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Filosofia Radical e Utopia

Inapropriabilidade, An-arquia, A-nomia


Filosofia Radical e Utopia

Inapropriabilidade, An-arquia, A-nomia

Andityas Soares de Moura Costa Matos

1ª edição
Rio de Janeiro, 2014
EDição

Monica Casanova

CAPA E PROJETO GRÁFICO

Ana Luisa Videira

DIAGRAMAÇÃO

Giovanna Paape

Imagem de Capa

Max Ernst: Flores de ostras (1929)

Dados internacionais para catalogação na publicação (CIP)

M433f

Matos, Andityas Soares de Moura Costa, 1979-


Filosofia radical e utopia : inapropriabilidade, an-arquia,
a-nomia / Andityas Soares de Moura Costa Matos. – 1. ed. – Rio
de Janeiro : Via Verita, 2014.
308pp. ; 14x21 cm. – (Coleção Nómos Basileús)

Bibliografia: pp. 283-301.

ISBN: 9788564565180

1. Filosofia. 2. Direito – Filosofia. 3. Ciência política.


4. Utopias. I. Título. II. Série.

CDD – 340.1
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB-7 5587

EDITORA VIA VÉRITA


Rua Sara Vilela 560, Jardim Botânico, Rio de Janeiro
CEP: 22460-180
Tel.: 021- 24222109
www.viaverita.com.br/ editorial@viaverita.com.br
“És más agradable y más provechoso vivir la ‘experiencia
de la revolución’ que escribir acerca de ella”.
Lênin, última linha de
El Estado y la Revolución, p. 198.

“Ainda bem que isto vai mal, porque isso é a nossa salvação”.
Fernando Pessoa
Da República, p. 155.

“Aos pacíficos foi prometido o reino da Terra. Somente a


eles também se descortinará o pensamento de um novo
nomos da Terra”.
Carl Schmitt, última linha do
prefácio de O Nomos da Terra, p. 34
S U m ár i o

Apresentação (Oswaldo Giacoia Junior).................................... 9

Prefácio (Giuseppe Cocco).................................................................... 13

Introdução....................................................................................................19

I. A filosofia radical e seus inimigos

1. Fundamento?.............................................................................. 27

2. Método?....................................................................................... 39

3. Direitos fundamentais?........................................................... 45

II. Utopia e história

1. Utopia: lugar absoluto............................................................ 63

2. Crise e tempo-de-agora.........................................................75

3. Anticampo: antídoto para a dialética do progresso....85


III. Através do espelho: trabalho, espetáculo, especulação
1. Filosofia radical é filosofia política..................................... 101
2. Trabalho........................................................................................ 109

3. Espetáculo

3.1. Um fim em si mesmo......................................... 127

3.2. O espetáculo como nova temporalidade.. 133



4. Especulação................................................................................. 157

IV. Violências
1. Força, violência, inação........................................................... 171
2. Exceção revolucionária............................................................ 183
3. Revoluções críticas e espetaculares
3.1. O pano de fundo (Brasil, junho de 2013)....195
3.2. Lutas em rede........................................................ 200
3.3. Antropologia política da aposta.................... 216
4. Contra a representação.......................................................... 225

V. An-arquia, a-nomia
1. Multidão: comunidade inapropriável................................ 235
2. A ordem sagrada do nómos................................................. 259

3. A lei da selva............................................................................... 273

referências..................................................................................................... 285

Sobre o Autor......................................................................................... 306


A pr esen tação

Este livro consolida um marco no campo


atual da filosofia do direito e da filosofia política
brasileiras. Limitar-se ao dócil apontamento de
seu conteúdo, ainda que a título de apresentação,
constitui um desserviço e uma traição. Fazer-lhe
justiça é dialogar criticamente com ele, e com
isso lançar desafios também ao leitor.
  Na abertura de sua  Dialética Negativa,
Theodor Adorno escreveu: “A filosofia, que um
dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva por-
que se perdeu o instante de sua realização”. O
paradoxo contido nessa frase é lapidar e vigoro-
samente produtivo. Com efeito, para a filosofia
contemporânea, a perda do momento de sua
realização não coincidiu com sua perempção; ao
contrário, em nosso tempo, a filosofia demarca
o campo da resistência, o espaço da rebeldia,
precisamente porque não se deixa instrumenta-
lizar pelo utilitário da racionalidade estratégica
e, não servindo para nada, também não serve
a nada; portanto, emancipou-se de toda forma
de tutela. Nesse sentido, no horizonte de uma
sociedade totalmente administrada, a vitalidade
da filosofia continua ligada à utopia inscrita no
conceito kantiano de razão, no qual o filósofo foi

9
pensado como gestor dos interesses supremos
da humanidade.
É nesse sentido que o livro de Andityas
Soares de Moura Costa Matos representa uma
contribuição inestimável para a filosofia política
e a jusfilosofia, pois avança um passo no heróico
caminho rumo ao resgate da mais autêntica e
originária vocação filosófica, uma vez que parte
de uma percepção radical e verdadeira, ligada
pelo negativo à frase de Adorno acima menciona-
da. Escreve o autor: “Há muito tempo a filosofia
se tornou uma disciplina inócua que em nada se
relaciona à realidade social, limitando-se a ser
objeto de discussões acadêmicas especializadas e
desvinculadas de quaisquer práticas libertárias.”
Cabe, pois, prestar atenção cuidadosa aos
diálogos que o livro empreende, penetrar em seus
meandros, testar seus pontos de apoio, auscultar
suas palpitações, percorrer as tensões internas
e externas nos limites de suas intensidades. Ao
invés de mimetizar seus termos, convém, an-
tes de mais nada, medir a envergadura de sua
empreitada. Pois nela o autor se propõe a nada
menos do que reafirmar os compromissos origi-
nários da filosofia com a realidade social, o que
significa colocar-se à altura de fazer um diagnós-
tico da biopolítica dos nossos tempos, quando a
politização integral da vida coincide com a espe-
tacularização da sociedade, seguindo uma lógica
e uma dinâmica em que, retirado da produção
real e tornado totalmente abstrato, o capital se
volatiliza e torna-se imagem espetacular.

10
Significa também ousar reivindicar nova-
mente para a filosofia a tarefa de intervir nessa
mesma realidade sob as formas diversas da re-
sistência e pensar alternativas para o sequestro
da política e do direito pela violência e pela domi-
nação, quaisquer que sejam os disfarces em que
se transmudam suas míticas repetições.  Como
advertiu Giorgio Agamben, um dos principais
interlocutores do livro de Andityas Soares de
Moura Costa Matos, esse diagnóstico implica o
reconhecimento da indistinção entre exceção e
regra, bem como na reconstituição das vértebras
partidas do tempo, na detecção de pontos de
ruptura, assim como do espaço para o encontro
entre atualidade e tradição. Trata-se, pois, de um
tempo não cronológico, um tempo kairótico, que
Walter Benjamin denominou “tempo de agora”
(Jetztzeit), cronologicamente indeterminado, po-
dendo relacionar consigo mesmo cada instante
do passado para torná-lo uma virtualidade do
presente.
Numa carta escrita a seu colega Theodor
Adorno, Max Horkheimer comparou essa con-
cepção de tempo à temporalidade histórica plena
dos cristãos, em que cada instante contém uma
chance única, uma constelação singular entre o
relativo e o absoluto, o particular e o universal.
Essa é também a temporalidade revolucionária
em que pensa o autor deste livro: é necessário
denunciar a natureza espetacular do discurso
que a ordem repete sobre si mesma, trazendo à
luz suas fraturas e pontos fracos, o que só pode
ser feito a partir de uma concepção de história

11
descontínua, não-linear e comprometida com a
tradição dos oprimidos.

Campinas, 02 de junho de 2014.



Oswaldo Giacoia Junior

12
Pref áci o

Em junho de 2013, os ventos se levanta-


ram. As multidões brasileiras se juntaram contra
o aumento das passagens, integrando-se às lutas
nas favelas e nas florestas contra os megaeventos
e as megaobras. Todo mundo passou a se per-
guntar: de onde veio essa explosão? Foi mesmo
por 20 centavos ou foi contra a Copa do Mundo?
Foi fruto das transformações sociais do período
Lula/Dilma ou uma revolta contra esses gover-
nos? A mídia tradicional desempenhou um papel
decisivo ou, ao contrário, tal foi realizado pelas
novas formas de comunicação ligadas às redes,
inclusive as sociais? Trata-se de um debate que
só está começando, mas que já nos indica que o
movimento de 2013 (com seus desdobramentos
atuais) está constituindo novas pautas, novos
horizontes, novos tempos: uma diacronia que
abre novas sincronias. Daqui a 20 ou 30 anos
ainda estaremos envolvidos nessas discussões,
como ocorreu quando debatemos sobre a queda
do muro de Berlim ou acerca da revolução de
1968. Aliás, como em 1917 e em 1968, o levante
de 2013 está total e internamente ligado a um
ciclo global de revoluções que começou com as
primaveras árabes, foi para a Grécia e a Espanha,
passou para o Atlântico do Norte com o Occupy
norte-americano, voltou para Istambul e chegou
ao Brasil.

13
O belo livro de Andityas Soares de Moura
Costa Matos já participa desse debate, oferecen-
do-nos uma série de respostas e potentíssimas
pistas de reflexão. A primeira delas é a própria
existência desse livro, o que demonstra que por
baixo e dentro dessas mobilizações de tipo novo
há uma nova geração de lutadores e pensadores:
lutam porque pensam e pensam inovando por-
que sabem lutar. Lendo este livro entendemos
perfeitamente o que querem dizer Antonio Negri
e Michael Hardt quando afirmam que o kantiano
sapere aude precisa ser tornar também um “saber
ousar”! Andityas ousa saber e sabe ousar. Pensar
a revolução significa vivê-la, bem nos termos de
uma das epígrafes do livro, extraída do Lênin de
O Estado e a Revolução. É o método marxiano que
é aqui reafirmado: “A filosofia precisa assumir os
riscos de pensar o tempo-de-agora e contribuir
não apenas para seu desvelamento, mas também
para sua transformação”. Nesse sentido, “trata-se
antes de uma política antiestatal e anticapita-
lista que se pergunta como constituir e manter
verdadeiras comunidades multitudinárias”.
A filosofia que interessa é aquela dos novos
sans-culottes: os sem-gravata! Paradoxalmente,
os jovens que irromperam na história brasileira
como os novos sans-culottes passaram a usar
máscaras. Todavia, as máscaras que usaram
não eram as que, no teatro latino, permitiam ao
homo (sem direitos) virar pessoa, ou seja, cidadão
porque portador da máscara que lhe atribuía de-
terminado papel. As máscaras da multidão dos
sem-gravata afirmam outro tipo de “pessoa”, bem

14
nos termos ambíguos do vocábulo personne em
francês, que pode significar “pessoa” e “ninguém”.
Fala-se, então, de um processo de subjetivação
irrepresentável. Os sem-gravata de junho de 2013
se constituíram como conjunto de singularidades
que só existem na construção do “nós”, de um
uno que continua sendo múltiplo. Eles afirmaram
o direito dos pobres de fazer política sem passar
por nenhuma homologação prévia: nem aquela
do trabalho assalariado, nem aquela da nova
classe média de consumidores. É disso que nos
fala Andityas quando diz, retomando Hardt &
Negri, que hoje “não há mais qualquer vetor de
assimilação que do dois faça um”. E enfatiza: “ao
contrário, nossos tempos continuamente fazem
do um, dois; isso significa que a abertura de
sentido é incontrolada e múltipla. Daí a necessi-
dade do fundamento, entendido não como âncora
conceitual das coisas, mas sim eixo provisório
de produção da verdade”.
Esta obra propõe um pensamento novo,
radical e corajosamente inovador, aberto à in-
venção que vem de baixo. Está junto do levante
e dele se nutre. Filosofia Radical e Utopia é um
livro rigoroso, mas totalmente livre; culto mas
corajoso como os garotos mascarados que de-
cidiram colocar seus corpos nas lutas. O livro,
como outros publicados no calor do levante e na
fumaça dos lacrimogêneos, é um evento potente
que propõe importantes ferramentas para que
as lutas persistam e cheguem a radicalizar a
democracia.

15
Escrito no horizonte da filosofia do direito,
Filosofia Radical e Utopia mobiliza uma vasta
literatura: desde o debate sobre a produção da
ciência até o pós-operaísmo italiano, passando
pelo situacionismo de Guy Debord e pela antro-
pologia clastriana. Como o próprio autor escreve
em sua introdução, a pesquisa mobiliza e faz
entrecruzar, com grande originalidade, além de
clássicos da filosofia grega e romana, autores
como Karl Marx, Walter Benjamin, Giorgio Agam-
ben, Carl Schmitt, Antonio Negri, Michael Hardt,
Guy Debord, Reinhart Koselleck, Leon Trotski e
Pierre Clastres.
A diversidade das abordagens apenas en-
riquece a proposta filosófica e política que a obra
visa. O livro é composto por 5 capítulos. Os dois
primeiros introduzem o método da filosofia ra-
dical e renovam o horizonte imediato da utopia.
A filosofia só é radical quando trabalha criativa-
mente contra a prisão do método, ao passo que
a utopia é adequada a essa radicalização quando
se define como horizonte de anticampos, ou seja,
como dissolução da ideologia do progresso. Os
dois últimos capítulos (o quarto e o quinto) arti-
culam a crítica do Estado e da violência mediante
a definição de uma política da comunidade por
vir: aquela de uma multidão irrepresentável e
inapropriável, an-árquica porque seu conteúdo
potente e selvagem se renova continuamente,
nunca se deixando cristalizar e separar nas for-
mas de poder.

16
Esses cinco capítulos – cada um dele tendo
sua própria coerência – evoluem em torno do que
nos parece ser o “cerne” da proposta inovadora
do autor, aquela que encontramos na relação que
Andityas estabelece, no terceiro capítulo, entre
trabalho, espetáculo e especulação. A originalida-
de da proposta implica também uma abordagem
original da obra de Guy Debord. Como o próprio
autor declara abertamente: “Os parcos desen-
volvimentos e debates suscitados pelo magistral
ensaio-manifesto publicado em 1967 sob o título
A Sociedade do Espetáculo (La Societé du Specta-
cle) não souberam identificar aquela que é talvez
a maior contribuição que Debord deu à filosofia:
a ideia de que o espetáculo representa um novo
modelo de tempo, quer dizer, o sentido da prática
total de uma formação econômico-social.” Assim,
é no terreno da análise do tempo espetacular
que se desenvolve uma nova crítica do trabalho
e da civilização que ele implica e produz: “nesse
sentido, o trabalho se perverte ainda mais, pois
é realizado para manter-se a si mesmo. Há um
enorme contingente de pessoas que trabalha
para que... haja trabalho”. A crítica política é ne-
cessariamente uma crítica da razão ocidental. O
horizonte radicalmente não-moderno (clastriano)
constitui talvez o ponto mais alto da proposta
e ao mesmo tempo um bloqueio em relação à
necessária hibridização com a longa tradição
das lutas altermodernas contra o trabalho.
Rio de Janeiro, 14 de junho de 2014.
Giuseppe Cocco

17
I ntroduç ão

Há muito tempo a filosofia se tornou uma


disciplina inócua que em nada se relaciona à
realidade social, limitando-se a ser objeto de
discussões acadêmicas especializadas e desvin-
culadas de quaisquer práticas libertárias. Tal se
deve, em grande medida, à compreensão de seu
papel analítico, visto que a filosofia seria aplicável
ao mundo apenas a posteriori, de modo que seria
impossível uma filosofia do presente. Daí nasce
a célebre imagem hegeliana da coruja, essa ave
que sempre chega tarde, vista como símbolo da
filosofia e evocando, assim, um pensar fechado
sobre si mesmo que continuamente espera. Este
livro parte de pressupostos muito diferentes ao
entender que a filosofia precisa assumir os ris-
cos de pensar o tempo-de-agora e contribuir não
apenas para seu desvelamento, mas também
para sua transformação.
Assumir essa posição significa entender
que toda filosofia é filosofia política, estando liga-
da às condições sociais que integram o momento
presente. Todavia, o pensamento filosófico não
pode se contentar com uma imagem meramente
cronológica do tempo. Quando a tal dimensão se
agrega o fato fundante do político, está-se diante
de um tempo aberto que se expressa não apenas
enquanto realidade, mas principalmente sob a
forma da potencialidade, dando lugar à utopia.

19
Uma vez mais é preciso não se deixar levar pelo
peso da tradição: aqui utopia não significa so-
nho inconsequente ou delírio escapista, mas sim
projeto real de refundação da sociedade, baseado
nas múltiplas possibilidades que o horizonte de
indeterminação social em que vivemos abre à
prática comunitária.
Os temas discutidos neste livro dizem res-
peito a questões hoje evitadas pela “filosofia uni-
versitária”. Saber se é possível uma comunidade
humana sem divisões verticais entre oprimidos
e opressores, bem como discutir seriamente o
papel da violência revolucionária – tanto em suas
formas ativas (ocupações, manifestações, ação
dos black blocs etc.) quanto passivas (greve geral,
desobediência civil etc.) – constitui o principal
desafio de um pensar que já não pode evitar a
constatação de que vivemos sob o estado de ex-
ceção econômico permanente. Fundindo exceção
e regra, natureza e cultura, público e privado,
os poderes imperiais administram a opressão
cotidiana e afirmam que chegamos ao fim da his-
tória, motivo pelo qual só restaria às sociedades
a eterna autorreprodução de um tempo amorfo,
desconectado da memória das lutas emancipató-
rias do passado e incapaz de considerar projetos
alternativos de futuro. Para tanto, o mecanismo
global capitalista conta com três estruturas – tra-
balho, espetáculo e especulação – que garantem
não apenas sua naturalização (fazendo parecer
eterno e inevitável o que não passa de conjuntura
histórica), mas principalmente a celebração de

20
sua glória, levando-nos a acreditar que vivemos
no melhor dos mundos possíveis.
Cabe à filosofia radical enfrentar cada um
desses três desafios e propor novas formas de
produção de riquezas que não estejam conecta-
das ao trabalho, entendido como outra face do
capital e, portanto, tão opressivo quanto este. Do
mesmo modo, é necessário denunciar a natureza
espetacular do discurso que a ordem faz sobre
si mesma, trazendo à luz suas fraturas e pontos
fracos, o que só pode ser feito a partir de uma
concepção de história descontínua, não-linear
e comprometida com a tradição dos oprimidos.
Um terceiro passo no projeto de uma filosofia
radical seria desmascarar a retórica dos direitos
humanos universais que, mais do que produzir
transformações sociais efetivas, garante a con-
tínua manutenção do sistema capitalista, assu-
mindo a equação segundo a qual mais direitos
– inclusive sociais! – significa mais Estado e, por
consequência, mais violência “justificada”.
As alternativas a esse quadro discutidas
no livro passam pela construção de movimen-
tos críticos de oposição ao capitalismo global
fundados na convivência e na experimentação
horizontal, acêntrica e fluida, cuja potencialidade
se centra na categoria do comum. Só o comum
mantém as singularidades ao mesmo tempo que
proporciona o compartilhamento de projetos al-
ternativos de mundo nos quais já não é possível
a apropriação das subjetividades da multidão por
grupos econômicos isolados do convívio verda-

21
deiramente político, ou seja, feliz, para utilizar
uma velha intuição de Aristóteles.
Ainda que várias das ideias contidas nes-
ta obra se baseiem em construções de autores
como Karl Marx, Walter Benjamin, Giorgio Agam-
ben, Carl Schmitt, Antonio Negri, Michael Hardt,
Guy Debord, Reinhart Koselleck, Leon Trotski
e Pierre Clastres, devido à própria natureza de
uma filosofia que se quer radical é imprescindível
conectar criticamente essas propostas teóricas a
experiências empíricas de contestação coletiva,
motivo pelo qual diversos movimentos sociais e
experiências alternativas são debatidas, desde a
Comuna de Paris até fenômenos contemporâneas
como o Occupy Wall Street, as manifestações dos
indignados espanhóis e as Jornadas de Junho
de 2013 no Brasil.
Antes de terminar esta introdução, que
me sejam permitidas algumas palavras que a
alguns podem soar irônicas: por volta de 1635,
os franceses se encantaram com a indumen-
tária dos 6.000 mercenários croatas que esta-
vam a serviço de Luis XIV durante a Guerra dos
Trinta Anos. Eles usavam um lenço amarrado
no pescoço, que logo foi adotado pela nobreza
parisiense sob o nome de cravate, corruptela
de croat.1 De maneira quase imediata, a gravata
passou a evocar a ideia de poder. Contudo, sua
origem demonstra exatamente o contrário. Os
mercenários croatas a utilizavam como uma for-

1. CHAILLE, La grande histoire de la cravate, p. 23.

22
ca estilizada, denotando sua submissão ao rei
que, no modelo da velha soberania europeia, era
o senhor da morte de seus súditos. Não deixa
de ser um pouco cômico o fato de a gravata ter
se tornado o orgulhoso símbolo do capitalismo,
evocando luxo, elegância e trabalho de alto nível.
Todavia, mais do que força, a gravata dos nossos
executivos e advogados indica a submissão que
o sistema simbolicamente exige. Talvez por isso
os mais “livres” desse sistema comecem a abrir
mão da gravata ao mesmo tempo que exigem
que trabalhadores subalternos – seguranças,
garçons, recepcionistas, manobristas etc. – a
utilizem diariamente.
Escrevi este livro animado pela crença – ou
aposta? – de que gravatas não são necessárias.

Belo Horizonte, 23 de janeiro de 2014.

23
i

A filosofia radical e seus inimigos

“A força da destruição é uma força criadora”

M. Bakunin
1
Fun damen to ?

O que se poderia dizer da filosofia radical


é, sobretudo, aquilo que ela não é. Ela não é
filosofia descritiva, não se identifica com o pen-
sar masturbante que se demora em si mesmo e
nada tem a dizer sobre um futuro preocupado em
empilhar ordenadamente os cacos do passado,
cuja permanência no horizonte do presente as-
sim se garante para sempre. Nessa perspectiva,
a filosofia radical se insere na matriz do pensa-
mento constituinte, sempre crítico em relação
às relações de poder continuamente garantidas
pelo pensamento constituído.
Não há melhor imagem que ilustre a fi-
losofia não-radical do que aquela legada pela
tradição: a ave de Minerva. No prefácio de sua Fi-
losofia do Direito (Grundlinien der Philosophie des
Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft
im Grundrisse), Hegel explica porque a coruja é o
símbolo da filosofia: ela sempre chega por último.1

1. Considerando a importância dessa famosa passagem


para a caracterização do projeto de filosofia radical – que
caminha em sentido exatamente oposto e, vale dizer para
os hegelianos, inapropriável por qualquer dialética –,
penso que é importante transcrevê-la: “Sobre o ensinar
como o mundo deve ser, para falar ainda uma palavra, de
toda maneira a filosofia chega sempre tarde demais. En-

27
Quando todo o espetáculo do dia acabou, quando
guerras foram vencidas e outras perdidas, sob o
sol de um crepúsculo muito manso, meditativo
e burguês, vem se pôr a coruja, tudo tendo en-
xergado, tudo tendo julgado, a tudo tendo dado
sentido. A coruja viu o Espírito, a Razão, Deus;
postada nos ombros de Hegel, ela não exclamará
o nevermore do pássaro agourento de Poe, mas
o reconfortante forever de uma filosofia que só
se compromete em nada mudar, capaz apenas
de pensar dentro dos limites do que já foi dito e
feito. Uma filosofia assim se preocupa enorme-
mente com qualquer sujeirinha ou nódoa capaz
de indicar um mínimo de futuro.
N a sua décima primeira tese contra
Feuerbach,2 Marx repudia os cenários no qual o
pensar, já transformado em mera função acadê-

quanto pensamento do mundo, ela somente aparece no


tempo depois que a efetividade completou seu processo
de formação e se concluiu. Aquilo que ensina o concei-
to mostra necessariamente do mesmo modo a história,
de que somente na maturidade da efetividade aparece o
ideal frente ao real e edifica para si esse mesmo mundo,
apreendido em sua substância na figura de um reino in-
telectual. Quando a filosofia pinta seu cinza sobre cinza,
então uma figura da vida se tornou velha e, com cinza
sobre cinza, ela não se deixa rejuvenescer, porém apenas
conhecer; a coruja de Minerva somente começa seu vôo
com a irrupção do crepúsculo”(HEGEL, Linhas funda-
mentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência
do estado em compêndio, p. 44).
2. ENGELS; MARX, A ideologia alemã, p. 103. As Teses
sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach) foram publica-
das como anexo à citada edição brasileira de A ideologia
alemã (Die deutsche Ideologie).

28
mica, se torna rigorosamente inútil: os filósofos
anteriores se limitaram a interpretar o mundo,
cumprindo agora transformá-lo. Se não se pode
dizer que Marx tenha fundado a filosofia radical –
outros existiram antes dele –, é sem dúvida com
ele que tal posição ganha foros de maturidade e
autoconsciência, peso e carnadura.
Hegel via a filosofia como uma estrutura
capaz de apreender em pensamento apenas o
tempo presente, instaurando assim uma via dire-
ta que vai do real ao racional. Todas as visões de
um mundo diverso do que é são por ele rechaça-
das e tidas como meras opiniões subjetivas, dado
que a objetividade racional do que é se imporia ao
que deve-ser.3 Todavia, ao operar com as velhas
díades kantianas do ser e do dever-ser, Hegel se
esquece de uma outra possibilidade, radicada
no vir-a-ser.
O vir-a-ser expressa as potências contidas
no ser, revelando-se no processo da história de

3. “A tarefa da filosofia é conceituar o que é, pois o que


é, é a razão. No que concerne ao indivíduo, cada um é
de toda maneira um filho de seu tempo; assim a filoso-
fia é também seu tempo apreendido em pensamentos. É
tão insensato presumir que uma filosofia ultrapasse seu
mundo presente quanto presumir que um indivíduo salte
além de seu tempo, que salte sobre Rhodes. Se sua teo-
ria de fato está além, se edifica um mundo tal como ela
deve ser, esse mundo existe mesmo, mas apenas no seu
opinar, – um elemento maleável em que se pode imaginar
qualquer coisa”(HEGEL, Linhas fundamentais da filosofia
do direito ou direito natural e ciência do estado em com-
pêndio, p. 43).

29
maneira imprevisível e plural e tornando possível
que, para além da realidade e da idealidade, exis-
ta uma categoria irredutível a ambas: a utopia.
Daí porque não exista apenas um mundo que é
e a fútil imaginação que exige que ele deva ser,
mas também as potencialidades reais de seu ser.
Sem compreender isso é impossível escapar de
uma caracterização mecânica e progressista da
história, graças à qual o ser geraria continua-
mente mais ser em uma linha que vai do real ao
ideal. Debord tem razão quando diz que Hegel
não interpretava o mundo – como dizia fazer –,
mas sim sua transformação, que se daria por si
mesma, automaticamente e obediente às leis da
história e do Espírito.
A Hegel coube fazer o trabalho sujo do filó-
sofo, consistente na glorificação do que existe sob
a pressuposição de um prévio plano do Espírito
que faz o que quer e quer o que faz. Tal plano já
se apresenta de início como algo acabado, pois
sem isso seria impossível pensá-lo.4 Ao contrário,
a tarefa de uma filosofia radical só pode ser a
inversão desse caminho, transformando o pensa-
mento em realidade, quer dizer, se transforman-
do em pensamento prático.5 Para dar um único
exemplo de tal postura, seria suficiente citar O
18 Brumário de Luís Bonaparte (Der Achtzehnte
Brumaire des Louis Bonaparte), escrito por Marx
no calor do momento mediante o que Engels
chama, no Prefácio de 1885, de “compreensão

4. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 76.


5. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 78.

30
eminente da história viva em curso”, uma es-
pécie de “clarividência em relação aos fatos no
momento em que ocorrem”.6
Ainda que ambos os caminhos – o da his-
tória-plano de Hegel e o da história-prática de
Marx – possam ser objeto das mágicas da dialéti-
ca, que incessantemente converte um em outro,
fazendo o real e o racional transitarem entre si
de maneira indistinguível, importa aqui frisar o
ponto de partida que, por ser inicial, expressa um
compromisso ético-político: mudar a realidade
ao mesmo tempo que ela é compreendida. Por
isto, a filosofia radical não pode se contentar em
ser apenas uma “ontologia crítica do presente”,
para lembrar os termos de Michel Foucault.7 Se
tal ontologia tem o mérito de se contrapor ao que
Foucault chama de “analítica da verdade”, o seu
simples comprometimento com o tempo presente
e os sujeitos que o constroem são insuficientes
para dar conta da natureza transformadora e
utópica de uma filosofia da radicalidade, a qual
não tem presente (no sentido cronológico), mas é
intensamente presente (no sentido de presença).
Aqui é preciso retornar ao Marx, que, na
introdução aos Esboços da Crítica da Economia
Política (Grundrisse), deixou claro que a teoria
social precisa acompanhar as transformações

6. Prefácio de Engels à terceira edição de O 18 brumário


de Luís Bonaparte. Cf. MARX, O 18 brumário de Luís Bo-
naparte, p. 21.
7. FOUCAULT, Sobre la ilustración, p. 69.

31
sociais de seu tempo.8 Não existem teorias gerais
capazes de prever hoje e sempre o que virá, adver-
tência que pode ser levantada contra Hegel e sua
dialética, mas também contra aquela parte da
obra do próprio Marx que tende a ser dogmática
e legisladora. Não existem visões para além da
história, existem apenas visões históricas que, por
isso mesmo, assumindo a abertura, são capazes
de moldar histórias. Somente quando assumimos
o caráter aberto e cambiante do mundo podemos,
de fato, agindo nessas dimensões, modificá-lo.
Da mesma maneira, a filosofia radical pre-
cisa considerar a mudança estrutural das condi-
ções de pensabilidade do mundo não como um
limitador que a impede de traçar planos gerais,
mas como um “potencializador de potencialida-
des”. Pois fazer filosofia radical significa agora
engajar-se profundamente nas práticas sociais
sempre mutantes e carentes de qualquer fun-
damento ontológico, abrindo a história ao ines-
perado.
Mas que significa pensar o fundamento em
uma época como a nossa? Será possível, ainda
hoje e já, atingir o cerne das coisas, opor fundo
a aspecto, ser a parecer? Não estaria toda bus-
ca de uma instância não-aspectual condenada
ao fracasso? Questões assim são não apenas
preliminares, mas constitutivas de uma filosofia
radical. Se o fundamento for considerado en-
quanto um tipo de solo único do qual brotam as

8. MARX, Grundrisse, introdução, caderno M, 3, 25, in


fine (Ed. castelhana: p. 26).

32
práticas coletivas, linguísticas, políticas etc., de
nenhuma utilidade será a tentativa monstruosa
de pensar pela raiz.
As velhas ontologias da ordem se esgar-
çaram, se multiplicaram em miríades de narra-
tivas sociais altamente instáveis, insubmissas
aos padrões que antes ditavam com clareza o
que era interior e exterior, essência e aparência,
dado e construído. Ao contrário da Moderni-
dade, a pós-Modernidade – o que quer que se
entenda por esse vasto e equívoco nomen – se
caracteriza por sua feição antidialética, conforme
afirmam Michael Hardt e Antonio Negri. Não há
mais qualquer vetor de assimilação que do dois
faça um. Ao contrário, nossos tempos continu-
amente fazem do um, dois;9 isso significa que a
abertura de sentido é incontrolada e múltipla.
Daí a necessidade do fundamento, entendido não
como âncora conceitual das coisas, mas sim eixo
provisório de produção da verdade.
A filosofia radical constitui-se na dimensão
de um discurso autoconsciente capaz de se pro-
blematizar continuamente, negando a dialética
da absorção que pretende tudo conjurar e con-
centrar em si e por si. Para um discurso radical,
não há sentido nas afirmações ontologizadas
dos modernos. Trata-se de um artefato capaz de
se movimentar em cenários caracterizados pela
imanência, a singularidade e a diferença. Por
seu turno, a dialética se apresenta como lógica
central e única, dotada de um sentido racional

9. HARDT; NEGRI, Commonwealth, p. 294.

33
– e por que não dizer: europeu, branco e mascu-
lino? – que se articula mediante as ideias-chave
da dominação, superação e absorção, reduzindo
a multiplicidade das diferenças reais a oposições
binárias ideais, finalmente englobáveis em uma
ordem pretensamente unitária e artificial.10
Buscar o fundamento corresponde en-
tão a uma estratégia produtiva radical, calcada
na diferença, na hibridação e na mobilidade,
opondo-se aos tradicionais modos da Ilustração
reconfigurados pela dialética: verdade, pureza
e estase. Todavia, conforme alertam Hardt &
Negri, a mera assunção da diferença e da mobi-
lidade não é libertadora por si mesma, podendo
originar novas e mais profundas estruturas de
dominação. Basta notar que, à semelhança do
Contra-Império, o Império também lança mão de
estruturas de destemporalização, desterritoriali-
zação e miscigenação. A diferença fundamental se
põe sempre no plano da produção, tanto no que
diz respeito aos fatores materiais e estruturais,
quanto no que diz respeito à verdade.11 Nessa
perspectiva, na Crítica ao Programa de Gotha
(Kritik des Gothaer Programms), Marx sublinha
o caráter vão de todas as teorias da justiça, uma
vez que, como é inevitável, dizem respeito a regras
de distribuição de bens e males sociais, traduzí-

10. HARDT; NEGRI, Império, p. 160.


11. “La verdad no nos hará libres, pero tomar el control de
la producción de la verdad, sí. La movilidad y la hibridación
no son liberadoras, pero tomar el control de la producción
de la movilidad y la estasis, las purezas y las mezclas, sí
lo es” (HARDT; NEGRI, Império, p. 176).

34
veis na amplíssima vacuidade da fórmula milenar
do “dar a cada um o que é devido” (suum cuique
tribuere). Ora, qualquer distribuição depende
e deriva da forma de produção adotada pelos
mecanismos competentes para tanto. Discutir a
justiça sem discutir a produção é um exercício
inútil. Da mesma maneira, pensar a verdade
sem dominar sua produção não passa de mero
jogo retórico.
E o que o primado da produção sobre a
distribuição da verdade pode significar para a
filosofia oficial, essa estrutura tão desmobiliza-
dora quanto conservadora, sempre resistente
às mudanças e protetora dos santos valores do
progresso, da razão e da unidade? A essa altura
deveria estar claro que uma frase assim só pode
funcionar na dimensão da blague, já que em um
contexto antidialético a filosofia não é nada; ou
melhor, é tudo aquilo que quisermos que seja
quando a produzimos discursivamente. Isso – e
só isso – significa uma expressão como “filosofia
radical”. Tomar o controle da produção da ver-
dade filosófica equivale, portanto, a um contínuo
ato de fundação, percebendo o potencial estrita-
mente antinatural da experiência do pensar. Pois
se as coisas fossem como devessem ser, todo o
pensamento naufragaria. Fazer filosofia radical é,
como queriam os situacionistas, tornar as ideias
novamente perigosas.
A dimensão controversa, conflitiva e re-
belde da filosofia foi perdida com o passar dos
séculos. Para tanto, a filosofia foi associada a
instâncias transcendentes e fundamentada com

35
base em variadas – mas unificáveis – dialéticas
da razão. Autores como Habermas preferiram
ligar a filosofia a plexos valorativos dados e assu-
midos de partida, ainda que de caráter mínimo,
mas ainda assim incorporadores de uma série
de pressuposições “comunicativas” e “tolerantes”
que sempre se referem, por exemplo, a certa so-
ciedade organizada com base em certo direito, ou
seja, a um direito que se opõe aos não-direitos,
esses que não são morais, nem racionais ou éti-
cos e, no limite, não são cristãos, brancos, hete-
rossexuais, ocidentais e capitalistas.
Assim, um discurso sobre a radicalidade
da filosofia exige a capacidade de produzi-la sob
o signo da diferença e da vacuidade originária
do sentido, assumindo sua feição contrafática e
até mesmo lúdica. Para exemplificar tal projeto,
pode-se evocar a ideia de profanação do direito
proposta por Agamben.12 Profanar significa retirar
da esfera do sagrado aquilo que lá foi abandona-
do, reintegrá-lo ao mundo dos gestos humanos
para que, no caso do direito, a violência funda-
dora não se converta – como hoje acontece de
maneira imediata – em violência fundamental.
Um direito desativado de sua função violenta,
entregue ao gesto, sobrevivente na dimensão do
jogo ou do estudo – como no Novo Advogado (Der
Neue Advokat) de Kafka13 –, é um direito pronto

12. AGAMBEN, Elogio da profanação em AGAMBEN, Pro-


fanações.
13. Trata-se do primeiro texto do livro de contos Um Mé-
dico de Aldeia, no qual Kafka apresenta o Dr. Bucéfalo,

36
para assumir sua tarefa revolucionária, reconver-
tendo – sempre de maneira precária – dever-ser
em ser, ideal em real, jamais o contrário.
Diferentemente do que ocorre nos dias atu-
ais, o direito profanado não servirá para trans-
formar o real em ideal. Ao fazê-lo, o direito age
enquanto estrutura retórica e dissolvente da ex-
periência, ao mesmo tempo que justifica todas
as barbáries necessárias para se realizar os fins
abstratos e inalcançáveis do sistema. Por outro
lado, um direito profanado possibilitaria a passa-
gem do ideal ao real, abrindo e forçando caminhos
que vão do pensar ao fazer, como cabe a uma
filosofia radical; que é também uma filosofia do
fundamento, quer dizer, uma filosofia política no
mais alto grau, já que toma posse das instâncias
que a reproduzem.
A via a que se destina o fundamento é
então aquela que passa pelo país da utopia. Por
ela transita o direito desativado, próprio de uma
política que vem, capaz de saltar do ideal ao real,
transformando o que antes parecia resistente a
toda mudança e demonstrando que a política
não existe para servir, fundamentar, legitimar
ou homologar uma ordem dada de coisas, mas
para fundar outras e outras ordens, que encon-
trarão sua legitimidade sempre móvel no gesto
contínuo do desafio que propõe a convivência

ex-ginete de Alexandre que agora, tendo abandonado a


violência, passa tranquilamente suas horas dedicadas ao
estudo da lei. Cf. KAFKA, Parábolas e fragmentos, pp. 53-
54.

37
dos diferentes. Aqui vale com toda sua força a
percepção imanentista de Marx na sua sexta tese
contra Feuerbach, quando afirma que a essência
do homem não é algo abstrato e interior a cada
indivíduo isolado, mas sim o conjunto das rela-
ções sociais.14 Não há, portanto, uma essência ou
fundamento do homem, conclusão que vale, com
ainda mais razão, para a história dos homens,
que também deve ser compreendida a partir de
uma leitura relacional.
Pensar radicalmente contra a realidade
dada e não oferecer qualquer sentido para expli-
cá-la e torná-la aceitável; apostar em uma espécie
de roleta russa do pensar, em uma futurosofia:
eis a herança de Marx para os nossos tempos. O
comunismo, do qual ele escreveu tão pouco, é o
símbolo móvel de um futuro que ainda e sempre
não veio, mas que indica o revirar de tudo aquilo
que os dispositivos ideológicos do capital que-
rem vender como normal, a-histórico, inevitável
e final. Não apenas denunciar o projeto expan-
sionista do capital, mas profaná-lo, pervertê-lo,
reduzi-lo ao seu precário papel histórico, impedi-
-lo: é nessa tarefa que a filosofia radical encontra
seu fundamento.

14. ENGELS; MARX, A ideologia alemã, pp. 101-102.

38


2
Método?

A pergunta que Marx se coloca no início da


introdução dos Grundrisse parece ser ainda hoje
urgente e, ao mesmo tempo, carente de sentido.15
Ela diz respeito ao método. Que metodologia
deveria seguir o pensamento radical?
Marx se enreda na velha disputa entre
empirismo e racionalismo só para não responder
adequadamente a pergunta, apresentando uma
espécie de híbrido pelo qual exige que o pen-
samento parta das categorias mais abstratas e
simples e vá se enriquecendo com determinações
concretas à medida que avança no domínio de
seus objetos, produzindo o que ele chama de
“concreto espiritual”, em oposição a Hegel e sua
dialética sempre idealista. Mas se o conselho que
Marx oferece logo à frente, nesse mesmo texto,
significa algo – já o comentei acima: temos que
pensar nosso tempo com nosso tempo –, devemos
nos desembaraçar de todo o aparato metodológico
que pretende nos oferecer uma chave para o real.

15. MARX, Grundrisse, Introdução, Caderno M, 3, 21, in


fine (Ed. castelhana: pp. 20-21).

39
Isso não significa que a filosofia radical
opere caoticamente, mas sim que ela não refle-
tirá qualquer ordem pré-estabelecida, o que, no
terreno do pensamento, só pode ser o reflexo
das formas reais de dominação e limitação social
que ditam o que é “científico” e “não-científico”,
“filosófico” e “não-filosófico”, “pensável” e “não-
-pensável”. A filosofia radical só aceita métodos
que, semelhantes ao mundo em que ela aposta,
estejam em construção, presentes sob a forma de
potência utópica, nunca sub specie aeternitatis,
como exigem as metodologias tradicionais.
Todas as infindáveis e monótonas discus-
sões sobre sujeito e objeto, ruptura e tradição,
realismo e idealismo têm que ser resolutamen-
te rejeitadas por uma concepção filosófica que
pretende agir no mundo real na medida em que
o abre para algum futuro impensado. Para a fi-
losofia radical o método não é um conjunto de
regras que se assume de antemão e guia de modo
seguro e inescapável o pensar. O método é aquilo
a que se chega, o que se aprende no caminho
do pensar, o que é capaz de assumir a anarquia
que o funda. O método de uma filosofia radical
se constrói na medida em que se faz filosofia ra-
dical, dele nada podendo ser dito; ele precisa
ser experimentado. Aqui ocorre algo similar ao
paradoxo do mito da caverna, pois o prisioneiro
liberto só sabe como se libertou após estar livre.
O saber do método é um fim, não um instrumen-
to. E esse saber só pode ser real na medida em
que assume suas consequências destrutivas e
profundamente anárquicas.

40
A filosofia radical vai contra aquilo que
Paul Feyerabend chama de condição de consis-
tência.16 Em poucas palavras, trata-se de um
tipo de regra, utilizada desde a Antiguidade até
os nossos dias, segundo a qual uma teoria cien-
tífica – ou qualquer outra visão de mundo – não
pode ser formulada se entrar em conflito com a
teoria dominante quando esta consegue explicar
satisfatoriamente seu objeto. À primeira vista
pode parecer que a condição de consistência é
não apenas razoável, mas indispensável para o
pensamento científico e filosófico. De fato, que
vantagens trariam visões alternativas que con-
tradizem teorias bem sucedidas, capazes de des-
crever com perfeição a realidade?
Contudo, conforme demonstra Feyerabend,
uma teoria dominante só o é porque e enquanto
seleciona os fatos sobre os quais seu discurso se
aplica, conformando uma perfeita tautologia: é
dominante a teoria que descreve os fatos verda-
deiros e verdadeiros são os fatos descritos pela te-
oria dominante. Ao controlar o campo de análise,
a teoria dominante seleciona os fatos aos quais
se aplica e os apresenta como os únicos fatos,
impedindo um real desenvolvimento científico-
-filosófico, dado que somente a consideração de
visões alternativas poderia questionar não apenas
a teoria dominante, mas principalmente os fatos
que ela escolheu descrever. A ação crítica e ques-
tionadora, característica de visões alternativas, é
impedida de nascer pela condição de consistên-

16. FEYERABEND, Contra o método, pp. 49-58.

41
cia, que impossibilita o acréscimo de fatos novos
ao caudal aparentemente neutro da “realidade
objetiva” descrita pela teoria dominante.
Penso que a condição de consistência vi-
gora não apenas nos manuais de metodologia
científica e nas discussões de epistemologia,
mas principalmente nas percepções sobre os
problemas políticos, econômicos e jurídicos deste
mundo. É por se entender que existe uma espécie
de teoria dominante calcada no capitalismo, na
democracia representativa e nos direitos funda-
mentais que qualquer outra forma de pensar a
realidade político-jurídica é tida, já e de início,
como equivocada e quiçá criminosa. A condição
de consistência permite, no máximo, que as insti-
tuições existentes sejam reformadas, mantendo-
-se, contudo, seus fundamentos calcados na
violência, na exclusão social, na propriedade
privada, na retórica e no cinismo. Agindo desse
modo, a condição de consistência torna imprati-
cável qualquer proposta de mudanças possíveis
e necessárias que práticas político-jurídicas al-
ternativas podem efetivamente realizar.
Assim como ocorre na epistemologia, na
tessitura político-jurídica a condição de consis-
tência também declara como válidos apenas os
fatos observáveis pela teoria dominante, tornan-
do inexistentes e imperceptíveis aqueles que se
amoldam às visões alternativas. Nesse terreno, a
condição de consistência opera para naturalizar
as vivências sociais existentes, transformando
as potencialidades e as alternativas em delírios
e sonhos que não têm o direito de existir.

