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NOVAS MÍDIAS E

ORIENTALISMOS
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Novas Mídias e Orientalismos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ,
2022. 175 p.
ISBN: 978-65-00-54421-3
História da Ásia; Mídias; Comunicação; Orientalismo; Japão; Coreia.

Novas Mídias e Orientalismos


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Sumário

APRESENTAÇÃO, por André Bueno ............................................................................................... 5


QUERO SER COSPLAYER: PERTENCIMENTO por Alexia Henning ................................................ 10
ONE PIECE, PROPÓSITO HERDADO E LIBERDADE por Arthur D´Elia dos Santos e João Antõnio P.
Cardoso ....................................................................................................................................... 18
MANGÁS DE SEGUNDA GUERRA: QUESTÕES DE SENTIDO E TRAUMA EM ADOLF DE OSAMU
TEZUKA por Janaina de Paula do Espírito Santo ......................................................................... 24
“SEU NOME GRAVADO EM MIM”: UM BREVE RELATO DA RESISTÊNCIA QUEER EM TAIWAN E A
ÓTICA CINEMATOGRÁFICA por Kawanna Alano Soares e Gabriella Onofre ............................... 31
MEMÓRIA E DOR EM HADASHI NO GEN (1983): TRAÇOS DO TRAUMA DA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL por Douglas Pastrello ................................................................................................. 39
PROPAGANDA E NECROPOLÍTICA NO FILME “GENROKU CHUSHINGURA” DE MIZOGUCHI KENJI
(1941-1942) por Edelson Geraldo Gonçalves.............................................................................. 47
MANEIRAS DE COMO SE TRABALHAR DE MANEIRA CRÍTICA O “ORIENTALISMO” DE SAID NAS
AULAS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA POR MEIO DE FILMES por Eduardo Bruno da Silva
..................................................................................................................................................... 57
QUANDO “O OUTRO LADO DO MUNDO” É TEMA DA AULA DE HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE AS
POTENCIALIDADES DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA O ESTUDO DOS DIFERENTES
ORIENTES por Fabian Filatow ...................................................................................................... 63
A VERDADE DE EVA: A MEMÓRIA POR MEIO DAS MÁQUINAS EM MAGNETIC ROSE (1995) por
Pedro Gabriel de S. e Costa e Fernando de B. Honda ................................................................. 71
A HALLYU COMO DENÚNCIA DA ESCRAVIDÃO SEXUAL DE MULHERES SUL-COREANAS por
Gabriela dos S. Schalcher e Márcio dos S. Rodrigues.................................................................. 77
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTEXTO DE PUBLICAÇÃO DO MANGÁ BUDA DE OSAMU
TEZUKA (1972-1983) por Gabriel Silvestre Ferraz....................................................................... 83
A MÍSTICA EGÍPCIA, A NATUREZA E O OLHAR ORIENTALIZANTE: A MIRADA CONTEMPORÂNEA
SOBRE O PASSADO ROMANO DOS CULTOS ORIENTAIS SOB A PRODUÇÃO DE AMBROSIO (1913)
por Heloisa Motelewski............................................................................................................... 91
ERA ATÔMICA E EMIGRAÇÃO AO BRASIL: CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE IKIMONO NO
KIROKU [ANATOMIA DO MEDO], DE AKIRA KUROSAWA por José Carvalho Vanzelli ............... 104
UM EXERCÍCIO DE EMPATIA, A REPRESENTAÇÃO DA HISTÓRIA EM GRAMA E A ESPERA: O
ESPAÇO HISTÓRICO COREANO PROBLEMATIZADO POR MEIO DOS QUADRINHOS DE GENDRY-
KIM por Krishna Luchetti ........................................................................................................... 111
OS DOIS LADOS DA MESMA MOEDA: COMO O JAPÃO É IMAGINADO PELOS FÃS E CRÍTICOS por
Lucas Marques V. Motta e Luciana de Ávila Freitas .................................................................. 118

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A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA SUL-COREANA DA EX-PRESIDENTA PARK GEUN-HYE NO
PERÍODO DO IMPEACHMENT por Maria Clara Moraes e Suéllen Gentil .................................. 125
“NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO” [1984]: ENSAIO DE UMA ANÁLISE POÉTICA por Thereza
Cristina de Oliveira e Silva ......................................................................................................... 131
ORIENTALISMO E ISLÃ: O INSTAGRAM COMO FONTE por Vanessa dos Santos Bodstein Bivar
................................................................................................................................................... 140
DEMÔNIOS DA GUERRA: UMA BREVE ANÁLISE DO FILME ONIBABA (1964), DE KANETO SHINDO
por Vinicius Maciel Braga .......................................................................................................... 148
UM OLHAR EDITORIAL SOBRE O GRUPO DE K-POP SINO-COREANO EXO por Vitória Ferreira
Doretto ...................................................................................................................................... 154
PARATOPIA CRIADORA E WEBTOONS: OS CASOS DE “TRUE BEAUTY” E “FROM A DISTANCE, A
GREEN SPRING” por Vitória Ferreira Doretto e Júlio Cézar de Souza ....................................... 165

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APRESENTAÇÃO
por André Bueno

A nova fronteira representada pelo campo das comunicações e ciências


humanas, no que tange a interatividade, disseminação da informação e
construção de redes de conhecimento, têm se revelado um espaço de tensões
e conflitos, onde se projetam preconceitos e fantasias arraigadas ao imaginário.
O olhar orientalista, a estratégia de conhecer o mundo por meio de velhas
teorias coloniais, ainda atua fortemente na formulação dos papéis concedidos
aos asiáticos, lidos de forma reducionista pelo senso comum que embasa as
impressões primeiras do público e dos canais midiáticos. Nesse sentido, a
sociedade brasileira continua a preservar um estranho entre-lugar para as
comunidades de origem oriental, reafirmando a existência de um contraditório
‘não-preconceito’ com a recusa sistemática em assimilar japoneses, chineses,
coreanos, árabes, entre outros. As mídias, que poderiam desempenhar um
papel educativo nesse sentido, acabam por reforçar muitas dessas práticas,
como muito bem denunciado pela pesquisadora Krystal Urbano [2019]:

Com efeito, no que diz respeito à representatividade midiática, os


brasileiros de ascendência asiática têm pouca visibilidade na mídia
brasileira, sendo rara a presença destes em comerciais,
telenovelas e filmes e, quando ocorrida, fundamentalmente é
marcada por estereótipos recorrentes, ocasionando uma sub-
representatividade nesse universo. Na teledramaturgia nacional,
por exemplo, atores de origem oriental apenas conseguem papéis
caricatos e que remetem ao estereótipo do japonês/ asiático, como
de feirantes e pasteleiros ou de aficionados por tecnologia,
praticantes de artes marciais e vendedores de sushi, gueixas e
samurais. Em testes para um papel na televisão, há relatos de
atores que são obrigados a forçar um “sotaque japonês”, mesmo
estando a comunidade nipônica na quinta geração no Brasil.
Dificilmente um ator oriental consegue um papel que não tenha
relação com a sua origem étnica, que é potencializada nessas
representações.

Movimentos importantes como o site ‘Outra Coluna’ ou o canal de Youtube Yo


Ban Bo tem se posicionado contra essas permanências no imaginário
brasileiro, enfrentando todo o tipo de preconceito, racismo e xenofobia. Por
essa razão, vimos sentido na construção de um volume inteiramente dedicado
a questão das Novas Mídias e Orientalismos, reunindo estudos que pudessem

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clarear nossa caminhada em direção a um conhecimento produtivo e
enriquecedor sobre as culturas asiáticas. Afinal, já consumimos quadrinhos,
filmes, desenhos e músicas, mas o mais importante, podemos também traduzir
esses materiais para que nos ajudem a compreender o imaginário e as
percepções de mundo que nascem dessas civilizações.

A par da organização sumária desse volume seguir uma ordem alfabética


autoral, gostaríamos brevemente de comentar as produções aqui presentes,
arranjadas em blocos, que podem guiar os interesses de pesquisa.

Primeiramente, podemos destacar as experiências de diálogo intercultural, que


passam pelo debate das identidades, das hibridizações e do consumo global
de informação. Em ‘Quero ser cosplayer: pertencimento’ por Alexia Henning, a
autora fala da experiência transcultural da prática de construção de
personagens e da ideia integração cultural; já ‘Os dois lados da mesma moeda:
como o Japão é imaginado pelos fãs e críticos! por Lucas Marques V. Motta e
Luciana de Ávila Freitas aborda o problema das leituras midiáticas que são
feitas sobre o país e sua cultura, e que oscilam usualmente entre a recusa
injustificada ou a admiração irrestrita. ‘A representação midiática sul-coreana
da ex-presidenta Park Geun-Hye no período do impeachment’ por Maria Clara
Moraes e Suéllen Gentil é um ensaio poderoso e preocupante sobre questões
de gênero, política e mídia, relatando a deposição da presidente coreana em
um processo que encontra paralelos ao redor do mundo; e na senda dos
estudos Coreanos, encontramos ainda dois trabalhos da pesquisadora Vitória
Doretto, ‘Um olhar editorial sobre o grupo de k-pop sino-coreano Exo’ e
‘Paratopia criadora e webtoons: os casos de “True beauty” e “From a distance,
a green spring” [com Júlio Cézar de Souza], em que analisa dois fenômenos
recentes dessa cultura que vem se espalhando ao redor do mundo, criando
uma expressão midiática que requisita maiores atenções do especialistas.
Fechando o bloco, ‘Orientalismo e islã: o instagram como fonte’ por Vanessa
dos Santos Bodstein Bivar realiza um estudo interessante do uso do site de
imagens como um recurso para compreender o problema do orientalismo em
face do islã e sua icnografia recente difundida em rede.

Dentro do escopo desse trabalho, uma segunda parte é inteiramente dedicada


aos estudos sobre Quadrinhos e História. Como afirmou Fabian Filatow [2020],

‘As histórias em quadrinhos (HQ's) podem ser identificadas como


uma mídia global e que estão na ordem do dia a um longo tempo.
Não é de hoje que nos deparamos com reflexões sobre os
múltiplos usos dos quadrinhos no ambiente escolar. Esta mídia
apresenta algumas peculiaridades, ou seja, agregam diferentes
aspectos da comunicação, tanto visual quanto verbal’.

Nesse sentido, os textos que ora se apresentam trazem-nos diferentes


proposições sobre problemas históricos e intelectuais a partir de perspectivas
ásio-brasileiras. ‘One Piece, propósito herdado e liberdade’ por Arthur D´Elia
dos Santos e João Antônio P. Cardoso é uma excelente introdução filosófica à

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leitura do mangá/anime e seus desdobramentos sobre ideias de política e
cultura; já ‘Mangás de segunda guerra: questões de sentido e trauma em Adolf
de Osamu Tezuka’ por Janaina de Paula do Espírito Santo apresenta-nos uma
análise rica sobre esse prestigiado quadrinho, que narra as desventuras de
dois Aldof’s em meio a ascensão do nazismo; em outro sentido, ‘Memória e dor
em Hadashi no Gen (1983): traços do trauma da segunda guerra mundial’ por
Douglas Pastrello é um ensaio sobre o dramático mangá que conta a vida
dolorosa no Japão pós-guerra, e suas possibilidades como relato e documento.
Osamu Tezuka volta a ser trabalho no texto ‘Breves considerações sobre o
contexto de publicação do mangá Buda de Osamu Tezuka (1972-1983)’ por
Gabriel Silvestre Ferraz, que analisa a releitura da trajetória de vida de Sidarta
Gautama a partir de uma nova interpretação quadrinística. Em seguida,
podemos destacar dois textos que dialogam entre si, e que contam as
experiências coreanas na segunda guerra mundial a partir de uma série de
quadrinhos recentemente publicados; são eles ‘A Hallyu como denúncia da
escravidão sexual de mulheres sul-coreanas’ por Gabriela dos S. Schalcher e
Márcio dos S. Rodrigues e ‘Um exercício de empatia, a representação da
história em Grama e A Espera: o espaço histórico coreano problematizado por
meio dos quadrinhos de Gendry-Kim’ por Krishna Luchetti. Fechando esse
bloco, Fabian Filatow nos proporciona uma importante discussão sobre o uso
dos quadrinhos como um instrumento de ensino histórico em ‘Quando “O outro
lado do mundo” é tema da aula de história: reflexões sobre as potencialidades
das histórias em quadrinhos para o estudo dos diferentes orientes’.

O terceiro bloco apresenta-nos análises cinematográficas, contemplando as


dinâmicas da sétima arte. Abre-se com o desafiador texto “Seu nome gravado
em mim”: um breve relato da resistência Queer em Taiwan e a ótica
cinematográfica’ por Kawanna Alano Soares e Gabriella Onofre, que explora as
questões da sexualidade na cinematografia ainda pouco explorada desse país;
já ‘Propaganda e necropolítica no filme “Genroku Chushingura” de Mizoguchi
Kenji (1941-1942) por Edelson Geraldo Gonçalves nos traz uma delicada
análise sobre esse clássico japonês feito ao longo da segunda guerra mundial,
e pouco conhecido em nosso país; e no caso das relações culturais Brasil-
Japão, impossível não destacar o surpreendente texto ‘Era atômica e
emigração ao Brasil: considerações em torno de Ikimono no Kiroku [Anatomia
do Medo], de Akira Kurosawa por José Carvalho Vanzelli, que nos apresenta
uma produção do renomado direto japonês Akira Kurosawa no qual se
projetava o Brasil como um paraíso utópico para a realidade social japonesa.

Continuando a seção, ‘Demônios da guerra: uma breve análise do filme


Onibaba (1964), de Kaneto Shindo’ por Vinicius Maciel Braga, é um ensaio
voltado a compreender como esse filme buscava purgar as questões da guerra
no imaginário japonês; e aproveitando o problema das memórias, ‘A verdade
de Eva: a memória por meio das máquinas em Magnetic Rose (1995)’ por
Pedro Gabriel de S. e Costa e Fernando de B. Honda aborda como a
construção da narrativa e da preservação imaterial e sua relação cibernética.
‘“Nausicaä do vale do vento” [1984]: ensaio de uma análise poética’ por
Thereza Cristina de Oliveira e Silva é, como o título propõe, uma sensível e

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cuidados análise metapoética e interpretativa desse anime, percorrendo suas
ideias centrais em relação a vida numa ótica japonesa; noutro sentido, ‘A
mística egípcia, a natureza e o olhar orientalizante: a mirada contemporânea
sobre o passado romano dos cultos orientais sob a produção de Ambrosio
(1913)’ por Heloisa Motelewski, é o resgate de uma importante peça
cinematográfica do início do século 20 que nos fornece um amplo material para
discutir a difusão do orientalismo nas mídias mais recentes. Por fim, ‘Maneiras
de como se trabalhar de maneira crítica o “Orientalismo” de Said nas aulas de
história da educação básica por meio de filmes’ por Eduardo Bruno da Silva é
um excelente exercício de como instrumentalizar o uso do cinema para a
compreensão dos problemas relacionados ao orientalismo e sua presença em
nosso imaginário estético e histórico.

Que possamos ler o mundo de novos jeitos, de novas formas!

André Bueno
Primavera, 2022

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TEXTOS

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QUERO SER COSPLAYER: PERTENCIMENTO por
Alexia Henning

O presente artigo é fruto de dois anos de pesquisa de Iniciação Científica, o


qual tive a oportunidade de realizar durante minha graduação, já finalizada,
cujo objetivo consistiu em estudar o cosplay mediante a um levantamento
bibliográfico a respeito do tema, com a finalidade de perceber quais são as
áreas de conhecimento que se apropriam da discussão acerca do cosplay o
que tornou possível uma análise no que remete as representações culturais
associadas as práticas cosplay. Permitiu também, conhecer o perfil dos
cosplayers brasileiros na contemporaneidade por meio da aplicação de
questionário, para identificar as características destes praticantes, bem como a
forma que conheceram a atividade, motivações, significações e experiências,
sendo assim destaco que conforme o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido [TCLE], os nomes dos participantes são preservados em absoluto
sigilo, para tal optei pelo uso de pseudônimo - nome fictício - em suas
identificações, nomes dados pelos colaboradores ao listar cosplays já
realizados.

Cultura pop
Para contextualizar a presente discussão, exponho a obra organizada por
Luyten [2005]: “Mangá e a cultura pop”, tendo em vista que, a autora, pontua o
reconhecimento da palavra “pop” nos Estados Unidos interligada com o gênero
musical mais ouvido pelos jovens durante os anos 60 e 70. Contudo, o que
Luyten [2005] também nos conta é que foi mediante às obras de Roy
Lichtenstein, o qual teve inspiração nas histórias em quadrinhos produzidas no
Oriente, os famosos mangás, que o termo “pop art” passa a ser conhecido.

Portanto, as histórias em quadrinhos ganharam o status de arte, visto que a


mesma tem essa tendência a seguir o que é difundido pelos meios de
comunicação e publicidade. Em outras palavras, o termo o qual muitos utilizam
e lembram, “cultura pop”, nada mais é do que um poderoso reflexo da
sociedade na qual vivemos e não se restringe somente ao aspecto estético
[LUYTEN, 2005].

No entanto, esse termo diz respeito a um fenômeno recente e totalmente


diferente da cultura popular, ou seja, está relacionado ao uso da mídia na
criação e divulgação de novos ícones e contos, falamos do impacto da
industrialização, como também a massificação na geração de referências
comuns a um povo [SATO, 2007].

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É sempre válido retomarmos discussões já pontuadas em outras produções
acadêmicas, tais como o contexto de surgimento da “cultura pop”, a qual se
deu mediante ao período pós segunda guerra mundial, devido a derrota do
Japão e a instalação de um governo americano no país dando início a uma
abertura cultural onde a sociedade japonesa tomou para si os valores do
“american way of life” - estilo de vida americano - sofrendo uma readaptação ao
seu estilo oriental.

Emerge, no Japão em 1970 uma indústria de entretenimento massivo


produzindo mangás, animes, videogames, filmes de ficção cientifica e de
efeitos especiais, estatuetas de animes, etc. [NUNES, 2013]. Segundo Sato
[2007], foi por meio de um tipo de seleção natural pelo consumo do público que
houve o destaque dessas produções, isso integra à cultura pop, pois remete a
algo que tem ou teve grande identificação popular e, consequentemente
permaneceu na memória tornando-se referência comum.

As considerações de Luyten [2005], auxiliou na pesquisa a entender como foi


esse cenário de expansão editorial dos mangás e consequentemente das
produções audiovisuais, os animes, a partir dos anos de 1990 no Brasil,
década a qual eclodiu a prática cosplay em terras brasileiras. Essa
configuração, como produto global, ocorreu por conta da diferenciação estética,
aliada às narrativas que trazem dramas humanos universais.

Consumo cultural
Há um apreço e um apoio muito grande pela cultura pop, marcada
principalmente pelo cosplay, o qual remete a uma cultura lúdica
contemporânea construída ao longo do século XX por pessoas apaixonadas
pela literatura ou mídia fantástica.

O mercado estabelece compromisso com o jovem/adulto, oferecendo caminhos


que prometem a felicidade e a satisfação. Esse sistema capitalista, ou seja, a
produção voltada para esse público auxiliou seus mais diversos estilos de vida
e conceito de moda, ajudando assim os consumidores a constituírem uma
identidade social.

A imaginação do ser humano é incrível, pelo que pude perceber em minha


vivência e observações, as pessoas transformam produtos recicláveis em
peças incríveis para compor seu traje.

Mas é sempre importante ressaltar que apesar das mais vastas formas de se
fazer cosplay, a decisão pode exigir do indivíduo um certo investimento
monetário e, também o seu tempo. E isso é o mais notável nas respostas dos
colaboradores da pesquisa: “[...] avaliar o financeiro e tempo. [...]” [HOMEM-
ARANHA, 33 anos]; “[...] a falta de recursos financeiro atrapalha [...]”
[MEPHISTO, 22 anos]; “[...] uma ótima válvula de escape e forma de fazer
amigos, mas infelizmente virou um peso financeiro por causa da minha
situação financeira, estou em um hiato [...]” [HATSUNE MIKU, 23 anos].

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É evidente que o produto cultural é ligado a arte e entretenimento, assim os
benefícios destes é o processo de integração e exclusão social, o que pode ser
delimitado pela “falta de recursos”.

A busca de um objeto que possa garantir a construção de sua identidade e que


descreva a que grupo ele pertence. Em outras palavras, como afirma Pagani
[2012], o declínio da identidade única, se encontra em espaço incerto, fazendo
com que surja um desejo e uma busca por uma identidade que lhe traga
segurança.

O consumismo é uma fonte de preservar e renovar a individualidade, ou seja, a


individualidade carrega uma contradição, a qual precisa da sociedade para se
realizar e, perpassa pela sensação de ser único, ao mesmo tempo, pela
pluralidade ao encontrar nessa prática elementos que constituí o campo de
identificação.

Brincando de faz de conta


Esse objeto de admiração em comum, transforma certos hábitos e costumes
destes fãs, possibilitando o desenvolvimento de novos hobbies. Portanto, o
cosplay nada mais é do que o engajamento apaixonado em uma atividade.

É notório mediante as respostas obtidas no questionário que para seus


praticantes não é suficiente apenas gostar dos mangás e animes, há uma
vontade de se introduzir mais no universo, assim, os cosplayers experimentam
essa imersão a uma atividade.

Analisando alguns dados sobre: o que significa fazer cosplay; identificamos


duas respostas que são pertinentes a essa imersão da atividade a qual Le
Breton [2018] enfatiza. Uma delas é descrita por Uzumaki de 30 anos, o qual
expõe a atividade como: “Uma válvula de escape da realidade e um modo
diferente de se expressar.” A outra resposta apresentada por Neji Hyuga, de 24
anos, não muito diferente da anterior diz que a prática é: “Meu momento de
‘fuga’ da realidade para interpretar personagens que gosto. Também se
tornou um momento de interação com pessoas que compartilham dos
mesmos gostos que eu.”

É importante enfatizar que não se trata de considerar essa prática como fugas
desproporcionais da vida real, mas sim um jogo de faz de conta, que alimenta
as fantasias dos praticantes e, lhe dá suporte para significar o mundo, algo que
possa ir além de momentos de pura diversão e entretenimento, sendo também
e, principalmente, uma forma de se comunicar.

Pondera-se até mesmo fazer uma alusão com a noção de transe, possessão e
consequentemente o êxtase religioso, o qual Lewis [1977] aborda. Ele expõe
em sua obra “êxtase religioso: um estudo antropológico da possessão por
espírito e do xamanismo” como o transe se configura, expondo como a
ausência temporária ou completa da alma do indivíduo, representa até mesmo
uma possessão.

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Contudo, tomo como base uma discussão no sentido de uma vivência do
cosplay, de como as mentes e as práticas contemporâneas podem ser
associadas com as questões religiosas, mas claro, não é uma religião.

Os estados de transe podem ser induzidos por diversas formas de estímulos,


de modo que, ao pensarmos no indivíduo em um estado de transe, ele estaria
obtendo uma condição limiar entre os dois planos. Por isso, ao serem
questionados como se sentem de cosplay, nota-se semelhanças em suas
respostas ao que se refere as reflexões acima;

“A sensação é excelente, é como estar em outro corpo,


praticamente ninguém olha para mim e vê a parte que eu não
quero como é de costume, eles veem o personagem, vem
conversar, interagir etc. e nem te olham reparando o que você
realmente é por baixo do cosplay, não te julgam nem passam
sentimento de pena como eu costumo presenciar todo dia”
[NOTURNO, 32 ANOS].

“É como se estivesse em uma realidade diferente, como se ao


entrar no personagem minha pessoa em off estaria ‘dormindo’
com isso passo a me entregar de corpo e alma a aquilo que estou
fazendo, onde me sinto confortável para interagir com os outros e
feliz por estar ali.” [BULMA, 21 ANOS].

Faz com que seus praticantes fujam da realidade, mas não completamente,
pois tudo faz parte de um jogo, brincar de ser alguém que não é, sem deixar de
ser você mesmo. Ou seja, a atividade é vista como uma forma de controle
exercido sobre a vida cotidiana diante das agitações do mundo.

#VidasNegrasImportam
Os participantes de uma mesma subcultura ou grupo, nunca serão
homogêneos, pois cada um deles possuí múltiplas identidades sociais.

“[...] O fato de duas pessoas serem de uma mesma nacionalidade é


apenas uma característica na vida dessas duas pessoas. É preciso
levar em conta também as diferenças entre elas. Apesar de terem
a mesma nacionalidade, essas pessoas podem ser de regiões
diferentes do mesmo país, podem ter nascido em épocas
diferentes, ter diferentes religiões, sexos, orientações sexuais,
profissões, hábitos, etc.” [ALMEIDA, 2018, p.25].

Marcos Antônio Bin [2015] expõe em seu ensaio denominado: “Espaço urbano,
performance e memória: a poética do corpo na poesia marginal e na cena
cosplay”, o espaço de muitos jovens e adultos adeptos da prática e, também
apresenta os problemas de preconceito, sendo eles os mais variados.

O cosplay oferece ao seu praticante um sentimento de prazer e satisfação ao


representar seu personagem favorito, mas, como aponta Bin [2015], nem todos

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praticam de modo aberto e declarado. No Universo dos animes, mangás e
histórias em quadrinhos - entende-se por histórias em quadrinhos produções
do Ocidente, de leitura da direita para esquerda, diferente dos mangás -
encontrar personagens negros é difícil, e muitas vezes faz com que os
praticantes negros se manifestem de formas distintas.

As imagens passam a ser o ideal de algumas pessoas, logo, por conta delas
que fazem parte de determinadas narrativas, o indivíduo passa a se esforçar
para ter essa idealização. Assim, há o preconceito quando o cosplay provém
de pessoas de biotipos, gêneros e raças diferentes dessas imagens
preconcebidas, pois para alguns a noção de uma representação apresenta
uma concepção estabelecida [GOFFMAN, 2002]. Contudo ao analisar uma
extensa bibliografia relacionada a temática e, relatos de pessoas que são
adeptos da prática há mais de 5 anos, o preconceito mais notável é o racial.

Como aponta Portelli [2016], história oral é uma arte da escuta, a qual é
baseada em um conjunto de relações. Portanto, aqui podemos perceber uma
troca mútua de experiências, isto é, há uma estruturação sobre um solo comum
que torna o diálogo possível. Mas é importante lembrar que: “[...] Pontos em
comum não precisam significar uma identidade compartilhada, mas sim uma
disposição compartilhada de ouvir e de aceitar o outro, criticamente. [...]”
[PORTELLI, 2016, p. 14].

A desconstrução social é um fator importante em nossas vidas, mas nem todos


estão dispostos a realiza-la. E, principalmente quando paramos para refletir
uma época a qual diz Naruto [30 anos]: “[...] mal existiam cosplayers pretos na
comunidade [...]” e como nota-se com Tempestade, de 25 anos com menor
tempo dentro da comunidade, quando comparado a Naruto, ao expor que seus
cosplays nem sempre eram aceitos pelo fato de ser negra, mas segundo a
mesma, não sofre mais este tipo de repressão.

A repressão diante deles sempre esteve e continua presente, contudo, de uns


anos pra cá, pelo menos desde quando me vi encantada com o universo do
cosplay, pude notar que a inserção de cosplayers negros na comunidade
cresce cada vez mais e, isso é algo fantástico, visto que, os integrantes desta
prática cultural esforçam-se por desafiar a desigualdade social e racial,
afirmando uma identidade.

Dessa forma, mais uma vez trago para a presente discussão acontecimentos
relacionados ao ano de 2020, o qual podemos salientar o engajamento sobre a
hashtag #VidasNegrasImportam a série de postagens com a divulgação de
trabalhos e referências de profissionais negros das mais diversas áreas são
uma forma de manifestações coordenadas na internet.

O surgimento desse movimento, segundo Carvalho e Sargentini [2020], diz


respeito a uma organização global que visa cessar a supremacia branca e
construir um poder local para reivindicar e operar contra a violência vivenciada
pelas comunidades negras. Fundada em 2013 como resposta à absolvição do

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segurança George Zimmerman, responsável pelo assassinato de Trayvon
Martin, adolescente negro, estudante do ensino médio e residente do estado da
Flórida, nos Estados Unidos. Suas ações são predominantes nos Estados
Unidos, Canadá e Reino Unido e se autointitulam como um coletivo de
libertadores o qual acreditam em um movimento inclusivo e expansivo
[CARVALHO; SARGENTINI, 2020].

Sendo assim, diante do caso George Floyd, homem negro o qual foi
brutalmente assassinado por um policial branco nos Estados Unidos da
América no ano de 2020, o movimento tem tomado grandes proporções e
ganhado visibilidade nas mídias, principalmente por meio das redes sociais
com suas campanhas e ações coordenadas pelo mundo, inclusive aqui no
Brasil, que é o nosso enfoque.

Essas ações visam diferentes pautas no seio do movimento negro, tais como
reforma da imigração, violência policial, responsabilização política, interferência
em campanhas eleitorais políticas, investimentos públicos e alocação de
recursos para as comunidades negras.

Mas o que isso tem a ver com a cena cosplay e o perfil de seus praticantes?
Segundo Marcos Bin [2015], os corpos negros e das periferias, são marcados
pelo descaso secular, vivenciaram e vivenciam os obstáculos da dívida social e
racial, só recentemente conquistaram outras perspectivas de vida, como o
direito de inserirem-se no tempo da história.

Na cena cosplay, estas pessoas conquistam seus direitos, onde se assimila os


signos de uma sociedade moderna e pós-industrial, os seus corpos tomam o
centro da atenção para se expressarem e usufruírem dos prazeres livremente
[BIN, 2015]. Ao mesmo tempo que se esforçam para estarem presentes diante
de uma multiplicidade de oportunidades e, como já mencionei desafiam a
desigualdade ao alcançarem a superação do preconceito nas mais diversas
facetas, mesmo que ainda de modo reduzido.

Na sociedade em si, percebe-se a multiplicidade de memórias fragmentadas e


divididas as quais Portelli [2006] menciona em seu ensaio sobre Civitella, e a
mesma não se trata de conflitos entre uma memória “oficial” e “ideológica”, já
que todas são examinadas. Ao destacar a resposta de Plena [28 anos] que ao
ser indagada da mesma forma que Tempestade e Naruto, responde: “[...] as
pessoas gostam do que eu produzo, mas também sei que ser uma mulher
branca e magra gera mais aceitação por eu estar num padrão estético. [...]”.

Essa prática de ressignificação de seus ídolos no próprio corpo, os conecta de


algum modo em um mesmo prazer mimético e, ao transportarem esses
personagens da ficção para a realidade, constroem suas experiências
singulares e despertam fazeres criativos.

Dar vida a um personagem para esses indivíduos significa expressar em seus


corpos as suas marcas, os seus pertencimentos, seja elas manifestadas em

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cada produção, lugares por onde passa e atuam, isto é, sejam oriundos dos
bairros mais privilegiados ou das zonas de maior vulnerabilidade social [BIN,
2015]. Buscam formas de reconhecimento, capturam a representação
simbólica das narrativas para se fazerem ouvir, procuram, a partir do ícone,
ganhar a visibilidade que muitas vezes lhes é negada.

Conclusão
Na contemporaneidade, muitos desejam construir identidades cada vez mais
rígidas, portanto, essas memórias plurais, móveis e mutáveis, são mobilizadas
para tentar construir as identidades que alguns desejam sempre mais estáveis
e duradouras, até mesmo essenciais, visto que hoje, muitas memórias são
destruídas ou desaparecem, mas, ao mesmo tempo, outras nascem menos
expansivas, mais particulares, mas frequentemente abundantes, por sua vez
elas se transforma em fundamentos de identidades em recomposição
[CANDAU, 2011].

Os praticantes provêm das mais variadas camadas sociais e com uma


diferenciação de idade entre eles. Contudo, a prática cosplay, diante das
questões apresentadas é uma maneira de usar a criatividade de um jeito
divertido, funcional e dentro de um universo o qual o adepto se interessa, é
ultrapassar os limites do quanto se pode criar e inovar, um processo de
autoconhecimento e, também um lugar confortável onde a “liberdade”
prevalece.

“Cosplay é para todos!” [SAKURAPRONGS, 30 ANOS].

Referências
Alexia Henning, possuí graduação em História Licenciatura pela Universidade
Estadual de Maringá. Membro do Grupo de Pesquisa em História das Crenças
e Ideias Religiosas [HCIR, CNPq]. Desenvolveu pesquisas na área de História,
História Cultural, Narrativas e Identidades no Brasil do século XXI, voltada para
o estudo da prática cosplay na contemporaneidade [2019-2021].

ALMEIDA, Cleusa Albilia de. Consumo Cultural nas práticas juvenis. Curitiba:
Appris, 2018.

BIN, Marco Antonio. Espaço urbano, performance e memória: a poética do


corpo na poesia marginal e na cena cosplay. In: NUNES, Mônica Rebecca
Ferrari. Cena cosplay: Comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis.
[S. l.: s. n.], 2015.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2019.

CARVALHO, Ingrid Cunha de; SARGENTINI, Vanice. VIDAS IMPORTAM E A


FALSA SIMETRIA: O DISCURSO EM MOVIMENTOS SOCIAIS. Humanidades
e Inovação, [s. l.], v. 7, n. 24, 2020.

Novas Mídias e Orientalismos


16
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. 10. ed. [S. l.]:
Editora Vozes, 2002.

LE BRETON, David. Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea. [S. l.]:


Editora Vozes, 2018.

LEWIS, Ioan M. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da possessão por


espírito e do xamanismo. SP, Perspectiva, 1977

LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá e a cultura pop: um lugar para pertencer. In:
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Cultura pop japonesa: Mangá e animê. [S. l.: s. n.],
2005.

NUNES, Monica Rebecca Ferrari. A cena cosplay: vinculações e produções de


subjetividade. FAMECOS, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 430-445, maio/agosto.
2013.

PAGANI, Clarisse Ribeiro. Autoconceito, identidade e consumo cultural: análise


qualitativa do grupo social dos cosplayers. 2012. 10 - 240 p. Dissertação
(Mestrado em Administração) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2012.

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civetella Val di Chiana (Toscana, 29


de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta
de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. [S. l.: s. n.],
2006.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e
Voz, 2016.

SATO, Cristiane A. JAPOP: O poder da Cultura Pop Japonesa. São Paulo:


NSP-Hakkosha, 2007.

Novas Mídias e Orientalismos


17
ONE PIECE, PROPÓSITO HERDADO E LIBERDADE por
Arthur D´Elia dos Santos e João Antõnio P. Cardoso

O presente texto visa adentrar no mundo de One Piece de modo a oferecer


uma abordagem filosófica captando alguns elementos da obra. São eles: o
propósito herdado, a tensão existente entre liberdade e profecia/destino. No
interior desta divagação perguntas precisarão ser respondidas. Há um
determinismo na obra? Qual o impacto do status ontológico do futuro para a
liberdade? É possível uma saída humanista?

“Existem três coisas que não podem ser interrompidas: o sonho dos homens, o
fluxo do tempo e o propósito herdado”. Palavras de Gol D. Roger que nos
dizem muito sobre a construção do mangá/anime (nas referências será deixado
um link de um vídeo do canal do Youtube All Blue sobre). Fundamentalmente,
essas palavras querem dizer o seguinte: no passado havia alguém que tinha
um sonho, mas não conseguiu completá-lo. Tal sonho foi adiado por muitos
anos. Aqui neste segundo momento entra a ação do fluxo do tempo. Alguém no
futuro irá completar o sonho passado (propósito herdado).

Em One Piece alguns exemplos que envolvem esta questão são visíveis, como
é o caso de Zeff e Sanji (herdou propósito de Zeff) e Roger com o Reino
Antigo. Um determinado propósito pode ser passado adiante por meio da
oralidade ou documentos escritos. Tudo isso é importante para demonstrar que
não se trata de uma escolha feita por determinado personagem devido à
linhagem sanguínea ou algo do tipo, mas sim de herdar a grande finalidade de
vida que outrora pertenceu a outra pessoa. Na própria história da humanidade
isso aconteceu, basta como exemplo a ordem criada por Francisco de Assis
que visava transparecer o “Cristo nu” (GOFF, 2011).

Sobre o Reino Antigo, para que aqui seja clara a dimensão do problema, ele foi
a explicitação de uma civilização próspera e avançada na qual as diferentes
raças conviviam sem grandes perturbações. Com a oposição de 20 Reinos ao
projeto One Piece (acerca do Projeto, isso é apenas uma hipótese, mas a
interpretação sobre a construção da narrativa é amplamente amparada pelos
acontecimentos do anime), que nada mais seria do que a eliminação da Red
Line (é uma faixa de terra que divide os oceanos) e, consequentemente, da
Grand Line (o oceano que compõe a primeira parte da obra), foi criado o
Governo Mundial e tudo o que envolve o Reino Antigo foi apagado, incluindo
indivíduos, povos que “sabiam demais” ou buscavam informações sobre o
Século Perdido (época em que o Reino antigo foi destruído).

Novas Mídias e Orientalismos


18
O que foi deixado do Reino Antigo para levar adiante o propósito foram escritos
talhados em grandes pedras conhecidos como Poneglyphs e Armas Ancestrais
que viabilizariam a destruição da Red Line.

Breves apontamentos sobre o governo mundial


No episódio 523 do anime começa o arco da Ilha dos Tritões ou Homens-
Peixe. Fala-se de como o Governo Mundial foi conivente e patrocinou a
segregação e opressão de raça para com os homens-peixe, inclusive
escravizando-os. Este é apenas um dos vários elementos que marcam essa
organização que brotou com o fim do Reino Antigo. Entre os episódios 275-278
aparece não só o passado de Nico Robin (tripulante do bando do protagonista),
como também a aniquilação de Ohara, sua terra natal, pela Marinha e a mando
do Governo Mundial.

O Governo Mundial possui a seguinte organização: Imu-Sama é uma espécie


de rei do mundo. Cinco anciões estão submetidos a ele (aos olhos dos outros
são eles quem governam o mundo; desconhece-se a existência de Imu-Sama).
Logo abaixo dos anciões tem o Comandante-Chefe da marinha que
supervisiona os marinheiros em geral e a Cipher Pol (é uma agência secreta
que realiza investigações, assassinatos e coleta de informações). Há também
os Nobres Mundiais, os quais podem ser conhecidos como Tenryubitos ou
Dragões Celestiais que são os descendentes diretos de dezenove dos vinte
Reinos que confrontaram o Reino Antigo no passado.

Toda essa caracterização é importante para perceber o seguinte: em One


Piece os aspectos objetivos alimentam percepções subjetivas dos indivíduos.
Do processo de escravização dos homens-peixe por parte dos Dragões
Celestiais brota um profundo preconceito de raça que divide humanos e tritões.
A divisão geográfica proveniente da Red Line obstrui o caminho à união entre
os povos e à liberdade de cada um poder navegar pelo mar sem maiores
problemas.

Liberdade fruto da profecia ou a profecia é resultado da liberdade?


No episódio 523, Madame Shirley tem uma visão na qual Luffy envolto a
chamas destrói a ilha dos tritões. No arco da ilha dos homens-peixe, diz-se que
Shirley nunca errou uma previsão; inclusive algo que ela previu não
necessariamente vai acontecer num futuro próximo, mas pode ser num futuro
um pouco mais distante. Ora, com a destruição da Red Line, não só a Terra
Sagrada de Mary Geoise na qual habitam Dragões Celestiais, como também a
ilha dos tritões. Trata-se do fim do Governo Mundial tal como se apresenta.

Essa previsão da tritã juntamente com o amanhecer ou alvorecer do mundo


esperado pelos Kozukis e pela tribo Mink demonstra que em One Piece a ideia
de profecia ou destinação aparece. Para reforçar isto tem também a profecia
de Toki (envolvendo a libertação do país de Wano) revelada por Kyoshiro no
episódio 909: “Você é como a lua que desconhece o amanhecer. Se há um
desejo ardente que deve ser cumprido, será quando nove sombras forem

Novas Mídias e Orientalismos


19
tecidas juntas por vinte anos de noites de luar. Só então você entenderá o
esplendor do amanhecer”.

Toki nasceu há cerca de 830 anos atrás, ou seja, durante o Século Perdido. Ela
viajou pelo tempo diversas vezes usando o poder de sua Akuma no Mi
chamada “Toki Toki no Mi”. As Akumas no Mi são misteriosas frutas que
concedem poderes aos seus usuários. O interessante é que Toki não viaja para
o passado, mas sempre foi para o futuro. Isso comprova como em One Piece o
passado não possui estatuto ontológico, ou seja, não “existe” em algum lugar
para onde se possa voltar. Aqui respeita-se o fluxo do tempo como algo que
não pode ser interrompido e, consequentemente, a irreversibilidade como
categoria da realidade.

No entanto, a viagem para o futuro abre a possibilidade de não haver margem


para a liberdade (no sentido de livre-arbítrio) entre os indivíduos, ou seja, a
escolha entre alternativas (que implica tomar o destino em suas mãos e fazer
sua própria história). Só que no episódio 67, Nico Robin aparece pela primeira
vez e tenta ajudar o bando pirata dos chapéus de palha indicando um caminho
mais seguro para Alabasta, visto que poderiam encontrar muitos inimigos à
frente. Luffy simplesmente rejeita a ajuda e diz que ele é quem decide os
rumos do navio. Em outras palavras, o protagonista quer realizar a escolha
entre alternativas e decidir o seu destino, bem como de seu bando.

Claro que se poderia indagar “Mas e se essa ação do Luffy já não for parte de
um destino, por mais que ele queira afirmar ser livre?”. Ainda assim o próprio
personagem refutaria isso, pois o mesmo quer se tornar o Rei dos Piratas e,
com isso, ter a maior liberdade do mundo, podendo viajar livremente pelos
mares (algo que somente seria possível com a já mencionada derrubada do
Governo Mundial). Mas... qual a resolução dessa tensão entre profecia/destino
versus liberdade?

Bem, esse desfecho ainda poderá ser melhor explicitado com o fim da obra
(One Piece). A princípio é possível refletir qual seria o resultado desta
contradição e se o anime vai caminhar para uma saída humanista. De um lado
tem toda uma profecia, inclusive prevista por uma tritã e do outro temos o
principal responsável pela mesma “cagando” para essa coisa de destino e
querendo se afirmar enquanto agente de sua própria história.

Jasão e o mito do herói solar


Se há algo que caracteriza uma história como a de One Piece em comum com
outras grandes epopeias de sucesso, é a ideia de um protagonista ou conjunto
de protagonistas que trava(m) um confronto do qual não faz(em) parte apenas
como indivíduo(s), mas também como parte de uma coletividade que
transcende seus interesses imediatos.

Eis a fórmula a que denominamos a jornada do herói. Mais do que isso, é uma
forma de contar uma história que inspira os jovens e que tem como mote o
arquétipo do herói solar: um tipo de aventureiro que se torna o centro dos

Novas Mídias e Orientalismos


20
acontecimentos de um mundo muito mais complexo ou que pelo menos se
torna um “sol” para um grupo de prodigiosos companheiros, que evoluem como
força harmônica e são capazes de vencer desafios aparentemente muito
maiores do que eles.

Um dos (inúmeros) mitos que se aproximam do mundo imaginado por Eiichiro


Oda é o do Jasão e os argonautas. As semelhanças são tantas que, tendo ou
não se inspirado nessa extraordinária narrativa do herói grego, precisam ser
notadas. Em ambos temos um protagonista que reúne companheiros para
cumprir uma missão, zarpam em um navio, enfrentam criaturas fantásticas que
aparecem no mar e seres com poderes sobrenaturais que planejam impedir o
avanço dos bravos aventureiros. É igualmente notável que, se para Jasão a
inexperiência e o fato de ainda não ter feito seu nome uma lenda torna
surpreendente o reconhecimento de sua liderança por guerreiros tão poderosos
como Hércules, Teseu e até mesmo alguns semideuses, da parte de Luffy suas
limitações de inteligência e em outras habilidades para além da luta contrastam
com o valor que ele projeta sobre o companheirismo e, portanto, o orgulho que
ele carrega em valorizar o papel que cada um pode desempenhar.

Em outras palavras, em ambos casos a figura do herói solar é possível


justamente porque tratam-se de indivíduos limitados, mas que movem
montanhas graças às suas capacidades de combinar esforços. E por que isso
seria relevante para discutir as noções de justiça e liberdade que o anime
apresenta? Vejamos: o personagem principal em cada uma dessas lendas
representa, por um lado, a antítese do salvador solitário e, por outro, da atitude
vilanesca que consegue o que quer por meio da manipulação dos outros
(STEPHANIDES, 2016). Os motivos que orientam um teor ético por trás do
desdobramento dos acontecimentos em cada uma das obras são diferentes.
Para Jasão – especialmente aquele representado por Menelaos Stephanides
(2016) – geralmente a complementaridade entre os tripulantes é interpretada
simultaneamente como sinal da fraqueza humana e da capacidade de superar
desafios por meio da união entre eles. O conto dos argonautas evoca na
mitologia grega a era dos heróis, uma fase nostálgica do nosso passado em
que as virtudes do guerreiro compensavam já um relativo afastamento dos
deuses. Ou seja, éramos obrigados a lutar, mas haviam aqueles que o faziam
com honra e por isso recebiam a bênção das divindades.

Ao contrário dos argonautas, os mugiwaras (plural de “chapéu de palha” em


japonês e a designação coletiva para o bando de Luffy) são representantes de
um imaginário popular moderno e em específico de um autor que – tudo indica
– não tem intenções de prestar homenagens aos deuses e tampouco de impor
limites às capacidades humanas de resolver seus próprios problemas. Pelo
contrário, One Piece é sobre o que as pessoas podem fazer para determinar
seus próprios destinos.

Por conseguinte, não há limites para o que podemos alcançar com nossas
ambições. A ideia é que nada que seja correto deve ser imposto. O sentido
ético da trama passa pela orientação subjetiva dos protagonistas. Ou seja,

Novas Mídias e Orientalismos


21
ninguém ali deveria fazer algo porque deve. Não há uma moral externa imposta
por autoridades de cunho sobrenatural. Ao invés disso há uma insistente
tentativa de desmitificar todo tipo de autoridade que se intitula como tal
(IZZOMBIE, 2020). Há, sim, o reconhecimento daqueles que deveriam ser
vistos como reis. Mas esse reconhecimento não se sustenta senão pelo apoio
popular.

O rei está nu. Esse é um dizer tão comum que faz parte de uma anedota sobre
a qual que poucas vezes refletimos. No capítulo 213 do mangá (ou episódio
128 do anime), o monarca de Alabasta abaixa a cabeça para os piratas que
acabaram de salvar seu reino e, após ser questionado sobre isso, justifica: “O
poder é algo que se veste sobre a roupa. Mas estamos no banho. Um rei nu
não é um rei. Como pai… e como cidadão desse país… eu sou muito grato a
todos vocês”. Antes de poder assinalar um gesto de submissão, tal postura
demonstra o sentimento de igualdade entre um membro da mais alta nobreza
do Governo Mundial e um infame grupo de criminosos.

O reconhecimento da autoridade retira do rei um status permanente de ser


intocável, de alguém que se sobrepõe aos demais e determina seus destinos.
Inverte, portanto, a tradicional lógica teísta do poder soberano: o poder não
emana de um ente sagrado que nasceu para ocupar o trono, como querem
fazer parecer os Dragões Celestiais. O poder emana do povo. E para
demonstrar isso Oda emprega o arquétipo do herói solar ao representar um
grupo que, partindo da escória da civilização em que o anime se passa, se
eleva ao ponto de se tornarem os representantes da união de todos os povos,
de todas as raças e da luta contra a opressão por aqueles que vestem o poder
(ao invés de serem investidos de uma condição de eleitos que diz que o rei
existe para o povo e não o contrário).

Conclusão: afinal, meu destino está traçado?


O futuro enquanto algo que possui um status de existência certamente, e essa
é a lógica, jogaria a ideia de destino como fator fundamental em One Piece.
Bom, pelo menos essa seria a regra. No entanto, quando Luffy diz que quer ser
o sujeito mais livre do mundo ao se tornar rei dos piratas, não só está
desconsiderando toda a profecia que se conta como também vai findar (aqui
tomando a imagem profética como correta) a possibilidade de limites não só
objetivos estabelecidos pelo Governo Mundial como, por exemplo, envolvendo
a Red Line e todo o nó atado em volta dos interesses dos dragões celestiais
(que inclusive impede que todos os outros indivíduos sejam livres), mas
também subjetivos: retirando o preconceito de que existem raças inferiores ou
a segregação.

