamos que ela
mesma era um caso que ia de encontro ao que os homens afirmavam sobre a
intelectualidade feminina, pois Pizan foi uma mulher de alto grau intelectual e
dedicou sua vida a isso.

Vale ressaltar que a educação não se resumia ao letramento, mas estava ligada
a vários âmbitos da sociedade: a educação cavalheiresca, religiosa, intelectual,
entre outras, as quais Christine apresentou em sua obra e desconstruiu as visões
negativas acerca da mulher como agente dessas áreas.

Os homens costumavam afirmar que as mulheres não tinham entendimento


suficiente para aprender as leis e consequentemente não seriam capazes de
serem boas governantes:

“Mas dizei-me, ainda, se preferi, por que as mulheres não discutem diante de
tribunais, não instrui os processos, nem dão as sentenças? Dizem os homens
que teria sido pela má conduta de uma certa mulher em um tribunal.” (PIZAN,
2012, p. 90).

A dama Razão trouxe argumentos e exemplos plausíveis de que eles estavam


apenas caluniando as mulheres, pois muitas foram aquelas que além de
aprenderem as leis, governaram de forma excelente seus reinos, provando que
qualquer atividade é conveniente para uma mulher inteligente. Citamos como
exemplo a rainha Branca:

“Pode-se falar o mesmo da sábia, virtuosa e nobre rainha Branca, mãe de São
Luís, que, até seu filho ficar maior de idade, governou o reino da França, com
tanta nobreza e sabedoria, que nunca nenhum homem fez um governo melhor.
Pela sua grande experiência, continuou sendo chefe do conselho, e nada teria
feito sem ela e, até na guerra, acompanhava seu filho” (PIZAN, 2012, p. 94).
A dama Razão nomeou os exemplos dados sobre figuras femininas que
governaram com maestria como as grandes e profundas escavações da cidade,
legitimando a importância dos feitos dessas mulheres que serviriam de alicerce
para a fortaleza em construção. É notável também durante a argumentação da
dama a insistência em afirmar que essas mulheres citadas governaram muito
melhor que qualquer homem já visto, mostrando dessa forma a grandeza da 229
administração feminina.

Christine continuou seu debate com a dama Razão e a questionou sobre a


natureza da mulher em ser frágil e privada de força:

“Certo, Dama, vós falais muito bem e concordo, plenamente, com o que dizeis.
Todavia, qualquer que seja a inteligência delas, todo mundo sabe que as
mulheres têm um corpo fraco, delicado e privado de força, e que são, por
natureza, covardes. Tais características, segundo o julgamento dos homens,
diminuem muito o valor e a autoridade do sexo feminino. Pois eles dizem que
mais corpo é imperfeito, mais o caráter é menor. Consequentemente, as
mulheres seriam menos dignas de louvor” (PIZAN, 2012, p. 96).

A dama respondeu:

“Cara filha, essa conclusão é errada e difícil de ser sustentada [...] Prometo-te,
bela amiga, que um corpo grande e forte não é garantia de uma grande virtude
e grande coragem [...] Vemos, frequentemente, homens grandes e fortes, mas
fracassados e vis, e outros pequenos e fracos que são ardis e vigorosos; o
mesmo acontece como outras virtudes” (PIZAN, 2012, p. 97).

Semíramis, esposa do rei Nino, foi uma dama grande em virtude, força e
coragem, era exemplar no exercício e prática das armas. Viúva ainda na sua
juventude governou com firmeza e disciplina, mantendo os territórios já
conquistados e conseguindo anexar novos ao seu império (PIZAN, 2012, p. 99).
Ela fundou novas cidades e realizou muitas obras, e segundo a dama Razão de
nenhum homem se descreveu tamanha coragem, e atribuiu a ela atos
extraordinários e dignos de serem lembrados, por isso nomeou-a como a
primeira pedra das fundações da cidade (Idem, p. 101).

Christine em busca da construção de uma fortaleza perfeita abordou com clareza


cada ponto que os homens caluniavam as mulheres e em cada item ela justificou
e exemplificou o porquê e como ela contrariou as opiniões misóginas. Acerca
dessa questão há um diálogo, que vale apresentar aqui, entre Christine e a dama
Razão.

Os homens afirmavam que as mulheres não possuíam capacidades físicas e a


inteligência necessária para atuar intelectualmente:

“Mas, ensinai-me, ainda, por favor, se Deus, que lhes concedeu tantas graças
que honram o sexo feminino, não quis honrá-lo, privilegiando algumas delas com
virtudes, grande inteligência e saber. Desejo muito saber se seriam possíveis
tais habilidades, pois os homens afirmam que as mulheres são dotadas de fraca
capacidade intelectual” (PIZAN, 2012, p. 126).

Resposta:
230
“Filha, por tudo que te disse anteriormente, podes saber que é completamente o
contrário de tal opinião, e para te provar, com maior clareza, citar-te-ei alguns
exemplos. Vou repetir e não duvides do contrário, pois, se fosse um hábito
mandar as meninas à escola e ensinar-lhe as ciências, como o fazem com os
meninos, elas aprenderiam e compreenderiam as sutilezas de todas as artes e
de todas as ciências tão perfeitamente quanto eles” (PIZAN, 2012, p. 126).

Christine insistente em seu questionamento disse: “Dama, que dizei? Peço-vos,


explicai-me. Certamente, os homens não admitiram nunca tal afirmação se ela
não for explicada claramente: diriam que todo mundo sabe que os homens têm
mais conhecimento do que as mulheres” (PIZAN, 2012, p. 126).

A dama Razão explicou o porquê de os homens terem esse posicionamento:


“Sem dúvida, é por elas não experimentarem coisas diferentes, limitando-se às
suas ocupações domésticas, ficando em casa, e não há nada mais estimulante
para um ser dotado de inteligência do que uma experiência rica e variada”
(PIZAN, 2012, p. 127). E continua: “Para ilustrar a tese de que a inteligência das
mulheres é semelhante a dos homens, citar-te-ei algumas mulheres de profundo
saber e grandes faculdade intelectuais” (Idem).

A jovem Corníficia foi uma mulher dotada de uma inteligência prodigiosa, e


dedicou-se às letras, tomando gosto pelo saber do estudo. Em virtude da astúcia
de seus pais, que a enviaram a escola ainda muito jovem, ela se esforçou tanto
que logo se tornou uma poetisa, ultrapassando seu irmão que era o mais culto
poeta. O escritor Boccaccio é citado como um dos grandes poetas que
mencionou em um de seus livros a grandeza dessa dama (PIZAN, 2012, p. 128).

Proba era uma cristã de grande inteligência. Dedicou-se fielmente aos estudos
e aprendeu as sete artes liberais, todas as disciplinas curriculares na Idade
Média. Tornou-se uma grande poetisa e rescreveu importantes poemas, como
os de Virgílio. Boccaccio também expressou sua admiração para com essa dama
(PIZAN, 2012, p. 130).

A utilização da memória na narração das histórias femininas pela autora possuiu


um objetivo político: evitar a repetição de violências e o esquecimento. O resgate
dessas histórias confronta ‘os perigos da história única’ exposta por
Chimamanda Adichie. Pizan relatou a história de diversas mulheres, das mais
tradicionais as mais insurgentes (KULKAMP, 2020, p. 326). Christine utiliza em
seu livro as memórias do passado como forma de reverter a situação misógina.
Segundo Patrick Geary (1948), a memória social é um processo que permite a
sociedade renovar e reformar sua compreensão do passado a fim de integrá-lo
em seu contexto presente (GEARY, 2002, p. 167). A construção da cidade das
damas consistiu em resgatar personagens do passado, mulheres que
mostrassem os diversos campos que atuavam, as inúmeras virtudes e os
grandes feitos realizados por elas, que mostrassem a mulher como alguém que
assim como o homem também realizou coisas memoráveis. Ela utiliza mulheres
da mitologia, das escrituras sagradas, das mais diversas literaturas. Pizan 231
atribuiu aos feitos dessas mulheres um significado ímpar para sua obra, não são
apenas modelos, mas há uma simbologia por trás deles, onde a mulher é atuante
nas áreas educacionais em diferentes temporalidades da história, diferente do
que era afirmado a tantos séculos pelos homens.

Considerações finais

Christine de Pizan utilizou em sua obra dois movimentos metafóricos para


alcançar o seu objetivo em defesa das mulheres: desconstrução do pensamento
masculino e apresentação de histórias de mulheres virtuosas. A autora utilizou
os discursos misóginos ao seu favor e os destrinchou por toda a obra,
justificando o porquê deles serem inverídicos e exemplificando-os para que não
restassem dúvidas de que os mesmos buscavam apenas a exaltação masculina
por meio da degradação feminina. Isso foi visto e abordado por Pizan em sua
obra. Diversas foram as calúnias feitas contra as mulheres, mas para nos
delimitarmos ao que foi trabalhado neste texto, citamos a aversão que os
homens criaram acerca da mulher na educação, tratando-as como seres não
inteligentes e até mesmo incapazes de serem dotadas de saberes. Christine nos
mostrou que, muito diferente do que os homens afirmavam, a mulher foi capaz
de se tornar um ser detentor de grande saber.

Referências biográficas

Raiely Godoi Melo é graduanda do Curso de História da Universidade de


Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos
e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente realiza seu
projeto de Iniciação Científica como bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob a orientação do Prof. Dr.
Luciano José Vianna, cujo título é “a proposta educacional feminina na obra A
cidade das damas - 1405 – de Christine de Pizan – 1363 – 1430 -: desconstrução
da misoginia, espaços de atuação e contribuições femininas no campo
educacional”.

Referências Bibliográficas

Fonte

PIZAN, Christine de. A cidade das damas. Trad. Luciana Eleonora de Freitas
Calado Deplagne. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012.

Bibliografia
COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres intelectuais na Idade Média:
entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a
mística. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.

DABAT, C. Rufino. Mas, onde estão as neves de outrora? Notas bibliográficas 232
sobre a condição das mulheres no tempo das catedrais. Cadernos de História,
UFPE Recife, v. 01, p. 23-68, 2002.

DEPLAGNE, Luciana Eleonora. A contribuição dos escritos de mulheres


medievais para um pensamento decolonial sobre Idade Média. Revista Signum,
num. 2, vol. 20, p. 24-56, 2019.

FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Fontes literárias da difamação e da defesa


da mulher na Idade Média: referências obrigatórias. Série Estudos Medievais 2:
Fontes. 2012, p. 168-188.

GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude


(Org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. II. São Paulo: EDUSC,
2002. p. 167-181.

KULKAMP, Camila. A atualidade da obra “A cidade das damas”: identidades e


estratégias políticas. Revista Ideação, N. 42, Julho/Dezembro, p. 318-331, 2020.

MACEDO, José R. A mulher na Idade Média. São Paulo: Editora Contexto, 2002.
O CORPO FEMININO NO BOLETIM
GERAL DAS COLÓNIAS (1933-1945)
Rannyelle Rocha Teixeira 233

Esse texto busca compreender as construções discursivas coloniais acerca do


corpo feminino por meio das representações textuais e imagéticas que são no
que se refere ao discurso de gênero. As mulheres africanas passaram a serem
moldadas e construídas em favor da condução do projeto colonialista, atuando
como estratégia de poder e dominação que categoriza e altera toda uma
identidade cultural, social, política sendo ela pertinente ao propósito colonial.
Dessa maneira, pretende-se obter um olhar mais sensível sobre o corpo da
mulher africana e como ele passa a ser direcionado dentro do Boletim Geral
das Colónias na tentativa de abstração dos espaços femininos.

O Boletim Geral das Colónias foi uma importante publicação que delineia
estratégias que visavam veicular um certo olhar sobre as realidades coloniais.
Além disso, pretende evidenciar a multiplicidade de aspectos de teor político,
social, religioso, cultural, principalmente racial e de gênero contra os povos
autóctones, assim, todo esse suporte procura abordar o papel dos atores sociais
sendo eles os nativos das colônias portuguesas, sobretudo as mulheres
africanas que fizeram parte da estrutura histórica da identidade e da alteridade
sofrida. Serão analisados materiais textuais e visuais entre os anos de 1933-
1945 que são relevantes para o entendimento da maneira como a língua esteve
a serviço da empreitada colonial. Visava “informar” e “esclarecer”, mas segundo
a perspectiva e interesse do regime. Iniciou-se com um título mais restritivo de
«Boletim da Agência Geral das Colónias», título que manteve durante 10 anos
até 1935, altura em que, num sentido mais lato, passou a designar-se «Boletim
Geral das Colónias». Em agosto de 1951, no Nº 314, o Boletim muda novamente
o seu nome para «Boletim Geral do Ultramar», título que se manterá até ao fim
da publicação. O Boletim Geral das Colónias/Ultramar foi o mais sistemático e
um dos meios de informação e comunicação de propaganda colonial entre os
anos de 1925 a 1970.

Pensar o lugar da mulher africana como algo impossível de transcender é


comprovar a conduta colonizadora, pois atribui poder absoluto ao discurso
dominante branco e masculino. Reforçando a ideia de que os grupos oprimidos
só podem se identificar com o discurso a que são submetidos. Colocar a mulher
angolana em um lugar que nunca rompe o silêncio seria confiná-las em uma
zona sem saída, ou seja, sem qualquer possibilidade de transcendência.

A abordagem de gênero possibilita a discussão das relações de poder entre


homens e mulheres, a opressão do gênero e evidencia a construção da
desigualdade entre eles na história das sociedades ocidentais. É a partir dessa
contextualização que se pretende discutir as relações de gênero contidas na
revista. Essas relações de poder são inerentes ao contato entre colono/nativo e
todas as relações sociais sofrem constantes transformações ao longo da
história.
234
Nessa perspectiva, o texto busca apresentar como a utilização da propaganda
política visa legitimar uma ideologia colonial em que o colonizador português
proporcionava a base da civilização e da prosperidade dos povos africanos que
liga-se a um comportamento adequado aos olhos dos colonizadores nos quais
conduz as interpretações que passam a se imporem como corretas levando a
um discurso montado e reproduzido de forma a comprovar que aquele que se
assume como superior tem razão para tudo quanto faz. Por exemplo, a
representação da sensualidade da mulher africana sentida na revista direciona
um olhar para o corpo feminino como um objeto a ser moldado e desejado.

As mulheres nativas estariam sendo condicionadas para utilizarem seus traços


físicos para os diversos tipos de significados que o corpo pudesse transmitir.
Frequentemente, a maior parte do seu corpo estava descoberta seja nas
manifestações artísticas como nos rituais a sensualidade era sentida por meio
da dança, dos movimentos, da cor, dos adornos, enfim, recorriam às várias
possiblidades no intuito de uma maior exibição ou expressão corporal.

Segundo Valentim Alexandre (1993), era necessário impor um projeto colonial,


construindo um aparelho de Estado hierarquizado, capaz de servir de suporte.
O traço mais evidente da legislação ultramarina do novo regime está na
inversão da tendência para a desconcentração de poderes e para uma
concessão de uma autonomia aos governos coloniais.

Fica claro que em todas as colônias o poder centrava-se nas mãos do seu
respectivo governador que em sua maioria era o homem colonizador branco.
Que na qualidade de agente e representante do Governo da República era
superior tanto na ordem civil quanto militar, e era também protetor dos
indígenas. Além de todas as amplas funções executivas, cabia ao Governador
a faculdade de legislar sobre todos os aspectos voltados para a colônia.

As divisões dos governos das respectivas colônias estavam organizadas da


seguinte maneira: os governos subalternos, que compreendiam os governadores
de províncias em Angola e Moçambique ou por independentes de distritos, cuja
base da rede administrativa estava composta pelos administradores dos
concelhos por abrangerem povoações com fortes aglomerações de população
civilizada e os administradores de circunscrição que eram áreas habitadas,
sobretudo pelos povos ainda não familiarizados com a civilização e cultura
portuguesa. Assim, podemos encontrar uma distinção fundamental da política
colonial portuguesa a partir de finais do século XIX, a qual separava os
civilizados dos indígenas, remetendo esses últimos a situações de tutelados,
desprovidos dos direitos em relação às instituições de caráter europeu.
Precisa-se refletir como a representação feminina vem sendo contextualizada no
Boletim a autora Lopes (1996), pretende mostrar as principais características e
a instabilidade do conceito de gênero. E como esse conceito vem sofrendo
alterações a partir do momento em que a história, a literatura e a sociologia
entram em debate, proporcionando discussões teóricas sobre o tema e também 235
dando visibilidade ao sujeito feminino. O conceito de gênero veio confrontar ao
conceito de sexo. Assim, perceber como a mulher angolana tem seu papel social
e histórico construído, ou seja, quais as características e atitudes atribuídas tanto
para as mulheres quanto para os homens dentro de cada sociedade.

A abordagem de gênero possibilita a discussão das relações de poder entre


homens e mulheres e evidenciar a construção da desigualdade entre eles na
história das sociedades ocidentais. É a partir dessa contextualização que se
pretende discutir as relações de gênero que se observa nas revistas. Essas
relações de poder são inerentes ao contato entre colono/nativo e todas as
relações sociais sofrem constantes transformações ao longo da história.

“... da mulher que caprichosamente o pretenda para seu companheiro; desde o


bronze académico da mulher manjaca, o olhar de malícia a de promessa da nalú
de aciganada indumentária, à estilizade Tanagra das futa-fulas de corpo côr de
mel, a tressuar de vício e de pecado...tôdas estas raças e tríbus, constituem
étnicamente grupos perfeitamente distintos e isentos de confusões possíveis”.
[CARDOSO, 1935, p. 49]

A citação exemplifica as representações da sensualidade da mulher africana


em que as palavras direcionam um olhar para o corpo feminino como um objeto
a ser moldado. As mulheres nativas usavam seus traços físicos para
enfatizarem os diversos tipos de significados que o corpo pudesse transmitir.
Frequentemente, a maior parte do seu corpo estava descoberta; nas
manifestações artísticas como nos rituais a sensualidade era sentida por meio
da dança, dos movimentos, da cor, dos adornos, enfim, recorriam as várias
possiblidades no intuito de uma maior exibição ou expressão corporal.

“As pretas trajam quási tôdas à europeia e não têm a elegância natural das
cabindanas. Se soubessem quanto perdem em macaquear as brancas! Não
conseguem parecer-se com elas, por mais que façam. Só sendo pura e
simplesmente pretas com seus trajos típicos, que substituíram a tanga primitiva,
elas poderão parecer bonitas, porque permanecem diferentes, inconfundíveis,
porque nos obrigam a olhá-las com outros olhos que não os nossos, com olhos
africanos”. [PAMPLONA, 1939, p. 286]

Seguindo essas elucidações, é possível observar os discursos a partir dos


fragmentos retirados do Boletim Geral das Colónias direcionando mais uma vez
para um olhar colonizado. O que resulta em sensações e interpretações de
ideias, discursos e verdades – legitimadas por agentes sociais diversos - que
passam a existir nas mentes dos observadores no caso, os colonos
portugueses, os quais atuam como construtores de um discurso pretendido. A
imagem dentro desse contexto concilia com os textos na tentativa de
demonstrar uma ideia escolhida e orientada que consiste em uma linguagem,
específica e heterogênea. Por conta disso, com o intuito de uma cautela
necessária ao ato interpretativo, para o autor George Didi-Huberman (2012),
uma das grandes forças da imagem é criar ao mesmo tempo sintonia e 236
conhecimento. É enxergar através da imagem o lugar de onde sofre, o lugar de
onde se expressam os sintomas. Saber olhar as imagens dos povos angolanos
nas revistas portuguesas em questão seria, de certo modo, tornar-se capaz de
discernir o lugar onde arde, o lugar onde sua eventual beleza reserva um
espaço capaz de proporcionar uma construção desse silêncio em um trabalho
de linguagem crítico, analítico de seus próprios clichês. Uma imagem bem
analisada e contextualizada seria, portanto, uma imagem que soube
desconectar, depois renovar nossa linguagem e, portanto, nossos
pensamentos.

As fotografias presentes no Boletim Geral das Colónias analisadas nesse


estudo não possuem autoria declarada, mas estão sendo referenciadas pelos
autores dos textos nos quais estão inseridas reforçando assim um discurso que
revela adesão ao projeto colonialista em favorecer o desenvolvimento dos
considerados “primitivos” recebendo a “benesse de civilizar”. Essas imagens
tanto servem para propaganda da metrópole sobre as terras ultramarinas,
quanto à sensibilização daqueles que lá quisessem viver para ajudar no seu
desenvolvimento.

No Boletim, as diversas fotografias evidenciam e expõem diversos povos, tipos


de vegetação, animais e alimentos e por intermédio dessas imagens podemos
conhecer alguma da diversidade humana e natural das colônias. A imagem
inserida neste texto é a das raparigas hingas, que eram conhecidas por serem
das mais primitivas entre as colônias portuguesas na África, razão que as
tornam interessantes para um estudo etnográfico. No seu artigo, o Superior das
Missões Católicas pressupõe que esse estudo ainda não foi realizado em
Angola mesmo que já se tenha escrito sobre ele, mas o autor evidencia que
sobre essa população só tinha sido possível obter observações superficiais.