42
A condição de consistência funciona como
um rígido delimitador do campo do possível, ga-
rantindo que apenas o dominante e o presente
sejam também o real e o factível. Em termos se-
melhantes, Marx já criticara os “pobres homens”
completamente ignorantes da natureza maleável
do sistema econômico. A maioria “ilustrada” que
hoje defende a imutabilidade da sociedade funda-
da na pretensa eternidade do domínio capitalista,
se vivesse na época feudal ou na Antiguidade
escravocrata, afirmaria a perenidade de tais for-
mações sociais, ao mesmo tempo que denunciaria
todas as tentativas de mudanças, entendidas
como contrárias à natureza das coisas.17
Portanto, a primeira tarefa da filosofia radi-
cal é a aniquilação do princípio da consistência.
Para tanto, ela assume a pluralidade caótica não
da teoria, mas da realidade que, como disse be-
lamente Luciano Canfora, é sempre inédita em
relação ao que dela se espera.18 Uma vez con-
frontada com a acusação metodológica de ser
contraditória, a filosofia radical poderia repetir
com Walt Whitman que sim o é; e o é por abrigar
multidões.
Nenhum projeto político é impossível para
a filosofia radical, já que a possibilidade se dá na
e pela história. Sendo descontínua e não-linear,
a história não expressa qualquer necessidade,
mas abre um campo de experiências. Até mesmo

17. MARX, A guerra civil na França (primeiro rascunho),


p. 144.
18. CANFORA, Crítica da retórica democrática, p. 104.

43
o próprio Hegel admitira – certamente contrariado
– que as nações e os governos nada aprenderam
com a história, de modo que apenas decisões sur-
gidas em tempos muito específicos e peculiares
podem moldar o destino dos homens.19 A filosofia
radical não apenas aceita, mas reivindica como
seu um discurso acêntrico, contraditório e plural,
descomprometido com qualquer finalidade que
não seja abrir caminho ao diferente. Em suma,
como será visto na seção V.1, trata-se de um
projeto an-árquico, hostil a qualquer ontologia
da unidade e da ordem.
Os críticos poderiam objetar imediatamen-
te que, agindo assim de maneira tão aberta e
indeterminada, a filosofia radical corre o risco
de ser obrigada a aceitar o capitalismo como a
melhor ou a única forma de organização social
que, afinal, é possível entre homens tão maus
como nós. Sim, sem dúvida a filosofia radical
precisa aceitar essa possibilidade e levá-la muito
a sério. Mas só depois que o capitalismo tiver sido
destruído e os homens que tentaram construir
sociedades melhores falharem. Assumir antes
disso qualquer compromisso com uma ordem
de exclusão e de brutalidade tão clara como a
que vivemos significa ser não apenas um cínico
sem imaginação, mas também um covarde puro
e simples.

19. HEGEL, Philosophie der Geschichte, p. 9.

44

3
Direito s fundame n t a i s ?

Um tema apenas aflorado nas seções an-


teriores merece agora ser explorado com mais
audácia: qual é a relação entre a filosofia radi-
cal e o discurso dos direitos fundamentais ca-
racterísticos do Estado Democrático de Direito?
A resposta é simples, ainda que indigerível para
a maioria: trata-se dos dois lados das trinchei-
ras de uma relação hostil.

Cabe à filosofia radical expor as incon-


gruências das críticas internas feitas ao siste-
ma político-jurídico “democrático” que, emba-
sadas em visões morais ou apologéticas, julgam
que algo funciona mal no reino do direito e
da política e que bastaria descobrir e resolver
o problema para que o mecanismo voltasse a
funcionar. Todos os discursos que creem nos
direitos fundamentais e na suposta racionali-
dade argumentativa e/ou comunicativa como
formas de controlar o Estado-capital e prote-
ger o indivíduo-cidadão são não apenas inócu-

45
as, mas perigosas. Trata-se de visões internas20
incapazes de compreender que o próprio siste-
ma garantidor de direitos – muitos deles exis-
tentes no nível meramente retórico – é o maior
responsável por suas contínuas e necessárias
violações. Daí porque o monocórdio e sagrado
discurso dos direitos fundamentais só existe na
dimensão do Estado e do capital que os violam,
configurando-se sempre sob o pano de fundo de
uma lógica reformista cujas características são:
nunca pensar um problema até o fim, acredi-
tar no poder mágico da conjuração e, ao espe-
rar por milagres, evitar de modo covarde toda e
qualquer dificuldade real,21 tal como a consta-
tação básica segundo qual é impossível separar
opressão, capitalismo e Estado de Direito.

20. Por “teorias internas” no cenário do pensamento


jurídico-filosófico, a definição de Antonio Giménez Meri-
no me parece exemplar. Segundo sua compreensão, são
teorias “[...] que tratam de reajustar a ordem jurídica à
sociedade global sem sair da racionalidade interna deter-
minada pelo Estado representativo (trata-se das teorias
procedimentalistas, pós-posivivistas, constitucionalistas,
analíticas e deliberativas ou os vãos intentos de recondu-
zir a um fundamento unitário o magma da governança),
ao menos enquanto não subordinem suas propostas for-
mais ao fato básico de que a realidade da nova regulação
econômica mundializada – dominada por uma poliarquia
e articulada mediante as regras da governança – se im-
pôs definitivamente aos velhos mecanismos estatais de
controle jurídico que limitavam sua atuação” (GIMÉNEZ
MERINO, A crise europeia, p. 52).
21. TROTSKY, A moral deles e a nossa, p. 63.

46
As supostas conquistas em termos de di-
reitos humanos fundamentais, sejam individu-
ais ou sociais, que o liberalismo político parece
possibilitar não são capazes de ocultar o fato
inquestionável segundo o qual esse sistema exis-
te fundamentalmente para possibilitar negócios
e ganhos privados. Marx demonstrou n’O 18
Brumário de que modo a contradição entre a
forma política do liberalismo burguês – assente
em liberdades públicas e em certa ideia de de-
mocracia (ainda que limitada) – e o seu conteúdo
de dominação classista são sempre resolvidos em
favor deste último.22 Uma vez confrontado com
demandas que exigem a radicalização de seus
próprios pressupostos libertários (e contraditó-
rios com sua finalidade meramente lucrativa),
o sistema político liberal simplesmente desiste
da liberdade, sob a escusa de ser necessário se
autoproteger (de si mesmo!). A instituição que
torna isso possível é sempre a mesma: o golpe
de Estado, a exceção, a ditadura. Nas irônicas
palavras de Marx: “A sociedade é salva sempre
que o círculo dos seus dominadores se estreita,
sempre que um interesse mais exclusivo é im-
posto a um mais amplo”.23
A isso se soma o fato de que cada revolução
popular gera um novo e mais feroz recrudesci-
mento do caráter repressivo do Estado. Com
efeito, diante da necessidade de se transferir o

22. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, p. 124 et


seq.
23. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, pp. 36-37.

47
poder de um grupo da classe dominante para
outro ainda mais exclusivo, torna-se inevitável
o uso maximizado da força, única maneira de
se quebrar os pactos celebrados durante a fase
revolucionária,24 os quais se traduzem em decla-
rações de direitos e Constituições cujo destino
é a inefetividade. Ocorre, então, a normalização
da exceção e sua transformação em paradigma
de governo.
Com o aprofundamento da luta de classes,
os grupos dominantes precisam abrir mão de
quaisquer laivos ou simulacros de legalidade e
igualdade, o que, contudo, só é possível diante
de situações de anormalidade, tal como uma
guerra civil. Daí que a solução seja, para a classe
dominante, manter uma exceção permanente
que justifique respectivamente o uso cotidiano
de plenos poderes autoritários contrários à re-
tórica democrática anteriormente invocada para
justificá-los.25
Quando os direitos de igualdade e liberda-
de prometidos pelo sistema são levados a sério
e movimentos sociais se articulam para exigir
a efetivação das promessas dos Parlamentos, a
reação do capital que os sustenta determina a
criminalização desses movimentos e, no limite,
a concentração de poderes. Tal seria necessário
para salvar o Estado daqueles que, ora sob o

24. MARX, A guerra civil na França (segundo rascunho),


p. 170.
25. MARX, A guerra civil na França (segundo rascunho),
p. 171.

48
nome de comunistas, ora sob o nome de bader-
neiros, pretendem realizar as abstrações contidas
nas Constituições de Estados parlamentares
supostamente democráticos.
O erro desses movimentos intrassistêmicos
de reivindicação de direitos é deixar de perce-
ber a dimensão puramente retórica em que tais
“direitos” existem, o que pode ser comprovado
quando se nota o caráter não-conflitivo e pseudo-
-humanitário dos discursos que os embasam,
localizando-os em um limbo desgarrado das con-
dições reais de vida e da luta de classes. Trata-se
de um gesto simétrico em relação ao do burguês
democrata denunciado por Marx, personagem
que tem a presunção de estar acima de toda e
qualquer contradição de classe26 ao representar
o todo do povo homogêneo.
Devido a necessidades internas, um sis-
tema capitalista, qualquer que seja ele, mais
selvagem ou menos selvagem, não pode se fun-
dar na igualdade e na ausência de opressão de
classe. Se tais situações se verificassem fora do
domínio meramente linguístico e legitimante, ou
seja, se liberdade e igualdade fossem experiên-
cias sociais reais e compartilháveis, os negócios
em que o capitalismo se funda se tornariam im-
possíveis. Por isso mesmo não se pode realizar
qualquer modificação interna no Estado liberal-
-capitalista para “socializá-lo”, “humanizá-lo”
ou “racionalizá-lo”, sendo necessário negar e

26. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, p. 67.

49
destruir todo o sistema sem se deixar seduzir
pelas sereias do reformismo, essa espécie de
polícia política do poder econômico infiltrada no
desejo de revolução.27
A categoria “povo com direitos” só inclui os
miseráveis na dimensão retórica da fraseologia
jurídica, o que, afinal de contas, corresponde ao
mecanismo da exceção – uma exclusão inclusiva
– descrito por Giorgio Agamben enquanto estru-
tura originária do direito ocidental.28 O mesmo
gesto que protege, submete. Eis mais uma das
teses de Agamben que lhe valeu a incompreen-
são de que é alvo, já que muitos teóricos veem
no autor italiano um defensor dos regimes au-
toritários.29 Trata-se de um raciocínio tacanho
e maniqueísta, calcado em uma visão simplista

27. Nas circunstâncias muito particulares da construção


do primeiro socialismo na Rússia, Trotski dizia que “os
reformistas são a polícia política da burguesia dentro da
classe operária” (TROTSKY, A moral deles e a nossa, p.
87).
28. AGAMBEN, O poder soberano e a vida nua, pp. 25-
31.
29. Um exemplo entre muitos é a leitura reducionista e
equivocada de Agamben feita por liberais como Christian
Delacampagne. Cf. a nota que esse autor dedica ao filóso-
fo italiano, visto como um “adversário da democracia”, na
obra La philosophie politique aujourd’hui. Para uma críti-
ca a tal leitura, cf. NASCIMENTO, Estado democrático de
direito e democracia em crise. Há acusações outras, mais
densas e talvez ainda mais equivocadas, dirigidas ao
pensamento radical de Agamben. Cf., por todas, aquela
presente em DERRIDA, La bête et le souverain I, pp. 420-
421, onde se critica a distinção de Agamben entre zoé e
bíos enquanto algo pouco claro e meramente semântico.

50
de mundo, que assume a ilógica premissa se-
gundo a qual quem tem a audácia de criticar os
direitos fundamentais do homem só pode estar
do outro lado, ou seja, não pode ser senão um
representante do mais puro arbítrio e despotismo
antidemocrático.
Seguindo a mesma linha, criticar o Parla-
mento e a suposta democracia que o sustenta – e
isso apesar do inegável controle de todos seus
processos, aberta ou veladamente, por mecanis-
mos econômicos e privados não-representativos
– evoca de imediato o mal e o totalitário, postura
mental que, fundada na condição de consistên-
cia, ignora o que é diferente mediante análises
retóricas, esquematizadas e generalizantes que
só podem ser chamadas de fundamentalistas.30
Na realidade, Agamben apenas fez notar
que políticas e ordens jurídicas violentas– e,
ademais, estruturalmente incapazes de refletir
sobre essa violência – somente podem garantir
direitos e proteções igualmente violentos. Guy
Debord já notara certa tendência, presente na
sociologia norte-americana, que hoje encontra
seu exato símile nas teorias argumentativas e
hermenêuticas dominantes na teoria do direito:
trata-se de doutrinas que baseiam sua crítica ao
sistema capitalista na mera indignação moral
e na análise de dados empíricos incapazes de
revelar a verdade do objeto que pesquisam.

30. CANFORA, Crítica da retórica democrática, p. 23.

51
De fato, teorias assim não conseguem
compreender o negativo que existe no cerne do
mundo que tentam criticar, já que não encon-
tram sequer nelas mesmas a crítica que lhes é
imanente. Elas denunciam o que constitui “o
sistema”, interpretando seus aspectos sombrios
enquanto “excedentes negativos” parasitários,
sem os quais ele funcionaria muito bem.31 Trata-
-se de um expediente típico da falsa consciência
acadêmica que, ao deixar de se autoconhecer,
não pode conhecer o mundo que pretende cri-
ticar, compactuando assim com toda sorte de
reformismos, ajustes ou “melhoramentos”, firme
na noção completamente ideológica de progres-
so. Daí porque as críticas internas ao sistema,
ainda que bem intencionadas, só sirvam para
reforçá-lo. Elas jamais cogitam a possibilidade
de superá-lo em bloco, como um todo, negando
o negativo sem assimilá-lo (como na dialética) e
abrindo espaço para algo que vem. É exatamente
esse o desafio que a filosofia radical reconhece e
enfrenta.
Para melhor revelar os mecanismos da re-
tórica dos direitos fundamentais, talvez seja útil
conectá-la à discussão sobre a natureza aristo-
crática da democracia representativa, algo óbvio,
mas que quase nunca é discutido no meio polí-
tico e acadêmico. Aqui é necessário recordar os
argumentos de certo artigo um tanto cínico de
Raymond Aron, Do Caráter Oligárquico dos Re-

31. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Teses 197 e


220.

52
gimes Constitucionais Pluralistas.32 Aron admite
que, no final das contas, todo regime político
representativo, mesmo o mais democrático, é,
em certa, medida oligárquico. Dessa maneira,
a essência da política residiria no fato de que
as decisões são tomadas não pela coletividade,
mas para a coletividade, importando apenas se
os governantes conseguem justificar o uso dos
poderes excepcionais que possuem em termos de
uma exitosa contabilidade social no que tange à
relação entre benefícios garantidos e opressões
impostas. É óbvio que um autogoverno multi-
tudinário inspirado pela filosofia radical precisa
negar essa estrutura, que serve fundamental-
mente à reprodução violenta da possessividade
do nómos, garantidor do domínio dos “iguais”
sobre os “diferentes”.
Contra a possibilidade de uma democracia
radical não-representativa costuma-se afirmar
que as pessoas têm que querer ser democráticas
e que isso se mostra cada vez mais improvável
no mundo da sociedade do espetáculo, no qual
já não há convicções e o número de cidadãos
comprometidos com a política escasseia a cada
dia. Tal fenômeno decorreria, talvez como uma
espécie de inevitável efeito colateral, da estrutura
axiológica típica do Estado liberal-capitalista.
Por ter assumido a neutralidade como pro-
fissão de fé – sempre e apenas, contudo, no nível
retórico –, o Estado liberal-burguês não poderia

32. Artigo que integra ARON, Démocratie et totalitarisme.

53
exigir de seus cidadãos qualquer convicção, do
mesmo modo que estes também não o podem
fazer em relação ao Estado, que assim é aban-
donado ao seu funcionamento automático, ou
seja, ao fluxo gozoso e incontrolado da economia
financeira. Não é outro o motivo pelo qual o ca-
pitalismo se exonera de qualquer compromisso
ao afirmar que obrigar os desinteressados e os
apolíticos a participarem dos processos demo-
crático-representativos não seria mais do que
um tipo de autoritarismo. Assim, considerando
que a maioria das pessoas não quer participar da
condução de seus destinos, só restaria à minoria
a incômoda tarefa de dirigi-las. É o fardo do ho-
mem branco, diria Kipling. Mas esse argumento
não leva em consideração o caráter puramente
retórico da democracia representativa, conforme
afirmado no início desta seção.
De fato, se a democracia que temos – e
sempre tivemos – não sobrevive para além da
dimensão farsesca, não parece possível convencer
seriamente as pessoas a participarem, em espe-
cial quando elas sabem, de maneira até intuitiva,
que suas ações não influem em nada e servem
apenas para legitimar o processo de homologa-
ção pública de decisões privadas característico
da retórica democrático-representativa.
Prova disso é que o procedimento mais
característico das democracias representativas
nada tem de democrático: nas eleições não se
decide sobre projetos políticos reais que afetam
a comunidade de modo imediato; ao contrário,
simplesmente são escolhidos alguns indivíduos

54
– tidos como “os melhores” – para decidir sobre
tais projetos no lugar das pessoas. Essas são
chamadas a votar, nunca a decidir. Portanto, as
eleições são procedimentos aristocráticos; e isso
considerando a democracia representativa da
maneira mais benévola possível, ou seja, pres-
supondo um sistema puro em que os eleitores
tentam sinceramente escolher os melhores entre
eles. Nem é preciso acrescentar que, no mundo
real, raramente o melhor é escolhido. E mesmo
quando o é, isso obviamente não muda, mas
antes reforça o caráter aristocrático e desigual
do sistema eleitoral que sempre caracterizou a
democracia representativa.
Mas não apenas os procedimentos da de-
mocracia liberal são ilusórios. A sua “metafísica”,
conforme se expressa Trotski, também se funda
em realidades fantasmáticas que são frutos da
doutrina do direito natural, a qual teria secu-
larizado a ideologia cristã da igualdade formal.
Assim como a Igreja sustentava a igualdade radi-
cal de todos os homens baseando-se no conceito
insubstancial de alma e, no entanto, legitimava
na prática as mais terríveis desigualdades e pri-
vilégios, a democracia liberal e o Estado pelo qual
esta se expressa, mediante um gesto simétrico,
criam a ilusão da igualdade perante a lei usando
o conceito de cidadão – esse novo tipo de alma
– ao mesmo tempo que garantem e possibili-
tam a dominação de classe no nível da realidade
empírica.33 No mundo formal e ideal do Estado

33. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, pp. 128-129.

55
liberal, o barão de Rothschild e um trabalhador
qualquer são cidadãos iguais porque valem, cada
qual, um voto. Todavia, quando vistos sob a lente
do mundo real, das relações econômicas, dos
conflitos de classe e dos interesses, deixam de
existir dois cidadãos e a verdadeira natureza do
mundo “democrático” se impõe: a única relação
entre ambos já não é de identidade cidadã, mas
pura e simplesmente de escravidão.
Outro mito da democracia representativa
facilmente desmontável é o de que as maiorias
decidem. Desde o final do século XIX, a nascente
teoria das elites de Gaetano Mosca demonstrou
que em qualquer democracia há uma minoria
organizada que governa de facto a maioria de-
sorganizada. Diante da minoria governante, cada
homem do povo é apenas um, não uma totalidade
orgânica que possa fazer face às elites. Pouco
importa que o fundamento retórico das decisões
democráticas seja a vontade de todos, pois isso
simplesmente não existe. Convertido em parte
integrante de abstrações tão úteis ao poder como
“massa”, “nação” ou “povo”, cada indivíduo está
irremediavelmente sozinho diante da direção eli-
tista do governo, que por ser – e não representar
– uma associação real de poder, sempre domina
a decisão.34
Daí surge a aparente necessidade de uma
defesa intransigente da inclusão do diferente –

34. Mosca desenvolve essas ideias em um ensaio origi-


nalmente publicado no ano de 1896. Há tradução brasi-
leira: MOSCA, A classe dirigente.

56
leitmotiv da retórica dos direitos fundamentais
–, eis que as lutas políticas globais se dariam
hoje com base na díade exclusão/inclusão, con-
forme notou Alessandro Pizzorno.35 Todavia, em
um nível mais profundo, esse dualismo poderia
ser reconduzido aos desejos de manutenção e
mudança do sistema, pois os que são diferentes
entre si, por não terem que manter nada a não
ser essa diferença, estariam mais dispostos a
se arriscar para mudar o mundo e criar pela
primeira vez na história formas de democracia
não-oligárquicas.
Neste ponto, deve ser notado que a demo-
cracia radical – ou seja, a democracia enquanto
ideia que não se sujeita à mera redução à arena
eleitoral-representativa – se funda no desejo de
igualdade na diferença. Já se disse que a demo-
cracia tem a ver com certa impaciência quanto
aos limites que separam as pessoas e transfor-
mam umas em governantes e outras em gover-
nados. É por isso que a ideia democrática radical
desafia as hierarquias sociais e aponta para a
contínua ultrapassagem daquilo que é “natural”.
Platão já denunciara que o regime demo-
crático se transforma em tirania quando passa
a desejar no mais alto grau o bem que considera
supremo, qual seja, a liberdade. Assim, a tirania
não seria mais do que uma “democracia radical”,
quer dizer, um regime democrático levado às
últimas consequências. Mediante um curioso

35. Citado em CANFORA, Crítica da retórica democrática,


pp. 34-35.

57
mecanismo de inversão, o excesso de liberdade
democrático-tirânica se impõe quando as rela-
ções sociais deixam de ser “normais”, de modo
que, lamenta Platão, os que são submissos aos
magistrados acabam insultados como homens
servis; louvam-se os governantes que parecem
governados e os governados que parecem gover-
nantes; o pai se habitua a ter medo do filho e
este já não mais o teme e respeita, por querer ser
livre; o meteco e o estrangeiro se equiparam ao
cidadão; os professores receiam e lisonjeiam os
discípulos, que os têm em pouca conta; os velhos
passam a emular os jovens – que competem com
eles em palavras e ações – para não parecerem
aborrecidos e autoritários; homens e mulheres
comprados não são em nada menos livres que
os compradores; por fim, até mesmo os animais
se sentem livres e tomam as ruas, acostumados
a uma liberdade altiva, se arremessando contra
todos que não saiam de seus caminhos.36
Diferentemente do que pode parecer, Pla-
tão não critica, com base na antiga tradição grega
do meio-termo, a ausência de equilíbrio nas rela-
ções de poder enquanto circunstância capaz de
transformar a democracia harmônica e virtuosa
na excessiva e viciosa tirania. Ao contrário, e os
exemplos por ele citados deixam isso bem claro,
o problema é quando o princípio da autoridade
se inverte, correspondendo o comando aos sub-
metidos (governados, jovens, escravos etc.) e não
mais aos opressores (governantes, adultos, se-

36. PLATÃO, A república, 562c-563d.

58
nhores etc.). Assim, deixa de haver o imobilismo
que caracteriza o Bem no pensamento platônico
e as relações sociais passam a ser modificáveis,
indeterminadas e imprevisíveis.
Mas o que em Platão é lamento, em uma
filosofia radical deve ser fundamento. Entender
o caráter reversivo da democracia radical, bem
como seus procedimentos agônicos, significa
apostar em uma comunidade não determinada,
capaz de se refazer a cada momento em que de-
cide sobre si mesma, negando os vínculos apre-
sentados pela tradição como naturais e reconfi-
gurando continuamente as identidades. Todos
podem ser um só apenas quando o um admite
também ser todos: eu é um outro, como queria
Rimbaud.
Contudo, se a retórica democrática pode
usar esse poder de inversão próprio da ideia de
democracia radical para oprimir ainda mais e
com bons argumentos – como ocorre no caso da
mútua conversibilidade entre homem e animal,
característica de um mundo muito preocupado
com direitos ambientais, mas que pouco faz para
eliminar a pobreza humana global37 –, é preciso

37. No limite do regime “democrático” de inversão, os ani-


mais seriam tratados como homens e os homens como
animais, o que bem ilustraria a cena contemporânea em
que impera a retórica dos direitos fundamentais. Com
base neles, se protege ferozmente “a natureza”, objeto
privilegiado da tutela efetivada pelos chamados “direitos
de terceira geração”, ao mesmo tempo que parcelas cada
vez maiores da humanidade são abandonadas ao status
de coisas ou máquinas subumanas (devo essa percepção

59
reconhecer que o mecanismo de inversão não está
livre da ação imunológica do capitalismo global.
Tal mecanismo pode ser colonizado e inte-
grado ao sistema na qualidade de dispositivo que,
ao invés de garantir a multiplicidade e a desna-
turalização das identidades, age para confundir
os sujeitos uns nos outros, de maneira que seja
necessário apelar a uma instância ordenadora
unificada e “argumentativa”, o que representa
o próprio núcleo da retórica democrático-repre-
sentativa dos direitos fundamentais. Conforme
será discutido na parte V, a única arma contra
essa estratégia consiste em insistir no caráter
múltiplo, mas ainda assim singular, de forma-
ções como a multidão, a comunidade que vem
e até mesmo o indivíduo, que são sempre o que
poderiam não ser e, por isso mesmo, podem se
autogovernar, fundindo em si mesmos as duas
realidades que sempre permaneceram separadas
nas democracias representativas: comando e
obediência, poder e não-poder.

e a lembrança do trecho platônico supracitado ao Profes-


sor Doutor Alexandre Franco de Sá).

60
Ii
Utopia e história

“[...] porque o tempo está próximo”.

Apocalipse, 1:3.

1
Uto pia:
l ugar abso l u t o

Parece utópico o gesto que pretende trans-


cender aquilo que sempre foi. E se o direito se
funda enquanto ordem que garante a separação
entre oprimidos e opressores, sujeitos e objetos
da força tida por necessária para a vivência so-
cial, tentar pensar outros âmbitos em que ele
possa atuar se revela uma tarefa que flerta com
o impensável e se arrisca a cair nas armadilhas
de um discurso que não se sustenta.
A comunidade e a política que vêm de
Agamben e ninguém sabe como vêm; a violência
pura de Benjamin que aniquila toda violência
mediadora (força) e, por isso mesmo, não é pe-
rene e nem pode gerar nada, apenas um grande
e fértil vazio que não se explica; o comunismo de
Marx, projeto condenado à eterna dimensão de
projeto: todos são exemplos de formas da utopia
conforme a compreende uma filosofia radical.
Talvez a principal característica dessas
propostas seja sua comum intempestividade.
Os projetos filosóficos de Agamben, Benjamin
e Marx – todos eles incompreendidos e mesmo
ridicularizados pela filosofia oficial de suas res-

63
pectivas épocas – são travos diferentes de um
mesmo vinho. Esses autores se arriscam a pen-
sar no limite do dado e do herdado, granjeando
o desprezo fácil e o sorriso altivo daqueles que
sabem muito bem que as coisas não mudam e,
que se aceitarem – ou forem coagidos a – mudá-
-las, exigirão planos, estratégias e, é claro, lide-
ranças reais e ideais.
Mas a filosofia radical só pode viver na
dimensão da utopia que, mais do que um não-
-lugar, é o lugar por excelência: aquele que não
pode se mover de si mesmo sem se perder, e que
por isso se traduz em uma exigência absoluta:
que nos dirijamos a ele. Aqui a montanha não
vai a Maomé, como no perverso joguinho capi-
talista em que tudo é dado pronto e de bandeja,
até mesmo as resistências que se lhe opõem e
que, não por acaso, têm se mostrado há mais
de 150 anos como as mais fiéis colaboradoras
do sistema, forçando o capital a se transformar
e a aperfeiçoar seus mecanismos de domínio. É
esse, aliás, o sentido da crise do capitalismo: uma
crise que nada muda no campo da produção e,
mediante novas formas biopolíticas, redistribui
apenas fracassos por meio de discursos que pre-
gam o sacrifício das populações mundiais diante
da especulação. Por outro lado, a filosofia radi-
cal quer a mudança, negando-se a contemplar
atônita o mundo que sempre se resolve em uma
cínica negação dessa possibilidade.
Talvez uma maneira interessante de co-
meçar a pensar na ideia de utopia seja vê-la, a

64
exemplo do que faz Gregory Claeys, como um
âmbito que explora as relações entre o possí-
vel e o impossível, sendo irredutível a qualquer
um desses termos.1 Nessa mesma perspectiva,
Agnes Heller afirma que a utopia não pode ser
relacionada a um lugar para o qual a humani-
dade se dirige, um sonho a ser alcançado ou
uma estação sempre longínqua em que o trem
da história aportará em um belo dia. Ao contrá-
rio, já chegamos à estação utopia, que é a (pós)
Modernidade.2 O que importa agora é pensarmos
como nos apossarmos dessa estação que, mais
do que um não-lugar – ou seja, um inalcançável
outro lugar, um indiscernível lugar diferente –, é
um lugar que concentra todos os demais, e que
por isso se abre à experiência histórica do des-
contínuo, da transformação e da alternatividade.
“Eu é um outro”: se levarmos a sério essa
percepção de Rimbaud e compreendermos que o
aqui e o agora da chamada “realidade objetiva”
envolvem várias possibilidades de retomada do
passado para a construção de futuros diferentes,
o projeto utópico radical perde seu suposto cará-
ter irrealizável e se torna obra viva e histórica. So-
mente assim se torna possível compreender que
todos os lugares são passíveis de mostração no
horizonte de uma história que está por se fazer, a
qual se revela mais forte do que o capitalismo por
envolver necessariamente mais interesses, mais
possibilidades e mais formas-de-vida. É por isso

1. CLAEYS, Utopía, p. 14.


2. HELLER, Der Bahnhof als Metapher.

65
que o capital odeia a utopia e tenta apresentá-la
como sinônimo de delírio impossível; pela sua
simples existência no campo da potencialidade,
a utopia demonstra o caráter ilusório e conven-
cional da ordem auto-apresentada enquanto algo
objetivo e irrevogável.3
George Sorel gasta boa parte das páginas
de suas Reflexões Sobre a Violência (Réflexions
Sur la Violence) de 1906 polemizando contra os
socialistas utópicos que, mais do que fazer a
revolução, prefeririam fazer “política” parlamen-
tar. Envolvido com os debates e a terminologia
de seu tempo, Sorel constrói uma imagem da
utopia que é em tudo diversa daquilo que aqui
se chama de utopia. Segundo afirma, a utopia
seria um plano imaginário baseado nas condições
econômicas atuais, razão pela qual poderia ser
decomponível em partes e realizável aos poucos,
mediante constantes acordos com o poder exis-
tente. É inclusive esse o significado geral – mas
falso – do termo que consta do Dictionnaire de
l’Académie de 1798: “plan de gouvernement ima-
ginaire”. Esse tipo de utopia criticado por Sorel
representa um mecanismo desmontável, delibe-
radamente construído para que somente algumas
de suas partes possam ser integradas em uma
legislação futura. Sua função não é modificar o
sistema existente, mas garantir ciclos de crises e
reformas. Só dessa maneira o capitalismo aceita
discutir “racionalmente” e “implementar” uto-

3. ABENSOUR, L’utopie, de Thomas More à Walter Ben-


jamin, p. 20.

66
pias. Não é por acaso que o melhor exemplo de
“utopia” apresentada por Sorel seja a economia
liberal, a qual concebe abstratamente a socieda-
de enquanto espaço redutível a tipos comerciais
puros que se auto-organizam mediante as leis
da concorrência.4
A esse tipo abastardado de utopia, Sorel
opõe o mito revolucionário da greve geral, que age
de maneira imediata e não se sujeita a qualquer
acordo ou realização parcial, sendo executável
em um agora absoluto, em sua dimensão total e
jamais compartimentalizável. Na concepção de-
senvolvida neste livro, são essas características
– imediatidade, intransigência e totalidade – que
determinam o caráter utópico, pouco importan-
do que Sorel prefira reconhecê-lo sob o nome
de “mito”, reservando o termo “utopia” para um
uso polêmico contra os socialistas parlamenta-
res “debatedores”, que ele via como traidores da
causa marxista. Tais personagens, ironiza Sorel,
dizem acreditar que em um futuro bem distante
o Estado deve desaparecer; contudo, enquanto
isso ele deve ser “provisoriamente” utilizado para
engordar os políticos.5
Um dos traços fundamentais da utopia é
sua radical incompatibilidade com o presente
naturalizado do capitalismo, que se pretende
imodificável e a-histórico. Não é necessário que
a verdadeira utopia se justifique mediante planos

4. SOREL, Reflexões sobre a violência (Carta a Daniel


Halévy, IV), pp. 49-50.
5. SOREL, Reflexões sobre a violência, IV, I, p. 139.

67
gerais, o que a encerraria nos limites do sistema
que pretende destruir e, pior ainda, nos domínios
do calculável, terreno completamente monopo-
lizado e controlado pelo capitalismo. De acordo
com a avaliação de Sorel sobre o mito, a qual
julgo aplicável às utopias, “importa muito pouco,
portanto, saber o que os mitos contêm em termos
de detalhes destinados a aparecer realmente no
plano da história futura. Eles não são almana-
ques astrológicos. Pode inclusive acontecer que
nada do que eles contenham se produza [...].”6
Ao ser potência, a utopia põe-se a salvo do
avanço do capital e de seus mecanismos “reais”
de dissuasão, apontando atrevidamente para
um futuro-presente que, se bem vistas as coisas,
pode sempre vir-a-ser. Por não se sujeitar aos
imperativos da objetividade e da racionalização,
a utopia é, literalmente, um risco incalculável
para o sistema, um perigo latente, impossível de
ser extirpado, já que faz parte da alma humana,
mesmo da mais submissa, sonhar com algo di-
ferente e melhor.
Marx disse em certa carta – citada ou prova-
velmente recriada por Sorel – que “quem compõe
um programa para o futuro é um reacionário”.7
Nessa perspectiva, nada há de mais revolucioná-
rio que as utopias, pois dificilmente elas podem
ser abarcadas por mecanismos ou dispositivos de
controle. Prova disso é que mesmo as distopias,
que nos mostram o que podemos nos tornar,

6. SOREL, Reflexões sobre a violência, IV, I, p. 144.


7. SOREL, Reflexões sobre a violência, IV, II, B, 3, p. 157.

68
caso não rejeitemos a catástrofe capitalista, têm,
talvez ainda mais do que as utopias, potencial
libertador e crítico.
Daí surge um paradoxo: para efetivamente
controlar as utopias, o “sistema da realidade”
tem que as declarar perigosamente possíveis,
tratando-as como algo real ou que pode vir a
ser real, o que já seria um modo de admitir que
a via atual não é a única, existindo muitas ou-
tras possibilidades. Todavia, é essencial para a
utopia permanecer enquanto utopia, quer dizer,
como potência-do-não. Só assim o poder não a
pode atacar e reconfigurar, transformando-a em
dispositivo ideológico, a exemplo do que ocorreu
na antiga União Soviética, onde se assistiu não
à vitória da utopia comunista, mas ao seu se-
pultamento.
Enquanto potência negativa, a utopia não
se identifica com projetos impossíveis, fabulações
ou delírios, mas sim com o remédio para a ilu-
são da realidade. Trata-se de pensar a negação
com a mesma dignidade ontológica reservada
à afirmação. Isso significa que a utopia existe
enquanto dimensão crítica do atual estado das
coisas, apontando para outras configurações que,
contudo, não têm que existir a ferro e fogo. Todas
as alternativas para as quais aponta a utopia
estão suspensas na esfera das possibilidades.
Apenas uma humanidade que diz não – ou seja,
se emancipa das ilusões do progresso, da obje-
tividade e da inescapabilidade do capital – pode
(ou não) realizar utopias.

69
Poder não realizar já é, em si, uma utopia,
opondo-se à realidade mesquinha e pretensamen-
te objetiva do capitalismo na qual poder fazer (a
possibilidade) não se dá sequer enquanto potên-
cia negativa. No “fim da história” característico do
sistema econômico capitalista, nada pode ser ou
não pode ser: tudo já é, agora e eternamente, na
tranquilidade aterradora de uma temporalidade
infinita, a-histórica, compacta e homogênea. Eis
o verdadeiro sentido das anti-utopias – que não
se confundem com as distopias – anunciadoras
do fim da história, comuns a antigos ideólogos
stalinistas e a neoliberais dos dias hoje, a exem-
plo de Fukuyama.
Ambos os grupos negam a história porque,
como demonstrou Benjamin em suas Teses, ela
é essencialmente um espaço-tempo de indecisão,
descontinuidade e perigo, abrindo a cada segun-
do uma porta estreita pela qual pode passar o
Messias,8 ou seja, a revolução total da violência
pura, já não mais comprometida com qualquer
força mantenedora do sistema. Contudo, essa
porta só pode se abrir no presente, aqui e agora.
Daí o desafio de conceber uma comunidade que
viva nesse tempo-de-agora (Jetztzeit) de que fala
Benjamin, o qual se opõe tanto ao longo presente

8. Utilizamos o texto das Teses contido na edição da


Suhrkamp de 1974 das obras de Benjamin, bem como a
tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller
inserida em LÖWY, Walter Benjamin. O texto original das
Teses é de 1940.

70
encapsulado em si mesmo (sem relação com a
experiência) quanto ao mito de uma classe de
vanguarda que, no futuro, assumirá as rédeas
do processo histórico.9
Como parece indicar a falsa etimologia
que vê na primeira sílaba da palavra proletário
um signo de seu caráter dirigido ao futuro e à
frente, essa classe não governará agora, mas em
um momento que jamais chegou, no qual seu
compromisso com o futuro se cumprirá. O que
governa o agora em nome da classe de vanguar-
da é, paradoxalmente, a sua própria vanguarda,
o partido, vanguarda da vanguarda. O partido
seria então aquela parte do povo que já é capaz
de viver o futuro no presente e, mediante a força,
impô-lo à realidade.10 Com isso, o tempo se fecha

9. Mediante um argumento calcado no mais puro e absurdo


positivismo progressista, Trotski afirma que o proletariado
tem o destino histórico – trata-se de seu direito-dever – de
vencer a burguesia, classe decadente que, tendo realizado
sua missão na história, seria inapelavelmente extinta,
ainda que tentasse sobreviver de todos os modos, atra-
sando assim a inevitável revolução socialista mundial. Cf.
TROTSKY, Terrorismo y comunismo, p. 158.
10. Essa ideia, já presente no Manifesto Comunista de
Engels e Marx, é perfeitamente clara no discurso de 27 de
novembro de 1917 que Lênin, no contexto do Congresso
Camponês, dirigiu ao Partido dos Socialistas Revolucioná-
rios de Esquerda, objetivando acabar com suas hesitações
quanto à imediata reforma agrária e os necessários con-
fiscos de latifúndios: “Se o socialismo só puder ser con-
cretizado quando o desenvolvimento intelectual de todo o
povo o tornar possível, então não teremos socialismo pelo
menos nos próximos quinhentos anos... O partido político
socialista constitui a vanguarda da classe operária; não

71
sobre si mesmo e produz apenas um retrato vazio,
revelando-se como mera sucessão e repetição de
formas tradicionais, tal como a forma-Estado em
que o bolchevismo rapidamente se converteu.
Para abrir o tempo-de-agora é preciso abando-
nar toda concepção projetiva e vanguardista.
No lugar de classes ou partidos de vanguarda,
que se fale em multidões presentes aqui e agora
nas ruas. Ao invés de projetos, que venham as
utopias. E essas são, ao contrário do que se diz,
radicalmente históricas.
Localizar a utopia na dimensão histórica
do presente e pensá-la sob o ponto de vista da
negatividade e da potencialidade não significa
privá-la da possibilidade de efetivamente realizar
grandes projetos de transformação social. Ao
contrário do que afirma T. J. Clark, que identifica
erroneamente esquerda e utopia, a política gradu-
alista dos “pequenos passos” rumo a um mundo
melhor nada tem de revolucionária. Admitindo
uma suposta natureza trágica da política – que
em nenhum momento ele define com clareza –,
Clark entende que o papel das esquerdas de hoje
se resume a organizar a crítica ao sistema global
capitalista, sem qualquer esperança de vencê-lo,
trabalhando, ao contrário, para a construção de
modificações e reformas bem precisas.11 Daí nas-

pode frear a si mesmo por causa da ausência de educação


da média das massas, e sim liderar as massas, usando os
sovietes como órgãos que adotam iniciativas revolucioná-
rias...” (REED, Dez dias que abalaram o mundo, p. 371).
11. CLARK, Por uma esquerda sem futuro, p. 52.

72
ce seu projeto de uma esquerda sem futuro, ou,
nos seus termos, uma esquerda que abra mão
de seu caráter messiânico-utópico e deixe de se
limitar a fazer previsões irrealistas e arrogantes
sobre o fim do capitalismo.12
Em todo seu ensaio, Clark afeta um ar de
superioridade que ele chama de “adulto”, em
contraposição ao caráter “infantil” das esquerdas
que denuncia, as quais estariam “esperando a
hora do recreio”, já que se limitam a uma relação
infantilizada com o futuro – exigida pelo capita-
lismo de consumo e garantida pela espetacula-
rização de todas as necessidades e propósitos
humanos13 – e abrem mão de agir no presente
imediato.14 De posse de um mal-disfarçado realis-
mo, do mais nu e cru, Clark tenta justificar sua
proposta mediante a substituição da argumen-
tação pela exemplificação e da crítica pela ironia.
Seu projeto assumidamente reformista parte da
constatação de que a “saída da modernidade”
não será apocalíptica e grandiosa, mas sim um
processo arrastado, chocante, banal e medíocre,
com o que se justificaria o papel igualmente mi-
nimalista que ele reserva às esquerdas.15
Todavia, um pensamento atual que se pre-
tenda crítico não pode trabalhar com categorias
perfeitamente sem sentido, tais como o são “es-
querda” e “direita”, signos de uma bipartição

12. CLARK, Por uma esquerda sem futuro, p. 18.


13. CLARK, Por uma esquerda sem futuro, pp. 33-34.
14. CLARK, Por uma esquerda sem futuro, p. 67.
15. CLARK, Por uma esquerda sem futuro, p. 12.

73
ideológica que já não é funcional e nem esclare-
cedora, seja na teoria ou na prática. A insistência
em ressuscitar esses cadáveres, ainda que para
queimá-los em efígie, como o faz Clark, só pode
levar a uma enorme confusão, cujos traços mais
característicos residem na redução da utopia à
esquerda e no empobrecimento da compreensão
da dimensão do tempo, apresentado como pura
compartimentalização historiográfica e não reali-
dade ontológica total, resistente a toda separação.
Aferrado a um racionalismo realista pretensioso,
Clark se mostra incapaz de reconhecer o tempo-
-de-agora, bem como o caráter indeterminado da
política que, trágica ou não, sempre se mostra
na irredutibilidade de uma aposta.
Porém, para além do caráter estetizante
de seu ensaio, Clark acerta ao localizar a radi-
calidade no presente. Mas isso não significa que
devamos, como ele faz, nos comprometermos com
a versão de presente que o capitalismo apresenta,
a-histórica e invencível, à qual só poderíamos
opor pequenos projetos reformistas que, por isso,
seriam as ações verdadeiramente “revolucioná-
rias” do nosso tempo. Ao contrário, a radicalidade
do presente é um índice da abertura da história,
o que permite a transformação messiânica, utó-
pica e radical no agora. Para compreender isso,
precisamos entender antes o que é a história em
uma perspectiva filosófica radical.

74
2
C rise e tempo -de-a g o r a

A filosofia radical é o pensar da crise. Não


no sentido que Koselleck dá ao termo, retirando-
-lhe toda significação verdadeiramente inaugural
e originária contida no vocábulo grego kríno,
que se relaciona às ideias de corte, separação e
decisão. Para Koselleck, toda a história da tem-
poralidade moderna corresponde à história da
crise, dado que vivemos em um longo presente
incapaz de conectar as experiências do passado
às expectativas do futuro com o objetivo de criar
sentido histórico. A Modernidade começa quando
essa possibilidade falha, mostrando-se enquanto
estrutura intrinsecamente instável que se põe em
jogo ao se reestruturar de modo contínuo e cíclico
sob as formas-tipo do nascimento-destruição-
-morte-regeneração.
Daí que Koselleck conclua ser a crise o
especial modo que a Modernidade inventou para
se descrever e, portanto, se autoconhecer,16 de-
nunciando uma espécie de inflação no conceito

16. Da ampla obra de Koselleck, conferir ao menos Kritik


und Krise e Vergangene Zukunft.

75
de crise, que gera como resultado paradoxal seu
completo esvaziamento. Na Modernidade, tudo
sempre esteve em crise. Com sua expansão se-
mântica, a crise chega a não significar nada e
se torna “normal”. Mas uma crise permanente
perde todo seu potencial. Negando a si mesma
seu caráter de aposta, ela se mostrando como di-
nâmica que favorece a manutenção do jogo entre
as “forças dialéticas” que perpassam a realida-
de e mantêm tudo como sempre esteve. Contra
essa crise normal que se chama Modernidade,
a filosofia radical prepara uma verdadeira crise,
ou seja, um evento que, além de imprevisível e
improvável, é incontrolável e fundador de mundo,
jamais mantenedor.
A filosofia radical não está preocupada em
descrever a crise ou “normalizá-la” – ainda que
criticamente, como Koselleck tenta fazer –, mas
sim em produzi-la, negando-se decididamente a
discutir “alternativas” para as supostas “crises
reais”, que não são mais do que mecanismos de
acomodação do sistema econômico-social-sub-
jetivo característico da Modernidade capitalista.
Contra a crise estrutural, a filosofia radical pro-
põe a produção da crise desestruturante, aberta
e indigerível.
Por isto mesmo, a filosofia radical não pode
se contentar com planos ou leis gerais – sejam
elas jurídicas, metafísicas, racionais ou econô-
micas – que apontem para a autossuperação do
capitalismo. Isso nunca vai acontecer. Benjamin
sabia que o Messias só virá se abrirmos caminho
para ele, se ousarmos atravessar a porta que,

76
estando diante da lei, a transforma em barreira
instransponível, naturalizando a historicidade do
mundo e das lutas sociais de maneira artificial,
fazendo parecer que aquilo que é deve eterna-
mente ser.
Benjamin diz integrar uma “geração de
vencidos”. Seu papel para a história é funda-
mental. Só pode ser vencido aquele que lutou e,
portanto, não aceitou a inevitabilidade do real.
Talvez por isso Benjamin faça questão de afirmar
que, ainda que derrotada, sua geração é dotada
de uma “fraca força messiânica” (Tese II). Mesmo
fraca, uma força é uma força. Talvez essa fraca
força messiânica não seja potente para mudar o
mundo, mas sem dúvida pode acelerar o tempo
das transformações, ainda que o custo seja exa-
tamente a produção de uma geração de vencidos,
que ao não esperar o Messias, o presentificou na
derrota que prenuncia sua vinda.
A estrutura do raciocínio benjaminiano é
cabalística, podendo ter sua origem rastreada
na obra de Franz Rosenzweig, para quem, sem
a antecipação da vinda do Messias e a tentati-
va de fazê-la real aqui e agora, não há futuro
de verdade, apenas um passado que se projeta
adiante de modo infinito e anódino.17 De manei-
ra muito similar, o desejo de mudança política
que se adia para amanhã não engendra futuro e

17. ROSENZWEIG, L’étoile de la redemtion, pp. 268-269.


Devo a Michael Löwy essa certeira aproximação entre o
pensamento de Rosenzweig e o de Benjamin. Cf. LÖWY,
Rédemption et utopie e Walter Benjamin.