O que se pode tirar dessa tensão entre destino e liberdade é que os chapéus
de palha precisam derrubar o Governo Mundial se quiserem ser donos de suas
próprias histórias e realizar seus sonhos. Ou seja, a cadeia determinística
somente findará quando aquela organização que colocou obstáculos que
restringem a liberdade das pessoas acabar. Até o momento no anime/mangá
não se diz (e aqui arriscamos dizer que na obra esse tipo de coisa não será

Novas Mídias e Orientalismos


22
dito) que o Reino Antigo estava destinado a ruir, mas sim que Luffy junto aos
seus companheiros estão destinados a extirpar a atual forma de configuração
do mundo. Isso significa que a liberdade é resultado da profecia, porém no
passado a segunda foi produto da primeira.

Portanto, a dialética de agora caminhará para o derradeiro fim de um mundo


dominado por “deuses” ou no fim das contas, deus (Im-Sama); que carregou
consigo uma longa narrativa e previsões direcionadas a um destino. O que virá
depois disso será a mais profunda leveza de se escolher qual alternativa seguir
sem que isto seja inconscientemente pré-determinado. A aposta aqui é de um
final humanista em One Piece.

Referências
Arthur é mestrando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
João é graduado em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas
Gerais

Mary Geoise. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Mary_Geoise?so=search.

Alvorecer do Mundo. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Alvorecer_do_Mundo.

Cipher Pol. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Cipher_Pol.

Nobre Mundial. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Nobre_Mundial.

Governo Mundial. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Governo_Mundial.

Kozuki Toki. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Kozuki_Toki.

Akuma no Mi. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Akuma_no_Mi?so=search.

Monkey D. Luffy. Disponível em:


https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Monkey_D._Luffy.

IZZOMBIE. O anti-autoritarismo de One Piece. 2020. Disponível em:


https://dentrodachamine.com/2020/06/23/o-anti-autoritarismo-de-one-piece/.

GOFF, Jacques Le. São Francisco de Assis. Ed. 10. Rio de Janeiro: Record,
2011.

STEPHANIDES, Menelaos. Jasão e os Argonautas. Ed. 4. Primeira Edição


Digital: Odysseus, 2016.

Novas Mídias e Orientalismos


23
MANGÁS DE SEGUNDA GUERRA: QUESTÕES DE
SENTIDO E TRAUMA EM ADOLF DE OSAMU TEZUKA
por Janaina de Paula do Espírito Santo

Adolf é um mangá [obra quadrinizada em estilo japonês] publicado por Osamu


Tezuka entre os anos de 1983 e 1985 no Japão, quando foi lançado no formato
de capítulos, sendo depois republicada no formato tanko, que é um
encadernado para colecionador: formato que normalmente é o traduzido para
os outros países. Após três anos do início de sua publicação, no ano de 1988,
a obra já foi encomendada para este formato, o que é considerado um
indicativo do apelo da série entre os leitores japoneses no período em que o
mangá foi lançado.

Embora tenha ficado conhecido inicialmente por suas obras voltadas ao público
mais infantil, esse título é considerado uma obra voltada ao público adulto, e
também, uma das mais importantes criadas por Tezuka.

Na história, enquanto tenta traçar uma visão multinacional e multifacetada


sobre a Segunda Guerra Mundial e o destino humano, Tezuka se utiliza de
elementos da história reconhecida sobre a acensão do nazismo, o impacto da
Segunda Guerra Mundial, bem como dos conflitos entre Israel e Palestina, nos
anos após o encerramento da guerra. Assim, sua narrativa começa nas
Olimpíadas de 1936, quando o personagem que vai narrar toda história - um
jornalista japonês chamado Sohei Toge - está na Alemanha cobrindo o evento.
Nesse momento, ele é envolvido em uma trama por seu irmão que tinha sido
assassinado, e era membro da juventude comunista , para manter a posse de
determinados documentos - que teriam o potencial de acabarem com o
nazismo. A partir daí, a vida de nosso repórter vive uma constante de
turbulências, fugas e tortura por meio da Gestapo. Enquanto essa parte do
enredo se desenrola, somos apresentados aos outros dois personagens que
são determinantes para a narrativa; Duas crianças, de nome Adolf Camil e
Adolf Kauffman. Os dois são amigos, crianças alemãs vivendo na cidade
japonesa de Kobe.

Essa história então passa a trabalhar narrativamente com o destino de três


personagens homônimos, que precisam administrar identidades conflitantes;
um judeu nascido no Japão, mas descendente de uma família alemã, um
menino filho do embaixador alemão com uma japonesa e o ditador nazista.
Osamu Tezuka opta em sua obra por acompanhar todo o desenrolar da
Segunda Guerra Mundial, preocupado em apontar a participação do Japão,

Novas Mídias e Orientalismos


24
chegando a representar graficamente a rendição representada pelas bombas
atômicas. Mas o seu foco narrativo está na figura dos diferentes homônimos, o
judeu, focado em organizar a resistência a Hitler em território japonês,
ajudando refugiados; o alemão–japonês, que se torna membro da SS e tem
que lidar com um conflito identitário triplo, entre seu relacionamento de
amizade com um judeu, sua natureza de mestiço e a constante indecisão que
vem com ela, e a construção de seu senso de pertencimento ao povo alemão;
e o ditador nazista, retratado como uma figura insana. A trama estende-se ao
longo da história, mostrando um último embate entre os Adolfs fictícios por
ocasião da ocupação da Palestina, onde o autor representa o exército
israelense reproduzindo antigas práticas nazistas frente aos diferentes
soldados mercenários que apoiam a causa palestina. Kaufman, o personagem
alemão se encontra lá, ao lado de outros ex-membros do exército alemão.

O conhecimento histórico é pano de fundo e uma espécie de norte para a


construção dessa obra, ainda que dentro de uma lógica da indústria cultural
que abre mão da profundidade em nome de uma narrativa de fácil
compreensão. Mostra o período como um momento perigoso, onde todas as
liberdades eram retiradas e os questionamentos inexistiam sem que houvesse
alguma consequência posterior. Um certo penhor pela interpretação histórica e
discussão do passado a partir de referências concretas sustenta as escolhas
do estilísticas do autor, como ele enfatiza nos dois momentos:

"Se fosse possível, adoraria ter ido a Berlim, mas acabei não tendo
essa oportunidade. O mesmo aconteceu no caso de Kobe. Isso
significa que há uma grande parcela de chute nas coisas que
desenhei. O que me salvou foram os materiais de referência que a
editora me enviou. O editor responsável pela série trabalhava no
setor de arquivos e se empenhou bastante para coletar
informações para mim. Portanto, acredito que pelo menos as datas
e as estatísticas correspondam à realidade". [TEZUKA, 2006, p.8]

"A única coisa que deu trabalho foi conseguir materiais de


referência. Foram três pessoas trabalhando em tempo integral, dois
editores e um especialista em coletar materiais de arquivo. Afinal
de contas, mangás são produtos essencialmente visuais. Não
funcionam sem verossimilhança. Por exemplo, se um escritor
quisesse usar o hall de um hotel famoso de Kobe como cenário,
basta descrevê-lo em um parágrafo como “o hall do hotel XX”. No
meu caso, precisaria ter, antes de qualquer coisa, uma foto do
local. Teria que saber como são o teto e o chão, para poder mudar
o ângulo de visão. Precisaria saber até como se vestiam as
pessoas que passaram por lá na época ou quais flores enfeitavam
o local em determinada estação do ano. A maior parte dos
materiais de referência foi queimada na época da guerra.
Tínhamos uma grande escassez de informações. Por isso, fiquei
muito feliz quando alguns leitores reconheceram o trabalho
detalhado que fizemos nessa obra. No entanto, ressalto que não

Novas Mídias e Orientalismos


25
tive a oportunidade de ir à Alemanha dessa vez [risos]. Desenhei
exclusivamente as lembranças que guardo de 25 anos atrás".
[TEZUKA, 2006, p.9]

Apesar da preocupação com a busca por informações para uma retratação


mais fiel do momento da Segunda Guerra Mundial, a obra não tinha como
objetivo primário um estudo histórico sobre aquele período, e sim a produção
de um mangá, uma história, uma mensagem, e até mesmo, um sucesso
editorial. Escrita nos anos 1980 é uma das únicas obras em que o autor se
utiliza do estilo Gekiká, mais realista e intimista, onde a narrativa adquire, por
vezes, um tom policial. Ainda assim, para Tezuka, o resgate histórico figurou
como um ponto crucial para sua escolha e tratamento da temática.

O argumento principal da história, as interações entre três homens, que


carregam o nome Adolf [Camil, Kauffman e o próprio Hitler, respectivamente] e
que tem conhecimento da existência de um dossiê, que por comprovar a
descendência hebraica de Hitler pode comprometer o avanço da ideologia
nazista permeia toda trama e em a partir desse conflito que a ideia de Guerra e
a importância da paz são exploradas. Em uma mistura entre os gêneros
policial, espionagem e aventura, Osamu Tezuka constrói uma história repleta
de questionamentos sobre esse período histórico, a humanidade e os valores
sociais em torno das motivações das pessoas. O discurso pacifista é um traço
sempre presente nas obras do autor, que via nos mangás uma oportunidade de
difundir ainda mais uma mensagem contra a guerra, a violência e a
discriminação como uma espécie de alerta:

"Eu vivi a época da guerra, por isso sempre tive vontade de deixar
um registro ao meu estilo daquela época [...] As crianças de hoje
em dia vem a Segunda Guerra Mundial da mesma forma que
encaram a batalha de Sekigahara ou a Guerra Russo-Japonesa, ou
seja, a distância, através dos livros de história. Mas no meu caso
aquilo não foi história foi realidade. A cada ano que passa a menos
gente capaz de contar o que aconteceu naquela época por isso eu
quis fazer a minha parte deixando mangá para posteridade[...]
Muitas imagens se misturavam na minha cabeça, muitos temas e
um e vinham e talvez haja até alguns pontos incoerentes na
história, mas o que eu fiz foi levantar a questão. O resto fica a
cargo da imaginação dos leitores”. [TEZUKA, Osamu. 2006 s./p.]

Neste trecho, publicado incialmente na revista Jose Seven, ainda no ano de


1986. Osamu Tezuka explora suas motivações para, naquela altura da carreira,
já um mangaká consagrado, ou “o Deus do Mangá”, em explorar um estilo e
uma temática não tão presentes em sua obra. Isso se dá no entendimento do
mangá como um artefato que lidaria com a memória, o passado e o tempo
histórico, de uma maneira diferente, portanto, do que usualmente se associa ao
conhecimento histórico escolar ou do conhecimento histórico acadêmico. De
certa maneira, nessa passagem, Tezuka encara sua obra como um espaço em
que o regime de memória se manifestaria de maneira diferente, e que, onde a

Novas Mídias e Orientalismos


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tensão entre passado presente e futuro pudesse ser dessacralizada. Que
passasse, portanto, a fazer parte de uma experiência, de um elemento de
formação de sentido do passado, tornado presente para cada leitor.

Neste sentido, o que quadrinho nos faria experimentar quase sensorialmente


no processo de leitura das imagens, também trabalharia com uma nova
dimensão do sentido político deste passado. A partilha é estética ao ser
efetuada num comum sensível, "como um sistema das formas a priori
determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do
visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar
e o que está em jogo na política como forma de experiência". [Rancière, 2005,
p.86]

Genericamente no Ocidente, os quadrinhos de temática histórica primam por


uma tentativa de “reconstituição histórica”, existindo na nossa cultura uma
valoração cada vez maior pela fundamentação factual. No mangá “histórico”
esta demanda não existe para validar a obra como parte do estilo, alterando o
tipo de relação com o passado: trazendo aberturas maiores para a
interpretação [valorando a noção autoral] e o espaço que este passado ocupa,
o que exige uma observação distinta.

Essa dinâmica é bem presente no mangá Adolf. Construída em uma


perspectiva de retrospecto, a primeira cena se dá em um cemitério. Ao
contemplar a lápide de Adolf Camil e registrar que o último sobrevivente da
história não mais existe, é que o narrador - Soge - se sente livre para contar a
história dos três Adolf - O que justifica o nome do mangá. O narrador, embora
personagem de toda ação ao longo dos cinco volumes que compõe a obra,
ocupa, algumas vezes uma espécie de alter-ego para o mangaká que escreve:
especialmente quando cumpre o papel de um personagem que explica e,
portanto, analisa e descreve a história a partir de um ponto de vista elaborado a
posteriori. Esse é um recurso que permeia toda a história, do começo ao fim.
Apresento, a seguir, um exemplo, no momento em que o personagem Toge, no
canto inferior direito, ao assistir o pronunciamento de Hittler toma uma
perspectiva separada da multidão e disseca o processo estético em que a
organização do partido é montada: "é como um ator de teatro subindo ao palco
para receber a ovação de seu público", como pode ser visto na figura abaixo.
Essa é considerada uma crítica posterior, na medida que a opção usual da
imprensa em 1936, o momento que é retratado no mangá na página a seguir
não apresenta essa percepção crítica do fascismo de maneira geral.

Novas Mídias e Orientalismos


27
Fonte: TEZUKA, 2006, pág. 72.

Chama a atenção o fato de que a preocupação de Tezuka era construir uma


experiência estética, ética, prática e política que não está limitada a uma
espécie de resgate de um passado a ser transmitido, no sentido dado ao
passado-monumento, sendo portanto, um objeto de consulta, mas de maneira
muito mais presente está sua busca em resgatar uma experiência, quase como
o narrador proposto por Walter Benjamin apresenta suas formulações. Ao
reconhecer suas motivações de trazer a história para o leitor comum, que, na
opinião do autor já estava perdendo o contato direto com aquele passado e
seus significados, Osamu Tezuka tentou dar voz às ações e sensibilidades e,
especialmente, abrir um espaço de sensibilização e empatia, permitindo uma
mobilização por meio de sua narrativa, ou em suas palavras apontar a
importância de levantar a questão para as gerações seguintes. De uma certa
maneira a guerra figura aqui como um acontecimento traumático, que deve ser
lembrado, e o autor narrador assume o compromisso com a posteridade ao
construir uma história em que esse passado mais do que retomado, é
explicado a partir de sua constituição e seu ponto de vista. Segundo Rüsen:

Novas Mídias e Orientalismos


28
"Não acredito que a história de hoje seja um culto de ancestrais,
mas ao menos possui alguma semelhança lógica com ele:
devemos nos dar conta que o pensamento histórico, em si, em sua
própria lógica, segue a lógica do luto, ao menos de maneira
parcialmente formal: transforma o passado ausente, que é parte
da identidade de alguém, em vida presente e atual. De fato, é só o
próprio passado que é importante para a pessoa no presente
que pode se tornar história".

Se pensarmos no quadrinho como uma experiência narrativa dinâmica, com


um espaço de mobilidade múltiplas, podemos considerar que o quadrinho
histórico é um elemento importante nesse processo de tornar o passado
ausente parte da identidade de alguém. Abrimos um leque de possibilidades a
ser considerado, tanto no uso desse tipo de material para o ensino de história,
quanto no trabalho de mangás enquanto fonte.

Tezuka, no momento em que escreve o quadrinho representa um


posicionamento clássico da sociedade japonesa de sua época: encara a guerra
como um ponto da história a ser superado, como um efeito do militarismo
japonês e exalta a decisão posterior do posicionamento politico pacifista que
marcou a reconstrução da sociedade japonesa nos anos do pós guerra.

No mangá Adolf, essa opção é bastante marcada em toda a narrativa e por


diferentes momentos o argumento de que o Japão seria o único país que
“aprendeu com a guerra” se apresenta. Essa formulação é influenciada pela
elaboração da história japonesa do pós guerra: uma “narrativa fundadora”, que
era comum no Japão no período em que a obra foi pensada:

"No final da Guerra, os EUA e o Japão, em certo sentido,


escalaram a si mesmos como personagens de um melodrama que
culminou na demonstração de um poder atômico nunca antes visto.
Através da bomba, os EUA, classificados como um sujeito
salvaram e converteram o Japão, classificado como objeto
feminino. A chamada decisão divina de Hirohito, participou deste
drama ao aceitar o poder superior dos EUA. Apesar dessa
hipérbole, essa narrativa popular foi efetiva ao definir a percepção
dos dois países da guerra e como ela chegou ao fim”.[IGARASHI,
2011, pp. 59-60].

Tezuka apresenta uma linha semelhante também na apresentação visual e


narrativa do personagem histórico principal do seu enredo, o Adolf Hitler, que é
construído como uma pessoa cruel e mentalmente desequilibrada, o que
permite que a história se desenrole explorando a possibilidade da Guerra ter
sido efeito da loucura de um homem. Percebemos portanto, que o mangá Adolf
é reflexo das leituras de seu tempo e o entendimento de seu autor e do
pensamento nipônico do momento em que foi escrito, mas a obra e sua
permanência podem ser exploradas em diferentes sentidos, e está sempre
tornado presente no processo de construção de sentidos e identidades

Novas Mídias e Orientalismos


29
históricas de cada um de nós, seja nos ambientes formais de aprendizagem, ou
nos objetos de cultura histórica, como no caso do mangá.

Referências
Dr Janaina de Paula do Espírito Santo é professora de História na Universidade
Estadual de Ponta Grossa, onde pesquisa quadrinhos e mangás, e seu diálogo
com a história e a didática da história. É integrante do Grupo de Estudos em
Didática da História [GEDHI].

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da Memória: narrativas do pós guerra na cultura


japonesa. São Paulo Annablume, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução:


Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005.

RÜSEN, J. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-


história. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of
Historiography, Ouro Preto, v. 2, n. 2, p. 163–209, 2009. DOI:
10.15848/hh.v0i2.12. Disponível em:
https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12.

TEZUKA, Osamu. Adolf, Vol. 1. São Paulo: Editora Conrad, 2006.

TEZUKA, Osamu. Adolf, Vol. 2. São Paulo: Editora Conrad, 2006.

TEZUKA, Osamu. Adolf, Vol. 3. São Paulo: Editora Conrad, 2006.

TEZUKA, Osamu. Adolf, Vol. 4. São Paulo: Editora Conrad, 2006.

Novas Mídias e Orientalismos


30
“SEU NOME GRAVADO EM MIM”: UM BREVE RELATO
DA RESISTÊNCIA QUEER EM TAIWAN E A ÓTICA
CINEMATOGRÁFICA por Kawanna Alano Soares e
Gabriella Onofre

Introdução
Em sua constituição, Taiwan nunca havia experimentado um corpo de
legislações anti-homossexualidade. Até mesmo durante a Ocupação Militar
Japonesa no país (1895-1945) não existia nenhuma lei contra a
homossexualidade masculina – isto porque a própria tradição japonesa detinha
uma percepção do homoerotismo muito semelhante à da China pré-moderna,
ou seja, como uma forma de expressão e extensão do próprio poder social –,
entretanto as desigualdades de gênero cegavam a sociedade em relação ao
erotismo feminino [LEE, 2017].

Ocorre que, com o findar da Segunda Guerra Mundial, os anos subsequentes


foram marcados por grandes mudanças na comunidade internacional como um
todo. O avanço do comunismo pelo Oriente, encabeçado pela União Soviética,
alterou as estruturas políticas e sociais de muitos países – incluindo a China,
que devido a Revolução Xinhai de 1911, havia saído de um regime monárquico
para uma República instável, baseada em um governo provisório. Com o novo
sistema político e o país conturbado, movimentos separatistas foram surgindo
em todo o território, concentrados principalmente no sul e liderados pelo
Kuomintang (KMT), também conhecido como Partido Nacionalista Chinês
[KONG, 2019].

Nesse ínterim, após a China continental passar pela Revolução Comunista, em


1949, o Kuomintang (KMT) foi forçado a se retirar para a ilha de Taiwan onde,
através de seu poder e influência, instaurou a Lei Marcial, torturando e
executando milhares de pessoas num período conhecido como “Terror
Branco”. Além disso, a anterior situação em relação à comunidade queer foi
alterada com a chegada deste Regime Autoritário de Chiang Kai-shek (1950-
1975), promulgando a Lei da Indecência que proibia o uso de roupas
consideradas inadequadas em relação ao papel de gênero exercido pelo
indivíduo [LEE, 2017].

Inicialmente, o Partido Nacionalista perseguiu políticos opositores, intelectuais


e a elite da ilha; mas não demorou muito para que prendessem qualquer
pessoa, independente de classe social ou ocupação, que indicassem qualquer
simpatismo ao comunismo ou que se recusasse a seguir a nova ordem

Novas Mídias e Orientalismos


31
imposta. Apesar disso, a oposição formal e organizada à esse sistema
começou a dar sinais de seu surgimento após o incidente de Kaohsiung, em
1979, onde o Partido Nacionalista Chinês aprisionou participantes de um
protesto anti-governo, organizado pela Revista Formosa [TAI-LIN, 2005].

A declaração de Anne Frank, em seu diário escrito durante o período nazista


na Alemanha, pode ser aplicada nesta situação, isto porque mesmo os
cidadãos não estarem autorizados a terem um posicionamento, com o governo
dizendo-lhes: “para manter a boca fechada, mas não podem impedi-lo de ter a
sua própria opinião. Mesmo que as pessoas ainda sejam muito jovens, elas
não devem ser impedidas de dizer o que pensam” [1947, p. 144].

Logo, a população taiwanesa se organizou contra a opressão do partido,


independente de todas as tentativas de repressão e controle realizadas pelo
KMT durante as quase quatro décadas no poder. Em 1986, a resistência, que
clamava por um governo democrático fora da Lei Marcial, resultou na criação
do Partido Democrático Progressista – em inglês Democratic Progressive Party
(DPP) –, se opondo ao KMT. No ano seguinte a Lei Marcial é derrubada, após
38 anos em vigor, e o Partido Democrático Progressista assume o poder. A
ativista Annette Lu, em 2005, declarou sobre este ocorrido que: “As pessoas
devem perdoar, mas nunca devem esquecer uma página tão trágica da história
de Taiwan" [TAI-LIN, 2005].

Após a abolição da Lei Marcial, nos anos 90 começaram a emergir movimentos


das minorias sexuais e de gênero, The Movement. Onde a, assim conhecida,
Coalizão Arco-Íris opunha-se contra quaisquer tipo de controle sobre os corpos
ou sexualidades alheios, mobilizando pessoas em larga escala em busca da
mudança social. Se for realizada uma comparação, existem aspectos do
Movimento Taiwanês que não pode ser aplicado ou compreendido pelo Euro-
Americano; isto porque abrange o confucionismo e ambivalência da população,
voltada para o regime de Partido Único da China e ao imperialismo cultural
“ocidental” no pós-Guerra Fria [LEE, 2017].

As consequências do colonialismo na Ásia afetaram inclusive a concepção de


sexualidade, justamente por isso a coalizão arco-íris se apresentava como um
projeto de descolonização em curso, carregando valores identitários e
ideológicos; onde o “Movimento não é mais apenas uma guerra entre
ingovernáveis queers e os outros normativos, mas um processo de
democratização do próprio ‘ativismo’” [LEE, 2017, p. 3] e os taiwaneses, que
haviam contestado o governo autoritário, levantavam-se novamente contra a
repressão das minorias.

A dicotomia da existência queer na China, Hong Kong e Taiwan


Nos três espaços chineses – China continental, Hong Kong e Taiwan – as
identidades queer são fortemente caracterizadas e marcadas pelas diferentes
tradições nacionais, culturais e estruturas sociais; revelando formas muito
específicas de ativismo cívico-político.

Novas Mídias e Orientalismos


32
Isto porque Hong Kong, como uma colônia britânica de 1842 a 1997, destacou-
se da China Continental na era Pós-1949; em que desenvolveu uma cultura
colonial distinta, enfatizando o Estado de Direito com liberdade de expressão e
o empreendedorismo econômico. Apesar de grande parte da população da ilha
ser originária da China continental, a identidade Kong, em oposição à chinesa,
surgiu em 1960 com a vinda da geração pós-guerra nascida localmente. Ainda
mais com um governo colonial tentando reforçar o ideário da sociedade de
Hong Kong ser capitalista moderna, contrastando com uma “China comunista
atrasada” [KONG, 2019].

Entretanto, esta identidade política foi suprimida pelo desenvolvimento da


identidade cultural, decorrente do sucesso econômico e a expressão cultural.
Neste espaço, analisa-se uma Comunidade Queer foi criminalizada em 1842
sob o domínio britânico e depois descriminalizado pelo governo colonial, em
1991. Mesmo que a homossexualidade nunca tenha sido uma ofensa criminal
em Taiwan, os homens eram frequentemente acusados de ofensas contra
“costumes virtuosos” (shanliang fengsu) sob a Lei de Infração Policial [KONG,
2019].

Em Taiwan, a população consistia em um pequeno número de taiwaneses


austronésios aborígenes e uma maioria de chineses Han, e em sua
constituição passou por diversos governos. Esteve sob o controle do Império
Japonês, do partido Kuomintang de Chiang Kai-shek e, após sua derrota, pelo
Partido Comunista de Mao Zedong em 1949. Sendo que cerca de duas milhões
de pessoas, da China continental, fugiram para Taiwan; tentando-se consolidar
a cultura chinesa, purgar as influências japonesas e suprimir qualquer cultura
local taiwanesa. A ilha gradualmente constituiu uma identidade taiwanesa
distinta, em vez da chinesa – primeiro sob o presidente do KMT, Lee Teng-Hui
eleito em 1996, e depois sob o presidente pró-independência do Partido
Democrático Progressista Chen Shui-bian de 2000 a 2008. Sendo que em
2016, nesta ilha, os jovens gays taiwaneses já vinculavam sua identidade
sexual com orgulho, dentro de sua identidade nacional [KONG, 2019].

Na China Continental, a identidade nacional foi firmada sob o pano de fundo do


“Século da Humilhação Nacional” sofrido desde a dinastia Qing. Em seu
período republicano (1919-1949), a política nacional chinesa focou na
construção de uma identidade da nação em relação à ocidentalização. Durante
o período de Mao (1949-1978), voltou-se para um coletivismo com viés
marxista-maoísta-leninista, caracterizado pela humildade, altruísmo e
patriotismo. Desde a abertura em 1978 ao continente, o país passou por
transformações, com uma abordagem mais agressiva e assertiva para
construção da nação; definindo valores e perspectivas próprias. Crescendo,
cada vez mais, o ideário da União Chinesa em busca de uma unificação de
diferentes raças e etnias, incluindo tibetanos, uigures, taiwaneses, hong-
kongers e macaenses [KONG, 2019].

Sendo despenalizado o crime de “hooliganismo”, usado para prender


homossexuais na China Continental, apenas em 1997 e ainda a Associação

Novas Mídias e Orientalismos


33
Psiquiátrica Chinesa deixou de considerar a homossexualidade um doença
mental em 2001. Destaca-se ainda que o antigo modelo ocidental médico, que
caracterizava os homossexuais como doentes mentais ou desviantes sociais,
foi extremamente influente nos três locais e por mais que a sua influência
esteja gradualmente diminuindo, ainda marca a sociedade. Podendo ser
percebido na prática ainda existente na China Continental da “terapia de
aversão'', que busca tornar pessoas homossexuais em heterossexuais [KONG,
2019].

A ilha de Hong Kong, do pós-guerra, foi influenciada principalmente pela cultura


britânica e a de Taiwan pela cultura estadunidense. Ainda assim os três locais
têm uma orientação voltada principalmente ao mercado, que desempenha um
papel relevante na formulação da sociedade moderna e das identidades
tongzhi, sinônimo de LGBTQ, que surgiram na década de 1980 e 1990. Onde o
pink money, dinheiro decorrente de pessoas da comunidade queer,
desenvolvido dentro da economia de Hong Kong impactou de forma
particularmente impressionante a China Continental da época. Desenvolveu-se
então uma infraestrutura de consumo desta economia rosa, visibilizando "gays
ocidentalizados do guetos” [KONG, 2019].

Nos anos 2000 surgiu o ativismo queer, inspirado pela ascensão de


movimentos políticos LGBTQ no Ocidente. Nota-se no âmbito cinematográfico
as diferenças de abordagens dos três locais em relação a conteúdos que
envolvem a Comunidade Queer; onde na China Continental a censura escala
de forma veloz, implementando-se cada vez mais regras em torno de
demonstrações homoafetivas nos setores de comunicações; em compensação
Hong Kong e Taiwan, que possuem raízes divergentes na sua construção de
identidade, investem cada vez mais em produções queer.

A organização da comunidade queer em Taiwan


Independente de seu amplo reconhecimento como o país mais progressista em
relação aos direitos sexuais e igualdade de gênero no leste da Ásia, em Taiwan
ainda levantavam-se oposições em relação ao The Movement, que se
firmavam sob o pretexto de serem os guardiões da família e da infância,
pautando seus valores tradicionais na mescla do cristianismo e do
confucionismo.

Este conservadorismo emergiu em 2012, queixando-se vigorosamente contra


as Paradas do Orgulho LGBT+ em Taiwan, quando este introduziu a ideia de
“Revolução do Casamento''. A coalisão encontrou resistência quando procurou
promover um currículo de Ensino Médio que abordava o tema ‘sexualidade’,
em 2011, e ao pedido de Emenda do Código Civil em busca de reconhecer as
diferentes formulações de ‘família’, em 2013 – em vez do simples casamento
entre pessoas do mesmo sexo [LEE, 2017].

Em meados de 2013, de forma controversa, o Orgulho LGBT+ de Taiwan


incluiu o conceito de ‘refugiados sexuais’, defendendo a liberdade sexual de
todos que tinham seu eroticismo degradado ou marginalizado - incluindo

Novas Mídias e Orientalismos


34
incesto, relacionamentos poliamorosos, praticantes de BDSM e de chem-sex,
entre outros. Esta ação deu início a debates furiosos dentro da própria
comunidade, onde os guai-bao-bao (“bons gays”) sentiram-se humilhados
pelas ideias do movimento. Estas demandas por “libertação” sexual, e não o
simples reconhecimento legal e inclusão social, faccionaram o ativismo [LEE,
2017].

Outro conflito veio à tona em 2015, quando na Parada do Orgulho LGBT+, com
o tema “Aja quem você é, não a sua idade”, a ramificação Frente Democrática
Popular discursou a favor da descriminalização das atividades sexuais
consensuais envolvendo crianças e jovens. Este ato afetou gravemente as
eleições parlamentares daquele ano de candidatos gays e lésbicas, dificultando
a sua participação e o diálogo com os eleitores. Sendo possível identificar as
formas como o Movimento era visto sob um caráter unitário, mesmo sendo
fortemente heterogêneo [LEE, 2017].

Apesar dos conflitos e cóleras dentro do próprio Movimento, com a nova


liderança no governo ocorreram mudanças importantes nas mais diversas
áreas, incluindo referente às pessoas LGBTQIA+. Ressalta-se que desde o
início dos anos 2000 vários direitos notáveis da Comunidade Queer estavam
sendo conquistados – como o que permitia que gays, lésbicas e bissexuais
ingressassem abertamente no exército [TAIWAN, 2002]; a proibição da
discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual pela Lei
de Educação pela Equidade de Gênero [TAIWAN, 2004]; a ilha tornou-se a
primeira localidade na Ásia a reconhecer legalmente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo [TAIWAN, 2019]; e a retirada da obrigatoriedade da
cirurgia de resignação de sexo para a mudança de gênero em documentos
oficiais [TAIWAN, 2021].

Apesar desses grandes avanços, a luta pela conquista desses direitos não foi,
e continua não sendo, fácil nem rápida; principalmente nos primeiros anos após
o fim da Lei Marcial. Isto porque, mesmo que Taiwan nunca tenha proibido a
homossexualidade, as pessoas da comunidade LGBTQIA+ sofriam com uma
forte e violenta discriminação, devido a inclusão da dicotomia
homo/heterossexual criada pelo Ocidente Moderno e forçada contra a Ásia
durante o Neo-Colonialismo [LEE, 2017].

O filme “Seu Nome Gravado em Mim” – Your Name Engraved Herein, em


inglês, e 刻在你心底的名字 em chinês –, de 2020, mostra parcialmente esta
realidade sob o ponto de vista de dois estudantes de uma escola militar no
primeiro ano depois da derrubada da Lei Marcial. É importante analisar a
importância cinematográfica em tornar visível e impedir o apagamento de
acontecimentos, para que então a civilização conheça sua história e evite
cometer os mesmos erros.

Análise cinematográfica e impactos de “Seu nome gravado em mim”


Dirigido por Patrick Kuang-Hui Liu, “Seu Nome Gravado em Mim” ocorre dentro
de uma escola militar, em 1987, onde dois rapazes tornam-se amigos e

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acabam se apaixonando. Durante o filme, há diversas cenas mostrando a
discriminação contra pessoas LGBT+ – como uma agressão de um menino gay
no banheiro da escola; a detenção do Manifestante Chi Chia-wei, em
homenagem ao ativista pelos direitos LGBT+ em Taiwan; e entre outras. Estes
ocorridos fazem com que os protagonistas tenham medo de demonstrar os
sentimentos que guardam.

Concomitantemente, a trama intercala com a história de um dos protagonistas,


chamado A-Han e interpretado por Edward Chen. Relatando algumas
conversas do menino com o padre católico da escola, onde conta sobre sua
paixão secreta e questiona por quê seu amor vai em objeção aos
ensinamentos da bíblia. Em que, uma das dúvidas levantadas por A-Han ao
padre, declarava de forma visceral, balançando o telespectador: "Deus não
disse “Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes
será aberta”? Eu tenho batido à porta com tanta força. Por que Ele não
escuta?” [SEU NOME GRAVADO EM MIM, 2020].

O Diretor Patrick Liu relata que ao escrever o roteiro, por ter nascido e sido
criado em um ambiente cristão, pensou que: “ninguém pode desempenhar o
papel de Deus e julgar as pessoas por seu gênero ou por quem elas querem
amar”. Evidencia-se que 80% do arco de A-Han é baseado na própria
experiência do diretor, expondo que não tinha a intenção inicial de fazer um
filme gay, mas sim de uma experiência pessoal: “É sobre o meu primeiro amor
e, meu primeiro amor, aconteceu de ser uma história sobre um garoto gostando
de outro” [TIME, 2020, tradução própria].

O filme “Seu Nome Gravado em Mim” é a obra cinematográfica LGBT+ de


maior bilheteria em Taiwan, recebendo diversas indicações no Golden Horse
Award e levando alguns prêmios para casa, muitos consideram o filme como
um “futuro clássico do cinema LGBT+”. Todavia, o diretor ainda acrescenta que
“esse filme não é apenas sobre amor, mas também sobre os direitos LGBT em
Taiwan. Eu espero criar um filme para contar suas histórias e, que as
comunidades LGBT, se sintam livres para amar agora” [LIU, 2021, tradução
própria].

Considerações finais
É notável a diferença histórica dos Direitos da Comunidade Queer em Taiwan,
que perpassou por períodos de normalidade para invisibilidade, agressões,
ilegalidade, legalidade e, a então busca por, inclusão social. O país deixou de
ser um lugar com uma discriminação opressiva em cima da comunidade
LGBTQIA+ no Século XX para uma das mais desenvolvidas em questão dos
direitos deste grupo no Século XXI.

Entretanto, há a necessidade de deixar fresco, na memória do povo taiwanês e


do mundo, os caminhos e a luta que essa minoria enfrentou e ainda enfrenta;
sendo relevante ressaltar a fala do ativista Yang Hsien-hung, sobre o período
do Terror Branco em Taiwan: "Embora seja doloroso relembrar as injustiças do
passado, fazer isso é nossa melhor defesa contra a repetição" [YANG, 2005].

Novas Mídias e Orientalismos


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O exemplo taiwanês mostra como a ingerência internacional afeta o
desenvolvimento nacional. Normas estatais, governança e opressão de
minorias de gênero e sexuais apresentaram-se em Taiwan, onde o Estado e
Organizações Não-governamentais Cristãs Conservadoras dificultaram ainda
mais o ativismo da sociedade civil. Não existindo mais a ideia de uma oposição
nítida entre o povo e o estado, o local ou o global, isto porque esta junção
tornou-se obstáculo considerável à libertação de queers marginalizados [HO,
2010].

E uma das formas de se manifestar e lutar por direitos é através dos setores de
comunicação – televisivos, cinematográficos e entre outros –, onde a
representação e o ato de normalizar práticas e identidades queers é essencial.
Encaixando-se nesta magnitude, um dos objetivos almejados pelo filme de
Patrick Liu, em mostrar que a comunidade LGBTIA+ pode ter liberdade e
esperança, mas sem nunca esquecer como ela foi conquistada.

Nesta toada, cita-se Elie Wiesel [1986], sobrevivente do Holocausto e autor de


renome mundial, que em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz
expressou: “Tentei manter a lembrança viva, que tentei lutar contra aqueles
que se esqueceriam. Porque se nos esquecermos, seremos culpados, seremos
cúmplices. [...] E que é por isso que jurei nunca ficar em silêncio quando e onde
quer que seres humanos passem por sofrimento e humilhação. Devemos
sempre apoiar os lados. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O
silêncio encoraja o atormentador, nunca o atormentado”.

Referências bibliográficas
Bacharel Kawanna Alano Soares, graduada pela Universidade da Região de
Joinville (Univille), no curso de Ciências Jurídicas, em 2020. Especialização em
Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul em andamento. Currículo Lattes disponível em:
http://lattes.cnpq.br/7931975558100604.

Graduanda Gabriella Onofre, cursando História na Universidade Estadual do


Centro-Oeste no Paraná, no curso de Licenciatura em História. Currículo Lattes
disponível em: http://lattes.cnpq.br/2210578739816548.

FRANK, Anne. O Diário de Anne Frank. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.

HO, J. C. Queer Existence under Global Governance: A Taiwan Exemplar.


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KONG, T. S. K. Transnational queer sociological analysis of sexual identity and


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Journal of Sociology, 2019. DOI:10.1111/1468-4446.12697. Disponível em:
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LEE, P. H. Queer activism in Taiwan: An emergent rainbow coalition from the

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assemblage perspective. The Sociological Review, 65 (4), 682–698, 2017.
DOI: 10.1177/0038026116681441. Disponível em:
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MOON, Kat. The Real Events That Inspired Your Name Engraved Herein,
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da Netflix. China, Taiwan: Netflix, 2020. Disponível em:
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Novas Mídias e Orientalismos


38
MEMÓRIA E DOR EM HADASHI NO GEN (1983):
TRAÇOS DO TRAUMA DA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL por Douglas Pastrello

Introdução
A Segunda Guerra Mundial tem sido um tema de amplo debate na História
contemporânea. Fato que se deve principalmente pela sua retração na Cultura
Pop e suas grandes reverberações político sociais. Tendo sido um evento de
escala global que moldou o pensamento das décadas seguintes, é natural que
se tenha um interesse demasiado por esse nicho histórico.

Entretanto, apesar disso o tema vem sendo explorado de maneira repetitiva


com grande foco no aspecto militar. Evidentemente, se tratando de uma guerra
de proporções globais é imprescindível que os combates e leituras militares do
processo sejam importantes nas análises históricas. Porém, isso não significa
que não existam outras camadas tão presentes quanto diretamente ou
indiretamente, assim como Hobsbawn (1997) afirma a partir de seu conceito de
“Guerra Total”. Ou seja, a 2ºGM pode ser vista a partir de seu escopo civil-
social e/ou militar.

Partindo desta premissa, o presente ensaio busca dialogar com a perspectiva


civil do conflito, tomando como base para análise a obra semi-autobiográfica de
Keiji Nakazawa, Hadashi no Gen(no Brasil “Gen pés descalços”). Isso significa,
também, que esta pesquisa parte do escopo cultural japonês, valendo, assim,
de uma ressalva relevante sobre a necessidade de não tratar o conflito como
um maniqueísmo simples do “bem contra o mal”. O principal objetivo ao retratar
sob o mencionado ponto de visto é para demonstrar os traumas e dores que a
guerra pode causar no âmbito civil, assim como a devastação causada pelos
bombardeios atômicos de 1945.

Não obstante, isso não significa ignorar os crimes de guerra cometidos pelo
Império japonês, mas apenas uma separação do agente Estado do indivíduo
(civil), ilustrando como mesmo no Japão, o militarismo excessivo do Império
japonês, assim como sua estrita “cultura da honra”, eram nocivos inclusive a
própria população.

Logo, consideramos que o presente anime é uma obra cinematográfica. O


cinema, conforme disserta Marcos Napolitano (2005), possui uma linguagem
própria e deve ser visto sob suas próprias lentes. Deste modo, o cinema deve
ser levado em consideração a partir de todo o seu conjunto: cortes de câmera,

Novas Mídias e Orientalismos


39
trilha sonora, atuação, roteiro. Tudo feito sob a intencionalidade do diretor e
dos subnúcleos que formam o filme. O anime, segue os mesmos moldes de
intencionalidade, mesmo que os atores reais apareçam apenas por meio da
voz. Soma-se a isso outras particularidades do longa, na tela animada não há
nada que não seja feito sob total intenção uma vez que este anime é feito ao
estilo hand-drawn(literalmente desenhado a mão) e não possui CGI(computer
generated imagery, imagens feitas por computador).

A escolha do filme em específico vem ao encontro diretamente do que a


metodologia de cinema transparece na História: “é o reconhecimento de que
todo filme é um objeto de análise para o historiador” (KORNIS, 1992, p. 7).
Entretanto, torna-se necessário reconhecer que o filme, ao mesmo tempo que
é objeto da História, pode se tornar um “agente da História” por seu caráter
visual, didático e doutrinante, como relembra Kornis citando Marco Ferro
(KORNIS, p. 8).

O caráter doutrinante do filme é compreendido como a força narrativa que o


filme possui e como ela pode encontrar respaldo nos espectadores. Entretanto,
o filme não pode ser visto como uma “verdade histórica”, sendo considerado
como uma leitura da realidade sob o ponto de vista de seus autores. A
linguagem técnica do filme requer uma análise própria que transcende a
análise imagética e encontre leituras que envolvam toda a produção, tal como
atuação, trilha sonora e enquadramento, por exemplo.

Conforme visto por Valim(2006. p. 201) esta linguagem própria do filme requer
uma abordagem “plano a plano” detalhada. Como plano a plano entende-se
nesta pesquisa os enquadramentos cinematográficos, em que toda vez que um
novo enquadramento surge na tela, há um novo “corte de plano”. O anime
apesar de não ser filmado e, mas sim animado, também é moldado na mesma
forma, suas cenas são animadas em enquadramentos de modo que o
telespectador sinta-se observando um filme. Logo, a animação também possui
recursos e técnicas do cinema, mesmo que produzidas de forma diferente.

Para análise serão utilizadas das propostas feitas por Valim (2006) em sua tese
de doutorado: uma a análise inserida em quatro etapas, contexto da produção,
narrativa fílmica, níveis semânticos e as redes temáticas ou representacionais.
Porém, neste ensaio será considerado um quinto elemento de análise fílmica,
partindo do filme enquanto “agente da história”, sob a conceituação do “lugar
de memória” de Pierre Nora (1993).

Por contexto da produção compreendemos a intencionalidade do diretor e da


produção do filme, qual momento ele está inserido e se insere. No caso da
obra deste ensaio, deve ser considerado a vivência do Japão Imperial nos
momentos finais da 2ºGM e o choque social político causado pelos
bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki.

Na narrativa fílmica será empenhado um esforço para delinear os recursos


cinematográficos na mensagem do filme, tais como enquadramento, roteiro,

Novas Mídias e Orientalismos


40
trilha sonora. Tomando essa questão como peça importante na abordagem
histórica da obra, a análise levará em consideração todos os elementos que
compõe o plano fílmico e de que forma eles contribuem para a narrativa.

O nível semântico é definido por Valim como a “ordenação em níveis


semânticos do discurso” (2006. p.202), ou seja, como o discurso fílmico é
passível de ser interpretado sob a luz de seu contexto, da memória e do pós-
guerra – no caso de Hadashi no Gen. Por último, a interpretação baseada nas
“redes temáticas” é a análise de como os temas que compõe o filme
transparecem na tela e de que forma foi a recepção do filme.

Assim, análise cinematográfica deve considerar os elementos “não-visíveis”,


dentro e fora do filme. Seja as questões implícitas e culturais presentes no
longa, respaldada pelo contexto local de seu espectador ideal, seja, pelo
aspecto externo: sua recepção, reconhecimento social e o que o filme significa
em geral para o que ele visa retratar.

Por fim, o filme será considerado como um “lugar de memória”, conceito de


Pierre Norá(1993) que diz respeito a como atribuímos uma aura simbólica de
narrativas prontas para determinados objetos. Para o teórico, um “lugar de
memória” pode residir nos aspectos físicos, tais como um monumento empírico
ou nos simbólicos, como em um feriado nacional. O que une os lugares de
memória é o fato de eles possuírem uma narrativa pronta implícita a si que
serve como gatilhos para seus interlocutores. Porém, o interlocutor de um lugar
de memória só compreende sua narrativa simbólica caso tenha o devido
contexto histórico e cultural de sua produção, um estrangeiro que desconhece
os signos nacionais brasileiros, assim como nossa história nacional, é incapaz
de compreender os signos dos desfiles militares do 7 de setembro em nosso
país. Por outro lado, alguém familiar a esse contexto cultural e histórico é
capaz de associar o feriado, suas festividades ao mítico grito do Ipiranga de
1822 e como esses rituais da data demarcam parte de nossa história nacional.

Vale mencionar, ainda, que o filme possui um caráter estético associado ao


gosto. Deste modo, é esperado que o filme possa ser analisado enquanto arte,
despojando de subjetivismos intrínsecos a cada espectador, porém não será do
feitio deste ensaio trabalhar a obra nestes aspectos.

A animação enquanto História


O anime em questão é uma mistura de elementos históricos do período final do
Japão Imperial com as memórias do autor, assim como um toque de sua
subjetividade artística. A obra, baseada em um manga homônimo de dez
volumes é um registro semi-autobiográfico de Keiji Nakazawa, um hibakusha
(sobrevivente das bombas atômicas). Considerando as diferenças entre o
manga e o anime a presente pesquisa terá foco apenas na versão
cinematográfica.

Considerando os temas mencionados e que são abordados no filme, será


preciso recapitular brevemente como era a vida neste Japão imperial e de que

Novas Mídias e Orientalismos


41
modo essa vivência influenciou os eventos retratados no longa. A trama do
filme, nos apresenta a família de Gen e o contexto social sob o qual estão
inseridos. Na história, a família de Gen vive no Japão durante os momentos
finais da Segunda guerra e sofre uma perseguição social por conta das
opiniões políticas de seu pai sobre a guerra. Durante o filme conhecemos Gen,
seu irmão mais novo, sua mãe e seu pai. Sua mãe é vista como atenciosa e
amorosa, sempre próxima das crianças, enquanto o pai é visto como um
trabalhador árduo e que não tem medo de externalizar suas opiniões mesmo
que causem consequências negativas. As crianças, Gen e seu irmão Shinji,
são levados e brincam nas ruas.

O primeiro momento da trama é a apresentação da família e do contexto


histórico. Eles vivem em 1945, nos momentos finais da Segunda Guerra
Mundial. A crise pela qual o Japão passa após sucessivas derrotas no Pacífico
já é sentida em casa e a família sofre com a fome e falta elementos básicos,
tendo como o principal problema a mãe que está gravida e passando por
desnutrição. O segundo momento da trama se concentra nos esforços da
família para contornar a crise da fome e convencer o pai a guardar suas
opiniões políticas para si, para que não sofram mais consequências. Por fim, o
último ato do filme se dá após o bombardeio atômico em Hiroshima,
demonstrando a destruição resultante, tal como a perda na família de Gen, que
somente ele e sua mãe grávida sobrevivem, finalizando o arco narrativo com o
nascimento de sua irmã.

As opiniões do pai são vistas como atos de “traição”. Durante o Japão Imperial,
era esperado uma lealdade completa dos súditos que deveriam colocar as
necessidades da nação acima das próprias. Esse fato se intensifica ainda mais
mediante a entrada do império nos conflitos do pacífico. Assim, a perseguição
social e política sofrida pela família de Gen ocorre, pois, eles não são vistos
como cidadãos plenos do império. Fato que se intensifica ao considerar que o
único personagem a ter empatia pela família é um coreano, estrangeiro, semi
prisioneiro do Japão. Vê-se, além disso, que a repressão ocorre de maneira
orgânica sem necessariamente envolver órgãos estatais.