Fonte: Boletim Geral das Colónias, n° 116, Fevereiro de 1935, p. 43.


A imagem destacada é a dos nativos da tribo Khoisan, que permitem uma
análise sobre o tipo de roupas, as relações entre os próprios autóctones, sua
estrutura física, seu modo de viver e por serem considerados pelos colonos
como verdadeiros selvagens. Nota-se que o conceito de “raça” dominava ainda
os próprios estudos científicos, situação que só mudaria após a evolução dos
estudos no campo da genética. 237

As fotografias sugerem um campo patriarcal semelhante aos padrões europeus


ocidental tendo a figura feminina como forte representatividade sendo possível
problematizar a ideia de passividade e subserviência feminina por um lado e
dos homens africanos, por outro, controlando e organizando suas tribos, fato
que facilitaria a colonização o considerando-o como uma dádiva. Pois
possibilitava uma melhoria nas condições de vida dessa população e a mulher
africana poderia ser olhada como um adorno as tentativas de atrair mais
colonos para além-mar.

É importante destacar que o lugar da mulher africana que é sentido no espaço


do Boletim está fortemente ligado à ideia de segundo plano social, ou seja,
cabia somente aos homens os melhores cargos, os melhores trabalhos com
suposta sabedoria, sensatez e coerência assim como, o estatuto privilegiado
masculino, que atende aos preceitos coloniais.

Dentro do Boletim o negro é visto como um ser inferior, promíscuo e


profundamente atrasado, a quem os europeus tinham a missão de levar as
benfeitorias da civilização. Necessariamente, os colonos que se encontravam
nas colônias portuguesas da África tiveram de se relacionar com os nativos que
tinham características diferentes das suas, a vários níveis.

No entanto, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora há muito mais que
os olhos podem ver. A fotografia – para além da sua gênese automática,
ultrapassando a ideia de analogon da realidade – é uma elaboração do vivido,
o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda uma leitura do real
realizada mediante o recurso a uma série de regras que envolvem, inclusive, o
controle de um determinado saber de ordem técnica (MAUAD, 1996, p. 3).
As imagens são representações concretas de espaços, momentos ou pessoas
que passam uma mensagem que se faz através do tempo, a imagem serve
tanto para representar um documento quanto um monumento, como
testemunho direto ou indireto do passado.

O artigo “Da Guiné e do seu valor no Império” publicado em Agosto/Setembro


de 1935, da autoria de António Pereira Cardoso, funcionário colonial e sócio do
Instituto Histórico do Minho, traz uma considerável abordagem sobre as viagens
marítimas e os contatos entre os povos e raças que habitavam as colônias
portuguesas em África. Ao longo de 23 páginas, o autor percorre os principais
aspectos de formação da Guiné, desde o primeiro contato até a pacificação e
ocupação, as raças e a situação econômica desse território.
“... da mulher que caprichosamente o pretenda para seu companheiro; desde o
bronze académico da mulher manjaca, o olhar de malícia a de promessa da
nalú de aciganada indumentária, à estilizade Tanagra das futa-fulas de corpo
côr de mel, a tressuar de vício e de pecado...tôdas estas raças e tríbus,
constituem étnicamente grupos perfeitamente distintos e isentos de confusões
possíveis.” [CARDOSO, 1935, p. 49] 238

A citação exemplifica bem as representações da sensualidade da mulher


africana em que está explorava o seu corpo com o intuito de passar uma
mensagem para atrair o homem ou mesmo para iniciação de uma nova fase da
sua vida. Estas mulheres nativas usavam seus traços físicos para enfatizarem
os diversos tipos de significados que o corpo pudesse transmitir.
Frequentemente, a maior parte do seu corpo estava descoberta; nas
manifestações artísticas como nos rituais a sensualidade era sentida por meio
da dança, dos movimentos, da cor, dos adornos, enfim, recorriam as várias
possiblidades no intuito de uma maior exibição ou expressão corporal.

Fonte: Boletim Geral das Colónias n° 122/123, Ago/Set de 1935, p. 49.

A descrição da estrutura física dos nativos feita pelo autor faz uma alusão ao
corpo como fonte de linguagens de um povo, pois por meio dele se pode
transmitir uma mensagem seja ela positiva ou negativa.

Através das produções textuais e imagéticas na revista, o Boletim Geral das


Colónias, torna-se evidente reconhecer um campo patriarcal semelhante aos
padrões europeus ocidental tendo a figura da mulher como forte
representatividade sendo possível problematizar a ideia de passividade e
subserviência feminina por um lado e dos homens angolanos, por outro,
controlando e organizando suas tribos, fato que facilitaria a colonização o
considerando como uma dádiva, pois possibilitava uma melhoria nas condições
de vida dessa população e a mulher angolana poderia ser olhada como um
adorno com a tentativa de atrair mais colonos para além-mar.
É importante destacar que o lugar da mulher angolana que é sentido no espaço
da revista portuguesa colonial em questão está fortemente ligado à ideia de
segundo plano social, ou seja, cabiam somente aos homens os melhores cargos,
os melhores trabalhos com suposta sabedoria, sensatez e coerência, assim
como, o estatuto privilegiado masculino, que atende aos preceitos coloniais.
239
Este texto procurou promover um diálogo interdisciplinar sobre o corpo feminino
no Boletim Geral das Colónias tanto por uma exploração textual quanto
imagética. O objetivo central foi de discutir como alguns dispositivos coloniais
mais precisamente os verbo-visuais, trabalham em favor do projeto colonial e
como podemos utilizá-los como estratégias de ensino-aprendizagem no campo
histórico trazendo novas reflexões sobre o ensino de história que tem como
temáticas centrais as relações de gênero e sexualidades

Os artigos do Boletim Geral das Colónias, reforçam os discursos pretendidos


sobre África portuguesa. Os textos e as imagens retratam indivíduos e espaço
imposto pelas relações de poder entre os portugueses e os nativos em vistas
ao ser feminino africano que estão sendo descritas na revista, pois esse olhar
poderá direcionar novas análises tanto em seu significado, quanto em sua
memória, o contato entre colonizador e colonizado deve ser constantemente
discutido e, acima de tudo, deve ser mais bem problematizado e a sua memória
pode ser resgatada através do Boletim como em tantas outras fontes históricas.

A análise dos processos de discursivização do colonialismo português, enquanto


tarefa interdisciplinar, demonstram mecanismos de dominação, discriminação e
exploração humana, sobretudo a mulher africana que está sujeita as ações do
imperialismo português, pois o corpo da mulher africana descritivo nas imagens
e nos textos traz a marca do indivíduo, a fronteira, o limite distinguindo-o do
Outro. Assim, tornando-a muitas vezes subalternas em sua identidade e sendo
direcionada ao silêncio da submissão do colonizador homem e branco.

Referências biográficas

Rannyelle Rocha Teixeira, doutoranda em História pela Universidade Federal do


Rio Grande do Norte (UFRN). Mestra em história contemporânea pela Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (FLUP) – Portugal. Licenciatura Plena em
História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referências bibliográficas

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Questão nacional e questão


colonial na crise do antigo regime português. Porto: Afrontamento, 1993.

CARDOSO, António Pereira – “Da Guiné e do seu valor no Império”. Boletim


Geral das Colónias. N° 122/123, Agosto/Setembro de 1935.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo
Horizonte, v.2, n.4, p.204-219, 2012.

LOURO, Guacira Lopes. “Nas redes do conceito de gênero”. In: LOPES, M. J.


D.; MEYER, D. E.; WALDOW, V. R, (orgs.). Gênero e saúde. Porto Alegre, RS:
Artes Médicas, 1996. 240

MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história – interfaces.


Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, p. 73-98,1996.

PAMPLONA, Fernando de – “Ao sol do Império”. Boletim Geral das Colónias.


Lisboa. N° 163, Janeiro de 1939.
OS NÓS DE PAULINO:
REPRESENTAÇÕES E
RESSIGNIFICAÇÕES DO PASSADO 241

NA CONTEMPORANEIDADE
Rebeca Nadine de Araújo Paiva
A partir da disciplina Seminário de História Moderna e Contemporânea I, ofertada
pelo Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
no semestre experimental 2020.5, tivemos acesso à discussão sobre as imagens
produzidas sobre pessoas negras. Elencamos aqui como teórico basilar para
essa trajetória o pesquisador Achille Mbembe, o qual explica como o período
moderno fez surgir uma ciência colonial e, a partir dela, as representações dos
povos fora da Europa foram produzidas em uma perspectiva negativa, criando
uma primeira escrita sobre a África constituída por uma consciência ocidental do
negro (MBEMBE, 2018, p. 61).

Essa escrita reverbera até a atualidade, como aponta Anderson Oliva, nos livros
didáticos brasileiros, criando imagens negativas sobre os negros e sobre o
continente africano, contribuindo com a discriminação para com as pessoas
afrodescendentes em nosso país e no mundo (OLIVA, 2005, p. 93). Em
contrapartida, houve uma resposta à primeira escrita, sendo chamada de
segunda escrita e baseada em uma consciência negra do negro (MBEMBE,
2018, p. 65).

Junto a essa questão, pensando sobre a especificidade das mulheres negras,


tivemos como base na disciplina a obra de Chimamanda Adichie, tratando sobre
os estereótipos feministas e os padrões da sociedade que as mulheres precisam
enfrentar (ADICHIE, 2015). Isto posto, pretendemos nesse trabalho analisar e
refletir sobre a representação da mulher negra a partir de uma obra de Rosana
Paulino, entendendo também sua trajetória no mundo da arte. Nesse sentido, o
presente trabalho configura-se como uma reflexão teórica acerca das relações
de gênero na atualidade, proporcionada por uma experiência no ensino
universitário.

Diante da finalidade de pensarmos sobre a representação de mulheres negras a


partir de obras de artistas negras, foi escolhida uma obra de Rosana Paulino,
intitulada “Ama de leite número I” (figura abaixo), que faz parte de uma série de
trabalhos sobre amas de leite. Apesar de ser uma representação
contemporânea, remonta a um passado da história de nosso país, passado esse
que não deve ser esquecido.
242

Fonte: Acervo pessoal de Rosana Paulino. Disponível em


http://www.rosanapaulino.com.br/blog/faltavam-estas/

A obra é uma pequena estatueta em terracota, na cor preta, que consiste em


uma silhueta de um corpo feminino, tendo apenas o tronco, sem outros membros
como cabeça e braços. De cima para baixo, estão posicionados três pares de
seios e abaixo deles há uma representação de pele irregular, que parece uma
barriga cheia de estrias. De cada seio saem duas pontas de fitas de cetim
coloridas e, na extremidade de cada fita, tem um pequeno boneco de plástico,
representando pequenos bebês de cor de pele branca e cabelos de cores
variadas.

O primeiro contato com essa obra aconteceu por meio da pré-ONHB, evento
organizado pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), antecedendo
a conhecida ONHB (Olimpíada Nacional em História do Brasil), no ano de 2020.
A questão que trouxe a imagem tratava sobre maternidade e contrastava-a com
um quadro do início do século XX, nele estava uma mulher branca amamentando
um bebê em espaço público. Diante disso, logo foi possível relacionar a algumas
discussões tratadas em disciplina da universidade sobre o Brasil Imperial.

Acerca do período em questão, o autor Robson Silva (2016) trata em um artigo


sobre as amas-de-leite na cidade de São Paulo no século XIX, afirmando como
essa prática era comum e como essas mulheres eram as responsáveis por
amamentar e criar as crianças brancas das famílias mais abastadas. Silva (2016,
p. 305) também destaca que, as escravas obrigadas a esse serviço eram
impedidas de terem filhos e, caso tivessem, não poderiam cuidar deles; além
disso, eram fonte de renda para seus patrões, podendo ser alugadas para outras
famílias.
Essa realidade, proveniente do período colonial, começou a ser questionada na
segunda metade do século XIX, devido ao discurso médico-sanitarista que
tratava sobre a má alimentação de crianças (SILVA, 2016, p. 310). Tal discurso
influenciou, à época, alguns abolicionistas que traziam como motivo para a
abolição da escravidão o fato de as pessoas negras estarem corrompendo os 243
costumes da sociedade brasileira, podendo as amas-de-leite influenciarem as
crianças brancas a se voltarem contra seus pais (RODRIGUES, 2009, p. 312).
Assim, é preciso considerarmos ainda como esses discursos se reverberam na
atualidade em forma de preconceitos vivenciados cotidianamente pela
população negra, em especial em relação às mulheres negras que continuam
sofrendo com a objetificação dos seus corpos de diferentes formas.

Tratando sobre a artista que confeccionou a obra, Rosana Paulino nasceu em


1967, na cidade de São Paulo, e faz questão de ressaltar em entrevista que é
uma mulher negra e cresceu em um meio urbano periférico, inserida em uma
família umbandista, coisas essas que se refletem em suas obras (CARVALHO,
TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 150). Paulino é bacharela em Gravura
pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA/USP), título adquirido em 1995, em 1998 concluiu uma especialização em
Gravura pela London Print Studio e, em 2011, obteve o título de Doutora em
Artes Visuais pela ECA/USP. Sua formação é feita no mundo acadêmico,
resultado também de suas escolhas por tratar de temas pouco ou nada
discutidos no Brasil, o que a fez dedicar bastante tempo em pesquisas
acadêmicas, tendo como resultado uma maior discussão de seu trabalho
também nesse meio, sendo convidada para eventos em universidades e
contribuindo também para abrir caminhos para outros artistas que vieram depois
dela (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 158).

A obra escolhida de Paulino representa muito bem essa realidade da exploração


do corpo feminino, em especial das mulheres negras. Comecemos pelo fato de
o corpo representado ter três pares de seios, ao invés de apenas um;
evidenciando uma animalização do corpo humano, sendo as mulheres negras
no passado tratadas de forma semelhante ao tratamento de alguns mamíferos
na atualidade. Já a parte inferior a esses seios, que seria mais ou menos a região
da pélvis feminina, aparenta uma pele muito desgastada, explorada ao extremo
ou mesmo infértil. A estatueta, em si mesma, traz à tona o quão público eram os
corpos das mulheres negras, impedidas de constituírem uma família, mas
responsáveis por cuidar dos futuros homens da nação.

Passando para as fitas de cetim, multicoloridas, com os bonequinhos amarrados


em suas pontas, demonstram elos construídos entre crianças e amas-de-leite,
que poderiam ser mais fortes do que a própria relação entre pais e filhos. É
comum nas obras da artista o uso de costuras, nesse caso, os nós de fitas que
unem as crianças aos seios do corpo negro, podendo esse nó ter a mesma
relação apontada por Susana Guerra sobre sua costura, uma vez que a relação
entre as amas e as crianças, tanto de ligamento quando desligamento, eram
marcadas por violência (SHMC I – ROSANA PAULINO: LUZ E SOMBRA –
TÓPICO 3, 2020).

Outro apontamento feito por Guerra é sobre os usos de luz e sombra feitos pela
artista, trazendo em suas obras as pessoas negras fora dos lugares de sombra
aos quais lhe foram colocados na história da arte, por vezes questionando esse 244
lugar ou o evidenciando (SHMC I – ROSANA PAULINO: LUZ E SOMBRA –
TÓPICO 3, 2020). Na obra em questão, o busto negro ocupa o lugar central da
imagem e recebe o foco de luz e da câmera, ao contrário dos pequenos bonecos
que aparecem até um pouco desfocados. Desse busto também emanam as fitas
coloridas, de forma que a luz e as cores são colocadas como provenientes desse
corpo negro. Outra estratégia também utilizada para criar uma hierarquia entre
os elementos é a proporção existente entre eles, estando o busto negro em um
tamanho muito maior do que os bonecos, apresentando a mulher negra como
personagem principal da história que se quer retratar, levantando a discussão
sobre tantos corpos femininos que foram usurpados ao longo da história
brasileira.

Se pensarmos no contexto pessoal ao qual a artista está inserida, podemos


entender que sua obra é conhecida por tratar sobre o corpo feminino,
principalmente o negro, abordando também questões étnicas e sociais. Sendo
assim, Paulino faz questão de ressaltar que suas obras são resultado de suas
inquietações internas, conduzidas sempre por um “nó na garganta” e, se os
temas que a inquietam são ainda incipientes no Brasil, isso diz respeito ao
espaço que as mulheres negras ocupam nas artes visuais, por esse motivo, é
possível entender sua obra como inserida num momento em que está em ênfase
o que Achille Mbembe (2018, p. 65) chama de consciência negra do negro, por
ter um viés biográfico e político, fazendo parte de uma história diferente da
cunhada pela ciência colonial.

Ainda relativo a suas escolhas enquanto artista, por partir de inquietações


pessoais e entender que faz os trabalhos para si própria, ela não se interessa
em encaixar-se em teorias externas, apesar de entender que produzir em um
contexto de mulheres feministas é acolhedor e libertador. Isso a faz ressaltar
também que não produz pensando em ser reconhecida pelo circuito artístico e
ganhar reconhecimento no mercado, o que interessa é poder externar suas
inquietações (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 153).

Tendo uma produção fruto de inquietações individuais e que tratam sobre temas
sociais, étnicos e de gênero, ela entende que só teve alguns espaços alcançados
por estar na USP, pois o mercado não lhe daria atenção e, como já mencionado,
ela não se interessa por essas disputas. Paulino assinala que o preço pago por
essas escolhas é não vender muito, mas não se arrepende, pois seria muito ruim
viver uma vida sem fazer o que queria. Junto a esse preço que ela paga, existe
o pouco reconhecimento no meio artístico; em entrevista dada em 2018, afirma
que a primeira exposição com investimento e planejamentos que fez jus à sua
carreira foi a “Atlântico Vermelho – Padrão dos Descobrimentos”, a qual foi feita
fora do Brasil, na cidade de Lisboa, em Portugal (CARVALHO, TVARDOVSKAS,
FUREGATTI, 2018, p. 158). Atualmente, a artista participa ativamente de
diversas exposições, tendo obras em coleções públicas no Brasil, Chile e
Estados Unidos.

A obra escolhida para este trabalho não é um ponto fora da curva das produções 245
de Paulino e representa a inquietação sentida por essa artista negra. Em
documentário produzido pela Netflix, é apontado o fato de as mulheres negras
não terem suas demandas totalmente atendidas no movimento feminista ou no
movimento negro (FEMINISTAS: O QUE ELAS ESTAVAM PENSANDO?, 2018).
Nesse sentido, ela destaca sobre como a condição de mulher e negra infere nas
oportunidades no campo das artes visuais, devido a dificuldade de acesso a boas
escolas, as obrigações com a casa e filhos e, ainda, o enfrentamento do mercado
masculino, branco e eurocêntrico (TEIXEIRA, 2019).

Desse modo, Paulino se configura como uma das artistas que poderiam fazer
parte do conteúdo escolar descrito como “pálido” por Renata Santos, por
representar um conjunto de valores desse período histórico (SANTOS, 2019, p.
349). Esses valores são compreendidos em sua obra que traz uma
representação da mulher negra que, mesmo estando em condição de
subjugação por tantos anos, é ressignificada pela artista mostrando sua
grandiosidade e importância na formação do país.

Imergir na produção de Rosana Paulino foi uma experiência de grande valia para
perceber as questões norteadoras da disciplina. Sua trajetória, despreocupada
em ser bem recebida pelo mundo artístico e pelo mercado, tornou-a em uma
artista livre que consegue expor suas inquietações para sociedade. Sua
condição enquanto mulher e negra, junto dessa escolha de trajetória, dificultou
a chegada de seu reconhecimento, porém ela conseguiu abrir os caminhos para
as artistas mais jovens e está hoje em uma boa posição no cenário artístico,
dada a quantidade de obras em exposição.

Diante dessa discussão, é preciso considerarmos a importância de tratarmos


sobre essa temática no contexto da formação universitária de licenciandos.
Devemos ter em vista, ainda, a Lei 10.639/03, que, alterando a Lei 9.394/96,
tornou obrigatório o ensino da História da África e da cultura afro-brasileira em
todas as escolas de ensino básico do país. Assim, é obrigação das universidades
adequarem os seus currículos para atenderem às necessidades do chão da
escola, onde os futuros profissionais formados atuarão. Nesse sentido, essa
experiência se mostrou como primordial por proporcionar a reflexão sobre o
tratamento para com o corpo das mulheres negras em nosso país, contribuindo
para pluralizarmos os conhecimentos acerca da nossa história.

Referências biográficas

Rebeca Nadine de Araújo Paiva, estudante da licenciatura em História da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Referências bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo:


Companhia das Letras, 2015.
246
BRASIL. Lei no 9.394, de 09 de janeiro de 1996. Estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 08 dez. 2020.

BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei no 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 08 dez.
2020.

CARVALHO, Noel dos Santos; TVARDOVSKAS, Luana Saturnino; FUREGATTI,


Sylvia Helena. A propósito da passagem de Rosana Paulino pela Unicamp –
entrevista com a artista. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 26, n. 2,
p. 149-160, jul./dez. 2018.

FEMINISTAS: o que elas estavam pensando? Direção: Johanna Demetrakas.


[S. l.]: Netflix, 2018. 1 vídeo (86 min). Disponível em:
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MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Os africanos entre representações: viagens


reveladoras, olhares imprecisos e a invenção da África no imaginário Ocidental.
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PAULINO, Rosana. Ama de Leite número I. 2005. 1 fotografia. Disponível em:


http://4.bp.blogspot.com/-S-
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RODRIGUES, Jaime. O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil:


paradigmas em questão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil
imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos. A pálida história das artes visuais no
Brasil: onde estamos negras e negros? Revista Gearte, v. 6, n. 2, p. 341-368,
2019.

SHMC I – Rosana Paulino: luz e sombra – tópico 3. Produção de Susana Guerra.


[S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (19 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RPfRxgGlzrs&feature=youtu.be. Acesso em:
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crianças brancas na cidade de São Paulo no século XIX. Antíteses, v. 9, n. 17,
p. 297-322, jan./jun. 2016. 247

TEIXEIRA, Marina Dias. Ser artista negra: o olhar de Rosana Paulino sobre
passado, presente e futuro. [S. l.]: SP-ARTE 365, 2019. Disponível em:
https://www.sp-arte.com/editorial/ser-artista-negra-o-olhar-de-rosana-paulino-
sobre-passado-presente-e-futuro/. Acesso em: 4 jul. 2020.
A HISTÓRIA E OS CORPOS
MARCADOS NO TEMPO
PRESENTE: UM DEBATE SOBRE OS 248

DADOS ACERCA DA VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER NO LESTE
MARANHENSE ENTRE OS ANOS DE
2000 A 2016
Rebecca Kauane Mourão Mendes
A violência contra a mulher ocorre de diversas formas e atinge mulheres de
vários segmentos sociais, independente dos fatores, como classe, ou
poder fator econômico. Um exemplo, seria o próprio espaço doméstico, onde a
mesma pode sofrer violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Desse modo, consideramos importante, realizar debates que possam estar
inseridos nas diversas áreas do conhecimento humano. Visando dessa forma,
estabelecer, princípios de respeito, ao corpo feminino, mas também a própria
mulher. Realizando um debate, cotidiano, afim de gerar uma reflexão sobre
próprio comportamento masculino ao tocante ao machismo e suas
reverberações diante da relação estabelecida com a mulher.

Nesse sentido, é necessária ratificar que a sala de aula é o espaço em que


podemos diminuir a distância entre a desinformação e o conhecimento que ajuda
na clarificação, respeito e a transformação cultural necessária para que
possamos construir uma comunidade que respeita e valoriza todo e qualquer ser
humano independente de seu gênero e com isso reduzir a violência contra as
mulheres e os índices de feminicídios do país, já que pouco é abordado o tema
em sala de aula, fazendo com que o/a aluno/a tanto da Educação Básica ou
Nível Superior constitua ações de valorização do papel feminino no âmbito das
relações sociais e gênero.

Estudos evidenciam que entre 60% a 70% dos homicídios de mulheres


correspondem a feminicídios e as vítimas são jovens, pobres, pertencentes a
minorias étnicas, migrantes e trabalhadoras sexuais, portanto, atingem
predominantemente as vulneráveis (CARCEDO, 2010; SCHRAIBER, GOMES,
COUTO, 2005).
Sob diversas formas e intensidades, a violência doméstica e familiar contra as
mulheres é recorrente e presente no mundo, motivando crimes hediondos e
graves violações de direitos humanos. As taxas de mulheres agredidas
fisicamente pelo parceiro em algum momento de suas vidas, variaram entre 10%
e 52% (OMS, 2005). Segundo Saffioti, (1987), na “hora, no momento em que o
homem entender que também ele é prejudicado pelas discriminações praticadas 249
contra as mulheres, a supremacia masculina estará ameaçada. (SAFFFIOTI,
1987, p. 07).

“Não obstante todas estas diferenças, que tornam, a vida da mulher mais ou
menos difícil, a responsabilidade última pela casa e pelos filhos é imputada ao
elemento feminino. Torna-se, pois, clara a atribuição, por parte da sociedade, do
espaço doméstico a mulher. Trabalhando em troca de um salário ou não, na
fábrica, no escritório, na escola, no comércio, ou a domicílio, como é o caso de
muitas mulheres que costuram, fazem crochê, tricô, doces e salgados, a mulher
é socialmente responsável pela manutenção da ordem na residência e pela
criações e educação dos filhos. Assim, por maiores que sejam as diferenças de
renda encontradas no seio do contingente feminino, permanece esta identidade
básica entre todas as mulheres.” (SAFFIOTI,1987, p. 09).

Nesse caso, o Brasil, a pesquisa sobre tolerância social à violência contra as


mulheres realizada pela IPEA em 2014, informa que os entrevistados na
proporção de 63% concordam que os casos de violência contra a mulher devem
ser discutidos entre os membros da família, 89% informaram que “roupa suja
deve ser lavada em casa” e, 82% consideram que “briga entre marido e mulher
ninguém mete a colher”, o que ocasiona ainda mais a violência em torno de uma
sociedade altamente patriarcal, envoltos em um único pensamento da mulher
ser propriedade do homem e ela se restringir a uma casa .

Corpos marcados na região leste do Maranhão: violência contra mulher

A pesquisa a Região Leste Maranhense, que corresponde às mesorregiões e


munícipios do Estado que são: Caxias, Timon, Codó, Chapadinha, Coroatá,
Coelho Neto, Araioses, Colinas, Brejo, Parnarama, Matões, Urbano Santos,
Timbiras, Buriti, São Bernado, Alto Alegre do Maranhão, Aldeias Altas, São João
dos Patos, São João do Sotér, Santa Quitéria do Maranhão, Buriti Bravo,
Peritoró, Paraibano, Mirador, Magalhães de Almeida, Pastos Bons, Passagem
Franca, Barão de Grajaú, São Benedito do Rio Preto, Mata Roma, Anapurus,
Santana do Maranhão, Água Doce do Maranhão, São Francisco do Maranhão,
Duque Bacelar, Lagoa do Mato, Capinzal do Norte, Sucupira do Norte, Jatobá,
Milagres do Maranhão, Belágua, Afonso Cunha, Sucupira do Riachão e Nova
Iorque, totalizando 44 municípios.

O levantamento realizado no do Tribunal de Justiça do Maranhão revelou que a


maior causa da violência contra a mulher vem do inconformismo do homem com
o fim do relacionamento.
A violência doméstica contra a mulher tem sido objeto de discussão e atenção
com maior intensidade no Brasil nos últimos anos, levantamentos como este
ajudam a identificar os cenários em que essa mulher está inserida, a cada 17
minutos uma mulher é agredida fisicamente no Brasil, de meia em meia hora
alguém sofre violência psicológica ou moral, a cada 3 horas, alguém relata um
caso de cárcere privado, no mesmo dia, oito casos de violência sexual são 250
descobertos no país, e toda semana 33 mulheres são assassinadas por
parceiros antigos ou atuais, o ataque é semanal para 75% das vítimas, situação
que se repete por até cinco anos, essa violência também atinge a parte mais
vulnerável da família, pois a maioria dessas mulheres é mãe e os filhos acabam
presenciando ou sofrendo as agressões.

A violência se estabelece de muitas formas, tais como violência física (bater,


espancar, empurrar, atirar objetos, sacudir , morder ou puxar os cabelos, mutilar,
torturar, usar arma branca como faca ou ferramentas de trabalho, ou de fogo);
violência psicológica (xingar, humilhar, ameaçar, intimidar e amedrontar;
criticar continuamente, desvalorizar os atos e desconsiderar a opinião ou decisão
da mulher; debochar publicamente, diminuir a autoestima; tentar fazer a mulher
ficar confusa ou achar que está louca; controlar tudo o que ela faz, quando sai,
com quem e aonde vai; usar os filhos para fazer chantagem); violência sexual
(forçar relações sexuais quando a mulher não quer ou quando estiver dormindo
ou sem condições de consentir; fazer a mulher olhar imagens pornográficas
quando ela não quer; obrigar a mulher a fazer sexo com outra(s) pessoa(s);
impedir a mulher de prevenir a gravidez, forçá-la a engravidar ou ainda forçar o
aborto quando ela não quiser); violência patrimonial (controlar, reter ou tirar
dinheiro da mulher; causar danos de propósito a objetos; destruir, reter objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais e outros bens e direitos);
violência moral (fazer comentários ofensivos na frente de estranhos e/ou
conhecidos; humilhar a mulher publicamente; expor a vida íntima do casal para
outras pessoas, inclusive nas redes sociais; acusar publicamente a mulher de
cometer crimes; inventar histórias e/ou falar mal da mulher para os outros com o
intuito de diminuí-la perante amigos e parentes).

Com base as definições dos diferentes tipos de violência a OMS ressalta: “A


ocorrência de violência contra a mulher na maioria das vezes se dá pelo parceiro
íntimo, isso constatado em estudo feito pela organização mundial da saúde com
24.097 mulheres entre 15 e 49 anos das quais 15% a 71% relatam violência
física ou sexual por parceiro íntimo em algum momento de suas vidas “(OMS,
2005).

De acordo com os registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM,


do Ministério da Saúde, no ano de 2014, o Estado do Maranhão apresentou uma
taxa de 4,2 homicídios por 100 mil mulheres, inferior à taxa média nacional, de
4,6 homicídios por 100 mil mulheres. Como acontece na quase totalidade dos
estados brasileiros, a violência letal registrada no ano foi maior contra mulheres
pretas e pardas, ao se comparar as taxas de homicídios de mulheres verificadas
em 2014 com aquelas referentes ao ano de 2006, verifica-se que essa violência
letal vem se agravando no tempo. Ao mesmo tempo em que a taxa de homicídios
de mulheres brancas residentes no estado mais que triplicou, passando de 0,9
a 3,0, a taxa de homicídio de mulheres pretas e pardas aumentou em 88%,
passando de 2,4 a 4,5 homicídios por 100 mil.

Esse cenário torna o Maranhão um dos poucos estados que apresentou um 251
incremento percentual da violência letal contra mulheres brancas superior ao
relativo a mulheres pretas e pardas, por razões que merecem ser mais
investigadas. No que concerne às ocorrências de estupro registradas em 2014,
cujos números foram consolidados no 10° Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estado do Maranhão apresentou um número de ocorrências de estupros para


cada grupo de 100 mil mulheres inferior à taxa de estupros registrada no país,
funcionam, no estado do Maranhão, 31 Unidades Especializadas de
Atendimento (UEA), o que representa uma taxa de 0,87 unidades para cada 100
mil mulheres residentes no estado, taxa inferior à média nacional, de 1,03
unidades especializadas para cada 100 mil mulheres.

Para adentrarmos a todo esse processo de transgressão, precisamos entender


o que esses tipos de violência podem resultar na vida da vítima de acordo com
a CARTILHA NEPEM (Núcleo de estudos e pesquisas sobre a mulher).

Estupro: é definido como qualquer conduta, com emprego de violência ou grave


ameaça, que atente contra a dignidade e a liberdade sexual de alguém, o
elemento mais importante para caracterizar esse crime é a ausência de
consentimento da vítima, é crime e se caracterize como estupro.

Desde 2009 o Código Penal Brasileiro prevê, no artigo 213, que o estupro
acontece quando há, com violência ou grave ameaça, “conjunção carnal ou
prática de atos libidinosos”, prevendo penas que variam de seis a dez anos de
prisão, podendo ser agravadas caso o crime resulte em morte, lesões corporais
graves ou for praticado contra adolescentes, no caso de menores de 14 anos, a
questão do consentimento é ignorada, o ato sexual será considerado estupro,
pois vítimas dessa idade não possuem o discernimento necessário para
consentir com a prática sexual, o mesmo acontece quando a vítima,
independentemente da idade, não tiver condições de consentir ou resistir ao ato
como, por exemplo, pessoas muito embriagadas ou desacordadas, cerca de
50% dos estupros são cometidos por companheiros (namorados, maridos etc) e
familiares, conhecidos da família representam pouco mais de 15% dos algozes
de mulheres, os vizinhos representam 3,7% dos agressores, os estupradores
são desconhecidos pela vítima em 31% dos episódios de violência sexual,
segmentando esses dados pela idade da vítima, as informações vão ficando
cada vez mais assustadoras.

O fenômeno da violência sexual contra a mulher não obedece nenhum critério


de regionalidade, desenvolvimento econômico, acesso a bens e serviços
culturais, ou seja, os abusos ocorrem independentemente da situação
econômica, racial, cultural e social da Unidade Federativa.

Violência doméstica: é todo tipo de agressão praticada entre os membros que


habitam um ambiente familiar em comum, pode acontecer entre pessoas com
laços de sangue (como pais e filhos), ou unidas de forma civil (como marido e 252
esposa, pai e filha, namorado e namorada), uma das imagens mais associadas
à violência doméstica e familiar contra as mulheres é a de um homem –
namorado, marido ou ex – que agride a parceira, motivado por um sentimento
de posse sobre a vida e as escolhas daquela mulher, nem toda violência
doméstica deixa marcas. Os maiores agressores das mulheres ainda são os
companheiros (namorados, ex, esposos) correspondendo a 58% dos casos de
agressão, os outros 42% ficam na conta dos pais, avôs, tios e padrastos.

A maioria das vítimas (83,7%) possui entre 18 e 59 anos de idade, sendo que a
margem que mais concentra a idade das vítimas é entre 24 e 36 anos, ou seja,
são mulheres jovens adultas que vivem relacionamentos afetivos que desbocam
no abuso físico, cerca de 1,4% das vítimas tinham menos de 18 anos na época
da agressão, já aquelas com mais de 60 anos de idade correspondem a 15%
das vítimas de violência doméstica.

Nesse contexto de violência que gerou a criação da Lei Maria da Penha que é
um grande avanço ao combate a agressões contra mulheres, que foi
impulsionado por uma mulher que sofreu na pele a ira do seu agressor.

Em 2001, o Brasil foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos


Humanos da Organização dos Estados Americanos devido à negligência com
que tratava a violência contra a mulher, só em outubro de 2002 o agressor, enfim,
foi preso, pegou pena de dez anos, cumpriu dois e hoje está livre.

A lei nº 11.340, De 7 de Agosto de 2006, cria mecanismos para coibir a violência


doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da
Constituição Federal, da convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra as mulheres e da Convenção Interamericana para prevenir,
punir e erradicar a violência contra a mulher; dispõe sobre a criação dos juizados
de violência doméstica e familiar contra a mulher; altera o código de processo
penal, o código penal e a lei de execução penal; e dá outras providências.

Este conceito traz luz a um cenário preocupante: o do feminicídio cometido por


parceiro íntimo, em contexto de violência doméstica e familiar, e que geralmente
é precedido por outras formas de violência e, portanto, poderia ser evitado, trata-
se de um problema global, que se apresenta com poucas variações em
diferentes sociedades e culturas e se caracteriza como crime de 55 gênero ao
carregar traços como ódio, que exige a destruição da vítima, e também pode ser
combinado com as práticas da violência sexual, tortura e/ou mutilação da vítima
antes ou depois do assassinato.
Devido ao alto número de assassinatos de mulheres em virtude do gênero foi
aprovada a Lei 13.104, em 9 de março de 2015, a chamada Lei do Feminicídios,
pela natureza do crime, a maioria dos assassinos dessas mulheres são seus
companheiros, ex companheiros, namorados e esposos, eles representam
95,2% dos algozes, já os parentes, em especial os pais, avós, irmãos e tios
representam cerca de 4,8% dos responsáveis pelos feminicídios. 253

O crime de feminicídios íntimo está previsto na legislação desde a entrada em


vigor da Lei nº 13.104/2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto Lei
nº 2.848/1940), para prever o feminicídios como circunstância qualificadora do
crime de homicídio. Se os avanços legislativos são uma grande conquista dos
movimentos de mulheres, as políticas públicas implementadas para garantir seu
cumprimento ainda se mostram frágeis, não à toa, uma média de 4 mil mulheres
foram assassinadas todos os anos na última década, permanece o enorme
desafio em garantir que as mulheres em situação de violência de fato tenham
acesso à Justiça.

Os casos se assemelham não só pela brutalidade e covardia, o modo como os


assassinos agem é parecido, segundo especialistas, os algozes, geralmente
pessoas com quem as vítimas se relacionam, começam com pequenas
exigências, cenas de ciúmes, cobranças, brigas seguidas de presentes e
pedidos de desculpas com promessas de mudanças, acuadas e sob constantes
ameaças, em geral, as mulheres optam por não fazer a denúncia quando ocorre
a primeira agressão, depois, é um caminho sem volta.

“O Estado falha no combate à violência e proteção às vítimas, a família, muitas


vezes, não consegue evitar consequências mais graves, assim, as tragédias
vêm ocorrendo, é mais do que hora de a segurança pública deixar de reforçar
estereótipos de masculinidades que, no limite, naturalizam a violência como
linguagem e dificultam sua prevenção e sua repressão. Ética, decoro e liturgia
pública são conceitos que, para terem algum significado prático, devem
considerar que cabe ao Poder Público conter as emoções e não aceitar a
violência em nenhuma de suas manifestações, pois o mesmo não está sendo
capaz de garantir a vida de milhares de mulheres.” (Samira Bueno e Renato
Sérgio de Lima, Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

“Todavia, enquanto perdurarem discriminações legitimadas pela ideologia


dominante, especialmente contra a mulher, os próprios agentes da justiça
tenderão a interpretar as ocorrências que devem julgar a luz do sistema de
ideias, justificador do presente estado de coisas, o poder está concentrado em
mãos masculinas há milênios. E os homens temem perder privilégios que
asseguram sua supremacia sobre as mulheres.” (SAFFIOTI, 1987, p. 16)

Enquanto os homens não se policiarem e se desconstruírem a cerca de uma


história e modos herdados de gerações passadas, haverá uma dominação e
manipulação em cima do sexo feminino, assim como alienaram as mesmas a
duvidarem de sua capacidade, que muito já se tem avançado, mas ainda há
muitas barreiras a serem destruídas, sendo assim uma luta diária e contínua,
mas não impossível de vencer.

Referências biográficas

Rebecca Kauanne Mourão Mendes, Acadêmica do curso Licenciatura em 254


História pela Universidade Estadual do Maranhão – CESC –UEMA, Campus
Caxias. Atualmente Bolsista PIBIC 2020/2021 em projeto de iniciação científica
que consiste em, apresentar e tabular o perfil do agressor que envolve questões
de gênero e apresentar os fatores que levam o transgressor a cometer a
violência contra a mulher, na região Leste Maranhense, no recorte dos anos
2000 á 2016.
E-mail: rebeccamendes1919@gmail.com

Orientador: Jakson dos Santos Ribeiro é Professor Adjunto I da Universidade


Estadual do Maranhão (CESC-UEMA), Doutor em História Social da Amazônia
(UFPA), Mestre em História Social (UFMA) e Graduado em História (UEMA).
E-mail: noskcajzaionnel@gmail.com

Referências bibliográficas

CARTILHA NEPEM (Núcleo de estudos e pesquisas sobre a mulher) é


vinculado á Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) com caráter interdisciplinar e
interdepartamental, 1984 – VIOLÊNCIA POLITICA CONTRA AS MULHERES,
35 p.

CRISTINA, Andrea; BASTOS, Carmen; CALDEIRO, Jane. Texto Artigo; Estudo


do Perfil dos Casos de Feminicídio no Brasil no Período de 2008 a 2018, In:
Veredas - v. 3 n. 5 (2020): Revista Interdisciplinar de Humanidades. P. 104-
124. Disponível em:
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LIARA, Cíntia. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER- IPEA (Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada). In: Beijing +20: avanços e desafios no Brasil
contemporâneo. P. 159-216.Disponível_em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10313/1/AViol%c3%aanciaContra
Mulher_Cap_4.pdf

Panorama da violência contra as mulheres no Brasil [recurso eletrônico] :


indicadores nacionais e estaduais. – N. 1 (2016)-. – Brasília : Senado Federal,
Observatório da Mulher contra a Violência, 2016, 71 p.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.


(Coleção Polêmica) 120 p.