77
nem qualquer (re)localização, apenas deslocaliza
e destemporaliza, servindo para naturalizar a
precariedade do tempo histórico em uma line-
aridade avessa à crítica e ao tempo real, que é,
desde sempre, o tempo em que se pode fazer a
revolução, o tempo em que tudo pode mudar, o
tempo verdadeiramente histórico.
Com Heródoto, a história surge no Ociden-
te enquanto narrativa, rememoração e acidente.
A historía não se refere às grandes constantes e
leis gerais dos filósofos e cientistas pré-socráticos
e nem se confunde com o mito; ela pretende fazer
as gerações humanas se lembrarem de algo até
então impossível: um punhado de gregos afrontou
e venceu o poderoso império persa.18 Heródoto
sabe que se esse feito não for constantemente
narrado, se tornará impossível de novo. Só muito
tempo depois essa propensão originariamente
revolucionária da história, calcada na ruptura
do já estabelecido e do previsível, se abastardará
ao se traduzir sob a fórmula escolar da história
magistrae vitae, que vê no passado um campo
fechado e repetitivo dotado de leis lineares e ge-
rais, com o qual os homens devem aprender para
evitar hoje os erros de ontem. Todavia, o passado
só pode comparecer no presente e ser citável,

18. Assim se inicia a obra de Heródoto: “Esta é a exposição


das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para que os
feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem
fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas
realizadas quer pelos Helenos, quer pelos Bárbaros; e
sobretudo a razão por que entraram em guerra uns com
os outros.” (HERÓDOTO, Histórias, I, 1)

78
no sentido benjaminiano, quando as gerações
humanas compreenderem que a única forma de
rememoração é a atualização, tendo por pano de
fundo uma temporalidade em constante ruptura,
sempre aberta, irrepetível e, por isso mesmo,
entregue a si mesma em uma dimensão propria-
mente transformadora, feita de gestos humanos
e não de finalidades pré-concebidas.
Viver o tempo-de-agora não significa ape-
nas rememorar o passado, mas experimentá-lo
enquanto presente, entendendo que as lutas
emancipatórias de ontem permanecem vigentes
até hoje, já que todas foram irrealizadas, quer
dizer, vencidas. Os revolucionários do passado
só puderam sonhar com outra sociedade porque
acreditavam ser possível algo diferente, enten-
dendo, como diz Paulo, que o tempo está próxi-
mo. Se falharam, isso só pode significar que o
tempo-de-agora em que viveram – e lhes tornava
verossímil a visão da revolução – nos foi conferido
como uma missão. Entre as gerações passadas
e a nossa existe então um encontro secreto, dirá
Benjamin na Tese II. Viver no tempo-de-agora
exige a retomada das lutas de libertação que
conformam a tradição dos oprimidos. Elas não
estão mortas no passado, mas presentes en-
quanto futuro, não apenas potencial, mas real
e atual.
Curiosamente, essa concepção de Benja-
min parece guardar alguma relação com certa
característica muito própria da língua hebraica,
que não se declina por tempos, mas por modos,

79
possuindo certas formas verbais que indicam
ao mesmo tempo passado e futuro. Segundo
Leminski, essa característica do hebraico foi es-
sencial para os profetas do século VII a.C., que
viviam em um extratempo, colocando no mes-
mo nível as coisas que foram e as que serão.
Só assim se cumpre a profecia, mediante uma
recusa total do presente de dor e humilhação e
uma rememoração que se cumpre em um futuro
imediatamente vivenciável: apokatástasis pánton,
que significa restauração e subversão de todas
as coisas.19
Benjamin faz um uso revolucionário da
linguagem, assim como fizeram, em certa medida,
os profetas hebraicos e, na tradição cristã, Paulo
e João. Nessa língua utópico-revolucionária é
impossível exprimir os gradualismos e os pactos
reformistas que caracterizam a temporalidade
“normal” do capitalismo. O que já foi, não apenas
será ou é, mas já é enquanto futuro pretérito.
Quem vive no tempo-de-agora não se preo-
cupa em erguer estátuas e garantir a lembrança
das gerações que foram, estando antes compro-
metido com a continuação das lutas pela liberta-
ção, que devem ser reiniciadas a partir do exato
ponto em que pararam. Assim, por exemplo,
mais do que chorar lamuriosamente os mor-
tos das ditaduras latino-americanas, levando a
experiência revolucionária a se autolimitar ao
mergulhar em um aspecto puramente cronológi-

19. LEMINSKI, Vida, p. 167.

80
co – ou necrológico – da memória, cabe a nossas
sociedades reavivar o projeto de fundo que ins-
pirou aqueles que se levantaram contra o poder
arbitrário, acreditando, como eles acreditaram,
que outra sociedade diversa do capitalismo é
possível. Possível aqui e agora, não apenas no
passado, não apenas em um futuro distante, mas
em um passado que é futuro. Porque o tempo
está próximo.
Se até Marx a história ainda poderia ser
vista como algo substancial, que encerra certos
desígnios, leis e destinos necessários, com Ben-
jamin ela se torna pura narrativa, desvestida de
qualquer caráter soteriológico. E como qualquer
narrativa, a história é ideológica, refletindo os
pontos de vista daqueles que dominam a pro-
dução da verdade. Um exemplo esclarecedor é
oferecido por Edmund Wilson. Todos sabemos
acerca dos horrores praticados no Terror de Ro-
bespierre, divulgados com riqueza de detalhes
pela historiografia oficial, interessada em con-
denar a violência que seria intrínseca a todo
movimento revolucionário e contestatório. Mas
poucos sabem que, para destruir a Comuna de
Paris, o regime de Thiers – que nada tinha de
revolucionário – prendeu, exilou e matou em uma
semana cerca de cem mil pessoas, muito mais do
que o governo de Robespierre fez em três anos.20
Então se percebe claramente que não há
uma única História, assim como não há uma ver-

20. WILSON, Rumo à estação Finlândia, p. 272.

81
dade e um Deus, essa substância transcendente
que impossibilita o devir (e o seu relato) porque
tem tudo dentro de si, à semelhança do Ser de
Parmênides. É apenas a partir da morte de Deus
que se pode pensar o movimento, a mutabilida-
de, a diferença e a pluralidade. Tal dá origem a
várias e diversificadas histórias que lutam entre
si para se tornarem oficiais, ou seja, objetos de
culto e sacralização; elas pretendem retomar
o lugar vazio do absoluto deixado por Deus e
ocupá-lo com a História. Contra essa tendência
Benjamin prepara uma verdadeira laicização da
história, abrindo-a ao mundo do humano e à
sua pluralidade constitutiva, sua insignificância
estrutural que, paradoxalmente, é a única fonte
de sentido histórico, agora compartilhado e dis-
putável e não mais imposto do alto dos altares
do Saber, da Verdade e da Autoridade.
Contudo, isso não significa, de modo al-
gum, retirar da história os seus poderes. Ao con-
trário, uma história liberta das leis de desen-
volvimento, dos planos gerais e das constantes
destinais é uma valiosa arma de combate. Em
sua vacuidade ontológica, a história aberta de
Benjamin representa mais do que uma história
que sempre pode ser construída diferentemente:
é também uma história que pode ser descoberta e
recontada, demonstrando a profunda vinculação
entre as lutas de ontem e as de hoje, integrando
uma contra-tradição – a tradição dos oprimidos
– capaz de mostrar que se as coisas são assim,
não têm que necessariamente ser assim.

82
A história-narrativa de Benjamin se abre
tanto para o passado – selecionando momentos
específicos que irão conformar a tradição dos
oprimidos – quanto para o futuro, demonstrando
que nada é para sempre e tudo pode ser mudado.
Nesse sentido, a visão de Benjamin possui as
virtudes capazes de superar o “longo presente” do
espetáculo, ou seja, a temporalidade dos nossos
dias de crise, incapaz de conectar a vivência do
agora com a experiência do passado e a proje-
tividade do futuro, tema que será retomado na
subseção III.3.2.

83
3
A n ticampo:
antídoto para a
dialética do prog r e sso

Montesquieu e Gibbon explicaram a deca-


dência e a queda do Império Romano, conside-
rando que nenhuma instituição humana pode
governar um tempo e um espaço ilimitados.21
Ainda que a Ilustração de que ambos são repre-
sentantes esteja definitivamente sepultada, essa
ideia parece ser aplicável à realidade em que
vivemos. Se o capitalismo – que é obra humana
e não dom natural, o que basta para ser supe-
rado – se especializa hoje em explorar a partir
do não-lugar e mediante uma temporalidade que
contém todo e nenhum tempo, cumpre à filosofia
radical aprofundar essa contradição intrínseca
ao sistema, levando-o à explosão. Dessa manei-
ra, a tarefa de tal filosofia só pode ser pensar o
não-lugar da utopia na mesma medida que o
constrói, o que significa abrir mão do papel de
mediadora entre idealidade e realidade. Somen-
te assumindo sem fissuras ou resíduos o plano
da imanência e desconsiderando o vão discurso

21. Cf. HARDT; NEGRI, Império, p. 393.

85
das “possibilidades reais” é que a filosofia pode
funcionar como uma máquina produtora de no-
vas subjetividades, reproduzindo anticampos no
espaço social.
Se, como quer Agamben, o campo é a es-
trutura de deslocalização por excelência da qual
emerge a vida nua do homo sacer, o limiar entre
a vida politicamente qualificada (bíos) e a vida
em seu sentido mais geral (zoé), torna-se neces-
sário compreender que tal só é assim porque,
sendo um não-lugar, o campo se retira de todos
os lugares para se afirmar enquanto limite inul-
trapassável das democracias ocidentais, que se
pretendem “humanitárias”, mas cujo produto é
sempre a sujeição do corpo tornado sacro.22 Nessa

22. Eis a definição de Agamben: “Se isto é verdadeiro, se a


essência do campo consiste na materialização do estado de
exceção e na conseqüente criação de um espaço em que a
vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção,
deveremos admitir, então, que nos encontramos virtual-
mente na presença de um campo toda vez que é criada
uma tal estrutura, independentemente da natureza dos
crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua
denominação ou topografia específica. Será um campo
tanto o estádio de Bari, onde em 1991 a polícia italiana
aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos
albaneses antes de reexpedi-los ao seu país, quanto o
velódromo de inverno no qual as autoridades de Vichy
recolheram os hebreus antes de entregá-los aos alemães;
tanto o Konzentrationslager für Ausländer em Cottbus-
-Sielow, no qual o governo de Weimar recolheu os refu-
giados hebreus orientais, quanto as zones d’attente nos
aeroportos internacionais franceses, nas quais são retidos
os estrangeiros que pedem o reconhecimento do estatuto de
refugiado. Em todos estes casos, um local aparentemente

86
perspectiva, os anticampos surgem a partir de
uma relação de pura negação – sem possibilidade
de assimilação – com o campo, representando,
ao contrário deste, um excedente de sentido que
aponta para um mais-além, um depois-de, uma
prévia do que pode ser a superação do sistema
capitalista.
De maneira semelhante ao campo, o an-
ticampo corresponde a um não-lugar; mas não
porque se retire de todos os lugares e sobreviva
apenas como limite produtor da vida nua, e sim
porque congrega em lugares físicos e reais os
não-lugares da impossibilidade, trazendo para o
mundo do ser não mais o dever-ser de uma ordem
terrivelmente marcada pelo naturalismo e pelo
calculismo, mas o vir-a-ser, chave sob a qual se
conjugam todas as gramáticas da resistência.
Isso significa que toda situação que se opõe ao
capitalismo precisa ser, já agora, realidade e
presente, nunca mero projeto, ao contrário do
que pregavam os marxistas de primeira hora.
Além disso, o espaço do anticampo deve evitar a
todo custo que a insatisfação com o sistema se
transforme em mercadoria, ou seja, em revolta

anódino (como, por exemplo, o Hotel Árcades, em Roissy)


delimita na realidade um espaço no qual o ordenamento
normal é de fato suspenso, e que aí se cometam ou não
atrocidades não depende do direito, mas somente da civi-
lidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente
como soberana (por exemplo, nos quatro dias em que os
estrangeiros podem ser retidos nas zone d’attente, antes
da intervenção da autoridade judiciária)” (AGAMBEN, O
poder soberano e a vida nua, p. 181).

87
espetacular que utiliza os mesmos elementos
do capital para superá-lo. Se o século XX nos
ensinou algo, é que o capitalismo não será des-
truído por dentro. Só o radicalmente novo pode
desafiá-lo e, superando todas as suas formas de
previsão, controle e criação de sentido/subjeti-
vidade, levá-lo à explosão, jamais à implosão.
O delicioso vício da dialética fez pensar
durante muito tempo que o capitalismo seria
destruído por suas próprias contradições e que
o socialismo – fase intermediária para o comu-
nismo – surgiria de suas cinzas. Não só Marx e
Engels, mas também seus melhores herdeiros
fincaram pé nesta crença, tal como Lênin, que
dedica um livro inteiro, O Estado e a Revolução
(Gosudarstvo i Revoliutsiya), à discussão desse
problema. Da mesma maneira, depois de ser der-
rotado pelo stalinismo e ver a completa falência
da revolução que ajudara a realizar, Trotski se
conforta ao antever para amanhã, graças ao que
ele chama ora de “ritmo da história”, ora de “leis
da história”, a derrocada final do imperialismo.
Não sem amargura, ele reconhece que os trotskis-
tas – o que só pode significar ele mesmo, exilado
no México e prestes a ser assassinado pelo ca-
panga de Stalin – aprenderam como subordinar
seus desejos e planos pessoais à objetividade
das leis históricas de declínio e ascensão das
massas, sabendo que seus gostos individuais e
preferências morais nada podem contra a inevi-
tabilidade da história que, contudo, mais cedo
ou mais tarde, realizará a revolução exigida pelo

88
desenvolvimento histórico, ainda que contra o
poder dos mais terríveis inimigos.23
Não há dúvida de que tal profissão de fé
se nutre de um iluminismo progressista total-
mente insustentável nos dias de hoje. Nela é
característica a insistente negação de qualquer
papel da subjetividade – das paixões e dos de-
sejos – na tarefa revolucionária. Nesse ponto, a
tradição marxista que Trotski representa muito
bem está em franca contradição com teorias con-
temporâneas que pensam a revolução a partir
das subjetividades que a constroem (Hardt &
Negri, por exemplo). A exemplo de Benjamin, tais
teorias veem a revolução enquanto um evento
único e inédito, a ser realizado na história e não
pela história, a qual, em muitas partes da obra
marxiana e marxista, acaba se personalizando,
sendo apresentada ora na qualidade de agente
principal da revolução, ora enquanto força au-
tomática que inevitavelmente a produzirá.
Trata-se de um projeto que herda, por um
lado, a linearidade teleológica do pensamento
cristão, que espera pacientemente pelo Messias
sem nada fazer para trazê-lo ao mundo; por ou-
tro, revela-se como uma versão mais refinada
da inocente crença no progresso concebida pela
Ilustração e depois abraçada pelo positivismo.
Todavia, nada nos parece mais falso do que es-
sas duas pressuposições: estruturas opressivas
de exercício e manutenção do poder só podem

23. TROTSKY, A moral deles e a nossa, p. 91.

89
reproduzir outras tantas estruturas similares;
o máximo que pode surgir das “contradições”
capitalistas é a ditadura unipartidária e tecno-
crática de uma máquina de força semelhante à
União Soviética.
Nem mesmo Marx pôde escapar das sedu-
ções do mito dialético, essa estrutura ternária que
tem a feliz propriedade de tudo englobar, tudo
melhorar, tudo explicar, e que encontra seus
antepassados na trindade cristã e no triângulo
mágico dos pitagóricos. Como Edmund Wilson
expõe de maneira bem humorada no delicioso
Rumo à Estação Finlândia (To the Finland Sta-
tion), é quase impossível para um filósofo alemão
resistir às abstrações de sua filosofia nacional
escrita com respeitáveis substantivos de iniciais
maiúsculas, que parecem incorporar toda a Subs-
tância do Mundo, mas soam ridículos e grotescos
quando traduzidos para outras línguas. Esses
belos substantivos – prossegue Wilson – dão a
impressão de serem deuses primitivos e essen-
ciais, seres puros e abstratos.24 Na realidade, são
apenas estruturas linguísticas que tornam pos-
sível à filosofia alemã se afastar continuamente
da realidade, mantendo o sentido mito-poético
com o qual o pensamento ocidental se iniciou na
Grécia pré-socrática.
Coisas como a Dialektik de Hegel só podem
servir para manter o domínio místico e espeta-
cular do pensar sobre o real. Até autores como

24. WILSON, Rumo à estação Finlândia, pp. 182-184.

90
Marx, que se pretendiam radicalmente realistas
e livres de toda metafísica, não puderam superar
o misticismo presente nas estruturas idealistas
de pensamento em que aprenderam a pensar.
Marx dissera ter invertido a posição de Hegel,
que sempre esteve de ponta-cabeça, fazendo-
-o descer das nuvens e obrigando sua dialética
idealista a sair do mundo da lua, fincando seus
pés no chão. No entanto, para quem lê Marx
com cuidado, fica claro que ele abre mão dos
Deuses apenas para entronizar a História, que
conteria em si uma lógica dialética intrínseca
capaz de levar necessariamente os homens ao
mundo comunista.
Envenenado pela dialética hegeliana, Marx
não consegue perceber que toda sua teoria eco-
nômico-social se funda em um mito sem qual-
quer comprovação empírica, ainda que muitas
vezes ele pareça se dar conta desse problema
que, contudo, nunca admitiu ou tentou resol-
ver. Por mais que a filosofia radical deva muito
a Marx, seu primeiro dever é não perder de vista
que, com seu materialismo dialético, Marx se
alinha entre os defensores do contínuo progresso
e do automatismo na história, favorecendo sua
substancialização em uma espécie de Força ou
Destino que só os convincentes substantivos
alemães podem sustentar.
O que resulta disso é um discurso uni-
forme, autocentrado e incapaz de assimilar as
brechas e fissuras que ameaçam destruir esse
Mundo perfeito no qual, no último Momento, virá
o Messias-Proletário para, por meio das “Crises”,

91
executar o Julgamento final que a História e o
Progresso exigem. Com efeito, Marx e Engels
acreditavam que a revolução só poderia surgir
depois de uma poderosa crise, quando as técnicas
e os fatores modernos de produção entrassem
em choque. Pensar assim significa enxergar o co-
munismo como etapa final que necessariamente
surgirá a partir da crise do capitalismo. Mas e se,
como vimos, a crise é natural para o capitalismo?
E se o capitalismo já é, agora e sempre, crise?
Um dos únicos pensadores do século pas-
sado a compreender o caráter ilusório do marxis-
mo progressista foi Benjamin, para quem, como
nota Michael Löwy, a revolução não é uma conse-
quência inevitável da acumulação das contradi-
ções próprias do capitalismo, nem muito menos
o resultado lógico-dialético dessas contradições.
Ao contrário, a revolução consiste em uma in-
terrupção na estrutura catastrófica do progresso
indefinido e linear do capitalismo, apontando
para uma temporalidade anômala e alienígena,
embora incrustada no tempo cotidiano. Trata-
-se da porta de abertura para um futuro utópico
que não compactua com o passado e somente
pode percebê-lo criticamente, sob a perspectiva
da tradição dos oprimidos, enquanto acúmulo
de barbárie.25
Especialmente nas suas Teses Sobre o Con-
ceito de História (Über den Begriff der Geschichte),
Benjamin parece nos alertar sobre a impossibili-
dade de se negociar com o tempo e as instituições

25. LÖWY, Walter Benjamin, p. 32.

92
capitalistas, que devem ser negadas em bloco e
sem quaisquer tergiversações. Só assim a ca-
tástrofe pode ser não detida – como no katéchon
schmittiano, mecanismo de desaceleração do fim
dos tempos –, mas definitivamente aniquilada
pelo tempo-de-agora. Trata-se de fundar um novo
agora messiânico-utópico profundamente com-
prometido com o tempo e suas descontinuidades,
constantemente falseadas e “reconstruídas” pelos
idealismos das várias filosofias da história, das
quais o capitalismo representa apenas a versão
mais conhecida.
É bem conhecido o passe de mágica dia-
lético mediante o qual todo evento excepcional
se reconduz à regular marcha do Espírito em
sua esquizofrênica autorrevelação no Ocidente,
processo que, curiosamente, nunca acaba. Hegel
interpreta as misérias da história humana sob a
chave da mais abjeta necessidade: a que obriga
a liberdade a se revelar. Com isso, chega a um
paradoxo mediante o qual a liberdade – que,
para Hegel, é a Razão, o Espírito Universal –
não pode deixar de se mostrar violentamente e,
nesse processo, arrastar povos e culturas intei-
ras para o mais profundo esquecimento, para a
mais irremissível escravidão. Mas não importa,
dirão os hegelianos, pois é preciso abandonar
as “reflexões sentimentais”26 e ver no Mal um
signo seguro do Progresso. Todavia, se até hoje
esse longo caminhar não terminou, se ainda é
e sempre será work in progress, parece legítimo

26. HEGEL, La raison dans l’histoire, p. 103.

93
concluir que a inevitável dor gerada mundo afo-
ra por tal processo também será infinita: tudo,
agora e sempre, em nome do Espírito; do Pro-
gresso que, afinal de contas, realizará, mediante
o abracadabra das contradições capitalistas, a
bela e sonhada sociedade comunista.
Na verdade, progresso infinito só pode
ser signo de submissão infinita, símbolo de um
contínuo adiamento da dignidade possível aqui
e agora em nome de uma futura, prometida e
improvável felicidade. O paralelismo mantido
entre a noção dialética de “progresso racional”
e os dogmas dos monoteísmos ortodoxos é por
demais evidente, indicando ambos a via ascética
do suportado sofrimento atual enquanto legítima
porta de acesso à perfeição futura, mas nunca
potencial, posto que, nesse último caso, seria ao
menos realizável, e não mera ideologia.
A uma concepção assim, Benjamin ob-
jetaria que a revolução não é propriamente a
locomotiva da história, como disse Marx, mas
sim os freios de emergência que a impedem de
continuar rodando.27 A transformação radical da
sociedade, complementa Horkheimer, não cor-
responde a uma aceleração do progresso, mas
a um salto para fora dele.28 Para escapar desse
horizonte limitado de pensamento, a dialética
progressista precisa ser negada, o que só é pos-
sível quando se aplica materialismo histórico ao
materialismo histórico – a expressão é de Lukács

27. LÖWY, Walter Benjamin, p. 94.


28. HORKHEIMER, L’état autoritaire, p. 342.

94
–, expurgando-o de qualquer vínculo com suas
origens ilustrado-hegelianas e impedindo assim
a intrusão do transcendentalismo, do progres-
sismo e do ortodoxismo na compreensão que a
sociedade constrói de si mesma.
Se quiser ter futuro, a sociedade futura não
pode ser futura, mas presente aqui e agora, re-
negando em bloco o sistema do capital, inclusive
suas supostas “contradições dialéticas” e formas
liberais, verdadeiros desaceleradores do tempo-
-de-agora, katéchonta que atrasam a vinda do
Messias. Trata-se de converter o impossível em
possível por meio da vivência utópica de todos os
lugares do futuro em um lugar real e desafiador.
Quando isso se realiza, está-se diante de um
anticampo, uma porção de futuro incrustada no
presente, uma localização que se rege pela des-
localização potencial exigida pelos vários locais
da utopia.
São anticampos os espaços tomados em
Wall Street pelos manifestantes do movimento
occupy, as comunidades hippies dos anos 60
e 70, a Praça Tahir no Cairo enquanto durou
a indeterminação do futuro político egípcio, as
milícias anarco-republicanas da guerra civil es-
panhola que se recusavam a ter líderes, as terras
improdutivas tomadas por trabalhadores sem
terra no Brasil, os imóveis abandonados e logo
ocupados por grupos anarquistas em Barcelona
e Atenas, entre muitos outros exemplos. Em uma
definição sucinta: um anticampo surge onde e
quando o futuro divergente da utopia se presen-

95
tifica não como projeto ou plano imaginário, mas
enquanto realidade da potência.
Por isto, a exigência de mudanças efetivas
que comumente se faz a esses movimentos não
tem sentido. Os movimentos que se organizam
sob a forma de anticampos têm gerado até hoje
poucas mudanças concretas na sociedade capi-
talista. Isso é natural se levamos em conta sua
estruturação acêntrica, sem líderes e descom-
prometida com planos fixos. Ademais, trata-se
de formações sociais absolutamente descrentes
das instituições políticas tradicionais, motivo pelo
qual não podem interagir com elas. Por fim, há
que se notar que a exigência de “produtividade
da ação social” – ou seja, a ideia de que um mo-
vimento social deve necessariamente gerar resul-
tados concretos e imediatos na sociedade – faz
parte da lógica de produção do capital,29 que não
admite qualquer inoperatividade. A inoperosida-
de dos anticampos pode ser pensada enquanto
estratégia anticapitalista de ação revolucionária
que, se não transforma a atualidade, prepara po-
tencialmente um “tempo de agora” ao subjetivar
os indivíduos enquanto entidades desejantes de
profundas transformações sociais.
É claro que os anticampos são ferozmente
combatidos pelas forças de manutenção do sis-
tema capitalista. Lançando mão de uma cruel
ironia, elas costumam trasladar os arquitetos
de anticampos para campos, como no caso dos
agricultores sem terra e dos anarquistas gregos,

29. CASTELLS, Redes de indignação e esperança, p. 151.

96
assassinados ou detidos, sem qualquer proce-
dimento minimamente judicial, em verdadeiros
campos de concentração. Isso significa que a
filosofia radical tem como uma de suas princi-
pais missões o favorecimento e a multiplicação
de anticampos, tornando a reação do sistema
cada vez mais custosa e difícil de ser justificada
pelos mecanismos ideológicos do espetáculo,
tema central do próximo capítulo.

97
Iii



aTRAVÉS DO ESPELHO:

trabalho, espetáculo, especulação

“Quando aparece a desordem, a sociedade sã pro-


cura logo, não manter a ordem, que pode ser provi-
sória ou aparente, mas atacar o mal que produziu
a desordem. A exclusiva preocupação da ordem é
um morfinismo social”.

F. Pessoa, Da República, pp. 219-220.


1
Filosofia radical é
filosofia política

Não desertar da política. Agora deve estar


claro que este é o único lema que hoje pode ter
uma filosofia que se queira radical. Pela primeira
vez na história humana, a questão do ser e de
seus modos se tornou verdadeiramente urgen-
te devido à sua possibilidade de extinção. Os
delírios metafísicos e a charlatanice intelectual
que normalmente acompanham os raciocínios
ambíguos e sinuosos da grande massa de papas
pensantes da espécie já não são apenas supér-
fluos, mas decididamente perigosos quando de
maneira direta ou indireta afastam o pensar do
único terreno que é seu, ou seja, aquele onde se
pode criar a felicidade humana. Esse é o legítimo
cenário da política.
Todo profeta é um conservador. Por mais
que queiram parecer o contrário, os que prevêem
a mudança de todas as coisas somente o podem
fazer mantendo uma relação direta com o presen-
te. Reformadores sociais só puderam pensar em
sociedades futuras maximizando as vantagens
ou as desvantagens das atuais. Até mesmo Marx

101
errou ao ver o comunismo como resultado inevi-
tável das contradições do capitalismo, propondo
o futuro com base em seu presente.
Em visões como essas, o presente se pro-
trai no futuro, arrastando-se como tempo infini-
to e permanente, sempre igual a si mesmo. Tal
parece inevitável àqueles que, de boa ou má-fé,
pretendem oferecer receitas para a construção de
sociedades futuras que, no limite, não são mais
do que versões “melhoradas” das sociedades pre-
sentes. Esse tipo de manobra é denunciado por
Benjamin no pequeno texto O Caráter Destrutivo
(Der Destruktive Charakter), no qual ele nos diz
que mais importante do que planejar o futuro é
abrir-lhe espaço; não pelo amor às ruínas, mas
pelos caminhos que elas obstruem.
Todo presente é um impedimento ao futuro
absoluto, que não depende de condições atuais
e se põe enquanto verdadeira exceção ao contí-
nuo da história, como explicitado na Tese VIII de
Benjamin. É essa a única concepção de tempo –
a de um futuro absoluto que se presentifica em
potência a cada momento do tempo-de-agora –
capaz de fazer face ao desafio político que exige
a criação de uma nova comunidade. Pois quando
nos perguntamos se é possível viver sem um di-
reito e um Estado opressores, a resposta tende a
ser um incisivo ‘‘não’’, já que sempre estivemos
mergulhados em um presente brutal.
Mas se a filosofia radical tem razão ao pres-
supor um horizonte originário de indeterminação
a partir do qual se constrói historicamente o ser

102
humano por meio de hábitos, símbolos, precon-
ceitos e significados há muito compartilhados,
é igualmente certa a possibilidade de, mediante
uma quebra do continuum do presente, fundar
novos projetos sociais nos quais o atual presen-
te seja negado e, ao final, assumido enquanto
passado absoluto, quer dizer, memória do que
fomos, sem, contudo, manter sua força opera-
tiva. Esvaziar toda a potência do passado – que
constantemente se reconverte em ato no pre-
sente, transformando as escolhas e determina-
ções sociais do antes em um agora naturalizado,
imune à crítica e à mudança, preso ao adágio do
“sempre foi assim” – é o que propõe a filosofia
política radical. Como manda sua vocação, ela
se recusa a ser razoável.
Os caminhos para alcançar tal objetivo
são muitos e, às vezes, contraditórios, indo da
violência pura até propostas de completa omis-
são e abstenção não-violenta, como será visto no
próximo capítulo. Contudo, o certo é que toda
mudança a se fazer passa necessariamente pela
criação de um novo sistema de necessidades
humanas que congregue as biológicas com aque-
las social e historicamente exigíveis.1 O mun-
do capitalista-especulativo nos faz crer que são
indispensáveis para a vida bugigangas inúteis
(eletrônicos de todo tipo) e produtos de distinção
(certos modelos de carro ou roupa, por exemplo),
produzindo assim não um homem unidimensio-

1. Sobre o tema, cf. SEMPERE, Mejor com menos, p. 8 et


seq.

103
nal como pensava Marcuse, mas um homem sem
qualidades, quer dizer, um homem adimensio-
nal. Daí porque as novas formas de comunida-
de precisam reinventar seus próprios sistemas
de necessidades tendo em vista a libertação do
homem dos macrofetiches que ele mesmo criou:
trabalho, espetáculo e especulação.
Somente assim a retórica de uma natureza
humana negativa e má, capaz de justificar por
toda a eternidade o domínio da sociedade por
meio de um direito e de uma política violenta,2
pode ser destruída. Sim, destruída e não descons-
truída, já que a desconstrução pressupõe a ma-
nutenção das mesmas peças, que serão apenas
recolocadas em posições e formatos diferentes.
Se cada peça da antiga sociedade já carrega em
si seu DNA de brutalidade e abuso, a única ma-
neira de superar esse quadro é a destruição de
toda a realidade anterior, que sobreviverá apenas
enquanto memória, quer dizer, passado absoluto
totalmente inatualizável, impotencial.
Superado o mitologema que propugna a
existência de uma natureza humana – boa ou
má –, perceberemos com clareza que o homem
não é nada, mas sempre está. Em uma socieda-
de violenta só se pode afirmar a eternidade e a
inevitabilidade da violência, que se põe enquanto
horizonte total e inescapável. O poder conforma-
tivo das crenças não pode ser subestimado. Se

2. A partir de agora uso o termo “violência” em seu sentido


comum e não tendo em vista a distinção de Sorel entre
força e violência.

104
acreditamos que o homem é um ser naturalmente
mau – e se assim ele se comporta na realidade,
referendando as teorias que o afirmam –, tal se
dá devido à limitação gnoseológica própria de
nossas sociedades, forjadas na e pela violência.
Dessa maneira, confunde-se a consequência com
a causa. Na verdade, o homem é violento porque
assim lhe foi dito que ele deve ser, não porque
ele é originalmente violento. Para manter essa
ilusão, se narra e se justifica tanto essa violência
quanto seu suposto “combate” realizado pelo
direito e pelo Estado.
O futuro absoluto é um tempo que quebrou
qualquer linha de desenvolvimento que o liga ao
nosso presente. Nesse tempo privado da narrativa
originária da violência talvez surgisse um novo
ser humano. Talvez. Trata-se apenas de uma
aposta. Mas de uma das que vale a pena, pois é
política. E toda política de verdade, exatamente
por não assumir e até mesmo por renegar a pe-
renidade do presente e o suposto essencialismo
das escolhas que o conformam, não pode ser mais
do que aposta. Sem isso é impossível encarar a
imensidão abismal do ato revolucionário que,
superando o medo sem exigir garantias de que
“tudo vai correr bem”, entende que só a revolução
autoriza a si mesma.3 Ela nunca chega cedo ou
tarde demais, mas sempre no tempo-de-agora,
no momento de perigo, indefinição e abertura

3. ŽIŽEK, Terrorismo y comunismo, de Trotsky, o deses-


peración y utopía en el turbulento año de 1920, p. 22.

105
que ela própria gera. Todo agora da história pode
ser a porta estreita pela qual entra o Messias.
Por isto, a filosofia radical precisa se con-
centrar em temas aparentemente distantes da
política entendida de “maneira clássica”, sabendo
distinguir quais são os temas centrais para uma
reflexão sobre pólis e poder no tempo-de-agora,
possibilitando assim uma política que vem na
qual a palavra “política” não seja sinônimo de
“Estado”. Trata-se antes de uma política an-
tiestatal e anticapitalista que se pergunta como
constituir e manter verdadeiras comunidades
multitudinárias fundadas em posturas existen-
ciais descentralizadoras e indeterminadas, ago-
nísticas e adversariais – mas não autoritárias,
antes que se queira chamar essa política de
“schmittiana” –, comprometidas com um projeto
radical de democracia, próprio de uma contra-
-sociedade potencial que não aceita os atalhos e
as mentiras da politicagem, sempre travestida
com o respeitável manto da democracia liberal
representativa.4 Com efeito, se adequadamente

4. “Os adquiridos civilizacionais, se os há, não podem con-


tinuar a ser defendidos com a política democrática, mas
apenas contra ela. [...] O palavreado sobre um renascimento
da política é apenas a tentativa de reconduzir a crítica do
terror económico a uma actividade de relacionamento po-
sitivo com o Estado. Auto-organização e autodeterminação
são precisamente o contrário do Estado e da política. A
conquista de espaços livres, no plano social, económico
e cultural, não se efectiva pelos atalhos, pelas portas de
serviço ou pelos becos sem saída da política, mas sim pela
via da constituição de uma contra-sociedade” (GRUPO
KRISIS, Manifesto contra o trabalho, pp. 104-105).

106
enfrentados, os temas aludidos no início deste
parágrafo podem se transformar em portas de
passagem pelas quais o Messias pode entrar.
Embora autoimplicados e indissociáveis, é possí-
vel apresentá-los de modo esquemático como os
domínios incriticados do trabalho, do espetáculo
e da especulação.
As novas subjetividades geradas pela “cri-
se” neoliberal se desenvolvem nesses três campos
e neles elas devem ser profanadas. Hardt & Negri
identificam os quatro sujeitos produzidos pelo
capitalismo em sua fase atual: o endividado, que
se sente ao mesmo tempo culpado e amedrontado
diante da realidade social hostil do mercado e
da especulação e por isso trabalha até ser con-
vertido em escravo; o midiatizado, que desiste
de compor narrativas significantes próprias e se
deixa submergir nos fluxos superficiais e desmo-
bilizadores do espetáculo; o securitizado, que não
consegue conviver com a indeterminação própria
das relações sociais e se entrega aos poderes de
exceção públicos e privados dos Leviatãs que
lhe prometem segurança em troca de liberdade;
e o representado, que abre mão da tarefa políti-
ca, se retira da esfera do comum e confia todas
as decisões a seus representantes. Ainda que
seja possível e proveitoso analisar essas quatro
figuras em si5 e, desmontando-as,6 propor um
quadro possível para o surgimento de uma nova

5. O que é feito pelos citados autores em HARDT; NEGRI,


Declaración, pp. 15-36.
6. HARDT; NEGRI, Declaración, pp. 37-54.

107
subjetividade multitudinária – o commoner ou
o ser-qualquer referidos na seção V.1 –, neste
capítulo serão debatidos os campos sociais de
subjetivação7 que as tornam possíveis, de modo
a preparar o caminho para suas profanações
mediante os anticampos que chamo de an-arquia
e a-nomia, temas do último capítulo deste livro.

7. Esses campos sociais de subjetivação são o trabalho, o


espetáculo e a especulação, como já anunciado. Há tam-
bém dois campos de subjetivação estritamente políticos,
igualmente geradores dessas quatro subjetividades sub-
missas, quais sejam, a exceção e a representação. Todavia,
por permearem todo o livro, exceção e representação não
receberam tratamento individualizado.

108
2
Trabal ho

Talvez nenhuma das ideias de Marx seja


tão criticável nos dias de hoje quanto aquela que
descreve a luta entre o capital e o trabalho, as
contradições que daí advêm e a consequência fi-
nal desse embate, qual seja, o fim do capitalismo.
Em termos teóricos, e especialmente tendo em
vista o contexto do século XIX, a tese parecia ir-
retocável: capital e trabalho, fatores de produção
opostos, são inimigos naturais e estão sempre
em conflito.
Todavia, a relação entre ambos não é equi-
librada. Por mais que o capital possa contar com
a força aparelhada do Estado para protegê-lo
e com a ideologia para legitimá-lo, ele precisa
do trabalho; do contrário, seria impossível se
autorreproduzir. Com efeito, é inimaginável um
mundo capitalista sem trabalho. Por isso, este
deve ser mantido sob controle, nunca destruí-
do. Em certo sentido, trata-se de uma relação
homóloga àquela tida por Carl Schmitt como
política por excelência. Conforme explica em O
Conceito do Político (Der Begriff des Politischen), os
amigos precisam dos inimigos para lhes conferir
identidade mediante um processo de formação

109
de consenso por exclusão, razão pela qual não
devem ser extirpados, mas sim neutralizados.
Por outro lado, o trabalho não precisa de
modo essencial do capital, sendo plenamente
possível imaginar um mundo em que haja traba-
lho, mas não capital. Aliás, é exatamente essa a
proposta de Marx, tendo em vista que a relação
de dependência que se mantém entre trabalho e
capital seria apenas conjuntural, caracterizando
uma forma de produção específica, ou seja, a ca-
pitalista. Quando o trabalho se libertar do capital,
o que se dará no comunismo, a sua autonomia
virá à tona.
Segundo Marx, a relação diacrônica entre
capital e trabalho acabaria se encarregando dis-
so de maneira quase automática. Devido à sua
própria natureza concentracionária, o capital
tenderia a formar monopólios que assumiriam a
forma de empresas planetárias. Tendo explorado
todo o mundo, o capital monopolista já não en-
contraria mercados consumidores, entrando em
colapso. Seria nesse momento que a vanguarda
proletária deveria tomar o poder e instaurar um
Estado socialista, precursor da vitória final do
trabalho sobre o capital, característica do co-
munismo.
Essa é a teoria. Contudo, no século XX a
prática foi bem diferente. A concentração do capi-
tal não ocasionou qualquer colapso, tendo antes
servido para criar novos mercados planetários e
submeter ainda mais ferrenhamente o trabalho.
Marx não poderia ter previsto o caráter virtual

110
e atemporal assumido pelo capital financeiro, o
que o torna imune às suas supostas contradi-
ções. Da mesma maneira, como visto na seção
II.2, as crises que periodicamente o capitalismo
atravessa são crises de ajuste, necessárias inclu-
sive para a manutenção do sistema. Na verdade,
a diferenciação entre normalidade e crise desa-
pareceu a partir do final do século XX, tendo o
capitalismo se revelado enquanto mecanismo que
só sobrevive na constância da crise, processo que
ativa suas capacidades virais de autoconstrução
e autorreferência. Prova disso é que após a crise
de 2008 – ainda não totalmente superada –, o
mundo se mostra “reconfigurado”, sem maiores
surpresas, como um imenso e mais perfeito me-
canismo de opressão econômica e exploração.
Em um recente estudo da OXFAM Internacional
datado de janeiro de 2014, restou demonstrado
que a metade mais pobre da população planetária
possui a mesma riqueza que as 85 pessoas mais
ricas do mundo. Nos Estados Unidos o 1% mais
rico acumulou 95% do crescimento posterior à
crise de 2009, enquanto os 90% mais pobres se
empobreceram ainda mais.8
Essas ideias parecem corretas e poderiam
ser desenvolvidas com maior rigor, mas ainda
assim não explicariam porque a suposta contra-
dição dialética entre capital e trabalho não foi
– e parece jamais poder – ser resolvida mediante
a derrocada do primeiro e a autonomização do

8. FUENTES-NIEVA, GALASSO, Working for the few, pp.


2-3.

111
segundo. Talvez a principal razão para tanto
seja que, ao invés de uma contradição intrínse-
ca, capital e trabalho mantenham uma secreta
vinculação. A hipótese é que capital e trabalho
– pelo menos o trabalho que conhecemos – são
faces da mesma moeda cujo nome é opressão.
Dessa maneira, ambos devem ser enfrentados di-
retamente e sem hesitações pela filosofia radical.9
Na lucidez que caracteriza o poeta, o pensador
Fernando Pessoa já advertira que capital e tra-
balho estão ligados de maneira indissolúvel. Só
os podem ver como coisas separadas aqueles que
têm o hábito metafísico de tomar abstrações por
realidade. Todavia, sociologicamente, ambos se
revelam enquanto as duas faces necessárias da
vida econômica.10
Ao assumir essa tese, é preciso enfrentar
desde já a crítica segundo a qual a concepção de

9. Estou de acordo com o Grupo Krisis, que é intransigente


nesse ponto: “O renascer de uma crítica radical do capita-
lismo pressupõe uma rotura categorial com o trabalho. Só
quando se estabelecer um novo objectivo de emancipação
social num plano situado para lá do trabalho e das catego-
rias fetichistas dele derivadas (valor, mercadoria, dinheiro,
Estado, forma jurídica, nação, democracia, etc.), é que se
tornará possível uma re-solidarização de nível elevado e à
escala de toda a sociedade. E só nesta perspectiva as lutas
defensivas, imanentes ao sistema, podem ser reagrupa-
das contra a lógica da lobização e da individualização; já
não numa relação positiva com as categorias dominantes,
mas numa perspectiva que proceda à negação estratégica
dessas categorias” (GRUPO KRISIS, Manifesto contra o
trabalho, p. 86).
10. PESSOA, Da república, p. 154.

