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Luiz COsTA LIMA

TRI LO G I A D O
CONTROLE
O CONTROLE DO IMAGINÁ RIO
SOCIEDADE E DISCURSO FICCIONAL
O FIN GID OR E O CENSOR

’* (3° edição revista)


Co@yright O 2007 Luiz Costa Lima

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Edior
José Mario Pereira
{} Qtd eCÍIReFl tOS ..............•..........................................................•..........•........
Edimia-ass'ustente A Inquietasao de Luiz Costa Lima — Hons Ulricà Giimbrecht.............................13
Christine Ajuz

Nota introdutó ria à Trílogín.........................................................................................................17


Recreio e ínôice iemissiuo
Luciana Messeder

Capa O CONTROLE DO IMAGINÁ RIO


Miriam Lerr;er

CAP. 1: O CONTROLE DO IMAGINÁRIO


1. O Caminho de uma questão......................................................................25
Arte das Letras
2. O Compromisso com a razão.....................................................................39
3. A Assu•sa da subjetividade: Chateaubriand e Stendhal.................62
4• O IIRagináiiO e a Wlí;Jie5if..........................................................................................................71

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS POR C . II: Os DESTINOS DA SUBJETIVIDADE: HISTORIA


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Rua Visconde de Inhaúma, 58 / gr. 203 — Centro A. A Notiizeza
Rio de Janeiro — CEP: 20091-000 1. O Colapso do universal clá ssico......................................................................83
TelefÃ: (21) 2233-8718 e 2283-1039 2. Subjetividade e poética no primeiro romantismo.....................................96
E-mail: topbooks@topbooks.com.br 3. A Teorizaçã o do poético .....................,..............................................................108
B. A Histó ria
Wcite o site de editcrra jerri m‹iis informações
4. A Ascensã o do discurso histó rico e suas relasõ es
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com a literatura.........................................................................................................124
ILUMINIS MO FRANCÊS E DIDEROT

1 . RAC I O NA LIS M O E RE L IG I ÃO

Ao fundir nobres e altos burgueses na submissa unidade de In couT


et la viÍÍe, Luís XIV, que reina entre 1643 e 1715, abafara os trasos
distintivos de duas classes. Sua neutralizasao contudo tinha de ser
provisó ria, porque, nã o havendo sido acompanhada da formasã o de
outro efetivo interesse
social, classes e estamentos, conjunturalmente manietados, mais cedo ou
mais tarde haveriam de retomar suas diferen sas. Essa retomada se cumprirá
com o declínio do absolutismo, iniciado no fim ainda do período do Rei
Sol. Da parte da nobreza, o interesse consistia ria “restaurasã o das
institu'sõ es do passado, dos privilégios que a monarquia havia abolido ou
debilitado”
(Lanson, G.: 1910, 199) . Pelos pró prios termos como se formulava, essa
reasa nã o podia ser profunda: além do círculo das casas nobres restantes,
a quem mais poderia interessar essa política de prerrogativas e ise•sõ es?
É verdade que, como ainda dizia Lanson, só a nobreza disponha do meca-
nismo institucional, os Parlamentos, capaz de se confrontar com a realeza.
Mas tal mecanismo nã o possuiria uma força mais do que transitó ria ou
formal se nã o fosse respaldado pela voz que engrossava nas ruas. Em que
fundamento se apoiava a voz das ruas? Tanto a histó ria das idéias, quanto a
histó ria política da França apó s Luís XIV acentuam a relevâ ncia de categoria
aparentemente abstrata, a razã o. Do ponto de vista da histó ria das idé ias,
seu realce se iniciara com a propaga ã o da filosofia cartesiana. Mas, por
certo, nunca se disse que o propó sito de Descartes fosse uma transforrø£t
p política. Como a razã o, privilegiada por motivos inicialmente y86
intelectuais, se converteu em instrumento político? Nã o é preciso muita
pesquisil p y l