Sites :
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2019. Disponível em: <08032019>. Acesso em: 10 dez. 2020.
https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/dados-de-
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brasil.ghtml
https://entretantoeducacao.com.br/educacao/educacao-combate-violencia-
contra-mulheres/
AS CONTRIBUIÇÕES DOS
TRATADOS DE TROTULA DE
RUGGIERO PARA A SAÚDE 256

FEMININA DO CONTEXTO
MEDIEVAL E SUAS
POSSIBILIDADES NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Luciano José Vianna e Rita de Cássia
Rodrigues
Abordar a História das Mulheres, especificamente do período da Idade Média,
não é uma tarefa simples, levando em consideração que grande parte das
produções desse contexto foram elaboradas por homens. Entretanto, é possível
encontrar produções escritas pelas mãos femininas e, a partir delas, realizar
breves reflexões sobre a atuação feminina nesse contexto histórico. Nessa
perspectiva, o intuito deste trabalho consiste em apresentar brevemente as
propostas medicinais de Trotula de Ruggiero (1050-1097) presente em seus
tratados que eram dedicados majoritariamente para o cuidado com a saúde das
mulheres do século XI. A partir disso, observaremos as possibilidades de
trabalhá-lo no contexto da formação de professores.

O campo histórico que conhecemos atualmente como História das Mulheres


surgiu nos anos 60 e 70 do século passado a partir de uma demanda social
(feminismo), através da qual surgiram uma série de reflexões sobre o campo
histórico feminino em diversas temporalidades (SCOTT, 1992, p. 63-65), o que
intensificou a elaboração de produtos culturais (filmes, literatura, etc...) e cujo
reflexo observamos, atualmente, em termos de formação cidadã (como, por
exemplo, a BNCC, com a temática sobre a História das Mulheres). Assim, ao
mesmo tempo que ocorreu o desenvolvimento deste campo de estudo ocorreu
também a sua inserção em outros campos historiográficos (AURELL, 2013, p.
287-340).

Os discursos históricos, durante muito tempo, estiveram direcionados para as


elites sociais, tratando-se de uma história tradicionalista e dos grandes homens.
No contexto do século XIX, a história positivista enfatizava somente as questões
políticas. Diante disso, foi a partir da Escola dos Annales, notadamente na
terceira geração, que iniciou o desenvolvimento de novos campos
historiográficos, dentre eles o estudo sobre a História das Mulheres. A inclusão
dessa temática, no entanto, foi reforçada graças aos movimentos feministas que
ocorreram a partir de 1960 (SOIHET, 1997).

De acordo com Joan Scott, “a importância das mulheres na história significa 257
necessariamente ir contra as definições de história e seus agentes já
estabelecidos como ‘verdadeiros’” (SCOTT, 1992). Nesse sentido, o estudo
sobre as mulheres possibilita o rompimento de uma história universal e a
desconstrução de concepções errôneas, tendo em vista que os discursos
femininos estavam silenciados na historiografia. Porém, é extremamente
necessário analisar as fontes com cautela, pois muitas informações sobre as
mulheres foram elaboradas a partir de uma perspectiva masculina.

Segundo Soihet (1997), o que é apresentado nas fontes refere-se


majoritariamente à maneira pela qual as mulheres deveriam ser e o que fazer de
acordo com o viés masculino. Consequentemente, isso resulta na escassez de
informações sobre o passado feminino, dificultando assim as pesquisas dos (as)
historiadores (as) na atualidade. Essa questão persiste principalmente no
período medieval, visto que as obras deste contexto eram produzidas
majoritariamente por homens.

Não obstante, é possível encontrar obras de autoria feminina e com elas obter
uma nova análise da história. “As mulheres da Idade Média, a quem senhores,
esposos e censores negam a palavra com tanta persistência, deixaram afinal,
mais textos e ecos do seu dizer do que traços propriamente materiais.”
(KLAPISCH- ZUBER, 1993). Dessa forma, é de grande importância o estudo das
fontes produzidas por mulheres, o que favorece a análise sobre o cotidiano e a
atuação feminina na sociedade, como é o caso da obra Sobre as doenças das
mulheres (século XI) de Trotula de Ruggiero, o que possibilita o conhecimento
acerca da História das Mulheres na Idade Média vinculado à História da
Medicina.

Trotula de Ruggiero: a mais importante das Damas de Salerno

A obra Sobre as doenças das mulheres foi composta em pleno século XI no sul
da Itália, uma região de intensa circulação e trocas culturais, principalmente com
o mundo islâmico. Sua autora, Trotula de Ruggiero, foi silenciada da história
durante séculos, tanto que a obra em questão foi recentemente traduzida ao
português e agora está disponível para o público brasileiro. Sobre as doenças
das mulheres gira em torno da questão da saúde feminina e, portanto, apresenta
dois temas muito pouco trabalhados em termos de estudos medievais no Brasil,
a história das mulheres e a história da medicina medieval. A obra caracteriza-se
pela sua minuciosidade em relação aos cuidados com a saúde, e também porque
está voltada para o contexto infantil em algumas situações, como, por exemplo,
com os recém-nascidos. Desta forma, a obra está voltada completamente para
uma preocupação com a saúde feminina e, de forma específica, no contexto do
século XI, apresentando, portanto, uma forma de pensamento, de tratamento, de
complexidade e de trabalho com o corpo e a saúde feminina, inclusive
considerando a situação social das mulheres, fossem ricas ou fossem pobres,
sempre com a intenção de propor um comportamento equilibrado entre os
aspectos higiênicos, alimentares e de beleza para o universo feminino,
destacando, portanto, práticas e representações sobre a saúde feminina. 258

No espaço temporal entre os séculos XI e XII, a cidade de Salerno, sul da Itália,


vivenciava um período de crescimento urbano e desenvolvimento econômico e
comercial. Era uma região que favorecia uma vasta relação e encontro entre
várias culturas, o que foi um dos aspectos que direcionou para o surgimento da
área medicinal, fruto do compartilhamento de diversas experiências e tradições.
Dentre elas, destaca-se a importante contribuição resultante do convívio entre
cristãos, mulçumanos e judeus. (PINHO, 2016).

Desse modo, houve o desenvolvimento da Escola Médica Salernitana, tornando-


se ponto referencial para as pessoas de diferentes lugares que buscavam tanto
a cura para as enfermidades, quanto a formação no campo da medicina. A
localização regional de Salerno possibilitou que “seus membros fossem pessoas
capacitadas a fazer uso de um rico e variado conjunto de textos médicos que
circulavam pelo sul italiano.” (BROCHADO; PINHO, 2018). As traduções dos
textos médicos de outras culturas fizeram com que a medicina do século XI se
tornasse cada vez mais enriquecida e inovadora, atraindo assim pessoas de
todos os lugares.

Vale ressaltar que uma das principais e notáveis características da escola


salernitana tratava-se de não ser controlada pela igreja e permitir o acesso de
mulheres. Dentre elas, a médica e mestra Trotula de Ruggiero (1050-1097) foi
considerada a mais importante e merecedora de grande destaque, pois, além de
ter se dedicado inteiramente para o cuidado com o corpo feminino, escreveu todo
seu conhecimento e experiências que vivenciou no âmbito medicinal em tratados
que foram disponibilizados para outras gerações.

Assim sendo, “Trotula tornou-se ímpar por ter aliado a pesquisa e o ensino da
medicina à profissão de médica, ou seja, escreveu o seu próprio ensino.”
(SIMONI, 2010). As suas obras mais conhecidas são o De possionibus mulierum
ante, en e post partum (Sobre as doenças das mulheres antes, durantes e depois
do parto), denominado Trotula maior, e De ornatu mulierum (Sobre a beleza das
mulheres), o Trotula menor. Os assuntos trabalhados em sua obra são voltados
para a saúde feminina, como, por exemplo, a falta ou excesso de menstruações,
a infertilidade feminina, o excesso de suor, a disenteria, dor de dente, mau-hálito,
feridas na pele, doenças dos olhos e da garganta, sugestões para evitar e para
alcançar a gravidez, os cuidados durante o período da gravidez, formas de tornar
o parto menos dolorido, cuidados com o recém-nascido e os cuidados com a
mulher depois do parto.
Os cuidados com a saúde da mulher

Utilizando a perspectiva teórico conceitual apresentada por Patrick Geary (2002)


relacionada à memória social, no qual esta pode ser estudada “considerando-a
como o processo que permite à sociedade renovar e reformar sua compreensão
do passado a fim de integrá-lo em sua identidade presente”, torna-se possível a 259
análise da obra Sobre as doenças das mulheres (séc. XI) evidenciando o fato de
que Trotula, ao preocupar-se em seu presente com a saúde feminina, volta-se
para o passado e recupera a memória das tradições medicinais direcionadas
majoritariamente para as doenças das mulheres. Nesse sentido, é notório a sua
preocupação e cuidado com o grupo social feminino em seu contexto histórico.
Portanto, logo no início do tratado, a médica revela o motivo que a fez direcionar
todo seu conhecimento medicinal para áreas hoje consideradas como
ginecologia e obstetrícia. Verificamos o fragmento a seguir:

“Porque as mulheres são por natureza mais frágeis que os homens, nelas as
doenças abundam com mais frequência, sobretudo em torno dos órgãos
reservados à função natural. Como esses estão posicionados em um lugar mais
íntimo, por pudor e pela fragilidade da sua condição, elas não ousam revelar ao
médico as aflições das suas enfermidades. Por tal motivo, eu, tendo compaixão
pela sua desventura e particularmente impulsionada pela solicitação de uma
certa senhora, comecei a ocupar-me diligentemente das doenças que muito
frequentemente molestam o sexo feminino.” (RUGGIERO, 2018).

A partir desse trecho é possível identificar como as mulheres eram


representadas no contexto em que a médica estava inserida. A afirmação de que
as mulheres são mais frágeis do que homens e o fato de discorrer muito sobre
assuntos ligados a maternidade e cuidados infantis, deve ser analisado
observando os aspectos do período medieval, na qual as atividades femininas
estavam direcionadas ao matrimônio e procriação. Assim, pode-se compreender
essa afirmação sem correr o risco de cometer anacronismos.

Não obstante, Trotula mostrava-se muito além da sua época, pois tratava o corpo
feminino sem nenhum tabu ou preconceito, chegando ao ponto de instruir
receitas de como contrair a vulva para que, mesmo se violada, a mulher
parecesse virgem. (RUGGIERO, 2018). Ademais, abordava assuntos voltados
para a sexualidade e ressaltava a importância da menstruação, apontando que
a maioria das enfermidades eram decorrentes do desequilibro desse ciclo. Além
disso, contrariando os pensamentos vigentes no medievo, revelou que se tratava
de um equívoco atribuir a questão da infertilidade apenas às mulheres. O
fragmento seguinte apresenta essa ideia:

“Algumas mulheres têm o útero tão macio e viscoso que [o útero, e não as
mulheres] não retém o esperma recebido. Às vezes isso acontece por culpa do
homem, quando ele tem um sêmen muito inconsistente que, derramado no útero,
desliza para fora por conta da sua liquidez. Alguns homens têm os testículos
muito frios e secos, esses raramente ou nunca procriam porque o seu sêmen
não é propício para a reprodução.” (RUGGIERO, 2018).

Nessa passagem, Trotula afirma que o defeito também pode estar no sexo
masculino. Dessa forma, nota-se que, apesar de ter vivido em um contexto no
qual a presença de pensamentos misóginos era muito forte, ela destaca em seus 260
tratados um diálogo de zelo e defesa diante das mulheres. Vale ressaltar que ao
preocupar-se com o bem-estar do grupo social feminino, receitava dietas
restritas, modos de higiene para prevenir as enfermidades e tratamentos com
plantas naturais para o processo de cura, todos ensinamentos baseados nos
conceitos medicinais de Hipócrates (séc. III a. C) e Galeno (séc. II). Além disso,
prescreve receitas de banhos, cremes, massagens, entre outras formas de
embelezamento feminino, visto que para o corpo permanecer saudável deveria
existir harmonia entre os aspectos internos e externos.

Nesse sentido, pode-se considerar que Trotula de Ruggiero ocupou uma posição
de “ponte-síntese entre a tradição galênica e hipocrática e a medicina que
ganhava força no seu tempo, combinação de práticas orientais e ocidentais cada
vez menos voltada para as práticas mágicas e ou a intervenção divina e mais
direcionada à busca do equilíbrio entre a higiene, a boa alimentação e a beleza
para atender o universo feminino” (CALADO; SIMONI; DEPLAGNE, 2018),
enriquecendo, assim, os cuidado medicinais voltados para área consideradas
como a ginecologia e a obstetrícia.

A importância dos tratados de Trotula na formação de professores

Como se pode observar, os tratados de Trotula de Ruggiero consistem em


escritos repletos de informações sobre o contexto social feminino do medievo.
Vale ressaltar também sobre o contexto infantil, uma vez que a salernitana
apresenta inúmeras contribuições voltadas para o cuidado com as crianças,
desde o período gestacional. Descrevendo sobre áreas como ginecologia e
obstetrícia, embelezamento da pele, cuidado com o corpo, dentre vários
assuntos, e partindo sempre de suas experiências na prática medicinal, torna-se
possível observar o amplo conhecimento que tinha sobre essa área.

Recentemente traduzida para o português, a obra Sobre as doenças das


mulheres pode ser abordada na formação de professores, principalmente nos
fragmentos destacados para com os cuidados com o contexto feminino. Em
primeiro lugar, tendo em vista que na Idade Média, por se tratar de um período
com feitio patriarcal, há uma vasta documentação de caráter misógino, há a
tendência, tradicionalmente falando, principalmente entre o grande público, de
considerá-la como um período exclusivamente masculino. Neste sentido, obras
como a de Trotula ajudariam a desmistificar e desconstruir esta ideia na
formação de professores. Isto posto, apresentar e estudar obras elaboradas pelo
grupo social feminino contribui para a desconstrução de estereótipos e amplia o
olhar dos futuros professores para muitos acontecimentos que foram silenciados
na historiografia.
Estudar a História das Mulheres na Idade Média é fundamental para a percepção
de que elas realizaram um papel ativo na sociedade, e isso é fundamental em
um contexto de formação de professores. Nesse sentido, é importante ressaltar
que não necessariamente a mulher estava na posição de submissão perante ao
homem, pois o medievo estava composto por diversos grupos sociais. Para 261
exemplificar, basta observar que as mulheres da nobreza tinham mais
autoridade do que um homem camponês (NASCIMENTO, 1997, p. 90). Nota-se,
portanto, que muitas mulheres participaram ativamente na sociedade,
desempenhando as funções de professoras, médicas, rainhas, entre outras, e
cabe a nós, professores, analisar em sala de aula as fontes que tais personagens
produziram, enriquecendo assim a formação inicial.

Considerações finais

Uma das áreas do conhecimento que mais foi alterada com a reformulação da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi a relacionada ao período medieval
e, consequentemente, o ensino de História. Sobre esta reformulação,
destacamos um tema presente na BNCC e que está voltado para o Ensino de
História Medieval: a história das mulheres (BNCC, 2018, p. 420-421).

É notório que a inclusão dos estudos sobre as mulheres, proporcionado pela


terceira geração dos Annales e, ainda mais reforçado pelos movimentos
feministas de 1970, foi ampliando as possibilidades de análises históricas a partir
de novas fontes. Nessa perspectiva, tornou-se possível a realização de
pesquisas sobre a História das Mulheres na Idade Média de acordo com os
escritos produzidos pelo grupo feminino, como foi o caso da obra Sobre as
doenças das mulheres de Trotula de Ruggiero (século XI). Dessa forma, esse
estudo é extremamente necessário para apresentar uma nova visão do período
medieval, desconstruindo os estereótipos de “idade das trevas” e período
extremamente misógino. Ademais, é importante salientar que obras como essa
podem ser abordadas em um contexto de formação de professores, uma vez
que a mesma proporciona um olhar feminino em relação a determinado aspecto
histórico.

Posto isso, é possível identificar que no contexto da Idade Média existiram


mulheres escritoras, cientistas, professoras e médicas, ou seja, a participação
feminina ativa na sociedade. Dessa forma, os escritos de Trotula foram
importantes para o estudo das mulheres como seres sociais, levando em
consideração o seu papel fundamental na história, no qual foi necessário e de
grande contribuição para a educação medicinal do medievo.

Referências biográficas

Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da Universidade


de Pernambuco/campus Petrolina. Professor Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares
(PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Doutor em
Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat Autònoma de Barcelona
(UAB). Pós-Doutor em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Membro do Institut d’Estudis Medievals (UAB-IEM), da ANPEd e da ANPUH
(PE). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em
Medievalística (UPE/campus Petrolina). 262

Rita de Cássia Rodrigues é graduanda do Curso de História da Universidade de


Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos
e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente realiza seu
projeto de Iniciação Científica como bolsista da Fundação e Amparo a Ciência e
Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) sob a orientação do Prof. Dr.
Luciano José Vianna, cujo título é “A infância, a mulher e a medicina medieval
na obra Sobre as doenças das mulheres (séc. XI) de Trotula di Ruggiero (séc.
XI).”

Referências bibliográficas

Fonte

RUGGIERO, Trotula di. Sobre as doenças das mulheres. DEPLAGNE, L. C.


SIMONI, K. (org.). Trad. Alder Ferreira Calado e Karine Simoni. 1ª Ed. Copiart,
Florianópolis, UFSC/ DLLE/ PGET, 2018.

Bibliografia

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a las historias alternativas. In: Comprender el pasado. Una historia de la escritura
y el pensamiento histórico (Aurell, Jaume; Balmaceda, Catalina; Burke, Peter;
Soza, Felipe). Madrid: Ediciones Akal, 2013, p. 287-340.

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MEC/CONSED/UNDIME, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofin
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BROCHADO, Claudia Costa e PINHO, Lúcia Regina Oliveira e. Trótula e a


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Brochado; Luciana Calado Deplagne (Organizadoras). João Pessoa: Editora
UFPB, 2018.

GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude


(eds.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol. II. São Paulo: EDUSC,
2002, p. 167-181.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: História das Mulheres. A Idade
Média. Organizadores: Georges Duby e Michelle Perrot. Porto: Edições
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NASCIMENTO, Maria Filomena Dias. Ser Mulher na Idade Média. Textos de


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PINHO, Lúcia Regina de Oliveira e. Trotula de Salerno: périplo na história e


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História: Novas Perspectivas. Trad.: Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992, p.
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SOIHET, Raquel. História das mulheres. In: Domínios da história: ensaios de


teoria e metodologia. Orgs. Ciro F. Cardoso, Ronaldo Vainfas, 5ª ed. Rio de
Janeiro: CAMPUS LTDA, 1997.
A CATEGORIZAÇÃO DE GÊNERO
NOS BRINQUEDOS E A EDUCAÇÃO
INFANTIL 264

Samara Rodrigues Pino


Introdução

O presente artigo tem como objetivo abordar problemáticas referente a questões


gênero presentes nos brinquedos infantis. Para realizar esse trabalho, iremos
analisar quatro lojas de brinquedos, para que, assim, possamos ter uma
compreensão sobre os tipos de brinquedos que estão sendo produzidos para as
crianças. Considero necessário utilizar-me de sites de lojas online afim de trazer
uma comparação relacionada as diferenças entre o que seria designado como
brinquedo para menina ou para menino. Assim, compreendo que, partir desse
levantamento de dados, juntamente com autores que trabalhem com
perspectivas relacionadas as construções de gênero, discutiremos as
problemáticas das diferenças de gênero nos brinquedos e como elas acarretam
conflitos na vida das crianças, dando um enfoque na Educação Infantil.

Durante a infância, as crianças têm seus gostos, atitudes, subjetividades


moldadas a partir do seu gênero. E, essas diferenças persistem por bastante
tempo, inclusive, muitas vezes, por toda a vida. Mesmo sendo sujeitos e
produtores de conhecimento, cultura e, que possui ideias e relações próprias, as
crianças são expostas as narrativas adultas sem muitas possibilidades de refletir
sobre e, reproduzindo diversos preconceitos e estereótipos. São diversas as
ferramentas utilizadas para impor um pensamento as crianças, desde de roupas
a trejeitos.

Desse modo, é pertinente os estudos de gênero na infância, visando apontar as


problemáticas e possíveis soluções para que, nesse sentido, tenhamos mais
oportunidades de transformações sociais na busca de infâncias mais igualitárias.
Os brinquedos são objetos que estão presentes em diversos espaços, nos quais
as crianças estão inseridas, por exemplo, a escola e lugares de lazer, assim
como está no cotidiano das crianças desde da mais tenra idade. Nessa
perspectiva, os brinquedos apresentam inúmeras possibilidades de pesquisa,
principalmente sobre as diferenças entre meninas e meninos na infância, assim
como para outras problemáticas.
Os brinquedos das lojas

Levando em consideração de estarmos em um período de restrição por conta da


pandemia de coronavírus e buscando a facilidade para acesso de informações
da categorização geral dos brinquedos, essa pesquisa foi realizada através do
levantamento de dados com as quatro lojas de brinquedos. As lojas escolhidas 265
foram as Superlegal, Lojas França, Toy Mania e Ri Happy, pois são conhecidas
em grande parte do Brasil e possuem diversos espaços físicos pelo país. Assim,
foi feita a análise das imagens e dos brinquedos especificados nas subcategorias
ao acessar as categorias de menina e menino.