112
trabalho a que ela se refere seria uma relíquia
do século XIX, completamente inadequada para
descrever o novo trabalho imaterial e biopolí-
tico, que não produz propriamente bens, mas
comunicações, afetos e subjetividades. É essa a
proposta de Hardt & Negri, que veem no traba-
lho imaterial da multidão uma forma de vencer
o Império dentro do próprio Império. O novo
trabalho imaterial exigiria colaboração, criati-
vidade e respeito às singularidades produtivas,
autonomizando-se do capital especulativo que,
ainda que assuma essas mesmas qualidades
para se autorreproduzir, não as pode controlar.
Hardt & Negri são hoje dois dos únicos
teóricos políticos que realmente apresentam al-
ternativas para a reconstrução de nossas socie-
dades, tendo ambos uma imensa capacidade de
análise combinada com uma raríssima hones-
tidade intelectual. Mas isso não os impede de,
às vezes, exagerar ou errar o alvo. Assim, a tese
que desenvolvem sobre a hegemonia e o caráter
libertador do trabalho imaterial me parece, ao
menos neste momento histórico, forçada e irreal,
não passando de uma reatualização da teoria
de Marx acerca da dependência do capital em
relação ao trabalho.
Se o capital se desmaterializou na socie-
dade pós-moderna, o mesmo teria ocorrido com
o trabalho, afirmam os autores. Todavia, isso
não é totalmente verdadeiro. O tipo de trabalho
a que Hardt & Negri se referem – próprio de pro-
gramadores, artistas, profissionais do terceiro

113
setor, professores, médicos etc. – está longe de
ser hegemônico em termos quantitativos, es-
pecialmente no Sul global, como eles próprios
admitem, muito embora insistam na superiori-
dade qualitativa do trabalho imaterial diante do
trabalho material, dado que aquele melhor se
adaptaria às características do Império.
Por outro lado, e isso é mais importante,
ainda que o trabalho imaterial se impusesse
qualitativamente enquanto modelo de futuro
para os demais tipos de trabalho, o fato é que
ele permanece submetido ao capital, servindo
não como forma de libertação, mas de submis-
são imaterial, o que é continuamente garantido
pelo espetáculo. Não é à toa que Hardt & Negri
dediquem pouquíssimas páginas de sua obra à
discussão do poder do espetáculo no contexto do
trabalho imaterial. Ao lado da especulação, o es-
petáculo garante que o trabalho – tanto material
quanto imaterial – permaneça colaborando com o
capital na manutenção de sociedades opressivas.
Somos o que fazemos, e o trabalho con-
trolado pelo espetáculo, seja de que espécie for,
ensina a obedecer à hierarquia.11 Trabalhos es-
túpidos, repetitivos e limitados, ainda que ima-
teriais, só geram cidadãos igualmente estúpidos,
repetitivos e limitados, aos quais o espetáculo
reconfirma esses mesmos valores, mantendo um
círculo vicioso de passividade e inconsciência. No
fim, valorizar o trabalho, ainda que lhe aplicando
novas características, significa se limitar a tentar

11. BLACK, La abolición del trabajo, p. 18.

114
modificar o sistema dentro do próprio sistema,
como confessam Hardt & Negri.12 Ao contrário, a
filosofia radical precisa abrir espaço para algo to-
talmente novo, externo às “circunstâncias reais”.
Toda discussão sobre o sistema político-
-jurídico-econômico atual levada a cabo dentro
desse mesmo sistema e mediante seus próprios
instrumentos é não apenas inútil, mas perigosa.
Em especial, as supostas reformas e melhorias
que o capitalismo proporcionaria no contexto do
trabalho não são mais do que novas formas de
dominação. Um exemplo extremo se relaciona
à reivindicação de mais tempo livre e horas de
descanso para os trabalhadores, o que vinha
sendo discutido em vários Estados e empresas
antes da crise de 2008, inclusive com a efetiva
adoção de políticas de diminuição das horas di-
árias e semanais de labor. Mas para que servem
essas horas livres? Em uma sociedade domina-
da pelo espetáculo e pela especulação, a que se
entregarão os trabalhadores em seus momentos
de folga, senão à contínua autopromoção dessa
mesma sociedade? Mais horas livres significa
mais servidão, diferentemente do que parece à
primeira vista, com o que se valida o princípio do
duplipensar intuído por George Orwell em 1984,
o qual consiste em se pensar o contrário do que
está sendo dito.
O trabalhador que descansa é, antes de
tudo, um trabalhador que compra, que assiste TV,

12. Esse tema ocupa toda a segunda parte de Multidão.


Cf. HARDT; NEGRI, Multidão, pp. 143-290.

115
que reforça os vínculos de servidão e que não tem
– e nem mesmo quer – outras alternativas. Em
nosso mundo, a inatividade só pode ser produto
da racionalização da produção.13 O ócio é apenas
não-trabalho pensado em função do trabalho, de
modo a preservar o empregado para ainda mais
trabalho.14 Nesse sentido, o tempo das horas
livres, do descanso semanal remunerado e das
férias não são mais que investimentos, ou seja,
especulação, jogo com o futuro; com uma única
diferença: o retorno financeiro dessa modalidade
de investimento é certa e segura.
Trata-se do “humanismo da mercadoria”,
que se projeta sobre o trabalhador para garantir
que ele seja tratado com amabilidade e huma-
nidade, ao menos enquanto representa o papel
de consumidor.15 O sistema só se perpetua se
trabalhador e consumidor se confundirem em
alguma medida. Portanto, é preciso que haja
horas vagas para tornar possível o consumo.
Paradoxalmente, o lema da sociedade capitalista
– time is money – parece contradizer essa ideia.
Mas tal não passa de uma contradição aparente.
O descanso e a desenfreada busca de ganhos
de tempo16 nos transportes ultra-rápidos, no
fast food, nos cursos de tempo reduzido – com o
que se busca limitar qualquer atividade que não
esteja inteiramente voltada para a produção e

13. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 27.


14. BLACK, La abolición del trabajo, p. 11.
15. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 43.
16. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 153.

116
o consumo infinitos – são estruturas de reforço
do espetáculo, pois inserem as pessoas imediata,
total e inconscientemente em seu interior sem
exterior. O direito ao descanso, assim como o
próprio direito ao trabalho incessante, não são
mais do que “direitos do homem espectador”, sem
os quais todo o sistema ruiria da noite para o dia.
Uma crítica radical do sistema político-
-econômico capitalista não aceita as esmolas
das horas de folga, orientando-se antes contra a
própria ideia de trabalho. Essa é inclusive uma
das tarefas dos anticampos comentados na seção
II.3, os quais podem se revelar enquanto espaços
nos quais inexiste trabalho e a produção se dá
apenas para atender às necessidades daqueles
que produzem.
Para que produzir mais do que se neces-
sita? Se as pessoas não conseguem responder
claramente a essa pergunta, entendendo que as
necessidades são infinitamente maleáveis, tal
se deve, como será demonstrado na seção III.3,
ao poder do espetáculo. Por agora basta dizer
que a função do espetáculo é dirigir as pessoas
para objetivos inofensivos, transformando-as em
átomos consumidores. Agindo como obedientes
instrumentos de produção, os indivíduos sub-
metidos ao espetáculo se isolam, tornando-se
incapazes de qualquer contato humano verda-
deiro, dado que a compreensão do que vem a ser
uma vida digna é algo completamente alheio aos
padrões espetaculares. Por isso mesmo, as pes-
soas capturadas pelo dispositivo espetacular são

117
especialmente devotas do capital, profundamente
gratas aos seus patrões por ao menos terem um
emprego, quando o têm.17 Tais características são
as consequências diretas do modo de reprodução
espetacular assumido na contemporaneidade:
ainda aqui, dominar a verdade significa dominar
sua produção.
A essa altura deveria estar claro que uma
sociedade do trabalho é uma sociedade da opres-
são e, como tal, só é possível com base na im-
posição e na força próprias do poder político
coercitivo, muito embora hoje ele assuma a feição
imagética mais simpática – e por isso mesmo
mais letal – do espetáculo. Na verdade, o que vem
primeiro é sempre a decisão política autoritária
acerca do trabalho e da economia que o suporta/
exige, nunca o trabalho e a economia mesmas.
É com essa ousada constatação que Pierre
Clastres discorda de Marx ao dizer que a su-
perestrutura de qualquer sociedade é política
e não econômica, de modo que a economia e o
trabalho são resultados e não causas da políti-
ca.18 Do contrário, como explicar que sociedades
indígenas diversas entre si em termos técnicos
– agricultoras ou coletoras, capazes de dominar o
cavalo ou não, sedentárias ou nômades – tenham
ainda assim permanecido séculos e séculos sem a
estruturação de órgãos de poder autonomizados
e separados da sociedade? Caso a tese de Marx

17. CHOMSKY, A democracia e os mercados na nova ordem


mundial, pp. 85-86.
18. CLASTRES, A sociedade contra o estado, pp. 215-217.

118
estivesse correta, sociedades com bases materiais
diversas deveriam se estruturar politicamente de
modo desigual. Contudo, como demonstra Clas-
tres, nessas diferentes comunidades indígenas
há uma recusa consciente da acumulação e do
trabalho – que, afinal de contas, serviriam para
quê e para quem? – em nome da construção de
sociedades do lazer devotadas ao ócio e atividades
tidas por prazerosas, tais como a caça, a pesca,
os jogos, as festas e a guerra.
É impressionante notar que na maioria
das tribos indígenas estudadas por Clastres seus
membros, tanto homens quanto mulheres, não
trabalham mais de quatro horas ao dia e, em rela-
ção aos homens das sociedades agricultoras, não
mais de dois meses a cada quatro anos, quando
preparam o solo para a semeadura e a colheita,
feita pelas mulheres.19 Marshall Sahlins demons-
trou no artigo A Sociedade Opulenta Primitiva
(The Original Affluent Society) que os membros
de comunidades caçadoras-coletoras contempo-
râneas trabalham muito menos do que o homem
civilizado e, ainda assim, de maneira intermitente
e limitada a no máximo quatro horas por dia,
apresentando ademais uma taxa de repouso per
capita maior do que em qualquer outro tipo de
sociedade. Sahlins conclui seu ensaio dizendo
que os povos “primitivos” têm poucos bens, mas
nem por isso são pobres, dado que a pobreza não
é uma relação entre meios e fins. Trata-se antes
de uma relação entre pessoas, representando um

19. CLASTRES, A sociedade contra o estado, pp. 206-209.

119
estado social. Portanto, ser pobre é tão artificial
quanto a própria civilização.20
O tenaz preconceito com o qual se caracte-
riza as sociedades indígenas em termos de falta
daquilo que temos – sociedades sem Estado, so-
ciedades sem história, sociedades sem escrita – se
aplica aqui mais uma vez, em termos muito es-
pecíficos, para qualificá-las como sociedades sem
economia ou trabalho, ou seja, pobres grupos
humanos que sobreviveriam sob um miserável
sistema de economia de subsistência. Todavia,
essa “constatação” vai contra todos os dados
recolhidos por etnólogos e indigenistas sérios.
Na verdade, o que temos diante de nós ao
examinar a relação dos indígenas com os bens
da vida não é uma perpétua e desesperante ca-
rência alimentar que se justificaria ideologica-
mente com base na sempre lembrada preguiça
dos selvagens, mas uma opção coerente que, por
enxergar no trabalho um signo do poder coerci-
tivo, o diminui ao máximo, limitando-o às ativi-
dades estritamente necessárias à sobrevivência
e tornando possível que a vida se desenvolva em
outros âmbitos, tidos por valiosos em si (guerra,
jogos, ócio etc.).
Em um contexto completamente diverso e
até mesmo oposto àquele dos indígenas analisa-
dos por Clastres, tem-se outro testemunho que
também aponta para o caráter conjuntural do

20. SAHLINS, The original affluent society em SAHLINS,


Stone age economics.

120
trabalho. Ao refletir sobre o trabalho obrigatório
e militarizado que foi necessário aos russos para
vencerem a guerra civil, Trotski afirma que a for-
ma jurídica do trabalho corresponde às ideias e
às relações sociais da época em que tal forma se
desenvolve, inexistindo uma forma do trabalho em
si. Assim, as críticas dos socialdemocratas aus-
tríacos dirigidas ao partido bolchevique, segundo
as quais ele teria introduzido na Rússia soviética
um regime de escravidão, seriam completamen-
te equivocadas. Cada situação social real exige
certo tipo específico de relação com a produção.
Em situações desesperadas, a produção deve
responder a necessidades também desesperadas,
sob pena de a sociedade se extinguir, conclui
Trotski, deixando claro que o trabalho capitalista
não é o único e nem o mais importante modo de
produção existente.21
O trabalho tal como o conhecemos só surge
quando o homem passa a produzir não para si
ou os seus, mas para um temível outro desvin-
culado da comunidade, que o ameaçando com o
garrote do poder violento, desequilibra a relação
originária de troca e reciprocidade que até então
mantivera uma sociedade sem Estado e sem po-
der coercitivo.22 O fato de terem existido – e ainda

21. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, p. 263.


22. “Só então é que podemos falar em trabalho: quando
a regra igualitária de troca deixa de constituir o ‘código
civil’ da sociedade, quando a atividade de produção visa
a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra
de troca é substituída pelo terror da dívida” (CLASTRES,
A sociedade contra o estado, p. 210).

121
existirem – sociedades indígenas sem Estado e
sem trabalho é uma confirmação eloquente – e
que não podemos desconsiderar – de que há
outras formas e projetos, diferentes do trabalho
capitalista assalariado, para a criação de riqueza
social. Para trazê-las à luz, queiramos ou não
chamá-las de trabalho (melhor seria encontrar
outro termo que não se relacionasse tão de perto
com o vocábulo tortura!), são necessárias outras
tantas ideias sobre reprodução e distribuição
social, o que exige, já de início, uma nova política
capaz de determinar o econômico. A noção de
renda mínima global assegurada a todos e des-
vinculada do trabalho23 talvez seja uma proposta
interessante a ser considerada, não obstante
suas imensas dificuldades práticas e teóricas.
O importante é que propostas assim desligam o
circuito que unifica repartição social, trabalho
e violência, com o que todo o sistema capitalista
pode finalmente se fundir e experimentar uma
verdadeira crise que o destrua.
Pensar uma sociedade em que inexista
trabalho não significa postular um mundo em
que todos estão entregues à inatividade. Como
visto, o contrário do trabalho não é o ócio, o qual,
na verdade, o integra enquanto investimento
em trabalho futuro. A tradição do pensamento
ocidental, inclusive a dissidência marxista, nos
acostumou a confundir os conceitos de trabalho
e produção. É exatamente esse ponto que deve

23. Para breves indicações teóricas sobre essa proposta,


cf. HARDT; NEGRI, Multidão, pp. 183-184.

122
ser reconfigurado pela filosofia radical, compre-
endendo-se que o trabalho é apenas um tipo de
produção, não a produção mesma. Na definição
de Bob Black, trabalho é produção obrigatória
imposta por meios políticos ou econômicos. Ade-
mais, não se trata de um fim em si, mas de um
instrumento para a realização de outros objeti-
vos.24
Dessa maneira, o trabalho, como mero
meio que é, torna-se completamente inútil se os
fins para os quais aponta forem desativados. É
preciso reconhecer que a maior parte do trabalho
realizada no planeta não serve, como afirmam
com lágrimas nos olhos os seus defensores, para
a produção de bens e serviços necessários à so-
ciedade. Há quase cinquenta anos, Paul e Percival
Goodman demonstraram que 5% do trabalho
então efetivado no mundo seria suficiente para
satisfazer as necessidades básicas de alimento,
vestuário e moradia da humanidade. Todo o res-
to serviria apenas para os fins improdutivos do
comércio e do controle social.25
Nesse sentido, o trabalho se perverte ainda
mais, pois é realizado para manter-se a si mes-
mo. Há um enorme contingente de pessoas que
trabalha para que... haja trabalho, quer dizer,
um sistema de controle social que nada tem a
ver com a criação de riquezas e uma real distri-
buição de bens. Sabe-se que 40% do contingente
de trabalhadores exerce funções administrativas

24. BLACK, La abolición del trabajo, p. 11.


25. BLACK, La abolición del trabajo, p. 34.

123
– imateriais, no vocabulário de Hardt & Negri
–, as quais seriam completamente desnecessá-
rias em um mundo que não fosse capitalista.
Por exemplo: em bancos, empresas de seguro e
imobiliárias o trabalho consiste basicamente em
ordenar papéis inúteis e nada mais.26
Uma sociedade sem trabalho não é uma
sociedade ociosa ou improdutiva. A energia gasta
no trabalho pode ser redirecionada para outras
atividades, que sejam fins em si mesmos, tais
como o jogo e o prazer. Não se trata aqui de uma
utopia pseudocientífica na qual o trabalho passa
a ser realizado por máquinas e os homens se
abandonam ao dolce far niente. Ao contrário, os
seres humanos precisam agir e fazer coisas para
se manterem humanos, sem o que a vida não
tem sentido. Mas eles não precisam fazer coisas
submetidos uns aos outros; não precisam fazer
sempre as mesmas coisas, de maneira repetitiva
e sem nenhuma criatividade. Bob Black entende
que a irredutível diferença entre os indivíduos
torna possível uma vida social lúdica em liber-
dade.27 Sempre existirão pessoas dispostas a
realizar todo tipo de atividade produtiva ou que
favoreça a produção (cozinhar, ensinar, plantar,
curar, construir, pintar, limpar, colher, divertir
etc.), contanto que não sejam contínuas, obriga-
tórias, sem sentido e humilhantes. Quanto àque-
las atividades que ninguém em sã consciência

26. BLACK, La abolición del trabajo, p. 35.


27. BLACK, La abolición del trabajo, pp. 40-41.

124
quer realizar, podem ser, agora sim, deixadas às
máquinas e, no limite, abandonadas.
Como conclui Black, ninguém pode prever
as consequências que adviriam da liberação do
imenso montante de energia humana sufocada
pelo trabalho. Qualquer coisa poderia acontecer.28
Aí está, uma vez mais, a aposta que a filosofia
radical deve tornar sua.

28. BLACK, La abolición del trabajo, p. 44.

125
3
Es p e tá c ulo


3.1. Um fim em si mesmo

O espetáculo não é uma imagem, mas uma


relação social entre pessoas mediada por ima-
gens, uma visão de mundo (Weltanschauung)
que se objetivou e que se traduz enquanto afir-
mação da aparência e negação visível do vivido;
enquanto tal, ele é a ideologia por excelência,
já que empobrece e falsifica a vida, afastando o
homem do homem ao abandoná-lo ao senhorio
das coisas que ele próprio produziu, tidas então
como a “realidade real”.29 No lema tautológico do
espetáculo – exigido pela monopolização da apa-
rência – se revela sua substância mais radical,
capaz de superar tanto as ontologias antigas do
ser quanto as moderno-burguesas do ter, pois
para o espetáculo o que vale é o parecer: “o que
aparece é bom, o que é bom aparece”.30

29. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Teses 4, 5, 10


e 215.
30. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Teses 10 e 12.

127
Por isto, o espetáculo não pode ser mais
do que um discurso ininterrupto que a ordem
faz sobre si mesma, um “monólogo laudatório”31
no qual se fundem suas funções e objetivos, sua
forma e conteúdo. E em nossa época essa for-
ma-conteúdo onipresente só pode ser o culto à
riqueza, com o que se percebe quão essencial é
o espetáculo para a manutenção da ordem ca-
pitalista. Toda discussão sobre o poder diretivo
das mídias precisa levar em conta esse fato, de
maneira a redimensionar a extensão do controle.
Nesse sentido, Luciano Canfora tem razão
quando afirma que são de escassa importância
debates que digam respeito, por exemplo, à dis-
tribuição de tempo aos partidos nos horários de
propaganda política gratuita, e mesmo aqueles
sobre a existência de uma imprensa compro-
metida com a exatidão e a objetividade de seus
informes.32 O que realmente importa para o espe-
táculo é a veiculação subliminar de uma versão
de mundo individualista e irreal, em tese aberta
a todos. Nesse mundo, vale o apelo à riqueza en-
quanto único valor fundador e limitador de todas
as demais experiências sociais. Isso é realizado
com grande sucesso nas propagandas televisivas
de carros, bancos e dos mais variados produtos.
Aparentemente, tais propagandas medeiam e
interrompem as atrações e programas, mas na
verdade elas são as únicas e verdadeiras atrações.

31. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 24.


32. CANFORA, A democracia, pp. 290-296.

128
O espetáculo consiste, então, em uma
cerrada forma-conteúdo que, abrindo mão de
técnicas mais rudimentares como a lavagem ce-
rebral pura e simples, dá ao público a sensação
de leveza e liberdade que só o consumo pode
proporcionar àqueles que o sustentam. Por isso
as pessoas não são capazes de entender o cará-
ter fantasmagórico do espetáculo, que legitima
um mundo reservado a poucos e mantido por
enormes sofrimentos humanos.
Tal constatação acarreta um questiona-
mento preliminar: como entender o espetáculo
estando dentro dele? Na verdade, esse problema
aparente representa a única verdadeira solução
para o enigma, pois só pode entender o espe-
táculo aquele que dele participa. No mundo do
espetáculo a perplexidade de Winston Smith seria
incompreensível. Em 1984 ele dizia entender o
como, mas não o porquê do Grande Irmão. Ora,
para o espetáculo o como corresponde, ponto
por ponto, ao porquê. Com efeito, o espetácu-
lo consiste em uma técnica de especialização
do poder33 que não tem outra finalidade senão
sua automanutenção, realizada continuamente
mediante seus específicos instrumentos. É isso
o que significa ser uma forma-conteúdo. Assim
como o trabalho e a especulação, o espetáculo
existe em si e para si, sem qualquer finalidade
que não seja sua reprodução, que é também a
reprodução da opressão social e do capitalismo,
ele próprio espetacular.

33. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 23.

129
Benjamin e Agamben pensaram em algo
que pudesse ser um meio sem fim, ou seja, uma
pura medialidade, uma ação que não se exer-
cesse tendo em vista finalidades que a pudes-
sem justificar, ao contrário do que a política e
o direito fazem quando legitimam a violência de
que lançam mão, apresentando-a como meio
necessário para se atingir belas e perfeitas, mas
sempre adiadas, finalidades sociais. Deve ficar
claro que o espetáculo, o trabalho e a especula-
ção não são meios sem fins, mas fins absolutos,
quer dizer, esferas de autorreprodução que têm
– são – uma única finalidade: manter-se inde-
finidamente. Nessa perspectiva, a finalidade é
tão absorvente que acaba transformando todos
os meios em imediata vivência finalística: ao
se manter, ao simplesmente existir, espetáculo,
trabalho e especulação realizam, a cada minuto
e sempre, suas raisons d’être. Um fim absoluto
não pode aceitar nada diverso de si. Tudo preci-
sa ser vivido no finalismo imediato do momento
presente. Para tornar isso possível, é preciso uma
nova temporalidade que, enquanto fim absoluto,
só o espetáculo pode dar a si mesmo.
O espetáculo contemporâneo, imagético e
extremamente hostil a todo texto – com exceção
dos slogans, que hoje substituem os antigos gri-
tos de guerra tribais – se estrutura mediante uma
série muito diversificada de redes, que vão desde
os canais de televisão até os grupos construídos
em torno de mecanismos como o Facebook e o
Twitter. Daí deriva o paradoxo que o funda, pois
o espetáculo é a comunicabilidade que impede a

130
comunicação, a realidade que separa os homens
utilizando aquilo que os une.34
Ainda que suas manifestações sociais se-
jam muito variadas, o espetáculo apresenta uma
notável similitude em suas estratégias de ação,
as quais correspondem às suas três principais
características, dado que nele se confundem ser
e fazer: ele é contínuo, permanente e irreflexivo.
A continuidade se garante pela exposição
imediata de uma imagem depois da outra. O
tempo que medeia duas exposições é pratica-
mente inexistente, razão pela qual as maiores
contradições e absurdos – ideias contrárias ao
mais basilar bom senso – podem ser veiculadas
sob a forma espetacular da imagem. Nenhum
problema é percebido porque a velocidade do
espetáculo anula, como uma perversa dialética
da contínua suprassunção, qualquer possibili-
dade de reflexão. No mundo do espetáculo tudo
é possível, todo sim pode, no minuto seguinte,
se converter em não e vice-versa. Não há espaço
para o pensamento, uma vez que, além de con-
tínuo, o espetáculo é permanente.
O espetáculo desconhece a pausa e o des-
canso sem os quais é impraticável a reflexão. O
cidadão integrado das grandes cidades mundiais
pode ligar sua televisão a qualquer hora do dia
ou da noite: ela lhe oferecerá dezenas de canais,
milhares de imagens. Tal se potencializa ainda
mais graças a dispositivos tecnológicos que re-

34. AGAMBEN, A comunidade que vem, p. 64.

131
produzem o espetáculo em escala microscópica
e mesmo rizomática: em qualquer lugar e a qual-
quer hora pode-se sorver as novidades espetacu-
lares por meio de celulares e ipads conectados
vinte e quatro horas à internet.
Nessa permanência irreflexiva reside a
grande força do espetáculo, que torna ineficazes
quaisquer propostas de construção de esferas
públicas não comprometidas com a técnica e o
domínio, mas com racionalidades comunicati-
vas, a exemplo do que pretendem Habermas e
outros neo-iluministas. A perspectiva de Haber-
mas, já o notaram Hardt & Negri, desconsidera
o fato básico de que não podemos nos isolar do
espetáculo e construí-lo enquanto algo externo
a nós mesmos.35 Na verdade, as potencialidades
comunicativas são integralmente colonizadas
pela vivência onipresente do espetáculo, do qual
ninguém pode se livrar graças a um belo e ético
voluntarismo comunicacional, como se a comu-
nicação não fosse, só e já, o próprio espetáculo.
O que se assiste nos nossos dias é a cons-
trução de narrativas imediatas sobre o mundo:
irreflexivas, digeríveis e plenamente disponíveis,
elas são capazes de superar os limites do espaço
e do tempo, apontando para um futuro que se
instalará entre a mudez animal e o para-além
da linguagem, traduzindo-se talvez em grandes
ideogramas de neon a invocar a proteção de uma
companhia transnacional qualquer. As potencia-

35. HARDT; NEGRI, Multidão, pp. 329-330.

132
lidades desse sistema somente agora começam
a ser descobertas em sua total magnitude pelas
“democracias” ocidentais, que perceberam a pos-
sibilidade de, por meio do espetáculo, reescrever
a história como ela deveria ter sido. Essa é uma
consequência da forte atemporalidade do espe-
táculo, que não nega o tempo, mas une todos
os tempos em um só, insípido e amorfo. De fato,
o espetáculo inaugura uma nova maneira de
vivenciar o tempo, conforme já notara Debord.

3.2. O espetáculo como nova


temporalidade

Antes do espetáculo o mundo conhecia


basicamente dois modelos ontológicos de tem-
po.36 O primeiro, próprio do Oriente e herdado
por Grécia e Roma, é o tempo circular. Gregos,
romanos, persas, chineses, povos ameríndios e
muitos outros acreditavam que presente, pas-
sado e futuro se organizam em um círculo sem
início e fim, de maneira que tudo que é já foi e
voltará a ser. A vida humana podia ser organiza-
da com base na ideia de estação, que designaria
a passagem de um ponto do círculo ao outro,
trazendo consigo as noções de destruição e re-
novação. A melhor representação dessa ideia é
a serpente sagrada que engole a própria cauda:
oroboro, não por acaso, um palíndromo. Assim

36. Cf. ELIADE, El mito del eterno retorno.

133
como o espetáculo, o modelo circular é contínuo
e permanente; mas, diferentemente dele, não se
desenvolve sob a forma da irreflexão: se todas as
coisas se renovam, é preciso entender a mecâ-
nica que as mantém, o que significa pesquisar
e vivenciar as mudanças cósmicas, entendendo
que há uma intimidade secreta entre as coisas
do mundo e o tempo que as sustenta.
O tempo circular envolve uma concepção
misteriológica, pois as coisas não são o que apa-
rentam ser. Cabe ao sábio buscar as verdadeiras
conexões que mantêm o ciclo funcionando; quan-
do um homem morre, isso não é, como parece,
o fim de um ser, mas apenas a continuação de
todo o processo. Sob a perspectiva do tempo
circular, o mundo é um conjunto de segredos
a ser desvendado pelo pensamento capaz de ir
além da aparência das coisas e atingir a essên-
cia. Talvez ninguém tenha sintetizado tão bem
essa noção como o filósofo/feiticeiro Empédo-
cles de Agrigento: “Não há criação de nenhuma
dentre todas as coisas mortais, nem algum fim
em destruidora morte, mas somente mistura e
dissociação das coisas misturadas é o que é, e
criação isto se denomina entre homens”.37
O círculo simboliza o retorno sobre si pró-
prio, a união de princípio e fim, a dinâmica nega-
ção de quaisquer princípios e fins absolutos. Por
isso Umberto Eco erra ao afirmar que a forma
circular evoca a finitude, já que nada poderia

37. PLUTARCO, Contra Colotes, 10.

134
existir fora dela; uma de suas mais perfeitas
manifestações poéticas – o escudo de Aquiles
forjado por Hefesto no canto VIII da Ilíada – cor-
responderia ao que o ensaísta italiano chama de
“epifania da forma”.38 Mas o círculo não instaura
a finitude. Os gregos valorizavam essa figura por
nela antever a típica imagem da continuidade
ilimitada. Na clássica distinção de Aristóteles,
que apenas deu voz a uma profunda e arraigada
intuição bem mais antiga, o movimento retilíneo
– que parte de si para o além-de-si – se opõe ao
circular – que procede de si para si mesmo. No
círculo, todo e qualquer ponto pode ser consi-
derado princípio e fim.39 Só o círculo é perfeito,
contínuo, eterno e infinito.40 E o tempo constitui
o maior dos círculos, rodando infinitamente so-
bre si mesmo. Heráclito de Éfeso explica: “a rota
para cima e para baixo é uma e a mesma”.41 E
Parmênides de Eléia concorda: “para mim é co-
mum donde eu comece; pois aí de novo chegarei
de volta”.42 Do infinito ao infinito.
A consequência mais clara do modelo cir-
cular é a sua resistência diante de transforma-
ções extrínsecas da realidade. De fato, sob a
perspectiva do tempo circular devem ser evita-
das quaisquer mudanças que não sejam própri

38. ECO, El vértigo de las listas, p. 12.


39. MONDOLFO, El infinito en el pensamiento de la anti-
güedad clásica, p. 47.
40. ARISTÓTELES, Física, VIII, 8, 261b-264b
41. DIELS; KRANZ, 22.59.
42. DIELS; KRANZ, 28.5.

135
da dinâmica natural e autorrecursiva do ciclo
nascimento-crescimento-degeneração-morte-
-nascimento. Em especial, as transformações
sociais são vistas como algo intensamente sacrí-
lego, dado que, devido a meras razões humanas,
pretenderiam perturbar e, no limite, destruir os
ciclos cósmicos. Essa é uma das causas do pro-
fundo imobilismo social que caracterizou as so-
ciedades antigas: elas eram tão imutáveis quanto
mais se conformassem ao pensamento cíclico. Só
quando passaram a questionar o tempo circular
os romanos – ou seja, o Ocidente – puderam
realizar revoluções sociais até hoje inéditas no
mundo oriental.
Na verdade, muito embora a civilização
greco-romana tenha se orientando inicialmente
e durante muitos séculos pela consideração cir-
cular do tempo, tal concepção nunca foi única
e indisputada no seio dessas sociedades, tendo
entrado finalmente em decadência em Roma
graças ao surgimento de outra maneira de se
considerar o tempo. O fato desse novo sistema
de temporalidade ter surgido no Oriente próximo,
mas não ter se desenvolvido lá e sim no Ociden-
te, revela mais do que qualquer outro dado a
propensão do Ocidente à assunção dessa nova
ontologia do tempo, algo até hoje irrealizado no
Oriente. Esse novo sistema temporal é, por óbvio,
o judaico-cristão.
Se o tempo dos antigos corresponde ao
tempo da reflexão, o tempo judaico-cristão é o
tempo da revolução. Ao contrário do tempo cir-

136
cular, o tempo judaico-cristão é marcado por
uma série de cesuras muito radicais. Trata-se
de um tempo da irreversibilidade. Nele nenhum
momento retorna, pois todos têm seus respecti-
vos sentidos contidos em si mesmos, entendidos
enquanto resultados absolutos e irrepetíveis de
tudo que aconteceu até então. Cristo nasceu
entre nós uma única vez; ele retornará no final
dos dias não como vítima, mas no papel de juiz.
O tempo judaico-cristão tem assim um início
absoluto – o fiat lux do Gênesis, mediante o qual
se instauram as coisas – e um fim absoluto – o
julgamento final do Apocalipse –, após o que já
não existirá propriamente tempo, mas algo si-
milar a uma duração pura incompartimentável
em presente, passado e futuro.
A imagem que o tempo judaico-cristão evo-
ca é a da reta com início e fim bem demarcados.
Trata-se, portanto, do tempo linear. Ainda que
tal modelo tenha surgido no pensamento hebreu
e encontrado na cabala e em sua espera ansiosa
pelo Messias uma de suas mais radicais e refina-
das realizações, é apenas graças ao cristianismo
que ele ganha densidade. Diferentemente do
homem antigo, o cristão percebe o tempo não
enquanto ilusão que esconde o fluxo e o reflu-
xo de todas as coisas. Ao contrário, trata-se do
substrato necessário para a vinda do Messias,
cuja missão é precisamente encerrar o tempo.
Para o verdadeiro cristão, todo tempo é tempo de
espera. Profundamente descontínuo, esse tempo
é marcado por sinais (milagres), anunciações
(profecias) e antecipações (comunidades cristãs
radicais) do resultado final.
137
Os sinais de que o novo tempo sem-tempo
está próximo são os milagres, tão abundantes
na história cristã. Tal contrasta vivamente com
os hábitos mentais do mundo antigo, tanto oci-
dental quanto oriental, nos quais essa ideia não
foi bem desenvolvida. Segundo Carl Schmitt, o
milagre representa uma suspensão das leis da
natureza, uma espécie de “estado de exceção
teológico”, exemplificando, assim, sua famosís-
sima tese, com a qual abre a Teologia Política
(Politische Theologie), segundo a qual todos os
conceitos expressivos da teoria do Estado são
conceitos teológicos secularizados.43 Gregos e
persas jamais poderiam supor algo semelhan-
te a um milagre, já que a natureza circular do
tempo determina que tudo sempre deve retornar
a si mesmo, seguindo uma férrea e inquebrável
lógica pré-determinada. Em um modelo circular
de tempo o milagre acarretaria uma insuportável
quebra do grande sistema do mundo.
Outro elemento ausente no mundo antigo
– ou pelo menos bastante diferente da maneira
como é compreendido pelos cristãos – é a noção
de profecia, entendida enquanto relato radical
do que virá com o objetivo de inverter todas as
hierarquias do mundo antes de aniquilá-las. A
profecia grega nada tem a ver com a cristã, eis
que aquela apenas descreve a ordem secreta
imperante no universo, fazendo-o por meio de
enigmas e sem pretender qualquer transforma-
ção dessa ordem, objetivando antes a sua ma-

43. SCHMITT, Politische Theologie, p. 37.

138
nutenção a qualquer preço. Pelo mesmo motivo
antirrevolucionário, em um tempo circular se faz
filosofia e ciência para se revelar a essência cir-
cular do tempo, escondida por trás da aparente
mutabilidade fenomênica. Assim, por meio do
oráculo grego, da filosofia e da ciência é possível
reafirmar constantemente o tempo verdadeiro
do ciclo. Ao contrário, a profecia judaico-cristã
anuncia o fim dos tempos, não a revelação de
qualquer essência escondida no tempo atual e
aparencial. Filosofia e ciência são atividades inú-
teis e mesmo perigosas em uma concepção cristã
de mundo porque servem para reafirmar o tempo
enquanto algo infinito, permanente, dotado de
leis próprias e que não se destina a nada, a não
ser à sua própria automanutenção. Daí porque
a verdadeira concepção de destino só pôde sur-
gir no contexto judaico-cristão, tendo os povos
antigos – em especial os gregos – entendido tal
ideia em um sentido puramente causal e mecâ-
nico, sem qualquer perspectiva escatológica.
Por fim, as antecipações se refletem na
vivência de várias comunidades cristãs radicais
que, crentes na proximidade do verdadeiro tempo,
passam a experimentá-lo utopicamente neste
mundo. Cátaros, essênios, gnósticos e, em menor
grau, ordens cristãs oficiais a exemplo dos fran-
ciscanos são antecipações da comunidade cristã
que está por vir. Todas essas seitas viveram em
contextos fortemente comunitários e hostis aos
hábitos sociais e usos jurídicos do que chamam
de “mundo”. Assim como os milagres e as profe-
cias, comunidades assim também são raras na

139
matriz temporal greco-romana-oriental, o que é
plenamente compreensível se atentarmos para o
fato de que as comunidades cristãs radicais não
são mais do que antecipações do fim dos tempos,
sendo impraticáveis sob a perspectiva de um
tempo contínuo, cíclico e autorregenerador. Em
última instância, as comunidades cristãs prepa-
ram a chegada do Messias e representam uma
crítica radical ao tempo, bem como uma aposta
absoluta no novo que virá. Por mais que o cris-
tianismo, ao se converter em religião de Estado,
tenha renegado esse seu caráter originariamente
revolucionário, basta uma rápida leitura dos
Evangelhos, mesmo os sinópticos, para perceber
seu profundo desprezo pelo mundo da política,
do direito e da economia, que não por acaso são
vistos pelas comunidades cristãs radicais como
domínios de Satanás.
Ao conceber o tempo linear em que há um
progressivo manifestar-se de Deus por meio de
sinais, anunciações e antecipações, os cristãos
criaram a figura do Messias, que não é nenhum
revelador do tempo, mas seu exterminador, ou
melhor, seu cumpridor. Muito embora o tempo
cristão não seja reflexivo – ao contrário do tempo
antigo greco-romano-oriental, o qual se mostra
enquanto tempo oracular-científico-filosófico –,
ele é plenamente dotado de sentido. O tempo
linear é o tempo que se cumpre para dar espaço
ao Messias. As semelhanças dessa estrutura com
a teoria revolucionária marxista são por demais
evidentes e já foram sublinhadas insistentemente

140
por diversos autores.44 Basta aqui comparar a
figura do Messias com a classe proletária: ambos
inaugurariam um novo tempo histórico inten-
samente real e oposto ao não-tempo, seja o da
pré-história capitalista ou da circularidade pagã.
Para além desses dois modelos clássicos de
temporalidade – circular e linear –, há ainda um
terceiro, característico do mundo contemporâneo.
Os parcos desenvolvimentos e debates suscitados
pelo magistral ensaio-manifesto publicado em
1967 sob o título A Sociedade do Espetáculo (La
Societé du Spectacle) não souberam identificar
aquela que é talvez a maior contribuição que
Debord deu à filosofia: a ideia de que o espetácu-
lo representa um novo modelo de tempo,45 quer
dizer, o sentido da prática total de uma formação
econômico-social.46

44. A literatura sobre o tema é imensa. Entre os principais


autores que veem no marxismo uma versão secularizada
do cristianismo e, em especial, do messianismo, devem ser
lembrados BRINTON, A history of western morals, GER-
LICH, Der Kommunismus als Lehre vom tausendjährigen
Reich, LÖWITH, Meaning in history, MONNEROT, Sociology
and psychology of communism, TALMON, The rise of totali-
tarian democracy, TAUBES, Abendländische Eschatologie,
TUCKER, Philosophy and myth in Karl Marx, TUVESON,
The millenarian structure of “The communist manifesto” e
VOEGELIN, Wissenschaft, Politik und Gnosis. Para uma
posição radicalmente contrária, cf. KELSEN, Secular reli-
gion, pp. 163-197.
45. Debord desenvolve essa reflexão em todo o livro, muito
embora reserve especificamente o capítulo VI para uma
discussão concentrada do tema.
46. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 11.

141
Assim como o tempo circular, o tempo es-
petacular é contínuo e permanente, não reco-
nhecendo qualquer início ou fim absoluto, com
o que se afasta do tempo linear judaico-cristão.
De fato, o tempo espetacular não postula qual-
quer origem, embora ele próprio, como modelo
do pensar, tenha tido um início que pode ser
localizado nas primeiras décadas do século XX.
Para o tempo espetacular o passado é in-
tensamente maleável e reconfigurável. O papel
das cesuras, tão importante para o tempo cristão,
já que anunciam, sinalizam ou preveem o verda-
deiro tempo, é completamente desconsiderado na
dimensão do tempo espetacular. Por mais que
um fato possa negar o espetáculo e a sociedade
capitalista – que ao mesmo tempo fundamenta
e depende do primeiro –, os mecanismos espe-
taculares o capturam e empobrecem mediante
a irreflexividade de imagens e slogans, transfor-
mando o que poderia ser um evento em anódino
acontecimento, tema que retomo na seção IV.2.
É dessa maneira que o ataque às torres
gêmeas do World Trade Center em 2001 – evento
que poderia ter fundado um novo tempo me-
diante a consideração do caráter autodestru-
tivo e claramente insano do capitalismo que o
produziu – acabou se convertendo em mais um
acontecimento, um entre muitos outros fatos a
justificar a continuidade da empobrecida narra-
tiva que pressupõe uma heroica luta entre o bom
e humanitário Ocidente e o obscuro e maléfico
Oriente. O ataque serviu para reforçar e confirmar

142
a “história do progresso” própria do espetáculo,
não para negá-la mediante a clara percepção de
que o planeta se encaminha rapidamente – de
maneira linear-cristã, poderia ser dito – rumo a
uma catástrofe final.
Do mesmo modo, o colapso do sistema
de crédito estadunidense, que gerou a crise de
2008, poderia ter representado um evento ca-
paz de abrir a porta da história. Com base no
informe sobre estabilidade financeira de 2008
do Banco da Inglaterra, Juan-Ramón Capella e
Miguel Ángel Lorente demonstraram que se os
bancos dos EUA não tivessem sido salvos pelo
governo, isso significaria que deixariam de ser
emprestados em todo o mundo cerca de 60 tri-
lhões de dólares, o que significaria a paralisia
total e a ruína sem remédio de todo o sistema.47
Todavia, o poder político, sempre comprometido
com sua automanutenção, garantiu a rápida e
eficaz transformação desse potencial evento em
um simples acontecimento na história triunfal do
capitalismo, e isso inclusive com a distribuição
de prêmios e bônus para os agentes financeiros
que produziram a crise. Afinal, não devemos nos
espantar: é preciso que o sistema especulativo-
-capitalista premie aqueles que produzem as
crises necessárias ao contínuo reajuste da má-
quina, que pretende funcionar para sempre, in
perpetuo moto.

47. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, p. 31.

143
Assim como ocorre nos exemplos dos dois
parágrafos anteriores, o tempo espetacular não
aponta para nenhuma consumação ou fim dos
dias, durando indefinidamente, o que só é pos-
sível graças ao seu caráter irreflexivo. Se os po-
vos antigos compreendiam o tempo enquanto
estrutura aparencial que era preciso desvendar,
superando as primeiras impressões sensíveis até
chegar ao lógos, expressão da força ou dos deuses
que organizam o sagrado ciclo da realidade, uma
sociedade pós-metafísica como a capitalista não
pode considerar o tempo real senão como real,
quer dizer, desvestido de qualquer transcendên-
cia, sendo em essência o que é na aparência. Se
o ser e o parecer do tempo são uma coisa só, não
há nenhum sentido a desvelar: o tempo passa a
durar indefinidamente enquanto mera passagem
das horas, se identificando com a vivência do
contínuo.
Essa duração permanente do tempo espe-
tacular também o afasta do tempo linear, que
existe para se cumprir, sendo, portanto, revolu-
cionário. Por não objetivar nada (diferentemente
do tempo linear) e não ser reflexivo (ao contrário
do tempo circular), o tempo espetacular dura
de modo amorfo e quase animalesco, eis que
qualquer revolução é de antemão abortada, bem
como a possibilidade de sequer pensá-la.
Em síntese, pode-se dizer que o tempo es-
petacular unifica em sua mundividência as piores
características dos tempos circular e linear, sem
trazer como contrapeso suas virtudes. Se o tempo

144
circular é permanente e contínuo, mas reflexivo,
e o tempo linear é, ainda que irreflexivo, finito e
marcado por cesuras que possibilitam a revolução,
o tempo espetacular é contínuo, permanente e
irreflexivo, combinação que torna impossível e
impensável qualquer mudança. A combinação
dos fatores permanência e continuidade, que não
existem no tempo messiânico-linear, com o fator
irreflexividade, que inexiste no tempo cíclico do
eterno retorno, dá origem a um tempo fechado
sobre si mesmo, imune à mudança e autorre-
produtor de sua carência de sentido.
Se o tempo cíclico só pôde se afirmar graças
à sua particular produção agrícola sempre reno-
vável e potencialmente infinita e o tempo linear
se relacionou à revolução que tornaria possível
a produção total do corpo divino neste mundo –
indo do pai criador do Gênesis ao espírito santo
julgador do Apocalipse e passando pelo evento
Cristo –, parece ser correto afirmar que o tempo
espetacular também se relaciona a um tipo es-
pecífico de produção. Mas o que se produz em
um mundo sem ciclos e sem qualquer princípio
de transcendência? Ora, se produz tempo, tempo
sempre igual a si mesmo. Eis a característica do
tempo espetacular que o torna uma mercadoria,
quer dizer, “uma acumulação infinita de interva-
los equivalentes” irreversíveis e ilimitadamente
intercambiáveis. No mundo espetacular, o tempo
é mera quantidade.48

48. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 147.

145
O produto do tempo espetacular é mais
tempo. Daí porque o capitalismo precisa mo-
nopolizá-lo sob as formas do trabalho e suas
pausas, conforme discutido na seção III.2. As-
sim como o trabalho representa uma apreensão
abstrata do tempo, que passa a ser medido em
horas extorquidas ao trabalhador pelo processo
de produção alienada ao qual ele está condenado,
o tempo também é entendido enquanto porção
que, convertida em espetáculo, torna suportável
a sobrevivência sob uma temporalidade que, sem
reflexão ou revolução, só produz mais tempo. Em
uma realidade em que submissão (trabalho) só
produz mais submissão (trabalho), o espetáculo
é o elemento anestesiante garantidor de precio-
sos momentos de “tempo livre” – programas de
televisão, relacionamentos na internet, partidas
de futebol, férias, finais de semana etc. – que, na
verdade, apenas reforçam a servidão.49

49. No mesmo sentido: “En los países avanzados el tiempo


libre de los trabajadores ha sido colonizado enajenadamente.
El ‘centro comercial’, el ‘parque temático’, la ‘animación
cultural’, el ‘macroconcierto’, las discotecas, la tele-compra,
la pornografía y la droga, los viajes ‘de placer’; así como
los ‘lugares del vacío’ del fin de semana: los del consumo
masivo de alcohol, autopistas, ‘áreas de descanso’, ‘salas
de embarque’ y cosas como ésas; y más que nada los infi-
nitos gadgets y videojuegos, las ‘distinciones’ ostentativas
personales en forma de artículos de marca, de moda o de
lujo, o simplemente posesorias...: todo ello compone un gi-
gantesco y reticulado sumidero que convierte el tiempo del
descanso y de la vida libre en mero tiempo de la plusvalía,
sin valor civilizatorio”(CAPELLA; LORENTE, El crack del
año ocho, p. 123).