A principal mensagem a ser compreendida no longa é o pacifismo anti-guerra,


como a guerra desenrola nos núcleos sociais de um país e que civis continuam
sendo civis independente de qual lado sua nação esteja na guerra. Em um
determinado momento, Gen afirma em uma redação da escola que gostaria
que os soldados japoneses voltassem para casa e que a guerra acabasse sem
mais mortes. O pacifismo do garoto é visto com um misto de ingenuidade,
traição e covardia pelo professor que o castiga fisicamente. O treinamento
militar japonês era extremamente rigoroso e o sistema de ensino contribuía
significativamente para tal, vide o édito de educação produzido em 1890
durante o governo Meiji:

“Conheça vós, Nossos súditos:


Nossos ancestrais imperiais fundaram Nosso Império com base em
uma virtude duradoura profundamente implantada; Nossos súditos

Novas Mídias e Orientalismos


42
sempre unidos na lealdade e piedade tem de geração em geração
ilustrado esta beleza. Esta é a glória do caráter fundamental de
Nosso Império, sendo também a raiz de Nossa educação. Vós,
Nossos súditos, sejam leais a seus pais, afetuosos com seus
irmãos e irmãs; maridos e esposas sejam harmoniosos, como
amigos verdadeiros; encham-se de modéstia e moderação,
estenda a sua benevolência a todos; persiga o aprendizado e o
culto as artes, para assim desenvolver suas faculdades intelectuais
e os poderes morais perfeitos; além disso avance para o bem
comum e promova interesses em comum; sempre respeite a
constituição e observe as leis; em caso de emergência, ofereça-se
corajosamente ao Estado, para assim resguardar a prosperidade
de Nosso trono Imperial no céu e na terra. Assim, vós, não serão
apenas Nossos bons e leais súditos, mas tomarás as melhores e
ilustres tradições de vossos antepassados. O caminho, aqui
apresentado, é de fato o ensinamento legado por Nossos
ancestrais imperiais, para serem seguidos por todos seus
descendentes e súditos, infalível por todas as eras e verdadeiro em
todos os lugares. É o Nosso desejo de colocá-lo em Nossos
corações com toda a reverência, em comum com vós, nossos
Súditos, para que possamos alcançar a mesma virtude. (Trigésimo
dia do décimo mês do ano 23 Meiji, Imperial Rescript on Education,
2020).”

O édito era lido todos os dias nas escolas e frequentemente rememorado em


outras ocasiões. O coletivismo almejado pelo Império fica evidente no
documento, esperava-se o não individualismo e ações coletivas de
autosacrificio para a nação. O Japão, segundo essa ideologia mítica era uma
nação descendente dos kami (deuses) e isso era um atestado de superioridade
em relação aos outros povos. Na escola as crianças eram ensinadas nos
preceitos xintoístas do Império, aprendendo sobre lealdade e sacrifício. Essa
série de preceitos formam o que esta pesquisa concebe como a “cultura da
honra” nipônica, uma cultura política aos moldes do conceito elucidado por
Serge Berstein(1998), sendo permeada no seio nacional japonês de forma
orgânica pelos mais variados núcleos socioculturais.

Em síntese, o anime rememora a cultura da honra japonesa. Nela, o “eu” não


tinha espaço, priorizava-se o “nós”. A origem divina é muito bem descrita por
Shuichi Kato: “O kami solar Amaterasu fez descer no território japonês seu
descendente Nínigino Mikoto, e consta que o descendente dele é o primeiro
tennõ (Imperador) mitológico Jinmu Tennõ (que subiu ao trono em 660 a.C.)”
(KATO, Shuichi, 2012, p.45), inclusive tendo sido firmado a data oficial de
fundação da nação, durante o período Imperial. A partir desta questão religiosa
se configurava três pontos da cultura da honra: a superioridade do povo
japonês, a justificativa para o imperialismo da nação e a divindade do
Imperador. No Japão, a sociedade de castas deixou de existir com o fim do
xogunato, entretanto surgiu uma sociedade vertical em que ao topo residia o
Imperador. Durante o Império japonês (1868-1945), a importância de

Novas Mídias e Orientalismos


43
determinadas classes mudou, até a década de 1930 que trouxe os militares ao
maior prestígio social, somente abaixo do Imperador. Logo, a ingenuidade de
Gen ao pedir que os soldados voltassem para casa é vista como um terrível
afronta aos valores morais de sua nação e de seu professor, uma vez que a
morte era mais honrosa que a desistência. Esperava-se que os professores
fossem tão duros quanto instrutores militares com seus alunos.

Outra questão importante a ser pontuada, é o uso dos artefatos atômicos no


Japão. Confronta-se a narrativa dominante sobre a necessidade dos
bombardeios atômicos no Japão para finalizar-se a guerra. Conforme descreve
Sidney Munhoz (2015) a disputa pela justificativa das bombas atômicas é
frequentemente associada a necessidade delas para terminar-se o conflito com
o menor número de fatalidades, entretanto é visível que seu uso sob pontos
majoritariamente civis coloca essa versão em perspectiva. O anime retrata de
forma primordial a destruição e sofrimento causado pela bomba atômica sobre
os civis japoneses. É preciso compreender que a guerra enquanto guerra não
trás vencedores ou perdedores ao olharmos a partir dos civis. A dor e
sofrimento causados pela guerra reverberam nas mais variadas camadas
sociais. Todavia, é preciso entender que há a necessidade de distinguir os
crimes de guerra perpetuados pelos Estados do conflito de seus civis. A
compreensão dos traumas e sofrimentos japoneses, por exemplo, não anula a
conquista imperialista do Japão no leste asiático. O tema é sensível e merece
ser discutido com seriedade, tornando-se preciso rediscutir narrativas já
solidificadas na História, dando voz a traumas muitas vezes ignorados pela
disciplina.

Considerações finais
Deste modo, percebe-se que o anime apresenta tópicos relevantes e densos
por trás de seus traços animados. Sua análise deve ser feita desconsiderando
um maniqueísmo banal que pinta vilões e mocinhos, levando em conta que a
principal mensagem do filme é antiguerra.

Há ainda o longa enquanto “lugar de memória”, uma vez que ele serve de
gatilho para determinadas narrativas e relembra os eventos da Segunda
Guerra Mundial. Entretanto, sua apreciação enquanto “lugar de memória”
depende de determinados contextos e narrativas em que seu interlocutor se
insere. Um estadunidense provavelmente associaria os eventos do anime ao
heroísmo estadunidense em combater o “eixo do mal” e o maligno Império
japonês, enquanto para um japonês a narrativa implícita é o sofrimento
causado não só pela cultura da honra imperial, como pelos bombardeios
atômicos. Em ambos os casos o filme se torna um agente da História,
implicando em leituras históricas baseadas nas memórias individuais e
coletivas que circulam o evento.

Cada espectador carrega seu subjetivismo para visualizar a obra e é isto que
torna possível a existência de diversas interpretações narrativas do anime,
enquanto “lugar de memória”. Não há objetivismo puro, nem mesmo por parte
do historiador. Mas, por meio da utilização de métodos de análise é possível

Novas Mídias e Orientalismos


44
que se compreenda as narrativas em torno do longa e saiba interpretá-las a luz
de diferentes interlocutores. Ainda, que apesar disso a mensagem do filme
continua sendo a mesma, não sendo possível interpretar o filme propaganda
como pró-guerra, por exemplo. Por fim, os filmes já fazem parte do cotidiano
global e cabe ao historiador torná-lo uma fonte acessível para leitura da
sociedade e da história. Utilizar-se ainda de um cinema não hollywoodiano é
fundamental para combater narrativas únicas e exclusivistas que se permeiam
no senso comum a décadas.

Referências Biográficas
Ms. Douglas Pastrello, doutorando em História política pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM), pesquisador com ênfase em estudos da memória
e do Japão contemporâneo.

Referências
HADASHI NO GEN (Gen pés descalços). Direção: Mori Masaki.
ProdutorTakanori Yoshimuni, Yasutaka Iwase. Roteiro: Keiji Nakazawa Japão:
Madhouse/Gen Production. Distribuidora: Herald Enterprises. 1983. (85min):
sonoro, cores, animação.

BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean


François (org.) Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. P.349-363.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São


Paulo: Companhia das letras. 1998.

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: Narrativas do pós-guerra na cultura


japonesa (1945-1970). São Paulo: Annablume, 2011.

KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação da


liberdade, 2012.

KORNIS, Mônica Almeida. HISTÓRIA E CINEMA: um debate metodológico.


Rio de Janeiro: Revista estudos históricos. vol.5 n. 10. 1992. p.237-250.

MUNHOZ, Sidnei. Os EUA e a conclusão da II Guerra Mundial: os impasses


concernentes à Guerra do Pacífico e ao extremo oriente. Huellas de Estados
Unidos. Nº9. 2015. p.5-23

NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: a História depois do papel. In:


PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto,
2005. p. 235-289.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28

SAKURAI, Célia. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2011.

Novas Mídias e Orientalismos


45
VALIM, Alexandre Busko. Imagens vigiadas: Uma história social do cinema no
alvorecer da Guerra Fria, 1945-1954. Universidade Federal Fluminense:
Niterói. 2006.

Imperial Rescript on Education. Disponível em:


https://www.japanpitt.pitt.edu/glossary/imperial-rescript-education. Acesso em
20/03/2020.

Novas Mídias e Orientalismos


46
PROPAGANDA E NECROPOLÍTICA NO FILME
“GENROKU CHUSHINGURA” DE MIZOGUCHI KENJI
(1941-1942) por Edelson Geraldo Gonçalves

Introdução
O presente texto analisa um exemplo do uso da propaganda de guerra para
encorajar a disposição ao sacrifício pela nação entre a população japonesa
durante o período imperial [1868-1945], mais especificamente nos dias da
Segunda Guerra Mundial [1939-1945].

Para isso será conduzido um estudo através de uma das obras do consagrado
cineasta Mizoguchi Kenji, que empregou seus talentos para a disseminação
das doutrinas do governo imperial ao longo de seus conflitos na década de
1930 e 1940, compondo assim não apenas a análise de um dos trabalhos
deste artista em prol do esforço de guerra nipônico, como também um estudo
de caso sobre o uso do cinema como veículo de propaganda no Japão do
período.

Dessa forma, na comunicação aqui proposta, faremos a abordagem da obra


“Genroku Chushingura” [no Brasil distribuído com o título “A Vingança dos 47
Ronins”], filme de direção de Mizoguchi, lançado nos cinemas japoneses em
duas partes, nos anos de 1941 e 1942, sendo este uma versão moderna da
famosa história dos 47 ronins, e preenchido pela ideologia militarista pregada e
propagada pelo governo japonês da época.

O trabalho com essa fonte será feito sob a luz dos conceitos de propaganda,
ideologia e necropolítica, segundo as definições apresentadas por Garth Jowett
e Victoria O’Donnel para o primeiro, Terry Eagleton para o segundo e Achille
Mbembe para o último.

Propaganda e Necropolítica no Japão Imperial


O período do Japão Imperial, se estendeu da Era Meiji [1868-1912], ao fim da
Segunda Guerra Mundial [1945], começando após a queda do governo do
último Xogum, e a restauração do poder do Imperador [Restauração Meiji].

Em seus primeiros anos, o governo Meiji adotou uma linha de liberalização e


ocidentalização da cultura japonesa, e em meados da década de 1880 passou
a adotar uma posição mais conservadora e tradicionalista, considerando que
isso atrairia maior respeito para o país no cenário internacional.

Novas Mídias e Orientalismos


47
Uma das medidas da abordagem conservadora da cultura foi promover o que
Harumi Befu [1985, p. 52] chamou de “samuraização” da população, com o
incentivo e inculcação dos valores [em uma versão idealizada] do extinto
estamento social dos samurais entre todo o povo japonês, valendo-se para isso
do sistema educacional e de publicações oficiais e extraoficiais.

Com isso o próprio modelo familiar reconhecido no país passou a ser baseado
nas antigas famílias samurais, e este entendimento da família se tornou a base
para a interpretação da natureza do Estado, na forma do Kazoku Kokka, o
“Estado-Família”, que tinha o Imperador como patriarca ao qual todos deviam
lealdade e obediência absolutas [Smith, 1997, p. 62].

Segundo John Dower [1986, p. 279], estabelecimento desse Estado-Família


explora “a mais benigna de todas as metáforas da desigualdade: a família”,
servindo para que o governo imperial adentrasse todos os lares da nação.

Foi para promover estes alinhamentos culturais que a propaganda do governo


imperial se desenvolveu. Primeiro buscando ampliar a aceitação de ideias e
práticas ocidentais por parte da população, e juntamente com isso promovendo
a imagem do Imperador [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202], uma figura antes
pouco conhecida pelas massas populares [Fujitani, 1996, p. 7], mas que
naquela nova era se tornara o repositório da soberania do país, e deveria,
portanto, ser também visto como um símbolo central da identidade do povo
desse novo Estado-nação.

Essa propaganda foi inicialmente feita de forma espontânea, sem a iniciativa do


governo, embora em prol deste, movida por seus simpatizantes, através dos
novos meios de comunicação de massas, como jornais e revistas, e,
posteriormente, o Estado passa a atuar diretamente, utilizando o teatro, os
professores, o clero xintoísta e budista, e a própria figura do Imperador [em
várias viagens pelo país e na constante exposição de sua imagem], como
agentes propagadores da modernização [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202]. O
entendimento que os intelectuais e burocratas que trabalharam nessa área
tinham, era de que estariam educando a população através dos modernos
meios de comunicação [Kushner, 2007, p. 8].

A partir das décadas de 1890 e 1900, com a Primeira Guerra Sino-Japonesa


[1894-1895] e a Guerra Russo-Japonesa [1904-1905], surgiu a moderna
propaganda de guerra japonesa, sendo também feita espontaneamente através
da mídia no conflito com os chineses, e movida [direcionada e censurada] pelo
governo durante o combate com os russos [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202].
Com essa propaganda o governo imperial passou a empregar a ideia de
bushido ao cenário efetivamente militar, inclusive com o encorajamento ao
sacrifício pelo país [Benesch, 2014, p. 81-82].

Com a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], a propaganda bélica do governo


imperial ganharia os contornos que teria até 1945, com a captação do apoio
das massas populares a participação japonesa nesse conflito através da

Novas Mídias e Orientalismos


48
análise e mimetização dos métodos europeus, sobretudo britânicos e alemães.
Assim, na década de 1930, o governo japonês tinha a sua disposição uma
grande e moderna máquina de propaganda [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202-
203], que, no entanto, era descentralizada e variada, sendo composta e
compartilhada por agências diferentes, dissonantes, e muitas vezes rivais em
seus conteúdos e objetivos específicos [Kushner, 2007, p. 10].

Dentro do arsenal propagandístico do governo imperial estava o cinema, que


segundo John Dower [1993, p. 41-50], durante o período que a historiografia
japonesa chama de “Guerra dos Quinze Anos” [1931-1945], se concentrou em
encorajar a população no combate a cinco inimigos: 1) os inimigos mortais do
momento, apresentados de maneira amorfa, para simbolizar a natureza
transitória dos conflitos, ou seja, a mudança dos oponentes com o passar do
tempo, 2) os inimigos que podem ser convertidos em aliados (como os outros
asiáticos), 3) os valores e costumes estrangeiros, que seriam uma ameaça à
nação japonesa, 4) os inimigos internos em cada um (como ideologias
contrárias ao governo imperial e mesmo os sentimentos que desviam os
súditos de seu dever) e 5) a própria guerra, tratada como uma fatalidade do
destino, assim como um desastre natural, e que precisa ser vencida e
encerrada.

Apesar dos propagandistas do Japão Imperial entenderem que estariam


educando sua população, o entendimento do conceito de “propaganda”, com o
qual aqui trabalhamos o difere do de “educação”, que buscaria transmitir
conhecimentos e habilidades com objetivos flexíveis [Kushner, 2007, p. 4],
enquanto a “propaganda” é mais especificamente uma tentativa de “moldar
percepções, manipular cognições, e direcionar o comportamento para atingir
uma resposta que promove a intenção desejada pelo propagandista” [Jowett,
O’Donnell, 2015, p. 181].

Em resumo, a propaganda busca difundir ideologia, sendo que por este


conceito, no contexto do Japão Imperial, entendemos “[...] uma forma de
legitimar o poder [...], promovendo crenças e valores compatíveis com ele;
naturalizando e universalizando tais crenças” [Eagleton, 1997, p. 19].

Com os conflitos iniciados a partir da década de 1930 [invasão da Manchúria,


Segunda Guerra Sino-Japonesa e Guerra do Pacífico], o encorajamento ao
sacrifício na propaganda é retomado, assim como as tendências necropolíticas
gerais do governo imperial vão se exacerbando, sobretudo à medida que as
dificuldades nos campos de batalha vão se acumulando, e a derrota do império
se aproxima.

Essa necropolítica, que segundo Achille Mbembe segue o impulso moderno de


subordinar tudo a vontade de poder e a razão [Mbembe, 2018, p. 20], inclusive
levando ao sacrifício deliberado de vidas pelo interesse do Estado, se
manifestou nos anos finais do Japão Imperial de uma maneira que nada deve
ao que ocorreu na Alemanha Nazista, que para este autor é o mais acabado
modelo do Estado necropolítico; racista, assassino e suicida, operando a fusão

Novas Mídias e Orientalismos


49
total da guerra e da política [Mbembe, 2018, p. 19]. Foi precisamente isso que
o Estado imperial japonês promoveu, sobretudo em seus quinze últimos anos,
com sua propaganda que pregava insistentemente a disposição ao sacrifício
pela nação e o Imperador, e a presença nesse período de elementos como a
Unidade 731, as “cargas banzai”, missões kamikaze e os incontáveis suicídios
que se seguiram as derrotas das forças armadas do Império.

É como uma peça dessa propaganda necropolítica que o filme “Genroku


Chushingura” de Mizoguchi foi concebido.

Os 47 Ronins e Mizoguchi Kenji


A história dos 47 ronins se tornou o mais emblemático dos exemplos do ideal
de lealdade celebrados pela cultura japonesa, se tornando o modelo central de
comportamento para os súditos, segundo os preceitos do bushido. É uma
história, que embora já tenha começado a ser celebrada ainda nos dias dos
Tokugawa, ao longo da modernidade se tornou algo com que os japoneses
desde a infância são familiarizados, e uma das bases essenciais de sua
identidade nacional, estando presente no ensino e nas mais variadas mídias,
tanto no período imperial quanto nos anos posteriores.

Este episódio se iniciou no ano de 1701, quando o senhor do domínio de Ako,


Asano Naganori [1667-1701], ao ser insultado na residência do Xogum pelo
Lorde Kira Yoshinaka [1641-1703], enquanto ambos trabalhavam em uma
recepção para enviados imperiais, feriu este com um golpe de espada, sendo
depois punido com o confisco das propriedades de sua família, e a condenação
ao suicídio ritual, por empregar violência desautorizada naquele ambiente.

Em reação a este fato, 47 dos vassalos de Asano [que se tornaram ronins, ou


seja, samurais sem mestre], em 1703, atacaram a residência de Kira e tiraram
sua vida, vingando assim a morte de seu senhor. Ao término da vingança, os
ronins se entregaram às autoridades, não sendo tratados como criminosos,
mas como samurais que cumpriram o papel deles esperado, demonstrando a
lealdade que tinham a seu senhor [Benesch, 2014, p. 22-27].

Embora, legalmente tivessem de fato cometido um crime, dado que no período,


o Xogunato Tokugawa buscava transformar o monopólio da violência legítima
que era tradicionalmente garantido ao estamento samurai em um monopólio do
Estado, tornando as vinganças pessoais dentro deste grupo social [kenka]
restritas, e não mais livres como foram anteriormente [Ikegami, 1997, p. 197,
202].

Ao final, o Xogunato não perdoou os ronins, mas também não os executou


como criminosos comuns, reconhecendo seu mérito moral, e dando a eles a
oportunidade de uma morte honrada por seppuku, o suicídio ritual dos
samurais [Buruma, 1984, p. 154].

Este episódio foi muito bem recebido pela opinião pública da época, e os 47
ronins rapidamente se tornaram heróis populares, e já em 1706 a história foi

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adaptada para o teatro por Chikamatsu Monzaemon [1653-1725], com o título
de “Goban Taiheiki” [“Crônica da Grande Paz, Interpretada em um Tabuleiro”],
sendo esta peça ambientada em outra época e os nomes dos personagens
mudados, para safar-se da censura do Xogunato. Esse método foi
acompanhado por várias outras peças que se seguiram quase anualmente,
dentre as quais a mais notável foi a de Takeda Izumo [1691-1756], de 1748,
intitulada “Kanadehon Chushingura” [“O Tesouro dos Vassalos Leais”]
[Buruma, 1984, p. 154-155]. As peças assim se mantiveram até a Era Meiji,
quando passaram a poder se basear no evento histórico e nos nomes reais de
seus personagens. Nos últimos anos do Japão Imperial, a versão teatral mais
famosa dessa história foi a dirigida por Mayama Seika [1878-1948],
apresentada com grande sucesso entre 1934 e 1941 [Leiter, 2006, p. 59, 231].
Esse fato histórico foi a base do filme dirigido por Mizoguchi Kenji [1898-1956],
que foi aos cinemas japoneses entre 1941 e 1942.

Mizoguchi estreou como diretor em 1922, tento como característica distintiva de


sua obra a abordagem da vida familiar japonesa, em histórias vistas
principalmente sob o ponto de vista feminino [Sharp, 2011, p. 170], tanto que o
público japonês o considerava um diretor “feminista”, não no sentido ocidental
do termo, mas como alguém que simpatiza genuinamente com as mulheres,
sendo realmente capaz de entender a ótica feminina da sociedade [Richie,
2005, p. 78].

Embora tivesse simpatias pelo marxismo antes da ascensão da extrema-direita


ao poder , isso não o impediu de trabalhar para a propaganda imperial durante
as décadas de 1930 e 1940, e um de seus principais colaboradores, o
romancista e roteirista Kawaguchi Matsutaro [1899-1985] [1964, p. 7], afirma
que, quando os comunistas começaram a ser perseguidos na década de 1930,
ele rapidamente se virou para a extrema-direita, e após a rendição do Japão
em 1945, com a mesma facilidade se tornou um defensor da democracia liberal
pregada pela ocupação estadunidense.

Entre as censuras e perseguições da década de 1930, inclusive com atritos


entre Mizoguchi e a censura do Estado, a produção de dramas, como os
dirigidos por este diretor, foi restrita, por serem considerados retratos
inapropriados da família e sociedade [Spicer, 2019, p. 140].

Dessa forma, para evitar a falência, o Estúdio Shochiku, onde Mizoguchi


trabalhava, precisou aceitar a produção de filmes que servissem à propaganda
do Estado, e foi assim que Mizoguchi Kenji se tornou um dos propagandistas
do governo imperial [Spicer, 2019, p. 140], se juntando a outros cineastas na
mesma situação, algo que pode ser inclusive percebido pela presença de
ideias esquerdistas em alguns filmes, e que escapavam da censura pela
qualidade das obras e o renome de seus realizadores [Dower, 1993, p. 38], e
também, provavelmente, pela descentralização do sistema de propaganda, que
impossibilitava regras totalmente claras e uma fiscalização mais efetiva.

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Com isso, Mizoguchi dirigiu os filmes “Manmo Kenkoku no Reimei” [“O
Amanhacer da Fundação da Manchúria, 1932], “Roei no uta” [Canção do
Campo, 1938], “Genroku Chushingura” [“O Tesouro dos Vassalos Leais da Era
Genroku”, 1941-1942], “Danjuro Sandai” [“Três Gerações da Família Danjuro”,
1944], “Miyamoto Musashi” [1944], “Meito Bijomaru” [A Famosa Espada
Bijomaru, 1945] e “Hisshoka” [“Canção da Vitória”, 1945] [Sharp, 2011, p. 171-
172, 386].

Estes filmes tinham como temas centrais o louvor ao imperialismo japonês e a


apologia da lealdade dos indivíduos e das famílias ao governo imperial,
seguindo os valores do bushido [Sharp, 2011, p. 171-172], sendo este segundo
tema o conteúdo ideológico da obra “Genroku Chushingura”, que abordaremos
no próximo tópico.

Genroku Chushingura
O filme “Genroku Chushingura” foi uma adaptação cinematográfica da peça
teatral homônima dirigida por Mayama Seika entre 1934 e 1941 [Richie, 2005,
p. 278].

A trama do filme tem como base a história já descrita anteriormente,


concentrando-se, na primeira parte, no suspense em torno do confisco das
propriedades do falecido Lorde Asano, enquanto seus vassalos buscavam
apelar à justiça do Xogunato para reverter essa pena, e permitir que fossem
repassadas ao irmão de seu senhor, Asano Daigaku [1670-1734].

Enquanto isso o conselheiro de Asano, e líder de seus vassalos, Oishi


Kuranosuke [1659-1703] é pressionado por seus colegas a liderar um ataque
contra o Lorde Kira e também por alguns a fazer frente às tropas do Xogunato,
no caso de confisco do Domínio de Ako. No entanto, Oishi parece se desviar
de suas responsabilidades, se embriagando, frequentando prostíbulos e se
afastando de seus companheiros, algo que era, no entanto, uma mera
encenação.

Na segunda parte do filme Oishi continua com sua encenação, sendo inclusive
repreendido por isso pela esposa de seu falecido senhor, que acredita que ele
se furtou de sua lealdade. Porém, após os ronins receberem a notícia de que o
Xogunato não aprovou a restituição das propriedades da família Asano, Oishi
finalmente os lidera em sua vingança. Ao fim todos se sacrificam por seppuku,
sob a aprovação da opinião pública e preservação de sua honra.

Analisando mais especificamente o conteúdo ideológico deste filme, nos


concentraremos aqui em três aspectos: o foco da narrativa nas famílias dos
personagens principais, o louvor ao sacrifício pelo bushido, e também a
presença do Imperador na história.

Sobre o primeiro ponto, é notável a presença de familiares dos protagonistas


na trama do filme, mais especificamente mulheres, demonstrando
compreensão do dever da vingança de seu falecido senhor que pesa sobre os

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52
homens de suas famílias, e a disposição a lidar com suas consequências,
mesmo a morte, e tanto apoio quanto aconselhamento no cumprimento dessa
tarefa. As personagens principais nessa abordagem são Yosenin, a esposa do
falecido Lorde Asano, além de Kiyo e Omino respectivamente a irmã e a noiva
de dois dos ronins Tominomori Sukeemon e Isogai Jurozaemon.

A participação destas mulheres na história é de aceitação dos deveres, mas


não de passividade, já que questionam os ronins em suas decisões erradas e
atuam para impedi-los de cometer equívocos, como Kiyo, que tenta impedir seu
irmão, um mensageiro do domínio de Ako, de assassinar Kira enquanto este
estava em visita ao castelo de Tokugawa Tsunatoyo [1662-1712], senhor do
domínio de Kofu, pois com tal ato ele privaria seus companheiros do
cumprimento de seu dever, enquanto a esposa do falecido Lorde Asano, que
aceita o destino que seu marido precisou enfrentar em defesa de sua honra,
encoraja Oishi a liderar os ronins de Ako na vingança contra Kira. Por sua vez,
a noiva de Isogai, protagoniza um suicídio como prova de lealdade a seu par e
compreensão de seu dever ao final do filme.

A opção por tal presença feminina na história não apenas é condizente com o
histórico cinematográfico de Mizoguchi, como também direciona a ideologia do
governo imperial, e sua necropolítica, para o interior das famílias japonesas,
demonstrando como estas deveriam se portar diante das exigências que o
bushido fazia a seus membros diretamente envolvidos na guerra, como
soldados e profissionais de apoio.

O segundo aspecto do filme que aqui abordaremos é sua apologia ao sacrifício


segundo os ditames do bushido, sendo feita não apenas pela dignidade com a
qual a vingança dos ronins é investida ao longo da narrativa, na verdade, um
traço comum as variadas versões dessa história, mas especialmente em duas
cenas, o seppuku do Lorde Asano no começo da história, e o suicídio de
Omino, a noiva de Isogai, ao final da história.

A cena do suicídio ritual de Asano Naganori é ornamentada com a simbologia


do sacrifício do samurai que foi propagada pelo governo imperial desde a Era
Meiji, com a presença de uma cerejeira em flor no jardim em que o haraquiri
era realizado. A flor de cerejeira, com sua magnífica beleza e sua brevidade de
vida, foi tornada já no século XIX um símbolo para o espírito samurai, e na
década de 1930 de sacrifício pelo Imperador [Ohnuki-Tierney, 2002, p. 102-
109].

No desenrolar do filme, após os ronins terem executado sua vingança, e se


prepararem para a morte por seppuku, Omino, noiva de um dos ronins, vai até
ele para além de sanar dúvidas, deixar claro que ela compreende a
necessidade deste de deixa-la para cumprir seu dever maior, e ao final,
suicida-se antes de seu noivo, para não deixar dúvidas sobre sua sinceridade
sobre este ponto. É o único suicídio mostrado em maior detalhe ao final do
filme [os dos ronins são anunciados, mas não exibidos em cena], um
protagonismo que não apenas confirma a predileção de Mizoguchi em seus

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filmes, como também serve de exemplo para as mulheres espectadoras da
obra, mostrando o limite da disposição que os familiares devem ter pelo
cumprimento do bushido, o que nos termos de Dower [1993, p.42], seria uma
propaganda de combate ao quarto inimigo do Japão na guerra, mais
precisamente os sentimentos que desviariam os súditos de seus deveres.

As flores de cerejeira ornamentando o sacrifício de Asano e o suicídio de


Omino são as mais marcantes cenas que propagam a ideologia necropolítica
do Estado neste longa-metragem, inserindo na primeira cena uma estética
adotada a poucos anos pelo governo imperial [a flor de cerejeira como símbolo
de sacrifício pelo imperador, ou, de forma geral, pelo dever, pelo bushido] e na
cena final a compreensão, aceitação e comprometimento com os sofrimentos
que a lealdade exige, incluindo os sacrifícios das vidas de entes queridos, e da
própria.

Além de propagar aos súditos a apologia ao sacrifício pelo dever, que naquele
momento da história japonesa era a lealdade ao Imperador, o filme de
Mizoguchi insere na narrativa o próprio monarca como personagem,
característica ausente das outras versões dessa história [Ohnuki-Tierney, 2002,
p. 149]. Embora não apareça diretamente, o Imperador é citado por cortesãos,
tendo lamentado o fracasso do Lorde Asano em tirar a vida de Kira no castelo
do Xogum, e também expressando sua aprovação na busca de vingança dos
ronins de Ako. Dessa forma a propaganda inserida no filme fecha o círculo; não
apenas difunde sua ideologia necropolítica, justificada sob a lealdade ao
Imperador, como também sugere que o próprio aprova estes ideais.

Conclusão
Em resumo, podemos concluir que, como peça de propaganda, o filme
“Genroku Chushingura” de Mizoguchi, buscou difundir a ideologia necropolítica
do governo imperial de forma direcionada às famílias japonesas. Esta obra
buscou encorajar a aceitação e a disposição aos sacrifícios exigidos pelo
bushido, lembrando o público da necessidade de superar os sentimentos
desviantes, também com a ênfase de que o próprio Imperador anseia por esta
conduta.

Referências
Edelson Geraldo Gonçalves é Doutor em História Social das Relações Políticas
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

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<https://sc01.tci-thaijo.org/index.php/tureview/article/view/193716> acesso em:
11/09/2022.

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MANEIRAS DE COMO SE TRABALHAR DE MANEIRA
CRÍTICA O “ORIENTALISMO” DE SAID NAS AULAS DE
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA POR MEIO DE
FILMES por Eduardo Bruno Da Silva

Introdução
Presente, analisado e causa de muitos debates - bem como de reflexões com
suas discussões - nos cursos de história de nível superior no Brasil, o
“Orientalismo” - abordado especificamente, a princípio, pelo conhecido
palestino-estadunidense e professor Edward Wadie Said em sua obra
“Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, marca a graduação
universitária de muitos professores historiadores por “abrir os seus olhos” em
relação a visão equivocada e estereotipada que carregamos dos povos
orientais em razão de por muitos anos - e até nos dias de hoje, se refletirmos
bem - em vários meios - não só o acadêmico - se ter a predominância do
“oriente” que o ocidente descreve e/ou descreveu, logo uma descrição marcada
por interesses políticos e ideológicos, a qual se não for analisada de maneira
crítica acaba-se tendo uma visão “única”, preconceituosa e inferior das nações
orientais perante o ocidente (SAID. 1978). Assim, se tal visão preconceituosa
encontrada até nos dias de hoje é encontrada em diversos locais além da
academia acadêmica e por vários meios - jornais, filmes, quadrinhos, novelas,
desenhos entre outros - por que não se trabalhar o “orientalismo” do professor
Edward Wadie Said para além do nível superior? Ao abordá-lo, por exemplo,
na educação básica com objetivo de se tentar promover a criticidade dos
alunos em relação a esse olhar preconcebido e empobrecido que o ocidente
inventou do oriente, como diz Edward Wadie Said. Nesse sentido, o seguinte
trabalho tem como objetivo trazer algumas sugestões de como se trabalhar no
ensino fundamental e no ensino médio nas aulas de história, por meio do uso
de filmes, o “orientalismo” de maneira didática sem deixar de lado o
desenvolvimento da criticidade.

Procedimentos metodológicos
O referido trabalho visou estabelecer raízes nos estudos iniciais sobre o
“orientalismo” ou seja, na obra de Edward Wadie Said “Orientalismo: O oriente
como invenção do ocidente”. Nesse sentido, como o “orientalismo” poderia ser
trabalho de maneira didática no ensino básico na disciplina de história pelo
professor do componente curricular, e para isso foi realizado uma pesquisa de
artigos no Google acadêmico que sugerem formas diferentes e atraentes
perante os olhares dos estudantes de se ensinar história, chegando a sugestão
de utilizar recursos audiovisuais, como, por exemplo, filmes, como um recurso

Novas Mídias e Orientalismos


57
pedagógico. Dessa forma, o trabalho buscou analisar filmes que resultam em
discussões e reflexões em cima da forma equivocada da visão ocidental
perante o oriente. Nesse sentido, logo se buscou exemplares desses filmes
que poderiam ser trabalhados criticamente, chegando a ser encontrados filmes
de animação bem como “live actions”.

Uma breve contextualização sobre o orientalismo


A intenção do seguinte trabalho não é fazer uma revisão de literatura de
maneira aprofundada, mas faz-se necessário uma breve contextualização do
que é o “orientalismo”. Dessa forma, o "orientalismo" abordado pelo professor
Edward Wadie Said - e posteriormente analisado por outros autores - pode ser
definido pelo autor como: "Uma instituição organizada para negociar com o
Oriente - negociar com ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em
resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e
ter autoridade sobre o oriente” (SAID. 1978. pp.15). Isso, porque no âmbito do
orientalismo se instaura a escrita sobre os povos orientais pelos ocidentais - a
princípio por maior parte de escritores da Inglaterra e França e posteriormente
dos Estados Unidos Da América, os “EUA”- estes que escrevem e querem
mostrar uma visão totalmente diferente do que se é de fato o oriente, visto que
é retratado nos diversos meios e locais como se as diversas nações e povos do
oriente fossem um único povo e que todos fossem “perigosos” , "bárbaros",
“doentes” - entre outros estereótipos. Mais que isso, “o orientalismo”em geral
só vem a ser discutido nos cursos de história - licenciatura e/ou bacharelado -
de nível superior e em revistas, congressos ou outros locais do mundo
acadêmico, ou seja, embora não se possa negar - obviamente - a importância
da academia universitária, se a visão preconceituosa está em vários meios e
locais, pode ser necessário abordar o orientalismo em outros locais, como por
exemplo, na escola por meio do professor de história, o qual pode de maneira
didática com o utensílio de filmes - em 1 a 3 encontros - o que seria o
orientalismo de edward Said - algo que esse estudo tem como finalidade
mostrar algumas sugestões de como se é possível trabalhar.

O uso de filmes como um recurso didático e pedagógico


O ensino de história deve passar por mudanças em sua forma, visto que os
alunos do século XXI vivem em um mundo cada vez mais conectado, e cada
vez mais avançado em tecnologias, especialmente nos meios de comunicação,
e dessa forma podem buscar o conhecimento além da escola, logo além do
professor (OLIVEIRA et al. 2018). Nesse sentido, para que o ensino de história
não fique “defasado” para os estudantes - bem como o professor faça valer seu
grande papel como educador e seu papel social - é necessária uma
reestruturação no ensino de história, utilizando, por exemplo, outros métodos e
formas que atraiam a atenção dos alunos para o conteúdo trabalhado e de
forma multidimensional (SILVA. 2019). Nesse sentido, uma opção interessante
seria o ensino por meio de recursos cinematográficos, como filmes e
documentários que podem ser utilizados por professores visto que o filme é
uma representação de algo e/ou alguém, abrindo assim um leque de como se
trabalhar criticamente essas representações em sala de aula, já que o cinema
como diz Christofoletti (apud OLIVEIRA et al, 2021, p. 6) : “é uma importante

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58
ferramenta de disseminação ideológica, por isso é fundamental sua análise e
até mesmo desconstrução, para que o aluno compreenda que há ideologias
por trás da produção artística”. Nesse sentido, porque não trabalhar no ensino
básico a imagem preconceituosa sobre os povos orientais elaborada pelos
ocidentais - logo trabalhando, o orientalismo de Said - por meio do aparato de
filmes produzidos por ocidentais - especificamente os americanos - que
distorcem a imagem das nações orientais? é um recurso didático - e uma
opção - interessante para se utilizar com a temática do orientalismo nas aulas
de história. Isto posto, seguem duas sugestões de como se fazer uso de tal
recurso didático e pedagógico, uma voltada mais para o ensino fundamental e
outra para os alunos do ensino médio.

O “sultão infantil” em “Aladdin”


Lançado em 1992 pela The Walt Disney Company - ou simplesmente, Disney -
a animação “Aladdin” é considerada nostálgica por ter feito parte da infância de
muitas pessoas, e até hoje faz “sucesso” entre o público mais jovem, ganhando
inclusive uma adaptação em live action no ano de 2019. Entretanto, visto que
a animação foi feita pelos norte-americanos, mas se passa em seu enredo em
um reino fictício denominado de “Agrabah” que é baseado naquilo que
acreditam ser o “oriente” como algo único e igual, obviamente a obra estaria
cheia de estereótipos, bem como algumas "difamações" aos povos orientais,
retratando o sultão da animação como alguém “bobo”, “infantil”,
“despreparado”e facilmente “manipulado e quase “controlado” pelo seu “vizir”,
assim uma visão totalmente preconceituosa.

Fonte: ALADDIN. Direção e produção de Ron Clements e John Musker. The


Walt Disney Company. Estados Unidos Da América, 1992.

Assim, como dito anteriormente, é um “sultão” infantil como é mostrado acima


na imagem, e que não convém com a realidade - e até para os que
argumentam que tal representação é apenas porque o intuito do filme é se
direcionar ao público infanto-juvenil, vale destacar que no live action de 2019,
produzido pela mesma empresa e produtora, o personagem sultão se aproxima
muito do que seria de fato de um governante político de uma nação, e a nova
produção também se destina ao mesmo público da primeira obra, o público
infanto-juvenil. Dessa forma, a animação pode ser utilizada como geradora de
debates e reflexões com o auxílio do professor em turmas do ensino
fundamental - visto que é uma animação sem restrições de idade - sobre como

Novas Mídias e Orientalismos


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a visão americana é empobrecida e preconceituosa em relação às nações do
oriente, e dessa forma trabalhar o orientalismo de maneira didática e de forma
crítica já no ensino fundamental nas aulas de história.

Um “oriente” quente e seco em “O resgate” e em “Zohan: um agente bom


de corte”
Para se trabalhar o orientalismo nas turmas de ensino médio - não que a
sugestão anterior não possa ser utilizada - com o uso de filmes para serem
analisados de maneira crítica, os filmes “O resgate” produzido pela Netflix e
lançado no ano de 2020, bem como o filme “Zohan: um agente bom de corte”
produzido pela Sony Pictures e lançado no ano de 2008 retratam no decorrer
dos seus respectivos enredos, os povos orientais como se todos fossem
“terroristas”, “perigosos”, “rudes”, "mal educados” e como se todo o oriente
fosse de clima quente e seco o ao utilizar um “filtro laranja” nas cenas que
supostamente se passam em algum país do oriente. Nesse sentido, por terem
uma classificação indicativa para maiores de 14 anos, os filmes podem ser
trabalhados - criticamente - de melhor forma nas turmas de ensino médio por já
se tratar de um público adolescente. Ademais, outra sugestão é que após ter
sido trabalhado e discutido o orientalismo nas turmas de nível médio, poderia-
se pedir para que os estudantes contassem outros filmes de cunho
preconceituoso em relação às nações do mundo oriental que eles se
lembrassem, para assim o docente ter mais filmes que poderia discutir com tais
discentes, bem como em turmas posteriores as quais também deseja realizar
as possíveis discussões - visto que os filmes sugeridos no seguinte trabalho
não são os únicos filmes americanos que retratam uma visão distorcida dos
povos orientais, pois o cinema de Hollywood está repleto de outros exemplos,
os quais podem ser trabalhos na educação básica para serem utilizados como
geradores de discussões, debates e reflexões sobre a visão ocidental sobre o
oriente, logo trabalhando o “orientalismo” de Said.

Os filmes do oriente pelo o oriente, o caso de Bollywood na Índia


Como um “bônus”, o referido trabalho traz algumas sugestões de como se
trabalhar também na educação básica, mas agora com filme e representações
dos orientais, pelos os orientes, trazendo a discussão um dos grandes
produtores do cinema indiano, “Bollywood” que mesmo que recentemente
esteja mais próxima do que são os filmes estadunidense, em sua história teve
vários filmes que representam muitos aspectos da cultura indiana. Ademais,
foram produzidos filmes musicais repletos de melodias em suas histórias, bem
como enredos com bastante dramas familiares, vilões, sacrifícios, vilões,
amores impossíveis. Mais que isso, vale também destacar que são anualmente
produzidos cerca de 350 com boa parte da bilheteria do cinema indiano sendo
dos filmes produzidos nacionalmente. Dessa forma, é possível abordar na
educação básica que existem outras produtoras e diversos filmes além dos
produzidos em Hollywood, já que o cinema indiano, bem como diversos outros
no oriente estão aí para o público. Para mais, algumas sugestões de filmes
são: “Como Estrelas na Terra” do ano de 2007, “Dear Zindagi” do ano de 2016,
“Pinte de Açafrão” do ano de 2006, “Umrika” do ano de 2015 e “O Grande
Passo” do ano de 2020, entre tantos outros.

Novas Mídias e Orientalismos


60
Considerações finais
Realizado essas breves sugestões de como se trabalhar o “orientalismo” de
Edward Wadie Said na educação básica - ensino fundamental e ensino médio -
nas aulas de história por meio do uso de recursos audiovisuais, como por
exemplo os filmes - ressalto que a intenção é de se utilizar os filmes a fim de
gerar discussões, debates bem como reflexões, e não serem assistidos e
analisados sem o objetivo de ser uma análise crítica - bem como trazer
algumas sugestões de filmes orientais produzidos pelos próprios orientais -
como os filmes da indústria de cinema indiana, “Bollywood” - o seguinte
trabalho ainda enfatiza novamente a importância de se trabalhar o
“orientalismo” em outros locais além da academia universitária, visto que esta
última possui sim uma grande importância científica bem como sempre será a
base segura para os pesquisadores, mas diante de um mundo tão conectado
onde as informações - inclusive informações equivocadas, preconceituosas e
até falsas - rapidamente se espalham faz com que seja necessário abordar o
orientalismo em outros locais, como por exemplo na escola da educação
básica - algo que neste trabalho foi sugerido com o utensílio de filmes - mas
também em outros meios, como por exemplo em sites, canais do Youtube,
fóruns, livros didáticos, entre outros. Enfim, os locais são diversos, e é
necessário marcar presença para que discursos ocidentais sobre o oriente não
passem como “verdades absolutas”.

Referências
Eduardo Bruno Da Silva é graduando de história pela UFCG. Ademais foi
monitor da disciplina de “estudos sobre história do oriente” e atualmente é
membro bolsista do programa de educação tutorial em história (PET-História)
da UFCG.

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OLIVEIRA. Thais et al. História e cinema: o filme como um recurso pedagógico.


In: VII encontro nacional das licenciaturas. Ceará. 2018.

RESGATE. Direção e produção de Sam Hargrave. Netflix. Estados Unidos Da


América, 2020.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad.


Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SILVA. Eduardo Bruno da. De apenas um receptor do conhecimento para um


ser ativo junto ao professor: de uma didática instrumental para uma didática
multidimensional. In: Revista diálogos na fronteira, ano 4. Paraíba, 2021.

Novas Mídias e Orientalismos


61
ZOHAN: UM AGENTE BOM DE CORTE. Direção e produção de Dennis
Dugan. Sony Pictures. Estados Unidos Da América, 2008.

Novas Mídias e Orientalismos


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QUANDO “O OUTRO LADO DO MUNDO” É TEMA DA
AULA DE HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE AS
POTENCIALIDADES DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
PARA O ESTUDO DOS DIFERENTES ORIENTES por
Fabian Filatow

O lugar de lugar de fala destas reflexões será a sala de aula de História da


Educação Básica. Mais especificamente as aulas de História que abordam
conteúdos pertinentes a civilizações ou temas do “oriente”, ainda referidos no
singular na maioria dos programas de estudo. Fato este que por si só já é um
grande desafio, ou seja, a mudança de olhar, pensar o “oriente” no plural, visto
que existem múltiplos orientes. O objetivo do texto será pensar alternativas
para aproximar os orientes distantes com o cotidiano dos estudantes. Para
isso, apresentaremos as histórias em quadrinhos como recurso didático para
efetuar o estudo, as reflexões e os aprendizados sobre os orientes nas aulas
de História.

A proposta teve seu início a partir de falas dos próprios estudantes repetidas ao
longo de anos, que de certa forma não deixa de ser uma provocação para a
reflexão docente. Professor, “por que temos que estudar coisas lá do outro lado
do mundo?”

Assim, propomos aproximar o geograficamente distante fazendo uso de uma


mídia conhecida por muitos estudantes, as histórias em quadrinhos. Nossa
reflexão terá como foco diferentes histórias em quadrinhos que abordam temas
que possam ser trabalhados em sala de aula demonstrando diferentes
contextos existentes no que se convencionou chamar de “oriente”. Ressalto,
com tudo, que não iremos realizar um estudo aprofundado sobre um tema
específico, ou apresentar dados de uma pesquisa acadêmica. Não sou um
especialista em temas orientais, como já referido acima, sou professor de
História na Educação Básica. Utilizo as histórias em quadrinhos como um
recurso para adentrarmos nestes temas, para fomentar questionamentos e
questionar os preconceitos sobre este universo nomeado genericamente
oriente. Como alertou Edward Said:

“(...) os terríveis conflitos reducionistas que agrupam as pessoas


sob rubricas falsamente unificadoras como ‘Américas’, ‘Ocidente’
ou ‘Islã’, inventando identidades coletivas para multidões de
indivíduos que na realidade são muito diferentes uns dos outros,
não podem continuar tendo a força que têm e devem ser

Novas Mídias e Orientalismos


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combatidos; sua eficácia assassina precisa ser radicalmente
reduzida tanto em eficácia como em poder mobilizador”. (SAID,
2007, p. 25)

Almejando organizar a reflexão, acreditamos ser prudente apresentarmos,


mesmo que de maneira sucinta, como compreendemos ensino de história e
história em quadrinhos e suas intersecções. Na sequência, daremos
continuidade com as potencialidades das histórias em quadrinhos como
recursos para os estudos das histórias dos diferentes orientes e seus
desdobramentos.

Ensino de História e Histórias em Quadrinhos


Não é de hoje que nos deparamos com reflexões sobre os múltiplos usos dos
quadrinhos no ambiente escolar. Mas é necessário estar ciente de que esta
mídia apresenta peculiaridades, ou seja, agregam diferentes aspectos da
comunicação, tanto visual quanto verbal. Para Will Eisner: “A configuração
geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e
imagem e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades
interpretativas visuais e verbais.” (EISNER, 1989, p. 8).

Neste sentido, as histórias em quadrinhos têm muito a contribuir com o


desenvolvimento das competências e habilidades que fazem parte das
exigências do Ensino de História. Sua compreensão exige interpretar textos e
imagens, compreender “sons” e perceber os diferentes tempos e espaços. É
necessário compreender a presença do múltiplo numa história em quadrinhos.
Assim, “a alfabetização na linguagem específica dos quadrinhos é
indispensável para que o aluno decodifique as múltiplas mensagens neles
presentes e, também, para que o professor obtenha melhores resultados em
sua utilização”. (VERGUEIRO, 2016, p. 31).