Iniciaremos com a loja Superlegal, nela já podemos identificar no design do site


que há uma diferenciação entre meninas e meninos, entrando nas categorias,
há ao lado subcategorias das abas meninas e meninos, os brinquedos
selecionados para meninas são bonecas, bonecas bebês, maquiagem e beleza,
entre outras opções mostradas na figura 1.

Figura 1– Subcategorias Meninas

Fonte: https://www.superlegalbrinquedos.com.br/

Enquanto na categoria dos meninos, a figura 2 nos mostra que é possível


encontrar na loja os seguintes brinquedos como, personagens, carrinhos, aviões,
fantasias entre outros.
266

Figura 2 – Subcategorias Meninos

Fonte: https://www.superlegalbrinquedos.com.br/

Assim como a loja Superlegal no site da loja França o padrão de categorias não
muda, abaixo na figura 3, podemos ver que na aba das meninas há carrinhos
para bebês, e as sub abas ao lado, brinquedos de cozinha, maquiagem, etc.

Figura 3 – Subcategorias Meninas


267

Fonte: https://www.lojasfranca.com.br/

Logo abaixo, na figura 4, há as imagens de carrinhos, bonecos de super-heróis,


as subcategorias dos brinquedos de meninos, contém ferramentas, dinossauros,
imaginext, entre outros.

Figura 4 – Subcategorias Meninos

Fonte: https://www.lojasfranca.com.br/
Outra loja que também segue esse padrão de menina e menino é a Toy Mania,
como podemos ver na figura 5 as subcategorias da categoria meninas, inclui
brinquedos como bonecas bebês, roupinhas, casa, carro e cia.

Figura 5 - Subcategorias Meninas


268

Fonte: https://www.toymania.com.br/

Enquanto na categoria de meninos na figura 6, as subcategorias incluem


brinquedos mais diversificados como bonecos de ação, robôs, naves, carros e
cia.

Figura 6 - Subcategorias Meninos

Fonte: https://www.toymania.com.br
Já na figura 7 podemos perceber que a loja Ri happy diferente das demais
analisadas, possui uma postura neutra em relação a categorização dos
brinquedos, não os separando por gênero, mas sim por tipos de brinquedos. É
pertinente evidenciar que, a loja Ri Happy é conhecida como a maior rede
varejista de brinquedos do Brasil. Dessa forma, por ser uma loja tão conhecida,
a preocupação em se manter neutro sobre as relações de gênero e os 269
brinquedos pode se dar pelo fato de querer trazer uma imagem mais moderna
para loja.

Figura 7 – Subcategorias

Fonte: https://www.rihappy.com.br/

A problemática na diferenciação dos brinquedos

Primeiramente, vale ressaltar que essas diferenciações partem das perspectivas


dos adultos sobre a diferenciação entre meninas e meninos. Pois, os brinquedos,
de forma geral, podem ser compreendidos como elementos culturais, e as
crianças, enquanto sujeitos, podem ressignificar ou recriar os significados
desses objetos.

Ao refletirmos sobre o conceito de gênero, podemos evocar Scott (1995) com


uma perspectiva pós-estruturalista, na qual, defende que enquanto sexo se
refere as diferenças biológicas entre homens e mulheres, gênero é um conceito
mais fluido que se refere aos papeis sociais atribuídos aos sexos, com as ideias
de masculinidade e feminilidade como aspectos mutáveis que se diferem em
distintas sociedades e em diferentes momentos da história, assim definindo
gênero como um elemento pertencente em todas relações sociais
fundamentadas nas diferenças entre os sexos. Podemos perceber, então, que
as questões de gênero também estão presentes nos brinquedos, seguindo o
modelo de papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres na sociedade. A
autora Belotti (1975) nos traz uma reflexão sobre a imputação de gênero nesses
objetos:

“Para as meninas existe uma vastíssima gama de objetos miniaturizados que


imitam os utensílios caseiros, como serviços de cozinha e toilette, bolsas de
enfermeira com termômetro, faixas, esparadrapo e seringas, dependências 270
como banheiros, cozinhas completas com eletrodomésticos, salas, quartos,
quartinhos para bebês, jogos para coser e bordar, ferros de passar, serviços de
chá, eletrodomésticos, carrinhos, banheirinhas e uma série infinita de bonecas
com o respectivo enxoval. Para os garotinhos em geral os brinquedos divergem
completamente: meios de transporte terrestre, navais e aéreos de todas as
dimensões e de todos os tipos: navios de guerra, porta-aviões, mísseis
nucleares, naves espaciais, arma de todo o tipo, desde a pistola de Cow-boy 13
perfeitamente imitada até alguns sinistros fuzis-metralhadoras que diferem dos
verdadeiros apenas pela menor periculosidade, espadas, cimitarras, arcos e
flechas, canhões: um verdadeiro arsenal militar.” (BELOTTI,1975, p.75-76)

Assim, essa diferenciação dos brinquedos escolhidos para as crianças pode


carregar traços para a vida, assim como também limita os desejos da criança,
mesmo que seja uma preferência sua escolher certo brinquedo, é preciso que
antes uma pessoa tenha lhe ensinado sobre aquilo.

Segundo Delgado (2004) as diferenças como a de gênero fazem o conceito


universal de infância perder legitimidade, ou seja, meninas culturalmente terão
uma infância mais “calma” e controlada, pois brinquedos que exijam do físico ou
sejam mais “violentos” serão voltadas para os meninos. Entretanto, mesmo com
toda a problemática de gênero não podemos negar que essa também é um tipo
de infância, como Didonet (2007) diz, não há uma infância única, mesmo que as
crianças possuam algumas características iguais ou parecidas, ela será única no
espaço que está inserida, ou seja cada uma viverá uma infância diferente. Sendo
assim, o brinquedo como artefato cultural pode se tornar um instrumento de
produção de gênero, controlando e regulamentando as crianças, pois:

“Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a


escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação
distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos tornando aqueles que nela
entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu
também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de
classificação, ordenamento, hierarquização.” (Louro, 1997, p. 57)

Desse modo, Louro (1997) nos diz que, a escola tem suas origens marcadas na
divisão, por ser tratar de um espaço já marcado pelas relações de gênero, as
brincadeiras escolares também são afetadas com esses problemas,
principalmente na Educação Infantil, onde o ato de brincar possui uma
importância fundamental para o desenvolvimento integral da criança tanto como
individuo como nos aspectos psicomotores.
A divisão de brinquedos pode ocasionar problemas na socialização entre as
crianças na sala de aula, seguiremos o conceito de Kishimoto (2001) de
brinquedo, esse sendo o material de suporte para as brincadeiras, muitas vezes
as crianças não participam de brincadeiras coletivas por considerarem certos
brinquedos coisas de meninas ou de meninos. Portanto, Kishimoto e Ono (2008)
a partir de uma pesquisa realizada entre 2005 e 2006 na Brinquedoteca da 271
Faculdade de Educação da USP, com crianças de 2 a 10 anos de idade,
puderam constatar uma preferência de brinquedos e brincadeiras de meninos e
meninas. Os espaços de brincadeiras de cozinha obtiveram registros da
presença de 78,26% das meninas que participaram da pesquisa e 21,74% da
presença de meninos. A boneca foi o item mais escolhido por meninas, enquanto
o carrinho foi o brinquedo que somente os meninos escolhiam. Lembrando que
em certos contextos uma brincadeira tipicamente definida como masculina pode
ser considerada feminina também, precisando levar em conta os contextos
sociais dessas variações de gênero.

Vale ressaltar que, nos 89 registros realizados pelas pesquisadoras, foi


presenciado um caso na qual a professora reproduzia uma visão estereotipada
de gênero ao falar sobre o que as crianças deveriam brincar. Foram registrados
casos de desconstrução de gênero partindo das crianças, momentos nos quais
meninos estavam no espaço da cozinha, ou brincando de boneca, o uso de
fantasias como perucas e coroas, e brincadeiras mistas. Assim como houve
momentos de proteção ao “território” feminino e masculino, também houve
momentos de brincadeiras harmoniosas.

Comparando os dados adquiridos por Kishimoto e Ono (2008) e a análise das


lojas online de brinquedos, podemos perceber a permanência de estereótipos de
gênero das industrias comerciais e midiáticas ainda em 2021, bonecas e
brinquedos que trazem consigo o espaço familiar, o cuidado materno e com a
aparência física são direcionadas as meninas, enquanto aos meninos lhes é
oferecido um mundo de aventuras com bonecos de ação, carros e ferramentas.

Considerações Finais

Das observações realizadas, podemos perceber que as questões de gênero


permeiam a vida das crianças a todo instante. A mídia constantemente reforça
os estereótipos de gênero em propagandas de brinquedos infantis, muitas vezes
anunciando brinquedos nada infantis como maquiagens para meninas e
arminhas para os meninos.

A criança a partir do momento que está sendo gerada já possui uma expectativa,
tem suas atitudes e comportamento definidos pelo seu gênero,” meninas são
mais calmas e delicadas, usam rosa e brincam de boneca” “meninos mais
agitados e violentos, usam azul e brincam de carrinhos”, sendo assim para os
adultos os brinquedos se tornam mais uma das ferramentas de controle infantil.
Professores(as) também tiveram seus comportamentos definidos na infância,
por conta disso no espaço escolar muitas vezes eles inconscientemente
reforçam as diferenças de gênero entre os alunos nas práticas educacionais. Por
estes motivos trabalhar e problematizar as questões de gênero nas escolas
principalmente na Educação Infantil é essencial para o desenvolvimento das
crianças como indivíduos de uma sociedade. 272

Precisamos estar cientes que a perpetuação de preconceitos advindos dos


professores(as) podem também ser resultados de uma educação que nunca
incentivou um rompimento com os padrões sociais de gênero. Sendo pertinente
uma capacitação desses profissionais com novas práticas pedagógicas para o
ensino de igualdade de gênero. Na luta contra as desigualdades de gênero todos
que estão inseridos na vida da criança possuem um papel importante, a escola
precisa estar unida para trabalhar essas questões com a família dos alunos, para
que possam repensar como orientam as brincadeiras dos filhos em casa.

Desse modo, Kishimoto e Ono (2008) perceberam em sua pesquisa que mesmo
quando as crianças já possuem uma concepção sobre gênero, muitas vezes elas
as transgredem com naturalidade, seja em brincadeiras coletivas quanto
individuais. O Educador(a) precisa se fazer presente nesses momentos de
brincar livre, para que possa incentivar a participação das crianças em
brincadeiras e atividades mistas lhes permitindo a liberdade de escolher e
experimentar, esse processo pode mudar a simbologia dos brinquedos e
brincadeira, que passariam a ser artefatos culturais de combate a uma educação
sexista. Como Louro (1997) explica ações como essas facilitam o educador(a) a
olhar para o sujeito que deseja transgredir as fronteiras de gênero

Concluo, portanto, que o trabalho do professor(a) ao tratar as questões de


gênero com os alunos, abre um leque de possibilidades e caminhos para as
crianças, mostrando as diversas formas de ser menina e menino para que
possam ser eles mesmos.

Referências biográficas

Samara Rodrigues Pino é formada em História pela Universidade Federal do Rio


Grande, atualmente graduanda do curso de Pedagogia na mesma instituição.

Referências bibliiográficas

BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão. Petrópolis: Vozes, 1975

DELGADO, Ana Cristina Coll. Infâncias e crianças: O que nós adultos sabemos
sobre elas? Revista Espaço Acadêmico. Nº34, 2004.
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Revista Pátio Educação Infantil, Ano V - Nº 15, novembro de 2007 a fevereiro de
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Kishimoto, Tizuko Morchida, & Ono, Andréia Tiemi. (2008). Brinquedo, gênero e
educação na brinquedoteca. Pro-Posições, 19(3), 209-223.
273
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estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.


Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, jul./dez. 1995.
REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA NO CONTO “MENTIRA
DE AMOR” 274

Sandra Maria Costa dos Passos Colling e


Thais Gaia Schüler
Este artigo tem por objetivo demonstrar a relevância da literatura como
possibilidade para a discussão envolvendo gênero, sociedade e violência
doméstica nas aulas de história do Ensino Médio. Propõe uma abordagem
transversal e interdisciplinar do conto “Mentira de amor”, visando contemplar a
Competência 5 prevista para as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018), no sentido de instrumentalizar o
aluno para que este seja capaz de “identificar e combater as diversas formas de
injustiça, preconceito e violência, adotando princípios éticos, democráticos,
inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos” (BNCC, 2018,
p.577).

As aproximações entre literatura e história encontram seu ápice com a teoria


meta-histórica de Hayden White (1995) que considera que não existem
interpretações do passado livre de pressupostos, sendo toda interpretação do
passado construída em determinado presente, impossibilitando o historiador de
se isentar do seu próprio tempo cronológico para chegar com imparcialidade ao
passado de alguém nos termos desse alguém. O passado não existe somente
na forma como ele é escrito pelos historiadores, pois a história é uma criação
literária na medida em que é fruto da interpretação de relíquias textualizadas
que, por sua vez, só podem ser compreendidas por meio das pistas de
interpretações a serem organizadas pelos historiadores.

Considerações semelhantes são feitas por Keith Jenkins (2007) que afirma que
a história não tem alcance para apreender plenamente a complexidade do
passado, mas de considerar as múltiplas possibilidades não de uma
historiografia única, mas variegada no que concerne à sua abordagem, fontes e
olhares. Ainda que ficcional, a obra literária mantem sua relação com o real e
com o presente histórico por meio de representações simbólicas, fiel à sua
natureza mimética (SARAIVA, 2006). Embora a teoria de White (1995) seja muito
criticada no meio historiográfico, essa representou um importante momento
reflexivo acerca do fazer história e, sem dúvida, influente na historiografia e no
ensino contemporâneo.
O conto “Mentira de amor”, escrito por Ronaldo Correia de Brito, inicia
apresentando a protagonista Delmira afirmando que ela “[...] acostumou-se à
prisão domiciliar [...]” (2009, p. 99). Com esta pequena ‘entrada’ justifica-se a
ideia de articular, neste artigo, os elementos apresentados na narrativa e discutir
sobre interação entre fictício e imaginário, comunicação narrativa, o texto e o
contexto social, representação e a importância do leitor, pensando na 275
possibilidade de utilizar o texto literário deste conto para refletir sobre a mulher
e os problemas que cercam este universo, mesmo no século XXI.

“Mentira de amor” é narrado de forma a retratar o cotidiano de uma mulher presa


em seu espaço doméstico e em suas recordações. A narrativa mostra Delmira,
suas filhas pequenas, um marido sórdido e a lembrança de uma filha falecida,
além das vivências de um passado que volta a ser rememorado por meio dos
sons que adentram as paredes da casa e um pequeno quintal.

Essas memórias vão aos poucos sendo recuperadas, organizadas e contadas


pelo narrador, encaminhando-nos para o desfecho final que, sem querer,
acabamos por desejar, pois parece a única alternativa para a liberdade da
protagonista. “Mentira de amor” possibilita inúmeras interpretações e análises.
Mesmo sendo um conto e, portanto, ficcional, presenteia seu leitor com registros
e detalhes religiosos, econômicos e sociais de um tempo e lugar, além de trazer
aspectos comportamentais e culturais. Como leitora do conto faço, também,
alguns apontamentos sobre minha relação com o que é apresentado na
narrativa. Além disso, algumas questões culturais e sociais deste contexto serão
abordadas e relacionadas à realidade de nossa sociedade na
contemporaneidade.

É possível afirmar que a literatura é uma potência que nos ajuda a pensar e a
repensar nosso lugar político, social e cultural no mundo, permitindo outros
modos de viver e resistir. “Em Mentira de amor” a personagem não vê outra
possibilidade de encontrar novamente a liberdade se não agir também de forma
violenta. Na narrativa não se percebe uma perspectiva de busca de solução por
meio da justiça, nem apoio por parte da sociedade.

Pelas frestas da janela Delmira e as filhas enxergavam coisas que a sociedade


não percebia: a aflição pela prisão, o medo do homem da casa, o desejo de
conhecer o mundo e as coisas que nele aconteciam, por inteiro. Afinal, o universo
delas era o da casa. Ao refletirmos sobre estas questões, é possível lembrar que
Reis (2003, p. 40) aponta que “a literatura pode ser entendida como instrumento
de intervenção social”. Reis discorre sobre todos os aspectos que isso envolve
por meio das teorias de Platão, nos escritos de Sartre e outros autores, pensando
sobre a dimensão sociocultural da literatura. Não é a intenção tratar destes
aspectos neste texto, mas lembrar destes estudos que, por meio da leitura do
conto “Mentira de amor”, trazem à tona discussões realizadas a partir de leituras
sobre a institucionalização da literatura e o conhecimento da narrativa.
Voltando ao conto, o diálogo entre marido e mulher, presença importante na
construção da identidade narrativa e da sociabilidade como um todo, naquela
casa, não existia. O que este conto nos apresenta sobre estes aspectos da
sociedade? Há muito a ser construído em relação a diálogo.

A mimese, para Paul Ricouer (2010), é uma representação da ação humana e 276
no conto “Mentira de amor”, recria o cenário de uma mulher em sofrimento, presa
pelo marido em sua casa, mas presa pelo passado por meio da morte da filha e
pela falta de coragem em tomar alguma iniciativa diante do que vive. Tudo isso
lhe fora roubado. No conto, é possível perceber o dentro e o fora, o passado e o
presente, a liberdade e a prisão, as possibilidades e as incapacidades.

Stuart Hall (1997) nos permite pensar na representação neste conto, através do
sentido, da linguagem e da cultura. A representação mostra a comunicação do
significado, a produção de sentido e a linguagem, expressa em signos e/ou
imagens, dos significantes. Tudo isso opera quando lemos este conto, além do
modo como nos leva a pensar em nosso contexto social.

Para Michel Foucault (1986), nada tem sentido fora do discurso. Não é sobre se
as coisas existem, mas de onde vem o sentido, que é objeto de conhecimento
dentro do discurso. Um corpo que tem saber e poder, sendo o saber ligado ao
discurso, constituído por falas e ações.

Este conto tem significado e é impactante pela forma como se vincula ao nosso
contexto e à nossa cultura: o contexto de um espaço machista, onde algumas
mulheres se encontram literalmente presas em suas casas e outras presas aos
seus destinos, obrigações, subserviências.

Como muitas mulheres da vida real, Delmira não vê alternativa para dar fim ao
seu suplício. Afinal, a vinda do circo havia reverberado em seus pensamentos, e
agora era sua a decisão que poderia modificar o futuro dela e de suas
filhas. Quando “Uma valsa de melodia conhecida tornava o querer desatino”
(BRITO, 2009, p. 108), pôde-se perceber o dilema final vivido por ela, entre o
medo da força de opressão do marido e a angústia pelo desejo de viver os
espaços das ruas da cidade, de viver.

Este viver que é social, que precisa dos espaços, mas principalmente do contato
e das relações entre as pessoas. O narrador nos conduz a estas conclusões.
Aqui, a literatura nos mostra o poder do social num pequeno conto carregado de
uma poética dramática. Georg Simmel trata da importância do conflito para a
construção da sociabilidade. Simmel (1983, p.122) pontua que “[...] se toda
interação entre os homens é uma sociação, o conflito – afinal, uma das mais
vívidas interações [...]”. O sociólogo afirma que o conflito é como uma mola
propulsora para desbloquear situações estáticas e cristalizadas adotadas por
uma sociedade. Esta construção também podemos visualizar em “Mentira de
amor” e, a partir do conto, podemos refletir sobre nosso papel na sociedade,
sobre o que vemos e vivemos na contemporaneidade. Quantas ‘Delmiras’
existem por aí? O que temos feito para contribuir com estas mulheres? O que há
de ‘Delmira’ em nós?

A importância deste conto está na forma de experienciar este drama. Para


Ricouer (2010, p. 119) “a linguagem é orientada para além de si mesma”. E é
isso que Brito nos proporciona neste conto: ele utiliza a linguagem para nos levar 277
a uma experiência. “É essa experiência que, por sua vez, tem o mundo como
horizonte” (RICOUER, 2010, p. 119) pois, “o que é comunicado, em última
instância, é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que
constitui seu horizonte” (RICOUER, 2010, p. 119).

É relevante salientar o papel da literatura, de modo que a leitura esteja presente


não somente nos meios acadêmicos, mas que possa constituir parte de exercício
de prazer e lazer das pessoas. Afinal, “a leitura está relacionada com o sucesso,
não apenas acadêmico, mas também social e econômico, pois se lhe atribui a
capacidade de promover os indivíduos” (SARAIVA, 2001, p. 24). A literatura,
embora não tenha necessidade de ser seu objetivo, pode contribuir para alterar
o meio social. E, juntamente com a História oferece possibilidades de perceber
o mundo em outras perspectivas.