146
O tempo espetacular corresponde à con-
sumação e à verdade, em termos conceituais,
do tempo burguês, que foi o primeiro a insistir
na dimensão irreversível do trabalho. Todavia, o
tempo burguês ainda não tinha a força necessária
para dar à luz um novo modelo de temporalidade
que pudesse se opor aos modelos circular e linear.
O tempo espetacular conseguiu tal façanha ao
se reconhecer enquanto produto e produtor de
tempo. Mais do que transformado em mercado-
ria, o tempo entendido como única verdadeira
mercadoria se dá enquanto “história” imediata-
mente vivenciável, jamais como algo sujeito à
mediação e, portanto, pensável. Desse modo, o
tempo espetacular equivale a um radical aban-
dono da história: uma paralisia da memória, ou
seja, uma falsa consciência do tempo.50
O reconhecimento do caráter único da
mercadoria “tempo” leva não à sua desvaloriza-
ção, mas à sua dessignificação. Com efeito, se
o tempo dessacralizado é algo único, não pode
ser padrão para nada. Um padrão só tem sen-
tido diante de coisas diferentes dele próprio. Se
tudo pode ser reduzido a tempo, tudo pode ser
temporalizado infinitamente. Assim se completa
o ciclo do tempo espetacular, que produz tem-
po vazio de sentido graças à vinculação entre
trabalho e espetáculo. Conforme Debord, ao se
recortar o tempo da produção em fragmentos
abstratos iguais, tem-se algo como um mesmo
dia sobre todo o planeta, um tempo irreversível

50. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 158.

147
unificado sob os auspícios do mercado mundial
e do espetáculo que o sustenta.51
Caso se duvidasse por um segundo dessa
tarefa onitemporalizante do espetáculo, todo o
tecido do capitalismo se romperia. Mas, exata-
mente para evitar essa dúvida, o capitalismo
se apresenta como religião cultual sem descan-
so, sem “dias da semana”, todo ele organizado
à maneira de uma grande e infinita festa. Tal
como intuiu Benjamin, o culto do capitalismo é
permanente, o que impede qualquer suspensão
ou reflexão.52 Seu produto é a culpabilização,
não os dogmas. Se uma religião produz dogmas,
esses podem vir a ser questionados e vencidos.
Ao contrário, se ela abre mão do dogma e da te-
ologia, que afinal são mediações em direção ao
sagrado, sobra apenas o corpo vazio da culpa,
experiência originária de toda religião. No caso do
capitalismo, é a culpa que obriga os fiéis a con-
tinuar produzindo e consumindo, como em um
ritual expiatório que jamais conhece redenção.
No mundo contemporâneo isso se dá graças ao
tempo do espetáculo, que mantém o longo pre-
sente em que o culto se renova a cada segundo,
sem esperança de conclusão, destinando toda a
humanidade à “casa do desespero” aludida por
Benjamin.
Para facilitar a comparação entre esses
três modelos de temporalidade (circular, linear e

51. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 145.


52. BENJAMIN, Kapitalismus als Religion em Gesammelte
Schriften VI, pp. 100-103.

148
espetacular), talvez seja útil tentar representá-los
graficamente, muito embora eu tenha consciên-
cia dos problemas que surgem quando se tenta
espacializar o tempo, algo que, por definição, é
pura cosa mentale, ou seja, radicalmente irrepre-
sentável. De qualquer modo, uma representação
didática seria mais ou menos assim:
Tempo circular

Tempo linear

Α ____ p ___ m ___ p ___ m ___ p ___ m ___ X ___ p ___ m ___ a ___ p ___ m ___ a _____ Ω

Tempo espetacular

? _________________________________ ( ? _________________________________ )

149
A representação do tempo circular não
envolve maiores dificuldades. Nele não há prin-
cípio nem fim e tudo é contínuo, razão pela qual
os traços que conformam os círculos não são
interrompidos em nenhum ponto. Ademais, seu
caráter reflexivo fica evidente ao se considerar
que cada camada do círculo pode ser aprofun-
dada até se atingir o centro, igualmente cíclico,
no qual estaria o verdadeiro sentido do tempo, a
essência que se opõe – ou melhor, dá sentido – à
aparência.
Já o tempo linear é representado por um
traço reto que parte de um começo absoluto, evo-
cado por alfa (Α), rumo a um fim absoluto, iden-
tificado por ômega (Ω). Contudo, apesar de linear,
esse tempo não é contínuo, sendo marcado por
diversas cesuras – profecias, milagres e anteci-
pações – que se organizam tendo em vista a mais
importante de todas as cesuras, tão importante
que já não é cesura, mas evento: Cristo (X). Esse
evento muda a dinâmica do tempo linear, que se
antes já era descontinuado por muitos milagres e
profecias, passa agora também a inserir o futuro
no presente por meio das antecipações, tais como
as práticas sociais utópicas das comunidades
cristãs primitivas e das seitas cristãs heréticas,
a exemplo do catarismo. As antecipações servem
para acelerar e esgotar o tempo futuro, que se re-
solve no próprio presente, não deixando nenhum
resto de futuro a ser vivenciado – ao contrário do
que pensa Agamben em O Tempo que Resta (Il
Tempo che Resta) –, razão pela qual o falso tempo

150
(pré-histórico, segundo o marxismo) pode acabar,
dando lugar ao verdadeiro tempo de Deus, esse
sim irrepresentável.
O tempo espetacular é representado por
uma linha reta, que assim como na figura do
tempo linear, evoca a ideia de contínuo progresso.
Todavia, ao contrário do tempo linear, o tempo
espetacular não tem início e fim. Como notou
Debord, para o espetáculo o desenrolar é tudo, já
que ele não deseja chegar a nada diferente de si
mesmo.53 Mais do que nunca, a previsão de Orwell
se revela verdadeira na dimensão do tempo es-
petacular: quem controla o presente, controla o
passado; quem controla o passado, controla o
futuro. Sob a perspectiva espetacular, o início do
tempo é constantemente remodelável de acordo
com as necessidades do poder capitalista, motivo
pelo qual é representado por um sinal de inter-
rogação. Curiosamente, o tempo espetacular é
aberto apenas na dimensão do passado, intensa-
mente maleável pelo poder orwelliano do capital.
Por seu turno, o futuro do tempo espetacular se
projeta como cópia de si mesmo entre parêntesis,
eis que ele é sempre sua própria repetição, o que
impossibilita qualquer revolução ou transforma-
ção. No limite, a representação mais adequada
do futuro espetacular seria uma estrutura en
abîme que colocaria continuamente uma cópia
de si mesma onde deveria estar o ômega (Ω), ou
seja, sua resolução revolucionária. O sinal ... na
extremidade direita da gravura abaixo não indica

53. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 14.

151
um fim, mas a eterna repetição do mesmo padrão
de “futuro”: ? _____________ (...), que representa-
mos entre colchetes, chaves e parêntesis apenas
para facilitar a visualização:


?_____________ [ ?______________ { ?______________ ( ?______________ ...)}]

Conhecer as características do tempo es-


petacular em oposição aos outros dois modelos
não é bizantinismo acadêmico, mas uma neces-
sidade real de todo aquele que pretende praticar
uma filosofia radical. A batalha pelos destinos da
humanidade só pode ser decidida hoje na arena
da temporalidade. Antes de qualquer outro fator,
é o tempo espetacular que, agindo enquanto
constante mediador entre a comunidade e o po-
der capitalista, garante a contínua absorção das
resistências pelo sistema, com o que elas podem
ser ressignificadas e tornadas inofensivas.
Se já não é possível para nós qualquer ex-
periência significativa do passado e muito menos
a projetividade radical da abertura do futuro,
resta apenas um tempo presente amorfo e ar-
tificialmente estendido diante de si mesmo, no
qual os aparatos da propaganda espetacular
agem continuamente – trata-se de um culto sem
descanso, como previra Benjamin – para tentar
transformar todo evento em acontecimento.

152
Tal ficou claro nas manifestações populares
ocorridas no Brasil em junho de 2013, rapida-
mente demonizadas, controladas e esvaziadas
pelas mídias, tema discutido com mais deta-
lhes na seção IV.3. Ora, tal domesticação só teve
sucesso porque o espetáculo domina o tempo.
É ele que define quais fatos existiram e quais
não existiram. É ele que pôde esperar e verificar
que os protestos continuavam, sendo necessário,
portanto, não simplesmente condená-los, mas
desacreditá-los mediante sua contínua exposi-
ção midiática, que sempre ressaltava o caos e
os prejuízos que as revoltas traziam ao país e
a seus bons cidadãos postados diante da tele-
visão. Os dias e as horas que os manifestantes
estiveram nas ruas representaram os momentos
estratégicos de que o espetáculo precisava para
“reorganizar” os fatos. Assim, as mídias puderam,
contando com a dimensão do longo presente que
jamais acaba, assimilar as manifestações e dizer
que as tinham apoiado desde o início – o que é
mentira – e que no futuro as apoiará também –
outra mentira.
Uma farsa tão grotesca somente foi possível
porque os manifestantes não tinham qualquer
controle sobre a temporalidade em que se desen-
volveram seus atos de protesto e insurreição. Eles
combatiam o espetáculo dentro do tempo espeta-
cular, o que equivale a uma derrota anunciada.
Incapazes não apenas de perceber, mas de trazer
ao palco das manifestações o passado de opres-
são característico do Brasil – que, exatamente por
não ser perceptível, sequer se traduz enquanto

153
uma verdadeira “tradição dos oprimidos” – e, por
outro lado, impedidos de vislumbrar qualquer
projeto de futuro, nada restou aos manifestantes
senão a captura no presente controlado pelo es-
petáculo, que agora certamente poderá vender as
manifestações de 2013 como símbolos do civismo,
do patriotismo e da dignidade do “povo” brasileiro.
O espetáculo garantirá então que os traços mais
importantes do movimento sejam rapidamente
esquecidos, suprimindo seu caráter violento e
descomprometido com ideologias partidárias e
tornando impossível o reconhecimento de que
nas ruas do Brasil não havia um povo uniforme
e autocentrado, mas uma multidão plural, sem
propostas transitivas, que dizia um grande “não”
ao poder e ao sistema capitalista.
A única via de escape real teria sido tornar
o tempo tão radical quanto as não-propostas
articuladas nas ruas brasileiras, realizando a
revolução em um instante inassimilável de pu-
ríssima violência em que todas as instituições
fossem atacadas de maneira simultânea, inclu-
sive e principalmente as mídias.54 Tomá-las e

54. Como notou Lênin em 1917 no contexto dos deba-


tes sobre a liberdade de imprensa, não tem sentido uma
revolução social que mantém o monopólio da imprensa
burguesa; ou da comunicação espetacular, poderia ser dito
hoje. À abolição da propriedade privada da indústria deve
seguir-se a abolição da propriedade privada da imprensa, o
que justificava, aos olhos dos bolcheviques, a censura dos
jornais burgueses. De nada adiantaria tomar os bancos e
deixar livres os seus jornais, conclui Lênin, sustentando
que o papel e as gráficas devem ser postos à disposição

154
profaná-las, realizando o potencial comum que
envolve todo ato de produção da verdade: era e
é o desafio a ser superado.

de todos os cidadãos (Os debates sobre a liberdade de im-


prensa ocorridos em 17 de novembro de 1917 no Comitê
Executivo Central Pan-Russo dos Sovietes de Deputados
Operários e Soldados são ricamente ilustrados por REED,
Dez dias que abalaram o mundo, pp. 335-340. O tema
continuou a ser discutido durante a fase da guerra civil
russa. Cf. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, pp. 152-
163). Contudo, hoje as coisas não são tão fáceis. Quando
a comunicação deixa de ser imediatamente traduzível
sob as formas materiais do papel, da tinta e da gráfica,
tornando-se tempo espetacular imaterial e onipresente, é
preciso repensar todas as estratégias de contestação do
poder global, o que só parece possível em uma dimensão
comunitária an-árquica e a-nômica, capaz de criar um
novo tempo oponível ao tempo espetacular. Tal tema será
discutido na seção V.1.

155

4
Es pecul açã o

Assim como Agamben afirma que a biopo-


lítica e a vida nua que ela produz não são episó-
dios isolados ou excepcionais, mas os resultados
inevitáveis e esperados de toda a história do pen-
samento político-filosófico do Ocidente, fundado
na separação grega entre vida qualificada (bíos) e
vida em sentido genérico (zoé), Debord compre-
ende o espetáculo como a consumação de toda
a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que
privilegiou o ver ao invés do discutir.55 Para os
pensadores gregos, a visão era o mais perfeito dos
sentidos, sendo todos os demais subvalorizados,
o que trouxe como consequência a validação de
uma cultura da imagem, do ver e ser visto, mas
que não encontra nenhum sentido fora de si
mesma, já que toda realidade centrada na visão
– e não na reflexão dialogal, por exemplo – só
pode exibir sua própria imagem degradada sob
a forma de um universo especulativo.
Eis aí o vínculo secreto entre as palavras
“espetáculo” e “especulação”, que se revela tam-

55. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 19.

157
bém em “espionagem”, “espectro” e “especial”.
Todas elas têm a mesma raiz latina espec-, que
vem do morfema indo-europeu *spek-, ou seja,
“olhar com atenção, contemplar, observar”. Esse
parentesco linguístico foi finalmente trazido ao
nível do conceito pelo capitalismo financeiro atu-
al, ao mesmo tempo especulativo e espetacular.
A raiz espec-, que também se grafa como spec,
spic e spect, está presente no latim species, que
pode ser traduzido como “aspecto”, “aparência”,
“forma”, “figura”, “imagem” e “fantasma”. A mes-
ma raiz é encontrada nos substantivos derivados
de specula, “lugar de observação”, de onde vem
speculator, ou seja, “observador”, “explorador”,
“perspicaz”, “espião” e, por fim, “espectro”.56
As palavras originárias revelam a verda-
de por trás da ideologia: o especulador, ainda
que perspicaz, não passa de um espectro. E isso
mesmo em uma língua que não se relaciona di-
retamente com o latim, como o russo, em que
“especulador” se traduz pelo vocábulo maradior,
ou seja, bandido, espírito maléfico. É claro que
tal associação não é meramente linguística, mas
profundamente social, já que em geral os espe-
culadores se aproveitam das crises para fazer
fortuna, algo que ocorreu intensamente nos pri-
meiros quatro meses da revolução russa, antes
que os bolcheviques tomassem o poder.57

56. A pesquisa etimológica foi feita no Dicionário Eletrônico


Houaiss.
57. REED, Dez dias que abalaram o mundo, p. 60.

158
Especular evoca a ideia de olhar-se no
espelho (speculum) e, portanto, criar uma outra
realidade, um país de faz-de-conta, uma imagem
espectral que repete ponto por ponto a realidade
que o espelho, pelo fato de ser espelho, nega.
O espelho é um utensílio profundamente anti-
-utópico, pois não aponta para um lugar que
virá ou que já está. Ele nem mesmo é capaz de,
à maneira das distopias, deformar a imagem que
se lhe antepõe; ele simplesmente a reproduz,
criando um excedente repetitivo de sentido que
sempre pareceu incômodo à mente humana.
Em várias tradições, o espelho é percebido como
um objeto maléfico que suga a alma de quem se
atreve a mirá-lo ou, pior ainda, se transforma
em um portal para horríveis dimensões. A tra-
dição do duplo (doppelgänger), que existe tanto
no Ocidente quanto no Oriente, é apenas um
epifenômeno do medo ao espelho que instintiva-
mente nos aterroriza. Assim, parece adequado
que a mais desumana das atividades – aquela
que não produz nenhum sentido comunitário,
que devora a riqueza real em nome da riqueza
suposta, criando excedentes ilusórios e abrindo
portais para um futuro de absoluta servidão – se
chame especulação.
Segundo Chomsky, ao lado da globaliza-
ção da produção – que encerra a possibilidade
(ou mesmo a inevitabilidade) da imposição de
retrocessos às conquistas trabalhistas obtidas no
pós-guerra –, é a explosão do capital financeiro
o grande responsável pela catástrofe que hoje
vemos concretizada. Antes de Nixon, cerca de

159
90% do capital envolvido nas trocas mundiais
era destinado a investimentos e comércio, res-
tando apenas 10% para a especulação. A partir
de 1990, tal tendência se inverteu. Em 1994,
segundo relatório da UNCTAD, 95% do capital
que circulava no mundo se destinava à especu-
lação.58
Com base nesses dados, Chomsky conclui
que há uma política deliberada de corporativismo
estatal que projeta e realiza um mundo com pe-
quenos bolsões de riqueza e amplas populações
miseráveis – e, por isso, supérfluas – mantidas
na ignorância e sob estrito controle.59 As pesso-
as que compõem os grupos empobrecidos não
são consideradas “sujeitos econômicos”, ou seja,
não podem produzir ou consumir nem o mais
mínimo que o sistema oferece.60 Isso comprova a
contínua transposição da centralidade e do domí-
nio anteriormente característicos das categorias
políticas para as econômicas. Se no passado o
sujeito era antes de tudo sujeito político, quer
dizer, alguém que podia votar e ser votado, hoje
sua real importância se mede pela capacidade de
produzir e consumir, sem o que é simplesmente
desconsiderado e abandonado à matabilidade
geral típica do homo sacer.

58. CHOMSKY, A democracia e os mercados na nova ordem


mundial, pp. 72-73.
59. CHOMSKY, A democracia e os mercados na nova ordem
mundial, pp. 74-75.
60. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, p. 31.

160
Além disso, se ao lado desses não-sujeitos
econômicos existem outros que o são, o sistema
precisa controlá-los de maneira que assumam
mais e mais os traços que definem os objetos,
eis que no capitalismo ambas as categorias se
confundem. Para tanto, atuam ao lado do po-
der especulativo o medo à perda do emprego,
que transforma populações em massas dóceis
e resignadas, e o embotamento das mentes pa-
trocinado pelo espetáculo, o que prova como as
três searas tratadas neste capítulo – trabalho,
espetáculo e especulação – são intercambiáveis
e interdependentes.
Ainda que julgada sob o prisma oficial do
capitalismo, cujo lema é crescimento, a espe-
culação corresponde fundamentalmente a um
fantasma. De fato, para garantir seu artificial
desenvolvimento, o sistema especulativo se ba-
seia no crédito e não no gasto. Em uma econo-
mia capitalista típica ou “clássica”, o objetivo
fundamental – na realidade, trata-se do único
objetivo – é crescer, de modo que o capitalismo
responde a todo problema com a fórmula “mais
crescimento”, o que, na verdade, apenas gera
mais e maiores problemas.61 E isso levando em
conta que sequer os economistas sabem dizer
exatamente o que é crescimento...
Para entender não o conceito de cresci-
mento, mas sua função sistemático-ideológica,
é necessário reconhecer que a uma teologia po-

61. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, p. 27.

161
lítica corresponde uma teologia econômica, algo
esboçado por Agamben nas últimas fases de seu
projeto Homo Sacer, em especial na obra O Rei-
no e a Glória (Il Regno e la Gloria). Assim como
ocorre na teoria jurídica e na teologia, nas quais
os termos “soberania” e “Deus” são ao mesmo
tempo indispensáveis e inexplicados, podendo
ser compreendidos apenas sob formas negati-
vas (“soberania não é X ou Y”, “Deus não é A ou
B”), a economia opera com base em um conceito
central que permanece obscuro. Dele podemos
dizer com certeza apenas o seguinte: crescimen-
to não é desenvolvimento. Da mesma maneira,
a ideia de produção – intimamente ligada à de
crescimento – não é uma categoria unívoca, dado
que não contabiliza a destruição de que neces-
sita e considera como produtivas atividades que
claramente não o são, tal como a especulação e
a extração de petróleo (que é uma atividade de
obtenção).62
Mas se a especulação se baseia em crédito,
o crescimento de uma economia especulativa é
meramente fictício, motivo pelo qual sustento
que a especulação não se justifica sequer den-
tro dos horizontes “clássicos” do capitalismo. A
crise econômica iniciada em 2008 demonstrou
que a passagem do círculo virtuoso (que vai do
endividamento derivado da oferta de crédito ao
consumo, levando à produção, que faz surgir
mais crédito) ao círculo infernal (da escassez de
crédito à retração no consumo, que paralisa a

62. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, p. 14.

162
produção e torna ainda mais difícil o crédito)63
é uma consequência “natural” do sistema es-
peculativo. Isto porque o capital que deriva do
crédito não existe: ele se baseia em operações
financeiras que se dão em um vazio produtivo e
que não encontram nenhum correspondente no
mundo empírico das trocas capitalistas. Crédito:
eis outro conceito teológico-econômico, dessa
vez ligado às ideias de crença, fé, mentira. Daí
porque, na época da especulação, crescer sig-
nifica ampliar a oferta de crédito e maximizar a
aposta no risco. Tal dá origem a um verdadeiro
mundo-fantasma.
Conforme demonstraram Capella e Lorente,
as quantias existentes sob forma contábil – mas
não na realidade fenomênica do mundo produti-
vo – teoricamente garantidas pelas seguradoras
americanas que quebraram em 2008 somavam
mais de 55 trilhões de dólares, o que equivalia
ao quádruplo do PIB dos EUA e ao PIB mundial
total daquele ano. Essas quantias irreais assegu-
radas eram inclusive superiores a todo o estoque
de capital físico dos EUA, o que, sem dúvida, dá
origem a um mundo irreal.64 Um entre muitos
artefatos típicos desse mundo são os derivativos,
molas mestras do sistema econômico-especu-
lativo internacional e uma das razões da crise.
Trata-se de algo que não existe no terreno efetivo
da produção, sendo mantido por instrumentos
financeiros abstratos que se ligam aos valores

63. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, p. 85.


64. CAPELLA; LORENTE, El crack del año ocho, pp. 47-48.

163
em jogo nas futuras negociações das bolsas de
valores, não às coisas mesmas negociadas. Inves-
tir em um derivativo não significa comprar algo,
mas apostar – ter fé – em certo comportamento
do mercado e suas flutuações de preço.
É preciso compreender que a especulação
só se torna possível quando amparada sob uma
temporalidade radicalmente diversa das tradicio-
nais, o tempo do espetáculo, o qual, como visto na
seção anterior, mantém uma radical não-relação
com o passado e o futuro, apresentando-se en-
quanto presente estendido. Por isto, não posso
aceitar inteiramente a análise de Hardt & Negri
sobre o mercado financeiro, entendido enquanto
estrutura mediante a qual se expropria as capa-
cidades produtivas não apenas do presente, mas
também do futuro, e que poderia ser retomado
pela multidão, dado que o mercado financeiro
exerce suas ações com base em “trabalho futuro”.
Segundo os autores: “O capital financeiro aposta
no futuro e funciona como uma representação
geral de nossas futuras capacidades produtivas
comuns. Os lucros do capital financeiro são pro-
vavelmente a expropriação do comum em sua
forma mais pura”.65
Não há dúvida de que a especulação so-
mente é realizável, como notaram Hardt & Negri,
mediante uma particular relação de exploração
não apenas no tempo, mas do tempo. O que a
especulação rouba é, fundamentalmente, tempo.

65. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 199. Sobre a face “posi-


tiva” do capital financeiro, pp. 355-356.

164
Mas não tempo futuro, e sim tempo presente,
compreendido o presente enquanto um longo
horizonte de indeterminação que, por não con-
ter projetividade, perde qualquer ligação com o
futuro.
De outra maneira não seria explicável a
predominância da especulação de curto e cur-
tíssimo prazo, que assume enormes riscos para
obter ganhos ainda maiores. O investidor da
bolsa opta por ações de alto risco porque ele
não reconhece qualquer horizonte de futuro sé-
rio e nem se preocupa com o passado enquanto
acúmulo de experiência e formação. Para ele, o
passado se concretiza nas tabelas que mostram a
evolução de certas ações e derivativos, da mesma
maneira que o futuro se traduz na tendência que
eles podem seguir. É particularmente revelador
que tal “futuro” possa ser inferido – e de fato o é
– com base na mesma tabela que mostra a série
histórica do comportamento de ações e derivati-
vos. No mundo da especulação, passado e futuro
se tornam apenas variáveis do longo presente.
A espoliação se exerce sobre o presente,
não sobre o futuro. Agindo assim, os especu-
ladores conseguem impedir a efetiva e radical
vinda do futuro (o diferente, o aberto), trancando
o presente em si mesmo e se negando a assumir
qualquer responsabilidade por eventuais perdas
e prejuízos que suas apostas possam gerar. Sob
o argumento da contínua emergência do presen-
te – os bancos quebrarão, o sistema financeiro
entrará em colapso, seremos todos reconduzidos

165
ao paleolítico, precisamos fazer algo agora sem
pensar e nem projetar nada porque o momento
é de urgência! –, essas perdas são impostas ao
Estado que, utilizando o dinheiro de pessoas que
sequer sabem o que é uma bolsa de valores, su-
porta a constante permanência de um presente
que se recusa a acabar e a se abrir para o futuro.
Quanto às instituições financeiras, valha
aqui uma rápida comparação. Jacob Appelbaum,
ativista virtual que luta contra a censura e a vi-
gilância na internet, afirma que empresas como
o Google e o Facebook devem ser responsabiliza-
das por participar de uma cultura de controle,
pois sabem que todos os dados de seus usuários
podem ser entregues ao Estado, caso sejam re-
quisitados. Mesmo cientes disso, tais empresas
decidiram que é mais importante participar do
sistema do que construir uma cultura libertária
na rede. Elas não veem qualquer problema em
colaborar com o Estado e trair os usuários ao
violar seus direitos de privacidade.66 Da mesma
maneira, bancos e instituições financeiras de-
vem ser responsabilizados pelo simples fato de
participar, fomentar e manter uma cultura da
força e da brutalidade, ainda que encoberta pelo
manto da democracia e da normalidade.
Sem bancos, especulação e bolsas de valo-
res, o mundo seria incrivelmente menos brutal,
já que viveria com os recursos – já e sempre
imensos – de que dispõe, e não com base em

66. ASSANGE, Cypherpunks, p. 76.

166
mentiras que, mais cedo ou mais tarde, têm que
ser transformadas em verdade pelos escravos do
sistema. Bancos e especuladores jamais foram
e nunca serão vítimas do capitalismo. Eles não
são obrigados a se submeter a qualquer auto-
ridade que determine que façam o que fazem;
eles fazem o que fazem porque querem. São as
únicas autoridades reais por trás das abstrações
do sistema.

167
IV
Violências

“Tudo o que existe merece perecer”.

Mefistófeles/J. W. Goethe, FAUSTO


1
For ç a, viol ên cia, i n a ç ã o

O título deste capítulo se abre com um


provocativo plural. Violências, porque há muitas
e de diversos tipos. Ao contrário, a crença libe-
ral na razão e no debate nos leva a considerar a
experiência da violência de maneira singular e
simplista. Tudo aquilo que se opõe à boa discus-
são racional é violência e, portanto, algo mau.
Com essa espécie de moralização do conceito de
violência, o sistema liberal-capitalista se torna
incapaz de fazer distinções sistemáticas entre
os diferentes tipos de uso efetivo da força física,1
deixando de perceber o óbvio: que ele próprio, em
si e por si, é violência de classe; que para contro-
lar a violência extralegal é preciso lançar mão de
outro tipo de violência, autorizada e centralizada
pelo Estado; que todo poder político-jurídico não
passa de violência constituída continuamen-
te ameaçada por violências constituintes. Os
compromissos retóricos típicos dos parlamentos
liberais pretendem ser maneiras não violentas de
lidar com os negócios públicos, sustenta Benja-

1. HOBSBAWN, Las reglas de la violencia, pp. 301-302.

171
min, mas no final se revelam enquanto nítidos
sinais da decadência do nosso tempo, quando se
tenta apagar a consciência da presença latente da
violência (Gewalt) nas instituições jurídicas. Os
parlamentos “perderam a consciência das forças
revolucionárias [e violentas] às quais devem sua
existência”.2
Ademais, ao se negar a pensar a violência
de maneira radical, a tradição da democracia
liberal acaba por confundir suas causas e efei-
tos, tornando impossível a consideração do tema
para além de obviedades tais como “é preciso ser
violento para conter a violência”. Daí a ocorrência
de um paradoxo: a condenação moral da violência
inicialmente efetivada pelo liberalismo acaba por
gerar uma espécie de autorização para a prática
indiscriminada de vários tipos de violência, direta
ou indiretamente.
Em certas circunstâncias o uso da violên-
cia é necessário, pensa o liberal. Todavia, sen-
do a violência em si mesma má, não é possível,
mesmo nessas circunstâncias, fazer distinções.
Diante da impossibilidade de pensar a violência
mesma, o liberal entrega a sua prática “neutra”
ao Estado e, ao invés de fazer distinções, ape-
nas se pergunta pela funcionalidade de seu uso
estatal; ou seja, questiona somente se o Estado
consegue ou não, sendo violento, controlar a vio-
lência. Trata-se de uma estrutura perfeitamente
circular e sem sentido, como, de resto, todo o

2. BENJAMIN, Para uma crítica da violência, p. 137.

172
pensamento liberal. No fim das contas, resta ao
bom cidadão das democracias capitalistas ape-
nas aceitar a violência como um mal necessário
à manutenção do atual sistema de mundo, sem
fazer muitas perguntas. Assim, a moralização da
violência deságua em sua prática incontrolada.
É sintomático reconhecer, com Hardt &
Negri, que hoje a violência dos Estados inclusi-
ve abre mão das antigas justificativas morais e
legais para se legitimar, apelando a uma justifi-
cação a posteriori que tem em vista os resultados:
é legítima a violência que mantém o império,
sendo todas as demais ilegítimas, em especial
aquelas que querem mudar as estruturas de po-
der existentes.3 Em outro registro, mais irônico,
Paulo Arantes nota que o único uso autorizado
da violência nas sociedades ditas civilizadas se
destina a manter o consenso retórico sobre a
não-violência.4 Está-se aqui de novo diante do
texto seminal do jovem Benjamin, Sobre a Crítica
da Violência (Zur Kritik der Gewalt), em que ele
começa por caracterizar a violência como meio
absoluto do direito, o qual não se importa com
fins, mas apenas com a monopolização do meio
brutal que sempre o caracterizou. Nessas três
leituras – Hardt/Negri, Arantes e Benjamin –,
o reforço da ordem estabelecida funciona como
justificativa retroativa absoluta para o uso da
violência, com o que esta se transforma em meio
indiferente a fins, ou melhor, em meio indiferente

3. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 55.


4. ARANTES, Extinção, p. 80.

173
a quaisquer fins que não sejam, eles próprios,
meios de violência.
Tal percepção determina que se façam dis-
tinções. Para além de todas as outras – violência
prática, psicológica, real, física, verbal, legal,
ilegal etc. –, a distinção que me parece central é
a que separa a violência que mantém o sistema
de poder atual e a violência que o destrói. Trata-
-se da diferença inultrapassável entre violência
instituída e violência instituidora; violência que
gera só mais violência sistêmica e violência que
abre outras possibilidades. Esta última, para
Benjamin, constitui a verdadeira violência, a
violência pura que já não é meio para nada. Ela
golpeia sem sentido, como o Deus do Antigo Tes-
tamento, cujos desígnios são incompreensíveis.5
A violência pura fecha a porta da lei, desativa o
direito, o profana – quer dizer, o entrega à esfe-
ra dos gestos humanos, retirando-o da matriz
sacral à qual foi votado – e assim prepara uma
nova terra e um novo céu. Portanto, a filosofia
radical não pode evitar a discussão do problema
da violência, devendo encará-la até mesmo como
a primeira de suas tarefas filosóficas.
Há mais de um século, o hoje esquecido
Georges Sorel notou que a violência é sempre
destruidora, pretendendo, com isso, separá-la
de outra experiência social: a força, que está do
lado do sistema capitalista e, portanto, tem na-
tureza conservadora. Segundo Sorel, não se pode

5. BENJAMIN, Para uma crítica da violência, pp. 155-156.

174
confundir força e violência. Do contrário, como
exemplifica Trotski no artigo A Moral Deles e a
Nossa (Leur Morale et la Notre),6 seriam idênticos o
senhor de escravos que, por meio da astúcia e da
força, acorrenta seus servos, e os escravos que,
por meio da astúcia e da violência, quebram essas
mesmas correntes. As guerras dos opressores
não podem ser identificadas com as guerras dos
oprimidos, visto que estes pretendem questionar
o poder ao defender a sociedade contra aqueles
que querem submetê-la. Qualquer condenação
moral do uso da violência no contexto de mo-
vimentos revolucionários representaria apenas
uma tentativa, por parte dos opressores, de se
evadir do terreno real no qual se dão as lutas de
classes, pretendendo sobredeterminá-las com
base em elementos secundários e abstratos, liga-
dos a preferências subjetivas que correspondem
exatamente aos “valores morais” dos dominantes.
Tendo reconhecido que nenhuma de-
mocracia – nem mesmo as democracias bur-
guesas imperfeitas – nasceu graças a métodos
democráticos,7 Trotski afirma que a moral só
pode ser uma função da luta de classes,8 razão
pela qual não serve para desqualificar ações que,
necessariamente violentas, buscam a transfor-
mação radical das relações sociais. A mentira
e a violência são em si tão condenáveis como a
sociedade de classes que as engendra; só uma so-

6. TROTSKY, A moral deles e a nossa, p. 81.


7. TROTSKY, A moral deles e a nossa, pp. 75-76.
8. TROTSKY, A moral deles e a nossa, p. 68.

175
ciedade sem contradições sociais poderia passar
sem elas. Todavia, o caminho para construir tal
sociedade só pode ser trilhado por meios revolu-
cionários, quer dizer, violentos.9 Tal violência deve
ser julgada então tendo em vista o fim a que se
propõe, que para uns soará justo e necessário,
enquanto para outros, os que se aproveitam da
exploração do trabalho alheio, será inegavelmente
injusto. Nessa separação se antevê a diferença
soreliana entre violência e força referida no pa-
rágrafo anterior.
É revelador o fato de tal distinção ter per-
manecido indiscutida ao longo de todo o século
XX, caso se excetuem as leituras marginais de
Benjamin e outros autores menos conhecidos.
Se tanto a força quanto a violência se exercem
de maneira brutal, o dado fundamental que as
separa é que a primeira tem em vista a manu-
tenção do Estado e do direito sendo, portanto,
constantemente “justificável”. Cabe à força impor
certa ordem social em que uma minoria governa,
fazendo-o mediante graus crescentes de bruta-
lidade, que vão desde os regimes fiscais – que
garantem expropriação “lenta, mas certa” – até
ao uso efetivo da força física, passando antes
pela indispensável regulação do trabalho e do
salário, de modo a mantê-lo no menor patamar
possível.10
A força é um dado onipresente no horizonte
do Estado. Nós apenas não a percebemos porque

9. TROTSKY, A moral deles e a nossa, p. 75.


10. SOREL, Reflexões sobre a violência, pp. 195-196.

176
tentamos evitá-la, fazendo todo tipo de conces-
sões. Por seu turno, o sistema tenta a todo custo
dissimular a relação umbilical e originária entre
força e direito. A ordem só se mantém se, quando
e enquanto sustentada pela força. A amarga iro-
nia que Marx destilou em sua avaliação sobre a
Constituição francesa de 1848 n’O 18 Brumário
de Luís Bonaparte pode ser estendida a todas as
Constituições, a todos os ordenamentos jurídicos:
se a Constituição de 1848 foi morta a golpes de
baioneta, não se pode esquecer que, quando ela
ainda estava no útero, foi igualmente protegida
por baionetas apontadas para o povo, tendo vindo
à luz também pela força das baionetas.11
Tal demonstra a “verdade do Estado”, ins-
trumento que torna possível a construção de toda
a vida social com base na experiência exceptiva
da guerra. Ao pressupor riscos incalculáveis e
inimigos sempre ativos, a forma-Estado garante
a contínua e infinita modelagem da força no in-
terior da sociedade que promete proteger. Mais
do que a política, é o Estado a guerra continuada
por outros meios.
Como nota o ativista Julian Assange, a
força – que ele chama de violência, sem atentar
para o sentido soreliano do termo – conforma
uma democracia aparente sob a qual se assen-
tam propriedades, arrendamentos, dividendos,
tributações, multas, decisões judiciais, censura,
direitos autorais, marcas registradas e tudo aqui-

11. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, p. 46.

177
lo que, para existir, precisa da ameaça do uso da
brutalidade.12 Por isto, a força exige as noções de
autoridade e de obediência automática. Ao con-
trário, a violência, pelo menos aquela teorizada
por Sorel e Benjamin, não pode ter em vista a
construção de qualquer Estado ou autoridade,
mesmo a socialista, sob pena de manter o ciclo de
constante justificação da opressão. Já não mais
proletária ou dotada de qualquer outro adjetivo,
essa violência pura se exerce sem nenhuma fi-
nalidade, sendo verdadeiramente criativa porque
põe em xeque um mundo que “[...] se simplifica
terrivelmente quando se testa o quanto ele mere-
ce ser destruído”.13 Portanto, não se trata agora,
como fez a burguesia por meio da força, de tomar
o Estado e torná-lo seu. Trata-se de destruí-lo
sem considerar o que virá depois.
Aos que julgam tal proposta meramente
teórica ou “literária” e pensam ser impraticável
qualquer revolução que atente contra a “ordem
objetiva das coisas”, seria preciso responder com
o mito da greve geral revolucionária de Sorel,
que explicita a natureza radicalmente diferente
que a revolução deve assumir hoje se quiser ser
possível.
O conjunto de dispositivos que, segun-
do Agamben, chamamos de Modernidade, não
pode ser vencido pela via da violência instru-
mental. Eles foram projetados exatamente para
lidar com esse tipo de violência, legitimando-a

12. ASSANGE, Cypherpunks, p. 26.


13. BENJAMIN, O caráter destrutivo, p. 188.

178
e reconvertendo-a continuamente em direito e
política. À pura atividade, que é a força do Es-
tado, só se pode opor uma pura inatividade. Daí
a importância no pensamento de Agamben da
inoperatividade, traduzida como potência-do-
-não. Bakunin defendia a necessidade de, em
uma revolução, serem desencadeadas as más
paixões. Em um tempo de atividade incessante e
produção full time, não há paixão mais negativa
do que o não-trabalho, a inoperância, o descanso,
o simplesmente deixar-se estar.
O capitalismo financeiro simplesmente não
pode ser vencido por novas e sucessivas ondas de
violência ativa porque tal equivaleria a apagar um
incêndio com mais fogo. Somente uma não-ação
radical, tal como a que decorre da greve geral
revolucionária, pode empreender uma mudança
total que, exatamente por ser total, com nada se
compromete, apenas abre espaço. A greve geral
é o signo da inoperância, da inatividade, do se
manter imóvel diante das constantes demandas,
ameaças e seduções do capitalismo. E, por isso
mesmo, a greve geral não pode deixar de ser
violenta, pois significa abandonar o mundo a si
mesmo, desinflacionando os sentidos que lhe
são impostos pelo capital.
Em uma greve geral revolucionária não
funcionam hospitais, meios de transporte, polí-
cias, forças armadas etc., com o que se entrega
a sociedade a si mesma, o que certamente será
violento. Contudo, é uma violência qualitativa-
mente diversa da força ativa do capital. Trata-se

179
de uma violência que não age e nem se recusa
a agir, mas que simplesmente permanece, em
si e por si, repetindo um bartlebyano “preferiria
não”.
Essa violência do não – quer dizer, essa
inoperosidade – não acumula karma porque não
tem contas a acertar com qualquer ação. Assim
como no budismo, a não-ação política deixa de
gerar consequências infinitas que manteriam
ativo o sistema. Ao não ser alimentado por ações
violentas – que, no fim, são as únicas coisas que
justificam sua existência –, o sistema se desva-
nece. Bastaria uma greve verdadeiramente geral
e revolucionária (em escala mundial) de algumas
semanas para fundir as engrenagens de todos os
dispositivos do capitalismo financeiro. Se essa
perspectiva parece ilusória, isso se deve ao per-
feito funcionamento do tempo espetacular, que
nega a mudança e, no limite, a própria noção
de tempo revolucionário, tal como discutido na
seção III.3.2.
Todavia, quando se prega a não-violência
– ou melhor, a não-força – é preciso entender
que a omissão, o deixar de fazer, não é a única
estratégia, convivendo antes com diversas alter-
nativas de enfrentamento do poder capitalista.
Há outras formas de lutar contra o sistema que
passam por ações que, não sendo exatamente
omissivas ou ativas em termos clássicos, im-
pedem o Estado e o capital de agirem contra as
pessoas, tornando-os inativos. Um bom exem-
plo seria a prática da criptografia digital levada

180
a cabo por organizações como o WikiLeaks. De
acordo com seu idealizador, Julian Assange, uma
criptografia robusta torna impossível o armaze-
namento, por parte do Estado, de dados sobre
seus cidadãos. Ao garantir o anonimato na rede,
tanto o Estado quanto o capital financeiro são
privados das informações que os tornam fortes
porque possibilitam efetivo controle sobre o fluxo
do pensamento e das revoltas na rede.
Sob o argumento de que o Estado deve
investigar, vigiar e punir delitos na internet – em
especial, pornografia infantil, terrorismo, venda
de drogas e lavagem de dinheiro, os “quatro ca-
valeiros do infoapocalipse”, cuja simples menção
costuma justificar imediatamente todo e qual-
quer abuso de poder –, há muito tempo já não
há praticamente nenhum espaço livre na rede.
Todas as informações de acesso – quando, quem,
como, o quê, quanto – são permanentemente
armazenadas em servidores de empresas como
Google ou Facebook,14 localizados em território
americano e sob jurisdição estatal. Isso significa
que o governo dos EUA pode saber tudo sobre
alguém que, em qualquer lugar do planeta, uti-
lize um dispositivo conectado à internet. Ele de
fato lança mão dessas informações em inúmeras
ocasiões para proteger a si mesmo e ao grande
capital especulativo, seja manipulando notícias
e reescrevendo o passado, seja expondo e desa-

14. Apenas a título de exemplo, o Facebook mantém cerca


de 800MB de registros sobre a vida de cada um de seus
usuários. Cf. ASSANGE, Cypherpunks, p. 146.

181
creditando aqueles que denunciam a corrupção
política e as várias formas de opressão praticadas
para manter as coisas como estão.15
Para lutar contra o poder virtual do Esta-
do e do capital, Assange acredita na eficácia da
criptografia, vista como última forma de ação não
violenta, capaz de resistir a todo o aparato do
Estado porque nenhuma força repressora é capaz
de, por si só, resolver uma equação matemática.16
Organizações como o WikiLeaks e rebeldes virtu-
ais como os cypherpunks desenvolvem programas
de criptografia que impossibilitam a captação, a
armazenagem e a reconfiguração de dados, sob o
lema “privacidade para os fracos, transparência
para os poderosos”, inserindo-se em uma longa
tradição de resistência não-violenta.

15. Para uma interessante exposição dos usos e abusos


da internet patrocinados pela política de segurança dos
EUA, cf. ASSANGE, Cypherpunks, pp. 85-141.
16. ASSANGE, Cypherpunks, p. 28.

182
2
Exceçã o revol ucio n á r i a

Conforme foi dito acima, a distinção entre


força e violência é fundamental. Sem ela, corre-
-se o risco de repetir um dos principais erros de
Marx, denunciado por Sorel: enxergar o projeto
da revolução socialista enquanto processo aná-
logo à imposição histórica do Estado capitalista.17
Debord faz a mesma crítica, eis que, a seu ver,
Marx tentava fundamentar a revolução socialis-
ta com base em uma estrutura que repetisse o
caminho das revoluções burguesas, acreditando
em um processo necessário de evolução rumo
ao comunismo.
O processo de afirmação político-econômi-
co burguês é único e irrepetível. Não reconhecer
sua originalidade, vendo-o como uma fôrma ou
typos histórico constantemente atualizável, leva
à incompreensão da específica originalidade de
outro modelo de revolução, que ainda está por
se fazer. E ela permanecerá assim, no reino das
impossibilidades, enquanto não for atualizável
de acordo com suas próprias necessidades e
energias produtivas/criativas.

17. SOREL, Reflexões sobre a violência, V, IV, p. 199.

183
Marx parece não enxergar que, assim como
o modo de produção asiático, há uma imobilida-
de estrutural que perpassa as lutas de classe,
razão pela qual os escravos jamais venceram os
cidadãos livres na Antiguidade e os servos sem-
pre foram subjugados pela nobreza no Medievo,
sendo a burguesia a única classe revolucionária
que sempre venceu.18 Isso traz como consequên-
cia o fato de vivermos sob um estado de exceção
que é a regra, urgindo substituí-lo por um real
estado de exceção, como sugere Benjamin no
decorrer de suas Teses.
Ao longo da história do Ocidente a regra
vem sendo a dominação e a barbárie, travestida
ou não sob formas democráticas. Um verdadeiro
estado de exceção (wirklicher Ausnahmezustand)
é, então, aquele que representa uma real exceção
nesse continuum histórico marcado pela perma-
nência da submissão da maioria diante da força
da minoria. Trata-se de conferir à exceção seu
significado primigênio de revirada, corte e abso-
luta exterioridade em relação ao que está dado
e regrado.
Ao contrário do que ocorre com Schmitt, o
verdadeiro estado de exceção de Benjamin não
se revela enquanto estrutura estatal em que o
direito está suspenso e, por isso, se autorizam
as maiores atrocidades para mantê-lo (ditadura
comissária) ou refundá-lo (ditadura soberana).
Diferentemente, o verdadeiro estado de exceção

18. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Teses 86 e 87.