Nesta perspectiva, as Histórias em Quadrinhos podem contribuir para o ensino


de história, pois:

“(…) ensinar História é estabelecer relações interativas que


possibilitem ao educando elaborar representações sobre os
saberes, objetos de ensino e da aprendizagem. O ensino se
articula em torno dos alunos e dos conhecimentos, e as
aprendizagens dependem desse conjunto de interações. Assim,
como nós sabemos, ensino e aprendizagem fazem parte de um
processo de construção compartilhada de diversos significados,
orientado para a progressiva autonomia do aluno.” (GUIMARÃES,
2012, p. 166-167)

Para contribuir com esta perspectiva de transformação, de exercício do pensar


e do construir conhecimento, as histórias em quadrinhos se oferecem como um
recurso de ensino relevante. Esta mídia exige dos estudantes uma atitude
ativa. Permite a formulação de diversos questionamentos e reflexões.

Novas Mídias e Orientalismos


64
O grande desafio da educação é, no nosso entender, contribuir para a
formação de indivíduos autônomos do ponto de vista da capacidade de
construir conhecimento e saberes, principalmente, de saber utilizá-los na vida
cotidiana. No passado, o importante era dominar o conhecido, hoje, o foco está
em dominar o desconhecido. A educação visa contribuir para que o sujeito
contemporâneo consiga desenvolver habilidades e competências para serem
aplicadas diante de situações que lhe são impostas. Entre estes desafios está
a competência para compreender os múltiplos orientes.

Na continuidade, iremos apresentar as potencialidades das histórias em


quadrinhos para a utilização em sala de aula.

Histórias em quadrinhos com temáticas do “outro lado do mundo”


Nesta seção, buscamos apresentar algumas histórias em quadrinhos que
tenham como temática os diferentes orientes. A proposta não é realizar um
estudo exaustivo de cada uma delas, o que devido ao espaço destinado para a
elaboração do texto, não seria viável. Também não foi nosso intuito oferecer
estudo sobre as temáticas abordadas nas histórias em quadrinhos. Buscamos
apresentar histórias em quadrinhos que possam ser utilizadas em sala de aula
e que através destas demostrar a existência de diferentes orientes aos
estudantes. Desta forma, visamos contribuir para que os estudantes possam
construir seus saberes e assim construir diálogos pertinentes sobre os orientes,
combatendo estereótipos e preconceitos sobre esta região.

Neste sentido, as histórias em quadrinhos oferecerem um duplo recurso,


textual e imagético. Muitas destas histórias em quadrinhos apresentam
diferentes ambientes, arquiteturas, paisagens naturais, vestuário etc. dos locais
retratados. Estes elementos também podem ser explorados em sala de aula.
Assim como os textos, a arte também é permeada pelo olhar de quem a
constrói. Como este outro (distante) e o seu mundo foram representados? Esta
habilidade certamente contribuirá para que cada estudante aprimore sua
criticidade e seu poder de análise diante das narrativas a qual é submetido(a)
no seu dia a dia, tanto na escola, quanto fora dela.

Iniciamos pelo já clássico Joe Sacco. Suas reportagens em quadrinhos versam


sobre a Palestina. Do autor temos: “Palestina: uma nação ocupada” (2000);
“Palestina: na faixa de Gaza” (2005); “Notas sobre Gaza” (2010) e “Palestina –
edição especial” (2011). As referidas obras apresentam o contexto dos conflitos
entre árabes e israelenses, as questões políticas e sociais da região. Há
também um diálogo com Edward Said, o que contribui para a discussão sobre
os orientalismos.

Para contribuir com um diálogo plural menciono a história em quadrinhos que


narra a história do povo judeu ao longo de 4000 anos. Intitulada “A história dos
judeus, o povo do livro – uma aventura de 4.000 anos”, escrita por Stan Mack
(2009). A obra apresenta a trajetória dos judeus ao longo do tempo destacando
algumas passagens significativas da história antiga; da idade média; problemas
com a inquisição; o sionismo dos séculos XIX-XX. Oferece um capítulo sobre a

Novas Mídias e Orientalismos


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Palestina e América entre os anos 1900 e 1946 intitulado ‘primos de mudança’
no qual faz referência as imigrações. Relata a Shoá (holocausto) e do pós-1945
até a atualidade. Fazendo uso destas obras podemos refletir sobre o contexto
do Oriente Médio e o conflito entre Israelense e Palestinos. Os quadrinhos aqui
referidos nos introduzem numa temática que está presente nas séries finais do
ensino fundamental e também no Ensino Médio. Respeitando as respectivas
faixas etárias é possível explorar as trajetórias, os conflitos, as versões
históricas que são apresentadas em cada uma delas buscando conhecer mais
sobre suas realidades e a geopolítica da região.

Outro eixo temático de estudo que sugerimos é pensar o contexto da Segunda


Guerra Mundial (1939-1945). O conteúdo é amplo e com uma vasta
historiografia. Assim, ofertamos a oportunidade de realizar o estudo desta
temática através de algumas histórias em quadrinhos que abordam o tema e
seus desdobramentos. Partindo do assunto Segundo Guerra explorar outros
tópicos que estejam a ele relacionados. É uma oportunidade para refletir com
os estudantes a história do Japão e dos japoneses. Fazendo um recorte
temático podemos explorar as diferentes temáticas da história japonesa. No
que diz respeito a Segunda Guerra Mundial temos o clássico mangá “Gen, pés
descalços” de Keiji Nakazawa (10 volumes). De maneira genuína o autor nos
apresenta a história de uma família japonesa no contexto da guerra, incluindo o
ataque dos Estados Unidos com o uso de duas bombas atômicas lançadas
sobre Hiroshima – cidade do personagem – e Nagasaki. É uma possibilidade
para abordar a história do conflito através da biografia e relatos pessoais. Um
olhar mais localizado e pessoal.

Inserido neste eixo temático, indicamos a obra “Hiroshima: a cidade da


calmaria”, de autoria de Fumiyo Kouno (2010). Nesta narrativa tomamos
contato com os resultados oriundos da radiação causada pelo lançamento da
bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima. Anos depois ainda é difícil falar
sobre o tema, as doenças, as consequências entre a população local. A obra
nos permite acompanha a vida cotidiana dos protagonistas e nos conduz a
refletir sobre o uso da bomba.

Buscando oferecer um panorama maior sobre o Japão e sua história temos


“História do Japão: origem, desenvolvimento e tradição de um país milenar”.
Publicada em 1995, a obra integrou as atividades comemorativas do centenário
do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação Brasil-Japão. Esta história em
quadrinhos nos permite conhecer a história do Japão da antiguidade ao final do
século XX. A obra pode ser trabalhada no todo ou utilizar partes selecionadas
as quais se pretenda analisar.

Buscando aproximar o geograficamente distante, temos a indicação da história


em quadrinhos intitulada “Banzai!: história da imigração japonesa no Brasil”,
produzida por Francisco Noriyuki Sato e Julio Shimamoto (arte). Publicada em
2008 em comemoração ao Centenário da Imigração Japonesa no Brasil. Nesta
obra temos a viagem iniciada no Kasato Maru até as fazendas no Brasil.
Temos a imigração japonesa e os problemas no período da Segunda Guerra

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Mundial e o Estado Novo que vigorava no Brasil. Apresenta a cultura japonesa
e sua inserção na economia brasileira. Toda a narrativa tem como linha mestra
o diálogo entre um jovem descendente japonês nascido no Brasil e seu avô
que imigrou do Japão. Entre lembranças, memórias, fotografias e recordações
a história da imigração japonesa nos é apresentada. É uma excelente obra
para conhecermos mais sobre este grupo étnico e sua presença no país.

“Zero eterno”, coletânea composta por cinco volumes foi produzida por Naoki
Hyakuta com arte de Souichi Sumoto. Foi publicada originalmente em 2006 no
Japão e no Brasil no ano de 2015. O romance em forma de quadrinhos nos
conduz ao universo dos pilotos kamikazes que compunham as unidades
militares do Império Japonês que executavam ataques suicidadas contra alvos
inimigos no decorrer da Segunda Guerra Mundial. A narrativa nos faz refletir
sobre o militarismo e sobre a confiança destes soldados nas ordens do
imperador japonês. A obra nos possibilita conhecer outras versões sobre a
conflito mundial do ponto de vista japonês.

George Takei escreveu suas memórias dos campos de concentração nos


Estados Unidos da América durante a Segunda Guerra Mundial fazendo uso
das histórias em quadrinhos. Na obra intitulada “Eles nos chamam de inimigo”
(2019) somos confrontados com uma dura realidade vivenciadas por
aproximadamente 120 mil nipo-americanos encarcerados pelo governo dos
EUA. Uma parte da história da Segunda Guerra Mundial pouco referenciada e
conhecida na Educação Básica brasileira. É uma obra que nos permite
trabalhar sobre a construção dos inimigos, a imigração, diferenças culturais e
direitos humanos. Pois muitos dos aprisionados nasceram nos Estados Unidos
e mesmo assim, foram rotulados de inimigos. A obra nos convida a refletir
sobre a importância da memória como objeto para o estudo da História.
Podemos abordar a importância dos relatos produzidos pelas pessoas que
vivenciaram períodos históricos e que hoje estudamos. Neste sentido, a história
em quadrinho pode ser uma fonte histórica, assim como tantas outras, jornais,
diários, fotografias, cinema etc. Apresenta também uma narrativa histórica.

Fazendo a conexão com os relatos e memórias, indicamos a possibilidade de


serem utilizadas as histórias em quadrinhos que foram produzidas partindo as
experiências pessoais de seus autores. Sejam estas como experiências de vida
ou como relatos de viagens. Assim como os relatos de viagens produzidos por
viajantes estrangeiros utilizados como documentos para a pesquisa histórica
com o objetivo de conhecermos os olhares sobre Brasil Império, por exemplo.
Estamos cientes que estes exigem todo um cuidado e atenção. Também os
relatos na versão quadrinhos exigem que deixemos claro aos estudantes que
se trata de um olhar sobre o lugar e não da verdadeira história sobre aquele
lugar. Evidenciar que se trata de versões, de visões pessoais sobre um
determinado lugar. Mas que tais obras nos possibilitam compreender como
estes olhares são formadores de estereótipos ou que possam contribuir para
que venhamos a desfazer preconceitos existentes.

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Neste grupo, temos as obras de Guy Delisle. O autor realizou viagens a
diferentes países, nos quais conviveu por um certo tempo, muitas vezes por
motivo de trabalho. O resultado foi a produção de relatos de viagens no formato
de quadrinhos. Temos: “Shenzhen: uma viagem à China”; “Pyongyang: uma
viagem à Coreia do Norte”; “Crônicas de Jerusalém” e “Crônicas Birmanesas”.
Uma das possibilidades para a utilização destas narrativas é trazer o oriente
para mais próximo da sala de aula. O recurso do relato de viagem associado
com os quadrinhos é outro ponto positivo. As narrativas contemporâneas
podem ser uma das maneiras que introduzimos questões pertinentes dos
diferentes orientes evidenciando que não existe um oriente, mas sim múltiplos.

Para finalizar esta exposição sobre as histórias em quadrinhos menciono duas


obras que têm a Síria como tema. A primeira é a obra de Riad Sattouf intitulada
“O árabe do futuro: uma juventude no Oriente Médio”. A coletânea é composta
por quatro volumes cobrindo a vida do autor desde 1978 até 1992. A narrativa
foi construída a partir das suas memórias quando menino e da sua família na
Líbia de Kadafi e na Síria de Hafez al-Assad. É um relato pessoal, uma viagem
pelas memórias pessoais do autor que se interseccionam com acontecimentos
históricos da região e dos países.

A segunda, foi produzida por Zerocalcare sob o título “Kobane Calling: ou como
fui parar no meio da guerra na Síria” (2017). Zerocalcare foi enviado por um
jornal italiano e atravessou a Turquia, o Iraque e o Curdistão Sírio para chegar
até a cidade de Kobani onde encontrou-se com o exército de mulheres curdas.
Estas mulheres lutavam contra o avanço do Estado Islâmico na cidade e na
região. Desta viagem o autor produziu a história em quadrinho. É uma obra
sobre experiência pessoal e profissional que nos possibilita adentar em
temáticas contemporâneas. Uma contribuição para consolidar os quadrinhos
como um meio de produzir conhecimento e de divulgar informações sobre
diferentes temáticas.

Apontamentos finais
Um dos grandes desafios das aulas de História é desnaturalizar certas ideias
ou concepções. Dentre estas ideias ou concepções é que o oriente seria uma
unidade, ou seja, é muito comum identificarmos falas e produções abordando o
oriente de maneira genérica, como se tudo o que fosse “distante” pudesse ser
nomeado de oriente. Porém, existem vários orientes, não somente na
nomenclatura geográfica, como Oriente Próximo, Oriente Médio e Extremo
Oriente, mas também inúmeras realidades locais ou regionais, cada uma
destas com suas identidades e culturas.

Cada história em quadrinhos apresentada oportuniza um olhar, uma


aproximação, uma discussão e um aprendizado sobre diferentes regiões,
tempos, realidades e contextos do que normalmente fica rotulado
genericamente de oriente. Acreditamos que oportunizar a mudança de olhar
entre os estudantes das séries finais do Ensino Básico e do Ensino Médio já se
configura em um avanço para o conhecimento.

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Referências biográficas
Dr. Fabian Filatow. Licenciado, bacharel e mestre em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pós-
doutorado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
UFRGS (PPGH-UFRGS). Professor de história na rede municipal de ensino da
Prefeitura de Esteio (RS) e professor de história na rede estadual de ensino do
Rio Grande do Sul.

Referências bibliográficas
DELISLE, Guy. Crônicas Birmanesas. São Paulo: Zarabatana, 2012.

DELISLE, Guy. Crônicas de Jerusalém. São Paulo: Zarabatana, 2012.

DELISLE, Guy. Pyongyang: uma viagem à Coreia do Norte. São Paulo:


Zarabatana, 2017.

DELISLE, Guy. Shenzhen: uma viagem à China. São Paulo: Zarabatana, 2012.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História: experiências,


reflexões e aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2012.

HYAKUTA, Naoki. Zero eterno. (5 volumes). São Paulo: Editora JBC, 2015.

KOUNO, Fumiyo. Hiroshima: a cidade da calmaria. São Paulo: JBS, 2010.

MACK, Stan. A história dos judeus, o povo do livro – uma aventura de 4.000
anos. São Paulo: Via Lettera, 2009.

NAKAZAWA, Keiji. Gen, pés descalços. (10 volumes). São Paulo: Conrad,
2011.

SACCO, Joe. Palestina – edição especial. São Paulo: Conrad, 2011.

SACCO, Joe. Palestina: Notas sobre Gaza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.

SACCO, Joe. Palestina: uma nação ocupada. São Paulo: Conrad editora do
Brasil, 2000.

SAID, Edward W. Orientalismos: o Oriente como invenção do Ocidente. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SATO, Francisco Noriyuki et al. História do Japão: origem, desenvolvimento e


tradição de um país milenar. São Paulo: Improta Gráfica e Editora, 1995.

Novas Mídias e Orientalismos


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SATO, Francisco Noriyuki; SHIMAMOTO, Julio. Banzai!: história da imigração
japonesa no Brasil. São Paulo: NSP-Hakkosha, 2008.

SATTOUF, Riad. O árabe do futuro: uma juventude no Oriente Médio. (4


volumes) Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

TAKEI, George. Eles nos chamam de inimigo. São Paulo: Devir, 2019.

VERGUEIRO, Waldomiro. “A linguagem dos quadrinhos uma alfabetização


necessária” in: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. Como usar as
histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2016, p. 7-29.
Zerocalcare. Kobane Calling: ou como fui parar no meio da guerra na Síria. São
Paulo: Nemo, 2017.

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A VERDADE DE EVA: A MEMÓRIA POR MEIO DAS
MÁQUINAS EM MAGNETIC ROSE (1995) por Pedro
Gabriel de S. e Costa e Fernando de B. Honda

Katsuhiro Otomo é um mangaká cuja obra mais conhecida é Akira (1982-1990)


e que, mesmo com sua relevância, dentro do escopo de pesquisa deste
trabalho, não foram encontrados diversos trabalhos utilizando-o como tema de
estudo. Por sua vez, Koji Morimoto havia dirigido, entre outras animações, a
adaptação de Akira (1988), já Satoshi Kon é conhecido por ter escrito e dirigido
alguns filmes afamados, como Tokyo Godfathers (2003) e Paprika (2006).
Pensando nisso, é interessante trazer o foco para uma obra ainda menos
trabalhada, mas não menos importante. Dirigida por Morimoto, escrita por Kon
e baseada na manga de Otomo, Magnetic Rose (1995) faz parte de uma
antologia chamada Memories (1995), composta por mais dois filmes: Stink
Bomb e Cannon Fodder. Nos seus 45 minutos de duração, Magnetic Rose
apresenta diferentes níveis da memória e ainda coloca em dúvida as relações
interpessoais e motivações dos personagens. Nessa apresentação, a
animação acaba por desconstruir quaisquer convicções acerca da realidade,
isto é, no que os personagens podem acreditar sobre o que seria a realidade.

A história se passa no ano de 2092 e gira em torno de uma equipe de


astronautas, que ao tentarem responder a um pedido de socorro, encontram
uma nave antiga, deteriorada e, em um primeiro momento, abandonada em
uma parte do espaço. Essa parte é conhecida pela grande quantidade de
destroços. Ao adentrá-la se deparam com um ambiente destoante de seu
exterior. Dentro, a localidade não está abandonada, não há sujeira e, inclusive,
denota uma riqueza de quem ali vive. Conforme averiguam os aposentos em
busca da origem do S.O.S., a equipe passa por situações que não
compreendem enquanto descobrem sobre a história da senhora daquele lugar.

Eva Friedel teria sido uma grande cantora de ópera que perdera não somente a
voz, mas também seu noivo Carlo Rambaldi, tragicamente assassinado. Não
conseguindo lidar com a morte de seu amado, isolou-se no espaço, onde
poderia continuar a viver somente com suas lembranças. Por diversas vezes os
cosmonautas percebem que há algo de errado, a comida, a bebida e os
pertences de Eva se desfazem ao toque. Os jardins repletos de rosas não
passam de hologramas. Ouvem, veem e vivenciam circunstâncias que não
condizem com aquele tempo, espaço e indivíduos. Quanto mais interagem com
as memórias de Eva, mais evidente fica a distorção da realidade e as intenções
do pedido de socorro.

Novas Mídias e Orientalismos


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Nesse contexto, observa-se uma possível referência a um clássico mito, tendo
em vista a forma como a tripulação da espaçonave Corona recebe o pedido de
socorro: ao invés de uma mensagem tradicional, o que ouvem é a uma ópera.
Em a Odisseia, clássico texto de Homero, é apresentado o perigo de seguir o
canto das sereias: “Quem quer que, por ignorância, vá ter às Sereias, e o canto
delas ouvir, nunca mais a mulher nem os tenros filhinhos hão de saudá-lo
contentes, por não mais voltar para casa. Enfeitiçado será pela voz das Sereias
maviosas.” [HOMERO, 2017, p.203]

Desta forma, assim como as sereias atraíam os navegantes à morte iminente


com seu canto, nessa estória os astronautas, intrigados, seguem em direção
ao cerne daquela música. Como afirma Percy Cohen [1968] os mitos poderiam
ser tratados como maneiras de tentar explicar os acontecimentos dos quais
não se tinha uma razão, uma tentativa de dar sentido ou uma forma de
narrativa. Nesse caso, ele teria não uma função histórica, mas sim a
capacidade de acrescentar uma camada lúdica, ou mesmo uma analogia. Já,
como trata Edgar Morin [2020], a realidade dos homens criaria os mitos,
formulando realidades superiores. Mas, independentemente do quão maior
elas sejam, caem quando aqueles que as criam e as nutrem, deixam de existir
e, assim, uma nova leva de mitos são criados em substituição. Embora
expliquem de perspectivas diferentes a existência dos mitos, os autores
convergem em um aspecto que é inerente as estórias criadas: a busca por
respostas aos assuntos que continuam a afligir à humanidade.

Da mesma forma que se criam réplicas com o pretexto de preservar, a exemplo


as grutas de Lascaux como traz Baudrillard [1991], que, ironicamente, colocam
em risco a supremacia do original, ao ponto de se tornarem o referencial, as
memórias de Eva, não importa se foram ou não parte de uma possível
realidade, a distância, física, temporal e pessoal, dos acontecimentos
permitiriam com que se tornassem uma verdade naquele meio criado. Ou seja,
o mundo criado dentro daquela espaçonave seria uma busca pela recriação do
mundo dito real, mas que, por se tratar de um refúgio distante do possível
original, torna-se a única realidade. O que ficou para trás não seria mais
reconhecido como o original, o tornando “falso”. Essa situação estaria de
acordo com o pensamento de Morin e o ciclo dos mitos. As memórias e os
mitos surgem e terminam junto daqueles com quem têm ligação.

Nesse contexto, as responsáveis por manter Eva viva seriam as suas próprias
memórias. Ou seja, enquanto elas existirem, ela existe. Porém, em Magnetic
Rose as memórias de Eva são as máquinas. Essas, por sua vez seriam então
os mnemones de toda esta história. Mnemones, segundo Le Goff [1990, p.
438], eram, antes da escrita, os responsáveis por conservar a memória, dita
útil, nas cidades e que, após o advento da escrita, tornam-se arquivistas. Ainda
conforme Le Goff [1990], ao contrário da memória humana, a memória
eletrônica não sofreria com instabilidades, não teria limite e não seria maleável,
mas ainda dependeria do humano para programá-la: “a memória eletrônica não
é senão um auxiliar, um servidor da memória e do espírito humano” [LE GOFF,

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1990, p. 470]. Ora, então seguindo essa lógica, a máquina depende das
informações que são disponibilizadas a ela, em outras palavras, só irá
processar/arquivar aquilo que for de interesse de quem a programou. Portanto,
em um cenário onde tudo é criado e mantido por máquinas, aquilo que elas
conhecem se torna a realidade de fato para Eva.

Como disse Morin: “Nós consideramos irreal o imaginário dos outros, que para
eles, no entanto, é bem real, sem nos dar conta de que nossa realidade
comporta constitutivamente elementos imaginários” [MORIN, 2020, p.24] e a
realidade “superior”, seguindo este pensamento, se daria pela soma ou conflito
de realidades individuais. No caso, todo o sistema presente na nave está, a
priori, isolado do resto do universo, sendo assim, não existiria uma
possibilidade de questionar o que supostamente teria acontecido, as memórias
de Eva. Isto ganharia peso se for considerado que:

“A última e absoluta cidadela da nossa realidade está, para cada


um de nós, no coração dos nossos sofrimentos, prazeres, alegrias,
amores, medos, desejos. Nessa ótica, nossos sentimentos vividos,
subjetivos, nos parecem mais reais que tudo. Para nós, humanos,
a afetividade, que é a própria subjetividade, é o núcleo duro da
nossa realidade” [MORIN, 2020, p.25].

É importante reforçar que o motivo do isolamento da senhora eram as perdas e


traumas de sua vida na Terra. O impacto com essa nova forma de apresentar
uma realidade, por meio das máquinas, aconteceria quando novos
desbravadores adentrassem a nave abandonada. A partir dali, seria possível
refutar o passado exposto, entretanto, existe a chance de aderir ao que é
apresentado. Neste caso, o encanto se concretizaria, e deste momento em
diante vive-se a mentira. Um mundo onde a dor não existe, onde os erros do
passado são resolvidos, onde os que morreram voltam a vida, este seria o
mundo que seduz, mas também que se desfaz ao toque como mencionado
anteriormente. Parte dos que atendem ao pedido de socorro irão viver
eternamente dentro destas realidades e muito provavelmente aqueles que não
tendem ao pedido de socorro, sedem, morrem de qualquer forma, tendo em
vista as dificuldades de evasão impostas pela segurança interna e o campo
gravitacional externo.

Vale salientar que as mesmas máquinas, responsáveis por manter viva a


memória de Eva, assumem a forma da cantora. As máquinas mostram todos os
trejeitos físicos e cognitivos, o computador torna-se seu duplo, mas, como seu
duplo, não é o original e como disse Baudrillard:

“[…] a reprodução holográfica, como toda a verdade de síntese ou


de ressureição exacta do real, […] não é o real, é já hiper-real. Não
tem, pois, nunca valor de reprodução (de verdade), mas sempre já
de simulação. Não exacta, mas de uma verdade ultrapassada, isto
é, já do outro lado da verdade” [BAUDRILLARD, 1991, p. 136].

Novas Mídias e Orientalismos


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Ou seja, mesmo que sejam as verdades que ela, Eva, acreditava, ou queria
acreditar, deixaram de ser reais a partir do momento que deixam de vir dela,
passam a ser uma simulação. Talvez isso explique o motivo pelo qual exista
um fluxo de novas vítimas atraídas. Assim como a máquina confunde-se com
sua senhora, se faz necessária a presença de outras personagens para os
“papeis” das pessoas que a rodeavam, em específico, Carlo, o amor cuja vida
fora ceifada antes do casamento.

Como visto anteriormente, os hologramas, e nesse caso outras tecnologias,


não são o real e não têm valor do real, porém, o simulam. Ao mesmo tempo,
não existe uma clareza se seriam apenas eles os responsáveis por todas as
simulações, e porque não ilusões, constantes na trama. Inclusive, outra forma
de tentar explicar tudo o que acontece seria por meio do sobrenatural, uma
história/lenda de fantasmas moderna.

Fantasmas são seres sobrenaturais temidos e/ou respeitados por diversas


culturas. Em algumas, existe uma mitologia que os explique, assim como
formas de tratar os mortos e cerimónias para afastar ou agradar o espírito
daqueles que se foram, em outras, as histórias são voltadas ao entretenimento.
Yi-fu Tuan [2005], por exemplo, ao estudar textos de Wolfram Eberhard, traz
que em lendas populares na China:

“o fantasma amedronta por causa da sua aparência grotesca. A


surpresa aumenta o horror: um fantasma pode no início simular a
forma de uma bela pessoa; mas quando a pessoa começa a
aceitar metempsicose, transforma-se em um monstro com cabelo
comprido, língua grande e sangue escorrendo pelo seu vestido
branco” [TUAN, 2005, p. 191].

Assim como Morin fala sobre a sucessão dos mitos, Yu-fu traz como os
fantasmas são os últimos seres supersensíveis a serem esquecidos, muitas
vezes sendo a própria substituição:

“Os deuses e deusas da natureza foram embora primeiro. Na


Inglaterra, o rio Ribble foi outrora o lar de uma deusa a quem eram
oferecidos sacrifícios em intervalos regulares. Agora é a residência
de um fantasma chamado Peg O’nell, que exige uma vida a cada
sete anos” [TUAN, 2005, p. 201].

Mais uma vez o tempo passa, as gerações mudam, mas tudo se repete, os
nomes mudam, entretanto, a história de fundo continua a mesma. Essas lendas
se adaptam aos novos tempos, histórias de carruagens fantasma viram carros
fantasma, castelos, casas e mansões assombradas dão lugar à fábricas,
escolas, prédios. Nesta perspectiva, por que não uma nave. A sereia seria o
fantasma, o fantasma seria a/o máquina/holograma.

Para fomentar esse pensamento, podemos considerar que, segundo Shuichi


Kato [2011], há séculos a cultura japonesa, origem da obra abordada, se

Novas Mídias e Orientalismos


74
baseia num conceito de “aqui=agora”, ou seja, um espaço limitado, no caso o
Japão, e no tempo presente. No entanto, em Magnetic Rose esta tradição não
se aplicaria, tendo em vista que se trata de um acontecimento num ponto
distante do espaço sideral, no futuro e lidando com assuntos do “passado”.
Talvez por isso, as personagens remetam à outras nacionalidades que não a
nipônica. Por outro lado, o fato de ser “eternamente” repetida a sequência –
busca, isca, armadilha, captura – tornar-se-ia um, também, “eterno” presente,
onde sempre obter-se-ia o êxito e a nave permaneceria sempre sendo o local
dos acontecimentos.

Com base nisso, em Magnetic Rose a única forma de se ver livre do ciclo
vicioso em que se encontram presos, seria por meio da destruição. Como foi
exposto, a tendência é a substituição, com novas comunidades, novas
histórias/mitos/lendas são criadas, muitas vezes as mesmas, porém
repaginadas, então, somente com a destruição máxima se estaria livre de tudo,
a libertação seria, enfim, a morte, quando as memórias deixariam de existir
para si. Sem um emissor, nem um receptor, nada mais existe, afinal, a
memória por si só não perdura, se faz necessário algo ou alguém para lembrar.

Referências
Pedro Gabriel de Souza e Costa é mestrando, pesquisador CAPES com bolsa
integral do PPGCom da Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba. Especialista
em metodologia do ensino de artes, graduado em fotografia e licenciado em
artes visuais.

Fernando de Barros Honda é mestrando, pesquisador CAPES com bolsa


integral do PPGCom da Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba. Especialista
em teologia e salas de leitura, graduado em fotografia e graduando em letras –
português e japonês pela Universidade Positivo.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradução: Maria João da


Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

COHEN, Percy S. Theories of Myth. Man, New Series. v. 4, n. 3, p. 337-353,


set. 1969.

HOMERO. Odisseia. Tradução: Carlos Alberto Nunes. [Edição Especial]. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. Tradução: Neide Nagae


e Fernando Chamas. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução: Bernardo Leitão [et. al.].


Campinas: SP Editora da UNICAMP, 1990.

MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques.


ed. 2. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

Novas Mídias e Orientalismos


75
TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. Tradução: Lívia de Oliveira. São Paulo:
Editora UNESP, 2005.

Novas Mídias e Orientalismos


76
A HALLYU COMO DENÚNCIA DA ESCRAVIDÃO
SEXUAL DE MULHERES SUL-COREANAS por Gabriela
dos S. Schalcher e Márcio dos S. Rodrigues

A expressão “mulheres de conforto” nos últimos tempos tem se popularizado,


sobretudo através da difusão de produtos culturais de origem sul-coreana ao
redor do mundo. Embora tenha encontrado uma tradução para diferentes
línguas, o campo de experiências que essa expressão representa parece não
transmitir aos ocidentais o que ela realmente descreve: a real e aterrorizante
situação que eram imposta às mulheres, vítimas da escravidão sexual. Trata-se
de uma denominação que estigmatiza aquelas mulheres que estiveram sob a
condição de prostitutas, ainda que hoje seus corpos hoje estejam livres. Há
aqui um sentido pejorativo à nomenclatura, uma vez que passa a ideia de que
elas, por serem prostitutas, tinham como função fornecer "conforto" aos
soldados japoneses [PARRILHA, 2022, p.7]. Pode-se inferir que seja um nome
forjado por seus agressores. Em outras palavras, um eufemismo criado para
tornar uma situação de exploração “agradável” do ponto de vista do enunciado.
Uma geração de mulheres foi marcada, deste modo, por esse estigma. A
memória dessas mulheres vítimas das de violência cometidas pelo império
japonês durante as invasões ao território coreano não é muito conhecida no
ocidente ou mesmo na Coreia do Sul, mesmo que sejam fatos assombrosos da
história contemporânea do país. Porém, com a crescente influência da onda
coreana pelo mundo, mais conhecida como hallyu, essa experiência traumática
tem vindo à tona. Por hallyu (한류, no hangul, o alfabeto coreano) trata-se
particularmente da influência da cultura sul-coreana no mundo, através de
investimentos do governo no âmbito da cultura. À medida que a Coreia se
expande culturalmente, a questão em torno das violências cometidas por
soldados japoneses volta a ser debatida e até mesmo se tornado evidente para
comunidades que não possuíam o menor conhecimento sobre o ocorrido.

Ainda que pareça inusitado, a hallyu ganhou mais força por meio da cultura pop
japonesa. No Brasil, por exemplo, desde o final da década de 1980 temos a
presença das animações japonesas (animes), histórias em quadrinhos
(mangás) e os seriados de ação com efeitos especiais (popularmente
chamados de tokusatsus) [GAJZÁGÓ; SACOMAN, 2019, p. 1291]. Com a
introdução de parte da cultura asiática no ocidente, obras sul-coreanas -
literárias, audiovisuais, dentre outras - não demoraram para se difundir em
nosso país, visto o empenho dos sul-coreanos para sua divulgação no mundo.
Isso pode ser visto, por exemplo, com a crescente visibilidade mundial de obras
sul-coreanas como o filme “Parasita”, do diretor Bong Joon-ho 봉준호. Na 92ª

Novas Mídias e Orientalismos


77
edição do Oscar em 2022, o filme ganhou 4 estatuetas. “Parasita” foi o primeiro
filme de língua não-inglesa a vencer também na categoria de melhor filme,
servindo de demonstração de como o ocidente estava se voltando ainda mais
para a Coreia do Sul e suas produções.

Muitas das obras sul-coreanas exibem representações históricas e, por isso


mesmo, torna-se comum surgir o questionamento em alguns consumidores
ocidentais sobre as referências culturais daquilo que estão consumindo. É o
caso da adaptação do webtoon (isto é, quadrinho feito para a internet) sul-
coreano “Amanhã” (내일) em uma série live-action de mesmo nome, lançada
em 2022 e disponibilizada no Brasil pelo serviço de streaming da Netflix. Essa
produção conta com várias subtramas que nos permitem compreender temas
traumáticos da história desse país asiático. No episódio 13 da primeira e única
temporada, vemos a história das personagens Yun-i e Lee Jeong-mun sendo
contadas. Ambas se tornaram vítimas da escravidão sexual, ao serem
enganadas quando se candidataram a um emprego em uma fábrica no Japão.
A experiência das personagens nos permite compreender que o recrutamento
dessas mulheres se dava de duas maneiras: a captura forçada de mulheres
mais novas ou através de um processo de seleção fraudulento - muitas
mulheres relatam terem se inscrito para empregos em fábricas [ROLIM, 2018,
p. 2]. Quando conseguem fugir dessa exploração, é apresentada outra dura
realidade. Seus compatriotas, ao invés de acolhê-las, as julgavam e as
tratavam com desprezo. Durante o episódio é exibida a ideia de que algumas
pessoas negam este passado por não terem presenciado os acontecimentos
diretamente. Outra obra que tematiza o tema das “mulheres de conforto” é o
manhwa (termo para quadrinho produzido na Coreia do Sul. No hangul, 만화)
“Grama”, da autora Keum Suk Gendry-Kim 김금숙.

Figura 1 - Capa do manhwa “Grama”. Trata-se de uma história que acompanha


a personagem desde a sua juventude, marcada pela fome e pobreza, até os
dias atuais.

Novas Mídias e Orientalismos


78
Publicado em 2020 no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, “Grama” conta o
relato de Ok-sun Lee, sequestrada aos 15 anos enquanto caminhava na rua
voltando para seu trabalho em 1942. Por se tratar de um quadrinho feito com
base no relato e o processo de entrevista o objeto de observação se torna mais
pessoal, uma senhora tendo que reviver traumas passados é expressado na
obra com desenhos em preto e branco que em momentos mais carregados a
imagem tenta expressar as emoções dos personagens trazendo mais
profundidade e proximidade ao leitor.

Onda hallyu no Brasil


A onda coreana ou hallyu tem sido um mecanismo atrativo para a visibilidade
da Coreia do Sul. Sua influência ainda não encontra equivalência a um poder
tão difundido no ocidente como o peso cultural dos Estados Unidos, porém já é
reconhecida. Sua influência se deve, em maior ou menor grau, ao investimento
estatal no que se refere ao desenvolvimento e sofisticação dos meios de
comunicação, bem como o uso de ferramentas como vídeos online, programas
de televisão, k-dramas (termo para as séries dramáticas produzidas na Coreia
do Sul) e a presença massiva em redes sociais. Este investimento, contudo,
iniciou-se de dentro para fora. Comparada com a do início dos anos 2000, a
ficção televisiva sul-coreana tornou-se visivelmente diversificada em seus
gêneros, conceitos e sistemas de produção [KIM, 2018, p.121]. A preocupação
em tornar suas produções atrativas, competindo diretamente com uma potência
mundial (mesmo que inicialmente em seu próprio território), ajudou no atrativo
estrangeiro pelo investimento em qualidade.

Com a hallyu ajudando na economia do país, o investimento também


aumentou, mas a proliferação não se deu apenas por esse fator. A facilidade
da comunicação da internet e do hábito dos fãs de divulgarem a sua rede de
consumo, principalmente a juventude com anseio de identificação e de
expressar-se para serem compreendidos como seres sociais. Alguns sujeitos
buscam tais referências, principalmente, por não possuírem forma simbólica
para manifestar-se como ser social e dizer quem são, por isso tomam outras
pessoas e grupos como orientadores de suas características e atitudes
comportamentais [SANTANA e SANTOS, 2018, p.32].

Com a divulgação orgânica e o investimento em produtos de divulgação, o


Brasil se tornou um grande receptor da cultura sul-coreana. Temos contato
com expressões como k-dramas, produtos de cuidado com a pele, manhwas
(만화, “história em quadrinhos”) e jogos. Com a influência dos meios de
entretenimento tornando-se populares as representações históricas contidas
neles ficam mais acessíveis, quadrinhos por exemplo são bastante difundidos
por meios alternativos online, o atrativo de diferentes traços de desenho, a
facilidade de leitura e assim como os k-dramas geralmente com narrativa fluida
e lúdica, por vezes trazem narrativas mais sérias.

Mulheres escravizadas sexualmente e suas representações atualmente


Os crimes do Japão Imperial durante a expansão colonialista na península
coreana ainda são motivo de debate atualmente, sendo comparados muitas

Novas Mídias e Orientalismos


79
vezes com os cometidos pela Alemanha Nazista no mesmo período. Tal como
os adeptos do hitlerismo, o país asiático usava da ideia de raça superior
proveniente do ultranacionalismo para justificar suas pretensões imperialistas.
Convém ressaltar que ambos os regimes tinham suas peculiaridades e
obviamente existem grandes diferenças em como cada um desses países lidou
com seus conflitos. Os países asiáticos têm uma diferença cultural significativa,
quando comparados com o mundo ocidental, na maneira de reconhecer e
pensar num determinado assunto, especialmente quando se trata de um caso
histórico [NAM, 2018, p.1]. Apesar de algumas tentativas de reconciliação,
como o acordo de 2015 para tentar sanar a dívida japonesa, onde se
desculpou e forneceu o equivalente a 9 milhões de dólares para indenizações,
contudo o acordo foi negado por algumas vítimas e ativistas do país que
consideram as ações como insuficientes. Mesmo que tenha existido uma
demonstração de reconhecimento do país sobre o crime de “'mulheres de
conforto”, ainda existe o negacionismo por parte de alguns autores e cidadãos
japoneses. Fatos que podem ser considerados como crimes foram e ainda são
negados ou amenizados. Além disso, há o nacionalismo japonês, cujo caráter é
bastante singular, de acordo com Nam [2018]: Este sentimento vem do
pertencimento ao país, referindo-se ao território e por este fato não existe o
sentimento de culpa ou aceitação de episódios de erro em sua história para
com as mulheres escravizadas sexualmente.

O lugar da mulher na sociedade sul-coreana também deve ser pensado com


um ponto de análise, não apenas sobre o crime do Japão Imperial contra estas
mulheres, mas sobre o fato de até os anos 1980 este episódio ser pouco
revelado. No manhwa "Grama", já citado, quando a senhora Ok-sun Lee
(protagonista) relata que, ao fim da Segunda Guerra Mundial, os donos das
casas de tortura sexual (“casas de conforto”) simplesmente somem, deixando
as vitimas para trás sem meios de sobreviver. Quando as garotas saem pelo
centro de Yanji na China são menosprezadas. Mesmo a China também sendo
vítima da colonização japonesa, isso se deve ao fato de assim como o Japão, a
Coreia do Sul e a China serem países com o sistema social patriarcal. Por
vezes, mulheres são humilhadas e criticadas por não serem virgens e por não
protegerem sua castidade. No mesmo quadrinho, assim que Ok-sun Lee é
abusada sexualmente pela primeira vez, além do trauma físico e psicológico,
ela cita que se sentiu suja e que após isso não poderia voltar para casa, desta
vez não pelo cárcere físico, mas por ter perdido sua virgindade mesmo que
contra sua vontade.

Com o cenário pouco ou nada favorável às mulheres, muitas se refugiaram no


silêncio. Numa sociedade patriarcal, estas mulheres passaram então a serem
vistas como uma desgraça para a sociedade coreana. Além disso, vale
ressaltar que na Coreia do Sul e no Japão ainda persistem ideais confucianos
nos quais as mulheres são criticadas se não protegerem a sua virgindade
[NAM, 2018, p.17]. Além da humilhação pessoal, admitir tais acontecimentos
seria desonrar o próprio país. No k-drama "Amanhã” uma personagem, a
Senhora Yoo Buk-hui, assiste a uma entrevista com uma sobrevivente das
casas de escravização sexual e diz ao seu neto que não acredita nestes

Novas Mídias e Orientalismos


80
acontecimentos. Ela justifica não acreditar por ter vivido aquela época e nunca
ter visto nada daquilo. O seu neto estudante de história a confronta dizendo
que é verdade. Mesmo que essa situação pareça muito irreal e apenas
possível por se tratar de uma fictícia, é necessário destacar que a personagem
em questão era abastada financeiramente e morava em um local que não
aparentava ter sido diretamente afetado pela guerra e morava em um local que
não aparentava ter sido diretamente afetado pela guerra, é importante destacar
que em diferentes países e conflitos regiões e camadas sociais de um mesmo
país podem perceber os mesmos eventos de forma diferente, seja por seus
interesses ou como neste caso por não serem afetados da mesma jeito. Porém
o conflito de vivências e a defesa de que a experiência do outro não aconteceu
por vezes leva parte das futuras gerações a não acreditar nas vítimas, como é
representado no k-drama alguns sul-coreanos vandalizam a "estátua da paz" o
monumento em homenagem às mulheres coreanas que foram estupradas por
soldados japoneses na Segunda Guerra Mundial.

Produções como o manhwa "Grama" e o k-drama "Amanhã", embora sejam


meios de comunicação diferentes entre si, são expressões da onda hallyu. O
quadrinho, com seu caráter biográfico, ganhou diversos prêmios pelo mundo
como o Bulles d’Humanité, do diário francês L’Humanité. Já o k-drama
"Amanhã" também tomou grandes proporções ao ser disponibilizado pelo
serviço de streaming da Netflix e por fazer diversas críticas sociais à Coreia do
Sul. Este k-drama reuniu em torno de si espectadores ao redor do mundo.
Mesmo que em ambas as obras citadas o contexto seja voltado à história do
próprio país, a temática foi contextualizada para que o espectador pudesse
entender não apenas os eventos históricos, mas a perspectiva de mulheres
escravizadas sexualmente e que, por muito tempo, foram silenciadas e
desacreditadas.

Referências biográficas
Gabriela dos Santos Schalcher é graduanda do curso de licenciatura em
História pela Universidade Estadual do Maranhão.

Márcio dos Santos Rodrigues é Doutorando em História pelo Programa de Pós-


Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará
(UFPA), na linha de pesquisa Arte, Cultura, Religião e Linguagens. Mestre em
História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de
pesquisa 'História e Culturas Políticas' (2011) e licenciado em História pela
mesma instituição federal (2007). Atualmente é professor da Universidade
Estadual do Maranhão.

Referências bibliográficas
GAJZÁGÓ, Éva; Sacoman, Virgine Borges de Castilho, Introdução à hallyu: O
movimento da onda coreana entre o Brasil e a Hungria, em Caxias do Sul –
RS, de 30 de Setembro a 03 de Outubro de 2019, p.129.

KIM, Yaeri. The invention of the Mideu: redefining American television in South
Korea. Media, Culture & Society, v. 42, n. 1.

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81
NAM. Sun Young, As relações diplomáticas entre a Coreia do Sul e o Japão: o
caso das ‘Mulheres de Conforto’ da Coreia. Dissertação para obtenção de grau
de Mestre em Relações Internacionais - Universidade de Lisboa Instituto
Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2018.

PARRILHA, Ariel da Silva. As “mulheres de conforto” coreanas e a violência


sexual estrategica: Uma analise, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências Campus de Marília, 2022.

ROLIM, Maria Eduarda de Quadros. As “Mulheres De Conforto”: o Corpo Como


Território, 2018. Disponível em
https://www.academia.edu/37976951/Mulheres_de_Conforto_-
_o_corpo_como_territ%C3%B3rio.pdf

SANTANA, Aline Gomes; SANTOS, Salett Tauk. O consumo cultural de jovens


na cultura hallyu, Dossiê Consumo e Subjetividade Arquivos do CMD, Volume
7, N.2. Ago/Dez 2018.

Novas Mídias e Orientalismos


82
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTEXTO DE
PUBLICAÇÃO DO MANGÁ BUDA DE OSAMU TEZUKA
(1972-1983) por Gabriel Silvestre Ferraz

O presente trabalho visa apresentar os resultados da pesquisa de Iniciação


Científica intitulada de A representação de Buda na obra Buda de Osamu
Tezuka (1972-1983), realizada na Universidade Estadual de Maringá (UEM) no
ano de 2021. A pesquisa atentou para a representação da personagem de
Buda dentro do quadrinho. O recorte espacial foi o Japão, e o temporal o
período de 1972 até 1983, respectivamente, o país e os anos aonde a obra foi
publicada primeiramente. Objetivou-se analisar como a figura de Buda é
apresentada na obra, a fim de entender possíveis construções da imagem para
o público leitor. Para compreender essa representação, uma série de questões
foram necessárias, como por exemplo um estudo direcionado a uma análise
contextual do cenário de publicação do mangá.

Com isso, no presente artigo serão apresentadas algumas considerações


históricas do contexto cultural e religioso do Japão dentro do período
delimitado. Sobre essa temática, José Rodolfo Vieira (2017) nos alertou que, o
estudo de uma produção como uma história em quadrinhos, independente de
questões metodológicas ou intencionalidade, está envolto também da
necessidade de uma análise contextual tanto do autor da obra, como também
do cenário cultural temporal que a mesma foi produzida, pois essas questões
podem ocasionar efeitos tanto da produção, como na recepção da obra.

A partir das considerações elencadas por Vieira (2017), torna-se possível


compreender a necessidade do estudo do contexto de produção de um mangá.
Por Buda se tratar de uma obra com temática religiosa, um dos caminhos
tomados no decorrer do estudo foi com relação a um breve estudo da situação
em que encontrava-se, o budismo no momento de serialização do mangá.

Sobre esse questionamento, em primeiro lugar reforça-se que, a partir das


considerações de Richard Gonçalves André (2018), que historicamente o
budismo no Japão sempre teve um interligação tanto com as configurações
políticas da região como com as outras culturas que eram encontradas por lá.
Em adição, Jason Ānanda Josephson (2012) mencionou que a história religiosa
do Japão precisa considerar a interligação de diversos costumes e culturas que
formam a nação atual, além do mais, qualquer tentativa de definição religiosa
histórica para o país está envolta de movimentações políticas que foram

Novas Mídias e Orientalismos


83
tomadas na era Meiji (1868-1912) com a intencionalidade de formar uma
imagem dentro da temática para as outras nações

‘’[...] Definir religião no Japão foi um exercício de definição de


limites politicamente carregados que reclassificaram
extensivamente os materiais herdados do budismo, do
confucionismo e do xintoísmo. Todas as três tradições foram
radicalmente alteradas de uma forma que só recentemente
começou a gerar interesse acadêmico. Não podemos presumir um
conteúdo estável para “religiões japonesas” neste período de
tempo, muito menos continuidade ao longo do tempo. [...]’’
[JOSEPSHON, 2012. P. 11. Tradução nossa.]

Apesar da pesquisa não estar localizada temporalmente nos anos da era Meiji,
a argumentação de Josepshon (2012) e André nos ajudam a compreender que
o budismo no Japão está interligado com a postura política e social de
determinado contexto. Mais próximo do momento histórico da publicação de
Buda, compreender a situação do budismo envolve dois campos de análise, o
cenário internacional e o nacional japonês.

Em um contexto internacional de estudo, resgata-se a argumentação de


Baumann (2001) que reforçou a internacionalização do budismo principalmente
a partir dos anos finais do século XX. Sobre isso, Cristina Rocha (2014)
considerou que o budismo tornou-se com o passar dos anos em um tema
bastante popular no ocidente, presente no imaginário popular, porém não com
as mesmas bases e definições que as instituições tradicionais asiáticas
possuíam.