Quanto ao contexto brasileiro, a evolução da condição jurídica da mulher deu-se


de maneira bastante lenta e com alguns marcos básicos. Dentre esses, a Lei
Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006. Com 46 artigos,
distribuídos em sete títulos, ela cria mecanismos para prevenir e coibir a violência
doméstica e familiar contra as mulheres, em conformidade com a Constituição
Federal (art. 226, § 8°) e com os tratados internacionais ratificados pelo Estado
brasileiro (Convenção de Belém do Pará, Pacto de San José da Costa Rica,
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).

Quando uma mulher perde a vida em derivação de abuso, violência doméstica,


discriminação, menosprezo, nos casos em que a mulher é levada a cometer
suicídio por abuso psicológico ou o simplesmente pelo fato de ser mulher, o ato
deixa de ser um homicídio comum e torna-se qualificado e, consequentemente,
crime hediondo, ou seja, de extrema gravidade, cujo tempo de reclusão pode ser
de 12 a 30 anos. A lei do feminicídio foi criada devido a necessidade de
providências mais rigorosas refletida nos altos índices de denúncias derivadas
da violência contra as mulheres no Brasil.

No atual cenário pandêmico, algumas precauções foram adotadas para que a


contaminação da doença fosse contida, dentre elas, as mais notáveis são o uso
de máscara, frequente lavagem das mãos com água e sabão, utilização do álcool
gel e principalmente a adoção do distanciamento social. Organizado pelo poder
público, esse afastamento, aconselhado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), decretou-se na maioria das capitais do país em meados do mês de
março e paralisou aulas presenciais e estabelecimentos de consumo, por
exemplo. Em meio a tamanha agitação, diversos outros problemas sociais
acabaram por sair do foco populacional. Entretanto, uma adversidade em
específico têm chamado atenção das pessoas, em razão dos altos índices
documentados desde o emprego das medidas preventivas para controle do
Coronavírus. Nos últimos meses, observou-se um aumento da violência contra
a mulher por seu parceiro íntimo.
278
A violência contra o sexo feminino é um problema de grande magnitude, tanto
por ser frequente quanto por causar graves consequências na saúde das
mulheres. Esses atos cruéis são estruturais e históricos, produtos da
desigualdade, subordinação e relações assimétricas de poder entre homens e
mulheres. No mundo, uma a cada três mulheres sofrem violência, seja física,
sexual, moral, psicológica ou patrimonial.

Além dessas razões, durante o distanciamento social as mulheres são mais


vigiadas e ficam impossibilitadas de ter contato com familiares e amigos, uma
vez que os critérios de segurança sanitária diminuem a mobilidade física e o
acesso aos sistemas de proteção social e segurança pública.

Abordar os crescentes índices de violência doméstica em tempos de pandemia


dirige-nos ao tema dos mecanismos brutais que são rotinizados e invisíveis. Nos
permite também pensar na “condição precária” (BUTLER, 2018) da mulher, uma
vez que não é possível alcançar a verdadeira face das agressões sem situá-las
em seus contextos sociopolíticos mais amplos (DAVIS, 2016).

“Mentira de amor” se mostra recheado de plurissignificação porque move o leitor


com seu conjunto de ideias encadeadas a formar um contexto rico e detalhado
do tempo e do espaço vivido pelas personagens. Dentro de nossa cultura,
conforme Bakhtin (2011), este conto trata-se de um espaço interdiscursivo. Não
temos acesso às coisas da vida, mas aquilo que é dito sobre elas.

A literatura tem autonomia ficcional e não necessita ser engajada, mas o conto
“Mentira de amor” se apresenta, inclusive, como um texto que tem um
compromisso social. Ao leitor é possibilitado fazer uso do conteúdo do conto
conforme seu ponto de vista a partir da experiência de ‘viver’ a complexidade do
assunto em foco, o que pode promover o desenvolvimento da alteridade em
relação ao feminino e suas fragilidades.

Evidentemente, quem coloca o sentido é o receptor. O leitor percebe as marcas


e dá sentido ao texto. E então acontece a semiose, no sentido da produção de
significado. Cada leitor lê este conto de uma determinada forma e o significado
pode se alterar. Neste caso específico, a angústia pela falta de liberdade faz com
que eu tenha o desejo de compreender esta situação e procure ajudar como
mulher que lê, pensa, corre atrás dos objetivos pessoais e profissionais.

O cenário descrito no conto pode provocar uma catarse de emoções. Depende


do quanto o leitor dá significado a cada um dos símbolos apresentados, pois
incorporamos a nossa ação nossos valores simbólicos. Os símbolos são vivos,
ativos e despertam em cada um aquilo que lhe deu forma. O sujeito é expresso
no tempo e autor de representações. Assim, ao leitor é permitido sentir o que é
narrado e interpretar, conforme seus percursos, aquilo que lhe faz sentido.
Durante a leitura do conto, memórias também são convocadas. O autor soube
fazer na escrita deste conto um jogo que provoca “a reação do leitor diante da
realidade estética figurada” (SARAIVA, 2009, p. 33). 279

O que fica é a certeza de que é preciso ler, “não para acreditar, nem para
concordar, tampouco para refutar, mas para buscar empatia com a natureza que
escreve e lê” (BLOOM, 2001, p. 25). O que se percebe é que, autor e leitor se
completam na medida em que realizam seu papel de ‘movimentar’ o texto
literário. Iniciando pelo autor que não pode somente esperar que um leitor-
modelo “exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo”
(ECO, 2012, p. 40).

“O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois
ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador”
(CANDIDO, 2006, p. 47). Assim, como leitores, damos sentido ao conto “Mentira
de amor”. E, ao mesmo tempo, o conto reverbera em nosso cotidiano e
provocará, no mínimo ao leitor, senão em quem mais o rodeia, movimentos e
pensamentos em relação ao experimentado na leitura.

Como esta narrativa trata de uma mulher que vive à sombra do medo e opressão
de um marido violento, é impossível não recordar estudos de Simone de
Beauvoir sobre o feminino. Como leitora do conto reforço que “o prestígio viril
está longe de ser apagado: assenta ainda em sólidas bases econômicas e
sociais [...]” e é preciso pensar em como “a mulher faz o aprendizado de sua
condição, como a sente, em que universos se acha encerrada, que evasões lhe
são permitidas” (BEAUVOIR, 1980, p. 7). Há um universo dentro da leitura de
um conto, esperando que o leitor faça uso.

Considerações finais

A escrita de um texto está relacionada com a leitura de quem o recebe. Na


narrativa mítica da criação do mundo, por exemplo, aprendemos que o mundo é
criado por meio da palavra. A palavra nos forma e nos transforma, inclusive altera
nossa forma de pensar e agir. O uso da palavra é muito importante e, neste
conto, Brito (2009) articula a narrativa de modo que possibilita ao leitor
experimentar situações, cenas, sensações, num jogo entre ficção e realidade,
por meio das representações presentes em vários elementos da trama. Desse
modo, as palavras chegam ao leitor e este é quem irá dar sentido, através de
suas relações entre fictício e imaginário, suas vivências e o modo como se
predispõe ao contato com a obra, neste caso, literária.

“Mentira de amor” fala de violência doméstica, encarceramento, estupro,


machismo. Além disso, trata do sofrimento da perda de uma das filhas e da
angústia cotidiana de uma mulher que, diante de sua penteadeira, não consegue
se observar. Ao olhar-se diante do único espelho da casa, para cortar os cabelos,
é quando ela se vê e então faz perguntas para as quais não tem resposta.

Infelizmente, esta narrativa ficcional traz um contexto real de muitas mulheres no


Brasil. O conto traz a história de uma mulher de um espaço interiorano, mas que
vive um drama que é universal. Os elementos que caracterizam esta narrativa 280
são a dor, o medo, a ansiedade e a violência, presentes na vida de uma mulher.
Enfim, o conto traz uma narrativa trágica.

Colocando-nos como leitoras, concluímos que o conto “Mentira de amor” poderia


ser intitulado como “Amor de mentira”. Afinal, não se percebem laços amorosos
entre marido e mulher, apenas da mãe em relação às filhas. Também, reforçando
a ideia da importância do leitor, podemos refletir sobre a necessidade de que
textos dos mais diversos sejam disponibilizados a estudantes e comunidade em
geral. Como foi abordado anteriormente, a literatura não tem de ser engajada,
mas ela é uma possibilidade extremamente potente de transformação do
contexto social.

Referências Biográficas

Ma.Sandra Maria Costa dos Passos Colling - Doutoranda e Mestra em


Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale(Bolsa
CAPES/PROSUC), Especialista em Educação Contemporânea e em
Arteterapia, Graduada em Artes Visuais. E-mail: [sandracolling@gmail.com].

Ma.Thais Gaia Schüler - Doutoranda e Mestra em Processos e Manifestações


Culturais na Universidade Feevale (Bolsa CAPES/PROSUC), Especialista em
Memória Social e Identidades, Licenciada em História. E-mail:
[thaisschuler@yahoo.com.br].

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AS MULHERES E A MOBILIZAÇÃO
OPERÁRIA NA GREVE GERAL DE
1985 NO DISTRITO INDUSTRIAL DE 283

MANAUS
Vanessa Cristina da Silva Sampaio
A década de 1980 foi o período de grande ascenso da classe trabalhadora em
todo o Brasil. As ações da massa operária tiveram como objetivo, a construção
de um projeto emancipatório, pautados na dignidade e luta por melhores
condições de trabalho. Essa estratégia foi adotada por muitos trabalhadores e
no Amazonas não foi diferente. Nessa perspectiva, o objeto de investigação
deste breve trabalho é a greve geral no setor metalúrgico, ocorrida em 1985 no
Distrito Industrial de Manaus, destacando a ampla participação das mulheres na
mobilização do movimento paredista. A inserção das mulheres no processo de
trabalho fabril em Manaus, pode ser pensada como uma alternativa de
vislumbrar uma vida melhor, levando em consideração que muitas buscavam
independência financeira e viram no ramo industrial, o mecanismo mais fácil de
atingir esse objetivo.

Para melhor situar o leitor, o Distrito Industrial de Manaus faz parte do modelo
de Zona Franca de Manaus, dos quais priorizou o desenvolvimento industrial e
agropecuário da região amazônica. Foi inaugurado em 30 de setembro de 1968,
reunindo no ato o superintendente da Zona Franca de Manaus, Floriano
Pacheco, e o governador do Amazonas, Danilo Duarte de Mattos Areosa. Esta
data marcou também a aprovação do projeto da Beta S/A, fabricante de joias e
relógios que entrou para a história como o primeiro projeto industrial aprovado
para se instalar na Zona Franca de Manaus. A Beta não esperou pela
inauguração do Distrito Industrial para se instalar e adquiriu um terreno na zona
Centro-Sul de Manaus, onde funcionou até meados da década de 90. O Distrito
Industrial foi implantado inicialmente em uma área de 16.974.824.00 m2, situado
a 5km do centro de Manaus. Na década de 1980, a Zona Franca possuía um
total de 212 projetos industriais que estavam em funcionamento, oferecendo 47
mil empregos diretos. (Jornal do Comércio, 1980)

Em meados de 1980, a oferta de emprego no Distrito cresceu vertiginosamente.


A preferência era por mulheres. Muitas delas vieram do interior do Amazonas e
tinham idades entre 16 e 25 anos. Assim, era dada a predileção para a
contratação de mulheres, tendo em vista que a remuneração era bem inferior ao
dos homens, bem como, os postos de trabalho para os quais elas eram
designadas exigiam mais habilidade manual. Geralmente eram direcionadas
para as linhas de montagens. É preciso destacar que essas jovens mulheres não
tinham qualquer experiência laboral, eram recrutadas pelo capital no meio rural
em função do seu comportamento contido e submisso. (TORRES, 2005). Essa
falta de experiência e imaturidade inerente a pouca idade, facilitou a prática de
ações desrespeitosas contra essas trabalhadoras. Houve muitos casos de
violência física e psicológica, abusos exercidos pelos empregadores de forma 284
arbitrária e tirânica. Lutar contra essas arbitrariedades foi o que motivos que
levaram as operárias, a se mobilizarem durante a greve geral de 1985.

Para exemplificar alguns desses atos, as operárias eram obrigadas a


apresentarem ainda no processo de seleção, um teste onde constavam em que
elas não estavam gestantes, não se admitindo mulheres grávidas nas empresas
do Distrito. Quando descobriam uma possível gestação, eram recomendadas a
praticarem abordos para manterem seus empregos. Se a operária já tinha
possuía filhos, essa informação era omitida no processo de seleção. Essa pauta
foi amplamente discutida e denunciada nos jornais de grande circulação na
época. Em denúncia ao jornal A Crítica, Ricardo Moraes, presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos e representante dos trabalhadores no Distrito Industrial,
revelou que “através de denúncias das operárias, as indústrias adotam medidas
que levam as mulheres a optar pelo aborto, visto que muitas mulheres foram
demitidas ou tomaram advertência por estarem grávidas”. (Jornal A Crítica,
1985) Além disso, os próprios médicos das empresas indicavam o aborto.
Ricardo Moraes ainda ressalta que a distribuição de anticoncepcionais a todas
as mulheres dentro da fábrica é um indício que a ordem é que não se tenham
gestantes no quadro de empregados. Um exemplo de prática arbitrária
envolvendo as trabalhadoras foi a implantação do Projeto Parthfinder, um projeto
cujo o objetivo foi esterilizar as operárias do Distrito Industrial de Manaus em um
prazo de 12 meses, a contar de julho de 1986. Esse projeto inicialmente visava
atingir 2.400 famílias. O projeto pretendia desenvolver as seguintes ações:
doação de 60% de anticoncepcionais orais, 20% de aplicação de DIU, 10% de
laqueaduras e 10% de outros métodos. Após muita discussão na sociedade civil
e denúncia das operárias, o projeto foi abandonado pouco meses depois
mediante a pressão exercida por diversas entidades e órgãos de defesa dos
direitos da mulher trabalhadora.

As mulheres que conseguiam ser contratadas eram constantemente assediadas


pelas chefias, inclusive, sexualmente. A operária passou a ser vista como um
objeto sexual que deveria ceder os caprichos de seus superiores. As que não
cediam as investidas geralmente eram demitidas sem qualquer justificativa. Essa
perspectiva é apresentada por Iraildes Caldas Torres, ao afirmar que as
mulheres eram frequentemente rotuladas como prostitutas. A empresa se tornou
um espaço de ofensas, de discriminações e de manipulação dos corpos
femininos. Ademais, vale sublinhar que as mulheres exerciam longas jornadas
de trabalho e recebiam remunerações muito inferiores à de trabalhadores que
executavam a mesma função. Representando mais 70% de todo o operariado
do Distrito Industrial, as operárias iniciaram um movimento de união sem
precedentes na história do movimento operário e sindical no Amazonas em
busca de melhores condições de trabalho no setor industrial de Manaus. As
condutas abusivas adotadas pelas empresas foram o ponto de partida para que
as operárias pudessem se unir e se organizar na luta contra a desvalorização e
a cooptação dentro das empresas.

Na greve geral de agosto de 1985, o primeiro grande movimento grevista no 285


Distrito Industrial de Manaus, as mulheres tiveram papel de destaque na
mobilização do movimento, principalmente por atuarem nas linhas de montagem,
onde a concentração de trabalhadoras era maior. As negociações da Convenção
Coletiva em 1985 tiveram início em julho, se estendendo até o mês de julho. Do
total de quarenta e cinco cláusulas de reivindicações, apenas trinta e duas
tinham sido aceitas até o dia 31 de julho, quando as negociações foram
interrompidas e a greve deflagrada para o dia 01 de agosto de 1985. Além do
aumento salarial e redução da jornada de trabalho, uma das pautas inegociável
que não entrou em consenso entre empregados e patrões foi a estabilidade para
as gestantes e o direito a creche para os filhos menores de três anos das
trabalhadoras. Durantes as negociações prevaleceram a intransigência e o
rigoroso posicionamento dos empresários. Deflagrada a greve em 01 de agosto,
as mulheres lideraram o comando de greve que paralisou o Distrito. Mesmo com
a ampla cobertura da imprensa local, o Sindicato dos Metalúrgicos tinha a
expectativa de paralisar no máximo cinco empresas, mas superando todas as
estimativas, o primeiro dia de greve teve a adesão de mais de dezessete
empresas, incluindo as maiores do setor, como a Moto Honda e a Gradiente.

Essa ampla adesão de deveu a intensão articulação entre o sindicato e as


comissões de fábrica, formada predominantemente por mulheres. O sindicato foi
responsável por negociar diretamente com patrões, mas o comando de greve
deu ao sustentáculo ao movimento. É óbvio que toda essa estrutura ocorreu na
clandestinidade, de modo espontâneo, mas contou o auxílio de entidades
sindicais de Manaus e de fora do Estado do Amazonas. Uma dessas entidades
foi a Pastoral Operária do Amazonas, responsável por assessorar os
trabalhadores e trabalhadoras na tomada de consciência de seus direitos
políticos e sindicais. Mediante a cursos e formações, os operários iniciavam um
preparado para um possível e inevitável enfrentamento com patrões. Muitas
dessas formações tiveram a participação das trabalhadoras do Distrito, dos quais
repassavam o que foi aprendido a outras operárias, formando um verdadeiro
exército de mulheres.

No decorrer da greve, a grande massa de trabalhadores paralisados foi


duramente reprimida pelo polícia. As mulheres como compunham a maioria dos
grevistas também sofreu com o controle da polícia na porta das fábricas. As
lideranças foram as mais perseguidas e coagidas a retornar ao trabalho, com o
intuito de desmobilizar o movimento. Em uma tentativa de corromper a greve,
muitas trabalhadoras à frente das comissões de fabricas receberam como
proposta, cargos de chefias e promoções em um esforço de frear o avanço das
adesões, crescentes desde as primeiras horas do desencadeamento da greve.
Mesmo sob forte pressão, o movimento ganhou amplo apoio de outras
categorias, da sociedade civil, da imprensa local e da Igreja Católica na
permanência dos grevistas paralisados. Enquanto isso, as negociações entre o
Sindicato dos Metalúrgicos e o Sindicato Patronal, representante dos
empresários seguia sem qualquer avanço tanto na Delegacia Regional do
Trabalho como no Tribunal Regional do Trabalho. Os patrões somente
aceitavam voltar a negociar, caso os trabalhadores retornassem ao trabalho. Tal 286
proposta foi veementemente rejeitada pelos operários.

O cerco policial foi intenso no decorrer de toda a greve. Enquanto não houve
acordo, muitos trabalhadores e trabalhadoras acamparam na porta das fábricas,
passaram dias e noites, sob o sol e a chuva, com a intensão de pressionar os
empresários a voltar a mesa de negociações. As condições foram precárias,
enfrentando muitas dificuldades, repressão e intransigência patronal. Houve a
participação de todos, inclusive de operárias gestantes. Não havia distinção de
tratamento entre os grevistas, todos sofreram as mesmas penalidades e
sanções. Notando a forte resistência dos trabalhadores em greve, os patrões
voltaram a negociar apenas no dia 05 de agosto. Ainda intransigentes no quesito
econômico, foram cedidos alguns benefícios como, um aumento salarial
escalonado conforme a quantidade de funcionários por empresa, bem como a
estabilidade das gestantes e o direito a creche. Tal proposta foi levada em
Assembleia Geral para apreciação e discussão dos trabalhadores na madrugada
do dia 06 de agosto, sendo aprovada por unanimidade pelos operários,
encerrando a primeira greve geral no Distrito Industrial de Manaus após seis
longos dias. Uma das principais reivindicações não foi atendida, que versava
sobre a redução da jornada de trabalho, mas para a primeira experiência destes
trabalhadores, a conquista simbólica e ideológica foi maior que a econômica.

Neste sentido, as mulheres foram as idealizadoras das mobilizações, piquetes e


organização envolvendo está greve. Sem elas, possivelmente o movimento não
teria obtido o mesmo êxito e nem as mesmas conquistas. Notamos após a greve,
a ampla participação dessas trabalhadoras no sindicato, nas lutas operárias e
nos movimentos sociais em Manaus. Como resultado dessa organização das
operárias, um comitê feminino foi formado por trabalhadoras do Distrito Industrial
posterior a greve, promovendo no Dia Internacional da Mulher, o 1º Encontro da
Mulher Operária de Manaus, em 1986. Os temas discutidos foram o mercado de
trabalho, a discriminação profissional e sexual, direito a creche, salários idênticos
para as mesmas funções, discriminação do aborto e outras questões. As
mulheres estavam centradas na necessidade de maior participação
sociopolítica, tanto nos espaços públicos como no privado.