184
– que, segundo a Tese VIII, “tornará melhor a
nossa luta contra o fascismo” – corresponde a
um signo de descontinuidade diante da história
político-jurídica do Ocidente, representando não
um desacelerador do tempo, mas um verdadeiro
redirecionador da história.
Nessa concepção, a exceção não signifi-
ca suspensão do direito, mas seu desvio. Por
isso, mais do que verdadeiramente exceptiva
– no sentido schmittiano de algo que suspende
a normatividade comum para refundá-la –, a
verdadeira exceção que Benjamin visualiza é ex-
cessiva. Para dar conta de tal exigência, o pensar
filosófico precisa assumir aquelas características
que Nietzsche ligara ao seu conceito intempesti-
vo de história, que se põe “contra o tempo, para
agir sobre o tempo e favorecer o acontecimento
de um tempo futuro”.19 Da mesma maneira que
a história nietzschiana, a filosofia radical pre-
cisa ser intempestiva não porque venha tarde e
se atrase, mas por vir antes, ou seja, no tempo
certo, sendo capaz de fundá-lo.
Caso se leve a sério a Tese VIII de Benjamin,
percebe-se que a atual crise econômica iniciada
em 2008 é tudo, menos uma verdadeira crise.
Sua função não é abrir o tempo e proporcionar
uma espécie de limpeza absoluta do terreno para
a realização de inéditas escolhas e decisões so-
ciais; ela serve apenas para reconfigurar o sis-
tema capitalista, purgando-o e mantendo-o. Não

19. NIETZSCHE, Zweites Stück, p. 5.

185
é por acaso que os discursos que se centralizam
na “resolução” da crise jamais proponham novas
possibilidades de organização político-econômica,
preferindo insistir na necessidade de resguardo
do sistema e preparando sua reconstrução; ao
custo, é claro, de sacrifícios e mais sacrifícios
imponíveis àqueles que não deram origem à cri-
se, com ela não lucraram e agora são chamados
a validar – ainda que formalmente, mediante
Parlamentos já totalmente subservientes ao ca-
pital especulativo – políticas de “austeridade”.
Essa crise que insistentemente se teme não é
um evento capaz de abrir a história, e sim mais
um mecanismo de recrudescimento da “única
alternativa” legada pelo fim da história.
Se, como quer Badiou, um evento signifi-
ca uma espécie de ruptura no desenvolvimento
planejado e simétrico da humanidade20 – conceito
que se aproxima do de verdadeiro estado de exce-
ção de Benjamin –, a presente crise só pode ser
lida enquanto seu contrário absoluto, ou seja,
um não-evento. Ela apenas reforça a onipresen-
ça e a inescapabilidade do capital e da opressão
que ele instrumentaliza. Por isto, Benjamin tem
razão quando diz que vivemos sob um estado
de exceção fictício. Tornada cotidiana, a crise
se mostra como mecanismo de autocompensa-
ção e retroalimentação do sistema capitalista,
entendido enquanto estrutura econômica que
sustenta a experiência temporal característica
da Modernidade: a ideia de normalidade da crise.

20. BADIOU, L’événement “crise”, p. 20.

186
Ora, a “crise” é normal – crack das bol-
sas de 1929, crise do petróleo nos anos 1970,
crise russa de 1998, crise financeira mundial
de 2008 etc. – porque integra os mecanismos
profundamente opressivos que o capital utili-
za para explorar as forças de produção (e de
distribuição) que ele submete. Por outro lado,
uma crise real – o verdadeiro estado de exceção
de que fala Benjamim ou o evento de Badiou –
pressuporia a possibilidade de uma reabertura
radical do tempo, uma destruição sem salvação
do sistema capitalista, que vive da ficcionalida-
de da crise tornada normal. Ainda que não seja
nesse sentido original que caminha a tese de
Koselleck – segundo a qual a Modernidade é o
tempo da crise –, tal ideia pode ser aqui retomada
sob outro viés.
O mero fato da existência de várias crises
sucessivas na história recente do Ocidente de-
monstra que não houve qualquer ruptura real
com o sistema, mas sim sua simples reestrutu-
ração. Sempre internas ao sistema e jamais ex-
ternas, sempre inteligíveis sob a grande metáfora
dos “ciclos de produção”, as crises se encadeiam
enquanto movimentos de recolocação do sistema
capitalista.21 Assim, diante de uma falsa crise
– que na verdade é só um ajuste –, cabe à filo-
sofia radical a preparação apocalíptica de uma
verdadeira crise, em que todas as coisas sejam
julgadas sem a garantia prévia do que quer que
seja.

21. CARRASCO-CONDE, Blow-up, pp. 131-132.

187
Segundo Badiou, eventos são eclosões
inesperadas de tempo capazes de fundar novas
narrativas e vivências sociais, atualizando
os tempos em potência que adormecem na
linearidade do tempo “histórico” capitalista. Os
dispositivos ideológicos do capitalismo servem
para transformar continuamente eventos em
acontecimentos, quer dizer, em conjuntos de
fatos previsíveis, assimiláveis pelo sistema e que
apenas confirmam o télos da história, ou seja,
sua finalidade dada de antemão e “comprovada”
por certos acontecimentos habilmente interpre-
tados. Convertendo sem cessar os eventos – im-
previsíveis e capazes de abrir vários tempos – em
acontecimentos que apenas confirmam a suposta
direção da história, a narrativa do capitalismo
triunfante nos abandona em um presente fechado
sobre si mesmo, que muitos autores concordam
em chamar de extenso presente.
Tal estrutura funciona sob uma lógica au-
torrecursiva, levando-nos a crer que toda histó-
ria humana está presa em um pesadelo que se
repete de modo similar, aceitando apenas algu-
mas mudanças cosméticas – crises de ajuste do
sistema – que, na verdade, nada transformam,
dado que pressupõem uma contínua reestrutu-
ração sem comunidade.22 Prova disso é que, na
recente crise econômica em que vivemos, a base
que sustenta o sistema – e que diz respeito às
relações desiguais entre produção, distribuição
e consumo – sequer foi questionada.

22. DEBORD, A sociedade do espetáculo, Tese 192.

188
Nessa perspectiva, as crises cíclicas do ca-
pitalismo encontram seu exato símile nos periódi-
cos estágios de exceção que de tempos em tempos
se apoderam da “normalidade” jurídico-política,
seja para restaurá-la, seja para reformá-la, res-
pectivamente sob a forma da ditadura comissária
e soberana descritas por Carl Schmitt23 e que,
ao fim e ao cabo, servem apenas para manter o
direito, nunca superá-lo. Ao absolutizar o presen-
te, a temporalidade do contínuo acontecimento
capitalista nos faz perder qualquer ligação com o
futuro, que poderia ser visto como campo projeti-
vo de expectativas. No sistema de temporalidade
pós-moderno, o futuro sempre já não existe, pois
equivale apenas a uma extensão do presente. De
modo similar, o passado é compreendido apenas
em sua dimensão museológica desconectada do
presente, com o que seu potencial revolucionário
é perdido.
A transformação de horizontes pela qual
hoje se aspira já começou a ocorrer – sem, contu-
do, chegar a se completar – em diversas oportu-
nidades no passado; se este fosse compreendido
enquanto fundamento do presente, poderia gerar
outras tantas oportunidades, trazendo para o
campo da atualidade o que no passado foi apenas
projeto inconcluso. Esse é o sentido da “tradição
dos oprimidos” de Benjamin, que pretende ver
em cada derrota do passado a possibilidade de
uma mudança presente mediante a retomada
de projetos alternativos de sociedade que foram

23. SCHMITT, La dictadura, p. 27.

189
eliminados e calados na dinâmica do extenso
presente.
Mas se a estratégia dos dispositivos ideoló-
gicos do capitalismo consiste em, mediante a su-
pressão da função revolucionária do passado e do
futuro, transformar eventos em acontecimentos
para justificar a opressão que já foi e preparar o
campo para novas e insuspeitas brutalidades –
tal como ocorreu após o 11 de setembro, quando
o mecanismo bélico-econômico ocidental encon-
trou a perfeita justificativa para uma ação global
e permanente de “ajuste” do Oriente Médio –, a
tarefa de uma filosofia radical só pode ser pensar
em um evento inassimilável, semelhante àquela
tão mal compreendida violência pura ou divina
aludida por Benjamin nas belas e enigmáticas
sentenças finais do ensaio Sobre a Crítica da
Violência.
A violência divina, tal como o deus do An-
tigo Testamento, não se explica e nem é compre-
ensível, ao contrário da violência mítica, sempre
justificadora de si mesma, sempre debatedora e
raciocinante, sempre presente enquanto meio
absoluto do direito. A violência divina simples-
mente golpeia, súbita como um raio. A melhor
imagem para ilustrá-la seria a do Messias que,
ao contrário do que se poderia esperar de um
deus do amor e da humildade, munido de chicote
expulsa os vendilhões do templo, demonstrando
o caráter constitucional do ato de violência pura,
bem como a possibilidade de assimilar a violência
– desde sempre meio de manutenção do direito

190
– à destruição do sistema econômico de trocas
já estabelecido no próprio coração do templo e,
por isso mesmo, tido não apenas como “normal”,
mas também inultrapassável.
Em cada parcela de tempo capitalista pre-
tensamente “histórico” – “histórico” porque real e
experienciável, por estar escrito nos livros oficiais
cuidadosamente mantidos pelos vencedores – há
tempos em potência. Na linguagem do apêndice
B das Teses de Benjamin, são as portas estrei-
tas pelas quais, a qualquer momento, o Messias
entrará. Esses tempos podem e devem ser des-
pertados por eventos que, mais do que fundar
novos tempos, apontem para possibilidades al-
ternativas de experimentar a realidade.
Tanto o evento, estrutura imprevisível e
causadora de ruptura, quanto a ideia de sua
inassimilabilidade pelo sistema dos acontecimen-
tos indicam uma dimensão que, por estar fora
do horizonte da pobre experiência do presente
capitalista, se tem como impensável. Eis a velha
desculpa, cantada em prosa e verso desde Par-
mênides até Hegel: pensar o impensável – eis a
exigência do evento e da violência pura – significa
torná-lo pensável. Nessa perspectiva, o que resta
do impensável enquanto pura impossibilidade do
pensar sobrevive apenas na dimensão miserável
da experiência imediata, própria da imprevisibi-
lidade do evento. Por ser mera experiência, tal
resíduo não é pensável, mas no máximo viven-
ciável, não sendo, portanto, objeto da filosofia,
mas da confusa e caótica práxis que a ave de

191
Minerva virá ordenar ao fim do dia. É exatamente
essa função que a filosofia radical deve recusar,
negando-se a ser mera descrição e justificação
de tudo que há de pensável no mundo e que,
portanto, só se dá na seara do extenso presente
capitalista.
Se for verdadeira a tese de Marx, segundo
a qual as sociedades só se põem problemas que
podem resolver, é chegada a hora de afrontar
esse gigantesco problema chamado capitalismo.
Para tanto, cabe à filosofia radical expandir os
limites do pensável, abrindo ao pensamento o
campo do experienciável. Forçando as portas do
possível, a filosofia radical abre possibilidades
para a ação social an-árquica capaz de, mediante
a força da negação, expulsar os vendilhões do
templo e colocar a economia em um lugar no qual
ela jamais esteve: no anticampo que anuncia a
submissão da produção – e da distribuição – a
uma verdadeira política, à comunidade, à demo-
cracia radical.
O risco a se evitar a qualquer custo nesse
processo, e que só a filosofia radical pode reco-
nhecer, é mudar para que tudo permaneça como
está, conforme adverte Tomasi de Lampedusa
no clássico O Leopardo (Il Gattopardo). A estru-
tura mesma do sistema capitalista está cons-
truída para tornar ineficaz todo projeto político
de mudança. Prova disso é a sua capacidade
de domesticar os movimentos de contestação,
transformando crítica em mero espetáculo. Para
compreensão desse tema, talvez seja instrutiva a

192
análise de um caso real – as Jornadas de Junho
de 2013 no Brasil –, conformando assim uma
análise que vai do pensamento à práxis.

193
3
Revo l uçõ es crít i cas
e espetac ul ar e s

3.1. O pano de fundo

Algo estranho aconteceu no Brasil entre


os dias 17 e 29 de junho de 2013. O que come-
çou como uma simples e diminuta manifestação
contra o aumento do preço do transporte público
em São Paulo rapidamente se tornou o maior
movimento de contestação popular que o Brasil
viu nos últimos 20 anos, com a ocupação de
espaços públicos e protestos diários nas prin-
cipais capitais do país que reuniam de 100.000
a 250.000 manifestantes nas principais cida-
des (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e
Brasília), congregando em todo o país cerca de
3.500.000 pessoas nas ruas.24 Esses movimentos
ficaram conhecidos como Jornadas de Junho ou
Revolução do Vinagre, tendo em vista a violenta
reação das forças policiais e militares brasileiras,
que utilizaram de forma maciça gás lacrimogêneo
para dispersar os manifestantes.

24. Os dados empíricos sobre as manifestações foram


colhidos no artigo de SECCO, As jornadas de junho.

195
Mas alguém descobriu que a ação irritante
do gás lacrimogêneo no organismo humano pode
ser mitigada pelo uso do vinagre, que assim se
tornou um símbolo de resistência para os mani-
festantes que diariamente tomavam as ruas do
Brasil. Ao mesmo tempo, de maneira completa-
mente autoritária e ilegal, o vinagre passou a ser
visto pelas forças policiais como uma substância
ilícita comparável a drogas proibidas, de modo
que qualquer um que portasse vinagre nos dias
e locais das manifestações poderia ser preso.
E isso sem qualquer lei ou ato normativo que
classificasse o vinagre como substância de uso
ou porte ilegal. Ele era e ainda é no Brasil e no
mundo um simples tempero para saladas. Mas
o novo uso dado ao vinagre pelos manifestantes
de junho levou o Estado a também “inovar”, sem
qualquer preocupação em manter o simulacro
de legalidade sob o qual se mantém.25
As manifestações se iniciaram tendo em
vista reivindicações bem concretas e tradicio-
nais, mas logo se transformaram em movimen-
tos difusos, acêntricos, multitudinários e, em
alguns casos, violentos, com o que a ordem es-
tabelecida pôde demonizá-los, já que o uso da
força, segundo entendem as classes dominantes,
é monopólio do Estado, ou seja, delas próprias.
Uma das mais interessantes circunstâncias desse

25. Para um relato sobre as arbitrariedades e os abusos


da polícia brasileira quando confrontada com essa “peri-
gosíssima” substância, qual seja, o vinagre, cf. LOCATELI,
Vinagre dá cadeia.

196
processo foi a condenação inicial dos protestos
feita com o descaro habitual por todas as mídias
que, todavia, passados alguns dias, começa-
ram a elogiá-los, interpretá-los e assimilá-los à
matriz do poder dominante, colocando na boca
nos manifestantes slogans e objetivos que não
existiam ou eram completamente minoritários.
Só assim o espetáculo midiático, sempre ao lado
das forças conservadoras, conseguiu efetuar a
separação entre as “pessoas de bem” e os “vân-
dalos” infiltrados no movimento que, uma vez
etiquetados, puderam ser duramente reprimidos
nas verdadeiras praças de guerra instaladas em
São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Contudo, o que não se percebeu – ou não
se quis perceber – nesses movimentos e suas
reivindicações caóticas, descentralizadas e con-
traditórias é o que efetivamente estava e ainda
está em jogo: o poder de decisão sobre a norma-
lidade e a exceção no Brasil, a simples e básica
liberdade de ir e vir, a compreensão de que os
recursos públicos devem ser aplicados em fina-
lidades realmente públicas e não na construção
de estádios de futebol que jamais se abrirão para
aqueles que os ergueram. Em suma: o destino
de um país que parece ter acordado brevemente
de um longo pesadelo e percebido que a “pátria
de chuteiras” é um entre os muitos mitologemas
de que o poder se utiliza para manter a ditadura
econômica capitalista travestida com cores libe-
rais e “democráticas”.

197
Não é coincidência, portanto, que a Re-
volução do Vinagre tenha se iniciado quando o
Brasil recebia o evento fascista da Fédération
Internationale de Football Association (FIFA) cha-
mado de Copa das Confederações, uma espécie
de ensaio geral para a Copa do Mundo de futebol
de 2014. A Copa das Confederações determinou
a criação de zonas de exceção no entorno dos
estádios das principais cidades brasileiras. Nelas
valia o mandato soberano da FIFA, ainda que
as forças policiais e militares que as vigiassem
fossem exclusivamente brasileiras, dando assim
um perfeito exemplo da privatização de espaços,
recursos e serviços públicos.
Mas esse é apenas um dos exemplos do
autoritarismo que se revelou no Brasil quando da
Copa das Confederações. Entre as muitas ações
autoritárias e excepcionais tomadas pelo governo
brasileiro para “possibilitar” a Copa pode-se citar
as irregularidades na construção de estádios e
obras públicas, as desapropriações a que foram
submetidas famílias inteiras que tiveram o azar
de habitar áreas destinas à exploração econômica
monopolista da FIFA, a criação de novos crimes
e mecanismos de uso das forças de segurança
do Estado contra seus próprios cidadãos, que
em diversas cidades brasileiras ocasionaram a
morte ou o desaparecimento de pessoas durante
as manifestações de junho.26

26. As diversas violações de direitos praticadas no Bra-


sil em nome dos megaeventos (Copa do Mundo de 2014
e Olimpíadas de 2016), em especial no que diz respeito

198
Pois bem, não obstante esse rico quadro,
a teoria social acadêmica brasileira foi incapaz
de oferecer interpretações e leituras alternati-
vas sobre o movimento. Para além de algumas
rápidas análises escritas no calor do momento,
algumas delas realmente excelentes,27 não houve
no Brasil um real debate em profundidade sobre
as Jornadas de Junho, que assim acabaram
condenadas a um rápido esquecimento. É como
se o pensamento filosófico-social não soubesse
exatamente o que fazer com um movimento em
si mesmo contraditório e que negou, graças à
sua própria estruturação acêntrica, horizontal
e violenta, as categorias canônicas de análise
costumeiramente utilizadas para enquadrar e
compreender a realidade político-social.
Assim, por exemplo, se algumas correntes
julgaram o movimento legítimo em seus objetivos,
por outro lado condenaram seu apartidarismo e
a ausência de líderes e propostas bem definidas.
Já outras orientações teóricas insistiram no papel
democrático das Jornadas de Junho, mas sem
conseguir explicar e aceitar seu caráter violento.
Muitos analistas se limitaram a se escandalizar e
logo a condenar a convivência (efêmera, é verda-

às remoções forçadas, estão documentadas no extenso


dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos no
Brasil, produzido pela Articulação Nacional dos Comitês
Populares da Copa (ANCOP), disponível em: www.portal-
populardacopa.org.br.
27. A obra coletiva Cidades rebeldes recolhe alguns ex-
celentes textos sobre diferentes aspectos das Jornadas
de Junho.

199
de) de grupos sociais normalmente antagônicos
(exemplo: moradores de favelas e filhos da classe
média alta brasileira), imputando exclusivamente
aos primeiros, aos pobres, o recurso à violência,
tentando assim traçar contínuas distinções entre
os “bons e legítimos manifestantes” e os “maus
baderneiros” que teriam se infiltrado em um mo-
vimento que a mídia já dominara ao chamá-lo de
“cívico”, “patriótico” e “democrático”.
De qualquer maneira, o que se percebe,
mais do que uma apatia crítica, é uma ausência
de categorias conceituais amplas o suficiente,
que permitam pensar a Revolução do Vinagre
em sua integralidade, e não apenas tendo em
vista algumas características, tais como sua or-
ganização acêntrica ou suas práticas violentas.
Ao que me parece, só o instrumental teórico da
filosofia radical é capaz de oferecer uma leitura
do movimento que, transcendendo a mera análise
acadêmica, proponha pautas concretas de ação
revolucionária nos dias de hoje.

3.2. Lutas em rede



Um dos riscos que os movimentos sociais
pós-modernos devem enfrentar me parece bem
moderno. Trata-se da ressaca da revolução. Marx
entende que esse fenômeno é típico das revolu-
ções burguesas do século XIX, nas quais as pes-
soas, como que em um sonho, atingiam sucesso
após sucesso, respiravam o êxtase das ruas,

200
se apaixonavam por suas ideias (a expressão é
de Žižek) e logo em seguida acordavam em um
mundo essencialmente igual ao que pretendiam
transformar, ou seja, um mundo de oprimidos e
opressores. Ao contrário, seria preciso seguir o
modelo que Marx vê nas revoluções proletárias de
seu tempo, que são autocríticas e sabem sempre
retomar sua marcha para reafirmar as conquistas
que obtiveram, zombando de si mesmas e dos
limitados objetivos que no início as inspiraram,
querendo e exigindo sempre mais, como parece
ter ocorrido, em algum momento, no Brasil em
junho de 2013, quando um simples aumento
de 20 centavos no preço do péssimo transporte
público de São Paulo ocasionou um maciço e
insistente movimento nacional de contestação
em que os mais otimistas quiserem ver traços
pré-revolucionários.
Retomando um rápido parágrafo d’O 18
Brumário de Luís Bonaparte, Marx nos apresenta
duas formas de revolução, a burguesa e a pro-
letária, oferecendo-nos ainda o elemento capaz
de diferenciá-las, que é a capacidade de atingir
um ponto de não-retorno, algo que só as revo-
luções proletárias conseguiriam.28 Com efeito, a
classe proletária, mais do que revolucionária por
natureza, seria a última classe revolucionária,
pois é a única que, para se autolibertar, precisa
destruir todas as condições sociais de opressão
do capitalismo e assim mudar o mundo como
um todo, não sendo suficientes meras reformas.

28. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, pp. 29-30.

201
Uma atualização dessa intuição de Marx poderia
ser feita para nos permitir comparar a revolução
burguesa do século XIX com as revoluções espe-
taculares do século XXI.
Uso o termo “espetacular” no sentido que
lhe dá Debord, pretendendo frisar o fato de que
um movimento assim só sobrevive no curto tempo
em que sobrevive a sua imagem. Por isso, nas
revoluções espetaculares não há ação efetiva
propriamente dita, mas antes um jogo onde im-
porta ver e ser visto. Não é que nelas as pessoas
estejam simplesmente brincando. É claro que
elas querem extravasar suas queixas privadas e
insatisfações públicas, e isso é um aspecto muito
importante que não pode ser ignorado. Toda-
via, os manifestantes espetaculares estão mais
preocupados em tirar uma foto a ser curtida no
Facebook, de modo a comprovar que participa-
ram da história, lutaram pela decência do país,
criticaram o governo; em uma palavra: tiveram
uma experiência.
Nada mais característico da nossa época,
pobre de experiências, do que a exigência segun-
do a qual tudo deve ser registrado e vivido como
memorável, com o que perdemos a verdadeira
dimensão da memória, que só pode ser constru-
ída mediante a efetividade da experiência.
O segundo modelo é aquele das revolu-
ções que Marx chamou de proletárias e eu me
proponho a chamar de críticas. Emprego aqui
a palavra “crítica” tanto no sentido tradicional
proposto por Kant quanto naquele pensado por

202
Koselleck, para quem a ideia de “crítica” se liga
à noção de “crise”. Em sua origem grega, “crise”
é o termo médico que indica o ponto decisivo de
certa doença. Uma vez atingido o ponto crítico,
o doente se cura ou morre. Assim, uma revolu-
ção ou um movimento social é crítico quando
representa uma situação decisiva (um ponto de
não-retorno) ao mesmo tempo que se autorre-
presenta.
Essa junção da crítica do conhecimento
kantiana com a crítica decisiva de Koselleck
permite que as revoluções críticas pensem suas
práticas ao realizá-las, entendendo que a trans-
formação do sistema de produção e de reprodu-
ção da vida social exige uma aposta em novas
subjetividades capazes de dar o passo sem vol-
ta aludido por Marx. Nesse sentido, o papel da
violência criadora não pode ser minorado, dado
que muitas das mudanças radicais, para além
do ponto de retorno e normalização, exigem o
uso efetivo da violência em suas múltiplas sig-
nificações, tanto ativas (o exemplo seria a ação
dos black blocs) quanto passivas (aqui ainda
vale a intuição do velho Sorel sobre a greve geral
revolucionária).
A partir dessa constatação, torna-se mais
fácil compreender o caráter aparentemente anár-
quico das Jornadas de Junho. Os manifestantes,
pelo menos até certo momento, não traduziram
sua revolta em propostas e projetos políticos
alternativos, tendo lhes parecido muito mais
importante trazer à luz uma denúncia e uma

203
condenação, ambas gerais, do sistema capitalis-
ta. Ainda que de maneira inconsciente e somente
durante poucos dias, o movimento realizou uma
das tarefas centrais para a crítica efetiva do sis-
tema: não se deixar capturar em suas engrena-
gens e renegar a estrutura capitalista como um
todo. As dificuldades que tal postura faz surgir
são imensas e quase insuperáveis.
A tradição de todas as gerações mortas
pesa sobre a mente dos vivos como um pesadelo
(lasten wie ein Alp), diz Marx logo na primeira
página d’O 18 Brumário de Luís Bonaparte.29 Ain-
da que os homens façam sua própria história,
eles não a constroem da maneira como querem,
livres de qualquer amarra, mas somente dian-
te das circunstâncias herdadas do passado e
transmitidas ao presente, posição que, em seu
determinismo, traz à baila mais uma vez o mito
da dialética. Retenhamos, contudo, o caráter
crítico da afirmação de Marx para compreender-
mos o que ele não poderia entender sob o manto
progressista da dialética, mas que, ainda assim,
em contradição com o próprio sistema que ele
criou, pôde concluir: qualquer revolução corre
o risco de não ser mais que uma revisão, uma
retomada de antigos nomes e gritos de guerra.
Ao final do 18 Brumário, fazendo um balan-
ço de todas as revoluções que abalaram a França
na primeira metade do século XIX e culminaram
com a grotesca ditadura do sobrinho de Napo-

29. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, p. 25.

204
leão, Marx afirma que revoluções como essas,
parciais e feitas nas regras do jogo burguês, só
aperfeiçoam a máquina ao invés de quebrá-la.30
Essa ideia é retomada na obra que pode
ser vista como uma sequência direta do 18 Bru-
mário, qual seja, A Guerra Civil na França (Der
Bürgerkrieg in Frankreich), texto seminal no qual
Marx leva suas teses às últimas consequências.
Se antes ele já percebera que toda revolução
social precisa dissolver e destruir o poder cons-
tituído e as relações antigas que o mantém,31
exigindo para tanto não a modificação da pro-
priedade privada, mas o seu aniquilamento, não
a camuflagem das contradições de classe, mas
a sua destruição; não a melhora da sociedade
presente, mas a fundação de uma nova,32 em A
Guerra Civil em França Marx intui a necessidade
de uma revolução contra o Estado, entendido este
como aparato de opressão específico da classe
burguesa. Isso significa que a estrutura de po-
der burguesa deve ser negada in toto, não sendo
aproveitável em nenhum aspecto.33
O Estado não é mais do que a representa-
ção do poder nacional do capital sobre o traba-
lho, diz Marx, tratando-se de uma máquina do

30. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, p. 141.


31. MARX, Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a
reforma social” em MARX, Lutas de classes na Alemanha,
pp. 51-52.
32. MARX; ENGELS, Mensagem do comitê central à liga dos
comunistas em MARX, Lutas de classes na Alemanha, p. 64.
33. MARX, A guerra civil na França, p. 54.

205
despotismo de classe que mostra sua verdade
sempre que se vê ameaçada por uma revolução
social, quando abre mão dos mitologemas igua-
litários e conciliatórios com os quais pretende
se caracterizar no nível retórico e recorre à re-
pressão pura e simples, revelando sua natureza
de organização da força pública voltada para a
escravização social.34
Para escapar desse pecado original que é
o Estado, os revolucionários precisam criar suas
próprias instituições e práticas sociais, como
fizeram em um primeiro momento os commu-
nards de 1871. Diante da hierarquia e da repre-
sentação parlamentar burguesa, a Comuna de
Paris apostou em formas horizontais de decisão
que talvez tenham falhado porque, para além do
brutal cerco imposto à Comuna pela burguesia
acastelada em Versailles, a jovem república não
ousou concretizar a vontade de destruição em
que se baseou.
É famosa a passagem da introdução que
Engels escreveu em 1891 para A Guerra Civil
na França de Marx, na qual ele descreve como
os communards se detiveram respeitosamente
diante das portas do Banco da França, dizendo
que, se o tivessem capturado, lhes valeria mais
do que 10.000 reféns.35 Os parisienses deveriam
ter invadido o Banco e, assim como fizeram com
as escolas e o exército, transformado-o em ins-

34. MARX, A guerra civil na França, p. 55.


35. ENGELS, Introdução à Guerra civil na França, de Karl
Marx, p. 194.

206
tituição revolucionária. Daí deriva uma máxima
ainda válida para nosso tempo, que determina
não a simples aniquilação do velho, mas a sua
transformação alquímica em algo novo, quer
dizer, algo profanado, entregue a usos até então
impensáveis capazes de abrir o tempo.
Contudo, a violência não é o único cami-
nho para produzir revoluções críticas, ainda que
talvez seja o mais importante. Os movimentos
críticos sabem explorar muito bem as contradi-
ções do sistema capitalista, que mantém apenas
no nível simbólico a retórica liberal e democrática
cujo produto final são os direitos fundamentais.
Dessa maneira, uma estratégia revolucionária
inteligente consiste em exigir que o sistema re-
alize suas promessas de redistribuição social
da riqueza e de governo democrático, todas elas
plenamente incompatíveis com a verdadeira na-
tureza individualista-possessiva do capital.
Claro que, ao reivindicar direitos funda-
mentais, os movimentos revolucionários devem
ter plena clareza quanto à impossibilidade de
sua real consecução no marco do Estado ca-
pitalista. Como adverte Lênin, trata-se de usar
os mecanismos retóricos da democracia liberal
parlamentar para demonstrar sua irrealidade
enquanto verdadeiro sistema igualitário, deter-
minando, com isso, transformações sociais reais
e não simples reformas que mantêm o quadro

207
de opressão social contra o qual os movimentos
críticos lutam.36
Agindo assim, os grupos revolucionários
podem levar o sistema a um colapso real ou ver-
bal, de modo que ele seja obrigado a se mostrar
às nuas enquanto simples instrumento de domi-
nação econômica. É claro que retirar a máscara
da Medusa envolve enormes riscos. Como notou
Marx no contexto da crise do Parlamento francês
de 1848 a 1851, quando os liberais percebem que
os mecanismos que criaram para vencer o despo-
tismo feudal – o sufrágio universal e as liberdades
civis, por exemplo – passam, a partir de certo
momento, a trabalhar contra seus interesses
imediatos de acumulação e lucro, justificando e
fortalecendo os opositores do sistema, se sentem
tentados a abrir mão de um governo civil semide-
mocrático constitucionalmente limitado e apelam
para a ditadura pura e simples, de maneira a
garantir a “tranquilidade” que o comércio exige.37
É exatamente a existência desse risco que, além
de servir para desmascarar o poder, determina se
estamos diante de uma situação revolucionária
realmente crítica e não apenas espetacular, na

36. “Nosotros somos partidários de la república democrática


como la mejor forma de Estado para el proletariado bajo el
capitalismo, pero no tenemos ningún derecho a olvidar que
la esclavitud asalariada es el destino reservado al pueblo,
incluso bajo la república burguesa más democrática. Más
aún. Todo Estado es uma ‘fuerza especial para la represión’
de la clase oprimida. Por eso, todo Estado ni es libre ni es
popular”(LENIN, El estado y la revolución, pp. 60-61).
37. MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte, pp. 80-82.

208
qual, por definição, permanece ativa e eficiente a
produção simbólica legitimadora, característica
da retórica oficial dos direitos fundamentais.
No entanto, precisamos tomar cuidado
para não ontologizar a diferenciação entre revolu-
ções espetaculares e revoluções críticas, mesmo
porque a exigência de não-retorno que as separa
é uma condição dificilmente realizável de modo
imediato, estando sujeita a condições espaço-
-temporais bastante complexas.
Nesse sentido, é bom lembrar da tese de
Hardt & Negri,38 a qual reflete uma ideia já pre-
sente em Marx. Segundo afirmam, as resistên-
cias ao capitalismo global e organizado em rede
assumem essas mesmas características, de modo
que uma manifestação como aquela ocorrida no
Brasil em junho de 2013 não pode ser avaliada
exclusivamente tendo em vista o contexto bra-
sileiro, buscando saber se ela atingiu um ponto
de não-retorno local para então classificá-la entre
as revoluções espetaculares ou críticas. Na ver-
dade, as Jornadas de Junho no Brasil refletem
um sentimento difuso de revolta contra a ordem
objetiva das coisas imposta pelo capitalismo e,
como tal, são herdeiras de movimentos anterio-
res, do mesmo modo que inspirará outros no
futuro.
Compreender a função de um movimento
contestatório significa entender que ele se dá
em rede, de maneira acêntrica e mediante uma

38. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 361 et seq.

209
temporalidade/espacialidade não-linear, que
pode pular de país a país e de momento a mo-
mento, configurando uma estrutura aparente-
mente randômica, mas que segue seus próprios
padrões radicados nos princípios da autonomia
e da horizontalidade.
As consequências mais importantes dis-
so para as revoluções críticas são a ausência
de lideranças e a adoção do formato de rede.
Para saber se as Jornadas de Junho brasileiras
atingiram ou atingirão um ponto de não-retorno
que as torne críticas, é preciso entender que elas
dialogam, complementam e ressignificam outros
movimentos ocorridos nos últimos 14 anos, desde
a batalha de Seattle em 1999 contra a reunião
da Organização Mundial do Comércio (quando o
modelo acêntrico, apartidário e horizontalizado
de contestação se mostrou pela primeira vez) até
às manifestações do Occupy Wall Street e dos
indignados espanhóis em 2011 e 2012.
Só quando forem desvendadas as profun-
das ligações que unem esses movimentos, o que
não significa que sejam redutíveis a um único
modelo ou projeto político, será possível entender
que apontam para um questionamento global
do capitalismo, o qual pode ter começado como
uma revolução espetacular, mas agora tende a
se tornar uma revolução crítica, incluindo países
tanto do centro quanto da periferia. Isso porque
os modelos espetacular e crítico não são estan-
ques, mas mutuamente conversíveis. O capital
financeiro excepcionalista sempre tentará trans-

210
formar qualquer movimento social em espetá-
culo. Da mesma maneira, cabe aos movimentos
sociais conduzir toda fagulha de insatisfação
com o sistema capitalista ao nível crítico, ou ao
menos tentar conectar essa insatisfação a uma
rede crítica, tal como a que uniu o Occupy aos
indignados e, agora, à Revolução do Vinagre no
Brasil, apesar das profundas diferenças entre
essas experiências. Esse aspecto relacional não
é de maneira alguma secundário e pode servir
enquanto critério operativo eficiente não para
controlar os movimentos contestatórios, mas
para lhes possibilitar o exercício da autocrítica.
Um dos principais fatores entre os que
enfraqueceram as manifestações no Brasil nos
últimos dias de junho foi a presença, entre os
manifestantes, de grupos e indivíduos de extre-
ma direita. Essas pessoas entendiam que suas
reivindicações (a maioria delas de caráter mar-
cadamente autoritário, tais como a adoção da
pena de morte, a criminalização total do aborto
e a necessidade de uma interpretação cristã da
vida social) poderiam ser efetivadas a partir do
interior de um movimento que surgira para ques-
tionar o sistema capitalista, ainda que o estopim
tenha sido o aumento das passagens de ônibus
em São Paulo. Do mesmo modo, vários partidos
políticos de esquerda e de direita tentaram – sem
sucesso, felizmente – tomar o controle das ma-
nifestações que, por vocação, eram apartidárias
e até mesmo antipartidárias, visto que a lógica
dos partidos se insere nas velhas estruturas de

211
Estado representativo-liberal-capitalista que os
manifestantes recusavam.
O problema é que o acúmulo dessas con-
tradições irresolúveis, tanto no que diz respeito
às propostas da extrema direita autoritária e
apartidária quanto no que se relaciona às ten-
tativas de cooptação partidária (de direita e de
esquerda) do movimento acabaram por expô-lo
interna e externamente a uma espécie de desâ-
nimo político que culminou com seu progressivo
esvaziamento.
A muitos parecia inclusive difícil respon-
der aos grupos autoritários e partidários que
pretendiam se integrar às manifestações, dado
que qualquer rechaço poderia evocar uma sis-
temática de controle ideológico bem próxima da
matriz capitalista. O resultado disso é que as
manifestações perderam seu frescor, murcha-
ram e foram facilmente julgadas, classificadas e
controladas pela mídia do espetáculo. Todavia,
um movimento crítico não precisa e nem pode
assumir em si todas as tendências, aceitando
representar acriticamente subjetividades que,
a exemplo de um neonazista e um pacifista, ou
um homossexual e um católico fundamentalista,
são irreconciliáveis.
O caráter crítico de uma revolução não de-
riva da possibilidade de aceitar todos os valores, o
que, no limite, implodiria seu poder contestatório,
já que mesmo os valores capitalistas deveriam
ser protegidos e albergados no movimento. Ao
contrário, ser crítico significa repensar os valores

212
que orientam a ação política, não deixando que
ela se perca em si mesma.
Por mais variadas que sejam as pautas
de reivindicação – ecológicas, econômicas, polí-
ticas, sexuais, jurídicas, culturais, afetivas etc.
–, elas precisam poder ser reconduzidas a uma
estrutura geral de contestação contra a ordem
político-econômica vigente. Daí a necessidade (e
a utilidade) de ligar as reivindicações locais de
dado movimento às redes globais em que exis-
tem outros movimentos semelhantes, de manei-
ra a comprovar que não se trata simplesmente
de questões particulares, mas sim de questões
particulares que se fundam em motivos e razões
planetárias.
Da mesma maneira, a estratégia em rede39
garante aos movimentos o contínuo exercício de
sua competência crítica: ao se autoanalisar para
perceber se suas bandeiras são universalizáveis
tendo em vista toda a rede global de protestos
contra o capitalismo, os movimentos se mantêm
fiéis aos desejos que os fundaram, dificultando
sobremaneira o seu sequestro por parte de grupos

39. Ainda que não assumamos alguns dos pressupostos


metodológicos e ideológicos de Manuel Castells, a consul-
ta à sua recente obra Redes de indignação e esperança:
movimentos sociais na era da internet é fundamental para
a compreensão da dinâmica das lutas em rede e da revo-
lução que ele chama de “rizomática” (cf. p. 149 et seq.).
Trata-se da obra mais completa e mais importante até o
momento sobre a onda de lutas anticapitalistas iniciada
com a revolução egípcia, os indignados espanhóis e o
Occupy Wall Street.

213
e indivíduos que pretendem desestabilizá-los por
dentro com base no discurso do “vale tudo”.
Apenas para exemplificar: se os manifes-
tantes brasileiros tivessem sabido lutar pelo ca-
ráter crítico das Jornadas de Junho, eles teriam
ficado bem menos impotentes diante das propos-
tas autoritárias da direita que a partir de certo
momento pulularam no movimento e o fizeram
perder força. Bastaria que os manifestantes se
perguntassem se pautas como a criminalização
do aborto e a adoção da pena de morte poderiam
ser defendidas com sucesso no contexto da rede
global de contestação instaurada e mantida por
vários movimentos, a exemplo do Occupy e dos
indignados. A resposta, obviamente, seria não;
e ao tomar essa resposta já não mais como sim-
ples resposta, mas como decisão, as Jornadas de
Junho brasileiras, exercitando o caráter crítico
que as fundou – mas que se perdeu em algum
momento – se inseririam criativamente nessa
rede global, podendo servir não apenas como
exemplo para outros movimentos, mas também
enquanto critério de ação, justificação e maxi-
mização de propostas de transformação social.
Trata-se de levar a sério uma exigência de
Marx que se banalizou com o tempo, mas que
em seus dias soava autenticamente revolucio-
nária. O mote com o qual ele e Engels terminam
o Manifesto do Partido Comunista (Manifest der
Kommunistischen Partei) e que muito em breve
seria adotado como lema da Associação Interna-
cional dos Trabalhadores – “Proletários de todo

214
o mundo, uni-vos” – expressa, com a retórica
da época, a exigência do internacionalismo na
promoção das lutas anticapitalistas, algo in-
tuído bem cedo por Marx. Em outro passo de
sua obra, compreendendo que o inimigo já se
internacionalizara, Marx entende que só em um
campo não-local ele pode ser vencido. Nada além
desse fato pode explicar porque, em plena guerra
franco-prussiana, Bismarck cessou as hostili-
dades contra o governo contrarrevolucionário
francês de Thiers instalado em Versailles. Mais
ainda: cedeu à contrarrevolução cerca de 40.000
prisioneiros de guerra franceses com o único
objetivo de aniquilar a Comuna de Paris.
Todavia, essa confraternização entre o
exército vencedor prussiano e o exército con-
quistado francês – ambos irmanados para o mas-
sacre comum do proletariado de Paris – obriga
o capitalismo a abrir mão de sua máscara na-
cional e a se mostrar em sua verdade, qual seja,
a de uma máquina de submissão que, quando
confrontada com situações revolucionárias, se
faz una e supranacional.40 Daí a necessidade do
internacionalismo na luta contra a verdadeira
face (supranacional) do capitalismo, o que é ainda
mais válido hoje, quando o capital se torna volátil,
apátrida e imune às fracas barreiras nacionais
que fingem tentar controlá-lo.

40. MARX, A guerra civil na França, pp. 75-76.

215
3.3. Antropologia política da aposta

A reivindicação internacionalista marxiana


costuma ser criticada pelos pós-modernos. Se-
gundo afirmam, o atual estágio de ruptura, hi-
bridação e mistura da sociedade – ou sociedades
globais – não permitiria falar em universalismos
de qualquer tipo, que apenas serviriam como
munição ideológica e retórica para a defesa dos
interesses de alguns travestidos de interesses da
humanidade, essa espécie de sujeito universal
renegado e ridicularizado pelo pós-modernismo.
Já o velho Proudhon asseverara que quem diz hu-
manidade mente, máxima rapidamente integrada
por Carl Schmitt em sua crítica às concepções
de política que, pretendendo se subtrair ao du-
alismo essencial entre amigo e inimigo, querem
se apresentar como tendentes à universalização
de certos valores. Estes, por serem abstratos
e irrealizáveis, somente poderiam levar a uma
guerra sem fim, deslocalizada e móvel, voltada
contra os inimigos da humanidade, exatamente
como ocorre hoje.
Todavia, essas críticas não são aplicáveis
ao internacionalismo de Marx, que em nenhum
momento se pauta pelos interesses de uma hu-
manidade abstrata que não aceita divisões in-
ternas entre amigo e inimigo. Ao contrário, como
fica claro na própria forma polêmica do lema que
fecha o Manifesto Comunista, que faz referência
ao proletariado e não à humanidade – saber se
o proletariado pode ser entendido como uma

216
vanguarda da humanidade é outro problema que
não discutirei aqui –, Marx indica uma oposição
fundamental.
Marx ensina que as lutas por libertação
não podem ser locais, fazendo os trabalhadores
compreenderem que devem se unir não apenas
tendo em vista ideias gerais sobre a humanidade,
mas sim aspectos concretos de suas situações de
opressão que, por serem resultado de um mes-
mo sistema global de dominação, tendem a se
repetir e a se fortalecer em todo planeta. Quando
escreve a primeira mensagem do Conselho Geral
da Associação Internacional dos Trabalhadores
sobre a guerra franco-prussiana, é sobre esse
ponto que ele insiste, exigindo que os trabalha-
dores alemães e franceses não se esqueçam que
essa guerra é, na verdade, dinástica, ainda que
seja apresentada pelos governos como “guerra de
defesa”.41 Assim, os trabalhadores precisam se
irmanar na defesa de seus interesses de classe e
não se deixar embriagar pela retórica nacionalista
que os quer combatendo entre si. Nesse pequeno
texto de ocasião Marx assume, com clareza quase
escolar, a dualidade central que impede seu pen-
samento de ceder às seduções do universalismo
vazio: há oprimidos e opressores no mundo, e
enquanto as sociedades forem assim organiza-
das não é possível falar de universalismos, o que
não impede, mas antes exige, a organização de

41. MARX, Primeira mensagem do conselho geral sobre


a guerra franco-prussiana em MARX, A guerra civil na
França, pp. 21-25.

217
lutas de libertação não-locais e internacionais.
É exatamente esta, em toda sua simplicidade, a
postura ética de fundo da filosofia radical.
Uma outra crítica, mais vigorosa que a pri-
meira, é a de que a estratégia internacionalista de
Marx se remeteria a uma espécie de imperativo
categórico. Todavia, se a atitude internaciona-
lista baseada na comunhão planetária de lutas
e objetivos guarda algo da estrutura universali-
zável proposta por Kant enquanto critério último
da moralidade, dela se afasta – se aproximando
justamente da concepção de Marx – ao admitir
um conteúdo inalienável que tem a ver com a
resistência coletiva ao capital. Nessa hipótese, já
não se trata mais de um imperativo individual,
alienado e solipsista, no estilo do racionalismo
kantiano. Há dois fatores que fazem o interna-
cionalismo marxiano se afastar do imperativo
kantiano e o aproximam de uma filosofia prática:
a adoção de um conteúdo político anticapitalista
irredutível à mera forma da universalidade e seu
caráter radicalmente coletivo, dado que o processo
de universalização das lutas sociais não se liga a
um ego kantiano autojustificante, mas a práticas
reais de movimentos sociais reais em um mundo
de opressão igualmente real.
De fato, Marx entendia que só é possível
pensar o capitalismo (e suas fraturas) de maneira
total. Já que o capitalismo se mostra enquanto
estrutura onipresente, as lutas que o questionam
também devem ser totais, o que não significa
que devam perder de vista as particularidades

218
das quais as revoltas sempre surgem. Significa
apenas que esses movimentos de contestação
precisam fazer convergir o particular em direção
ao universal, apresentando as opressões locais e
regionais contra as quais lutam enquanto proble-
mas que, na verdade, são universais e se ligam
diretamente à forma de existência totalizante do
capital.
Com isto, pode-se evitar os dois vícios
apontados por Slavoj Žižek como os responsá-
veis por enfraquecer e, no limite, impossibilitar
quaisquer movimentos de luta anticapitalista: o
falso radicalismo que promete para agora a re-
volução total e mundial, como se as demandas
locais nada significassem diante de um contex-
to mais amplo, e o falso gradualismo, que adia
eternamente para amanhã a investida frontal
contra o sistema capitalista visto como um todo,
afirmando que devemos nos ocupar apenas com
problemas locais.42
Ainda que seja duro admiti-lo, trata-se de
saber que as revoluções críticas têm inimigos que
não podem ser integrados à rede global de movi-
mentos de contestação, sob pena de destruí-la.
É esse o drama de uma decisão verdadeiramente
política que, afinal, não se baseia em qualquer
fundamento transcendente pré-estabelecido, ra-
dicando-se antes na imanência de algo irredutível
a qualquer logicismo ou explicação racional: uma

42. ŽIŽEK, Problemas no paraíso, p. 106.