Conforme Rocha, (2014) o imaginário ocidental sobre o budismo é algo


resultante de diversas e distintas interações que a religião teve com as pessoas
fora da Ásia, os meios de contato foram diferentes e o fluxo em si dos contatos
foram outros. Apesar das considerações serem de datas mais próximas das
nossas, a argumentação de Rocha (2014) nos é interessante pois realça que o
contato do budismo com o ocidente foi algo impulsionado pela exposição
midiática, o que pode sugerir uma influência dessas mesmas mídias no
processo da criação da imagem do budismo para as pessoas de fora de
regiões que possuem a religião nas suas bases culturais.

‘’[...] As migrações em massa e imagens midiatizadas elevaram a


importância da imaginação no mundo contemporâneo. A presença
de imigrantes e instituições budistas no Ocidente, de praticantes,
professores e missionários budistas altamente móveis, da mídia
eletrônica e de massa, dos produtos da indústria cultural (tais como
filmes, livros, CDs, DVDs) e a internet influenciam o modo como o
budismo é imaginado e construído globalmente. Este imaginário
global é contestado ou hibridizado com o local. Fluxos globais não
viajam e estabelecem-se no espaço vazio. Eles são “localizados”,
ou seja, interagem e são reinterpretados de acordo com as

Novas Mídias e Orientalismos


84
condições locais. A forma como o zen budismo é compreendido e
praticado por alguém que pertença a esta escola no Japão é
diferente da forma como é compreendido e praticado por um
seguidor leigo no Norte Global, por exemplo.’’ [ROCHA, 2014. p.
70-71.]

Essas considerações são importantes para a compreensão do budismo


enquanto religião que se expandiu para fora de suas origens. Porém, Rocha
(2014) elucidou que o budismo nunca foi estático e desde seus princípios já era
uma postura em movimento, afinal, foi uma cultura originada historicamente na
Índia, mas que se expandiu por grande parte do oriente durante o passar dos
anos. A chegada do mesmo ao ocidente, para Rocha (2014) pode ser
compreendida como mais um passo no advento do budismo.

Já no caso japonês, Shimazono Susumu (2012) apontou que, ao menos desde


os finais da Segunda Guerra Mundial, o budismo no país foi organizado em
duas principais categorias e grupos, o budismo tradicional e novas
organizações orientadas pelos preceitos budistas. Mesmo com essas
categorias, daquele período em diante, Susumu (2012) mencionou que com o
passar dos anos, o interesse nas práticas e estruturas budistas no país no
geral decaiu, e ficou cada vez mais ligado com questões espirituais internas do
povo japonês.

‘’[...] Nessa mesma época, havia também a tendência de as


pessoas geralmente perderem interesse por organizações
religiosas, incluindo igrejas, tendência que tornou-se evidente no
mundo desde a década de 1970. Pessoas que se interessaram na
religião e na espiritualidade, mas relutantes em pertencer a
organizações religiosas específicas, aumentaram em número,
especialmente nas sociedades desenvolvidas. Além disso, pessoas
que não estavam tão interessadas em religião e espiritualidade e
que de fato tiveram uma impressão negativa sobre as organizações
religiosas também começou a aumentar.‘’ [SUSUMU, 2012. P. 206.
Tradução Nossa.]

Essa queda no interesse no budismo no Japão do período, para Susumu


(2012) também marcou um período de possibilidades para novas comunidades
religiosas no país se estabelecerem. Apesar de também terem seu crescimento
acompanhamento de diversas críticas públicas, que consideravam tais
comunidades como cultos, Susumu (2012) reforçou que, a segunda metade do
XX marcou uma experiência religiosa no Japão de queda de instituições
tradicionais no âmbito popular e desenvolvimento de novas comunidades que
poderiam ou não se estabelecerem.

Diferentes grupos humanos com bases budistas atuantes no cenário japonês


nessa época sugerem diferentes interpretações da religião por parte dos
mesmos grupos. Sobre isso, Patricia J. Grahan (2007) apontou que a partir do
momento que novas comunidades surgiram, houve também o nascimento de

Novas Mídias e Orientalismos


85
novas necessidades de representações e construções imagéticas e simbólicas
para os ideais que tais comunidades propagavam. Nesse sentido, Grahan
(2007) mencionou que, tanto imagens físicas (templos, construções) como
representações na cultura popular surgiram no cotidiano japonês, que
carregavam novas significações:

‘’[...] Por causa das múltiplas maneiras pelas quais as pessoas se


relacionam com o budismo, a expressão visual pode assumir
diferentes formas. Os templos continuam a gerar as necessidades
de representações reconhecíveis das divindades da fé, muitas
vezes em resposta a novas práticas devocionais. Especialistas em
criação de imagens budistas, oficinas de artesãos anônimos e
todos os devotos amadores criam tais imagens. Outros materiais
visuais, geralmente mais sugestivos ou alegóricos, e produtos de
artistas seculares profissionais, originam do interesse dos criadores
e do público no Budismo não-denominacional, e dos valores
humanitários que a crença adota. Intelectuais e críticos de arte
geralmente consideram apenas esses materiais posteriores como
arte, e os anteriores como emblemáticos da comodificação do
Budismo’’ [GRAHAN, 2007. P. 251. Tradução Nossa.]

As representações midiáticas também estavam envoltas dessas novas


reinterpretações e formas de ver o budismo que surgiram no Japão a partir da
queda de interesse nas instituições tradicionais. Sobre isso, Elisabetta Porcu
(2015) argumentou que essas produções (filmes, produções televisivas,
animações, mangás, entre outras) que continham aspectos do budismo em
seus conteúdos, tornaram-se populares pois eram formas nas quais novos
grupos ou instituições encontravam de propagar suas visões religiosas para o
público:

‘’[...] elementos religiosos são encontrados entre os inúmeros


produtos criados pela indústria cultural e grupos independentes ou
autofinanciados relacionados a essa cultura pop. No mesmo
tempo, essas formas de cultura popular foram usadas por
instituições religiosas japonesas para motivar seguidores e atrair
potenciais adeptos.’’ [...] [PORCU, 2015. P. 38. Tradução Nossa.]

Porcu (2015) também mencionou que eventualmente, essas produções saíram


do Japão, e passaram a fazer parte do imaginário cultural sobre o país para
pessoas de outras regiões que não tinham tido o contato com a cultura
religiosa no Japão. Conforme a autora, em um primeiro momento, o cinema foi
o principal produto carregado de questões exportado para fora do país, mas
que não demorou muito para outras formas, o mangá incluso, também
encontrarem seus portais de saída.

Especificamente no caso dos mangás, a relação dos mesmos com as religiões


é algo bastante interessante de ser explorado. Em primeiro lugar, destaca-se
que tipicamente os conteúdos dos mangás é algo que, conforme Mio Bryce e

Novas Mídias e Orientalismos


86
Jason Davis (2010), é algo muito amplo e que tentativas de enquadramentos
específicos não são tão úteis para um estudo dos mesmos:

‘’Qualquer tentativa de realizar uma análise geral da variedade de


gêneros nos mangás, mesmo limitando-a a apenas os disponíveis
em traduções, corre o risco de parecer seletiva, e nosso esforço
não é exceção. Os gêneros utilizados neste capítulo não são de
forma alguma uma lista abrangente do que é publicado ou
republicado em qualquer ano no Japão. [...]’’ [BRYCE, M; DAVIS, J.
2010, p. 34. Tradução Nossa.]

Por possuírem uma grande amplitude, Bryce e Davis (2010) indicaram a


impossibilidade de uma definição específica dos gêneros dos mangás em
categorias diretas e objetivas, e indicaram ser mais vantajoso analisar a
mistura recorrente de diferentes gêneros dos mais variados possíveis dentro
dos quadrinhos japoneses, uma forma de gêneros-híbridos:

‘’[...] Em um senso mais direto, a análise disponibilizada aqui


procura um estudo mais aprofundado sobre a hibrididade dos
gêneros – como elementos ou caraterísticas particulares em um
gênero são frequentemente recombinadas com outras em
recriações criativas que geram um apelo de leitura assim como no
enredo e no desenvolvimento das personagens [...]’’ [BRYCE, M;
DAVIS, J. 2010, p. 34. Tradução Nossa.]

Em linhas gerais, a argumentação de Bryce e Davis (2010) nos reforça a


necessidade de se compreender a amplitude que existe dentro dos gêneros
dos mangás, e que não é vantajoso buscar um por um para alguma explicação.
No caso de conteúdos atrelados com as diversas religiões, atenta-se que Buda
foi uma publicação, como já mencionado anteriormente, publicada dentro da
demografia do Shonen manga, e com isso possuí dentro de si uma série de
atrativos e considerações voltadas para atingir seu público alvo específico, que
são de suma importância para a compreensão da estrutura do mangá.

Apesar de tais considerações serem exploradas posteriormente neste relatório,


aqui cabe mencionar, por fim, a relação do mangá enquanto produto midiático
com as religiões no geral, e também o contexto de publicação de Buda com
outras obras de diferentes veículos transmissores do mesmo período histórico
com temáticas similares aos do quadrinho. Jolyon Baraka Thomas (2008)
mencionou que as linhas de conexão dos mangás com as religiões se dão das
mais variadas formas, não apenas representativas, mas também estéticas,
imagéticas, textuais, e de uma grande variedade de possibilidades de
apropriação.

No caso dos mangás e da cultura pop no geral, Thomas (2008) argumentou


sobre como, atualmente, esses produtos midiáticos carregam uma série de
atribuições que novos leitores podem vir a construir sobre determinada religião
a partir do contato com tais mídias. Sobre isso, o autor reforçou a necessidade

Novas Mídias e Orientalismos


87
do estudo e da compreensão da relação produto-religião por carregarem uma
série de possibilidades interpretativas nos públicos leitores:

‘’[...] Apesar do contato das audiências com conteúdos religiosos


através da mídia parecer algo casual, a mídia serve como um
importante e influente vetor para a disseminação de ideias
religiosas. A Mídia também serve como lugares de práticas
ritualísticas, e produtos midiáticos as vezes se tornam objetos
canonizados por grupos interessados. Um olhar atento para como
a informação religiosa entra em contato com o dia a dia de pessoas
comuns (isto é, pessoas que não são religiosas vocacionais)
através de mídias como manga e anime podem nos ajudar a
compreender como religiões ou ideias religiosas e ideias são
mantidos, modificados ou reinventados. [...]’’ [THOMAS, 2008, p.
72-73.Tradução Nossa.]

‘’No geral, a presença e a relação das religiões com os mangás é


algo que para Thomas (2008) nasceu de dois principais motivos,
em primeiro lugar a ampla disseminação comercial dos quadrinhos
japoneses no Japão e no mundo, mas também pelos potenciais
gráficos encontrados nos mesmos, que já por serem
fundamentalmente desenhos, não eram limitados por questões
tecnológicas no período para criar imagens e representações
religiosas.’’ [THOMAS, 2008. P. 24-25.]

A classificação também foi um campo bastante amplo mencionado por Thomas


(2008), pois conforme o autor existem inúmeros usos das religiões por parte
dos artistas e editoras de mangás. Sobre isso, Thomas (2008) mencionou que,
para além de mangás doutrinários, formulados por grupos com a
intencionalidade de propagação, também existem mangás que fazem críticas a
determinadas religiões ou instituições e também os que fazem uso apenas
imagético de produtos culturais para fins estéticos.

A presença das religiões dos mangás é algo bastante variado e distinto de uma
obra para outro. Thomas (2008) indicou a existência de mangás por exemplo
que possuem críticas para com os grupos e instituições religiosas do Japão,
assim como mangás didáticos que apresentavam os fundamentos de
determinada religião, e também de mangás que se utilizaram do discurso
religioso para idealizarem pensamentos nacionalistas dentro das obras.

No caso específico do budismo, todas as considerações já elencadas também


são verdadeiras. Conforme Thomas (2008), o budismo também possuí uma
série de mangás reimaginações, recriações, ou até mesmo mangás didáticos e
doutrinários referentes aos pensamentos dos grupos budistas. Interessante
destacar que alguns mangás sobre o budismo, como por exemplo os do autor
Hiro Sachiya (1992), conforme Thomas (2008) geraram interesse intelectual
por parte de estudiosos, e também foram utilizados como materiais de estudo
dentro de comunidades budistas.

Novas Mídias e Orientalismos


88
Como já mencionado, Thomas (2008) também apontou a existência do que
determinou do uso casual de terminologias e imagens religiosas nos mangás.
Esse uso, apesar de ser majoritariamente ilustrativo, conforme o autor sugere
um interesse do público por de tal pano de fundo cultural assim como também
possibilita a introdução desse imaginário no dia-a-dia dos consumidores finais.
Em adição, Thomas (2008) mencionou que nem todo mangá ou produto
midiático no geral com conteúdos religiosos assume função doutrinaria, ou
seja, não possui a intencionalidade de atrair pessoas para determinada religião
ou grupo, apesar de também existirem materiais com tais intenções no
mercado.

Para Thomas (2008), um dos potenciais dos mangás com conteúdos religiosos
está exatamente na possibilidade atrativa que podem vir a ter para com os
leitores dos mesmos, algo que muitos grupos religiosos perceberam com o
advento dos quadrinhos japoneses como produto popular de consumo. Apesar
de ser algo interessante, o autor reforçou que não era algo garantido, e que
mesmo com tal possibilidade, todo o processo criativo, editorial e público do
quadrinho também são peças que podem vir a interferir em tais resultados:

‘’Para ser claro, o uso do mangá não é uma garantia de sucesso.


Quando efeitos cinemáticos e representações icônicas são
executadas sem habilidade, ou quando histórias são muito
formuladas, o mangá se torna clichê e não atrativo. [...] Assim como
livros e filmes, o mangá pode definhar na mediocridade. Sua
efetividade como história – e particularmente história religiosa –
resta sobre a habilidade dos autores de convidar e manter o
ambiente emocional da audiência sobre as ilustrações e o enredo.
Esse sucesso efetivo é um pré-requisito para o posterior uso de
qualidades imaginativas da ficção em serviço da disseminação do
pensamento religioso. [...]’’ [THOMAS, 2008. P. 20-21. Tradução
Nossa.]

A intenção de apresentar os elementos que interligam as religiões no geral com


os mangás não foi a de busca por uma forma de enquadrar Buda dentro de
algum desses setores de interligação. Porém, compreender como
costumeiramente o conteúdo religioso aparece nos mangás nos torna possível
de assimilar o produto midiático que o quadrinho é com a temática nele
proposta, apesar dos pesares, a partir das considerações de Vieira (2017), o
estudo do tipo de material para com o conteúdo do mesmo nos é importante
pois nos permite perceber como costumeiramente um é associado ao outro.

Referências bibliográficas
Gabriel Silvestre Ferraz é graduado em História pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM), membro do grupo de Pesquisa em Ideia das Crenças e das
Ideias Religiosas (HCIR/LERR UEM).

Fontes
TEZUKA, Osamu. Buda. São Paulo: Editora Conrad, 2005.

Novas Mídias e Orientalismos


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Novas Mídias e Orientalismos


90
A MÍSTICA EGÍPCIA, A NATUREZA E O OLHAR
ORIENTALIZANTE: A MIRADA CONTEMPORÂNEA
SOBRE O PASSADO ROMANO DOS CULTOS
ORIENTAIS SOB A PRODUÇÃO DE AMBROSIO (1913)
por Heloisa Motelewski

Sob os véus de Ísis, Arbaces, sacerdote egípcio, guia o culto à deusa entre
suas sacerdotisas e seus fiéis na busca de seus mistérios. Por essa sua
agência na trama dos Últimos Dias de Pompeia, um filme silencioso italiano de
1913, nos deparamos com uma problemática interessante à nossa pesquisa: a
elaboração de referências orientais e orientalistas em seu escopo. Afinal, a
religião isíaca nos parece ser exibida enquanto matéria de desvirtuamento, em
uma narrativa que ganha contornos nacionalistas e moralistas. Nesse sentido,
o culto emerge como um fator responsável pela disseminação da corrupção
entre pompeianas e pompeianos, restando-lhe ao Vesúvio a purgação da
cidade romana quanto a seus degenerados caracteres orientais. Este é, pois,
um dos aspectos que ronda o drama amoroso da película, que se mostra sob o
amor não correspondido de Nídia em relação a seu amo, Glauco, por sua vez
apaixonado por Ione, cujo interesse romântico é igualmente desejado por
Arbaces. Para tanto, o sacerdote age de modo a eliminar seu rival,
enlouquecendo-o com uma poção. Ainda assim, o herói recupera sua lucidez,
uma conquista que se dá momentos antes da ira vesuviana lançar-se sobre a
cidade, culminando em sua fuga e de sua amada [Cinemateca Brasileira,
2011].

Por essa forma, apreendemos como Ambrosio, seu produtor, apropria-se da


obra homônima de Bulwer-Lytton [1834] de modo a dar fundamentos a uma
leitura orientalista acerca do passado romano. A isso, lança uma mirada
particular sobre a presença dos povos qualificados como “orientais”, neste
tema identificados por uma matriz norte-africana de comportamento sob a
égide egípcia. Em consequência, visualizamos a notabilidade da associação
estabelecida entre esta caracterização e o mundo natural, com uma Natureza
providencialista.

Destarte, foram tais questões concebidas a partir do encontro da produção


cinematográfica entre as páginas dos jornais armazenados pelo site da
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Essa busca documental fora movida
a partir do interesse de propor um diálogo com as propostas do projeto
Recepción e Influjo de Pompeya y Herculano en Iberoamérica (RIPOMPHEI),
do qual a professora orientadora deste projeto de investigação é integrante.

Novas Mídias e Orientalismos


91
Assim sendo, este plano foi elaborado junto ao Programa de Iniciação
Científica da Universidade Federal do Paraná (PIBIC-UFPR), objetivando
analisar os meios pelos quais referências às regiões romanas poderiam ser
encontradas recepcionadas em solo brasileiro. Porém, com uma gama extensa
de temas a serem trabalhados, o último ano de estudos concentrou-se no
processo de elaboração fílmica, destinando-se a um entendimento acerca das
recuperações da cultura material pompeiana, da literatura e da pintura dos
oitocentos em sua composição visual e trama. Será, portanto, essa divisão a
guia da exploração dos vínculos entre a natureza e as imagens místicas
imbricadas pelas figuras isíacas em sua criação, realçando-se, em tais campos,
a figuração de Arbaces.

Para isso, nos empenhamos em adotar os conceitos teórico-metodológicos de


Hardwick [2003], visando uma interpretação própria no que tange às relações
entre o mundo antigo e a contemporaneidade. Por conseguinte, apreendemos
a preocupação receptiva com o caminho duplo de entendimento entre o texto a
cultura de recepção, refletindo recolocações de sua forma e conteúdo na
atualidade. Em complemento a essa teoria, nos debruçamos sobre o
Orientalismo de Said [1990], o abordando enquanto uma força cultural
impositiva, criadora de um “arquivo” de saberes sobre os povos dominados na
determinação de uma imagem ocidental sobre o “oriental”. Desse modo, nos
ateremos às formas pelas quais esses discursos expressam-se sobre a
visualidade, cingindo-se de um profuso imaginário e de um sistema de códigos
interpretativos – os quais, por sua vez, são tomados como verdades puras por
seus criadores e receptores.

Metodologicamente, nos alinhamos, então, às premissas de Winkler [2009]


para uma aproximação filológica na constituição de uma leitura fílmica, haja
vista a compreensão da possibilidade de narrações por e em imagens serem
incutidas pela representação textual e contextual. Ademais, à precocidade do
desenvolvimento de métodos historiográficos para uma aproximação para com
o Cinema Silencioso, ao passo de ser ele imerso em particularidades, nos
colocamos em afinidade com as propostas de Brewster e Jacobs [2016]. Por
estes autores, trabalhamos com a produção silente desde os impactos da
teatralidade e de outras formas artísticas, nomeadamente na constituição de
suas cenas por tableaux. Este é o caminho, portanto, que nos leva, nesta
comunicação, a uma observação mais apurada sobre as condições às quais os
elementos materiais pompeianos, artísticos pompeianistas e orientalistas, tal
qual literários, foram mobilizados de modo a suscitar um discurso conector do
mundo natural ao culto isíaco em Pompeia.

A natureza e o Templo sob as lentes de Ambrosio: os mistérios de Ísis


Ao pestanejar entre as mais variadas cenas dos Últimos Dias de Pompeia, a
natureza é encarada por seu criador nos intervalos da narrativa providencialista
propiciada pela adaptação do romance homônimo, uma redação do inglês
Bulwer-Lytton [1834]. Sincronicamente a esse tratamento, as paisagens
fílmicas são formuladas de modo a propiciar a leitura nacionalista almejada por
seu discurso, repercutindo nos moldes de uma reinterpretação romana das

Novas Mídias e Orientalismos


92
pinturas antigas ao exaltar suas qualidades enquanto inerentes à região itálica.
Nesse sentido, nos deparamos com uma evocação descritiva própria dos finais
do século XIX e princípios do XX, a exemplo das representações escritas
formuladas por Mau [1902] sobre as próprias ruínas de Pompeia e Herculano.

Sendo assim, ao partir das leituras de Ling [1991] e Charles-Picard [1968],


denotamos uma essencial articulação de temas visuais desde a evocação das
pinturas encontradas no próprio cerne da materialidade romana. Por essas
retomadas, notamos como as antigas tendências de centralização das
paisagens em suas artes é perpetuada, notadamente por uma associação com
os gêneros pictóricos idílicos e campestres. Tais temáticas são, pois, inerentes
a uma corrente romana impressionista (aos termos do segundo autor), as quais
podem ser entendidas como absorvidas pela leitura romântica cinematográfica
tangente às retratações da natureza.

Porquanto dessa proximidade para com as artes romanas, tal romantismo


representativo configura-se, com grande impacto, nas recepções do próprio
Templo Isíaco encontrado em Pompeia. Deslumbrando seus visitantes desde o
primeiro momento de suas escavações, em perspectivas a seu bom estado de
conservação e seus afrescos ritualísticos, a construção fora um ponto de
conexão com as vivências do passado, almejadas pelos contemporâneos de
sua renovação, em conformidade com o aferido por Romero-Recio [2010] e
Carreras [2019]. Assim, conhecido entre os anos de 1764 e 1766, o templo
pode ser apresentado pela relevância do olhar acadêmico e artístico sobre uma
suposta aura exótica [Swetnam-Burland, 2015], em cujas paredes reverberam
as mesmas pinturas sacro-idílicas mencionadas anteriormente. Com isso,
encontramos uma linha receptiva entre tais vestígios do passado romano e o
preparo visual da película, contatando os panoramas paisagísticos compostos
pelos artistas romanos desde as escavações da cidade.

Isto posto, e retomando os historiadores Ling [1991] e Charles-Picard [1968],


estudamos uma combinação entre os aspectos ilusionistas do Quarto Estilo
(nomenclatura conferida a uma das fases da pintura romana por Mau no século
XIX e retrabalhada por Ling ao século posterior) nesses enquadramentos.
Dessa maneira, ao trabalhar com seus esquemas cenográficos, observamos os
ecos dos gostos literários e exóticos orientais dos próprios antigos no desenho
de temas de jardinagem e naturezas-mortas, os quais, segundo Ling [1991],
também eram justapostos a motivos isíacos. Por conseguinte, compreendemos
as proposições de Charles-Picard [1968] concernentes às transposições ao
onírico suscitadas por essas pinturas, as quais, distantes dos padrões estéticos
do classicismo romano, poderiam aparecer alinhadas ao desejo pela imersão
na natureza como escape psicológico.

É, portanto, nos anseios de evocar seu espectador que a criação de Ambrosio


tece um padrão de visualidade que rememora tais pinturas (Imagem 1). Essa
relação visual se dá, notadamente, nas cenas em que as partes exteriores do
templo são apresentadas, cercadas por árvores e pelo mar (Imagens 2 e 3).

Novas Mídias e Orientalismos


93
Imagem 1 – Afresco encontrado no Ekklesisterion do Templo de Ísis, em
Pompeia. Fonte: Museo Archaeologico Nazionale di Napoli [2022].

Imagem 2 – Enquadramento da cena “L’Uccello Predatore” (26:12)


Fonte: GLI Ultimi Giorni di Pompeii [1913].

Novas Mídias e Orientalismos


94
Imagem 3 – Enquadramento da cena “Dalla terrazza del Tempio, Arbace
osserva la bellezza di Ione che sta con Glauco” (05:56). Fonte: GLI Ultimi Giorni
di Pompeii [1913].

Tais evocações encontram, de igual forma, um respaldo sobre a obra literária


que lhe serve como roteiro adaptado. Bulwer-Lytton, ao descrever o templo
isíaco, destaca que “a brancura do pequeno sacellum no centro do bosque,
entre a folhagem escura, tinha em si algo abrupto e surpreendente; recordava
de uma só vez o motivo pelo qual a floresta era consagrada – sua santidade e
solenidade” [Bulwer-Lytton, 1905, p. 348, tradução nossa]. À vista disso,
afirmamos o reforço de uma noção alinhada ao exótico e ao romântico nas
aproximações entre templo e natureza, cujas apropriações das pinturas
pompeianas revelam muitos dos caracteres dos jardins representados na
Antiguidade – como visto pela leitura de Ling [1991].

Em um segundo momento, sublinhamos a aparição de uma Natureza (em


maiúsculo, pois agora como entidade agente na trama) passível de ser
apreendida em sua totalidade por uma compreensão críptica. Neste quesito,
Arbaces se mostra como centro das tentativas empreendidas pelo culto isíaco
para o alcance de um entendimento total da Natureza, esta que se afigura
como ente feminino no enredo do escritor inglês: “’Eu sou Aquela que tu tens
conhecido’, respondeu, sem ceder de seu trabalho, o poderoso fantasma. ‘Meu
nome é NATUREZA! Essas são as rodas do mundo, e minhas mãos guiam-nas
pela vida de todas as coisas” [Bulwer-Lytton, 1905, p. 454, tradução nossa].
Assim, em sua aparição ao egípcio, o espectro demonstra sua força que,
concretamente, transparece na composição italiana do início do século
passado por esta mesma estética romântica.

Em acréscimo a tal estética, apreendemos o estabelecimento de conexões


para com as pinturas orientalistas e pompeianistas do século XIX. Contando,
em um primeiro ponto, com as obras de Alma-Tadema, observamos a tecedura
dessa relação a partir de suas abordagens histórico-arqueológicas,
vivificadoras do passado, e de seus anseios de domesticação de temas
exóticos [Barrow, 2001]. Mesmo assim, seria ele afastado das tensões
contemporâneas e imperialistas, privilegiando o trabalho com motivos egípcios

Novas Mídias e Orientalismos


95
desde a imaginação, como o faria também Gérôme [Verhoogt, 2018], segundo
pintor a ser analisado. Isso pois, conforme demonstrado por Ackerman [1997],
seria o artista igualmente atento para os temas naturais e antigos por uma
mirada arqueológica, para além das produções orientalistas e realistas em suas
pinturas culturais e históricas. Com isso em perspectiva, visualizamos uma
aproximação entre as premissas estéticas de ambos os pintores na formulação
dessas mesmas cenas, destacando-se a semelhanças entre os elementos
naturais de suas telas (Imagens 4, 5, 6 e 7) e dos enquadramentos
cinematográficos.

Imagem 4 – A Spring Festival (on the road to the temple of Ceres)


Fonte: ALMA-TADEMA [1878].

Novas Mídias e Orientalismos


96
Imagem 5 – Egyptian Chess Players
Fonte: ALMA-TADEMA [1879].

Imagem 6 – Consummatum est


Fonte: GÉRÔME [1867].

Novas Mídias e Orientalismos


97
Imagem 7 – Return from the Hunt
Fonte: GÉRÔME [1878].

Em uma terceira abordagem da problemática, podemos pensar a construção


de uma imagem dual da natureza a partir do Vesúvio. Alinhado a uma
percepção romântica, seria o vulcão tanto o retrato do desalinho da natureza,
em sua rebeldia irracional, quanto da ação moralizante, em sua erupção
purgativa. Por esses dois olhares, sua ação serve, porém, como respaldo de

Novas Mídias e Orientalismos


98
sua resolução de destruição frente aos elementos do culto isíaco. Logo,
enquanto um bem alicerçado sob o imaginário da época acerca das atividades
vulcânicas, em uma “experiência-mercadoria”, nos termos de Daly [2011], o
desastre que ocasiona desponta em termos do caráter mutável da natureza,
este que pode vir a ser fomentado pelo viés providencial do discurso literário e
fílmico, em concomitância ao delineado por Goldstein [1979].

Neste plano, é interessante constatar como as aparições de Arbaces seguem


dois padrões distintos quando próximo do vulcão. O primeiro deles, visto na
cena em que ruma à caverna da bruxa do Vesúvio, perpetua a mesma estética
romântica de aproximação com o mundo natural, apresentado em termos de
calmaria e constância (Imagem 8). Já no segundo momento, em que o
sacerdote se vê dentro do vulcão, na morada da feiticeira, a representação
visual dá uma guinada em um sentido estético mais duro, com colorações
escuras e quentes e elementos visuais bagunçados (Imagem 9). Por essa
maneira, depreendemos como sua relação com o próprio Vesúvio ressoa essa
retratação ambígua, ao mesmo tempo que, orientada por sua busca pelas
poções da maga, continua a fazer emergir a mística de Ísis.

Imagem 8 – Enquadramento da cena “La maledizione dalla maga” (46:49)


Fonte: GLI Ultimi Giorni di Pompeii [1913].

Novas Mídias e Orientalismos


99
Imagem 9 – Enquadramento da cena “Arbace chiede um velleno alla strega”
(48:02) Fonte: GLI Ultimi Giorni di Pompeii [1913].

Considerações Finais
Partindo dessas observações, pudemos constatar como os elementos da
natureza, seja ela objeto, seja entidade de agência na trama, são recuperados
aos Últimos Dias de Pompeia [1913] de modo a dar fundamentos a um
discurso particular sobre o misticismo oriental. Nessa linha, a criação de um
imaginário orientalista é delimitada a partir de evocações visuais que remetem
à própria Antiguidade, sinalizando para padrões figurativos já conhecidos entre
as pinturas parietais pompeianas. Ademais, determina-se desde a recuperação
de pinturas orientalistas e pompeianistas, as quais, pertinentes aos padrões de
criação dos oitocentos, foram aqui exemplificadas por criações de Alma-
Tadema e Jean-León Gérôme.

Em iguais proporções, a trama, baseada na obra de Bulwer-Lytton [1834],


acaba por reiterar esses vínculos ao tratar de uma relação punidora da
natureza sobre Arbaces. O egípcio, morto pelo desastre decorrido às faldas do
Vesúvio (Imagem 10), mostra-se, então, central para o desenrolar de um
discurso nacionalista, cuja base situa o vulcão como acionador de uma
purgação que suporia o livramento da Itália dos males orientais e permitiria seu
pleno desenvolvimento. Por coincidência ou não, são estes elementos de
corrupção que almejam desvendar os mistérios da mesma Natureza,
articuladora das forças vulcânicas, em seus cultos e estudos abençoados por
Ísis.

Desse modo, a película, ao trazer um jogo de imagens e tramas concebidas em


diferentes períodos, determina uma narrativa que será posteriormente
absorvida em outras produções, como os filmes de 1935 e 1959, dirigidos, em
ordem respectiva, por Ernest Schoedsack e Mario Bonnard. Portanto, em seu
discurso, nacionalista e orientalista, a criação de Ambrosio nos requisita um

Novas Mídias e Orientalismos


100
olhar sob um prisma crítico, delimitando uma reflexão mais aprofundada acerca
de seus elementos motivadores e de suas repercussões ulteriores.

Imagem 10 – Enquadramento da cena “Scorrono fiumi di fuoco che avanzano


con regolarità” (01:21:47). Fonte: GLI Ultimi Giorni di Pompeii [1913].

Referências
Heloisa Motelewski é graduanda em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Participa como voluntária do Programa de Iniciação
Científica da instituição sob orientação da Professora Doutora Renata Senna
Garraffoni. Dentre seus temas de pesquisa estão os Estudos de Recepção,
articulados com Pompeia, História da Itália, História do Brasil e História e
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GLI Ultimi Giorni di Pompei. Direção: Eleuterio Rodolfi. Itália: Società Anonima
Ambrosio, 1913. 1 filme (107 min), silencioso, legenda, p&b, 35 mm.

MUSEO Archaeologico Nazionale di Napoli, 2022. Disponível em:


https://commons.wikimedia.org/wiki/Catalogue_of_the_Museo_Archeologico_di
_Napoli_(inventory_MANN)

Novas Mídias e Orientalismos


103
ERA ATÔMICA E EMIGRAÇÃO AO BRASIL:
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE IKIMONO NO
KIROKU [ANATOMIA DO MEDO], DE AKIRA
KUROSAWA por José Carvalho Vanzelli

Lançada em meados da década de 1950, período em que foram realizadas


algumas das mais afamadas obras cinematográficas de Akira Kurosawa [1910-
1998], Ikimono no Kiroku [Anatomia do Medo ou, em tradução literal, Registro
de um ser vivo] não é, no entanto, um dos filmes que receberam grande
atenção por parte da crítica. Produzida entre duas das mais prestigiadas
películas do diretor – Shichinin no Samurai [Os Sete Samurais – 1954], muitas
vezes considerada como a grande obra-prima de Kurosawa, e Kumonosu-jō
[Trono Manchado de Sangue – 1957], a afamada adaptação do diretor japonês
da peça shakespeariana Macbeth –, a obra fílmica de 1955 acabou sendo
obliterada por essas outras realizações de maior repercussão. Soma-se a isso,
ainda, o fato de Ikimono no Kiroku ter sido um dos maiores fracassos de
bilheteria de Kurosawa, fato ocorrido, para o realizador, devido ao seu
lançamento ter sido feito em momento demasiado cedo, quando a população
do Japão estava preocupada em escapar dos problemas que a circundava
[RICHIE, 1970, p. 114]. James Goodwin [1996, p. 190] nos recorda que Noel
Burch atribui o fracasso de Ikimono no Kiroku ao fato de o filme desafiar
ideologicamente o poder estabelecido, não sendo interessante às classes
dominantes do Japão nesse período em que o país saía do pós-guerra. Dessa
forma, em compasso com a justificativa de Kurosawa, o crítico julga o
lançamento ter ocorrido de modo prematuro para um reconhecimento por parte
de crítica e público. É nesse sentido que Burch vê Ikimono no Kiroku como um
filme que antecipa filmes independentes de caráter mais combativos da década
de 1960 e início de 1970, em que se destacam as obras do diretor Nagisa
Oshima [1932-2013].

Esse filme, ainda, tem outros aspectos importantes que o destaca na carreira
cinematográfica de Kurosawa: foi a primeira película em que o diretor faz uso
sistemático de filmagem multicâmera; e a última parceria entre o diretor e o
músico e compositor Fumio Hayasaka, “principal colaborador de Kurosawa
desde Yoidore Tenshi [O Anjo Embriagado - 1948]” [YOSHIMOTO, 2000, p.
246-247], falecido durante as filmagens.

Ikimono no Kiroku conta a história de Kiichi Nakajima [Toshirō Mifune], chefe de


família já idoso, dono de uma indústria de fundição que, temendo as
consequências radioativas das bombas atômica e de hidrogênio, decide vender

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tudo que tinha no Japão e emigrar ao Brasil, onde acredita ser o único local no
planeta em que pode se viver livre da radioatividade. O plano de Nakajima, que
consiste em levar consigo todos seus dependentes oficiais (esposa, quatro
filhos e um genro) e extraoficiais (duas amantes, dois filhos e um filho de uma
amante já falecida), encontra resistência por seus parentes. Estes entram com
um processo no tribunal da família para que o patriarca seja declarado incapaz.
Alegam os familiares que mudar ao Brasil não seria a primeira tentativa
tresloucada de Nakajima, que, antes, teria comprado, sem consulta, terras em
Akita, no norte do Japão, para construir um abrigo subterrâneo, mas que, ao
ouvir que a radioatividade dos testes de bombas nucleares viria do norte para o
sul, abandonou as terras e a construção, decidindo emigrar ao Brasil. O filme
se desenrola em cima das tentativas de Nakajima para convencer a família de
que a emigração é a única solução, enquanto essa tenta manter sua vida,
tirando judicialmente o patriarca das decisões familiares. Após a interdição
deferida pelo tribunal, Nakajima passa a ter seu medo das consequências
nucleares intensificado, levando-o à atitude extrema de incendiar sua própria
indústria – o ganha-pão de sua família –, acreditando que, sem os recursos
materiais já estabelecidos no Japão, sua família não teria outra escolha a não
ser acatar seu plano. Ao perceber que, ateando fogo em seu patrimônio, sua
família o vê como alguém que perdeu de vez a sanidade e, também, que
deixara inúmeros trabalhadores sem emprego, Nakajima tem seu estado
mental agravado. É inicialmente preso e, em seguida, internado em um
sanatório. De lá vê o sol pela janela e pensa estar a observar a Terra a queimar
pelas consequências das armas nucleares.

A mundividência de Nakajima, no entanto, não deixa de ter impacto em, pelo


menos, uma das personagens. Dr. Harada [Takashi Shimura], dentista que
atua como conselheiro no tribunal da família, passa a refletir sobre como ele e
a sociedade ao seu redor lidavam com o contexto histórico que o circundava.
Nesse ponto é preciso lembrar que o filme não repercute apenas com as
bombas de Hiroshima e Nagasaki lançadas dez anos antes, mas trata
principalmente da corrida armamentista que se desenrolou a partir de então,
que teve no Atol de Bikini, nas ilhas Marshall, cenário de testes americanos de
mais de vinte bombas atômicas e de hidrogênio entre 1946 e 1958. É,
portanto, das consequências desses testes, que ainda ocorriam na época da
realização e lançamento do filme, e da indiferença política e social japonesa
com o que acontecia em escala mundial, tendo sido o Japão vítima direta de
uma arma tão devastadora, que a obra está a abordar. Desse modo, se
entendem as justificativas atribuídas ao fracasso do filme, uma vez que, se é
certo que ao menos parte da população temia eventuais consequências dos
testes nucleares, ir ao cinema para ver seus receios cotidianos transmitidos na
grande tela – e não algo que a pudesse fazer, mesmo que momentaneamente,
esquecer das durezas do cotidiano árduo dos anos de reconstrução do Japão
após a Segunda Guerra Mundial – não parece ter sido atrativo ao público geral.
É nesse sentido, então, que a obra parece ter sido lançada demasiadamente
no “calor” do momento.

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Calor, inclusive, é a palavra-chave para a construção do filme, que se passa
em uma Tóquio superpopulosa, em um verão escaldante. Ao longo de toda a
película se destacam elementos da natureza [altas temperaturas, tempestades,
trovões e relâmpagos] que contribuem para a construção de um cenário
apocalíptico, ou, como entende Audie Bock [1996, p. 173], a atmosfera do pós-
guerra. Assim, a natureza e o clima são significativos para a transmissão ao
público não apenas do contexto empírico em que a trama se desenvolve, como
também do mundo que Nakajima tanto teme. Em outras palavras, essas
composições ajudam a fazer ver a mundividência do patriarca, o mundo
presente em sua cabeça.

Logo, o filme traz em si dois debates: um de cunho social, em que vem à tona o
questionamento da complacência social com um mundo à beira de uma
autodestruição – evidenciando, assim, o papel crítico que Kurosawa e
Hayasaka entendiam ter como artistas para a sociedade em que atuavam
[PRINCE, 1991, p. 159] –; e outro de teor psicológico, em que se pode refletir
em torno dos limites da mente humana perante os movimentos do mundo.

Stephen Prince [1991, p. 165] ainda nota que o filme é construído a partir de
dois discursos: o de Nakajima, que vê a vida acima de qualquer coisa, tendo
sua atuação sempre motivada pela salvação daqueles que quer bem [seus
parentes e, pouco antes do agravamento de seu estado mental, os
trabalhadores da fundição]; e o de sua família, representada não só, mas
principalmente por seu segundo filho, Jirō [Minoru Chiaki], que vive de modo
resignado perante as questões coletivas que o rodeiam, pensando apenas no
dinheiro e abnegando suas responsabilidades sociais. É por esse viés,
principalmente a partir do ponto de vista do protagonista, que essa película é
por vezes colocada lado a lado com outras obras de Kurosawa de
características humanistas, como, por exemplo, Ikiru [Viver – 1952].

Chama a atenção no filme a afiguração do movimento migratório japonês ao


Brasil. De fato, Ikimono no Kiroku é o primeiro, porém não o único filme em que
Kurosawa entrecruza a Era Atômica e imigração. Trinta e seis anos mais tarde,
em 1991, o diretor volta a relacionar esses dois temas em Hachigatsu no
Kyōshikyoku [Rapsódia em Agosto], dessa vez aproximando as perdas
causadas pela bomba atômica de Nagasaki com a emigração japonesa ao
Havaí. Entretanto, para espectadores do Brasil, é de especial interesse o filme
de 1955, já que, inevitavelmente, emerge ali uma representação de seu povo e
uma parte de sua história. Assim, interessa traçar breves considerações de
como Brasil e o movimento migratório nipônico aparecem no longa-metragem.

A primeira menção ao país sul-americano acontece logo nos primeiros


momentos do filme, durante a leitura em voz alta da petição pelo juiz do tribunal
da família Araki [Ken Mitsuda] para os dois conselheiros, o advogado Hori
[Toranosuke Ogawa] e o dentista Harada. Nesse primeiro momento, a nação
sul-americana é apenas referida, conforme o trecho que se segue: “[...] agora
ele [Kiichi Nakajima] alega que o único lugar seguro para se viver na Terra é a
América do Sul. Elaborou arbitrariamente um plano para levar todos seus

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dependentes ao Brasil e declarou que usará todos seus recursos para este fim”
[Ikimono..., 1955, 00:11:28-00:11:46, tradução nossa do áudio original].

A construção da cena da leitura da petição e de outras anteriores ajudam a


conceber o contraponto que o Brasil representará em momento posterior do
filme. A cena inicial do filme, em que os créditos são exibidos, um dos
pouquíssimos momentos da película em que se faz uso da diminuta trilha
sonora deixada por Hayasaka, mostra, a partir de uma câmera alta, uma
Tóquio movimentada e barulhenta, com excesso de veículos particulares e
transporte público, em um verão tórrido. Os sons dos veículos e as evidentes
altas temperaturas ajudam a construir desde os primeiros segundos da obra a
atmosfera apocalíptica de que nos referimos anteriormente. O excesso de
gente a transitar já constrói, desde o início, a imagem de uma sociedade
indiferente ao que é externo de suas individualidades, ignorando ou estando
indevidamente familiarizada com os barulhos que remetem a bombas, que, sob
certo ponto de vista, ainda era parte do cotidiano daquele coletivo. Quando os
créditos acabam, a câmera foca no consultório, igualmente atulhado, do Dr.
Harada. A cena seguinte, já no tribunal de família, mostra tanto o corredor da
instituição quanto a sala do juiz Araki, novamente, como locais de pouquíssimo
espaço, com excesso de objetos e pessoas. Em suma, vemos uma sequência
de espaços claustrofóbicos. Os movimentos e ações gestuais das
personagens, que a todo momento se abanam com leques ou enxugam o suor
com lenços, reforçam a aura cataclísmica transmitida. Portanto, o que se
mostra desde o princípio do longa-metragem é a representação de um Japão
superpovoado, espacialmente restrito e na iminência de uma nova tragédia
coletiva, fato que está a ser ignorado por seus cidadãos, personagens e
espectadores. Assim, abre-se uma reflexão de ordem moral, mais bem
pontuada quando se evidencia que os filhos buscam declarar incapaz o pai
que, numa leitura mais geral, é o único que está, a seu modo, questionando e
buscando alternativas para aquela situação problemática, comum a todos.

Essa imagem do Japão é constantemente reiterada ao longo da película,


principalmente pelo fato de o filme ter poucas cenas em locais abertos.
Decorre, em sua maioria, em ambientes fechados, como a sala do tribunal, a
fundição – mesmo espaço em que fica a casa de Nakajima –, o lar de alguma
das amantes ou no apartamento em que vive o filho Ryōichi. As poucas vistas
de lugares exteriores, de modo geral, reforçam a limitação espacial, uma vez
que exibem ruas congestionadas, aglomerações públicas, não se
diferenciando, portanto, dos espaços internos.

Se o Japão é representado como um espaço sufocante, a imagem do Brasil


surge como seu contraponto. Antes do deferimento da petição por parte do
tribunal, a família Nakajima vê chegar em sua casa um desconhecido. Entra em
cena, então, o ator Eijirō Tōno, maquiado com blackface, insinuando uma pele
curtida por um sol intenso, e roupa branca [que intensifica o tom de pele da
caracterização da personagem]. É o fazendeiro vindo do Brasil que adentra a
casa com um projetor e um pequeno rolo de filme. Busca uma parede limpa
para exibir seu filme e, movendo para o lado um papel com caracteres

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japoneses pendurado em uma parede – e aqui, em leitura metafórica, pode-se
entender o fazendeiro como o homem que moveria aquela família do Japão
para apresentar-lhes um mundo novo – exibe, em silêncio, imagens de sua
propriedade no Brasil. Suas primeiras palavras são, durante a projeção, um
breve: “ah, vejam. Aquela será sua casa” [Ikimono..., 1955, 00:22:36]. A curta
projeção exibe vastas plantações e, ao final, mostra uma família de imigrantes
japoneses a olhar para a câmera, em frente a uma grande casa, com
maquinário agrícola e ovelhas no enquadramento. A disposição espacial
espalhada das pessoas nas imagens do Brasil reforça a abundância de terras
no país sul-americano e contrapõem de maneira clara o espaço diminuto que a
numerosa família Nakajima está a dividir naquela Tóquio apocalíptica. A
projeção se encerra com o sorridente fazendeiro a caminhar em direção à
câmera e acenar, em frente a uma igualmente alegre família que compõe o
fundo [Ikimono..., 1955, 00:20:54-00:23:07].

É importante frisar que essa imagem de felicidade e prosperidade transmitidas


nas únicas imagens brasileiras do filme vão ao encontro apenas das
aspirações do patriarca japonês que vê no Brasil a solução de seus temores.
Em outras palavras, a projeção exibida pelo fazendeiro parece condensar não
o Brasil representado na película como um todo, mas o vislumbre do
protagonista. A câmera de Kurosawa entrecorta as imagens da fazenda com as
feições perplexas e desanimadas dos outros membros da família, o que
evidencia que um Brasil diverso surge na visão das outras personagens.

Após a exibição do filme à sua família, Nakajima visita cada um de seus outros
dependentes – uma amante, Satoko [Kiyomi Mizunoya], e sua filha Taeko
[Sahoko Yonemura]; seu filho Ryōichi, cuja mãe já falecera; e a amante Asako
[Akemi Negishi], que mora com seu pai [Kichijirō Ueda] e seu bebê, filho de
Nakajima – para convencê-los a emigrar ao Brasil. A cada tentativa de
persuasão, o patriarca recebe indiferença como resposta. Desde o pai de
Asako, que deixa sua casa indignado ao ouvir o plano do patriarca – “São
Paulo! Ele deve estar louco!” [Ikimono..., 1955, 00:27:40, tradução nossa] –, até
Ryōichi, que usa o fato de “não ser parte da família” [Ikimono..., 1955, 00:25:51,
tradução nossa] como justificativa para permanecer no Japão, o que se cria a
partir da reação de cada uma das personagens é uma imagem do Brasil
enquanto um país distante, que, no mínimo, é visto como um local de pouco
interesse para aqueles membros da sociedade que não veem na emigração a
solução de seus problemas. Talvez o melhor exemplo dessa visão esteja na
cena em que Nakajima busca convencer Satoko e sua jovem filha Taeko. A
mãe, diante do plano de fuga do patriarca, consegue apenas perguntar
incrédula “São Paulo?” [Ikimono..., 1955, 00:26:25]. Após a saída do patriarca
da casa, Taeko, então, expressa diretamente seu posicionamento contrário
com a pergunta em tom de voz irritado: “e quem quer ir ao Brasil?” [Ikimono...,
1955, 00:27:31, tradução nossa]. Pode-se entender o questionamento de
Taeko como as palavras que condensam a visão dos dependentes de
Nakajima em relação ao Brasil. Este posicionamento se soma ao dos filhos
legítimos, que buscavam, naquela altura do filme, a decisão judicial para
declarar o patriarca mentalmente incapaz. O que se vê nessas sequências,

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portanto, é uma imagem do Brasil que em nada corresponde ao vislumbrado
pelo dono da fundição.