Entre 1985 e 1987, o Distrito Industrial viveu um intenso período de greves, em


que as mulheres tiveram grande destaque. A maioria dessas greves eram
lideradas por trabalhadoras. Foram elas garantiram a unidade do movimento e o
fortalecimento das lutas cotidianas no interior do movimento sindical e operário
amazonense. Nessas mobilizações foi fundamental a atuação das comissões de
fábricas, porque eram nelas que ocorriam a comunicação direta entre os
trabalhadores de base e o sindicato, integrando lutas antigas e recentes, guiando
as formas de organização no chão das fábricas. No decorrer deste breve estudo,
observamos o crescimento e a reconstrução da imagem da mulher operária no
Distrito Industrial de Manaus e suas múltiplas facetas e o seu poder se reinventar
mesmo em um ambiente tão adverso e propenso ao preconceito. Ademais, é
preciso destacar que, apesar dos percalços, as mulheres operárias industriais
não se intimidaram, sabendo se reinventar, superando a exploração e a 287
hostilidade patronal. Encerro este texto, como uma reflexão trazida por Michele
Perrot, no qual a autora destaca que “história das mulheres também não mudou
muito o lugar ou a ‘condição’ dessas mulheres. No entanto, permite compreende-
las melhor. Ela contribui para uma consciência de si mesmas, da qual é
certamente ainda apenas um sinal”. (PERROT, 2005, p.26). Diante do que foi
exposto, é necessário relembrar que a história de luta das mulheres é uma
história de resistência, subjetividades e empoderamento feminino e está em
constante construção.

Referências biográficas

Vanessa Cristina da Silva Sampaio - Mestranda no Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

Referências bibliográficas

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de Viviane


Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2005.

RIBEIRO, Marlene. De Seringueiro à Agricultor/pescador à Operário Metalúrgico:


Um estudo sobre o processo de expropriação/proletarização/ organização dos
trabalhadores amazonenses. Dissertação de mestrado em Educação
apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, 1987. SCHERER,
Elenise. Baixas nas carteiras: desemprego e trabalho precário na Zona Franca
de Manaus: EDUA, 159p, 2005.

TORRES, Iraildes Caldas. As Novas Amazônidas. Manaus: Editora da


Universidade Federal do Amazonas, 2005

Outras fontes

Jornal A Crítica, Manaus. Jornal do Comércio, Manaus.


QUESTÕES DE GÊNERO EM
OUTRAS PÁGINAS DA HISTÓRIA:
IMPRESA, GÊNERO E PRÁTICAS DE 288

DEFLORAMENTOS OCORRIDOS NA
PRIMEIRA REPÚPLICA EM
CAXIAS/MA
Veronica Lima de Amorim Matos e
Jakson dos Santos Ribeiro
O referido trabalho busca apresentar a utilização dos jornais como fonte para o
campo da pesquisa histórica, no compasso que estas constituem a realidade
social imprensa em periódicos, além disso propomos intersecionar a análise da
categoria de gênero como fio condutor desse estudo. Por esse viés, essa
abordagem será exemplificada na prática, ao evidenciar as problemáticas acerca
dos crimes de defloramentos denunciados em jornais, ao expor esse tipo de
violência sexual envolvendo homens e mulheres durante a Primeira República
no sertão maranhense. Uma perspectiva no qual pretende fomentar a discussão
sobre fontes documentais para o ensino de História.

Embora existisse antagonismo quanto a utilização de jornal como fonte histórica,


após a revolução documental proporcionada pelos Annales, pouco a pouco esse
receio foi sendo superado, a medida em que a História enquanto ciência foi
sendo redimensionada. Jacques Le Gof (2003), discuti sobre esses aspectos e
aponta que, os jornais como qualquer outra fonte, necessita da alto critica, tendo
em vista que nenhum documento é inocente, pois carecem de tratamento e
cuidados, seguindo os termos técnicos e metodológicos para sua utilização

Nalde Pereira (2014), ressalta que imprensa e os eixos de informações ficavam


entre extremos, onde para uns historiadores havia falta de veracidade, enquanto
que para outros essa categoria de informação se constituía como repositório da
verdade. Mas para ela, o jornal ressoa como uma ferramenta importante, no qual
os sujeitos se situam na vida social a partir das informações, além disso, tem o
poder de empregar e espalhar valores.

“Os jornais atuam como verdadeiros “arquivos do cotidiano”, ou ainda, segundo


um “velho aforismo, o jornalismo é o primeiro rascunho da História”. Nesse
sentido, “a imprensa é uma produtora considerável de informações diversas, que
esclarecem atitudes e comportamentos”. Ela traz em si, portanto, o sentido de
uma “fonte por excelência”, constituindo um “testemunho de época”, escrito “no
momento do acontecimento” (PEREIRA,2014, p.19)

Como podemos observar a imprensa tem um papel significativo para a sociedade


ao passo que reflete o mundo social, pensando nesse aspecto, o objetivo deste 289
trabalho é se debruçar nas análises envolvendo as questões de gênero em meio
aos crimes de defloramento, uma vez que no contexto estabelecido, era
perceptível os papéis sociais designados aos homens e mulheres, sobretudo, ao
relacionar a questão da violência sexual.

Dessa forma, os periódicos circulados na região do sertão maranhense são as


fontes que constatam os fatos e tornam-se subsídios para compreendermos a
intersecção entre imprensa e estudo de gênero. Para isso, um adendo sobre a
perspectiva de gênero e como eles são imbuídos cotidianamente.

Segundo Joan Scott (1989), seguindo essa lógica, o conceito de gênero é


empregado a partir de uma preposição, ou seja, enquanto as distinções sexuais
entre homens e mulheres são dadas por vias biológicas, a ideia da terminologia
de gênero, se refere aos papeis sociais atribuídos aos sexos, de maneira fluida
e categórica.

Dessa forma, na visão de Scott, as relações sociais estão cercadas por símbolos
e significados, onde foram criados para formar a ideia de uma diferença sexual,
uma percepção imbricada dentro de uma compreensão universalizante, o
despertar da autora, nos faz refletir e questionar sobre os impactos das
construções representativas e entender como se constroem os significados
culturais para essas diferenças.

“O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a


criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa
definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT,
1989, p, 07)”

Em meios as narrativas sobre defloramentos, logo no início do século XX, é


visível as construções sociais ao que se referia a mulher e o homem, desse
modo, buscamos compreender, as interfaces dos papeis sociais dentro de uma
determinada conjuntura, ou seja, a perspectiva de gênero “[...] este uso insiste
na idéia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele
é criado dentro e por esse mundo”. (SCOTT, 1989, p, 07).

Entre essa relação de singularidade que a abrange a categoria de gênero, nota-


se a partir da temática proposta, um foco principal na história das mulheres, isso
não significa dizer que a história dos homens também é omitida, pelo contrário,
são dois âmbitos que caminham juntos, ou seja, as tramas das narrativas que
envolve as mulheres, estão indissociáveis da história das subjetividades
masculinas, portanto, a perspectiva analítica desenvolvida por Scott, tornou-se
fundamental para avaliar essa performance.

Além disso, entender o processo da construção da masculinidade para além de


um viés hegemônico, torna-se tão importante quanto as perspectivas femininas, 290
tendo em vista, que é necessário e interessante discutir sobre essa correlação e
como elas estão embutidas em diferentes contextos sociais. Nesse caso Davis
(1975), aponta que ao fomentar o interesse na história dos homens, significa
alargar parâmetros de analise, pois descentraliza a discussão acima do
oprimido.

Desse modo, torna-se relevante pensar a sexualidade e as performances


sociais, que as pessoas consideram como aceitáveis para o seu contexto. Nosso
objetivo é descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas
várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como funcionavam para
manter a ordem social e para mudá-la. (SCOTT, 1989, p.04).

Carla Katy March, (2015) também nos convida a reavaliar sobre a utilização da
categoria de gênero, alertando que não é uma pauta exclusivamente para tratar
da história das mulheres, mas sim, que os homens também devem ser
compreendidos como “atores do gênero”, visto que, eles também são indivíduos
imersos nas representações sociais criados por meio de códigos normativos. “No
entanto, os homens não eram objetos de estudos como sujeitos subjetivos ou
como construções sociais[...]” (MARCH, 2015. p.59).

Vale ressaltar que, as performáticas atribuídas aos homens e mulheres inseridos


nessa conjuntura, nos ajudam a compreender as problematizações acerca dessa
violência sexual, que visivelmente por meio dos jornais passou a ser comum no
cotidiano, uma vez que, o comportamento e a conduta direcionavam os papeis
de gênero, sobretudo, a honra.

Assim, a honra assumia diferentes roupagens ao tratar de homens e mulheres,


principalmente no que se refere às questões conjugais e sexuais. Mary Del Priore
(2009) também avalia esses aspectos, de exigências sociais voltadas para as
mulheres e os homens, distinguindo os parâmetros normatizadores, enquanto a
honra feminina era, cada vez mais, marcada pela supervalorização do recato, da
inocência, da virgindade, da educação para as tarefas domésticas, dos “bons
modos” e do instinto maternal, a honra masculina voltava-se cada vez mais para
a figura pública do trabalhador. E caso esses entrepostos não fossem exercidos
cotidianamente, havia uma reprovação a nível público.

Baseado nas considerações citadas, para além da discussão sobre as fontes par
a pesquisa histórica, uma das premissas deste trabalho, é reforçar a discussão
sobre o sentido do conceito da categoria de gênero, abordando os atores desse
processo em meio aos condicionamentos do que é ser homem ou mulher no
recorte estabelecido, partindo dos estigmas culturais e sociais, sendo estes
identificados nos dramas dos crimes sexuais, sobretudo, o defloramento,
ocorridos em diferentes regiões do Brasil, na virada do século XX, inclusive na
região compreendida como o sertão maranhense.

Crimes de defloramentos denunciados nos jornais do sertão maranhense


291
No início do século XX, o pensamento social sobre determinados valores tornou-
se latente, correspondendo nas práticas cotidianas dos sujeitos. Nesse sentido,
o princípio da honra tanto para a mulher quanto para o homem era considerado
um bem precioso, que deveria ser resguardado, entretanto, a ocorrência de
práticas desordeiras, como o defloramento poderia desvirtuar esse princípio, por
exemplo, a honra poderia ser manchada em “consequências do abraço sexual
fora do matrimônio”. Além disso, as questões de honra também era uma base
que deveria reger a família, uma premissa para honestidade dessa instituição,
contudo, em detrimento do defloramento de uma moça, a reputação de sua
família era prejudicada, assim, Elisangela Machieski (2005), nos ajudar a refletir
de acordo com os seguintes questionamentos:

Como ficaria a honra da moça e da família? E se essa promessa não fosse


cumprida? Ou seja, em casos de defloramentos não só a honra e honestidade
da moça é posta em dúvida, mas, todo o seio familiar que lhe pertence.
(MACHIESKI, 2005, p.92)

Por essas linhas, a prática do defloramento tornou-se crime na conjuntura social


republicana, tendo em vista, que o século XX no Brasil é marcado por uma série
de dispositivos de controle comportamentais, em prol da civilização da nação.
Correspondente a isso, o defloramento passou a ser visto como uma
problemática para então conjuntura, visto que, não condizia com a
normatividade. Portanto, o Código Penal brasileiro de 1890, baseado na
elucidação do Art. 267, passou a vigorar o ato de deflorar para a categoria dos
crimes sexuais.

O defloramento foi determinado como um dos crimes contra a segurança da


honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor, do referido
Código Penal, a lei reconhecia o crime de defloramento contra uma mulher
menor idade, empregando sedução, engano ou fraude, em virtude de sua
inexperiência.
Ao longo desse processo de transição, a imprensa foi uma grande aliada,
conforme propagava discursos referentes ao progresso e civilização da nação,
principalmente, ao vincular alguns ideais como a ordem do povo, cujo o
comportamento dos sujeitos seria garantia desse paradigma, entretanto, a
frustação desse ideal de mundo regressava a medida em que ocorrências de
desordem se espalhavam pelas cidades, nesses casos, a circulação dos jornais
e o poder da imprensa expressava seus posicionamentos acerca da chamada
ordem e desordem evidenciada na Primeira República.
Mesmo com medidas de controle social, é evidente um alto índice de ocorrência
de defloramento, principalmente, porque a ideia do namoro e passeios passou a
fazer parte do cotidiano, outros fatores explicam essa situação, entre elas, está
empregada na falta constante da vigilância dos pais ou de algum responsável
em determinados passeios de casais, passeios esses, que geravam
possibilidades para a ocorrência dos defloramentos, muitas das jovens moças 292
se deixavam levar pela paixão, outras tinha uma promessa de casamento ou por
uma chantagem emocional, dessa forma, acabavam cedendo o ato, esses
passeios, propiciava para além das conversas e as trocas de olhares.

Desse modo, cabe salientar o protagonismo que assumiu os jornais da época,


ao noticiar não só a ocorrência dos crimes de defloramentos, mas como uma
ferramenta propagadora de discursos que reforçava ideias normativos referente
aos comportamentos dos sujeitos. Essa consonância vai de encontro as
percepções da historiadora Joana Maria Pedro (1994), ao entrecruzar a vida das
mulheres do sul, a autora abri parêntese para explicar que os jornais, não foram
os inventores dos estereótipos comportamentais, entretanto, essa performática
é fruto muito antes do século XIX, ao restringir as mulheres como virtuosas, boas
filhas e boas esposas, esse é um modelo característico da cultura ocidental e,
portanto, os jornais no cenário do século XX , apenas reproduziam esses
estereótipos.

Os jornais sulistas, foram subsídios para a autora, pois cumpriam com o papel
de divulgar os ideários de comportamentos dos sujeitos, carregado de
propagandas com as normas de conduta, visando formar novos homens e
mulheres correspondentes ao pregresso da nação, além disso, a conduta
feminina era ainda mais ressaltada, pois eram consideradas criadoras e
educadoras das novas e futuras gerações.

Embora os jornais sulistas reproduzissem estereótipos existentes há séculos,


faziam-no em um contexto específico respondendo a uma conjuntura
determinada, na qual a demonstração de distinção e a exposição de um certo
verniz social implicavam em moldar as mulheres de uma determinada classe.
(PEDRO, 1994, p.28)

Pensando nessas dimensões e como cada uma se constituiu em diferentes


regiões do Brasil, podemos pensar também que no sertão maranhense, em
especial as cidades de Caxias e Codó isso também foi visível. Dessa forma, os
jornais foram as ferramentas utilizadas para identificar a presença desses
elementos e suas determinadas logicas nessas regiões citadas, como destaca
nas notícias dos impressos dos jornais as denúncias dos crimes de
defloramento.

Nesses casos, não era apenas no Sul que a imprensa destacava esse tipo de
desordem, como denota os jornais utilizados neste trabalho como o Correio de
Codó e Jornal de Caxias, expressavam seus posicionamentos e denúncias
referentes ao crime, retomando dessa maneira, a ideia que a força da utilização
dos jornais como fonte, provém da natureza do mesmo, pelo fato de constituir a
realidade social evidenciadas em suas notas. Por esse viés, a seguir apresento
denúncias dos crimes de defloramentos ocorridos no sertão maranhense.

Em Caxias, precisamente em outubro de 1901, foi registrado e relado todo o


processo do inquérito policial denunciado um crime de defloramento praticado 293
por Luiz Marques Teixeira, cujo o nome da vítima é apresentada como Sarah
com 10 anos de idade. De acordo com a procedência da denúncia e o exame
pericial, foi constatado a membrana do hímen completamente dilatada, além
desse ato cruel, foi identificado também marcas de violência física, pondo em
risco a vida da menor, com isso o jornal de Caxias se prontificou em denunciar
publicamente, tido como “escandaloso”. Entretanto, o acusado negou, e disse
mais, que ele como cidadão e pai de família merecia justiça contra tamanha
ofensa.

Seguindo no mesmo jornal de Caxias (Órgão Comercial e Noticioso) no dia 27


de janeiro de 1906, foi apresentada a manchete “Pela Polícia” relatando todo o
caso de defloramento envolvendo as partes, Joanna Maria da Conceição e Altino
Barbosa da Silva, onde a família da vítima abriu uma queixa denunciando um
rapto seguido de defloramento, para a resolução do conflito, nota-se que o
acusado, confessou o crime e que não poderia reparar a honra da ofendida, pois
ele já era casado, na religião católica com a tia da referida menor, e portanto
seria impossível casar-se novamente.

Outro caso, notificado pelo o jornal de Caxias, na ocorrência de 03 de setembro


de 1899, relatava apresentava a manchete “Único do art. 276 pelo Código
Penal”. Como segundo denota a notícia, Pedro era um rapaz casado que
deflorou Rita, entretanto os representantes, ou seja, a família da ofendida fez a
proposta de casamento, mesmo abrindo um processo contra o acusado,
realizaram o amasiamento entre Pedro e Rita. Não sendo o bastante, o próprio
jornal indagou, “Em vista do casamento efetuado, Pedro ainda está sujeito à Lei
Penal?

Essas situações não eram apenas na cidade de Caxias, quando nos debruçamos
sobre essas questões na cidade de Codó também aparecem esses elementos
ditos e entendidos como de casos de defloramentos, como denota o intrigante
caso, “Uma por ano. Acha-se a polícia, consta nas investigações das
‘brilhanturas’ do sr, Benedicto Firmino de Britto, em 1911 deflorou uma menor
[...] foi perseguido pela polícia que fugia”.

O artigo desse caso noticiado pelo jornal Correio de Codó, relata a sequência de
três atos de defloramentos contra menores, entre os anos de 1911, 1912 e 1913,
onde meninas sofreram violação da proteção que lhes cabiam. O infeliz acusado
Benedicto, há um tempo fugia da polícia, cometendo aos redores da cidade seus
atos de covardia.
As denúncias seguiam, pois, a última tentativa levou o acusado até a polícia,
além do mais, a existência da impunidade deixava as pessoas temerosas que
algo dessa natureza viesse acontecer novamente, receio encontrado nas falas
ecoadas no jornal correio de Codó, expressada pelo senhor Oliveira “Neste
andar ele irá longe se a impunidade o acarcoar”, ou seja, a impunidade ajudar
tornar possível a delinquência desse sujeito, dando jus o destaque da manchete, 294
uma em cada ano.

Correio de Codó divulgou no mesmo dia 31 de agosto de 1914 dois supostos


casos de defloramento, e a omissão da justiça diante dos casos. João Rodrigues
procurou a policial municipal de Codó para dar queixa contra o sujeito Antônio
Sião, João acusou o mesmo pelo o ato de defloramento com sua filha de criação
e menor de idade, identificada pelo nome Maria José Portelha, foi aberto o
inquérito policial, passando a aguardar as investigações, enquanto isso foi
realizado na menor exames nas partes genitais, comprovando o rompimento do
hímen, indicando o defloramento da mesma, a resolução desse caso ficou por
conta da família, já que o acusado “decidiu” casar-se com a menor, esses tipos
de conflitos muitas vezes eram resolvidos dessa maneira, já que a honra da
menina foi reparada com a união estável entre eles. À vista disso, aos
defloradores que recusavam a reparação ao dano da honra da moça, cabia a
prisão pública.

Dentre o arcabouço de informações e narrativas referentes aos crimes de


defloramentos, estão cercadas de discursos propagados dentro de um contexto,
passível de um viés ideológico, que abrange questões para além da estrutura
social da época, mas uma intersecção de sentidos que configuravam os
aspectos sociais do cenário analisado. Compreendendo esses aspectos torna-
se possível avaliar essas dinamicidades e então percebe-las através da luz dos
jornais, circulados no leste maranhense, denotando assim, os sujeitos que
protagonizaram essa conjuntura marcada por normatividades, situados em
Caxias e Codó Maranhão, em meados 1889 a 1930.

Considerações finais

Como podemos perceber a práticas de defloramento eram recorrentes com base


nas fontes averiguadas. Estas considerações apenas reforçam o quanto a
utilização de jornais como objeto de estudo para o desenvolvimento de pesquisa
é possível, pois, também abri espaço para diferentes possibilidades de eixos
temáticos, categorizando assim, a sua exequibilidade de utilização e
dinamicidade, uma vez que a imprensa, vigia, controla e puni, uma tríade
perceptível nas informações supracitadas ao discorrer sore os defloramentos,
proporcionando para o ensino e pesquisa histórica uma alargamento de objetos
de estudos.

Além disso, buscamos compreender não apenas a delimitação da criminalidade,


mas sim, a construção dos papeis sociais referente aos atores de gênero,
imbricados na idealização republicana, sobretudo, o papel designado as
mulheres, restringindo-as como a base moral da família no padrão burguesa, as
progenitoras dos lares e sua honra, ou podemos dizer seu hímen, deveria
manter-se resguardado até o matrimônio, pois qualquer evidencia de uma pratica
de defloramento, retirava da mulher os valores propagados pela sociedade, que
por si só provocava a desmoralização da mesma.
295
Referências biográficas

Veronica Lima de Amorim Matos é graduanda em Licenciatura Plena em História,


pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade Estadual do
Maranhão –CESC/UEMA. Bolsista de Iniciação Cientifica – Ações afirmativa –
FAPEMA, /UEMA. Membro do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão-
GRUGEM/UEMA.