219
antropologia, ou seja, uma visão do homem e do
mundo em que ele está inserido.
Ao se referir ao princípio antropológico que
anima as filosofias políticas, Carl Schmitt as se-
para em dois grandes grupos, conforme compre-
endam a natureza humana enquanto algo “bom”
ou “mau”. Assim, caso se considere que o homem
é indigno de confiança e perigoso por natureza,
as únicas filosofias políticas adequadas serão
as autoritárias, por apostarem no controle, na
hierarquia e na obediência. Ao contrário, a uma
natureza humana percebida como boa só seria
aceitável uma filosofia política da liberdade e da
ausência de coerção externa, cujo ponto mais alto
e coerente seria o anarquismo radical.43
Sem discutir aqui as polêmicas que tal
classificação dual pode gerar – ainda que, é
preciso admitir, ela tenha sido apresentada por
Schmitt de modo excessivamente esquemático
e formal –, é necessário reconhecer que ela toca
no ponto fundamental que nenhuma filosofia
política pode evitar. Trata-se da questão sobre a
natureza humana que, mais do que resolvida ou
negada pelos pós-modernos, foi antes evitada.
Nesse ponto, há uma contraposição insu-
perável entre Marx e o pós-modernismo, já que
diante das teses contemporâneas que sustentam
seu caráter aberto e indeterminado, Marx jamais
deixará de frisar, talvez ainda impressionado por
Rousseau, que no fundo o homem não é uma

43. SCHMITT, O conceito do político, pp. 63-74.

220
paixão inútil, bastando remover a fonte de todo
o mal – qual seja, o sistema de opressão capita-
lista – para que o ser humano, abandonando a
história de fera que ele mesmo construiu para si,
adentre verdadeiramente na era histórica, que
se verificará apenas no comunismo.
Cabe concluir com uma reflexão e pergun-
tar a que antropologia política os movimentos de
contestação global – e a filosofia radical que os
inspira – se conectam. De partida, é claramente
impossível ligá-los a antropologias que susten-
tem a maldade intrínseca do homem, pois em
tal hipótese caberiam poucas dúvidas sobre a
necessidade de um sistema de controle e opres-
são que, entre todas as experiências históricas
conhecidas, coube ao capitalismo levar à perfei-
ção. Admitir uma natureza humana má e lutar
contra o capitalismo não faz nenhum sentido.
Por outro lado, é com a eliminação do pólo
da negatividade que a questão ganha todo seu
pungente colorido, dado que nos vemos obrigados
a escolher entre uma natureza humana boa ou
a declarar a própria escolha como algo carente
de sentido, optando assim por uma situação de
abertura do humano, o que equivaleria a eleger
algo como uma “não-natureza”.
A escolha pela natureza humana boa, que
certamente foi feita por Marx, tornou-se para
nós problemática graças à crítica pós-moderna,
por certo temperada com muita fenomenologia e
existencialismo. Qualquer um que sustentasse
hoje a existência de uma natureza humana –

221
e, ainda por cima, boa, quer dizer, totalmente
contrafática – seria imediatamente tachado de
simplório ou imbecil. Mas o fato é que sem uma
pressuposição operativa assim – ainda que seus
níveis possam variar – é impossível organizar
qualquer movimento local ou global de contes-
tação ao capital.
Nessa perspectiva, talvez o que o pós-mo-
dernismo possa nos ensinar é que, se não há
natureza humana pronta e acabada, existe sim
uma possibilidade construtiva, um fazer social
que a cada dia integra esse ser indeterminado e
maleável que é o humano. Nesse sentido, a ques-
tão sobre a natureza humana – boa, má ou ine-
xistente – perde seu caráter dramático, passando
a apontar para uma antropologia construtivista
que, no gesto da aposta, entende ser possível – e
não só possível, mas melhor – a construção de
sociedades boas, ainda que os homens que as
habitem sejam indeterminados, abertos e oca-
sionalmente maus. Se não o fazemos é porque
perdemos a dimensão da aposta integrante de
toda ação genuinamente política. Por não co-
nhecer de antemão todas as variáveis, a ação
política precisa dar um tipo de salto cego, algo
muito próximo da experiência da fé, e acreditar
que outro mundo diferente do atual é não apenas
pensável, mas realizável.
A antropologia política que anima a filosofia
radical e movimentos como as Jornadas de Ju-
nho brasileiras se liga à pressuposição de que o
sistema político-econômico capitalista não realiza

222
as potencialidades do ser humano; é opressor,
individualista e suicida em termos ecológicos;
não favorece a sociedade e sim a feudalização
dos egos; é triste e feio, idiota como um novo
rico e cognitivamente limitado; portanto, deve
ser derrubado.
Qualquer indivíduo ou grupo que queira
se integrar a um movimento crítico deve estar
ciente desse seu caráter contestatório. Ainda que
as revoluções críticas possam e devam aceitar
as mais diversas estratégias para atingir seus
objetivos locais e globais e, de maneira seme-
lhante, não neguem e até mesmo encorajem as
singularidades e diversidades sociais, elas não
estão abertas a todos os fins e a todas as pesso-
as, mas somente àquelas que se sentem mal em
uma sociedade de opressão e, por isso mesmo,
querem mudar o atual sistema político-econômico
mundial. Inclusive, se necessário, lançando mão
de violências.

223
4
C ontra a represen t a ç ã o

No início do século passado, Sorel notou


a profunda identificação que une a democracia
parlamentar representativa e a bolsa, intuição
que se confirma com agudeza nos nossos dias.
Tanto o especulador quanto o parlamentar agem
confiando na ingenuidade das massas, necessi-
tando ambos do apoio do espetáculo – que Sorel
resumia à imprensa – para “ajudar o acaso” me-
diante uma série de artimanhas.44 Contudo, mais
do que tais características, o que secretamente
une ambos os personagens é seu trabalho sobre o
vazio: da mesma maneira que o especulador lida
com dinheiro irreal e o multiplica, o parlamentar
promete mudanças radicais na sociedade que
só se traduzem em leis desprovidas de eficácia,
quer dizer, meras formas de lei.
Paulo Leminski definiu o dinheiro como a
suprema abstração do trabalho, poder em esta-
do puro, trans-coisa.45 As mesmas ideias podem
definir as leis. Assim como a moeda, elas estão

44. SOREL, Reflexões sobre a violência, VII, I, pp. 249-250.


45. LEMINSKI, Vida, p. 204.

225
para além do mundo real que, no entanto, domi-
nam. Tanto o parlamentar quanto o especulador
nada entendem de produção, o que, contudo,
não os impede de tentar ordená-la, impondo-se
a ela e a pervertendo ao entendê-la enquanto
mero epifenômeno da distribuição desigual de
que são agentes.
À filosofia radical não basta e nem é crível
o discurso oficial, tanto o da esquerda quanto
o da direita. Como visto na seção III.2, é insus-
tentável a ideia segundo a qual capital e traba-
lho são inimigos históricos. Na verdade, ambos
funcionam enquanto faces da mesma moeda,
que é a da opressão. Aceitar essa tese significa
romper com todo pensamento de esquerda orto-
doxo. Do mesmo modo, é preciso superar outra
grande mentira, dessa vez propalada pela direita
neoliberal, segundo a qual o Estado é seu ver-
dadeiro inimigo e, portanto, tal corrente estaria
do mesmo lado de filosofias antiestatais como o
anarquismo e, no limite, a própria filosofia radi-
cal. Nada mais falso.
No mundo ideal da escola de Chicago, ha-
veria uma “economia pura”, sem qualquer regu-
lamentação ou limite estatal. Todavia, Chomsky
demonstrou que tanto o capital especulativo
norte-americano quanto sua indústria em tese
“transnacional” jamais poderiam ter se imposto
interna e externamente sem maciços incentivos
e subsídios fiscais, labirínticas regulamentações
jurídicas, rotineiras intervenções no mercado e,
em casos extremos, mediante o uso da força física

226
aparelhada do Estado.46 Quando os neoliberais
pregam suas políticas de austeridade e autossu-
ficiência, deve ficar claro que tal só vale para os
mais pobres, condenados a sobreviver sozinhos
e isolados na selva pós-moderna ou então sim-
plesmente perecer. Quando eles negam ajuda e
medidas assistenciais às camadas mais desprote-
gidas da população, deve restar igualmente claro
que isso jamais será feito com os magnatas, os
bancos e as instituições financeiras, como provou
de modo eloquente a crise econômica de 2008
nos Estados Unidos e na Europa.
Tudo isto indica que a filosofia radical deve
levar a sério as intuições do Marx de A Guerra
Civil na França e compreender o Estado enquanto
estrutura de domínio e submissão, ao contrário
do que afirma toda a tradição filosófica neo-he-
geliana e teorias similares. Ainda que em alguns
momentos o Estado possa ter aparentemente
aberto espaço e protegido os oprimidos, ele é
essencialmente uma máquina de exploração a
serviço dos poderosos que a dirigem.47 A filosofia
radical é, portanto, antiestatal, o que não signifi-
ca que seja anticomunitária, como será visto no
próximo capítulo.
Lênin entendia que todas as formas de
Estado, inclusive a democrático-liberal e a so-
cialista, encarnam em si a ditadura. A única
diferença entre ambas é que a ditadura do pro-

46. CHOMSKY, A democracia e os mercados na nova ordem


mundial, p. 68 et seq.
47. LENIN, El estado y la revolución, pp. 50-55.

227
letariado seria provisória e pavimentaria o ca-
minho para o comunismo, preparando assim
sua própria extinção.48 Já a ditadura burguesa
encarnada no Estado democrático parlamentar
pretenderia ser perpétua. Por isso uma teoria
revolucionária não pode se limitar a denunciar
os elementos que “desnaturam” a democracia
parlamentar, que estaria dominada por forças
econômicas e grupos poderosos, tal como aqueles
que controlam o espetáculo. Na realidade, é a
própria forma democrático-liberal que se iden-
tifica com a ditadura.49
Não é possível fazer revoluções mediante
procedimentos eleitorais.50 A subordinação das
lutas sociais aos rituais fictícios e espetaculares
da democracia parlamentar significa simples-
mente abrir mão de qualquer possibilidade de
transformação radical. De fato, os mecanismos
da democracia parlamentar indicam a possibili-
dade teórica (e espetacular) da tomada do poder
pelas classes oprimidas ao mesmo tempo que,
na prática, a obstrui.51
Nessa perspectiva, Hardt & Negri têm razão
ao definirem a representação política, cuja face
mais visível é o parlamento, como uma síntese
disjuntiva, ou seja, uma estrutura que possibilita
a aproximação da multidão em direção ao governo

48. LENIN, El estado y la revolución, pp. 55-64.


49. ŽIŽEK, Terrorismo y comunismo, de Trotsky, o deses-
peración y utopía en el turbulento año de 1920, pp. 18-19.
50. LENIN, El estado y la revolución, pp. 53-54.
51. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, p. 125.

228
com o mesmo gesto que a aparta, interpondo-se
entre as pessoas e o poder.52 Todavia, talvez fosse
mais exato entender que a representação só une
porque separa; é esse seu gesto primordial e nele
não cabe qualquer paradoxo, o que significa que a
forma de socialização do poder que os parlamen-
tos fingem realizar existe apenas na dimensão
retórica, sempre desembocando na separação.
Trotski ironiza: as nações não são clubes onde
se vota solenemente a favor da revolução social.53
Os parlamentos não representam interes-
ses sociais pré-existentes no seio da sociedade
ao trazê-los para a arena ordenada da discussão
política institucionalizada (essa é a teoria clás-
sica). Ao contrário, eles criam interesses artifi-
ciais no exato momento em que se constituem
enquanto órgão de representação integrados por
partidos ideológicos que, como é óbvio, tendem
a centralizar e a simplificar a discussão política,
subordinando os interesses plurais da comuni-
dade aos interesses unificados e intransigentes
de alguns poucos. Idêntico processo ocorre na
seara econômica da especulação, que não faz cir-
cular as riquezas existentes, mas “cria” supostas
riquezas no momento mesmo em que põe o nada
a circular. Parlamento e Bolsa desconsideram
totalmente as formas sociais de produção de ri-
queza. Portanto, é necessário que a comunidade
retome não só o controle sobre a produção de
bens, mas fundamentalmente a reflexão sobre

52. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 306.


53. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, p. 124.

229
como se dá essa produção, de modo a evitar a
criação artificial de interesses/riquezas que exi-
gem “representação” e “fluxo”, tal como ocorre
hoje.
No que se refere aos parlamentos e ao pro-
blema da representação, é preciso superar os
dualismos que separam discussão e decisão.
Carl Schmitt tinha razão em sua crítica dirigida
aos parlamentos,54 entidades pluralistas e não-
-homogêneas compostas pelos representantes da
“classe discutidora”, que veem na política ape-
nas mais uma ocasião para a expansão de suas
identidades privadas e parasitárias. Todavia, a
alternativa que ele apresenta, calcada na cen-
tralidade de uma instância decisória autoritária
executiva, parece agravar ainda mais o problema,
já que a “presentação” 55 do soberano schmittiano

54. Para a crítica de Schmitt ao parlamentarismo, cf. ao


menos Politische romantik de 1919 e Die geistesgeschichtliche
Lage des heutigen Parlamentarismus de 1923. Mais con-
temporaneamente – e sem o vício das “receitas” e “curas”
schmittianas – pode-se ler uma breve e certeira crítica ao
parlamento em CANFORA, Crítica da retórica democrática.
55. Para Schmitt, “representação” é algo muito diverso
daquilo que se conhece por esse nome, não se identificando
com qualquer experiência liberal-burguesa fundada na
lógica do mandato, tal como as que se dão entre eleitores
e deputados e, no limite, entre advogados e seus clientes.
Segundo explica, representar significa fazer perceptível
e atual algo imperceptível, o que se daria por meio de
um ser de presença pública, tal como o papa em relação
a Deus no contexto da Igreja e, para Schmitt, o líder do
Executivo em relação ao povo soberano no “verdadeiro”
Estado (SCHMITT, Verfassungslehre, p. 209). Desse modo,
prefiro o neologismo “presentação” para traduzir a ideia

230
não é mais real e eficaz do que a representação
liberal parlamentar, em especial nos nossos dias,
quando o pluralismo e a diferença, assim como
o anti-autoritarismo, são inegociáveis.
A única saída para tal dilema passa pela
criação de estruturas radicais de democracia,
nas quais seja impossível distinguir entre decisão
e discussão, com o que tanto a representação
liberal quanto a “presentação” schmittiana se
tornam inúteis. Toda discussão deve também
expressar uma decisão e vice-versa, sem que
nenhum dos pólos seja privilegiado, ao mesmo
tempo que se garante a vivência da experiência
democrática real, sem mediações (“presentações”
ou representações). Trata-se não de refletir esta-
ticamente a maioria, como ocorre nos regimes de
democracia representativa, mas sim de formulá-
-la dinamicamente56 mediante a assunção de
projetos comuns, os quais, contudo, não podem
ter como condição a uniformização das singula-
ridades que o sustentam.
Marx já intuíra essa solução ao descrever
a Comuna de Paris, que não era um corpo par-
lamentar, mas um órgão de trabalho ao mesmo
tempo executivo e legislativo.57 A Comuna não eu

schmittiana de representação, que pressupõe uma unida-


de direta e imediata entre o povo e o chefe do Executivo.
Este não representa o povo como o faz, por exemplo, um
deputado, mas o presentifica em sua pessoa graças a uma
legitimidade democrático-plebiscitária de tipo carismático.
56. TROTSKY, Terrorismo y comunismo, p. 135.
57. MARX, A guerra civil na França, p. 57.

231
das insignificantes lutas entre as formas parla-
mentares e executivas de dominação de classe,
acrescenta Marx, representando antes uma re-
volta capaz de integrá-las, considerando que na
França de 1871 – e hoje praticamente em todo o
planeta – o Parlamento não era mais do que um
apêndice defeituoso do Executivo.58 É claro que,
para tanto, é preciso resolver o enigma da mul-
tidão: como encontrar a pluralidade na unidade
mais do que a unidade na pluralidade? Trata-se
de propor um caminho diferente daquele forjado
nos moldes parmenídeo-platônicos que subsistem
há 2.500 anos. Esse é o tema do último capítulo
deste livro.

58. MARX, A guerra civil na França (primeiro rascunho),


p. 127.

232
V
An-arquia, a-nomia

“[...] a emancipação humana, concebida em definitivo sob a


sua mais simples forma revolucionária, que não passa da
emancipação humana sob todos os aspectos, entendamos
bem segundo os meios de que cada um dispõe, continua
sendo a única causa digna a que servir”.

A. Breton, Nadja, pp. 131-13


Mul tidã o :
1
comun idade in apropr i á ve l

Em um brevíssimo ensaio de 1986 sobre


Georges Bataille e o paradoxo da soberania, tex-
to cujas principais ideais seriam retomadas na
abertura de O Poder Soberano e a Vida Nua (Il
Potere Sovrano e la Nuda Vita), Giorgio Agamben
se pergunta sobre a possibilidade de uma comu-
nidade sem sujeitos soberanos, encontrando na
reflexão de Bataille um encaminhamento inicial
da questão e, ao mesmo tempo, uma fronteira
que parece intransponível.
Segundo Agamben, Bataille recusa toda
possibilidade de uma comunidade comunista
(ou schmittiana, posso acrescentar) baseada em
vínculos fusionais entre seus membros que deem
origem a hipóstases tais como “o povo” ou “os
valores comuns”.1 Nesse sentido, para negar a
tendência totalitária, violenta e monossigficante
“naturais” a todo projeto empírico de sociedade,
a comunidade batailliana carregaria em si um
índice de impossibilidade, um grau de negativi-
dade que só se resolveria na potência da comu-

1. AGAMBEN, Bataille y la paradoja de la soberanía, p. 17.

235
nidade dos que não têm comunidade. Trata-se
da comunidade negativa dos amantes, dos ar-
tistas e, mais amplamente, dos amigos, com o
que Bataille parece retomar, ainda que de modo
bastante lateral, o ideal epicurista do jardim,
que recomenda uma vida apolítica construída
com base em afinidades eletivas entre o eu e os
outros selecionados exclusivamente por esse eu.
A verdadeira comunidade seria, portanto,
a comunidade de amigos, isto é, uma comuni-
dade dos que se veem enquanto iguais, sem a
necessidade de quaisquer poderes que os con-
trolem e exijam o reconhecimento da igualdade.
Agamben inclusive chega a sugerir que esse foi o
projeto de Bataille ao fundar o grupo da revista
Acéphale, que congregava indivíduos capazes
de compartilhar os mesmos interesses sem que
houvesse um líder entre eles. O próprio símbolo
do grupo indicaria, com a ausência da cabeça,
não apenas uma crítica das instituições sociais
baseadas no racionalismo e na chefia, mas prin-
cipalmente o desejo ou paixão de auto-exclusão
característico de seus membros, uma vontade
de estar em um não-estar, com o que Agamben
reconhece e aprofunda o paradoxo do soberano
enunciado por Schmitt.2
Desse limite derivaria a impossibilidade
da comunidade negativa, já que o ato dos sujei-
tos que a fundam exigiria, enquanto contrapar-
te necessária, a consideração do ser soberano,

2. AGAMBEN, Bataille y la paradoja de la soberanía, p. 18.

236
capaz de se pôr em ato enquanto mantém ativa
a potencialidade. Em minha leitura, tal se rela-
ciona com a possibilidade política muito real de
se construir entre os amigos um consenso por
exclusão mediante a constituição de um inimigo
comum, na linha do pensamento de Schmitt. Ao
que parece, até mesmo em uma comunidade dos
que não têm comunidade a vivência do comum
traria em si um grau secreto de violência originá-
ria, traduzido na categoria identitária do inimigo,
a qual possibilitaria o projeto comunitário, ainda
que negativo.
Esse problema começa a ser enfrentado por
Agamben em 1990, quando escreve o altamente
críptico A Comunidade Que Vem (La Comunità
Che Viene), obra em que delineia o projeto de
uma comunidade qualquer. Já de início o filósofo
afirma: o ser que vem é o ser qualquer, ou seja,
o ser que não pode ser definido tendo em vista
características que apontem para propriedades
identitárias fixas, a exemplo do ser comunista,
francês ou muçulmano.3 O ser qualquer consiste
naquele que é à sua maneira, englobando mais
do que potência de ser e potência de não ser; com
efeito, ele pode também não não-ser. Sendo ele
mesmo, o ser qualquer se põe fora das redes do
universal e do particular, podendo assim fundar
algo como um comum.
Mas a pertença ao comum, essa comunidade,
continua Agamben citando Spinoza, é uma co-

3. AGAMBEN, A comunidade que vem, p. 11.

237
munidade inessencial, já que não diz respeito à
essência ou outras coisas do tipo, pois “qualquer
é a coisa com todas as suas propriedades, mas
nenhuma delas constitui diferença. A in-diferença
em relação às propriedades é o que individua e
dissemina as singularidades, as torna amáveis”.4
Apenas nesse sentido é possível construir uma
ética, conclui Agamben: só a partir da consci-
ência de que o homem não tem nenhum destino
histórico ou biológico, não é e nem deve ser certa
essência ou substância. Se os seres humanos
tivessem que ser algo, haveria deveres a realizar,
mas não experiências éticas.5
Portanto, ser comum não significa ser nem
dever-ser comunitário. Com efeito, não se pode
confundir comum e comunidade. Por economia
vocabular, às vezes utilizo o termo “comunidade”,
mas sempre tendo em vista que tal não se refe-
re a qualquer teoria comunitarista anglo-saxã,
sendo mais afim – mas não idêntica – às ideias
de comunidade que vem de Agamben e de mul-
tidão de Hardt & Negri, pois: “O comum não se
refere a noções tradicionais da comunidade ou
do público; baseia-se na comunicação entre sin-
gularidades e se manifesta através dos processos
sociais colaborativos da produção. Enquanto o
individual se dissolve na unidade da comuni-
dade, as singularidades não se vêem tolhidas,
expressando-se livremente no comum”.6

4. AGAMBEN, A comunidade que vem, p. 23.


5. AGAMBEN, A comunidade que vem, p. 38.
6. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 266.

238
Neste ponto, é importante fazer referência
à questão das lutas pelas identidades, carac-
terística do mundo contemporâneo.7 Hardt &
Negri reconhecem o valor e a importância da
afirmação das identidades submissas (de gêne-
ro, raça e classe, especialmente) no contexto do
capitalismo, mas essas lutas só se tornam re-
almente revolucionárias quando se voltam para
a afirmação de uma nova humanidade em que
não haja identidades, ou melhor, na qual não
existam identidades fixas e seja possível o fluir e
o devir identitário independentemente dos meca-
nismos de apropriação do Estado e do capital. Na
linha de autores como Donna Haraway, Frantz
Fannon e Paul Gilroy, Hardt & Negri entendem
que mais do que se emancipar, as identidades
precisam se libertar, quer dizer, tornar-se movi-
mento, negando a fixidez que o Estado e o capital
pretendem lhes impingir. Mais do que uma luta
pela identidade, trata-se de uma luta contra a
imutabilidade da identidade.
Assim como a identidade proletária é pa-
radoxal porque tem por missão histórica a sua
própria destruição,8 não aspirando a simples
reformas que tornariam melhor a situação do
proletário, antes pretendendo a abolição dessa
figura no mundo futuro do comunismo, as
identidades contemporâneas não podem se sa-
tisfazer com a mera afirmação da diferença e
da negatividade, mas dar um passo a mais e,

7. HARDT; NEGRI, Commonwealth, pp. 333-341.


8. TRONTI, Operai e capitale, p. 260.

239
tornando-se monstruosas – no sentido de Rabe-
lais, ou seja, plenas de potência de criatividade
e invenção –, afirmar a positividade que se en-
carna no infinito poder de ser qualquer. Somente
então se atinge o nível da singularidade, ideia
que Hardt & Negri associam à multiplicidade e
ao devir. A política das identidades caracterís-
tica dos Estados de Direito as transforma em
propriedades do sujeito (por exemplo: ser, para
além de tudo, negro ou mulher, e desse modo
ser reconhecido pelo Estado) e lhes consente,
no máximo, a emancipação. Por sua vez, a po-
lítica das singularidades da multidão pretende
não apenas emancipar, mas libertar os sujeitos
de suas identidades, conectando-os não com a
propriedade ou um ser, mas com o comum, o
agir mutante e o devir.
Aqui se encontra um importante ponto de
contato entre as ontologias sociais de Agamben
e Hardt & Negri. Por mais que muitos comenta-
ristas insistam em separá-las, entendendo que
são irreconciliáveis – julgamento que acaba sen-
do respaldado pelas ironias que esses autores
mutuamente se dedicam, apesar da amizade
que os une –, parece ser possível rastrear certas
convergências que as localizam do mesmo lado
das trincheiras. O projeto agambeniano de um
sujeito inapropriável pelo Estado integrante de
uma comunidade qualquer – ou qualseja, para
respeitar o vocábulo italiano original qualunque
que indetermina o sujeito (“ser”) e não a vontade
(“querer”) – se encontra com a noção de commoner
pincelada por Hardt & Negri nas últimas páginas

240
de Declaration com termos que recordam a escri-
tura de Agamben. O commoner era aquele sujeito
que, na Inglaterra medieval, conformava um dos
três estamentos sociais da época. Ao lado dos que
rezavam e dos que trabalhavam havia o commo-
ner, o que trabalhava e, portanto, não tinha uma
posição especial nem realizava nenhuma tarefa
específica, tratando-se de um qualquer. Em um
autêntico movimento profanatório, Hardt & Ne-
gri ressignificam o commoner para apresentá-lo
como aquela subjetividade aberta característica
da multidão e que, portanto, se opõe às sub-
jetividades produzidas pela crise contínua do
capitalismo neoliberal, encarnadas nas figuras
do endividado, do midiatizado, do securitizado
e do representado.9
O signo do comum e do qualquer é, então, o
da multidão, não o de uma nova unidade racial,
cultural ou qualquer outra, como querem as inú-
meras teorias comunitaristas anglo-saxãs, que
não conseguem avançar nem um passo à frente
do marxismo e do liberalismo clássicos, dos quais
não passam de epígonos. Partindo uma vez mais
da proximidade entre Agamben e Hardt & Negri,
a multidão poderia ser lida enquanto uma pro-
fanação do povo, ou seja, uma formação plural
e horizontal que priva o conceito de povo de toda
sua transcendência, unidade e homogeneidade.
Como é óbvio, a categoria onicompreensiva
chamada “povo” não é mais do que a outra face

9. HARDT; NEGRI, Declaración, pp. 110-111.

241
sangrenta da soberania, servindo na maioria
das vezes enquanto expressão mágica que le-
gitima acriticamente a autoridade estabelecida.
Em termos estruturais, o “povo” representa a
unidade formal transcendental (kantiana) que,
mediante a operação representativo-liberal, opera
o aplainamento e a unificação das identidades
concretas. Nesse sentido, Hardt & Negri notam
que a ideia de povo é fundamental para garantir
o esquema chantagista do Estado de Direito, que
só reconhece e protege identidades (o negro, a
mulher, o homossexual etc.) na medida em que
elas se tornam fixas – incapazes, portanto, do
devir próprio da multidão – e se subsumem na
indiferenciação abstrata de uma suposta unidade
nacional.10 Por seu turno, a multidão correspon-
de a uma nova forma de inteligência social que,
para os que lhe são exteriores, parece caótica,
irracional e anárquica. Contudo, para os que dela
participam, a multidão se identifica com uma
estrutura social que tende a preservar no mais
alto grau a singularidade, a autogestão demo-
crática e a espontaneidade, opondo-se a todos
os tipos hierárquicos e centralizados de usufruto
do poder social, desde a forma geral do Estado
até formas específicas traduzidas em partidos
políticos, exércitos, grupos guerrilheiros etc.11
O comum da multidão é aquilo que não se
opõe – pois se opor é um modo de pertencer e
se relacionar –, mas desconhece, como carentes

10. HARDT; NEGRI, Commonwealth, pp. 348-349.


11. HARDT; NEGRI, Multidão, pp. 116-133.

242
de sentido que são, as oposições entre público
e privado. O fato de essa díade já não ter qual-
quer potencial operativo em nossos dias pode ser
comprovado pela mútua conversibilidade que ex-
perimenta, de maneira que o que é público pode
passar a ser privado de um momento a outro e
vice-versa.
Ainda que se queira preservar a significação
supostamente original do público e do privado, o
que se consegue é sempre algo monstruoso: ao
reservar o público ao terreno do sistema social,
cria-se a desculpa necessária para o incremento
das medidas de segurança e de exceção, pois na
sociedade de risco ninguém tem direito à intimi-
dade e a espaços privados. Em outras palavras:
quando se trata de vigiar as pessoas, tudo é pú-
blico. Ao contrário, hoje o privado se relaciona
exclusivamente ao sistema econômico que, por
isso mesmo, se pretende livre de qualquer con-
trole, como se o risco e o mal, em sentido até
mesmo metafísico, residissem na comunidade,
nunca no indivíduo.
Esse poderoso mitologema foi ilustrado
com clareza por Rousseau, ainda que lhe seja
muito anterior. Segundo o mito do bom selva-
gem, é o viver em conjunto que faz nascer o mal.
O homem sozinho seria uma alma maravilhosa,
vindo a corromper-se em uma espécie de demô-
nio ao construir a sociedade, que daria lugar à
multiplicidade desordenada. Talvez por isso os
espíritos imundos que o Cristo expulsou de um
endemoniado tenham se apresentado sob o nome

243
de Legião: “porque somos muitos”,12 disseram
com uma só voz.
Diferentemente, o comum não se constrói
entre o público e o privado. Para ser concebido
ele não precisa se relacionar ao contraste que
há entre ambos. A tarefa que ele assume é com-
pletamente diferente, já que pretende ser uma
unidade das multiplicidades, possibilitando que
cada um seja suas singularidades e, ao mesmo
tempo, colabore em projetos coletivos. E isso sem
deixar de manter âmbitos identitários de privaci-
dade. Todavia, tais âmbitos não podem se fundar
exclusivamente no direito de propriedade, como
ocorre hoje no campo do privado. Da mesma
maneira, os projetos comuns compartidos não
devem se deixar capturar pela lógica da segu-
rança estatal.13
Se o comum não se identifica com o público
ou o privado e nem mesmo pode ser caracterizado
enquanto zona de indeterminação entre ambos,
torna-se necessário pensar o que ele é em si mes-
mo, construindo, assim, uma ontologia social do
comum. Essa tarefa pode muito bem começar
por uma crítica do trabalho, principal mecanis-
mo de apropriação e diferenciação social. Uma
comunidade sem divisão social do trabalho seria
aquela onde tudo é comum, na qual todos são
comuns, já que as pessoas não se identificariam
pelo que fizessem ou deixassem de fazer. Tudo
poderia ser feito por todos, o que subverteria

12. BÍBLIA, Evangelho de Marcos, 5:9.


13. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 265.

244
qualquer noção de hierarquia. Eis a verdadeira
configuração de uma comunidade não originária
e pluricultural, que nunca houve, mas utópica,
na qual está desativada a arqué que divide papéis
e impõe comandos.
A primeira exigência e o primeiro resul-
tado de um an-arquia seria a impossibilidade
de se apropriar daquilo que é comum, o munus
que co-pertence. Trata-se, então, não apenas de
uma an-arquia, mas também de uma a-nomia,
quer dizer, a inexistência de governo desemboca
em uma ausência de lei que regule a partilha
do comum. Tal estrutura não dá lugar a espa-
ços vazios anômicos; ao contrário, ela propicia
o surgimento de espaços plenos a-nômicos, ou
seja, espaços não-separadores, não-tomadores,
não-apropriadores, espaços que são de todos e
nos quais já não funciona a determinação nô-
mica básica que, dividindo o meu e o teu, põe e
garante a ordem hierárquica.
O capitalismo é e sempre será uma ordem,
o que o coloca em rota de colisão com o caráter
aberto e anárquico das verdadeiras utopias do
comum. Nunca existirá algo como um anarco-
capitalismo desregulado e entregue à sua auto-
construção, como predizem alguns liberais. Da
mesma maneira, o capitalismo não se dirige à
própria destruição, como sustentam – e candi-
damente esperam – vários segmentos da esquer-
da tradicional, para os quais seria necessário
apenas aguardar que o capital imploda graças
ao acúmulo das contradições que gera. Na ver-

245
dade, o capitalismo nunca esteve tão ordenado,
sistematizado e eficiente como nos dias de hoje,
quando ele apenas parece estar enlouquecido.
Estruturalmente, ele é e sempre será uma arqué,
e das mais brutais possíveis, capaz de garantir
que nada se desvie do plano ordenado que o sis-
tema traça para toda a realidade que o contém.
Quando, com base em uma intuição de
Walter Benjamin, Agamben insiste em seus tra-
balhos mais recentes14 que a verdade do governo
é a anarquia, está se referindo a algo diverso do
que aqui é sustentado. Ao pesquisar a teologia
medieval cristã e perceber uma cisão entre a
substancialidade do Pai e a ação salvífica do Fi-
lho – o que corresponderia, no nível filosófico, à
divisão entre ser e práxis –, Agamben identifica
na inoperosidade da soberania o fundamento
negativo da economia, conformando assim duas
esferas separadas, mas interconectadas pela sua
falta de relação: reino e governo. Segundo en-
tende o filósofo italiano, o governo dos homens
e de sua oíkos corresponderia a um conjunto de
medidas administrativas15 que não encontrariam

14. Especialmente em Il regno e la gloria: per una genealogia


teologica dell’economia (O reino e a glória: uma genealogia
teológica da economia e do governo) e os trabalhos que se
lhe seguem.
15. É interessante evocar aqui a diferença schmittiana
entre lei e medida. No final de Legalidade e legitimidade,
Schmitt reconhece que o único elemento capaz de dife-
renciar a “lei normal” da “medida excepcional” é a du-
ração (SCHMITT, Legalidade e legitimidade, p. 89). A lei
é feita para durar, ao contrário da exceção, situação de

246
fundamento na soberania do reino de Deus, cor-
respondendo antes a atos de management que
entregam às coisas a si mesmas.
Daí Agamben concluir que as leis gerais
de Deus traduzidas sob a ideia tardo-helenística
de providência geral não se confundem com as
medidas de administração e de polícia que evo-
cam a noção de providência especial, a qual não
se funda na geral, mantendo uma espécie de
autonomia anárquica. Assim como a teologia
medieval dos séculos IV e VI decidiu que o Fi-
lho não tem fundamento no Pai, sendo ambos
autônomos, sem princípio e igualmente divinos,
anárquicos um em relação ao outro, a polícia
e a administração características do Ocidente,
firmes nesse paradigma, se traduzem enquanto
instâncias desconectadas da soberania e da po-
lítica. O governo nasce então da inoperosidade
do poder soberano, tal como o Filho age e salva
apenas sob a condição de o Pai permanecer em
silêncio. Daí a anarquia, já que os atos de polícia
e administração – o governo – não se fundam em

emergência que objetiva realizar um fim específico; tendo-


-o concretizado, ela se retira do cenário político-jurídico.
Quando a exceção se torna permanente, é exatamente
esse aspecto que acaba vulnerado. Pretendendo durar não
apenas indefinidamente, mas por todo o tempo, a exceção
assume o aspecto específico da lei, dando origem a um
híbrido que só pode ser nomeado por meio do oximoro
exceção permanente: trata-se de uma lei de exceção e não
mais da exceção da lei. Sobre o tema, cf. meu artigo Ex-
ception of the exception: Carl Schmitt and the limits of law
em MATOS, Power, law and violence, pp. 86-97.

247
nenhum poder – o reino – que os possa funda-
mentar.
Como já deve restar claro, quando sustento
a existência de uma ordem capitalista, utilizo o
conceito de arqué em um sentido bem diverso
daquele pensado por Agamben. Primeiramente,
é importante frisar que concordo com sua agu-
da análise sobre a cisão entre ser e práxis, que,
afinal, está na base da compreensão da filoso-
fia enquanto pensar alheio às condições reais
de produção e de reprodução social. A proposta
deste livro consiste exatamente em propor uma
filosofia radical, ou seja, uma filosofia na qual
ser e práxis, pensar e fazer, discussão e decisão,
reino e governo (sob a condição de ambos serem
an-árquicos) integrem uma única realidade, de-
sativando, assim, o que o próprio Agamben cha-
ma de máquina bipolar do Ocidente, a qual cria
seus espaços impolíticos ao funcionar na zona
de indeterminação instalada entre essas díades
que, no limite, evocam o vazio que há entre o ser
soberano e as medidas administrativas.16

16. “[...] o essencial é entender que a providência pode


funcionar somente se os dois níveis, o geral e o particular,
estão conectados. O governo é precisamente o que resulta
da coordenação e da articulação entre a providência geral
e a providência particular: omnes et singulatim, como dizia
Foucault. Há governo somente se há uma relação entre
dois níveis da atividade do poder: o geral e o particular.
Na tradição da política ocidental, há uma expressão que
define de maneira exemplar a distinção e a relação entre
esses dois níveis do poder: é a locução le roi règne, mais il
ne gouverne pas (o rei reina, mas não governa). [...] Se reino
e governo não estão separados com uma dicotomia abso-

248
Em segundo lugar, ainda que eu concorde
que, no final das contas, os atos de governo se
fundam em um reino inoperante, ou seja, em um
nada – algo que Schmitt já percebera há muitas
décadas –, nem por isso tais atos devem ser cha-
mados de anárquicos. Só o podem ser caso se
compreenda “anarquia” como ausência de fun-
damento último. Mas se o termo “anarquia” for
entendido enquanto inexistência de ordenações
voltadas para a autorreprodução do sistema, é
preciso considerar não apenas o governo, mas
especialmente o governo capitalista enquanto a
estrutura menos anárquica que já atuou sobre
o planeta.
Nesse sentido, a utopia capitalista do livre
mercado – inclusive citada por Agamben como
o paradigma do liberalismo –, na qual já não
haveria Estado e controle, não passa de uma
enorme mentira. Todo regime econômico capita-
lista precisa se apresentar enquanto uma ordem.
Ele necessita da força estatal para se impor e se
manter. A autoridade econômica capitalista só

luta, nenhum governo é possível. De um lado, teremos um


rei impotente, uma soberania impotente, e do outro, uma
série incoerente e caótica de atos particulares de governo.
Porém, creio que se pode afirmar que a oposição entre reino
e governo não é aparente: na verdade o reino serve para
fundar e legitimar o governo. Assim, algo como um governo
é possível apenas se o reino está relacionado com ele em
uma máquina bipolar. A impotência do soberano funda
e autoriza o governo. Esta máquina bipolar é o governo:
é a forma que o poder adotou no Ocidente” (AGAMBEN,
Estado de exceção e genealogia do poder, p. 35).

249
pode existir mediante o apoio ativo de autoridades
políticas, seja para que os sistemas econômicos
nacionais estejam configurados e funcionem de
modo semelhante, seja para reafirmar e legiti-
mar os direitos do capital (propriedade, controle
de mercado e mão-de-obra, “livre concorrência”
etc.), seja, finalmente, para garantir a aplicação
eficiente e centralizada de sanções legais nacio-
nais e internacionais.17
O contrário disso tudo reside na comunida-
de an-árquica. Tal configuração é pensável, ponto
por ponto, a partir de um homem an-árquico.
Mais do que o produto de um meticuloso pro-
jeto de reconstrução social conforme planejado
pelo marxismo, o homem an-árquico consiste no
resultado não esperado de uma tragédia. Nosso
tempo é especialmente propício às transforma-
ções radicais que surgem das tragédias, as quais
não se confundem com revoluções cosméticas
que mudam as coisas para que tudo permaneça
como está.
O ser humano do século XXI experimenta
a mais profunda indeterminação ontológica que
a espécie já vislumbrou. Depois de Darwin,
Nietzsche, Freud, Marx, Heidegger e Auschwitz, a
única conexão possível com o absoluto é a aposta.
Se o homem medieval via Deus e o romano podia
se espelhar no Imperador, o contemporâneo se
caracteriza por se relacionar diretamente com
o aberto da realidade, percebendo-se enquanto

17. HARDT; NEGRI, Multidão, p. 223.

250
projeto precário e em permanente construção.
Talvez então este seja o momento de resgatar a
revolução permanente de Trotski e conferir-lhe
sentido metafísico.
Tendo sido vencidos todos os absolutos,
sobrevive hoje apenas a força de lei que os apare-
lhava, vagando livre pelo planeta e, devido à sua
ação insignificante (quer dizer, não-significante),
aprofundando a carência ontológica no mun-
do dos homens privados de grandes narrativas
sociais que deem sentido à existência. Se até a
relação com a divindade foi transformada em
aposta mediante a qual a mundaneidade convive
com o sagrado, absorvendo-o e retirando-lhe o
caráter significador, não é exagero afirmar que
mesmo entre as camadas mais extensas da po-
pulação, e não apenas nos meios intelectuais,
há uma incômoda sensação de que tudo pode
ser diferente porque nada é perpétuo, dado e
essencial.
Diante dessa vacuidade do real há a pos-
sibilidade de se criar novos mitos capazes de
manter certas certezas e garantir simbolicamente
regularidade, previsibilidade e segurança, tanto
na experiência do eu consigo mesmo quanto em
sua vivência social. Por outro lado, as grandes
narrativas que deram sentido à vida humana
ao longo da história revelaram ser autênticas
máquinas de produção de sofrimento. Por isso
a humanidade deve aproveitar a indeterminação
do real não para preenchê-lo com outra nar-
rativa de ordem e certeza, mas para encará-lo

251
enquanto experiência vital básica, assumindo o
caráter caótico e lúdico da realidade, passando
a conviver, enquanto projeto de cotidianidade,
com a incerteza, a imprevisibilidade e o risco.
Evitar o risco e o contágio constituiu a missão
de todas as ontologias da ordem, entre as quais
o capitalismo financeiro é tão-só a mais recente
– e a mais pobre – versão. Se todas elas trouxe-
ram miséria humana travestida sob o manto do
contínuo progresso – que, na verdade, é contínua
catástrofe, denunciou Walter Benjamin –, parece
ser adequado apostar em formas de con-vivência
que não se orientem pelos ditames da certeza e
da previsão, assumindo, enquanto projeto pes-
soal e social, a indeterminação que, queiramos
ou não, é o nosso habitat a partir deste século.
É nesse sentido que Agamben fala de singu-
laridades que existem à sua própria maneira, úni-
cas capazes de conformar a comunidade que vem.
Esta, inessencial, só pode ser uma comunidade
de pessoas quaisquer, ou seja, sem identidades
fixas e, portanto, inapropriáveis pelo Estado. Ao
invés de se fundar em vínculos sociais, o Estado
os interdiz e dissolve. Daí que Agamben acerte ao
concluir que não há nada mais hostil ao Estado
do que uma comunidade de inapropriáveis, de
singularidades não redutíveis a identidades ma-
nejáveis pelo poder (ser negro, ser feminista, ser
de esquerda etc.). É característico como o Estado
só consegue “responder” aos graves problemas
de sociabilidade mediante seus violentos códigos
identitários. Depois do massacre de judeus na
Segunda Guerra, as potências vencedoras não

252
conseguiram imaginar nada melhor do que criar
uma nova identidade estatal, a israelense, a qual,
por sua vez, se tornou uma produtiva fonte de
novos massacres.18
Uma comunidade de singularidades que
não se baseia em condições de pertença ou na au-
sência delas (o exemplo aqui seria a comunidade
negativa de Blanchot), mas na própria pertença
contingentemente necessária – o que chamei de
indeterminação – representa uma enorme ame-
aça para os sistemas identitários de poder, tal
como o Estado. Por isto, a política que vem não
pode propor a tomada ou o controle do Estado,
diferentemente do que vem sendo feito de modo
acrítico pelo menos desde a Revolução France-
sa. O ato político por excelência dos nossos dias
é a luta da humanidade – entendida enquanto
substrato das singularidades, das maneiras de
ser inapropriáveis pelo poder – contra o Estado e
o capital.19 E, como tal, apenas pode ser pensado
quando se concebe uma comunidade de singu-
lares irrepresentável, que não se funda em vín-
culos de pertença ou não-pertença que possam
ser reproduzidos no interior das engrenagens
estatais e econômicas.
Em uma linha próxima à de Agamben,
Jean-Luc Nancy afirma que a comunidade não
é um ser comum, mas sim aquilo que partilha
uma existência sem essência ou, no limite, uma

18. AGAMBEN, A comunidade que vem, p. 68.


19. AGAMBEN, A comunidade que vem, pp. 66-67.

253
essência que é somente existência.20 As formas
sociais que podem surgir dessa configuração são
variadas e imprevistas. Talvez um vislumbre des-
sa con-vivência que vem possa ser entrevista no
conto de Jorge Luis Borges intitulado A Loteria
na Babilônia, no qual todos se entregam ao poder
onipresente do acaso que, com o mesmo gesto
impessoal, transforma mendigos em reis do dia
para a noite e condena inocentes à morte sem
apelação. Em estruturas assim, sobressai o poder
disruptivo da multidão an-árquica, que inverte e
relativiza não apenas as relações sociais, mas o
próprio homem, antes entendido enquanto es-
sência. Trata-se de, pela primeira vez na história,
confiar a humanidade a si mesma.
Uma verdadeira revolução – ou melhor,
uma verdadeira crise, capaz de abrir caminho à
comunidade an-árquica – só pode surgir a partir
de um tempo radicalmente novo, todo presente,
tempo-de-agora (Jetztzeit). Na linha do que foi
discutido na seção II.2, não se trata de romper
com o passado, o que já pressuporia uma pode-
rosa ligação com o que foi e o que será; trata-se
antes de viver o presente em toda sua dimen-
são de agoridade, compreendendo-o enquanto
ponto focal em que toda a história se concentra,
inclusive as imagens que os filósofos utópicos
nos legaram. Essa concepção de história não se
manifesta sob a forma de tendências progres-
sivas e lineares; ao contrário, está incrustada
profundamente em cada presente, deixando-se

20. NANCY, La communauté désoeuvrée.

254
antever nas mais ridículas e ameaçadas ideias
entre aquelas produzidas por mentes criativas,
explica Benjamin no profético artigo A Vida dos
Estudantes (Das Leben der Studenten).
As pessoas se negam a discutir qualquer
coisa diferente do que é posto pelo capitalismo
naturalizado, já que de outro modo se quebra-
ria a linearidade da história que fundamenta as
práticas sociais de opressão configuradoras de
nossas sociedades. Por isso a missão da filosofia
radical é idêntica à do historiador benjaminiano,
que possibilita um estado de perfeição imanente,
fazendo-o absoluto ao torná-lo visível e domi-
nante no presente. Para tanto, pouco importa
a descrição pragmática dos detalhes “reais” de
instituições, normas e costumes, visto que se
pretende denunciar e superar a estrutura auto-
ritária de tempo histórico que os sustenta.21
A comunidade an-árquica não é descritível
sob a forma geral de um plano que, por se tradu-
zir em diversos objetivos “alcançáveis” e previsões
“razoáveis”, poderia ser executado com sucesso.
Da mesma maneira, tal comunidade não pode
ser lida apenas enquanto projeto a se realizar em
um futuro mais ou menos distante, perdendo-
-se em abstrações típicas dos sonhos sociais de
uma nova Cocanha. A díade conceitual real/ideal
representa um poderoso dispositivo da ideologia
ocidental cuja função é impedir o pensamento de
chegar às últimas consequências. Para desativar

21. BENJAMIN, The life of the students, p. 37 em BENJA-


MIN, Selected writings.