Desse modo, emerge no longa-metragem de Kurosawa duas visões em torno


da emigração ao Brasil. A primeira, dos filhos e demais dependentes de
Nakajima, em que a nação brasileira é vista como um território longínquo,
estranho e pouco atrativo e, por isso, a mudança para lá seria desagradável.
Exceção talvez possa ser feita à filha caçula do patriarca, Sue [Kyōko Aoyama]
que, apegada à figura paterna, não se opõe aos planos de emigração e, ao ver
as imagens da fazenda, é a única que exclama: “lindo, não é?!” [Ikimono...,
1955, 00:22:41, tradução nossa]. Em oposição a essa representação, surge a
idealização da migração de Nakajima: um vasto paraíso, livre das ameaças
nucleares, local de segurança, prosperidade e felicidade, imagem essa até
certo ponto corroborada pela projeção e pela própria figura do sorridente
fazendeiro.

Essa personagem, inclusive, embora seja aquela que representa o Brasil na


película, não é, de fato, brasileira. Trata-se de um japonês que emigrou à força
ao Brasil quando jovem. No entanto, a caracterização da personagem [trejeitos
como o modo de sentar e o modo de cumprimentar Nakajima com um aperto
de mão em detrimento à saudação japonesa ojigi, feita pelo patriarca] busca
mostrar uma figura já culturalmente distante do Japão. O fazendeiro é a única
personagem que não está indisposta com o calor excessivo daquele verão,
caracterizando-o como uma figura habituada a um clima quente. No entanto, o
calor de Brasil e Japão que aparecem subentendidas no filme indicam
sensações opostas. Enquanto o da nação japonesa dá um tom de destruição
iminente, o do Brasil se mostra em sentido oposto, transmitindo agradabilidade.
Tal fato se corrobora na personalidade do fazendeiro que surge como uma das
poucas personagens que ri e sorri na película. Se recordarmos as informações
de Donald Richie [1970, p. 109], que afirma que Ikimono no Kiroku tinha sido
inicialmente pensado para ser uma sátira que, aos poucos, ganhou tons mais
graves, culminando no longa com tons de tragédia, podemos pensar a figura do
fazendeiro do Brasil como um resquício do plano original de Kurosawa. De todo
modo, o contraste da expansividade dessa personagem com os ares
taciturnos, infelizes ou reflexivos das outras personagens corrobora a imagem
do Brasil de Nakajima, isto é, um local de segurança e bonança.

Desta forma, Kurosawa apresenta dois pontos de vista presentes no Japão da


época sobre o exterior, representado pelo Brasil. A emigração surge, então, no
centro do debate de uma sociedade em crise, que acabava de sair do pós-
guerra, mas que ainda vivia com os temores das armas atômicas. Para nós, no
Brasil, os retratos da imigração japonesa que normalmente nos chegam são
feitos por aqueles que de fato realizaram a migração ou realizados pelo olhar
da sociedade que os recebeu. Desta forma, o filme de Kurosawa se revela um
interessante ponto de vista, que poucas vezes temos acesso, das relações
nipo-brasileiras.

Novas Mídias e Orientalismos


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Referências
José Carvalho Vanzelli realiza pós-doutorado [Estudos Literários] na
Universidade Federal do Paraná [UFPR]. É mestre e doutor em Letras [Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa] pela USP. Graduado em
Letras [Português-Japonês] pela USP. Autor do livro Portugal e o Oriente:
Antero de Quental – Camilo Castelo Branco – Eça de Queirós - Pinheiro
Chagas [2021]. Suas pesquisas centram-se principalmente nos temas:
Orientalismo; representações do Japão nas literaturas de língua portuguesa;
literatura japonesa; e diálogos da literatura com outras artes e outras ciências
humanas.

Filmografia
IKIMONO NO KIROKU. Direção: Akira Kurosawa. Japão: Toho Company Ltd,
1955. 1 DVD [103 min.], son., p&b.

Bibliografia
BOCK. Audie. Japanese Film Directors. Tóquio, Nova Iorque e São Francisco:
Kodansha International, 1980.

RICHIE, Donald. The films of Akira Kurosawa. Berkeley: University of California


Press,1970.

GOODWIN, James. “Akira Kurosawa and the Atomic Age” in BRODERICK Mick
(Ed.) Hibakusha Cinema. Hiroshima, Nagasaki and the Nuclear Image in
Japanese Film. Londres e Nova Iorque: Kegan Paul International, 1996, p. 178-
202.

PRINCE, Stephen. The Warrior’s Camera. The Cinema of Akira Kurosawa.


Princeton: Princeton University Press, 1991.

YOSHIMOTO, Mitsuhiro. Kurosawa: film studies and Japanese cinema.


Durham: Duke University Press, 2000.

Novas Mídias e Orientalismos


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UM EXERCÍCIO DE EMPATIA, A REPRESENTAÇÃO DA
HISTÓRIA EM GRAMA E A ESPERA: O ESPAÇO
HISTÓRICO COREANO PROBLEMATIZADO POR MEIO
DOS QUADRINHOS DE GENDRY-KIM por Krishna
Luchetti

Como o Ensino de História Asiática pode impactar nossas vidas de forma


positiva? Por que mobilizar um conteúdo considerado tão “distante” do
cotidiano brasileiro em nossas salas de aula? Enquanto professora, acredito
que precisamos mobilizar a História para formar bons cidadãos, ou seja, seres
humanos críticos e empáticos que vivem em sociedade de forma harmônica e
justa, ou que pelo menos lutem por um mundo de equidade. O olhar para o
passado, com nossas questões atuais, para vivências que já não habitam o
presente, provoca na mente humana toda uma sorte de sentimentos. Nos
permite pensar novos caminhos, a profundidade dos processos em que
vivemos e o quanto nossos ancestrais lutaram para conseguir certos direitos e
melhores condições de vida.

Dessa forma, considero que a História Asiática tem muito a contribuir com
nosso campo de estudos. Aqui farei um pequeno recorte no imenso e profundo
nicho da História da Ásia, pretendo trabalhar duas Graphic Novels
contemporâneas da quadrinista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, Grama
(2020) e A Espera (2021), pois ambas fazem uso da História e da recordação
como recurso narrativo. Assim, pretendo contribuir para a pesquisa sobre o
recorte temporal da primeira metade do século XX no Leste Asiático, tomando
como recorte espacial a península coreana e o império japonês. Acredito que
este reforço pode estimular os pares a implementar tais conteúdos em suas
práticas docentes, ou até mesmo ampliar o número de referências sobre o
assunto.

Neste trabalho eu mobilizo os quadrinhos para analisar sua representação do


espaço histórico. Não pretendo tomar as Graphic Novels como “fontes
perfeitas”, tal coisa sequer existe, tampouco como um reflexo fiel do real, aqui
trato do conceito de representação. Ou seja, entendo que a quadrinista
mobiliza de fato suas fontes orais, documentos históricos, em conjunto com sua
criatividade, com a imagem que ela tem desses grupos e da interação que ela
tem com os locais que trabalha [CHARTIER, 2002, 159]. O teórico literário
Robert Tally, acentua que na literatura há um espaço e temporalidade próprias,
lugares e momentos no tempo são forjados pelos autores, até mesmo quando
são inspirados por fontes históricas [TALLY, 2019, p.17]. A dimensão artística

Novas Mídias e Orientalismos


111
de um quadrinho não pode ser esquecida, contudo isso não anula seu valor
como fonte de pesquisa.

É importante ressaltar que as histórias em quadrinhos são um recurso atrativo


para os estudantes e o público em geral, porque “são o espaço do lúdico e sua
narrativa, tal como o cinema, envolve uma estrutura diferente dos livros de
História tradicionais” [LIMA, p.164, 2017]. Trabalhar com tais recursos leva o
público em geral, assim como nós, historiadores, a ter um olhar mais
interessado sobre certos eventos históricos que muitas vezes nos passariam
despercebidos. Dificilmente, no Brasil, as pessoas conheceriam as histórias
das mulheres de conforto, da violência da colonização japonesa na Coreia e da
própria guerra entre as Coreias sem produções artísticas. A título de exemplo,
podemos pensar tanto nos objetos de pesquisa que selecionei neste trabalho,
quanto em diversas outras produções, como o romance de Min Jin Lee,
Pachinko, também lançado como série de televisão em 2022. Ou ainda, série
dramática Mrs. Sunshine (2018), e filmes como A criada (2016) e Louvor a
morte (2018).

Contudo, caro leitor, acredito que neste ponto se você não leu as obras a que
me referi como objeto deve estar ansioso para saber do que se trata. Pois bem,
a graphic novel, Grama, foi publicada originalmente em 2017 na Coréia do Sul
e conta a história das “mulheres de conforto” do exército japonês, em especial
da coreana Ok-Sun Lee. O caso retratado na obra é uma experiência
individual, ocorrida em 1942, Ok-sun, sofreu ao ser separada da família, levada
para um estado fantoche japonês e tornada escrava sexual dos soldados
japoneses durante anos [GENDRY-KIM, 2020, p.481]. Além disso, a
quadrinista destrincha várias particularidades da sociedade coreana da época,
como a “adoção” de jovens garotas por outras famílias, para que as meninas
trabalhassem como empregadas ou até prostitutas em troca de comida ou
algum dinheiro para os pais. Gendry-Kim critica a pobreza e as diferenças de
classe, assim como o colonialismo japonês e a violência do
machismo/patriarcado sobre a vida das meninas e mulheres coreanas, com
vários graus de violências vivenciados por suas personagens.

A autora usa como combustível de sua narrativa as recordações da idosa,


“vovó” Ok-Sun Lee. Essa carismática senhora, uma das principais expoentes
do movimento de divulgação dos crimes de guerra sofridos por meninas de
todo sudeste asiático durante o domínio colonial japonês, morou por mais de
três décadas na China, depois de ser separada da família ainda adolescente.
Aos cinquenta e cinco anos, voltou para Coréia do Sul, com a ajuda de um
programa televisivo de 1997 que juntava famílias separadas no contexto da
guerra. A “vovó” Lee, narra sua história desde 1934, retratando a infância difícil
em meio a pobreza e desigualdade social da Coréia (Joseon) na época.

Em seguida, a vemos ser mandada para ainda mais longe de casa, onde é
abusada sexualmente tanto por um prisioneiro, como, e neste caso diversas
vezes, por soldados japoneses. Ao fim da guerra, quando o campo onde era
mantida foi esvaziado, ela vaga sem qualquer suporte, até conseguir um novo

Novas Mídias e Orientalismos


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lar, por meio de um casamento com um homem mais velho que já possuía
filhos. É ali, na China, que ela passa boa parte de sua vida, longe de sua terra
natal e dedicando sua vida a criar os filhos do marido.

Já a graphic novel, A espera, foi lançada em 2020 também na Coréia do Sul.


Nesta obra Keum Suk recorre às memórias de sua própria mãe e de outras
mulheres coreanas para contar histórias de separação familiar. Setenta anos
após a Guerra da Coreia, muitas famílias seguem separadas, visto os avanços
tímidos entre as relações amistosas entre Coreia do Sul e do Norte, e foi
justamente essa problemática que moveu a autora rumo ao novo trabalho.
Keum Suk mobiliza documentos históricos, testemunhos orais e outras fontes
para recontar a história da guerra da Coréia sobre a ótica de coreanas, e da
vida das meninas e mulheres de meados do século XX. Sua principal
personagem no quadrinho é cruelmente separada do filho enquanto fugiam do
conflito, novamente a violência causa trauma na vivência dessas sujeitas
históricas que ganham vozes por meio da arte da autora.

Ao mobilizar memórias de idosas Gendry-Kim entra em uma dimensão de


análise bastante complexa, segundo a psicóloga Ecléa Bosi “o velho se
interessa pelo passado bem mais que o adulto, mas daí não se segue que
esteja em condições de evocar mais lembranças desse passado do que
quando era adulto, nem, sobretudo, que imagens antigas, sepultadas no
inconsciente desde sua infância” [BOSI, 1987, p.23]. Ou seja, não é possível,
nem mesmo usando testemunhos orais de pessoas que vivenciaram tais
acontecimentos retomá-los e retratá-los de forma “exata”, a memória não é
confiável, contudo, também não é uma dimensão descartável [HUYSSEN,
2000]. As memórias e recordações, são preciosas fontes históricas,
resguardadas por meio de testemunhos orais, diários e afins, que nos ajudam a
entrar em contato com passados e experiências diversas [ASSMANN, 2011].

Ressalto, que o recorte histórico tema das Graphic Novels analisadas é


extremamente pertinente, tanto no que concerne ao tema de violência contra
mulheres na sociedade atual, quanto aos silenciamentos de suas experiências
e ainda uma questão geopolítica complexa que permeia a Coreia do Sul e o
Japão. Grama em especial, se faz especialmente crítica, se levarmos em conta
os acordos feitos entre Coréia do Sul e Japão no ano de 2015. Neste caso, as
questões relativas às questões coloniais e das mulheres de conforto foram
praticamente silenciadas por ambas as nações em nome da cooperação
econômica. Ou seja, as mulheres de conforto viram suas narrativas serem
novamente reprimidas, inclusive por seus próprios representantes políticos.

Nesse cenário, o ativismo da vovó Ok-Sun Lee e da quadrinista, dão voz e


rostos aos traumas, violências e apagamentos sofridos por mulheres durante o
século XX naquela região [LEE, 2022, p.169]. Gendry-Kim reafirmou em
entrevista que quando trata das memórias traumáticas de suas entrevistadas,
não trata apenas de um problema delas, enquanto indivíduos, mas sim de um
problema da sociedade, que também se relaciona a classes sociais. Afinal, em
todas as suas obras a autora trabalha justamente com mulheres das classes

Novas Mídias e Orientalismos


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menos abastadas, que foram vendidas, violentadas e sequestradas do seio de
suas famílias, seja pelos colonizadores japoneses, ou por homens coreanos
[GENDRY-KIM, 2022].

Em A espera, é a pobreza e o machismo que assombram a personagem


principal em sua infância e já lhe mostram a crueldade do mundo, da sociedade
na qual está inserida. A guerra, posteriormente, iria tornar tais dimensões ainda
mais terríveis, a fome, a violência dos homens (inclusive, norte-americanos), e
a separação de famílias nos faz sentir a dor dos sujeitos que vivenciaram isso
no passado. Outro fator importante problematizado nas obras, é a relação dos
jovens com os idosos, muitas vezes, estes últimos são ignorados, a própria
autora reflete sobre sua impaciência na relação com a mãe.

Durante a própria história, Keum Suk denota a dificuldade em entrevistar suas


fontes orais, as idosas por vezes “desviavam do tema” a que se propunham
falar, elas divagavam, voltavam a contar a mesma história repetidas vezes ou
até esqueciam de momentos importantes [BOSI, 1987, p.342]. Ambas as
graphic novels, demoraram anos para serem concluídas, tanto devido a idade e
tipo de entrevistas dada por suas fontes, quanto a elementos artísticos criativos
narrados pela autora, como bloqueios criativos, viagens aos locais que retrata e
as longas pesquisas em arquivos, jornais e fotografias na China, Japão e
Coreia.

De volta ao enredo de Grama, no que concerne as “mulheres de conforto”


narrativas históricas entram em conflito, uma vez que o governo japonês negue
a ideia de escravidão sexual e defenda que se tratava de prostitutas voluntárias
para o esforço de guerra japonês [LEE, 2022, p.169)]. E não foi apenas o
governo japonês que quis silenciar acerca de seus crimes de guerra, o
patriarcado coreano marginalizou e incentivou que essas mulheres se
calassem sobre suas experiências. Nos últimos cinco anos, a Organização das
Nações Unidas, passou a encarar como “escravatura sexual” ou “escravidão
sexual”, o caso das “mulheres de conforto”. Além disso, no relatório
apresentado por Radhika Coomaraswamy, no Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas, a violência sofrida por essas meninas e mulheres foi
considerada uma escravidão sexual promovida por militares japoneses durante
o período da guerra [NAM, 2018, p.19].

A historiadora coreana Lee Jin, reforça:

“É preocupante lembrar que foi somente em 1991, quase meio


século após a Segunda Guerra Mundial, que uma mulher de
conforto falou pelas vítimas pela primeira vez na Coreia do Sul.
Muitas mulheres de conforto nos países do Leste Asiático não
foram bem-vindas por suas famílias ao voltar para casa. Em vez
disso, eles enfrentaram o ostracismo, já que a castidade pré-marital
era tradicionalmente considerada mais importante até do que a
própria vida – escolher sobreviver ao real e voltar para casa era
considerado uma vergonha para a família” [LEE, 2022, p.170].

Novas Mídias e Orientalismos


114
Corroborando com a documentação analisada por Lee Jin e Sun Young Nam,
os testemunhos presentes nas obras de Keum Suk Gendry-Kim evidenciam
esse silenciamento, seja por suas próprias famílias de forma explícita ou
implícita. A sociedade extremamente patriarcal prefere fechar seus olhos para
os crimes cometidos, tanto na nação das vítimas, quanto na dos agressores.
Keum Suk, lança luz aos crimes e problematiza o silêncio, assim como a
própria vovó Ok-Sun. Essas manifestações públicas também incentivaram
outras que foram “mulheres de conforto” a falar publicamente, algumas
testemunharam em tribunais, programas de tv e até inspiraram filmes
biográficos, como no caso de I can speak (2017).

A memória dessas mulheres foi sublimada por anos, não só por terceiros, mas
por si próprias, por ser traumática, afinal muitas delas sequer conseguem
contá-las por décadas [ASSMANN, 2011, p.249]. Tanto a autora, quanto a
própria Ok-Sun relatam que muitas daquelas que passaram por esses
processos de violência tiraram a própria vida, devido a extrema “desonra” que
isto representaria para sua família. Tal impossibilidade de falar sobre os
ocorridos por décadas denota a sensibilidade e complexidade das entrevistas
feitas pela quadrinista coreana, não por acaso foram anos para finalizar as
entrevistas. Isso também corrobora para que o público em geral tenha contato
com um período de tanta violência que por anos foi abafado, e que segue
gerando discussões calorosas entre comunidades políticas.

Nesse contexto, trabalhar com Graphic Novels mostra-se um artifício para o


historiador, uma vez que o meio gráfico consegue passar de forma mais
impactante as ações abomináveis dos soldados e os eventos perturbadores
que se passam no período histórico analisado [LEKSHMI, ARATHI, KRISHNA
PRIYA, 2021, p.2923]. Sobretudo se pensarmos em mobilizar estes recursos
para os anos finais do Ensino Médio, seja na Educação Regular ou na de
Jovens e Adultos, e até mesmo para a divulgação de tais acontecimentos
históricos na sociedade. As histórias em quadrinhos de Keum Suk tratam de
temas terríveis, realmente dolorosos, contudo, o traço da autora faz com que
nós leitores sejamos tocados pela emoção, não me acanho em dizer, até
derramando lágrimas, sem necessariamente apelar para cenas de violências
explícitas.

Keum Suk Gendry-Kim, por meio de sua arte, faz com que a história que
representa às memórias de suas entrevistas, venham ao leitor carregadas de
emoções, com seus traumas evidenciados e visíveis. Segundo Lekshmi, Arathi
e Krishna Priya: “a angústia de suas almas, que nunca pode ser traduzida no
meio tangível das palavras, encontra alívio na arte honesta e controlada de
Keum Suk Gendry-Kim. Um romance gráfico é único porque, onde as palavras
param, a arte começa e o verdadeiro artesão cria sem esforço uma mistura
harmoniosa de ambos os meios” [LEKSHMI, ARATHI, KRISHNA PRIYA, 2021,
p.2924].

Novas Mídias e Orientalismos


115
Tanto em Grama, quanto em A Espera, Keum Suk busca representar lugares
do passado, e ao fazer isso a autora acaba por se relacionar tanto aos sujeitos
que mobiliza em suas entrevistas, quanto aos locais que busca representar.
Assim, por meio de experiências cotidianas, atitudes, memórias e recordações
das pessoas que habitavam tais lugares do passado, há uma representação
complicada meada de interseção de eventos históricos, narrativas, traumas e
assim por diante [TALLY, 2019, p.18]. Ou seja, a graphic novel, consegue
ilustrar por meio do olhar da autora aquilo que suas fontes lhe relatam, seja a
partir de testemunhos orais, ou das outras documentações por ela usadas,
documentos oficiais, historiografia, fotografias e afins.

A representação espacial feita por Keum Suk Gendry-Kim em seus quadrinhos


leva problemáticas extremamente atuais ao público, o passado silenciado,
esquecido e por muitas vezes desprezado vivenciado por estas mulheres entra
em contato conosco. Keum Suk deu vida, rostos e voz as senhoras Ok-Sun
Lee, Kim, Lee e tantas outras (GENDRY-KIM, 2020), que foram violentadas,
separadas de suas irmãs, filhos e até mesmo de si mesmas, de suas
memórias, voz e honra. Nós historiadores temos muito a contribuir nestas
discussões, mesmo de longe, devemos ser empáticos, nos colocar no lugar
dessas sujeitas históricas, e dar ouvido a elas enquanto podem falar. Os
relatos orais destas senhoras constituem uma fonte histórica a ser trabalhada,
problematizada e analisada para aprofundar nossas pesquisas acerca de tais
recortes temporais e especiais.

Referências biográficas:
Mestre no Programa de Pós-graduação em História e Espaços da UFRN.
Graduada em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.

Referências bibliográficas:
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da
memória cultural. São Paulo: Unicamp, 2011.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Editora


da Universidade de São Paulo, 1987.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Algés:


DIFEL, 2002.

GENDRY-KIM, Keum Suk. A Espera. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2021.

GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2020.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,


mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000

Novas Mídias e Orientalismos


116
LEE, Jin. Opening up a world and the temporal – normative dimension: Keum
Suk Gendry-Kim Grass as World Literature. In: HODAPP, James. Graphic
Novels and comics as world literature. New York: Bloomsbury Academic, 2022.

LEKSHMI, S.P. ARATHI, P.S. KRISHNA PRIYA, M.T. Role of Translation in the
Rise of Asian Graphic Novels. Annals of R.S.C.B., ISSN:1583-6258, Vol. 25,
Issue 5, 2021, Pages: 2920 – 2926.

LIMA, Douglas Mota Xavier de. História em quadrinhos e ensino de História.


Revista História Hoje, v.6, n.11, p.147-171, 2017.

NAM, Sun Young. As relações diplomáticas entre a Coreia do Sul e o Japão: o


caso das ‘Mulheres de Conforto’ da Coreia. Dissertação de Mestrado em
Relações Internacionais. Universidade de Lisboa, 2018.

SESSÃO DE BATE PAPO COM A AUTORA DA GRAMA, KEUM SUK


GRENDY KIM (08/08/2021) - Centro Cultural Coreano no Brasil. Disponível em
<youtube.com/watch?v=PePYgx5-2V0> Acessado em 09 de agosto de 2022.

TALLY JR. Robert T. Topophrenia: Place, Narrative, and the Spatial


Imagination. Indiana: Indiana University Press, 2019.

Novas Mídias e Orientalismos


117
OS DOIS LADOS DA MESMA MOEDA: COMO O JAPÃO
É IMAGINADO PELOS FÃS E CRÍTICOS por Lucas
Marques V. Motta e Luciana de Ávila Freitas

Introdução
No Brasil, existem dois discursos conflitantes sobre os animes (animação
japonesa) e os mangás (quadrinhos japoneses). De um lado, há uma incitação
negativa sobre as obras, encarando-as como objetos nocivos; do outro,
observa-se um tratamento apaixonado, quase visceral. Apesar de dissonantes,
os discursos se coadunam na medida em que imaginam o Japão; seja na sua
forma negativa, seja na sua forma romantizada. Analisemos os casos.

O Japão como uma entidade maligna


Desde que os animes e mangás foram introduzidos no Brasil, eles vêm sendo
acusados por religiosos, principalmente da doutrina neopentecostal, de
influenciar negativamente crianças e jovens. O teor das denúncias, além de
serem fundamentalistas, apresentam-se como Orientalistas. Para dar
seguimento ao assunto, convém entender o que esse conceito evoca.

Para Edward Said (2007), tanto o Ocidente quanto o Oriente carecem de


estabilidade ontológica, sendo construções que trabalham no campo da ficção.
Prestam-se assim a mobilizações de caráter emotivo, os quais incluem a
manipulação, o medo e o ódio [SAID, 2007, p. 13]. Como na maioria das vezes
é o Ocidente quem cria essas ficções e considerando ainda a história de
colonização e imperialismo, é no estudo sobre a construção do Oriente pelo
Ocidente que Said se dedica. Justamente por esse histórico, afirmam-se as
relações de poder entre os dois blocos:

[...] o Orientalismo pode ser discutido e analisado como a


instituição autorizada a lidar com o Oriente – fazendo e
corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o,
ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o
Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e
ter autoridade sobre o Oriente [SAID, 2007, p. 29].

Sendo assim, entende-se o Orientalismo como um discurso produzido e


manejado no interior da cultura europeia, que se dispôs a criar imagens
contrastantes do Outro como forma de reafirmar a identidade do Nós [SAID,
2007, p. 29-30]. Daí as razões por trás das representações estereotipadas e
muitas vezes malignas dos asiáticos, já que essa atitude também define o lugar

Novas Mídias e Orientalismos


118
do Ocidente como padrão virtuoso. Posição que irremediavelmente coloca o
Outro numa posição de desumanização [SAID, 2007, p. 30].

Não se pode afirmar, no entanto, que o Orientalismo determina tudo o que


pode ser dito sobre o Oriente. Existem relações de interesse por trás do que
deve ou não ser comentado. Do mesmo modo não se afirma que o Oriente é
uma criação sem realidade correspondente. No entanto, o fato é que essa
realidade filtra o Oriente na consciência Ocidental [SAID, 2007, p. 30-32].

Eis que o Orientalismo é aplicado no Brasil. Em 2000 estreou Yu-Gi-Oh! (1998)


no programa matinal TV Globinho (2000-2015), da emissora Globo. Desde a
estreia, disseminou-se nas igrejas evangélicas a crença de que esses
desenhos eram diabólicos, sendo que o ponto alto desse alarde ocorreu
quando um apresentador de televisão, Gilberto Barros, apresentou no
programa Boa Noite Brasil (2003-2007), na TV Bandeiras, acusações sobre o
anime Yu-GI-Oh! se relacionar com o ocultismo e com a Yakuza (máfia
japonesa). Durante uma semana os ataques do apresentador continuaram,
chegando ao ponto de trazer outras obras, como Dragon Ball (1986-1989), para
corroborar seu argumento de que animes eram imorais e perigosos. A reação
foi imediata. Por todo o Brasil, pais especialmente religiosos proibiram seus
filhos de assistirem o anime, bem como descartaram o card game que se
remetia ao desenho. Yu-GI-Oh! não foi o único anime perseguido. Um caso
parecido aconteceu em 2004. O Ministério da Justiça proibiu a Globo de
transmitir no programa matinal o anime InuYasha (2000-2004), com o
argumento de que a obra era violenta demais para o horário. Na imprensa, a
informação chegou a ser noticiada como uma vitória para os religiosos:
“Governo veta ‘demônio’ de manhã na Globo”.

Mais recentemente, outra obra foi alvo de críticas. No dia 17 de outubro de


2021 foi ao ar no Domingo Espetacular (2004-) uma matéria de 11 minutos,
alertando sobre o perigo dos desenhos violentos. O maior exemplo citado foi o
anime Death Note (2006-2007), cuja classificação etária é entre 16 e 18 anos.
Na história, existe um caderno capaz de matar aqueles cujos nomes forem
escritos nele, desde que seus rostos sejam visualizados no ato. Devido a esse
recurso narrativo, a obra foi vilanizada. Noticiou uma das apresentadoras do
programa: “Especialistas denunciam que muitas crianças estão acessando
material que tem uma aparência inofensiva, mas que trazem cenas de violência
explícita capazes de chocar até a um adulto e provocar sérios danos à saúde
mental”. Vê-se que o tom moralista ganha respaldo de especialistas, mas
durante toda a reportagem, apenas três desses especialistas são citados: um
sociólogo, um psicoterapeuta e uma psicóloga. Sob o jugo das suas
constatações, eles determinam não apenas o que as crianças devem consumir,
mas também o que é potencialmente perigoso para a cultura. Devidamente
coroados com togas, agem, portanto, como instâncias de julgamento. Em um
trecho, o psicoterapeuta afirma: “Infelizmente a nossa cultura vem abraçando a
morte e a violência cada vez mais frequentemente. É o interesse de uma
indústria que lucra bilhões com o estado do cérebro de angústia, medo, solidão

Novas Mídias e Orientalismos


119
e ansiedade”. Em outro ponto, o mesmo consultor julga: “Isso é um lixo tóxico.
Isso é a incivilidade, a desumanização, ali consagrada como algo legal”.

Polêmica e sensacionalista, a reportagem carece de criticidade, o que fica


nítido pelo erro de algumas informações (por exemplo, informam errado a data
de estreia do anime). O último trecho citado da matéria resume a atitude de
Orientalismo tomada. Se o Japão produz incivilidade e desumanização, seriam
os japoneses bárbaros e não-humanos? Por outro lado, seriam os brasileiros
civilizados e humanos, já que supostamente pertencem ao Ocidente?

A matéria foi ao ar na rede de televisão Record TV, de propriedade de Edir


Macedo. Um dos homens mais ricos do Brasil que tem sob seu comando
também uma das instituições religiosas mais ricas, a Igreja Universal. A mesma
igreja que prestou assistência à escalonada da Extrema-Direita no Brasil, que
resultou na eleição desastrosa de Jair Messias Bolsonaro. Mídia, política e
religião, assim, confundem-se, formando uma combinação perigosa que atende
aos projetos de poder das grandes elites brasileiras. E para continuar detendo
esse poder, convém a estes grupos fornecer a base do Nós, construída,
sobretudo, na máxima “deus, pátria e família”. Logo, entende-se porque há
anos os animes e mangás vêm sofrendo não apenas críticas severas, mas
também censura. Porque são conteúdos que pertencem ao Outro. E porque
esse Outro não participa da concepção judaico- cristã Ocidental, os animes
permaneceram à sombra do entretenimento por muito tempo. Mesmo com a
globalização alçando níveis mais altos na atualidade, ainda impera, pelo menos
em espaços fundamentalistas, uma condenação a estas obras.

O Japão maravilhoso
Se existem aqueles que depreciam a cultura japonesa, também existem
aqueles que a apreciam profundamente. A garantia de sucesso no Brasil pode
ser devido ao fato de haver em solo nacional a maior comunidade nipônica fora
do arquipélago, mas o triunfo dos animes e mangás vai além das nossas
fronteiras, sendo um fenômeno mundial.

O primeiro fator de sucesso tem a ver com a proximidade de três indústrias


culturais. No Japão, os animes, mangás e videogames relacionam-se de modo
a alavancar o engajamento das obras separadamente, o que
consequentemente beneficia todos os audiovisuais. Essa relação estreita é
chamada por Henry Jenkis de narrativa transmidiática [2011]:

A narrativa transmídia representa um processo em que elementos integrantes


de uma ficção são dispersos sistematicamente por vários canais de distribuição
com o objetivo de criar uma experiência de entretenimento unificada e
coordenada. Idealmente, cada meio faz sua própria contribuição única para o
desenrolar da história [JENKIS, 2011].

Nesse processo, diferentes mídias atraem diferentes nichos. Assim, um fã pode


procurar uma experiência diferente da obra que gosta, consumindo um produto
audiovisual distinto. De outra forma, uma pessoa pode não se identificar com

Novas Mídias e Orientalismos


120
uma mídia, mas ser perfeitamente aberta a outra [JENKIS, 2003]. Em qualquer
aspecto, as indústrias que participam desse circuito beneficiam-se. Pensando
no caso brasileiro, podemos citar o exemplo de Pokemón. Certamente a
animação não seria tão popular no Brasil, se ela não fosse acompanhada por
videogames e cards games, que promoveram não apenas um alargamento de
experiências, como também criou uma verdadeira comunidade de fãs
interessados em compartilhar dicas, novidades e cards.

Outro motivo para o êxito internacional se deve em boa parte aos produtos
conhecidos como mukokuseki, literalmente “sem nacionalidade, sem estado”.
Em outras palavras, a ausência de marcas culturais que identifiquem as
origens das obras, possibilita um acolhimento maior em países para além do
arquipélago. Convém lembrar aqui alguns sucessos, cujos títulos não possuem
nomes japoneses e também ambientam-se em mundos imaginários: Zelda,
Mario e Sonic [MANGIRÓN, 2012, p. 35]. O sucesso dessas obras deve-se,
portanto, à identificação que geram em diferentes públicos.

Citemos o terceiro motivo que fizeram os animes e mangás conquistaram uma


legião de fãs pelo mundo. Trata-se da distribuição ilegal dos animes e mangás.
Apesar destes serem “uma agressão à propriedade, uma afronta às relações
de mercado e darem prejuízo aos produtores e detentores das patentes ou
direitos originais” [BRITO, 2013, p. 21) sua dinâmica é muito mais complexa do
que inicialmente pode parecer. Mesmo que os produtos piratas atuem como
concorrentes dos originais, gerando-lhes prejuízo, eles atendem mercados
onde aqueles produtos são inacessíveis. Sem contar que mesmo de maneira
torta, ajudam a difundir os originais nesses espaços [IBIDEM, p. 21]. Assim,
quando um título é licenciado num determinado país, ele é recebido por fãs
ansiosos em consumi-lo.

No Brasil, os animes foram introduzidos na década de 1960, mas ganharam


projeção apenas na década de 1990, quando boa parte dos lares brasileiros já
contavam com uma televisão [SATO, 2007, p. 27]. No final desta década
registaram-se os primeiros eventos da cultura otaku. A partir daí mais e mais
eventos dedicados aos fãs surgiram, pipocando em todas as partes do Brasil.
O fenômeno não passou despercebido socialmente. Como mencionamos
antes, parte da febre que os produtos culturais japoneses provocaram no
Brasil, levou os pais e a mídia fundamentalista a se manifestarem
negativamente sobre. Mas conforme as gerações mais antigas foram dando
lugar às mais novas; conforme a globalização se expandia, bem como a
tecnologia, as produções japonesas foram se tornando cada vez mais
aceitáveis. Um exemplo dessa aceitação pode ser verificada na presença delas
dentro do maior programa mainstream do Brasil, a novela. Em 2017 foi ao ar a
novela A força do Querer, no horário nobre da Rede Globo. Na trama, o
personagem Yuri (Drico Alves) mostra o cotidiano de um otaku (no Brasil o
termo é usado para designar fãs de animes e mangás) que faz cosplay
(atividade onde um fã se caracteriza de um personagem específico, podendo
também dramatizá-lo) e participa de eventos. Apesar dos estereótipos e críticas

Novas Mídias e Orientalismos


121
na representação da comunidade de fãs, a proposta da trama visava retratá-los
positivamente, o que contrasta com a antiga visão da comunidade.

Mas nem tudo é belo como aparenta. Assim como toda base de fãs, existem
aqueles que se deixam levar pelas paixões. Frequentemente, entre os otakus,
disseminam-se pensamentos sobre o valor cultural do Japão em detrimento do
Brasil, o sonho da residência no arquipélago e a superioridade étnica dos
japoneses. Em qualquer um desses cenários, desconsidera-se a realidade
nipônica. A imagem que os fãs projetam sobre o Japão é idealista, portanto,
descolada da realidade. A bem da verdade, existem diversos impedimentos
para um estrangeiro morar no arquipélago. Mesmo quem nasce no país não
tem direito à cidadania, uma vez que lá imperam as regras do jus sanguinis
(citando apenas um dos embargos ao direito da cidadania). Quanto à ideia de
superioridade japonesa por estrangeiros, algumas observações devem ser
feitas. Muito do que se idealiza sobre o arquipélago, deve-se ao imaginário
Orientalista, que prega sobre o excessivo coletivismo japonês, a estrutura
hierárquica da sociedade, a produtividade no trabalho e o sucesso educacional.
Ao deparar-se com esses fatos, que na verdade configuram-se como
problemas sociais no Japão, os fãs estrangeiros de anime e mangá
romantizam de forma insensata o país que é objeto de sua adoração — como
exemplo, podemos citar o fato do Japão ser um dos únicos lugares no mundo
que adotou um conceito próprio para designar aqueles que morrem por
excesso de trabalho: karoshi. Portanto, longe de ser admirável, o labor em
demasia é um problema social grave.

Conclusão
Como observamos, muito do que se julga sobre o Japão, se julga por meio dos
produtos culturais exportados pelo país. Se existem olhares censuradores e
moralistas, também existem olhares demasiadamente românticos. Com isso
observamos não apenas a importância da cultura pop para a autoimagem do
Japão, como analisamos também que o entendimento sobre o arquipélago é
caracterizado pelo Orientalismo, pois mesmo aqueles que veem com amor o
país, o fazem se apropriando dos estereótipos acerca dele.

Importante é mencionar que, apesar das visões negativas sobre o Japão, pelas
lentes conservadoras, prevalece um olhar mais receptivo nas sociedades
ocidentais sobre os animes e mangás. Esse é um movimento geracional que
aceita e convive melhor com a cultura pop, de modo geral. O que não quer
dizer que se deva baixar a guarda para as análises críticas sobre as mídias
japonesas, uma vez que elas fazem parte do movimento Japan Cool.

O Japan cool é caracterizado pela noção de soft power de Joseph Nye (1990).
Basicamente, este último conceito se refere ao alinhamento político de uma
nação com as produções culturais gestadas no interior do país, sendo essa
estratégia conhecida pela faceta de um imperialismo brando. No caso do
Japão, a imagem que suas mídias projetam é de um país jovem, descolado e
alegre; portanto, uma imagem amistosa [NYE, 1990 apud MCCLELLAND,
2017, p. 6]. Esse seria o Japan Cool. Assim, enfatizamos a importância de

Novas Mídias e Orientalismos


122
estudar as mídias japonesas, posto que são fontes ímpares para o
entendimento da cultura nipônica, bem como da sua identidade.

Referências
Lucas Marques Vilhena Motta é doutorando em História pela UFPel
Luciana de Ávila Freitas é mestranda em História pela UFPel

BRITO, Quise Gonçalves. Animê como recurso de soft power: comunicação e


cultura na situação de globalização. 2013. 187 f. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2013.

ESPECIALISTAS alertam para os perigos da exposição de crianças a


conteúdos violentos de séries e desenhos. R7, São Paulo, 17 de out. de 2021.
Disponível em: <https://recordtv.r7.com/domingo-
espetacular/videos/especialistas-alertam-para-os-perigos-da-exposicao-de-
criancas-a-conteudos-violentos-de-series-e-desenhos-17102021>. Acesso em:
22 de set. de 2022.

GARGIA, Fábio. Death Note e a “demonização” de animes pela televisão


brasileira. Disponível em <https://www.omelete.com.br/anime-manga/death-
note-record-materia>, acessado em 25/02/2022.

JENKIS, Henry. Transmedia 202: further Reflections. 31 de jul. de 2011.


Disponível em:
<http://henryjenkins.org/blog/2011/08/defining_transmedia_further_re.html>.
Acesso em: 20 de set. de 2022.

JENKIS, Henry. Transmedia Storytelling. 15 de jan. de 2003. Disponível em:


<https://www.technologyreview.com/2003/01/15/234540/transmedia-
storytelling/>. Acesso em: 20 de set. de 2022.

MANGIRÓN, Carmen. Manga, anime y videojuegos japoneses: análisis de los


pricipales factores de su éxito global. Puertas a la Lectura , v. 24, p. 28-43,
2012.

MCLELLAND, Mark. Negotiating “cool Japan” in research and teaching. IN:


MCLELLAND, Mark (ed.). The End of Cool Japan: Ethics, Legal, and cultural
challenges to Japanese popular culture. New York: Routledge, 2017, p. 1- 30.

PREVIDELLI, Fábio. Nos anos 2000, cartas de Yu-Gi-Oh! foram demonizadas.


Disponível em <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/a-
lenda-urbana-do-baralho-a-polemica-em-torno-das-cartas-de-yu-gi-oh-nos-
anos-2000.phtml>, acessado em 25/02/2022

SAID, Edward Wadie. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente.


trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Novas Mídias e Orientalismos


123
SATO, Cristiane. JAPOP: O poder da Cultura Pop Japonesa. São Paulo: NSP-
Hakkosha, 2007.

Novas Mídias e Orientalismos


124
A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA SUL-COREANA DA
EX-PRESIDENTA PARK GEUN-HYE NO PERÍODO DO
IMPEACHMENT por Maria Clara Moraes e Suéllen Gentil

A cultura midiática influencia a maneira como uma sociedade enxerga fatos e


se relaciona com eles. Ao controlar o fluxo de informações e como elas são
passadas à população, a mídia gera uma verticalização de poder, transmitindo
discursos ideológicos que determinam um controle social e interferem
diretamente na subjetividade dos sujeitos. O imaginário social é, então, criado a
partir desses direcionamentos que impõem regras e costumes. De forma
similar, o entendimento de gênero cria no imaginário símbolos ditos de
natureza feminina. Surge, então, uma construção cultural da imagem da mulher
que é reproduzida e produzida também pela mídia, contribuindo para a
formação opinativa e discursiva de uma sociedade.

Nesse sentido, pensando a mídia como formadora e reforçadora de


estereótipos, especialmente aqueles relacionados à figura da mulher, este
trabalho irá debater os resultados iniciais de uma pesquisa em progresso na
qual buscamos investigar como a imprensa sul-coreana retratou e discutiu a
figura da ex-presidenta Park Geun-hye ao longo do processo do seu
impeachment, que durou de dezembro de 2016 a março de 2017. Para tal,
optamos por adotar como metodologia a Análise de Conteúdo, pela perspectiva
de Bardin [2016], visto que ela é constituída de diversos recursos sistemáticos
que, baseando-se na inferência e na dedução, nos possibilitam formular teorias
por meio de uma observação controlada, o que torna a análise mais didática.
Não é necessário nos aprofundarmos nas etapas metodológicas que compõem
a pesquisa, mas é relevante pontuar que o escopo da análise são matérias
jornalísticas dos principais jornais sul-coreanos de língua inglesa [The Korea
Times e The Korea Herald].

Dessa forma, à luz dessas discussões preliminares, este trabalho tem por
objetivo apresentar o que já foi observado dos marcadores de gênero presente
na linguagem jornalística da mídia sul-coreana e como esses dão indícios de
uma estrutura social que já determina o papel da mulher na sociedade.

Novas Mídias e Orientalismos


125
Ascensão e queda da única presidenta da Coreia do Sul
Park Geun-hye é filha do ex-ditador coreano Park Chung-hee, militar que
governou a Coreia por 18 anos, e foi intitulada pela imprensa de “princesinha
da Coreia” ao assumir o lugar de primeira-dama após o falecimento de sua
mãe. O âmbito político faz parte de sua vida desde muito jovem, mas o início
da sua carreira pública só se deu após o assassinato de seu pai. Em dezembro
de 2012, foi eleita presidenta da Coreia do Sul, primeira mulher a ocupar esse
cargo no País.

Desde o início de seu governo, Park teve que lidar com as desconfianças de
que ela traria de volta o autoritarismo, com os valores que vão de contra a
democracia, que esteve tão presente no governo de seu pai. O fato de sua
campanha eleitoral carregar o slogan igual ao do pai, mesmo ela tendo se
desculpado publicamente por todos aqueles que sofreram ou tiveram suas
vidas afetadas de alguma forma durante a ditadura, trazia à tona feridas que
ameaçavam um sistema democrátco com pouco mais de 30 anos. Apesar
disso, o trecho abaixo mostra que, nos anos iniciais, seu índice de aprovação
era elevado e, frequentemente, superior a seus antecessores:

“Apesar desses problemas, Park Geun-hye recebeu


consistentemente índices de aprovação de trabalho relativamente
altos em comparação com seus antecessores imediatos. Por
exemplo, a aprovação inicial do trabalho de Park Geun-hye foi de
44,2%, o que não era particularmente alto se fizermos uma
comparação com seus antecessores imediatos, Lee Myung-bak
(2008–2012) e Roh Moo-hyun (2003–2008), cujas classificações
iniciais foram de 52,1% e 60,3%, respectivamente. No entanto, o
índice de aprovação de Lee Myung-bak caiu para 21,6% quatro
meses depois que ele assumiu o cargo e o índice de Roh Moo-
hyun caiu para 24,7% em seu trigésimo terceiro mês de mandato.
Por outro lado, o índice de aprovação de Park Geun-hye foi
consistentemente superior a 30% até cair abaixo desse valor em
outubro de 2016, seu quadragésimo quinto mês no cargo. Se
considerarmos analiticamente que seu estilo de liderança
apresentava sinais antidemocráticos, o recebimento consistente de
índices de aprovação relativamente altos é bastante
surpreendente.” [Hahm, 2017, p.2, tradução nossa].

As acusações de suborno, propina, coerção e abuso de poder ocorreram em


2016 e surgiram, em um primeiro momento, com a circulação de várias notícias
que denunciavam troca de favores envolvendo uma amiga íntima da então
presidenta da Coreia do Sul, Choi Soon-sil. Estas notícias foram veiculadas
pelos meios de comunicação local de maneira sensacionalista e todo este
movimento culminou nos protestos à luz de velas, em dezembro deste mesmo
ano, resultando no impeachment de Park Geun-hye em março de 2017.

Novas Mídias e Orientalismos


126
As investigações referentes a este acontecimento foram conduzidas,
principalmente, por dois meios de comunicação coreanos, o jornal Hankoreh e
o centro televisivo JTBC [SEO, 2020]. O movimento midiático em torno do caso
foi tão intenso que o processo ficou conhecido por “South Korea’s Watergate” e
resultou em muitos prêmios para as emissoras e os jornalistas que lideraram as
investigações. Ao mesmo tempo, essa interferência ativa da imprensa dividiu
opiniões entre a população, a qual grande parte questionava se essa não
estaria fazendo o papel de promotora, conforme o trecho abaixo:

"É difícil mensurar o papel da mídia no impeachment da presidenta


Park. Grande parte da população sentiu que era a mídia que
estava fazendo o trabalho de promotora na investigação de Woo
Byung-woo e depois Choi Soon-sil. A agência de notícias JTBC
obteve o infame tablet que ligava diretamente Choi Soon-sil à
presidenta Park. O tablet não só foi confirmado como sendo de
Choi, mas foi verificado que ela o usou para editar os discursos da
presidenta Park e elaborar iniciativas políticas que muitas vezes
estavam em contradição direta com as pessoas que trabalhavam
no conselho nacional do governo de Park. O tablet acabou sendo,
posteriormente, entregue à promotoria do caso." [FERMIN-
ROBBINS, 2018, p. 4, tradução nossa]

O evento citado por Fermin-Robbins, uma das principais agências de notícia do


país tendo em mãos um tablet que ligava diretamente a ex-presidenta à amiga
investigada, é um dos diversos exemplos de como a mídia conseguiu ter
acesso a informações privilegiadas, algumas vezes antes da própria promotoria
do caso, e fez uso disso para tecer seus posicionamentos e teorias acerca dos
acontecimentos, inflamando o escândalo e agindo na formação da opinião
pública acerca do caso.

É importante destacar que os fatos materiais que levam a um impeachment são


multifatoriais, ou seja, existe todo um contexto sócio-político e econômico
complexo que resulta no impeachment. Nesse sentido, entendemos que os
principais acontecimentos que podem ter levado ao enfraquecimento da
imagem de Park Geun-hye na sociedade foram: a falta de assertividade no
desastre da balsa Sewol, que culminou na morte de mais de 250 pessoas, em
sua maioria estudantes, o envolvimento e as trocas de favores de empresários
dos grandes conglomerados sul-coreanos com a amiga da ex-presidenta,
incluindo um executivo da Samsung, além da associação da imagem de Park
com cultos e rituais macabros.

Novas Mídias e Orientalismos


127
Marcações de gênero nas notícias sobre o Impeachment
Na análise que realizamos, encontramos poucos marcadores de gênero
explícitos nos jornais coreanos sobre a ex-presidenta Park Geun-hye. Contudo,
é imprescindível destacar que esse achado surge exclusivamente da análise de
textos jornalísticos, artigos e artigos de opinião, relacionando-os a estruturas
misóginas de discurso. Este ponto é muito importante visto que as
características factuais que deságuam em um impeachment são multifatoriais.
Park Geun Hye foi declarada culpada das acusações e portanto impeachmada.

A maioria dos textos analisados apresentou o marcador de gênero sem


adjetivos pejorativos associados à ex-presidenta. Um outro achado importante
foi a presença da palavra mulher ao se referir à ex-presidenta. Contudo, ao
compararmos, percebemos que no mesmo texto ao se referir aos homens, não
houve menção a nenhum tipo de marcação do gênero masculino. A presença
da marcação do gênero feminino foi encontrada em 85% da nossa amostra,
gerando um significante expressivo. Outra característica interessante desta
marcação, é a ausência de palavras com cunho de baixo escalão ao se referir
à ex-presidenta.