compreendê-lo. Ainda em 1707, nos ú ltimos anos portanto de Luís 3


certa publicaçã o advertia: “Todo o mundo, contanto que tenha O senso
comum, é juiz competente, e nã o pode se abster de pronunciar-se, serf
má -fé , sob o pretexto de sua falta de luzes” (aQitd Lanson, G.: 1910, 107).
A razã o era identificada com uma faculdade comum a todos os hom epS
normais, o senso comum. À medida que se estabelece essa sinonímiEt, ã
razã o deixa de ser o lema da inteli entsio nã o conformista. Invoca-se a razä (j
como uma faculdade natural e gené rica, a que repugna toda a metafisica,
toda a forma de arbitrariedade ou o que nã o é aceito pelo entendiment
geral. A razá o é invocada contra o poder discricioná rio do ancien Tégime,
abrangendo os defensores da religiã o revelada. Sua I Isa será mostrada no
destino que estará reservado aos jansenistas. Em sua luta contra os jesuítas,
que argutamente procuravam conciliar o cristianismo com a moral mundana
dos novos tempos, os janserristas acentuavam a impossibilidade de a razã o
humana conseguir extender os desígnios da providê ncia e, por conseguinte,
de oferecer uma cosmovisã o satisfató ria. Deste modo, tal como mostram
as Proeiricidles de Pascal, a problemá tica da grasa ia além da controvérsia
teoló gica. A graça, separando de antemã o as criaturas eleitas, só poderia
parecer insensata para uma razã o que se confundia com o uso do born senso.
Nã o é acidental que os jansenistas, mais que derrotados na frente
religiosa,
pareçam haver desaparecido da histó ria. Sua hostilidade ă razã o, enquanto
instrumento explicativo do mundo, nã o condizia com a classe em
ascensã o. (Serra a respeito oportuno assinalar a difere•sa de porte de outros
defensores da grasa, os calvinistas, que souberam articular a idéia dos
predestinados ă realidade dos que fazem fortuna) .
As exigê ncias do born senso crescem com o nú mero de seus defensores.
Ø_uem sã oales? Por acaso os que, a partir da segunda metade do sé culo X"r'III,
serão depreciativamente chamados de QhiÍosoQhes? Por acaso os
colaboradores ou os leitores da Eric yclopédie, publicada, entre 1751 e
1772, sob a diresa de Diderot e D'Alembert? Por certo que nã o. Os
philosopher e seus aliados eram poucos para que sua voz ecoasse nas ruas
e, conforme as pesquisas 5e
Egbert D£tlTLtOn, as primeiras ed'sõ es da sua grande obra ainda remotos da Restauraçã o, mas antes mesmo dos anos
coletiva, proibitivas ä S estratos medianos da sociedade: “(...) A revolucioná rios. Já entã o o burguês “parece bas-
EriycÍoQédie come5ou como um produto de luxo, limitado
primariamente para a elite da corte e do capital” (Darnton, S 7
R.: 1979, 526). Os propugnadores do born senso e os críticos
da reliØiã O Sã o majoritariamente os burgueses comuns, os
donos de um peque- no ou médio negó cio, que já nã o se
identificam com o povo em geral. E o burguê s que, embora
mantenha suas prá ticas religiosas, acusa e despreza a
$up2çStÌ5ã o km que vêm as crensas populares envoltas:

O burguês não mais poderia crer que seu Dens tivesse a


ver com as boas e as más colheitas, ao passo que a fé dos
humildes não poderia adrnitir que Deus delas se
desinteressasse (Groethuysen, B.: 1927, 75 j

Os iluministas sã o apenas um dos vetores no partido da


razã o; vetor nñ o insignificance, mesmo do estrito ponto de
vista político, pois decisivo na articulaçá o das idéias dos que
se opunham ă ordem instituída; vetor que,
sobretudo a partir de 1777-9, quando se divulga a primeira ed'sao
popular
da Eric yclopédie, consegue divulgar seu ideá rio entre os
estratos medianos da sociedade francesa. De qualquer modo
serta absurdo o estabelecimento de um enlace direto entre o
movimento iluminista e a revoluçã o de 1789. Sã o as pró prias
cond'sõ es gerais que estimulam a convergência entre o
grosso da opiniã o pú blica e os QhilosoQhes. Com efeito, a
crítica ă religiã o continua a se agravar ao longo do século e,
em 1774, encontramos um autor hoje obscuro a declarar:

A Religião é julgada nas oficinas. A filosofìa,


divulgando-se entre os níveis mais baixos, em todas as
partes fez pensadores (spud Groethuysen, B.: 1927, 29-30)