255
esse mecanismo, é necessário reconhecer o papel
da potência, como tem feito Agamben insistente-
mente nas últimas três décadas. A comunidade
an-árquica é uma comunidade em potência que
existe já e desde sempre; ela só não se atualiza
graças às medidas conservadoras efetivadas pelo
poder existente. Para vir a ser, a an-arquia deve
continuamente desativá-lo.
Alguém pode perguntar sobre a probabili-
dade da “real” instauração de uma comunidade
assim. Fazê-lo significa tentar compreender o
impensável por meio dos mesquinhos instrumen-
tos do pensável. Pior ainda: do quantificável. A
filosofia radical não reconhece a categoria do pro-
vável, que tem a ver com mensuração e cálculo,
ou seja, com a dimensão de tudo aquilo redutível
a meras relações numéricas. Esse hábito mental,
característico do capitalismo, se impõe quase
instintivamente em qualquer discussão na qual
alguém tenta pensar fora dos padrões do que é.
Ora, a filosofia radical diz respeito ao ser, o qual
se dá enquanto atualidade e potência, até mesmo
potência-do-não, mas jamais como probabilida-
de. Para saber sobre a comunidade an-árquica,
basta à filosofia radical postular sua possibili-
dade: tudo é possível porque tudo, ao menos no
terreno social, é resultado de escolhas, decisões
e práticas, ou seja, arranjos temporais mais ou
menos conscientes que, para serem fundadores
de mundo, devem recusar o determinismo da
tradição, sob pena de serem esmagados por ela.

256
Se a comunidade an-árquica existe em po-
tência, ela é possível. Ela congrega um tempo
histórico alternativo pronto para se realizar aqui
e agora. Se é provável ou não, pouco importa.
Aqueles que naturalizam o atual real entendem-
-no enquanto possibilidade única; eles fazem
contas para saber aquilo que, mediante uma
tabela de estatística, é provável ou não. Para
emudecê-los bastaria recordar-lhes que no dia
11 de setembro de 2001 não havia qualquer pro-
babilidade matemática de destruição das Torres
Gêmeas graças ao choque de aviões sequestrados
por fundamentalistas islâmicos. A seus olhos tal
“previsão” se assemelharia ao enredo de um filme
trash de Hollywood, não se tratando de um prog-
nóstico sério a ser considerado. Todavia, desde
que as Torres foram erguidas, sua destruição
passou a ser uma entre várias possibilidades.
Potencialmente, elas já estavam derrubadas. Por
que o que vale para as torres do capitalismo não
poderia valer também para todo seu sistema pro-
dutivo, reprodutivo e distributivo?

257
2
A ordem sagrada do nómos

O que deve ser evitado a qualquer custo é


a naturalização do capitalismo e do direito que o
protege, vistos como alternativas únicas. Pensa-
-se que, no limite, eles podem até ser reformáveis,
nunca superáveis. Mas se “capitalismo” é apenas
o nome que se dá à atual fase do sistema de
opressões sociais que sempre existiu na maioria
das sociedades “civilizadas”, é preciso saber re-
conhecer as profundas conexões históricas que
apontam para a origem comum dessas práticas
brutais.
Segundo me parece, aquilo que Crawford
MacPherson chamou de individualismo possessi-
vo não se limita unicamente ao mundo moderno
e contemporâneo,22 podendo ser rastreado em for-
mas jurídicas arcaicas que contaminaram nossa
maneira de conceber a normatividade. Com efeito,
os atos jurídicos originários das mais variadas
comunidades humanas têm a ver com a violência
fundadora materializada na tomada da terra.23

22. MacPHERSON, The political theory of possessive in-


dividualism.
23. Trata-se da tese central de SCHMITT em O nomos da
terra no direito das gentes do jus publicum europæum.

259
Para ficarmos apenas na Grécia, é desse
vínculo primigênio entre força e direito que surge
a derivação do vocábulo nómos (ordem normativa)
de némein (apoderamento, captura, limitação).
O nómos não é apenas a lei, guardando em si
uma significação fundante do direito da qual a
contemporaneidade parece ter se esquecido ao
funcionalizá-lo sob a forma retórica dos direitos
fundamentais. Schmitt explica que o substan-
tivo nómos deriva do verbo grego némein, apre-
sentando três significados complementares: 1.
tomar, conquistar (mesmo sentido do verbo alemão
nehmen); 2. dividir e distribuir o que foi tomado;
3. pastar, quer dizer, cultivar e explorar a posse,
o conquistado. Na verdade, toda ordenação nor-
mativa depende de uma prévia violência, consis-
tente na tomada da terra. Ordenação (Ordnung)
e localização (Ortung) são coextensivos.
Fiando-se nos pitagóricos, Foucault susten-
ta que nómos vem de nomeús, ou seja, “pastor”.24
Assim, o governo dos homens derivaria da noção
cristã-medieval de pastorado. Pastor é quem faz a
lei e indica a direção certa ao rebanho, encenando
uma experiência autoritativa que os gregos só
conheciam de maneira secundária e marginal.
Por isto, eles a localizavam no domínio privado
da casa, nunca na seara propriamente política:
trata-se da submissão de um ser humano (o filho,
a esposa, o escravo etc.) à vontade pura e simples
de outro (o pai), e não a um sistema abstrato de

24. FOUCAULT, Segurança, território, população, p. 183.

260
normas e padrões sociais, seja ele democrático,
aristocrático ou monárquico.
É curioso notar que duas tradições filosófi-
cas afastadas e potencialmente rivais, represen-
tadas aqui por Schmitt e Foucault, se entendam
ao traduzir nómos enquanto algo que supera o
direito. Quando se centralizam na discussão des-
se tema, ambas as correntes passam a compar-
tilhar não apenas o mesmo léxico, mas também
as mesmas preocupações com a tecnicização do
direito, sua redução simbólica à lei e, por fim, sua
tendência a se converter em espaço de exceção.
Schmitt e Foucault perceberam que o di-
reito não está na lei, mas em alguma dimensão
que a antecede e suspende, a põe ao mesmo
tempo que a depõe e, abandonando-a a si mes-
ma, a revela enquanto força. O segredo do nómos
passa, portanto, pela violência que os juristas
contemporâneos cinicamente tentam esconder
sob as formas e os ritos de uma racionalidade
comunicativa já esgotada. Ao reduzir o direito
a uma mera técnica argumentativa, a contem-
poraneidade escamoteia suas dimensões deci-
sivas, irracionais e pré-legais, gerando a situ-
ação em que sobrevivemos, na qual um direito
ineficaz pretende ostentar uma validade sacral,
“metódica” e “discursiva”. Por outro lado, como
notou Agamben, a força do direito – totalmente
separada de sua forma – se alastra pelo planeta
como um mana desgovernado, configurando no-
vas ordenações e localizações em grande parte
determinadas por pressões econômicas.

261
Em suas origens, o direito só se mostra
quando há um teu e um meu, ambos fundados,
contudo, em um vazio normativo. Antes da deci-
são violenta que separa as pessoas e as transfor-
ma em seres jurídicos dotados do poder de excluir
uns aos outros (em termos técnicos, trata-se da
eficácia erga omnes do direito de propriedade),
não há qualquer normatividade jurídico-social,
a qual se estrutura sempre a posteriori, a partir
da decisão violenta que põe a ordem. Schmitt
tem razão quando sustenta que, normativamente
considerada, a decisão soberana se baseia em um
nada,25 pois é somente depois dela que nasce a
ordem. Todavia, trata-se de uma ordem calcada
em um modelo viciado desde o nascedouro, dado
que aposta na separação e na negação do comum
para a criação mágica da identidade proprietá-
ria, conformando o individualismo possessivo do
nómos.
Se o ato de tomada da terra que põe o
direito constitui fundamentalmente um limite,
é interessante recuperar uma reflexão de Marx
no contexto de sua segunda análise da guerra
franco-prussiana de 1870. Trata-se de texto apre-
sentado à Associação Internacional dos Traba-
lhadores e logo difundido como mensagem des-
sa organização. Caso seja considerada de modo
apressado, tal reflexão pode parecer por demais
“empírica” e, portanto, destituída de interesse
para uma genealogia do direito como a que ora
esboço. Mas não é assim que a compreendo.

25. SCHMITT, Politische Theologie, pp. 37-38.

262
Marx afirma que é absurdo e anacrônico
fazer das considerações militares o princípio com
base no qual se limitam as fronteiras nacionais.
Com efeito, se o mapa da Europa tiver que ser
refeito seguindo esse “espírito de antiquário”26 –
que é hoje exatamente o princípio que guia Israel
–, os conflitos jamais terão fim. Toda linha militar
é por natureza defeituosa, podendo ser esten-
dida mais e mais com fundamento em vetustos
argumentos sobre a posse imemorial da terra e
tendo em vista a necessidade de autodefesa. Se
radicalizada, essa necessidade inclusive exigiria
que o mundo inteiro fosse inserido nas linhas
controladas pelo Estado, tal como sonharam os
nazistas e agora sonham os estadunidenses.
Marx conclui que limites jamais podem
ser fixados de maneira definitiva e justa, dado
que são impostos aos conquistados pelos con-
quistadores.27 Assim, a ideia mesma de limite
é problemática e sempre acarreta guerras. Um
limite originário como o do nómos, que caracteriza
não uma ordem jurídica específica, mas todo o
sistema individualista possessivo do Ocidente,
só pode dar lugar à guerra perpétua chamada
“direito”. Não é uma coincidência que Schmitt,
autor responsável pela mais clara visualização
do caráter originário e violento do nómos, tenha

26. A expressão é de Marx. Cf. MARX, Segunda mensa-


gem do conselho geral sobre a guerra franco-prussiana em
A guerra civil na França, p. 28.
27. MARX, Segunda mensagem do conselho geral sobre
a guerra franco-prussiana em A guerra civil na França,
p. 29.

263
definido o direito enquanto a “forma da guerra
formalmente correta”.28
A propriedade ocupa o lugar de categoria
central nessa estrutura bélico-jurídica originária.
É a partir de sua fundação que o direito nasce
enquanto ordem identitária. O individualismo
possessivo dos inícios violentos da ordem jurídica
sustenta não apenas uma diferença radical entre
aqueles que possuem e os que não possuem,
mas também torna possível a criação e o desen-
volvimento da personalidade do sujeito jurídico,
compreendido enquanto algo particular, indevas-
sável e único. Não é à-toa que os jurisconsultos
romanos diziam que a propriedade constitui a
expressão concreta da liberdade cívico-pessoal,
elemento fundamental da persona romana.29
O sujeito de direito, que desde seus pri-
mórdios tem na propriedade a garantia de sua
personalidade, passou por um processo bimilenar
de concentração em si mesmo, criando camadas e
mais camadas de “eus” individuais e possessivos
para evitar o contágio com o mundo do comum e
do outro, compreendido como um perigoso “não-
-eu” igualmente individualista e possessivo. Com
base nesse dispositivo, o direito ocidental foi se
caracterizando graças à rigidez das identidades
que constrói. As liberdades civis surgidas na Re-

28. SCHMITT, Glossarium, entrada de 12 de outubro de


1947.
29. Cf., por exemplo, CÍCERO, Dos deveres, II, 78-84, pp.
109-112; GAIUS, Institutes, II, 65-69, pp. 47-48 e Corpus
Iuris Civilis, ed. Mömmsen-Kruger, D.48.20.7, p. 869.

264
volução Francesa e os direitos de intimidade tão
debatidos hoje são os resultados mais recentes
desse processo de criação de identidades duras.
Tal se dá por meio de uma estratégia dupla: per-
manente defesa diante do outro e apropriação
do mundo mediante um “eu” absoluto. Contudo,
em sua estrutura ontológica, o mundo é comum,
aberto e indeterminado, resistindo continuamen-
te à privatização que o direito lhe impõe. É por
isso que o indivíduo autocentrado se sente mal.
Por mais que ele tente se encapsular ao manter
seu “eu”, sua propriedade e suas opiniões, ele
fatalmente se confronta com a estrutura inevi-
tável do mundo, aberto e comum.
Daí decorre uma das tarefas da filosofia ra-
dical, que, ao criticar o individualismo possessivo
do nómos, possibilita experiências mais ricas de
convivência e de formação de identidades volta-
das para a superação das oposições originárias
entre “meu” e “teu”, “eu” e “outro”, “oprimidos”
e “opressores”. É claro que, para tanto, a ideia
de propriedade privada tem que ser extirpada.
Na verdade, até mesmo a concepção de bens pú-
blicos precisa ser superada, já que no contexto
do individualismo possessivo o público é apenas
aquilo que sobra, o que ainda não foi apropriado
pelo indivíduo e, enquanto tal, aparece como a
outra face do ato originário de tomada da terra.
Ao invés de negá-lo, no mundo capitalista o pú-
blico reforça o privado.
Ao contrário, vivências como o novo uso
dos bens que Agamben intuiu nas práticas fran-

265
ciscanas medievais e a partilha das subjetivi-
dades da multidão descritas por Hardt & Negri
apostam em formas alternativas de lidar com
o direito, buscando conferir-lhe sentidos radi-
calmente não-apropriantes/individualizantes,
ou seja, desvinculados da opressão que gera e
mantém possuidores e não possuidores. Talvez
aí esteja a chave para a criação de uma demo-
cracia radical, algo que, seja dito em alto e bom
som, nunca existiu neste planeta. O que está em
jogo em tais projetos é nada menos do que toda
a tradição política e jurídica ocidental, fundada
na noção político-teológica de hierarquia.
Os mecanismos técnicos em que a contem-
poraneidade submergiu o direito e a política mal
conseguem disfarçar que a ideia de hierarquia
da qual ambos dependem deriva de um compos-
to grego que designa a ordem (arqué) sagrada
(hierós), hieroarqué. Viver sob uma hierarquia
significa viver sob uma ordem divina que garante
a contínua passagem dos muitos – o povo – para
o uno que deve governar. Mas o fluxo sagrado
exige um corpo intermediário de funcionários –
organizados dos menos importantes até aos mais
poderosos – capaz de ligar a unidade ideal do
governo à base real sobre a qual o poder político
é exercido. Dessa maneira, pode-se descrever a
estrutura hierárquica como um dispositivo que
serve para separar imanência e transcendência,
conforme percebido pelo teólogo italiano Egidio
Romano (1243-1316) no contexto das disputas
de poder entre o Papa e o rei francês.

266
Romano foi discípulo de Tomás de Aquino,
o primeiro teólogo a realmente pensar a organiza-
ção jurídico-administrativa da Igreja com base em
escalonamentos legais que vão da lex humana à
lex aeterna, passando pelas instâncias intermedi-
árias da lex naturalis e da lex divina, construção
essencial para o normativismo jurídico do início
do século XX e sua ideia de pirâmide normativa
(Stufenbau). Algo das propostas de Tomás de
Aquino relativas à estruturação normativa uni-
versal feita por escalões deve ter impressionado
profundamente o espírito de Romano, ainda que
em sua obra Sobre o Poder Eclesiástico (De Ec-
clesiastica Potestate) ele pareça estar mais ins-
pirado pelo neoplatonismo do Pseudo-Dionísio
Areopagita e sua teoria das emanações. Com
base nessas ideias, Romano sustenta a existên-
cia de uma hierarquia terrena que tem o Papa
como centro e ápice, motivo pelo qual os níveis
intermediários ocupados pelo poder secular não
lhe podem opor qualquer objeção.
A função da hierarquia é possibilitar a re-
ductio ad unum per medio, tarefa que o Papa
realiza com o auxílio dos poderes políticos ter-
renos. Na verdade, essa configuração dual que
pensa o papado ao lado do poder secular não
traz nenhuma novidade, tratando-se de para-
digma amplamente aceito no Medievo, tal como
demonstra o célebre mitologema das duas es-
padas, uma secular e outra espiritual. O que
constitui a singular contribuição de Romano é
antes a justificativa apresentada para o velho
modelo dual.

267
Segundo explica Romano, a hierarquia
existe para que haja ordem na realidade gra-
ças à contínua condução do plural ao único.
Enquanto representante de Deus na Terra, o
Papa goza de um poder absoluto que lhe daria
inclusive legitimidade para dissolver os corpos
intermediários – ou seja, os poderes seculares
– quando não cumprissem as missões que lhes
fossem confiadas pela Igreja. O Papa, cúspide da
hierarquia político-teológica, poderia então, em
casos graves e excepcionais, governar diretamen-
te (directe) o corpo de fiéis que se encontra na
base da pirâmide. Romano chama essa hipótese
de casus imminens.
Já foi notada a relação analógica entre o
casus imminens de Egidio Romano e a interpre-
tação conferida por Carl Schmitt ao estado de
exceção previsto na Constituição de Weimar. A
segunda parte do art. 48 da Constituição per-
mitia ao Presidente do Reich intervir e governar
diretamente os Länder alemães caso fossem ve-
rificadas as hipóteses excepcionais descritas no
citado dispositivo constitucional.30 A essa altura
resta claro que a função da hierarquia é ocultar
o poder real ao fazê-lo agir por meio de inter-
mediários, só se mostrando em sua realidade

30. Devo essa preciosa aproximação entre Romano e


Schmitt a Francisco Bertelloni, medievalista argentino
que apresentou a conferência Estructura teórica del caso
de excepción (casus imminens) en Egidio Romano no “II
Colóquio Internacional Carl Schmitt: Direito, Filosofia
e Política”, evento ocorrido na Universidade Federal de
Uberlândia de 05 a 09 de agosto de 2013.

268
nua e crua no caso excepcional, quando o Papa
ou o soberano político agem diretamente para
reordenar ou recriar as estruturas hierárquicas
intermediárias, garantidoras da ordem em con-
textos de normalidade. Desse modo, a hierarquia
é um dispositivo que, ao criar mais e mais ins-
tâncias intermediárias, serve para dissimular a
verdadeira natureza do poder, que tanto em sua
origem quanto em sua operacionalidade rotineira
se baseia sempre na violência.
A cadeia hierárquica funciona em dois sen-
tidos: primeiramente, para cima, apontando para
o futuro ao pretender ocultar o caráter violento
e incontrolável de qualquer decisão político-ju-
rídica. Já é uma prática social (e retórica) lar-
gamente aceita em nossos tempos a criação de
instâncias de controle que se acumulam umas
sobre as outras, em uma tentativa frustrada de
suplantar a força corrosiva da milenar pergunta
de Juvenal: “quis custodiet ipsos custodes?”.31
Assim, se um Tribunal é corrupto, que se crie
outro para controlá-lo; se este também não se
comportar, que seja criado outro e mais outro,
infinitamente. Mas o fato é que, na vida real, a
decisão será tomada, será final e sem apelação
e, por isso mesmo, excepcional.
O outro sentido da hierarquia se dirige para
baixo, rumo ao passado, justificando os atos de
opressão da história humana com base em uma
série de vínculos e títulos de caráter jurídico,
entre os quais sobressaem os institutos da he-

31. JUVENAL, Satire, VI, 346-348.

269
rança e da propriedade. Todavia, assim como no
primeiro sentido, caso se procure o fundamento
primeiro – tanto ontológico quanto histórico –
de qualquer “direito”, encontrar-se-á apenas o
ato original e violento de tomada da terra que
nenhuma retórica pode esconder para sempre.
O alfa e o ômega de nossas sociedades, o ato
fundador com o qual a um só tempo se privatiza
a terra comum e se justifica a excepcionalidade
da decisão final, só sobrevive na dimensão di-
áfana da hierarquia que garante, como em um
passe de mágica, o ocultamento da violência sob
as espessas camadas dos títulos jurídicos e dos
corpos administrativos intermediários.
A teoria hierárquica de Egidio Romano cor-
responde ponto por ponto à retórica democrática
da representação. Com efeito, os parlamentos
agem enquanto mediadores que garantem a rela-
ção entre o povo, que está na base da pirâmide,
e o poder político, que se aloja no ápice. Todavia,
a justificativa hierárquica falha diante do desejo
de se construir uma democracia radical em que
o povo já não seja unitário e homogêneo, mas
multidão. Em tal circunstância, percebe-se que
a divisão entre sujeito e objeto do poder político-
-jurídico não é necessária. Em uma democracia
radical, os sujeitos que estão na base da pirâmide
são exatamente os mesmos que governam e deci-
dem, tornando inútil a estrutura representativo-
-hierárquica. Nessa hipótese, a hierarquia, agora
excessiva e injustificada, aparece como o que

270
realmente é: um dispositivo arquitetado para
ocultar a natureza absoluta do poder opressivo.
Ao tentar reduzir a multidão real ao mi-
tologema “povo soberano”, a democracia repre-
sentativa reforça a inultrapassabilidade entre as
esferas de mando e obediência, criando, contudo,
uma contradição insolúvel, pois pressupõe um
sujeito que está ao mesmo tempo na base e no
cume da pirâmide hierárquica. Para tentar supe-
rar esse problema, a máquina governamental tem
que negar a multidão, desnaturando-a em povo
soberano à medida que se efetiva a passagem
do fluxo de poder pelos corpos representativos
intermediários.
Egidio Romano sustentava que, em casos
excepcionais, os corpos intermediários poderiam
ser dissolvidos pelo Papa. Cabe-nos, então, nos
apropriarmos dessa estrutura conservadora para,
profanando-a, afirmar que no estado de exceção
permanente em que vivemos tornou-se necessária
a extinção dos corpos representativos interme-
diários, de modo que já não seja possível aos
aparatos de poder converter a multidão em povo.
A tarefa política da filosofia radical consiste
então na fusão da base com o ápice da pirâmide
hierárquica, fazendo-a explodir dentro de sua
própria lógica para dar forma a uma unidade sin-
gular que já não se perca nas infinitas mediações
do poder. Só assim será possível compreender
que o povo humilhado e real da base e o “povo
soberano” e abstrato do ápice não são mais do
que conceitos. Ambos só alcançam o nível da

271
verdade quando são fundidos sob o molde mul-
titudinário de uma democracia radical em que
os sujeitos e os objetos do poder coincidem. Para
tanto, o paradigma da ordem sagrada, a hieró
arqué, precisa ser abandonado em favor de uma
an-arqué, expressão não do caos, mas de uma
nova ordem que continuamente se nega para se
afirmar em ato enquanto democracia absoluta,
no sentido que Spinoza dá à expressão.
Se é certo que o poder absoluto – normal-
mente oculto pelos mecanismos de mediação
característicos da representação democrático-
-parlamentar – só se mostra quando age dire-
tamente diante do caso de exceção, é preciso
realizar a verdadeira exceção de que falava Walter
Benjamin na Tese VIII, fazendo aflorar, para além
de todas as retóricas democráticas, a democracia
radical da multidão, capaz de fazer o poder, que
não é algo diverso do desejo de igualdade, agir
diretamente sobre o mundo.

272
3
A l ei da sel va

Para pensar a democracia radical aludida


no final da seção anterior, talvez seja útil recu-
perar o uso polêmico da palavra “democracia”,
com o qual os adversários do governo popular
em Atenas buscavam atacá-lo. Eles sublinhavam
não só a contraposição da democracia à liberdade
em sentido aristocrático, mas fundamentalmente
seu caráter violento, presente no radical krátos,
vocábulo grego que indica o poder que se põe de
modo efetivo.
Não é por acaso que nenhum autor atenien-
se tenha escrito qualquer texto elogioso dedicado
à democracia, dado que, ao contrário do que
dizem os manuais de história antiga, Atenas era
uma sociedade profundamente aristocrática. Iro-
nicamente, é por isso que ela pode ser invocada
hoje como o berço da nossa democracia, que na
verdade encarna uma aristocracia do dinheiro. No
início do século, Lênin já notara que a liberdade
democrática atual não se diferencia da grega:
ambas protegem apenas as classes escravocratas
e são exercidas contraos escravos.32 Assim, lança-

32. “En la sociedad capitalista, bajo las condiciones del

273
-se mão de uma democracia que nunca foi para
fundamentar um sistema igualitário abortado
desde sempre. Isso se torna patente no risível
preâmbulo da Constituição Europeia, que glo-
sa acriticamente algumas palavras atribuídas a
Péricles por Tucídides e que, bem entendidas,
são uma crítica velada e irônica ao governo de-
mocrático.33 Quando nos propomos a pensar a
democracia radical, é preciso abrir mão do dis-
curso edificante e vazio da tradição, que se reve-
la enquanto mera ideologia ao apresentar uma
Atenas tão democrática quanto fictícia e, por isso
mesmo, perfeita para legitimar a irrealidade de
um presente em que a aristocracia ainda domina.
Para conceber a democracia radical é ne-
cessária uma decisão ontológica forte o suficiente
para negar o etnocentrismo capitalista-estatal
que pretende traduzir o único e inevitável hori-
zonte da sociabilidade humana. Cabe-nos então

desarrollo más favorable de esta sociedad, tenemos en


la república democrática un democratismo más o menos
completo. Pero este democratismo se halla siempre com-
primido dentro de los estrechos marcos de la explotación
capitalista y es siempre, en esencia, por esta razón, un demo-
cratismo para la minoria, sólo para las clases poseedoras,
sólo para los ricos. La libertad de la sociedad capitalista
sigue siendo, y es siempre, poco más o menos, lo que era
la libertad en las antiguas repúblicas de Grécia: libertad
para los esclavistas” (LENIN, Es estado y la revolución,
p. 151).
33. Cf. a discussão sobre o uso polêmico do termo “de-
mocracia” em Atenas em CANFORA, A democracia, pp.
20-24, onde o autor também critica o falacioso preâmbu-
lo da Constituição Europeia.

274
buscar as bases da democracia radical em con-
textos sociais muito diversos daquele que nos foi
legado como o “verdadeiro”, o “correto” e o “bom”.
Nessa perspectiva, autores como Pierre Clastres
são muito úteis. Eles demonstram com rigor que
a opção pelo Estado e o poder coercitivo que o
funda não é mais do que isso: uma entre várias
outras possibilidades de organização social.
Ao estudar as comunidades indígenas da
América do Sul, Clastres notou que nelas o poder
não é algo diverso do corpo social sobre o qual
é exercido, não existindo separação em classes
e hierarquias. O chefe indígena – que curiosa
e falsamente representa para nós o modelo do
mais absoluto arbítrio – só tem autoridade na
medida em que anula sua capacidade de mando
e se conecta à tribo enquanto “poder impotente”.34
As sociedades selvagens da América do Sul se
fundam em uma igualdade de base, expressa das
maneiras mais diversas e inesperadas, mas que
sempre ganham concretude na recusa consciente
de um poder capaz de se separar da sociedade e
se impor enquanto realidade autônoma.
Somente quando se parte dessa leitura
é possível compreender alguns atos das tribos
que teimamos em chamar de bárbaras, a exem-
plo dos ritos de iniciação em que jovens machos
são submetidos às torturas mais lancinantes
para que possam ser tidos como membros da
comunidade. Segundo Clastres, tais rituais de-

34. CLASTRES, A sociedade contra o estado, p. 41.

275
vem ser lidos enquanto violentas afirmações da
radicalidade da igualdade, que grava na pele de
cada guerreiro as cicatrizes graças às quais ele se
identificará com seus irmãos, configurando uma
espécie de memória viva. O jovem martirizado
precisa se lembrar a todo tempo que faz parte de
uma comunidade e, por isso mesmo, não pode
desejar o poder ou aceitar se submeter ao poder
de outrem: “A marca sobre o corpo, igual sobre
todos os corpos, enuncia: ‘Tu não terás o desejo
do poder, nem desejarás ser submisso’”.35
Nas sociedades indígenas estudadas por
Clastres não se consumou a grande separação
entre os que mandam e os que obedecem. Nelas o
poder não se destaca da sociedade, como ocorre
em nossa realidade, na qual o poder é exercido
sobre a sociedade e, se necessário, contra ela.36
No mundo dos selvagens, o poder político se con-
funde com a própria sociedade, e é essa coinci-
dência que torna possível a negação de coisas
similares ao Estado e à economia de mercado,
construtos separados da comunidade. É notá-
vel a semelhança dessa estrutura indígena com
a proposta indicada no final da seção anterior,
quando sugeri conectar a base e o ápice da pirâ-
mide hierárquica, destruindo-a e dando lugar a
uma democracia radical, sem mediações e corpos
intermediários.
De acordo com Clastres, os selvagens sem
Estado da América do Sul pressentiram que uma

35. CLASTRES, A sociedade contra o estado, p. 200.


36. CLASTRES, A sociedade contra o estado, p. 169.

276
autoridade exterior à sociedade representaria um
risco mortal, potente o suficiente para negar a
diferença entre cultura e natureza. Tal autori-
dade, uma vez admitida sua legalidade própria
separada da natureza, se traduziria em ações
violentas muito próximas das forças naturais,
sendo ambas as experiências limitadoras da cul-
tura. Daí porque os selvagens tenham escolhido
limitar, mediante seus ritos e tradições para nós
incompreensíveis, as esferas da troca social cujos
objetos clássicos são os bens, as mulheres e as
palavras.
Caso não sofresse essa limitação, o poder
político se afirmaria enquanto algo autonomi-
zado e separado do grupo. É para evitar essa
degeneração que os chefes indígenas adulam
e presenteiam os demais membros da tribo, ao
mesmo tempo que detêm a posse sexual de gran-
de número de mulheres, configurando um curto
circuito que torna paradoxal a natureza privile-
giada do poder que exercem: já que muito pos-
suem, muito devem ceder. Tal se evidencia ainda
com mais força no discurso desses personagens,
emitido toda manhã ou todo crepúsculo sem que
ninguém o ouça com atenção. Na lengalenga do
cacique, se reafirma a impotência de um poder
comunitário que sobrevive apenas enquanto ins-
tância generosa (bens), oratória (palavras) ou
reprodutiva (mulheres), mas jamais como algo
separado da sociedade.37

37. CLASTRES, A sociedade contra o estado, pp. 63-65.

277
Todavia, qual é a utilidade para nós de
uma estrutura como essa, aparentemente deslo-
cada no curso da história? Mesmo considerando
superados todos os idealismos calcados no ridí-
culo mito do bom selvagem, será que a solução
para nossos problemas sociais seria tão simples
assim, exigindo apenas o retorno a uma matriz
primitiva de comunismo radical? Essas duas
perguntas mal escondem o preconceito a partir
do qual falam.
Inicialmente, é preciso entender que as
comunidades chamadas de “primitivas” não são
formações sociais que perderam o “trem do pro-
gresso”. Tal visão exigiria a crença em um sentido
único da história que apontasse para o Estado e
a economia de mercado enquanto fins a serem
atingidos por todas as comunidades humanas,38
o que é falso. Conforme discutido anteriormente,
a história não equivale a processos cognitivos
em que haja “certos” e “errados”, caminhos e
descaminhos, sendo antes o resultado de ações
humanas desvinculadas de quaisquer potências
exteriores a elas próprias.
Clastres reivindica o caráter a-histórico
das sociedades selvagens da América do Sul,
que por não possuírem escrita e poder coercitivo,
não teriam também uma história propriamente
dita.39 Tal pode nos levar a pensar, um pouco
talvez à moda de Benjamin, que toda história é
história do poder coercitivo. Ao contrário do que

38. CLASTRES, A sociedade contra o estado, p. 202.


39. CLASTRES, A sociedade contra o estado, p. 43.

278
fazemos, os indígenas referidos por Clastres não
escrevem e apresentam a si mesmos algo como
uma história, ou seja, uma narrativa em que
os conflitos sociais são reduzidos a momentos
dialéticos ideais que sempre apontam para o télos
do Estado.
Somente recusando o peso da história ofi-
cial será possível construir alternativas viáveis
diante do capitalismo, que já se naturalizou en-
quanto a única “história” capaz de possibilitar
a autocompreensão de nossas sociedades. Para
criticar essa visão monolítica é necessário levar
a sério o olhar dos “primitivos”. Sem uma his-
tória que os limite, eles se encontram no aberto
de uma realidade em que comando e obediência
simplesmente não fazem sentido.
A lição de Clastres e seus indígenas indica
que se o ser do poder que conhecemos é a violên-
cia, isso não quer dizer que todo poder precisa
ser violento.40 Quando alguém se nega a pensar
o poder em bases não-coercitivas e não-hierár-
quicas, está apenas traduzindo uma clara limi-
tação etnocêntrica que, para a filosofia radical,
não passa de mais um obstáculo epistemológico
a ser imediatamente removido. Há que se ver as

40. “O poder político como coerção (ou como relação de


comando-obediência) não é o modelo do poder verdadei-
ro, mas simplesmente um caso particular, uma realização
concreta do poder político em certas culturas, tal como
a ocidental (mas não é a única, naturalmente)” (CLAS-
TRES, A sociedade contra o estado, p. 41. No mesmo sen-
tido, pp. 29 e 34-35).

279
coisas com clareza: a hipótese de Clastres não
é a de uma sociedade sem normatividade, o que
seria, de fato, impossível. Na verdade, trata-se de
sociedades ainda mais mergulhadas no universo
simbólico das normas do que as nossas. Contudo,
tal universo se compõe de normas da sociedade e
não de normas de grupos separados, imponíveis
aos demais com base em relações hierárquicas
e coercitivas fundadas na díade comando/obe-
diência.
As normas das sociedades sem Estado
são igualitárias, dado que sustentadas por um
consenso social interno cuja principal função é
impedir o surgimento de órgãos autônomos de
poder, entendidos como estruturas separadas
da sociedade. Essa é a mais importante função
do chefe nessas sociedades: marcar, com sua
presença, um lugar que deve ser constantemente
vigiado e controlado pela tribo. Não é a ausência
do chefe que garante a liberdade dos membros da
comunidade, mas a sua manutenção enquanto
figura impotente, o que me parece ser um tipo de
profanação: retira-se da esfera do sagrado aquilo
que foi lá abandonado, trazendo-o novamente
para a dimensão dos gestos humanos.
Marx concluiu que o grande mérito da Co-
muna de Paris seria ter encontrado – de maneira
similar aos indígenas estudados por Clastres
– uma forma orgânica de sociedade em que os
aparatos de poder já não se dissociam da comu-
nidade. O corpo intermediário de funcionários
(formado por políticos, juízes, policiais, profes-

280
sores etc.), que nas estruturas estatais clássicas
representa de maneira indelével a cisão entre os
que mandam e os que obedecem, era eleito na
Comuna por voto popular. Ademais, todos os
funcionários comunais eram plenamente demis-
síveis e obrigados a cumprir mandato imperativo,
recebendo estipêndios iguais aos de qualquer
outro trabalhador.41
Das tribos da América do Sul e da Comuna
de 1871 deriva uma lição para nós, membros
de sociedades em que potestas e communitas se
separaram muito cedo: não se pode subjugar o
poder e as normas que dele derivam por meio de
sua negação pura e simples, instaurando algo
como um espaço caótico de antipoder. Ao contrá-
rio, é preciso despotencializar o poder, trazendo
à luz sua essencial impotência. Tal não se define
enquanto uma não-potência, sendo antes uma
potência-do-não capaz de possibilitar novos usos
para a normatividade que sempre deriva do po-
der. Talvez o leitor se lembre que foi exatamente
esse termo que utilizei no começo do livro para
definir utopia.

41. MARX, A guerra civil na França (segundo rascunho),


p. 173.

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301
S ob r e o au tor

Graduado em Direito, Mestre em Filosofia do


Direito e Doutor em Direito e Justiça pela Fa-
culdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Doutorando em Filosofia
pela Universidade de Coimbra (Portugal). Pro-
fessor Adjunto de Filosofia do Direito e disci-
plinas afins na Faculdade de Direito da UFMG.
Membro do Corpo Permanente do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Direito da UFMG. Pesquisador Colaborador no
Departamento de Filosofia da Universidade de
Campinas (UNICAMP). Professor Titular de Fi-
losofia do Direito no curso de Graduação em
Direito da FEAD (Belo Horizonte/MG). Autor de
ensaios jusfilosóficos tais como Filosofia do Di-
reito e Justiça na Obra de Hans Kelsen (Belo Ho-
rizonte, Del Rey, 2006), O Estoicismo Imperial
como Momento da Ideia de Justiça: Universalis-
mo, Liberdade e Igualdade no Discurso da Stoá
em Roma (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009),
Kelsen Contra o Estado (In: Contra o Absoluto:
Perspectivas Críticas, Políticas e Filosóficas da
Obra de Hans Kelsen, Curitiba, Juruá, 2012),
Contra Naturam: Hans Kelsen e a Tradição
Crítica do Positivismo jurídico (Curitiba, Juruá,
2013), Power, Law and Violence: Critical Essays
on Hans Kelsen and Carl Schmitt (Lambert, Saar-
brücken [Alemanha], 2013) e O Grande Sistema
do Mundo: do Pensamento Grego Originário à

302
Mecânica Quântica (Belo Horizonte, Fino Traço,
2014). Diretor da Revista Brasileira de Estudos
Políticos. Coordenador da coleção Nómos
Basileús da editora Via Verita.

E-mail: vergiliopublius@hotmail.com

303
Coleção Nómos Basileús

A expressão nómos basileús aparece pela pri-


meira vez no fragmento 169 do poeta grego Píndaro.
Nele se canta a força do nómos, essa estranha potên-
cia capaz de “conduzir mortais e imortais com mão
mais forte” para “justificar o mais violento”. Giorgio
Agamben afirma que o poema envolve um verdadeiro
enigma, eis que unifica violência e justiça em um
único dispositivo bipolar. Mas o que é esse nómos,
superior tanto à força quanto à razão, mas que as
aproxima? Não é adequado traduzir nómos basileús
por “lei soberana”. Nómos é lei, mas também é muito
mais do que isso, guardando em si uma compreen-
são originária do direito que a contemporaneidade
parece ter perdido ao funcionalizá-lo. Em um célebre
escrito, o jurista alemão Carl Schmitt explica que
o substantivo nómos deriva do verbo grego némein,
apresentando três significados complementares: 1.
tomar, conquistar (mesmo sentido do verbo alemão
nehmen); 2. dividir, distribuir o que foi conquistado;
3. pastar, quer dizer, cultivar e explorar a posse, o
conquistado. Para Schmitt, toda ordenação normativa
depende de um ato anterior, por essência violento,
que consiste na tomada da terra. Ordem (Ordnung)
e localização (Ortung) são co-extensivos. Fiando-se
nos pitagóricos, o filósofo francês Michel Foucault
diz que nómos vem de nomeús, quer dizer, “pastor”.
Para Foucault, o governo dos homens deriva da noção
cristã-medieval de pastorado. Pastor é aquele que faz
a lei e indica a direção correta ao rebanho, encenando
uma nova situação que os gregos só conheciam de

304
modo secundário e marginal: a submissão de um ho-
mem à vontade de outro, e não a um sistema abstrato
de normas e padrões sociais. É curioso notar que
duas tradições completamente afastadas e até mesmo
rivais – o decisionismo e o pós-estruturalismo – se
entendam ao traduzir nómos como algo que supera
o direito e, superando-o, o suplanta. Não é por acaso
que, a partir de então, ambas as correntes passam
a compartilhar não apenas o mesmo léxico, mas as
mesmas preocupações com a tecnicização do direito,
sua redução simbólica à lei e, por fim, sua tendência
em se converter num espaço de exceção.
O que Schmitt e Foucault perceberam é que
o direito não está na lei, mas em alguma dimensão
que o antecede e o suspende, o põe ao mesmo tempo
que o depõe e, uma vez abandonada a si mesma, se
revela enquanto força. O segredo do nómos basileús
passa então pela violência, que a lei dos modernos
cinicamente tenta travestir com as formas e os ritos
de uma racionalidade já esgotada. Ao reduzir o direi-
to a mera técnica, a contemporaneidade escamoteia
suas dimensões decisivas, irracionais e pré-legais,
gerando a situação em que sobrevivemos, na qual
um direito ineficaz pretende ostentar uma validade
sacral, “metódica” e “discursiva”. Por outro lado, a
força do direito – totalmente separada de sua forma –
vaga pelo planeta, configurando novas ordenações – e
novas localizações! – em grande parte determinadas
por pressões econômicas e privatistas. Por isso se
mostra urgente pensar o direito que vem (Agamben),
o direito além da lei e em confronto com ela, o que
significa desvelá-lo enquanto nómos basileús apenas
para invertê-lo: não mais a lei soberana, mas o di-
reito como senhor da lei. Um passo importante para
tanto será dado quando todos os manuais, resumos e
cursos “esquematizados” que infestam as Faculdades

305
de Direito forem queimados em um magnífico auto-
-de-fé. Mas fé em quê? Ora, na inteligência dos que,
mais que operadores do direito, são seus acusadores,
seus inquisidores e, por isso mesmo, seus mais pro-
fundos amadores. Amador não é quem desconhece,
mas quem, por se negar ao mergulho na técnica
imbecilizante, não ama o direito por profissão, mas
tem por profissão amar o direito. A esses espíritos
livres se destina a coleção nómos basileús da editora
via verita, que pretende trazer à luz trabalhos origi-
nais e traduções de importantes obras estrangeiras
de Filosofia do Direito, sempre acompanhadas de
estudos que localizem autor e texto em seu e em
nosso contexto. Com isso espera-se contribuir para a
retomada do espaço do pensamento no direito, sem-
pre ameaçado pela submersão no discurso vazio de
uma contemporaneidade carente de ser, de sentido
e, fundamentalmente, de vergonha de sua indigência
humana. Se é verdade que a Filosofia nasce do es-
panto, a Filosofia do Direito só terá futuro se nascer
da indignação do que se fez ao nómos, restituindo-o
ao seu verdadeiro destino: ser soberano.

306
Coleção Nómos Basileús
Dirigida por Andityas Soares de Moura Costa Matos

Volumes publicados

Sobre a teoria das ficções jurídicas


Hans Kelsen
Tradução de Vinícius Lopes
Estudo introdutório de Andityas Soares de Moura C. Matos

Poder, direito e ordem: ensaios sobre Carl Schmitt


Alexandre Franco de Sá

Metamorfose do poder: prolegômenos schmittianos a toda


a sociedade futura
Alexandre Franco de Sá

Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia,


a-nomia
ANDITYAS SOARES DE MOURA COSTA MATOS

Volumes planejados

Teoria da Constituição
Carl Schmitt
Tradução de Alexandre Franco de Sá

A busca pelo sentido


Dietmar von der Pfordten

307
Este livro foi publicado em julho de 2014 na cidade do Rio de Janeiro,
durante os eventos da copa da exceção, quando descomemoramos os
50 anos da ditadura militar brasileira e nos lembramos dos 74 anos do
assassinato de Leon Trotsky e da morte de Walter Benjamin. As fontes
usadas no texto são Bookman Old Style, tamanho 12.

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