O jornal The Korea Times [2017] em um de seus artigos trouxe o seguinte


trecho: “À medida que o caso se desenrolava, surgiram questões sobre como a
mulher solteira que enfrentaria 13 acusações criminais seria tratada durante e
após a audiência.” [tradução das autoras]. Temos a qualificação de Park Geun-
hye enquanto uma mulher solteira. Dentro da ética confucionista tradicional, a
mulher pode ocupar três posições na sociedade: filha, irmã e mãe.
Posteriormente, quando casa, agrega-se o papel social de esposa. Essas
marcações também restringem o ser mulher porque, ao definir essas funções
de gênero, a mulher não pode performar nada muito diferente do determinado.
Esta ética é um dos motivos pelos quais era negado à mulher o direito de
participar das movimentações políticas da sociedade.

Apesar das mudanças observadas, principalmente com a eleição de uma


mulher para o cargo de chefe-executiva do país, essa tradição ainda se
encontra muito arraigada à cultura coreana. Portanto, ao qualificar a presidenta
como mulher e solteira, o texto está fazendo uma contundente marcação de
gênero.

Um outro trecho, também do The Korea Times [2017], declara: “[...]Hong


afirmou que os assessores de Park inventaram seu escândalo de
corrupção."Agora devemos tirar Park da cabeça", disse Hong após a expulsão
de Park. Ele também chamou Park de "mulher desleixada que anda com
pessoas bagunceiras"." [tradução das autoras]. O substantivo mulher é
qualificado pelo adjetivo desleixada ao tratar de Park Geun-hye e o adjetivo
bagunceiras foi utilizado ao se referir às pessoas que acompanhavam a ex-
presidenta. A partir disto, podemos inferir que existe uma intenção de
conspurcar a imagem de Park Geun-hye. A diminuição da respeitabilidade
neste caso não perpassa nenhuma das acusações proferidas contra a ex-
presidente.

Novas Mídias e Orientalismos


128
Rumores relacionando Park à um culto religioso chamado Yongsaenggyo,
Igreja da Vida Eterna, encontram-se presentes em diversos artigos. Dentre
eles, podemos citar um com o título: “Seria Park Geun-hye a cultista?" [THE
KOREA TIMES, 2016]. Onde encontramos um debate sobre a possibilidade da
ex-presidenta participar de seitas e ser controlada pelo líder do culto, um
homem. Referente a isto, o artigo aponta rumores sobre o acidente, descrito
anteriormente, que ocorreu em abril de 2014 com a balsa Sewol. Eles levantam
a possibilidade de que a lentidão com a qual a situação foi tratada foi em
decorrência de um pedido do líder religioso que tinha como objetivo oferecer
aquelas pessoas em sacrifício; motivo, então, da negligência da ex-presidenta.

No mesmo texto, encontramos também a insinuação de que Park Geun-hye


tivesse algum envolvimento sexual com a sua amiga que deflagrou o caso.
Temos, então, outro marcador relacionado agora à sexualidade da ex-
presidenta sul coreana. Além disso, muitos textos trazem à tona a questão
parental da ex-presidenta. Ou seja, relacionando-a com uma figura masculina.
Neste caso específico, como o pai da ex-presidenta também foi uma figura
pública importante na história da Coreia do Sul, existe uma linha ténue que
separa o pessoal do coletivo. Os antecedentes pessoais de Park Geun-hye se
confundem com os antecedentes históricos da Coreia do Sul. Sendo, então,
analisada aqui um marcador que pode inferir a necessidade de um homem de
poder por trás da mulher coreana, visto que muitos acreditam que Park Geun-
hye só conseguiu o cargo por ser filha de Park Chung-hee.

Portanto, esta discussão retoma a ética confucionista presente na sociedade


coreana que de alguma maneira restringe o papel social, político e econômico
da mulher, uma vez que essa mulher sempre está atrelada a algum homem.

Diante do exposto, podemos concluir que, dentre os textos analisados, as


marcações de gênero se encontram tanto de maneira explícita quanto implícita,
Contudo, ocorre uma prevalência das passagens implícitas que denotam algum
tipo de generificação por parte do jornal ou do autor.

Ademais, as mídias também foram extremamente violentas e assertivas com


relação aos atos criminosos envolvendo a ex-presidenta da Coreia do Sul e,
portanto, não podem ser eximidas da perseguição a uma figura pública. O
papel delas para a concretização do impeachment foi inegável e trouxe à tona
na sociedade um sentimento vivenciado pelos sul coreanos em 1987, momento
de grande efervescência política quando houve grandes protestos em favor da
democracia. Esse sentimento de 1987 é revivido em 2016 com o protesto a luz
de velas que recebe influência de diversos fatores sociais, sendo o principal a
veiculação de notícias na mídia. Este movimento social, político e econômico
resultou no impeachment de Park Geun-hye e foi responsável por trazer à tona
na sociedade coreana uma certa esperança nos rumos do País.

Novas Mídias e Orientalismos


129
Como trabalhos futuros, expandiremos o escopo da pesquisa, incluindo na
análise dois outros jornais coreanos em língua inglesa, o Yonhap News Agence
e o Korea JoongAng Daily, e faremos uma análise em paralelo com a
repercussão midiática do Impeachment sofrido pela ex-presidenta Dilma
Rousseff no Brasil, apresentando as características que se aproximam e se
afastam entre os dois casos; sempre respeitando as particularidades históricas
e sociais de cada um dos eventos.

Referências
Maria Clara Moraes é mestra em engenharia de sistemas pela Universidade de
Pernambuco (UPE), pesquisadora associada da Coordenadoria de Estudos
Asiáticos [CEÁSIA], vinculado ao Centro de Estudos Avançados da
Universidade Federal de Pernambuco [CEA-UFPE].

Suéllen Gentil é mestranda no Programa de Pós Graduação em Letras, na


linha de pesquisa de Tradução e Cultura, da Universidade Federal da Paraíba
[UFPE] e pesquisadora associada da Coordenadoria de Estudos Asiáticos
[CEÁSIA], vinculado ao Centro de Estudos Avançados da Universidade
Federal de Pernambuco [CEA-UFPE].

FERMIN-ROBBINS, Jonathan. The Impeachment of South Korean President


Park Geun-hye. Carnegie Council for Ethics in International Affairs, p. 1-7,
2018.

HAHM, S.D.; Heo, U. The First Female President in South Korea: Park Geun-
hye’s Leadership and South Korean Democracy. Journal of Asian and African
Studie; v.53; n.5; p.1-17; 2017.

LEE, Y. Roads Untraveled: Redefining “democracy” through the 2016 protest


movement in Korea. Analyses & Alternatives. v.1; n.1; p.17-30; 2017.

SEO, S. South Korea’s Watergate Moment: How a Media Coalition Brought


Down the Park Geun-hye Government. Journalism Practice. p.1-18; 2020.

Novas Mídias e Orientalismos


130
“NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO” [1984]: ENSAIO DE
UMA ANÁLISE POÉTICA por Thereza Cristina de
Oliveira e Silva

Os animes se estabeleceram no Japão como arte comercial de sucesso


durante a década de 1960, inicialmente no meio televisivo e depois também
nos cinemas [NAPIER, 2005]. Durante os anos 1980, o consumo de
animações já estava consolidado no país e foi nesse período que diversos
realizadores puderam montar seus próprios estúdios [ODELL; LE BLANC,
2013]. Hayao Miyazaki é provavelmente a referência mais popular da
contemporaneidade quando se fala em animação japonesa e é um dos
fundadores do aclamado Studio Ghibli. Desde 1979, dirigiu 11 longas-
metragens, vencedores de um total de 141 prêmios, sendo 79 deles referentes
à categoria Direção, inclusive um Oscar e um Urso de Ouro [IMDb, s.d.]. Suas
obras mais conhecidas no Ocidente são “Meu amigo Totoro” [1988] e “A
viagem de Chihiro” [2001] e algumas das características notáveis de seus
trabalhos são as protagonistas femininas, o gosto por veículos e personagens
voando e histórias não baseadas em dualismo maniqueísta [NOVIELLI, 2018].

É relevante observar que durante a década de 1970 uma onda de movimentos


feministas se fez presente no Japão, questionando a noção amplamente
difundida de que cabia às mulheres apenas o papel de esposas e mães, cuja
função era administrar o lar e garantir que os filhos tivessem sucesso escolar e,
posteriormente, na carreira. O aumento no ativismo de diferentes comunidades
e as demandas por oportunidades igualitárias de emprego foi tão significativo
naquele período que em 1985 foi estabelecida a Lei de Igualdade de
Oportunidades de Emprego, momento em que também houve a emergência da
primeira líder mulher do Partido Social Democrático, Takako Doi, o principal
partido de oposição do país. Destaca-se também que em 1989 22 mulheres
foram eleitas para a Câmara dos Conselheiros que integra a Dieta do Japão, o
parlamento do país, um número tão relevante em relação às 10 ou menos
mulheres eleitas nas eleições anteriores que tal evento foi nomeado pela mídia
da ocasião de "fenômeno Madonna" [TIPTON, 2008].

Em uma conjuntura politicamente agitada e de importante crescimento


econômico do país, Miyazaki transformou seu mangá “Nausicaä do Vale do
Vento” [19982 – 1994] no filme homônimo em 1984. O sucesso comercial e de
público do longa-metragem foi tamanho que viabilizou a fundação do Studio
Ghibli em 1985. Desde seu lançamento o anime foi chancelado pela WWF,
uma das maiores ONGs do mundo para a conservação de espécies

Novas Mídias e Orientalismos


131
ameaçadas de extinção, e o logotipo da WWF aparecia [e ainda aparece] em
tela cheia imediatamente antes do início do filme. Tal chancela, junto com as
ações de divulgação que foram desenvolvidas através dela [AKIMOTO, 2014],
possivelmente favoreceu o alcance tanto nacional quanto internacional do
longa e um certo olhar sobre seu conteúdo, que foi endossado pelo diretor e
pelo estúdio. No entanto, por mais que a leitura ambiental seja cabível, gostaria
de explorar aqui outras possibilidades interpretativas.

Filmes são representações que têm efeitos reais sobre o mundo e trazem junto
consigo visões sobre relações sociais e culturais [SHOHAT; STAM, 2006].
Considerando o momento histórico de produção de “Nausicä”, parece-me que
ver o anime apenas pelo viés ambiental ou pacifista relega ao segundo plano
reflexões que as próprias imagens do longa pedem [MITCHEL, 2015], a saber:
o fato da personagem principal ser uma mulher jovem que está disposta a dar a
vida em prol de outros. Assim, quero sugerir que o impacto produzido por
“Nausicaä” não está tanto na discussão ambiental que ele pode suscitar, mas
na disposição da personagem principal ao sacrifício e na maneira como isso é
construído imageticamente. Tendo em vista que é papel do criador/diretor
elaborar estratégias pelas quais se torna possível produzir determinados
efeitos sobre os espectadores, será realizada a análise fílmica de “Nausicaä” a
partir desses efeitos, investigando que recursos foram empregados e como
foram utilizados com o fito de produzir certo tipo de experiência [GOMES,
2004]. Desde essa perspectiva, não me parece que se nos emocionamos com
o desfecho do filme em questão seja porque a personagem principal, Nausicaä,
atuou de modo ecológico e restabeleceu a harmonia entre as diferentes formas
de vida, mas porque ela sobrevive – ainda que se sacrifique.

O filme e a sequência
Com o objetivo de refletir a respeito de como alguns personagens são
apresentados ao espectador [SHOHAT; STAM, 2006] escolheu-se um
segmento de 13 segundos composto por seis planos que se inicia em 1h 40min
56s. Nele, Nausicaä enfrenta seus oponentes desarmada e de braços abertos
depois de se esquivar de uma série de tiros. Esse trecho faz parte dos 20
minutos finais do filme em que a narrativa se encaminha para o desfecho e é o
primeiro momento em que a personagem deixa claro que está disposta a se
sacrificar para salvar a vida de outros. Antes de proceder às análises
específicas, será feita uma breve apresentação do enredo do filme. Cabe
pontuar que a narrativa é uma saga épica e algumas passagens são contadas
tão rapidamente que dificultam a compreensão do anime quando visto pela
primeira vez.

A história de “Nausicaä” decorre de a população de um povoado denominado


Pejite decidir reviver um Guerreiro Gigante, humanoide com poder de
destruição em massa que atuou no evento que é sumariamente mencionado
[mas não explicado] como Sete Dias de Fogo e que levou ao fim da civilização
industrial 1000 anos antes. Os Guerreiros Gigantes pereceram naquela
ocasião, com exceção de um, que está adormecido em forma de embrião sob
Pejite, cuja liderança quer revivê-lo para tentar combater e destruir o Mar

Novas Mídias e Orientalismos


132
Podre, uma floresta que exala toxinas nocivas para os humanos. Ao saber
disso, a base militar de Torumekia tenta roubar o embrião do Gigante e, no
processo, sua nave cai sobre o bucólico Vale do Vento. Por um lado, a
população de Pejite tenta se livrar dos soldados de Torumekia e reaver o
Gigante; por outro, os soldados de Torumekia subjugam a população do Vale
do Vento e usam essa localidade para reviver e usar o Guerreiro Gigante a seu
favor. De modo complementar, tanto Pejite quanto Torumekia têm intenção de
destruir o Mar Podre, o que serve como pretexto para ambos retomarem a
referida arma de destruição em massa. Nausicaä, líder do Vale do Vento, é a
personagem que faz frente a tais iniciativas e tem o objetivo de salvar o Mar
Podre, o Vale do Vento e seus habitantes [sejam eles humanos ou não]. Cabe
explicar que o Mar Podre é habitado por insetos gigantes, dentre os quais se
destacam os ohmus, artrópodes de enormes proporções que têm grande
potencial destrutivo quando são irritados.

Passemos, pois, à descrição da narrativa em que se insere a sequência


selecionada. Com o objetivo de retomar o Guerreiro Gigante, Pejite captura um
bebê ohmu do Mar Podre e o machuca, transpassando-o com diversos objetos
perfurantes. A intenção é provocar a ira dos ohmus, que farão um ataque na
direção de onde o pequeno estiver e destruirão tudo que estiver pela frente. O
bebê é, então, prendido a um veículo voador e está sendo levado até o Vale do
Vento. Ao se inteirar desse plano, Nausicaä intercepta tal veículo para tentar
recuperar o bebê ohmu, devolvê-lo ao Mar Podre e impedir a destruição do
Vale. No segmento, Nausicaä está desarmada, voando com seu planador
enquanto os dois homens de Pejite que transportam o ohmu ferido tentam
abatê-la com tiros.

A fim de facilitar a apresentação e subsequente análise foi elaborada a Figura 1


contendo um frame de cada um dos seis planos com a descrição da ação e do
áudio. Os planos acontecem de modo consecutivo, não havendo a omissão de
nenhum plano do trecho selecionado. Deste ponto em diante, cada plano
específico será referenciado pela letra P e seu número correspondente [P1, P2,
P3, P4, P5 e P6] e será empregada a nomenclatura take, para evitar confusões
entre os takes [planos] e o que está no primeiro, segundo ou terceiro plano de
cada quadro. Quanto à edição, não há emprego de efeitos de transição nos
cortes. Todos os takes têm a câmera fixa e são ocupados por personagens
masculinos ou Nausicaä, que leva sobre o ombro direito Teto, um esquilo-
raposa que a acompanha desde o início do filme. Os personagens masculinos
não têm nome e foram aqui denominados de Homem de Pejite 1 e Homem de
Pejite 2.

Em P1 vemos em primeiro plano uma metralhadora, empunhada pelo Homem


1; os dois homens em segundo plano com expressão facial séria, seus corpos
e olhares voltados para a lateral direita do frame; e em terceiro plano vemos o
céu e parte da parede interna do veículo voador. Em P2, as costas do Homem
1 estão em primeiro plano, voltadas para a lateral direita do frame; em segundo
plano vemos a metralhadora; e no terceiro plano vemos parte da parede interna
do veículo voador e Nausicaä voando no céu em seu planador – ela tem o

Novas Mídias e Orientalismos


133
tronco curvado para frente e braços estendidos para segurar nas hastes do
planador. Em P3 a metralhadora está novamente em primeiro plano, apontada
diretamente para o espectador; em segundo plano o Homem 1 olha de frente
para o espectador e reage com expressão de surpresa; no terceiro plano vê-se
detalhes dos mecanismos na parede do veículo voador e o céu. Em P4 vemos
Nausicaä de corpo inteiro em segundo plano, de frente, olhando para o
espectador em pé sobre o planador com os braços abertos, com Teto sobre
seu ombro direito; no terceiro plano vê-se o céu. Em P5 o primeiro plano é
ocupado pela mira da metralhadora fora de foco; no segundo plano vê-se o
Homem 1 com expressão de surpresa olhando para o espectador; e o céu em
terceiro plano. O segundo plano de P6 é ocupado por Nausicaä com os braços
abertos olhando para o espectador, sua expressão facial é séria e serena; e no
terceiro plano vê-se o céu. A sequência P3, P4, P5 e P6 faz com entendamos
que Homem 1 e Nausicaä estão se olhando e um reagindo ao outro:

Novas Mídias e Orientalismos


134
Plano 1 (P1) Plano 2 (P2)
Ação (Plano médio): Homem de Pejite 1 Ação (Meio primeiro plano): Homem de
segura uma metralhadora enquanto o Pejite 1 observa Nausicaä se aproximando,
Homem de Pejite 2 dá orientações. no 3º plano.
Áudio: Som de motor em funcionamento e
Áudio: Som de motor em funcionamento.
fala do Homem 2 dando orientações.

Plano 3 (P3) Plano 4 (P4)


Ação (Plano médio): Homem de Pejite 1 Ação (Plano de conjunto): Nausicaä, em pé
corrige o posicionamento da mira e então sua sobre o planador e com os braços abertos,
expressão facial muda, indicando surpresa. aproxima-se da câmera.
Áudio: Som de motor em funcionamento. Ao
Áudio: Música entra em fade in. O som do
final do take, ouvimos o som do personagem
motor some.
puxando o ar com espanto.

Plano 5 (P5) Plano 6 (P6)


Ação (Meio primeiro plano): Enquanto mira a
Ação (Plano americano): Nausicaä, em pé
metralhadora, Homem de Pejite 1 arregala os
sobre o planador e com os braços abertos.
olhos, com expressão pasma.
Áudio: Sobre a música, ouvimos o
personagem em cena emitindo sons curtos Áudio: Música.
que sugerem indecisão.
Fonte: Autoria própria, com frames do filme “Nausicaä do Vale do Vento”
[1984], dirigido por Hayao Miyazaki e produzido por Isao Takahata [2022].
Quanto ao áudio, em P1, P2 e P3 escuta-se um discreto som de motor
funcionando, em P1 o Homem 2 dá orientações para o Homem 1: “Lá vem ela.
Deixe-a chegar perto e atire”, e ao final de P3 ouve-se um som de inspiração
forte, sugerindo espanto. Em P4 entra em fade in uma música que continua até
P6 e em P5 escutamos a voz do Homem 1 emitindo sons curtos que sugerem
surpresa e confusão.

Como se pode observar na Figura 1, a maior parte dos takes é ocupada pelos
personagens masculinos e eles são enquadrados mais próximos da câmera.
No entanto, o fato de os homens não terem nome, junto com as composições

Novas Mídias e Orientalismos


135
cênicas e o emprego da música atuam em conjunto para produzir [ou reiterar] a
identificação do espectador com Nausicaä. Analisemos, pois, as imagens e o
uso dos recursos sonoros desde essa perspectiva.

Em P1, a câmera está posicionada horizontalmente em relação aos homens,


cujos rostos ocupam menos de 1/8 do frame nos quadrantes superiores direito
e esquerdo. Em primeiro plano, tomando mais de ¼ da imagem, vemos a
metralhadora cobrindo parte do tronco do Homem 2. O áudio é discreto,
indicando que o motor do veículo está ligado e funcionando. Em P2, a câmera
está levemente inclinada para cima, as costas do Homem 1 ocupam quase
toda a metade esquerda do frame, o centro da imagem é a metralhadora e o
foco da atenção é convocado pelo movimento que Nausicaä faz no terceiro
plano. O áudio mantém-se o mesmo de P1. Em P3, câmera novamente
horizontal, o Homem 1 está centralizado, ocupando a maior parte do frame, e a
construção imagética indica que ao apontar a metralhadora para Nausicaä, o
Homem 1 está também apontando a arma para o espectador – assim, ao atirar
na personagem, ele estará também atirando na plateia. O áudio mantém-se o
mesmo de P1 e P2. Em P4, câmera levemente inclinada para cima, é o take
em que vemos Nausicaä no centro do quadro, de corpo inteiro sobre o
planador – sua imagem indica que ela não porta armas visíveis, que ela não
está pilotando o planador e que ela não tem como se defender caso atirem
nela. Neste take, a música entra em fade in, favorecendo a identificação com a
personagem que, embora incapaz de se defender neste momento, não há nada
em sua postura que indique que ela se sinta indefesa. A maior parte do take é
ocupada pelo planador, que fornece sustentação à personagem, mesmo que
no ar. Em P5, câmera novamente na horizontal, a metralhadora e sua mira
estão fora de foco no primeiro plano e, através da mira, vemos o rosto do
Homem 1 que, além de ter os olhos arregalados e brilhantes, tem um pouco de
cabelo para fora da balaclava, sugerindo desalinho. Este é o único take dos
homens em que não vemos no terceiro plano a parede interna do veículo
voador. A expressão facial de confusão do Homem 1 é reiterada pela
composição da imagem, que indicam que ele está subjetivamente sem chão ou
apoio. No áudio, a música de P4 se mantém e é acompanhada dos sons curtos
emitidos pelo personagem, que sugerem surpresa e indecisão. Em P6, câmera
horizontal, a metade superior do take é ocupada pelos braços, peito e rosto de
Nausicaä. Na metade inferior, veem-se as hastes e uma alça do planador, mas,
se assim como o Homem 1, Nausicaä também está sem chão, sua expressão
facial e postura indicam que ela está decidida. A respeito de Teto, o esquilo-
raposa que está no ombro da personagem, é possível hipotetizar que ele é
estrategicamente colocado como uma versão mais amigável do mundo animal
que no filme é composto majoritariamente por insetos, os quais podem suscitar
afetos controversos nos espectadores.

Quanto à postura corporal, notamos que os homens de Pejite estão sob o


anteparo de uma arma, simultaneamente protegidos por ela e em posição de
ataque. Já Nausicaä se coloca com postura totalmente exposta e seu contra-
ataque é realizado através do desafio ético que seu corpo desarmado
representa. É interessante observar o contraponto aqui estabelecido pelas

Novas Mídias e Orientalismos


136
imagens: os homens são caracterizados pela movimentação limitada, pelo uso
de roupas pesadas e de arma de fogo, enquanto a mulher é retratada com
leveza, movimentação ágil e sua arma é a determinação. Também cabe
destacar que o vestido que ela usa na sequência foi-lhe emprestado por
habitantes de Pejite para que ela pudesse fugir e tentar salvar o Vale do Vento.
Assim, a personagem do Vale do Vento está vestida com roupas de Pejite e
leva em seu ombro um pequeno animal.

Observa-se na sequência que a construção imagética e sonora dos seis planos


em questão leva o espectador a identificar-se com Nausicaä e reagir
emocionalmente à sua postura, que é sublinhada pela música e endossada
pelos símbolos que Nausicaä carrega. P4 e especialmente P6 nos apresentam
não apenas a personagem Nausicaä, mas ela como representante de três
diferentes povos [Vale do Vento, Pejite e animais] e uma possibilidade de união
destes. Caso o Homem 1 atire nela, estaria atirando contra seu povo e afetaria
conjuntamente o Vale do Vento e o universo dos animais, que fazem parte do
cerne da narrativa. Não suficiente, o espectador também será afetado uma vez
que é para o público que a metralhadora está apontada. Não é casual que seja
também para o público que Nausicaä se coloca de braços abertos e demanda
uma decisão.

A partir das análises acima empreendidas, é possível afirmar que na sequência


selecionada há uma orquestração de elementos audiovisuais que convocam a
identificação do espectador com Nausicaä e, mais do que isso, estabelecem
um posicionamento em relação ao sacrifício que a personagem está disposta a
fazer. Embora seja ela quem está colocando a vida em risco, é também ela
quem tem a expressão serena e decidida. É a personagem que dá nome à
história que se coloca de braços abertos para a ameaça, em oposição aos
homens sem nome que se escondem atrás de uma arma e estão dispostos a
atirar em alguém desarmado e que veste a roupa do seu povo [Pejite]. Para
arrematar, é a postura decidida de Nausicaä que é acompanhada de música,
artifício basal na regulação das reações da plateia [SHOHAT; STAM, 2006].

Considerações finais
O presente trabalho investigou uma sequência de “Nausicaä do Vale do Vento”
[1984], filme de Hayao Miyazaki que foi amplamente difundido como tendo
caráter ambiental. Propõe-se que, se por um lado, tal marca pode ter
contribuído para aumentar o alcance e visibilidade do anime, por outro, acaba
por eclipsar o que aqui se levanta como hipótese que seja o assunto principal
do longa-metragem: a disposição de uma mulher jovem a se sacrificar para
salvar os outros. Nessa direção, foi empregada a análise poética do filme em
uma sequência de seis planos com o objetivo de rastrear como foram
construídos alguns dos efeitos propostos pela obra. Observou-se que a
continuidade dos frames faz com que o espectador seja colocado no lugar de
Nausicaä e que tal composição comunica que atirar na personagem principal
equivale a atirar contra os espectadores. A postura serena e decidida de
Nausicaä é acompanhada de música, o que reforça as estratégias de
mobilização da plateia em relação à personagem. Adicionalmente, as

Novas Mídias e Orientalismos


137
vestimentas da personagem e o fato de ela estar acompanhada de um esquilo-
raposa elevam Nausicaä a uma esfera maior que si mesma, uma vez que ela
representa três universos distintos [Pejite, Vale do Vento e mundo animal] e a
possibilidade de união deles.

Como conclusão, pode-se afirmar que no segmento analisado os recursos


cinematográficos foram utilizados no sentido de favorecer a identificação dos
espectadores com a personagem principal e endossar sua atitude de sacrifício.
Faz-se necessário dar continuidade à investigação em futuros trabalhos,
selecionando outras sequências do filme a fim de tencioná-las entre si e
estabelecer diálogos entre tais leituras e os movimentos sociais que marcaram
a década de 1980 no Japão.

Referências
Thereza Cristina de Oliveira e Silva é mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina.

AKIMOTO, Daisuke. “Learning peace and coexistence with nature through


animation: Nausicaä of the Valley of the Wind” in RITSUMEIKAN JOURNAL OF
ASIA PACIFIC STUDIES, v. 33, 2014, p. 54-63.

GOMES, Wilson. “La poética del cine y la cuestión del método en el análisis
fílmico” in SIGNIFICAÇÃO: REVISTA DE CULTURA AUDIOVISUAL, v. 31, n.
21, Jan-Jun, 2004, p. 85-105.

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https://www.imdb.com/name/nm0594503/#director.

MITCHELL, W. J. T. O que as imagens realmente querem? in ALLOA,


Emmanuel (org). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 165-
189.

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Takahata. Japão: Studio Ghibli, 1984. 1 vídeo (117 min.). Disponível em:
https://www.netflix.com/br/title/70019062?s=a&trkid=13747225&t=cp&vlang=pt
&clip=81234979.

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Contemporary Japanese Animation. London: Palgrave Macmillan, 2005.

NOVIELLI, Maria Roberta. Floating Worlds: A short history of Japanese


animation. Boca Raton: CRC Press Taylor & Francis Group, 2018.

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in SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica:
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Novas Mídias e Orientalismos


138
TIPTON, Elise. K. Modern Japan: A social and political history. Abingdon:
Routledge, 2008.

Novas Mídias e Orientalismos


139
ORIENTALISMO E ISLÃ: O INSTAGRAM COMO FONTE
Vanessa dos Santos Bodstein Bivar

Os estudos pós-colonialistas caminham no processo de tirar a centralidade das


visões ocidentais e europeias, de modo a "desconstruir e desnaturalizar tais
estereótipos, trazendo a discussão mais ampla de como as estruturas do saber
estão vinculadas à aspectos ideológicos e, consequentemente, servindo
também a estruturas de poder" [ALBUQUERQUE, 2020, p. 28].

Há um conjunto de usos do passado com finalidades diversas na


contemporaneidade. O passado tem servido de embasamento a variados
projetos políticos e sociais que levantam elementos de preconceitos e
discriminação àqueles que não fazem parte da "civilização ocidental"
[PEREIRA; GIACOMONI, 2019].

O "medievo islâmico" (expressão utilizada por historiadores, talvez por


conveniência pedagógica ou falta de outro de outro termo, mas que acaba por
envolver o Islã em um corpo temporal cuja nomenclatura é ocidental), em
especial na figura de Mohammed – que o Ocidente chama de Maomé – é
revisitado constantemente em tons orientalistas (associado aos ideários de
pedófilo e misógino).

As "formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao medievo


alterados e/ou transformados com o passar do tempo” [MACEDO apud
VIANNA, 2017, p. 23] servem à múltiplas perspectivas, dentre as quais estão o
conferir identidade aos que professam o Islã, fomentar rivalidades entre
Ocidente e Oriente, formar preconcepções sobre os muçulmanos como um
todo ou ainda justificar ações do Estado Islâmico.

Entretanto, é importante notar que o passado em si "não legitima nenhuma


violência, exclusão ou decisão política da atualidade" [SILVEIRA, 2016, p. 40].
E por isso mesmo, "a universidade poderia contribuir para desfazer esses
estereótipos, introduzindo nos currículos estudos mais sistemáticos a respeito
do Islã" [BISSIO, 2008, [n.p.].

Uma ideia no intuito de desmistificar essas práticas é entender como o


orientalismo é percebido no perfil de Instagram de muçulmanos no Brasil.
Trata-se de pensar suas representações na contemporaneidade, o que reflete
um conjunto de usos do passado, só que na voz das próprias pessoas que
professam essa religião.

Novas Mídias e Orientalismos


140
Este trabalho, em particular, tem caráter introdutório - não de análise- e segue
no sentido lançar algumas sementes em direção à novos olhares de pesquisa.
Nessa perspectiva, aparecem: o Islã e sua construção histórica atrelados às
percepções de vida dos muçulmanos no Brasil, e o Instagram enquanto suporte
de sociabilidade e expressão do self como nova fonte de pesquisa histórica.
Essa associação, que engloba conteúdo inovador na academia, pode ainda
conferir pontos de respeito à alteridade e respaldos explicativos que ocasionem
uma diminuição dos atos e sentimentos de islamofobia – já que evidencia o
olhar do próprio muçulmano que, em geral, não é colocado à lume.

A criação de estereótipos pejorativos, com formulação também etnocêntrica,


traz o termo “orientalismo” como uma maneira de abordar o Oriente –
propriamente o mundo do Islã – baseado na experiência ocidental e à serviço
de uma missão civilizatória que tem por pano de fundo a subjugação de um
povo pelo outro [SAID, 1990].

Por sua vez, “com a descolonização e após o fim da Guerra Fria, um resgate
da abordagem orientalista coincide com o posicionamento do mundo islâmico
como um entrave às aspirações ocidentais. O fortalecimento do Orientalismo
torna-se ainda mais notório após os atentados terroristas de 11 de setembro de
2001” [SILVA, 2013, p. 56].

É muito comum confundir Islã e Islamismo. Islã é a religião em si. Já Islamismo


é uma corrente político-ideológica que utiliza como pano de fundo o Islã,
apropriando-se dele, de modo a colocar tônus próprio, especialmente no que
se refere à tomada de poder. Os islamitas ou popularmente "islamistas" que
seguem o Islamismo são minoria. Em realidade, a maior parte dos muçulmanos
é contra os atos desta postura político-ideológica. Porém, a questão é que
vários grupos violentos se denominam como auto representantes do Islã.

Apesar do tom homogeneizador que a mídia, enquanto produtora de


identidade, coloca sobre os muçulmanos como "inimigos" do Ocidente,
percebe-se que os islamistas estão em número exponencialmente menor
dentre os mais de um bilhão de muçulmanos existentes ao redor do mundo.
Além do que, não existe um único Islã, mas vários ´Islãs´ “bastante diversos
entre si [...] a civilização muçulmana se diversificou à medida que avançava
para novas regiões do planeta. Assim, o Islã no Oriente Médio é bem diferente
do que encontramos na Índia, que por sua vez, difere bastante daquele
existente na Indonésia” [DEMANT, 2013, p. 77].

Contudo, o ponto é que os muçulmanos como um todo são intitulados


terroristas. Aliás, não existe uma definição única ou neutra de terrorismo. Como
nenhum Estado aceita a nomenclatura de terrorista, o que se pode elencar são
as características dos atos terroristas atribuídos à grupos ou à indivíduos
[ALCÂNTARA, 2015].

Para a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 2003, atos


terroristas correspondem ao "uso ilegal ou ameaça do uso da força ou violência

Novas Mídias e Orientalismos


141
contra pessoas ou propriedade em uma tentativa de coagir ou intimidar
governos ou sociedades para atingir objetivos políticos, religiosos ou
ideológicos" [SCHMID apud ALCÂNTARA, 2015, p. 16]. Trata-se de um
instrumento de comunicação para enviar uma mensagem de perigo e advertir
"seus inimigos das consequências de ignorar suas demandas” [GRUPTA apud
ALCÂNTARA, 2015, p. 8].

Por sua vez, os considerados terroristas têm a sua própria versão e se colocam
como insurgentes e guerreiros da liberdade. "O terrorismo que praticamos é o
do tipo louvável porque é dirigida aos tiranos e aos agressores e inimigos de
Alá, os tiranos, aos traidores que cometem atos de traição contra os seus
próprios países". [BIN LADEN apud ALCÂNTARA, 2015, p. 19].

O terrorismo é uma das expressões do fanatismo, no qual tem-se crenças


absolutas, expressões e verdades inquestionáveis e em que há o desejo de
“eliminar todos os que atrapalham o ideal de sociedade proposto" [LIMA, 2002,
p. 7].

As massas de manobra que, utilizadas pelos líderes dos grupos, colocam em


risco a própria vida são, grosso modo, pessoas psiquicamente vulneráveis
[LIMA, 2002]. Querem encontrar certezas/argumentos que possam justificar
suas frustrações, além do acolhimento de pertencer a um coletivo e de dar um
novo sentido à vida.

Não obstante, a questão é que a despeito de serem as vítimas diretas, os civis


não são o alvo final. Vulnerabilidade e medo são plantados em um palco de
tensão maior vinculado à linhas econômicas e políticas de disputa por poder
que acabam por fomentar sentimentos de ódio e rivalidade entre Oriente e
Ocidente.

Nessa perspectiva, o orientalismo ganha mais força. O discurso, que serviu de


base/justificativa às manobras políticas e econômicas imperialistas europeias
na Ásia e na África ao longo dos séculos XIX e XX, produzem a ideia “padrão”
de um Oriente “atrasado” e “bárbaro” que se tem até hoje [ASSUNÇÃO, 2020].
O fulcro inicial desse ideário era o de subjugar os povos dos territórios
conquistados e, por conta disso, foram criadas representações binárias de “nós
x eles” e do “eu x outro”. Assim, “o Oriente seria uma invenção [...] de marcar
diferenças e definir limites, de criar não apenas o Oriente (‘eles’), mas o
Ocidente (‘nós’) também” – tudo em um pano de fundo estratégico de poder e
que imputava mecanismos de inferiorização [KISCHENER; BATISTELA, 2020,
p. 3].

Novas apropriações do orientalismo, ao homogeneizar culturas não ocidentais,


fazem a seguinte associação: árabe = muçulmano = terrorista. Forma-se então
a imagem do árabe como terrorista, exótico e perigoso [COSTA, 2016] e a falsa
ideia de que todos os muçulmanos são árabes e de que todos os árabes são
muçulmanos. Tudo ligado a representações subordinadas aos interesses de
quem as concebe, que reafirmam o Ocidente como civilização e o Oriente

Novas Mídias e Orientalismos


142
como barbárie [SAID, 1990]. Além de atrelar atos terroristas à preceitos
inerentes à cultura e religião muçulmana.

Por conta desse conjunto de percepções, os muçulmanos no Brasil sofrem uma


série de vicissitudes que não podem se calar diante do Islã que, "além de
minoritário, se tornou invisível do ponto de vista dos temas predominantes no
campo de análise da religiosidade brasileira" [MONTENEGRO, 2002, p. 65].

Uma forma de pensar o Instagram


A atualidade está envolta em mudanças na velocidade e nas maneiras pelas
quais as informações chegam. Sem dúvida, o boom mundial da internet e dos
smartphones são fatores sine qua non nesses processos.

A mobilidade, portabilidade e disseminação dos celulares faz de qualquer


pessoa que o possua um potencial produtor, distribuidor e consumidor de
conteúdo [CASTRO, 2014], tanto que o Instagram já em 2019 tinha 1 bilhão de
seguidores. Em 2018, o Brasil, com 64 milhões, só perdia para os Estados
Unidos (121 milhões) e para a Índia - 71 milhões [TARDÁGUILA, 2019]. Vê-se,
portanto, que esse aplicativo é um rico arsenal de pesquisa, dado ser a rede
social com o maior número de engajamento.

Por conta dessas tecnologias, os conceitos de espaço (perto e longe) sofreram


alteração. Os acontecimentos em determinado lugar podem ter impacto
imediato em pessoas e localidades situadas à grandes distâncias
[CAVENDISH, 2013]. Daí a formação de um novo espaço: o cyber espaço, não
mais alocado na presença física, mas virtual.

Em uma mescla de espaço público e privado, o cyber espaço do Instagram traz


novos padrões de interação social e maneiras de se relacionar e representar o
mundo. Nesse novo suporte de sociabilidade faz parte a lógica de ver e ser
visto. E há toda uma construção do self que demonstra a intencionalidade de
discurso, o qual acaba por influenciar hábitos e comportamentos das pessoas.
Os discursos aí produzidos são entendidos como "uma prática tanto de
representação quanto de significação do mundo, constituindo e ajudando a
construir as identidades sociais, as relações sociais, e os sistemas de
conhecimento e crenças" [MAGALHÃES, 2001, p. 17].

Da mesma forma, são reflexo do meio em que foram produzidos, incluindo um


tempo que é anterior a sua própria produção. "As palavras simples do nosso
cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se
constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós" [ORLANDI,
2009, p. 59]. Então, uma formação discursiva não se limita somente a uma
época. Há “[...] elementos que tiveram existência em diferentes espaços
sociais, em outros momentos históricos, mas que se fazem presentes, sob
novas condições de produção, integrando novo contexto histórico e,
consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido" [FERNANDES,
2007, p. 42]. É, portanto, o que acontece com os usos que se faz do passado.

Novas Mídias e Orientalismos


143
Fabíola Oliveira, cujo perfil é aberto no Instagram, é uma muçulmana brasileira
que se designa como professora com conteúdo antirracista e decolonial que
coloca o Islã sob uma perspectiva feminina. Sobre o orientalismo propõe-se a
mostrar como as informações chegam deturpadas por “visões de não
muçulmanos, narrativas do branco colonizador e do imaginário que ele mesmo
montou sobre as pessoas do oriente” de modo que os muçulmanos “possam
ser pessoas livres e se afirmarem da forma que são, sem medo de serem
questionados” [@fabiolaoliver, destaques “propósito”, jan./2021], dado um
frequente quadro de islamofobia que ela mesma sente através das redes
sociais.

O sujeito discursivo deve ser considerado um ser social que faz parte de um
espaço coletivo. O que significa que ele é inserido em uma conjuntura social e
que é heterogêneo. Encontra-se imerso na diversificação, seja pelas relações
que estabelece com outro, seja pelas interações em diferentes lugares da
sociedade [FERNANDES, 2007].

"Toda formação discursiva apresenta, em seu interior, a presença de diferentes


discursos" [FERNANDES, 2007, p.36]. Então, "todo discurso se estabelece na
relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado
em si mesmo" [ORLANDI, 2009, p.62], assim como o indivíduo não é um ser
só, mas inserido em contextos históricos e sociais que se fazem presentes nas
suas falas/proposições.

Na prática, o discurso tem poder porque "através de seu uso, os indivíduos


constroem, mantém ou transformam realidades sociais, isto é, criam, reforçam
ou modificam formas de conhecimento e crença, relações e identidades
sociais" [MELO, 2011, p. 1340].

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, a tensão entre Ocidente e


Oriente aumentou de modo a criar lógicas de discurso antagônicas. Grosso
modo, o Ocidente passou a ter preceitos negativos acerca do Islã que
acabaram por se tornar hegemônicos e, por vezes, fez-se usos do passado
para alicerçar essas ideais.

Não obstante, mesmo em meio a esse conjunto de produção de significados


legitimadores de relações de dominação, a hegemonia "em seus períodos de
crise será sempre contestada em maior ou menor proporção. Uma ordem de
discurso não é um sistema fechado ou rígido, é, na verdade, um sistema aberto
posto em risco pelo que acontece em interações reais"[FAIRCLOUGH, 2012, p.
311].

E é nesse aspecto que muitos dos muçulmanos presentes no Instagram


articulam suas posturas e ideários por meio de discursos que acabam por
colocar em xeque algumas concepções orientalistas, as quais aprisionam
parcelas de suas vivências em quadros de islamofobia.

Novas Mídias e Orientalismos


144
Logo, trata-se de, mesmo que ainda nos primeiros passos dado a fonte ser
muito recente, de uma nova possibilidade de pesquisa ao historiador que lida
com Islã e orientalismo.

Referências
Vanessa dos Santos Bodstein Bivar é doutora em História Econômica pela
Universidade de São Paulo e docente do curso de licenciatura em História da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (FACH/UFMS).
Fonte primária: @fabiolaoliver

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ALCÂNTARA, P. Terrorismo: uma abordagem conceitual. TCC (Especialização


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CASTRO, Rodrigo Inácio de. Instagram: produção de imagens, cultura mobile e


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plataforma de construção de narrativas de moda. Monografia (Bacharel em
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COSTA, Jéssica Pereira da. O estudo da história do Islã e dos muçulmanos na


educação básica: conceitos e representações. Dissertação (Mestrado em
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DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2013.

Novas Mídias e Orientalismos


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Novas Mídias e Orientalismos


147
DEMÔNIOS DA GUERRA: UMA BREVE ANÁLISE DO
FILME ONIBABA (1964), DE KANETO SHINDO por
Vinicius Maciel Braga

A leitura histórica feita a partir do olhar cinematográfico sugere uma série de


debates acerca da utilização de filmes como fontes históricas ou até mesmo
instrumentos de interpretação do passado, podendo ser imbuídos de certa
transversalidade quanto aos seus gêneros [NAPOLITANO, 2022, p. 13] ou
desprovidos de tal circunstância. O presente trabalho possui o objetivo de
analisar Onibaba, produção japonesa lançada pelo diretor Kaneto Shindo no
ano de 1964, a partir de seu conteúdo enquanto um filme de “ambientação
histórica”, baseando-se em um resumo geral acerca do enredo. O
entendimento da relação Cinema-História é crucial para compreender a obra
enquanto uma possível fonte histórica, sobretudo pelo englobamento de
elementos significativos do período retratado, presentes de forma explícita e
também através de diálogos acerca do contexto em destaque no decorrer da
obra. Além disso, a importância de entender a película como um agente da
História [BARROS, 2014, p. 26], papel determinado pelas denúncias
direcionadas à guerra e suas consequências devastadoras, possui estimado
valor para entender a relação da obra com o contexto histórico no qual foi
lançada.

Partindo dessa premissa, o artigo em questão irá se debruçar sobre o método


da análise fílmica, caracterizado por investigar as principais nuances contidas
em uma obra cinematográfica. O texto mostrará os detalhes seletos acerca da
representação dos conflitos e da contextualização presente na trama em
destaque, apontando os fatos retratados na obra e interligando-os a partir do
diálogo com as intenções de seu realizador. Baseando-se nessa questão, será
possível entender e perceber as principais questões travadas entre a narrativa
contida em Onibaba e a denúncia presente nas entrelinhas, levando tal ponto
em consideração no decorrer do texto e, dessa forma, permitindo a execução
da análise histórica. A partir de percepções alocadas no limiar da teoria e da
metodologia, o trabalho possibilitará ao leitor uma breve compreensão acerca
da importância do filme histórico e suas contribuições para o aprofundamento
da análise sobre o período destacado.

Síntese da obra
Onibaba é um filme de drama histórico lançado no ano de 1964 e dirigido por
Kaneto Shindo (1912-2012), cuja sinopse retrata a luta pela sobrevivência de
uma senhora (Nobuko Otowa) e sua nora (Jitsuko Yoshimura) durante o

Novas Mídias e Orientalismos


148
período de guerra civil que o Japão vivenciou durante o século XIV. Ambas as
mulheres, cujos nomes não são citados no decorrer da obra, matam e roubam
os pertences de guerreiros para trocar por mantimentos em posse de um
homem chamado Ushi (Taiji Tonoyama).

Para se livrarem dos cadáveres, as mulheres os lançam em um buraco,


elemento presente em praticamente toda a película e cujo simbolismo é
mostrado em seu início. Essa rotina tortuosa sofre uma completa reviravolta
com o retorno de Hachi (Kei Sato), vizinho das mulheres, que foi convocado
para a guerra junto a Kichi, o filho e marido que não voltou. Segundo um breve
relato, seu companheiro é assassinado durante uma fuga, sendo Hachi o único
a sobreviver. O homem passa a seduzir a viúva, que depois de tanta
insistência, acaba cedendo às investidas.

Fonte: Onibaba [SHINDO, 1964]

As fugas noturnas da jovem para a cabana do homem se tornam motivo de


tensão (sexual, por vezes) para a sua sogra, que também passa a tentar atrair
Hachi, não obtendo sucesso. Em uma noite, ao tentar flagrar os dois amantes,
a senhora é surpreendida por um samurai (Jukichi Uno) perdido que ostenta
uma máscara hannya. Na tradição do (teatro) Nô, a máscara é uma expressão
externa do ego interior, de forma que a aparência exterior é de fato uma
subjetividade interna [BALMAIN, 2013, p. 18, tradução nossa].

Para justificar o uso do apetrecho, o guerreiro diz ser um homem de feições


muito bonitas e coage a senhora para que seja guiado para fora do campo
(cenário principal do filme), mas em uma armadilha, acaba sendo levado ao
buraco citado anteriormente. No dia seguinte, a anciã desce às profundezas da
escavação para roubar a máscara e, ao removê-la, depara-se com um homem
de rosto desfigurado. Temendo que a relação com a nora seja totalmente
desintegrada ao observar o entrosamento aumentando com seu vizinho, a
sogra passa a assombrar a jovem viúva contando sobre a existência de um
demônio na área do campo.

Novas Mídias e Orientalismos


149
Visando atrapalhar completamente a relação recém-constituída, a senhora
decide vestir a máscara do finado samurai para assustar sua nora durante suas
fugas noturnas, fazendo-a acreditar que existe, de fato, um demônio naquele
lugar. O primeiro susto ocorre com sucesso, porém ao repetir tal feito, uma
forte tempestade cai sobre a região, e para a dupla surpresa da anciã, o fato
não impede o casal de se amar em meio ao campo, e simultaneamente, a água
da chuva termina por unir a máscara ao rosto da mulher, tornando-a difícil de
ser removida. Retornando para a sua cabana, Hachi se depara com um homem
roubando sua comida e acaba sendo repentinamente assassinado pelo
desertor.

A jovem viúva volta a sua cabana e se surpreende com a mesma figura


demoníaca vista nas ocasiões anteriores, sem saber que se trata de sua sogra.
A velha mulher tenta convencer sua nora de que ela não está diante de um
demônio, e pede ajuda a jovem para que a máscara seja retirada. Assim como
o finado samurai, a senhora ganha um rosto desfigurado e planta na
consciência da nora que a sogra é uma entidade demoníaca, que insiste em
lhe convencer do contrário enquanto ocorre a fuga da jovem mulher,
culminando na cena final da obra onde ambas saltam acima do buraco.