Jakson dos Santos Ribeiro - Professor Adjunto I, Doutor em História Social da


Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História Social
pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em História do
Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano) (2011).
Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual
do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA) (2011).
Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão- GRUGEM/UEMA
Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro de Estudos Superiores de
Caxias – CESC – Campus /UEMA.

Referências bibliográficas

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São Paulo: Ed. UNESP. 2013

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TEÓRICO- METODOLÓGICOS INICIAIS ACERCA DA UTILIZAÇÃO DO
PERIÓDICO IMPRESSO NA PESQUISA HISTÓRICA. REVISTA DE HISTÓRIA
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subjetividades masculinas no Paraná de 1950. Curitiba, 2015.

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matrimônio: Seduções e defloramentos na Região Carbonífera na década de
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ENSINO E A PESQUISA EM HISTÓRIA: O CASO DE UM JORNAL RIO-
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York, Columbia University Press. 1989.
296
O CONTEÚDO “GÊNERO” EM
LIVROS DIDÁTICOS DE
SOCIOLOGIA 297

Walace Ferreira e Ester Torres da Silva

O tema gênero e sua importância nas escolas

Este artigo analisa a presença do tema “gênero” em dois livros didáticos de


Sociologia destinados ao Ensino Médio, ambos aprovados pelo Programa
Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2018. Trata-se dos livros
“Sociologia em movimento” e “Sociologia para jovens do século XXI”, os únicos
a abordar a temática dentre os cinco manuais aprovados neste PNLD, voltados
para o uso em escolas públicas brasileiras entre os anos 2018 e 2020. Esta
participação foi a última vez em que os livros desta disciplina foram analisados
pelo Programa de forma disciplinar, já que diante da Reforma do Ensino Médio
(Lei nº 13.415/2017) eles serão interdisciplinares.

A educação é essencial para a justiça social, servindo de base para o


estabelecimento de consensos num ambiente social marcado por diferenças e
segregações. Uma oferta de educação sem discriminação requer utilização de
livros didáticos que não incluam discursos que fomentem a desigualdade de
gênero, pois fazê-lo contribui para a continuidade ou mesmo o aparecimento de
outras desigualdades sociais (OLIVEIRA, 2011).

Discutir gênero, nesse sentido, é reconhecer diferenças sexuais e relações de


dominação e subordinação (SCOTT, 1995). Ligado à questão de poder, gênero
se constitui num produto do âmbito da cultura e da história uma vez que foi
entendido de maneiras diversas conforme as culturas em que se desenvolveu
ou desenvolve (LOURO, 2007). A compreensão ampla do conceito implica
pensar nos sujeitos homem e mulher num processo continuado e dinâmico,
construído através das práticas sociais masculinizantes e feminizantes em
conjunto com as concepções de cada sociedade. Pensar em gênero é atravessar
conceitos binários e alargar a análise aos desenvolvimentos que a sociedade
atravessa e as suas transformações.

Descrição dos livros didáticos analisados

O livro “Sociologia em movimento” tem a participação de diversos autores


provenientes de diferentes instituições de ensino do Estado do Rio de Janeiro,
tendo a predominância de docentes do tradicional Colégio Pedro II. Na edição
de 2016, a segunda da obra, são dezessete autores. Conforme se pode observar
no quadro 1, esses autores abrangem majoritariamente escolas públicas,
embora também tenham professores que lecionam em outras instituições de
ensino tanto da educação básica quanto do ensino superior, inclusive no
segmento privado. 298

As suas diversas áreas de especialização são uma mais-valia deste livro


didático, havendo entre outras áreas, especialistas em Ciência Política, Ciências
Sociais, Antropologia, Filosofia, Artes Visuais e, claro, Sociologia.

Quadro 1: Relação de autores e instituições em que lecionam


Autor Instituição de ensino
Afrânio Silva Colégio Pedro II e CAp-UERJ
Bruno Loureiro Escolas públicas e privadas do RJ
Cassia Miranda EPSJV/FIOCRUZ
Fátima Ferreira Colégio Pedro II
Lier Pires Ferreira Colégio Pedro II e IBMEC/RJ
Marcela M. Serrano CEFET/RJ
Marcelo Araújo Colégio Pedro II
Marcelo Costa Colégio Pedro II
Martha Nogueira Colégio Pedro II
Otair F. Oliveira UFRRJ
Paula Menezes Colégio Pedro II
Raphael M. C. Corrêa Colégio Pedro II
Rodrigo Pain CAp-UERJ
Rogério Lima CAp-UERJ e Colégio Pedro II
Tatiana Bukowitz Colégio Pedro II
Thiago Esteves CEFET/RJ
Vinicius Mayo Pires Colégio Pedro II
Fonte: SILVA et al., 2016, p. 3.

Por outro lado, o livro “Sociologia para jovens do século XXI” tem somente dois
autores. Essa opção não indica por si que este livro didático seja melhor ou pior,
no entanto, a abrangência disciplinar dos autores será certamente mais restrita
do que se a obra fosse elaborada por um maior número de colaboradores e de
áreas distintas como se verificou no livro anteriormente abordado.

De qualquer modo, mesmo neste caso, se verifica que os autores também


estão/estiveram ligados a instituições públicas de ensino. O autor Luiz
Fernandes de Oliveira trabalhou na educação básica da FAETEC e do CAp-
UERJ, estando atualmente na UFRRJ. O segundo autor, Ricardo Cesar Rocha
da Costa, esteve na educação básica da FAETEC e atualmente encontra-se no
IFRJ, campus de Arraial do Cabo/RJ, além de ter larga experiência no ensino
superior.
Análise dos capítulos que abordam o tema “gênero”

O livro “Sociologia em movimento” dedica o Capítulo 14 à questão de gênero,


num total de 28 páginas. Os autores o intitularam de “Gêneros, sexualidade e
identidades”. A abrangência desse título demonstra não só a dificuldade de
estabelecimento de um único conceito de gênero, como demonstrado por 299
SCOTT (1995), mas também a interligação entre os três conceitos que se
influenciam e devem ser entendidos como um todo. Não se compreende a
questão de gênero sem se entender a polaridade de sexualidades e identidades
que o acionam (LOURO, 2003, 2007, 2008; CÉSAR, 2009).

Já no caso do livro “Sociologia para jovens do século XXI”, a questão de gênero


surge em dois capítulos distintos. O primeiro é o capítulo 22, intitulado “Lugar de
mulher é onde ela quiser?”, ocupando 20 páginas. O segundo é o capítulo 23,
que se chama “Cada um sabe a dor e a delícia de ser quem é”, estendendo-se
por 15 páginas.

A extensão dos capítulos em ambos os livros didáticos não é muito diferente,


tendo o primeiro manual 28 páginas e o segundo livro 35, embora este, como se
disse, dividido em dois capítulos distintos. Ao contrário do livro “Sociologia em
movimento”, os títulos dos capítulos do livro “Sociologia para jovens do século
XXI” são diferentes, não focando tanto nos conceitos a serem abordados, mas
antes, colocando questões provocatórias, principalmente, no capítulo 23. Talvez
o objetivo fosse deixar ao estudante um título que estimulasse o debate, capaz
de captar a atenção dos “jovens do século XXI”.

Ambos os manuais utilizam diversos autores para exporem as questões


desenvolvidas. No caso, alguns desses autores são utilizados nos dois livros
quando são abordadas questões semelhantes. O quadro 2 apresenta quais são
esses autores.

Quadro 2: Autores utilizados/citados


Livro Livro Livro
Sociologia em Sociologia para jovens Sociologia para jovens
Movimento do século XXI do século XXI
(Capítulo 22) (Capítulo 23)
Simone de Beauvoir Simone de Beauvoir Gustavo Venturi
Margaret Mead Pierre Bourdieu Luiz Roberto de Barros
Mott
Pierre Bourdieu Judith Butler James Naylor Green
Bell Hooks Deborah Blum Luiz Mello
Michel Foucault Joan Scott Rodrigo Salgado
Neuma Aguiar Céli Pinto João Silvério Trevisan
Judith Butler Djamila Ribeiro Flávia Biroli
Helena Hirata Bruno Bimbi
Sigmund Freud Denilson Pimenta Jr.
Raewyn Connell
Gilberto Freyre
Lélia Gonzalez
Friedrich Engels
Angela Davis
Fonte: SILVA et al., 2016, p. 328-355; OLIVEIRA; DE COSTA, 2016, 338-374,
392-400. 300

Pode-se dizer que, em ambos os livros didáticos, são referidos autores que são
os mais reconhecidos dentro dos temas tratados. Por exemplo, Simone de
Beauvoir que “(…) sacudiu a poeira dos meios intelectuais com a frase ‘nasce
mulher: torna-se mulher’” (LOURO, 2008, p. 17) é uma das referências para a
discussão elaborada pelos dois manuais.

Também se verifica o recurso às obras de Pierre Bourdieu. Para Scott (1995, p.


89), referindo-se à questão da legitimação de gênero, aponta que Bourdieu “(…)
mostrou como, em certas culturas, a exploração agrícola era organizada
segundo conceitos de tempo e de estação que se baseavam em definições
específicas da oposição entre masculino e feminino”. Bourdieu desenvolveu
estudos sobre o que chamou de divisão do mundo baseada em diferenças
biológicas, especialmente na divisão do trabalho, na procriação e na reprodução.
Para ele, “estabelecidos como um conjunto objetivo de referências, os conceitos
de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda
a vida social” (SCOTT, 1995, p. 88).

Também Judith Buttler se apresenta como uma das pioneiras no debate da


questão de gênero. A autora usou o conceito de heterossexualidade compulsória
ou heteronormatividade para analisar “(…) as relações de poder entre homens e
mulheres e entre homossexualidade e heterossexualidade, demonstrando a
construção do dispositivo da sexualidade como marcado pela norma
heterossexual” (CÉSAR, 2009, p. 47-48).

Vários outros estudos de diversos autores são base do desenvolvimento dos


livros didáticos em análise. Apesar de não serem utilizados em ambos os
manuais escolares, verificamos dois autores que também são pioneiros nesse
debate. No livro “Sociologia em movimento” recorre-se a Foucault, para quem a
sexualidade é produzida em contextos históricos. No entender de Scott, Foucault
demonstrou a necessidade de se substituir a noção de que o poder social é
unificado, coerente e centralizado, devendo-se antes adotar o conceito de poder
“(…) entendido como constelações dispersas de relações desiguais,
discursivamente constituídas em ‘campos de força’ sociais” (SCOTT, 1995, p.
86).

Por sua vez, o livro didático “Sociologia para jovens do século XXI” utiliza as
análises de Joan Scott. O seu texto intitulado “Gênero: uma categoria útil de
análise histórica” é um referencial no que se refere à construção dessa categoria.
Como refere Louro (1995, p. 103), esse estudo de Scott terá representado “(…)
uma verdadeira ‘introdução’ ao conceito e às suas implicações para os
estudos históricos. A partir de suas colocações, passávamos a nos dar conta de
reflexões que ajudavam a conceitualizar gênero e começávamos a ensaiar
algumas de suas possíveis aplicações”. Assim se verifica que importantes
autores foram utilizados/citados nos dois livros didáticos, abrangendo o conceito
de gênero e seu desenvolvimento histórico e social. Esse desenvolvimento pode 301
ser verificado através dos conceitos centrais que ambos os manuais apresentam
e os principais temas abordados.

Conceitos centrais e os principais temas abordados

Em ambos os livros didáticos podemos confirmar uma preocupação em definir


corretamente os conceitos utilizados e os situar na sua conjuntura histórica. Ou
seja, os temas não surgem de forma isolada, mas antes se encontram
desenvolvidos cronologicamente, obedecendo às épocas em que cada tema e
cada conceito surgiram. Aliás, a obra “Sociologia em Movimento” apresenta uma
linha cronológica histórica sobre os principais movimentos sociais relacionados
à questão de gênero. Por outro lado, o livro “Sociologia para jovens do século
XXI”, apesar de não esquematizar a linha cronológica, aborda igualmente todas
as fases relativas ao aparecimento dos movimentos sociais que se debateram
pela igualdade de gênero. No quadro 3 podemos verificar a diversidade de
conceitos abordados nos dois livros em análise. Convém salientar que no quadro
se apresentam as divisões dentro dos capítulos, por isso, em muitas dessas
divisões, surgem conceitos diversos:

Quadro 3: Divisões dos capítulos e conceitos centrais


Livro Livro
Sociologia em movimento Sociologia para jovens do século XXI
Gênero/ identidade de gênero Gênero, sexo e poder
Patriarcado Gêneros e transgêneros
Interseccionalidade Transfeminismo
Dominação masculina Violência de gênero e legislação brasileira
Sexualidade/ Transexualidade A importância de pesquisar sobre o tema
Feminismo(s) e LGBT Dominação masculina
Divisão sexual do trabalho Feminismo negro
Violência Simbólica Orientação sexual
Heteronormatividade Transfobia e homofobia
Binarismos/ Queer Identidade de gênero e
orientação sexual através dos
tempos e das culturas
Violência simbólica
Movimento social
Fonte: SILVA et al., 2016, p. 328-355; OLIVEIRA; DE COSTA, 2016, 338-374.

Os conceitos referidos no quadro 3 são o suporte para a discussão dos principais


temas abordados. Isto posto, o livro didático “Sociologia em Movimento” aborda
os seguintes temas:
a) A contribuição da Psicanálise para os estudos sobre sexualidade e identidade
humana;
b) A relação entre sexo e gênero, tendo por base um debate sobre a relação
natureza e cultura;
c) As instituições sociais e seu papel na formação de padrões de gênero; 302
d) O patriarcado e o androcentrismo; o patriarcado no Brasil;
e) A divisão sexual do trabalho;
f) A interseccionalidade: o cruzamento das desigualdades de raça, classe e
gênero;
g) A teoria Queer e a performatividade;
h) As conexões sobre sexualidade e poder, com base em Michel Foucault;
i) O debate feminista em torno dos conceitos de gênero, sexo e sexualidade, e
sua evolução nos séculos XX e XXI;
j) A violência contra a mulher e contra os não heterossexuais;
k) A organização dos movimentos sociais em defesa do direito de mulheres e da
população LGBT.

Já o livro didático “Sociologia para jovens do século XXI”, ao longo dos dois
capítulos, aborda os seguintes temas:

a) A relação entre sexo e gênero, tendo por base um debate sobre a relação
natureza e cultura;
b) Relações de poder, de dominação masculina, assimetria construída ao longo
da história;
c) Identidade de gênero;
d) Definição de gênero;
e) O papel das mulheres nas sociedades modernas;
f) Igualdade de condições;
g) Feminismo;
h) Feminismo Negro;
i) A questão do aborto.

Os temas abordados neste primeiro momento, nomeadamente no capítulo 22


“Lugar de mulher é onde ela quiser?” é mais teórico, servindo de introdução
teórica para tal discussão. O capítulo 23 “Cada um sabe a dor e a delícia de ser
quem é”, como já diz o tema do capítulo, consiste num debate sobre diversidade
sexual e de gênero, abordando, portanto:

a) Pessoas trans;
b) Heteronormatividade;
c) Homofobia;
d) Transfobia;
e) Recorte histórico;
f) Movimentos sociais.
Ao se listar todos os temas discutidos, nota-se a abrangência temática destes
manuais e também se observa que ambos focam em diversos assuntos em
comum.

Recursos didáticos, linguagem, interdisciplinaridade e exercícios


303
Os dois manuais apresentam bastantes recursos didáticos nos capítulos
referentes ao tema em estudo. No caso do manual elaborado por Silva et al.
(2016), como já havíamos dito, é apresentado na “Introdução” a evolução do
debate sobre gênero e sexualidade, inclusive utilizando-se como recurso uma
“linha do tempo”, com recorte entre os anos de 1942 e 2015. Diversas fotos que
retratam diferentes culturas e, também, manifestações em que se destacam os
recortes de gênero, a luta e sua construção são apresentadas nesse manual,
oferecendo ao aluno uma representação do assunto debatido.

Também são apresentadas tabelas para ilustrar a disparidade em relação à


divisão sexual do trabalho. Quadros complementares, com resumo sobre
pensadores e acontecimentos históricos relacionados ao tema aparece ao longo
de todo o capítulo, para contextualizar melhor o aprendizado dos estudantes.
São ainda apresentadas várias imagens de cartazes e propagandas, sugestão
de filmes, recursos como mapeamento dos estados mais perigosos do Brasil
para homossexuais ou reportagens relevantes sobre os temas abordados.

Quanto à linguagem utilizada pelos autores, verifica-se que mesmo utilizando-se


de teóricos tradicionais, trata-se de uma linguagem de fácil compreensão,
lançando mão de diversas ferramentas para melhor ilustrar o que se pretende
informar. Este livro didático e o capítulo em análise apresentam
interdisciplinaridade, haja vista dialogar com outras áreas de conhecimentos das
ciências humanas, mas neste capítulo, principalmente com a História. Talvez
resulte essa interdisciplinaridade acentuada do fato de haver uma diversidade
acadêmica dos seus autores.

Quanto aos exercícios, os primeiros apresentados têm como intuito uma breve
revisão do conteúdo e também suscitar o debate entre os alunos. Os demais são
questões retiradas do Enem ou da Unesp, com o claro objetivo de preparar o
aluno para o ingresso à universidade. E, por último, uma questão sugerindo
pesquisa e, assim, já os incentivando a procurar mais informações sobre os
assuntos debatidos.

Por sua vez, o livro didático “Sociologia para jovens do século XXI” apresenta
como recursos didáticos bastantes fotos de manifestações organizadas por
movimentos sociais feministas ou LGBT’s. Para além das fotos, também há
quadros complementares, com citações de pensadores, resumos de conceitos
ou questionamentos para o estudante refletir. Imagens de cartazes e
reportagens, sugestão de filmes, livros, links para pesquisas na internet, músicas
e jogos auxiliam no sentido de oferecer ao estudante ferramentas para as suas
próprias pesquisas e proporcionar que façam contato com o tema de forma
menos formal e fora do ambiente escolar, uma vez que podem acessar esses
recursos, por exemplo, a partir de casa.

Este livro, tal como se verificou no manual anteriormente analisado, também


expõe o mapeamento de problemas sociais relacionados à intolerância. No caso,
tem o mapeamento dos homicídios de pessoas trans, realizado pela 304
Transgender Europe (datado de 2014) e o mapa de direitos de lésbicas e gays
no mundo (do ano de 2013). Ao final de cada capítulo, os autores sugerem uma
interação e fazem um breve resumo do tema abordado de forma participativa.

A linguagem utilizada neste livro didático é realizada através de palavras de fácil


entendimento e, com os recursos didáticos, se torna ainda mais compreensível.
Além disso, também há a possibilidade de despertar o interesse do aluno através
desses recursos. Este manual também apresenta interdisciplinaridade,
dialogando com as disciplinas de ciências humanas, mas também conversando
bastante com a Biologia. Inclusive, ao final de cada capítulo, faz um destaque
para a questão da interdisciplinaridade, demonstrando a importância que os
autores atribuem a esta interlocução.

Os exercícios propostos, assim como no primeiro livro analisado, são questões


com o claro objetivo de preparar o aluno para o ingresso na universidade. Mas,
ao contrário dos exercícios do livro anterior, nos dois capítulos deste manual,
são todas questões do Enem.

Considerações finais

A importância do tema “gênero” no ambiente escolar refere-se ao esforço por


uma maior consciência das diferenças, defesa da pluralidade e da diversidade,
de modo a fortalecer a luta contra o discurso de ódio e os preconceitos que
geram tamanhas injustiças sociais e que seguem presentes na sociedade
brasileira.

O conteúdo ressaltado nestes dois livros didáticos, além de esclarecer,


empoderar e encorajar grupos e indivíduos a lidar com os assuntos pertinentes
a gênero, impulsionará a construção e a organização, gradativa, de uma
sociedade que defenda os direitos humanos e a plena democracia. A escola é a
possibilidade de que debates urgentes dialoguem com toda a sociedade civil,
haja vista seu papel formador de indivíduos que levarão os aprendizados
colhidos em seu espaço para a sociedade mais ampla.

Referências biográficas

Dr. Walace Ferreira, professor adjunto de Sociologia da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (UERJ);

Bac. e Lic. Ester Torres da Silva, formada em Ciências Sociais pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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SILVA, Afrânio et al. Sociologia em Movimento. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2016.
306

“The Lovers,” by the Norwegian artist Pobel, in Bryne, Norway.Credit.

RESISTINDO!

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