Contexto histórico da obra


Os diálogos presentes em Onibaba revelam claramente o período no qual a
obra se situa. Na cena em que as duas mulheres chegam ao recinto de Ushi
para efetuar a troca dos pertences dos guerreiros mortos por comida, o
personagem traz a notícia de que Quioto foi incendiada e o imperador fugiu
para o Monte Yoshino. Logo em seguida, a partir do relato de Hachi no
momento em que faz sua refeição junto a anciã e sua nora, o homem afirma
que ele e Kichi foram forçados a lutar pelo exército Ashikaga, mostrando que o
enredo do filme se passa no século XIV, período onde o Japão foi governado
pelo xogunato homônimo e conhecido também como período Muromachi
(1333-1568).

No mesmo relato, o personagem diz que foram derrotados em uma das


batalhas e, em seguida, foram raptados e coagidos a lutar pelo exército
Kusunoki afirmando que o poder sofreu uma grande cisão, onde um imperador
fugiu para o Monte Yoshino e há outro homem ocupando o Trono do
Crisântemo. A fala do personagem em questão referencia o refúgio do
Imperador Go-Daigo após Ashikaga Takauji rebelar-se contra sua autoridade,
conforme está presente nos escritos do historiador britânico Kenneth Henshall:

“Este tomou então Quioto, obrigando Go-Daigo a fugir para


Yoshino, nas montanhas de densas florestas a cerca de cem
quilômetros para sul. Na própria cidade de Quioto, Takauji instalou
imediatamente como imperador um membro de um ramo rival da
família imperial, Komyo (1332-1388, r. 1336-1348), que, por fim,
em 1338, lhe conferiu o muito ambicionado título de xogum”
[HENSHALL, 2012, p. 60].

Novas Mídias e Orientalismos


150
O clã Ashikaga atingiu um elevado grau de crise, alimentado pelos conflitos
com a população camponesa por conta das grandes taxações realizadas.
Conforme pontuado pelo historiador Lucas Miguel Brandão da Silva:

“O descontentamento é geral, com os camponeses realizando


revoltas e os comerciantes ricos subornando funcionários do
governo para evitar taxações. Essa instabilidade do controle dos
Ashikaga chega a um outro nível com a Guerra de Onin, em 1467,
um conflito iniciado numa disputa de terras que cresce a nível
nacional, envolvendo o Shogun e o Imperador. A partir desse
conflito, o poder dos Ashikaga é seriamente fragilizado, e o
Shogunato começa cada a vez mais ter dificuldades para controlar
os senhores locais, os daimyos, e seu exército de samurais, que
começam a guerrear com outros senhores, buscando mais poder e
mais influência” [SILVA, 2019, p. 01-02].

O trecho supracitado exprime também o grau de miséria no qual se encontrava


a população do campo durante a guerra, explicitado na obra pela situação
vivida pelas protagonistas. A crise instaurada foi consequência dos inúmeros
conflitos que, por vezes, resultaram em deserção e disputas internas dentro
dos próprios exércitos, fator colocado em voga no diálogo entre a senhora e o
guerreiro mascarado antes de encontrar seu destino final. Durante sua fala, o
personagem revela que veio de uma boa família e que havia perdido vários
homens durante as batalhas anteriores, reafirmando a constatação da
fragilidade na qual os daimyos se encontravam diante do contexto retratado.

Onibaba e a relação Cinema-História


A relação Cinema-História é marcada por inúmeras visões acerca do uso
fílmico, seja como uma fonte histórica, seja como agente da própria História.
Entretanto, vale destacar as semelhanças e diferenças entre a narrativa
histórica e a narrativa cinematográfica presentes em diversas discussões
teóricas e metodológicas. Conforme pontua Bruno José Yashinishi [2020], o
cinema é capaz de trazer em si uma visão sobre a história, seja através da
tentativa de representar um determinado fato ou tempo passado ou sobre a
captação do tempo presente de sua produção [YASHINISHI, 2020, p. 419].
Para o historiador José D’Assunção Barros:

“Se o Cinema é ‘agente da História’ no sentido de que interfere


direta ou indiretamente na História, ele também é interferido todo o
tempo pela História, que o determina nos seus múltiplos aspectos.
Vale dizer, o cinema é ‘produto da História’ – e, como todo produto,
um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’, isto
é, a Sociedade que o contextualiza, que define a sua própria
linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as
suas temáticas. Por isto, qualquer obra cinematográfica – seja um
documentário ou uma pura ficção – é sempre portadora de retratos,
de marcas e de indícios significativos da Sociedade que a
produziu” [BARROS, 2014, p. 26].

Novas Mídias e Orientalismos


151
É válido ressaltar, sobretudo, o importante papel que o Cinema exerce no
desenvolvimento de uma consciência histórica, independente se o conteúdo
da trama retratada é de caráter real ou fictício. O filme também é considerado
um produto histórico, ou seja, também é fruto do período no qual é introduzido.
Onibaba é uma produção lançada durante o período que sucedeu a Segunda
Guerra Mundial, época marcada pela reconstrução do Japão em todas as suas
esferas. Compreendendo a partir dessa ótica, tornam-se perceptíveis críticas
direcionadas a guerra e suas consequências no decorrer da película, contendo
referências aos traumas vivenciados pela população nipônica durante o
período belicoso.

Uma das principais características do longa-metragem está na maquiagem


utilizada para retratar as faces deformadas da senhora e do samurai após a
remoção da máscara. Segundo o diretor Kaneto Shindo, a representação das
feridas foi baseada nas sequelas físicas geradas pelos ataques às cidades de
Hiroshima e Nagasaki [McDONALD, 2006, p.118]. Este mesmo fator é
evidenciado pela filmografia do próprio realizador, que além de ter nascido na
primeira cidade vitimada pela bomba atômica, também trabalhou em obras que
denunciam de maneira explícita os horrores desencadeados pela explosão,
como é o caso de “Filhos de Hiroshima” (1952), lançado em período posterior a
ocupação estadunidense [BO, 2016, p. 108].

Considerações finais
Pensar Onibaba enquanto um exemplo de película histórica remete a
necessidade de analisar cada um de seus pormenores, desde o retrato de um
país em guerra e as condições de pobreza na qual os personagens principais
se encontram, ao pano de fundo onde a realização do filme está inserida.
Conforme exposto neste trabalho, uma obra cinematográfica também é fruto
direto da sociedade que a produziu, podendo utilizar-se de elementos fictícios e
períodos cronológicos distintos para indicar o funcionamento de sua referida
trama.

A obra dirigida por Kaneto Shindo pode ser interpretada não apenas como uma
forma de estabelecer um exercício de entendimento do passado outrora vivido
pelo povo japonês, mas também busca repassar aos espectadores elementos
latentes de um período caracterizado pela reestruturação de toda uma nação,
mostrando os traumas evidentes que os conflitos intermitentes podem causar
em uma população inteira, afetando todos as esferas sociais e revelando um
profundo abismo entre os menos favorecidos e os senhores das armas e do
poder, onde os únicos que possuem seu destino reservado são os mortos, tal
qual aqueles que foram lançados ao abismo pela senhora e sua nora.

Referências
Vinicius Maciel Braga é graduado em Licenciatura em História pela
Universidade Federal do Amazonas.

BALMAIN, Colette. Introduction to Japanese Horror Film. Edinburgh University


Press, 2008.

Novas Mídias e Orientalismos


152
BARROS, José D’Assunção. Cinema-História: múltiplos aspectos de uma
relação. In: Revista Dispositiva, PUC Minas, v. 3, n. 1, p. 17-40, 2014.

BO, João Lanari. Cinema japonês: filmes, histórias, diretores. São Paulo:
Giostri, 2016.

HENSHALL, Kenneth G. História do Japão. 2° edição. (História narrativa: 17).


Lisboa: Edições 70, 2014.

McDONALD, Keiko I. Reading a Japanese Film: Cinema in Context. Honolulu:


University of Hawaii’s Press, 2006.

NAPOLITANO, Marcos. Variáveis do filme histórico ficcional e o debate sobre a


escritura fílmica da história. In: História, Questões e Debates, Curitiba, v. 70, n.
1, p.12-44, 2022.

ONIBABA. Direção: Kaneto Shindo. 102 minutos. Japão, 1964.

SILVA, Lucas Miguel Brandão da. A Representação do Povo Japonês através


dos relatos do Jesuíta Luís Fróis. In: 2° ENCONTRO INTERNACIONAL
HISTÓRIA & PARCERIAS. 2019, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. p. 01-02.
Disponível em:
https://www.historiaeparcerias2019.rj.anpuh.org/resources/anais/11/hep2019/1
569811419_ARQUIVO_2a6ee743481923b6a4f101d33e849620.pdf.

YASHINISHI, Bruno José. A relação Cinema-História: fundamentos teóricos e


metodológicos. In: Em tempo de Histórias - Revista do Corpo Discente do
Programa de Pós-Graduação em História da UnB, Brasília, n. 37, p. 408-422,
2020.

Novas Mídias e Orientalismos


153
UM OLHAR EDITORIAL SOBRE O GRUPO DE K-POP
SINO-COREANO EXO por Vitória Ferreira Doretto

Todo grupo ou solista que deseja participar da indústria de música pop sul-
coreana (K-pop) passa por um período de preparação e treinamento nas
agências de entretenimento sul-coreanas antes de debutar e se tornar um idol.
Neste período de preparação para sua apresentação ao público, os indivíduos
aprendem ou aperfeiçoam técnicas de canto e dança, têm aulas de educação
física e inspeções de rotina de peso e controle diário da dieta, e também
podem estudar atuação e línguas estrangeiras (por exemplo inglês, japonês e
mandarim para os sul-coreanos e coreano para os estrangeiros). Para
analisarmos a constituição de um grupo de K-pop a partir de uma perspectiva
editorial, considerar este momento pré-debut é de extrema importância, pois, é
nele que são definidas as características que serão evidenciadas em cada
integrante do grupo, os gêneros musicais abordados, os conceitos de
vestimenta e maquiagem e outros tantos aspectos, mas também processo de
lançamentos posteriores podem trazer informações caras ao desenvolvimento
da análise. Assim, neste texto fazemos um exercício conceitual, colocando o
conceito de objeto editorial como método, e analisamos o grupo sino-coreano
EXO como um objeto editorial, preparado para ter uma vida pública e partícipe
de uma cadeia criativa e produtiva.

Com doze membros, o EXO (em coreano, 엑소) debutou em 8 de abril de 2012
sob a tutela da SM Entertainment (SM), empresa de entretenimento sul-
coreana criada por Lee Soo-Man em fevereiro de 1995 e desenvolveu um
sistema interno de produção de artistas, começando com os grupos H.O.T. em
1996, S.E.S. em 1997, Shinhwa em 1998, a dupla de R&B Fly to the Sky em
1999, e a solista BoA em 2000.

A SM, como várias outras empresas da Coreia do Sul, cria seus próprios
talentos e seleciona o conceito, imagem e visão musical de cada artista. Este
processo geralmente envolve um treinamento rigoroso para criar um idol ideal,
em termos de corpo, personalidade e comportamento, que os fãs irão “venerar”
e se espelhar — e, em muitos casos, também tratar como um produto, mas
esta é uma discussão para outro momento. Antes da estreia do grupo, os
integrantes assinam contratos como trainees (neste caso, aspirante a artista) e
passam pelo treinamento sistemático na SM — por exemplo, o líder do EXO,
Suho (Kim Junmyeon), foi o primeiro integrante a entrar na agência e passou
sete anos como trainee (conferir Figura 1). Se o período como trainee é o
momento de preparação, modelação, refinamento para se tornarem idols e

Novas Mídias e Orientalismos


154
serem apresentados ao público, as definições de sua interlocução, inscrição
material e circulação são determinadas e escolhidas de acordo com os temas
(chamados de conceitos) e as tendências do mercado que o grupo seguirá — e
tudo isso é considerado quando a empresa começa a planejar a estreia de seu
próximo grupo. Veremos um pouco mais da história do EXO para que
possamos identificar esses três aspectos, mas a Figura 1 traz informações
sobre o pré e pós-debut dos integrantes atuais do grupo e que serão
retomadas na análise nos parágrafos posteriores.

Figura 1 – Atividades pré e pós-debut de cada integrante atual do EXO


Fonte: Elaborado pela autora.

Novas Mídias e Orientalismos


155
Em janeiro de 2011, o fundador da SM, Lee Soo-man, anunciou que debutaria
um novo grupo masculino em março ou abril do mesmo ano. Em maio, Lee
Soo-man falou sobre o grupo em um seminário empresarial sobre a Hallyu —
ou “onda coreana”, termo que se refere à popularização da cultura popular sul-
coreana ao redor do mundo a partir dos anos 1990 — realizado na
Universidade de Stanford, explicando sua estratégia de separá-lo em dois
subgrupos, M1 e M2, que promoveriam as mesmas músicas na Coreia do Sul e
na China, em coreano e mandarim. Ele planejava estreá-lo em maio de 2011,
porém, a estreia foi adiada para 2012.

Em dezembro de 2011 o grupo foi oficialmente apresentado como EXO —


nome retirado de exoplanet, termo que se refere a planetas fora do Sistema
Solar e que se relaciona com o conceito do grupo, apresentado na introdução
do clipe de “MAMA”: garotos que vieram de outro planeta e que possuem
poderes especiais —, com o nome EXO-K para o subgrupo sul-coreano e EXO-
M para o subgrupo chinês. Os doze membros da formação original (Xiumin,
Suho, D.O., Chen, Chanyeol, Lay, Baekhyun, Tao, Kris, Luhan, Kai e Sehun)
foram introduzidos individualmente em vinte e três teasers lançados entre
dezembro de 2011 e fevereiro de 2012. Kai, Luhan, Tao e Chen foram os
primeiros membros a serem apresentados no evento da SBS Gayo Daejun em
29 de dezembro de 2011.

Em 30 de janeiro de 2012, os subgrupos lançaram "What Is Love" (em coreano


e mandarim), seus primeiros singles promocionais. Em 9 de março foi lançado
o single promocional "History”. O show de estreia do grupo foi realizado no
Estádio Olímpico de Seul em 31 de março, cem dias após o lançamento de seu
primeiro teaser em 21 de dezembro de 2011 — cerca de três mil pessoas entre
oito mil candidatos foram selecionadas para participarem do evento. Um
segundo show com conferência de imprensa foi realizado no Grande Salão da
Universidade de Economia e Negócios Internacionais em Pequim, na China,
em 1 de abril de 2012. A estreia oficial dos subgrupos ocorreu em 8 de abril
com o lançamento do single "MAMA" do EP homônimo. O EXO-K realizou sua
apresentação de estreia na Coreia, no programa musical Inkigayo, enquanto o
EXO-M se apresentou na China, na décima segunda edição do Yinyue
Fengyun Bang Awards.

Atualmente, o EXO é composto por nove membros, Xiumin, Suho, Lay,


Baekhyun, Chen, Chanyeol, D.O., Kai e Sehun – como comentado
anteriormente, sua formação original também incluía Luhan, Kris e Tao, que
saíram do grupo entre 2014 e 2015. Descrito como "a maior boyband do
mundo" pela Dazed [Glasby, 2016] e Vogue [Okwodu, 2017], é um grupo com
grande número de prêmios musicais (os chamados daesangs), qualidade
sonora reconhecida e conceito bem estabelecido — seus integrantes fazem
uso do tema de “poderes especiais” da história criada para o EXO tanto em
lançamentos do grupo quanto em lançamentos de álbuns e faixas como
solistas.

Novas Mídias e Orientalismos


156
A partir destas descrições, podemos identificar sua interlocução, ou seja, o
público, o interlocutor projetado; sua inscrição material, como é apresentado a
este interlocutor projetado; e sua circulação, por onde e como circula.

Seu interlocutor projetado abrange os consumidores de música pop coreana,


como os que participam dos shows de outros grupos masculinos (como TVXQ,
Super Junior e SHINee) e femininos (como o Girls Generation). Também é por
isso que os integrantes do grupo fizeram participações em clipes, turnês e
programas especiais dos outros grupos da SM, como atestam as atividades
pré-debut de cada integrantes mostradas na Figura 1. Sua inscrição material,
ou seja, como se mostra ao público, envolve os figurinos trabalhados de acordo
com o conceito do debut, as maquiagens destacando as feições de cada
integrante, os penteados de cada um, mas também seu tipo físico e as dietas e
exercícios, que são feitos para moldar o corpo, e as aulas de canto e dança
(Figura 1) que todos fizeram. Finalmente, sua circulação envolve os clipes
feitos antes do debut, as apresentações de pré-debut (Figura 1), os programas
participados durante o debut, mas também os diversos vídeos promocionais
espalhados em diversas lojas e outdoors pelas cidades sul-coreanas, os artigos
na mídia impressa e digital sul-coreana, e todos os lugares que alcançaram o
público que se tornou parte de sua comunidade de fãs (fandom) chamada
EXO-L.

Nisto também podemos falar em espaço associado e canônico do EXO.


Segundo o analista de discurso Dominique Maingueneau (2006), em breves
linhas, o espaço canônico é o material que pode ser entendido como primeiro,
a fonte, o material linguístico que será retomado diversas vezes, e o espaço
associado, todas as retomadas do material original, ou seja, o que é produzido
sobre ou a partir dele — artigos de revista, vídeos de fãs, fanarts, fanfics,
ensaios fotográficos, sites e perfis de fãs em redes sociais etc. A fronteira entre
o espaço canônico e o associado é impossível de se definir porque é
renegociada a cada posicionamento, o espaço associado varia de acordo com
o espaço canônico e um “se alimenta” do outro, ainda que não tenham a
mesma natureza:

“O ‘espaço associado’ não é um espaço contingente que se somaria a partir de


fora ao espaço canônico: os espaços canônico e associado alimentam-se um
do outro, sem contudo possuir a mesma natureza. Esse duplo espaço se
mostra a si mesmo no conjunto mais amplo de marcas deixadas pelo autor, o
que inclui também os cadernos escolares, a correspondência amorosa, cartas
dirigidas à administração e etc.” [Mangueneau, 2006, p. 144].

Podemos dizer que o “conteúdo” principal do EXO — o que será retomado, e


por isso consideramos como espaço canônico — são seus integrantes, suas
músicas, clipes e álbuns, mas o grupo só é bem-sucedido, como a quantidade
de prêmios e sua popularidade indicam, porque é lembrado não só pelos fãs,
mas pelo público em geral, o que só é alcançado com aparições em programas
de rádio, de entretenimento televisivo, com reality shows (como as três
temporadas do Travel The World on EXO's Ladder), participação em dramas

Novas Mídias e Orientalismos


157
(as “novelas” sul-coreanas) — como EXO Next Door (2015), 100 days my
prince (SudioDragon, 2018), Memories of Alhambra (tvN, 2018), Now, We are
Breaking Up (SBS, 2021) e Bad Prosecutor (KBS, 2022) —, peças teatrais e
filmes, participação em trilhas sonoras de dramas e nos mais diversos anúncios
publicitários que formam seu espaço associado.

É nesta conjugação de espaço canônico e associado que um grupo de K-pop


se torna, finalmente, um grupo formado por idols. Mas é também com estes
rastros de circulação pública que podemos identificar sua participação numa
cadeia produtiva e numa cadeia criativa, com técnicas e normas, que marca
certos traços de autoria e nos levam a considerar um grupo de K-pop um objeto
editorial — pode parecer um salto muito longo, mas explicaremos.

Uma concepção de objeto editorial anterior entendia um objeto editorial como


um objeto que é preparado para uma "vida" pública que tem, necessariamente,
três aspectos que possibilitam sua identificação — sendo eles a interlocução
(para quem é, qual é o interlocutor projetado), a inscrição material (como ele se
materializa, como é apresentado ao público), e a circulação (por onde/quais
lugares ele circula). Como esta proposição era ainda significativamente
abrangente, Salgado [2021, slide 6] refinou a definição para o que entendemos
como objeto editorial, colocando em relevo a questão da autoria e das cadeias
criativa e produtiva:

“Objetos editoriais são objetos técnicos que supõem uma cadeia criativa e uma
cadeia produtiva, nas quais técnicas e normas são administradas por diferentes
atores, com vistas à formalização material de uma síntese de valor sígnico, que
enseja uma circulação pública, apontando para uma autoria.” [Salgado, 2021,
slide 6]

Quando pensamos em objetos editoriais, geralmente, os exemplos mais


comuns e pesquisados são livros, revistas, cartas ou outros objetos que
explicitam alguma “coisa material”, mas se pensarmos que objetos técnicos são
“objetos” que pressupõem um encadeamento de procedimentos técnicos ou
trabalhos que demandam certas técnicas para serem concluídos, podemos
pensar na preparação de um idol ou de grupos de K-pop como uma produção
técnica inserida em uma complexa cadeia criativa e também em uma cadeia
produtiva, onde diversos atores — coreógrafos, musicistas, letristas,
professores de canto, produtores musicais, profissionais de marketing,
maquiadores, estilistas, fotógrafos etc. — cooperam para que seja criada uma
identidade distinguível e dentro dos padrões da empresa agenciadora para o
grupo e seus integrantes individualmente e a mensagem desejada seja
entregue ao público.

Há todo um conjunto complexo de práticas na preparação de um objeto


editorial, que supõem também uma rede de aparelhos, um campo e um arquivo
[Maingueneau, 2006]. Relacionando estas noções ao estudo de caso em tela,
uma rede de aparelhos engloba os mediadores (agentes, produtores,
vendedores de álbuns etc.), os críticos musicais, professores de música,

Novas Mídias e Orientalismos


158
intérpretes e as instituições que consagram e elevam as produções ao cânone
(prêmios, listas...), o campo supõe atores centrais e periféricos, dominantes e
dominados, com posicionamentos sempre em disputa uns com os outros, mas
também em cooperação, e o arquivo remete a uma memória interna (como
grupos anteriores de uma mesma empresa, práticas de publicidade já feitas
etc.), às filiações que podem ser traçadas, à criação de espaços associados ao
espaço canônico.

Para um melhor entendimento, vejamos mais atentamente um pouco do


material promocional e de bastidores de um dos lançamentos mais recentes do
EXO, o álbum Obsession — antes, é importante notar que quando tratamos do
grupo como um objeto editorial não estamos tratando da vida pessoal dos
artistas, estamos fazendo uma análise sobre um tipo de pessoa pública, a
figura do idol, e diferenciando idol/grupo de K-pop e indivíduo/cidadão sul-
coreano/chinês, ou seja, tratamos de Kai, Sehun, Suho, Chen, Xiumin,
Baekhyun, Chanyeol, D.O. e Lay, não de Kim Jongin, Oh Sehun, Kim
Junmyeon, Kim Jongdae, Kim Minseok, Byun Baekhyun, Park Chanyeol, Do
Kyungsoo e Zhang Yixing.

Lançado em 27 de novembro de 2019, Obsession é o sexto álbum de estúdio


do grupo e teve a participação de seis dos nove integrantes — dois deles,
Xiumin e D.O., estavam cumprindo o alistamento obrigatório e o terceiro, Lay,
estava realizando atividades como solista na China — e teve duas versões de
capa e material (photocards, pôsteres, livreto com fotos etc.), EXO e X-EXO
[EXO, 2019a], refletindo a narrativa e conceito do lançamento: continuando a
usar o tema de garotos de outro planeta com poderes especiais, o grupo
apresentou sua versão de militares e também uma versão negativa, malvada,
os X-EXO (conferir Figura 2, Figura 3 e Figura 4).

Novas Mídias e Orientalismos


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Figura 2 – Pôsteres de EXO e X-EXO
Fonte: EXO [2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2019g]. Elaborado pela
autora.

Figura 3 – X-EXO
Fonte: SMTOWN 신곡 포스트 [2019].

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Figura 4 – SUHO se preparando para ser X-SUHO
Fonte: SMTOWN 신곡 포스트 [2019].

Figura 5 – EXO
Fonte: SMTOWN 신곡 포스트 [2019].

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Pela comparação entre EXO e X-EXO (Figura 2, Figura 3, Figura 4 e Figura
5), podemos observar mais atentamente o trabalho de construção do grupo
como um objeto editorial. De saída, salta aos olhos que para que os integrantes
mostrem ser X-EXO é necessária uma construção de caracterização, com
efeitos nos olhos, maquiagem mais acentuada, acessórios no rosto, figurino
mais chamativo e penteados bastante específicos, mas também de
personalidade (as versões negativas são, por exemplo, mal-educadas,
desbocadas, mal-humoradas, sem paciência). O que talvez passe
despercebido é que para que eles mostrem ser EXO também é necessário que
se preparem — tanto fisicamente, com corpos saudáveis, quanto em termos de
figurino e maquiagem, pois, roupas de estilo militar ou guerrilheiro não são
frequentemente usadas por eles —, que continuem a aprender técnicas de
canto e dança, que se especializem cada vez mais. Este lançamento, tanto em
termos estéticos quanto narrativos, também deixa explícito a marca de autoria
da SM e dos integrantes do EXO, porque retoma e acrescenta
desenvolvimento ao fio narrativo criado por Lee Soo-Man desde o debut do
grupo e personificado por cada idol — por exemplo, o idol e líder do grupo
Suho (Figura 4) não seria Suho se não fosse Kim Junmyeon, pois, as
características de Suho são também dele. É com a convergência de todos os
detalhes que visualizamos a cadeia produtiva do K-pop e a cadeia criativa da
SM e da indústria musical.

É importante notar também que a produção do EXO converge não apenas para
o visual dos integrantes, temas de lançamentos e escolhas musicais, sua
produção chega ao campo da literatura e de outras esferas do entretenimento.
Por exemplo, em álbum anterior, The War: The Power of Music (lançado em
2017), o grupo lançou uma revista de história em quadrinhos (“The War: The
Eve”) contando mais da história criada para o embasamento das atividades do
grupo e reafirmando a autoria da SM pela SM Comics; seus shows ao vivo
também seguem o conceito e costumam levar o título de “EXO Planet” (como
EXO Planet 2 – The Exo'luxion, EXO Planet 3 – The Exo'rdium etc.); e até
mesmo em campanhas publicitárias para outras empresas que não a SM
aparecem seus “poderes especiais” quando são identificados como um dos
integrantes do EXO — em campanha recente da Olive Young (marca de
produtos de beleza e saúde sul-coreana), por exemplo, Kai aparece se
teletransportando, que é seu poder especial. Estes exemplos também nos
ajudam a perceber que há, no caso do EXO, um pacto de suspensão da
descrença, um acordo ficcional [Eco, 1994] em que o público acredita em seus
poderes e não se surpreendem com as menções ou usos fora das produções
principais do grupo.

Com tudo o que foi descrito e analisado aqui, conseguimos afirmar o caráter de
objeto editorial de um grupo de K-pop, neste caso, o EXO. Fica explícito a
participação da SM Entertainment nas cadeias produtivas e criativas da
indústria do K-pop, e sua marca autoral é sempre reafirmada com o
lançamento de novos álbuns do EXO ao reutilizar ou ampliar a narrativa
iniciada no debut do grupo. Ao mesmo tempo, um grupo de K-pop é preparado,
treinado, para refletir a expertise da empresa agenciadora e suas principais

Novas Mídias e Orientalismos


162
características — como a qualidade vocal ou beleza dos artistas e os
experimentos sonoros nas composições musicais — e ter grande circulação
pública. Identificamos ponto a ponto os aspectos de caracterização de um
objeto editorial, mas mais do que isto, observamos como há um processo
complexo, com os mais diversos passos, para que um artista se torne idol.
Seria interessante também observar mais atentamente a constituição dos
artistas como figuras públicas, seus ethos e até mesmo a cenografia de suas
aparições em público, bem como um olhar dos fansigns como uma heterotopia
[Doretto, 2020], um contraespaço, conceito de Foucault [2013], mas estes são
temas para outras ocasiões.

Referências
Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda e mestra em Estudos de Literatura
pela Universidade Federal de São Carlos com bolsa CAPES (código de
financiamento 001), professora-voluntária de português língua estrangeira no
Instituto de Línguas/UFSCar e integrante do Grupo de Pesquisa COMUNICA -
inscrições linguísticas na comunicação (UFSCar/CEFET-MG/CNPq) e do
Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição (CEFET-
MG/UFSCar). E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com

DORETTO, Vitória Ferreira. Um fansign, uma heterotopia, 2020. Disponível em:


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THOMPSON, John B. Mercadores de Cultura. Trad. Alzira Allegro. São Paulo:


Editora Unesp, 2013.

Novas Mídias e Orientalismos


164
PARATOPIA CRIADORA E WEBTOONS: OS CASOS DE
“TRUE BEAUTY” E “FROM A DISTANCE, A GREEN
SPRING” por Vitória Ferreira Doretto e Júlio Cézar de
Souza

A autoria é constituída por diversos fatores que envolvem aspectos sociais,


pessoais e do próprio campo literário. Neste sentido, este texto propõe tecer
comentários sobre a constituição da autoria de Yaongyi e Genie’s Picture,
autores de duas webtoons de sucesso, e como suas gestões e gestos de
publicização (ou não) modificam as possíveis representações das suas
instâncias de autoria.

Embasados no quadro teórico da análise do discurso de linha francesa, em


especial nas proposições de Dominique Maingueneau [2006] para o estudo do
funcionamento do literário como um regime de criação e produção (como um
discurso), analisaremos a autoria desses autores de webtoon e como a
circulação ampla de suas obras influencia nesse aspecto.

Entretanto, antes de nos debruçarmos nas questões autorais, é necessário


entender melhor o gênero literário dessas produções e autores.

As webtoons (junção dos termos “web” e “cartoons”) são histórias em


quadrinho publicadas em ambiente digital, com regularidade semanal — alguns
webtoons contam uma história em cada volume, outros contam histórias mais
longas durante vários meses. Elas estão no mercado há pelo menos duas
décadas, por isso são elemento do cotidiano sul-coreano — estimativas
afirmam que uma em cada três pessoas no país lê alguma webtoon pelo
menos uma vez ao dia [Lynn, 2016]. Este gênero literário se distingue pelo
idioma, local de produção, uso sistemático da rolagem vertical, ferramentas da
web e efeitos visuais e sonoros multimídia [Lynn, 2016; Koo, 2020] — é
recorrente o uso dos espaços em branco “estrategicamente colocados de modo
que quando a leitura é feita pelo celular, apenas uma cena se enquadre por vez
na tela, permitindo que o leitor acompanhe ação por ação da narrativa baseada
nos seus quadros” [Sohn, 2014].

As webtoons cresceram rapidamente na Coreia do Sul desde seu início nos


anos 2000. Em 2010, formavam apenas 7,1% de todo o valor monetário do
mercado de quadrinhos do país, mas elas revolucionaram o mercado existente
[Koo, 2020] e são o setor de mais rápido crescimento em conteúdo digital,
marcando 35% do valor total do mercado em 2019. Segundo dados

Novas Mídias e Orientalismos


165
apresentados por Koo [2020], os IPs de webtoon podem superar as limitações
do mercado de entretenimento e se tornar o “superlativo no mercado de
conteúdo global” — em 2020, o mercado de conteúdo geral estava avaliado na
casa dos trilhões, 1.091 trilhões de won nos Estados Unidos e 238 trilhões de
won no Japão.

Neste contexto, analisamos a constituição das autorias de Yaongyi, autora do


webtoon “True Beauty”, e de Genie’s Picture, de “From a Distance, a Green
Spring”. Vamos então conhecer os dois casos.

A autora de “True Beauty” é Yaongyi (야옹이), que significa Meow, pseudônimo


de Kim Na-young (김나영). Segundo ela conta, apesar de nutrir interesse e
desejo de se tornar uma criadora de quadrinhos desde a infância, ela precisou
passar por diversos trabalhos até lançar, em 27 de março de 2018, sua
primeira e até então única obra, “True Beauty (여신강림)”, pela plataforma
LINEWebtoon, do conglomerado Naver Corporation. Após apenas três
semanas de seu lançamento, a obra atingiu o ranking Top Comics do servidor
e possui mais de 4 bilhões de leituras ao redor do mundo.

O sucesso da webtoon fez com que no ano seguinte a autora fosse


entrevistada para o Webtoon.com — site que disponibiliza o acervo de
webtoons traduzidas em inglês de forma oficial — e divulgada em sua conta do
Twitter (@webtoonoficial). Na entrevista, Yaongyi revela que, semanalmente,
para roteirizar e desenhar cada episódio são exigidas em média quatro noites
sem dormir. Questionada também sobre o visual de seus personagens, em
termos de roupas e estilo, ela contou que suas inspirações vêm pelo seu gosto
em moda, curiosidade e constante busca por esses tópicos e trends nas redes
sociais.

A obra conta a história de Im Ju-kyung, uma adolescente que após sofrer


bullying na escola por conta de sua aparência, descobre no aprendizado e uso
das técnicas de maquiagem uma forma de encontrar a beleza e ser aceita em
seu ambiente social. É por conta desta breve sinopse que a obra também teve
seu título traduzido para o inglês como “The Secret of Angel” [O segredo do
Anjo] ou “The Advent of a Goddess” [O Advento de uma Deusa].

A adaptação televisiva feita pela emissora sul-coreana tvN foi exibida entre 9
de dezembro de 2020 e 4 fevereiro de 2021 — com 16 episódios que podem
ser assistidos internacionalmente através da plataforma de streaming como
Viki. A webtoon, ainda não finalizada, está no capítulo 222 e tem atualizações
semanais.

A adaptação da tvN fez com que a webtoon fosse tomada de novos leitores,
mas também que a autora passasse a ser buscada nas redes sociais e se
tornasse conhecida. Seu perfil no Instagram (@meow91_) hoje conta com 1,4
milhões de seguidores e possui 133 publicações — aqui cabe comentar que
entre o primeiro período de análise de dados (outubro de 2021) e o momento

Novas Mídias e Orientalismos


166
de escrita deste texto (setembro de 2022), observamos um decréscimo no
número de seguidores, 1,5 milhão para 1,4 milhão, e de publicações, de 289
para 133, num claro exemplo do funcionamento das redes sociais, com
números que flutuam. No perfil, ela só começou a postar fotos de si mesma
após o primeiro ano de publicação da obra, impressionando os seguidores com
sua beleza e aptidão para moda, o que lhe rendeu o título de “um anjo
desenhando outro anjo”.

Contudo, não foi apenas a beleza da autora que surpreendeu seus seguidores,
mas também o fato de falar abertamente sobre ser mãe solteira, divorciada e
não ter intenção de casar novamente — estes temas foram abordados em
carta aberta postada em seu perfil no Instagram em 16 de fevereiro de 2021.
Sua vida pessoal, então, entrou para os holofotes tanto quanto sua webtoon, o
que não ocorreu com nosso próximo autor.

Conhecido pelo pseudônimo de Genie’s Picture (지늉 글그림), quem escreve a


webtoon “From a Distance, a Green Spring” mantém sua identidade privada,
sendo extremamente difícil encontrar informações precisas sobre sua idade,
gênero ou formação profissional. Em seu perfil no site Webtoon Guide, Genie
explica que a escolha do pseudônimo se deu por seu nome de batismo — não
mencionado — ser muito comum. Neste mesmo perfil, define seu gênero como
기타 (guitar), reafirmando o distanciamento de sua imagem da obra e dos
holofotes que ela trouxe.

Em seu blog/página no Naver, sob outro pseudônimo, ppumkinj, explica que,


devido a sua personalidade, não se sente confortável com contas em redes
sociais e por isso não as têm — cabe apontar aqui que, entre o período de
produção da análise e a escrita deste texto, Genie deixou todas as suas
postagens privadas, de forma que não temos mais acesso a elas. Sua conta no
Twitter (@ppumkinJN) ficou ativa até 2017, período em que necessitava da
interação para a promoção da publicação de seus livros. Mas quais livros?

Por ser uma produção mais antiga que a de Yaongyi, “From a Distance, a
Green Spring” foi adaptada para diferentes meios: foi impresso pela editora
Garden of Books em três livros, cada um contendo uma temporada da
webtoon, lançado como um áudio drama, em 2015, por meio de um processo
de crowdfunding organizado pelos fãs e, mais recentemente, para a televisão
em formato de drama.

A obra começou a ser serializada em 12 de abril de 2014 na plataforma Kakao,


e foi finalizada na terceira temporada, em 4 de junho de 2022 — apenas os
primeiros 20 capítulos da primeira temporada são gratuitos para leitura. Em
2021, seus direitos foram adquiridos pela emissora sul-coreana KBS, parte do
conglomerado Kakao Corporation, e os 12 episódios da adaptação foram
exibidos entre junho e julho do mesmo ano e também podem ser assistidos na
plataforma de streaming Viki. Contudo, a adaptação trouxe questões para

Novas Mídias e Orientalismos


167
Genie, que demonstrou sentir pressão a dar declarações sobre sua narrativa
em sua página no Naver.

De acordo com a sinopse disponibilizada no MyDramaList (site/comunidade


para espectadores de séries e novelas), a história:

“retrata dois jovens em seus vinte e tantos anos e os problemas


que enfrentam na universidade. Nam Soo Hyun e Yeo Joon, dois
garotos com personalidades contrastantes, se tornam amigos ao
trabalharem juntos em um projeto acadêmico. Apesar das
preocupações reais e os conflitos de jovens em seus anos na
universidade, a história é centrada em Yeo Joon, que apesar da
vida abastada e cheia de privilégios pelo seu poder financeiro,
carrega dores profundas em seu interior. Sua personalidade,
amigável, faz com que ele faça de tudo para se aproximar de seu
veterano, o seguindo por todos os cantos, levando a uma amizade
inesperada entre duas pessoas de personalidade tão diferentes.”
[MyDramaList, 2021]

A partir da sinopse, muitos espectadores, principalmente com a adaptação,


questionaram o conteúdo e se ele se enquadraria dentro do “selo” BL (Boys
Love) — histórias sobre casais homossexuais compostos por dois homens.
Genie veementemente refuta esta ideia em dois posts de seu blog, “Por favor
distinga entre o original e a adaptação” e “Sobre <Mulfubom> e BL.
FAQ/Resumo”, onde explica o que lhe inspirou e critica o olhar dos leitores ao
não aceitar uma relação de amizade profunda entre dois homens sem que seja
romantizada ou erotizada e, inclusive, se questiona se deveria ter escrito a
obra.

Genie parecia muito sincero nos posts e falava abertamente sobre suas
incertezas, irritações, frustrações, e sempre esclarecia que, apesar dos leitores
serem apreciadores de sua obra, ela ainda pertencia a ele — como fica
evidente no post “Por favor distinga entre o original e a adaptação”:

“Os comentários na página do trabalho têm uma responsabilidade


profissional que o artista deve suportar apenas para receber
feedback sobre o trabalho, mas fora isso, não há razão para eu
suportar desconforto.
Não devo nada a ninguém que não conheci, nem fiz nada de
errado.
Onde quer que eu esteja como escritor, quando falo, tento ser
educado, pondero as palavras, refletindo sobre as frases e
escrevendo. [...]
Eu não sou seu amigo. Não me entenda mal. Eu não te conheço.
Acabei de desenhar minha webtoon com o melhor da minha
capacidade. Não sou uma pessoa que tem a obrigação de
‘comunicar’, de ser amigável e gentil. Não espera que eu esteja
agradável e confortável. Isso não está na minha ética de trabalho.

Novas Mídias e Orientalismos


168
Se escrevo feedback com sinceridade, é apenas afeto, não uma
obrigação, seja para o leitor ou para o meu trabalho.
Por favor, não vamos ter problemas um com o outro.“ [ppumkinj,
2021]

A partir destas descrições, podemos tecer algumas considerações.

Tanto Yaongyi quanto Genie’s Picture são levados a criar perfis e utilizar redes
sociais (Instagram no primeiro caso, Twitter e Naver Blog no segundo) em
razão do sucesso de suas publicações. O uso desses perfis, no entanto, não é
o mesmo.

Yaongyi faz publicações sobre sua vida pessoal, conta detalhes de sua
biografia e posta fotos de si mesma — é a partir de sua imagem que surge o
apelido “um anjo desenhando outro anjo” —, sua projeção como autora está
intrinsecamente ligada ao aspecto pessoal de sua vida. Conforme aponta
Maingueneau [2006, p. 156], os autores precisam “multiplicar os gestos
conjuradores, mostrar a si mesmo e ao público os sinais de sua legitimidade” e
Yaongyi, enquanto sua webtoon era publicada e adaptada, era levada a buscar
legitimação tanto de si mesma como autora quanto de sua obra, por isso
reforçava as influências de construção de seus personagens em si mesma (no
caso da personagem principal) e em outras celebridades sul-coreanas [Oliveira,
2022]. Por outro lado, nas publicações em seu blog (agora privado), Genie’s
Picture não buscava legitimação, mas afirmação de seu papel como autor — o
que envolvia suas escolhas narrativas — e reconhecimento da comunidade
leitora como tal.

Quando tratamos de criação literária, Maingueneau [2006] propõe uma noção


que nos é muito cara neste estudo de caso, a de paratopia criadora. Este
conceito diz respeito à impossibilidade de pertencimento de um autor no
processo de criação literária. Como “não é possível produzir enunciados
reconhecidos como literários sem se colocar como escritor, sem se definir com
relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição”
[Maingueneau, 2001, p. 27], pensar em paratopia como um lugar paradoxal do
escritor é considerar um ir e vir do autor em relação a sua vida pessoal, ao
mundo social e ao mundo literário. Nesta perspectiva, a autoria é constituída
dinamicamente entre três instâncias que formam uma unidade que existe
apenas durante e através da criação e enunciação. Essas instâncias dizem
respeito às relações entre o escritor e a sua obra, o escritor e a sociedade, e a
obra e a sociedade e podem ser entrelaçadas de diversas formas, conforme a
lógica de formulação deste conceito, que as designa como pessoa, escritor e
inscritor.

Pessoa, escritor e inscritor se relacionam aos aspectos que constituem uma


autoria: a instância pessoa se refere ao autor como um indivíduo social e
considera os dados biográficos; a instância escritor se refere ao autor como um
ator com trajetória na instituição literária e se relaciona também à circulação
das obras; e a instância inscritor se refere ao indivíduo como enunciador,

Novas Mídias e Orientalismos


169
compreendendo suas práticas e ritos de inscrição, sua forma de produção de
enunciados e inclui até mesmo o que um autor mobiliza para construir sua
obra. Ainda que as descrevamos de forma separada, as instâncias se
atravessam umas às outras, numa relação tripla que, enfim, constitui a autoria
— autoria que é, então, “um complexo entrelaçamento que é preciso gerir”
[Salgado, 2016a, p.197].

Para facilitar a visualização destas instâncias e de seus desdobramentos para


cada caso de autoria abordado aqui, faremos uso da representação gráfica do
entrelaçamento das instâncias da paratopia criadora como um nó borromeano
proposta por Salgado [2016b].

Figura 1 - Representação das instâncias de autoria de Yaongyi


Fonte: Elaborado pelos autores.

Como observado na Figura 1, para Yaongyi, o sucesso de sua webtoon e sua


eventual adaptação televisiva influenciou na significativa ampliação de sua
instância pessoa, pois, é em momento posterior à publicação da webtoon que
ela passa a postar fotos de si mesma. Antes de mostrar seu rosto, a autora
tinha em relevo sua instância escritor, uma vez que era este aspecto de sua
autoria que era conhecido — era possível, por exemplo, inferir que sua
remuneração como autora de webtoon fosse significativa dado o sucesso de
“True Beauty” e a posterior adaptação — e só tivemos informações que
pudessem compor sua instância inscritor após o primeiro ano da publicação da
história (na entrevista mencionada anteriormente) e, ainda assim, não foram
tantas a ponto de interferir significativamente nesta instância.

Novas Mídias e Orientalismos


170
Figura 2 - Representação das instâncias de autoria de Genie’s Picture
Fonte: Elaborado pelos autores.

Quanto a Genie’s Picture, sua representação das instâncias de autoria (Figura


2) mostra uma modificação acentuada na instância escritor — dado a
quantidade de adaptações de sua webtoon e a sugestão de recebimento de
alguma remuneração com a leitura de sua obra, que após o vigésimo capítulo é
de acesso pago e restrito, além disso, antes de impossibilitar o acesso ao blog,
o autor promovia a venda de wallpapers e imagens da obra para telas de
bloqueio —, já que suas instâncias pessoa e inscritor não reúnem informações
suficientes e englobam apenas alguns vestígios já não disponíveis em seu
blog sobre seu empenho e dedicação aos desenhos, de forma que suas
“condicionantes pessoais [não] se imponham com vigor” [SALGADO, 2016b, p.
10].

Podemos verificar o caráter mutável das instâncias dentro de uma mesma


autoria e em comparação de autorias a partir das representações do nó
borromeano com as configurações das instâncias de cada autor, de acordo
com o que seus dados, sua obra e sua circulação sugerem. Assim, verificamos
que cada uma das instâncias podem ficar em relevo em determinados
momentos de acordo com a gestão de autoria de cada indivíduo designado
como autor, porque:

“A paratopia é o clinamen que torna possível o nó e que esse nó


torna possível; não se trata de alguma separação “inaugural” que
mais tarde se desfaria diante da obra, mas de uma diferença ativa,
incessantemente retrabalhada, renegociada, diferença que o
discurso está fadado tanto a conjurar como a aprofundar.”
[Maingueneau, 2006, p. 137].

Outro ponto a ser mencionado é a diferença de percepção pessoal de suas


adaptações: enquanto Yaongyi se sente feliz pela adaptação de sua webtoon e
a divulga em suas redes sociais, Genie faz um post para que as pessoas

Novas Mídias e Orientalismos


171
entendam as diferenças que as duas obras têm devido a plataforma de
veiculação e formas de produção, já que a adaptação não parte dele. Neste
aspecto, Yaongyi entende a adaptação como uma conquista de novos fãs e
leitores, enquanto Genie considera a expansão de circulação uma exaustiva
necessidade de educação dos novos leitores sobre a história e as
interpretações feitas pelos fãs, o que parece provocar a ampliação do
distanciamento entre leitor e autor [ação que evoca a imagem irreal do autor
como intocável e leitor apenas no seu lugar de passividade leituresca] — o que
é corroborado pelo apagamento de sua instância pessoa, evidenciando apenas
o escritor. Ainda, essa (im)possibilidade de designar aspectos que possam ser
entendidos como característicos da instância pessoa faz parte da própria
criação de Genie’s Picture como autor — uma não-presença intencionalmente
criada, pois sua ausência é parte integrante de sua construção.

Em resumo, ao observar, individual e comparativamente, a construção e gestão


de autoria desses dois autores, percebemos que ainda que dentro de um
mesmo campo — noção de Bourdieu [2018] que designa um espaço social de
certa forma autônomo em que seus agentes (no caso do campo literário,
escritores, editores, agentes literários, resenhistas etc.) cooperam e disputam
posições centrais —, as figuras de autor se instituem de formas distintas.
Então, é na relação de atravessamento entre as instâncias, com apagamento
ou destaque de seus aspectos constituintes, que as autorias se constroem e
refletem posicionamentos e sentidos das empresas, do próprio autor…, enfim,
do funcionamento do campo.

Referências
Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda em Estudos de Literatura pela
Universidade Federal de São Carlos com bolsa CAPES (código de
financiamento 001), professora-voluntária de português língua estrangeira no
Instituto de Línguas/UFSCar e integrante do Grupo de Pesquisa COMUNICA -
inscrições linguísticas na comunicação (UFSCar/CEFET-MG/CNPq) e do
Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição (CEFET-
MG/UFSCar).

Júlio Cézar de Souza é licenciando em Letras Português-Inglês pela


Universidade Federal de São Carlos, professor de português língua estrangeira
no Instituto de Línguas/UFSCar e integrante do Grupo de Pesquisa
COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação (UFSCar/CEFET-
MG/CNPq) e do Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição
(CEFET-MG/UFSCar).

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Sociedade, v. 17, n. 39, 2018. DOI: doi.org/10.5007/2175-
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Novas Mídias e Orientalismos


173
Novas Mídias e Orientalismos
174
A nova fronteira representada pelo campo das comunicações e
ciências humanas, no que tange a interatividade, disseminação
da informação e construção de redes de conhecimento, têm se
revelado um espaço de tensões e conflitos, onde se projetam
preconceitos e fantasias arraigadas ao imaginário. O olhar
orientalista, a estratégia de conhecer o mundo por meio de
velhas teorias coloniais, ainda atua fortemente na formulação
dos papéis concedidos aos asiáticos, lidos de forma
reducionista pelo senso comum que embasa as impressões
primeiras do público e dos canais midiáticos. Nesse sentido, a
sociedade brasileira continua a preservar um estranho entre-
lugar para as comunidades de origem oriental, reafirmando a
existência de um contraditório ‘não-preconceito’ com a recusa
sistemática em assimilar japoneses, chineses, coreanos, árabes,
entre outros.

Novas Mídias e Orientalismos


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