Esse acordo, no corifronto com a fé religiosa, era


presidido por motivos exclusivamente pragmá ticos. A
pregaçã o dos QhiÍosophes, a divulgasao dos princípios da
ciê ncia, o desprezo pela filosofia especulativa, eram aceitos pelo
“ burguês ă medida que interessavam ă luta por sua ascerisã o
social. Por isso a sua anti-religíosidade cessará , nã o nos anos
tante disposto a fazer as pazes com a Igreja, certo como está de encontt t,_ O geômetra e enciclopedista a seguir acrescentava que as transforma-
Sí°
suficientemente emancipado para poder levar sua vida e temeroso de q tje,
SP çóes operadas não se reduziam ao campo das ciências. Ao invés, sob seu
for mais longe, agirá contra os interesses de sua classe, pois a incredulidFtd
e, jypulso:
expandindo-se entre o povo, poderá terminar por amea sar os princípios
da
ordem social, sobre os quais se fundará a burguesia para estabelecer s letdo- (...) Desde os princípios das ciências profanas até aos fundamentos da
minasao” (Groethuyser , B.: oQ. cit., 57). Daí resulta que o destaque da revelasa , desde a metaíísica até as matérias de gosto, desde a música
razã o apresentará trajetó rias diferentes, conforme o tratemos dO ponto de até a moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos até os objetos do
vis@t de uma histó ria política ou da histó ria das idéias. E, porque co- mércio, desde os direitos dos príncipes até aos dos povos, desde a lei
natural até às leis arbitrárias das nasões, em uma palavra, desde as
concordamos qtlt “um dos defeitos da histó ria das idéias consiste em que
questões que de preferência nos tocam até àquelas que menos nos
as idéias se tor5¡ã y
interessam, tudo foi discutido, analisado, pelo menos agitado
de fato muito claras, mas perdem toda vida e significado” (Dieckmann, H.:
1954, 303) , evitemos sua clareza artificial. (D'Alembert, J.-R.: 1759, 123)

:1: Ü :T: Nada permanecera como antes, sequer os fundamentos da revelasã o.


Contudo o tom otimista da passagem evita a questã o delicada das
No parágrafo inicial de “Que é o Ilumirtismo”, Kant escrevia: relasõ es com a maté ria religiosa; ao contrá rio, ela ressalta no texto
kantiano. Aí se lê que os contemporâ neos nã o vivem “em uma idade
O Ilumiriismo é a emergência do homem de sua auto-imposta esclarecida”, mas apenas de “esclarecimento” [nã o in einen oitfgeklâ rten
menorida- de. A menoridade é a incapacidade de usar a sua própria ZeitaÍter, (mas) in einem
compreensão. sem a guia de outrem. Essa menoridade é auto- 7eitalter der AiiJlá riing]; que assim sucede porque, em maté ria de religiã o,
imposta se sua causa não se encontra na falta de compreensão, mas
está longe de ser verdade que os homens, em geral, prescindam de um
na indecisão e na falta de coragem em usar sua própria mente, sem a
direito deoutrem (Kant, guia externo (oQ. cit., 59).
I.: 1784, XI, 53) Por efeito da extrema solidariedade entre as preocupasõ es científica,
religiosa, ética e política nã o estranha a cor fluência, entã o conhecida,
Escutar sua pró pria razã o, seguir o caminho por ela indicado eram afir- entre o trabalho dos iluministas e a ate•sa que o pú blico lhe presta. Em
maçõ es que se entendiam como um ato, ao mesmo tempo, é tico e político. La Promennde dti sceQtique, Diderot escreverá : “Imponham-me o silê ncio
O indivíduo assim manifestava o direito de pensar e escolher e, portanto, sobre a religiã o e o governo e nã o terei mais nada a dizer”. Nã o se tratava
de ultrapassar a separaçã o entre a moral pú blica e a moral privada, que se de uma frase de efeito, pela qual o escritor provisoriamente se desligasse
impusera sob o absolutismo. Gesto é tico-político, era ele, ademais, o princípio de seus muitos outros interesses: nã o era preciso que as palavras
em que se respaldava o desenvolvimento intelectual, o qual, dizia D'Alembert “religiã o” e
em 1759, modificara a fisionomia do século: “governo” aparecessem explícitas na pá gina para que se verificasse serem
nelas que o autor estivera pensando. É ainda de se notar que tal
(...) Desde a Terra até Saturno, desde a história dos céus até a dos solidariedade entre política e religiã o sequer se iniciara ou se restringia aos
insetos, a física mudou de face. Com ela, quase todas as outras ciências QhilosoQhes. Franco Venturi mostra que, mesmo no interior da estabilidade
assumiram uma forma nova (...) (D'Alembert, J.-R.: 1759, 122) política inglesa de fins do século XVII, a discussã o do problema da
liberdade passava pelo debate religioso; que era dessa continuidade que
se alimentava a luta dos que, ainda depois da restaura5Ô o moná rquica,
mantinham o combate em
prol dos ideais republicanos (Venturi, F.: 1971, 49-53).

y88
Conhecida a justificaçã o teoló gica da autoridade moná rquica no
atiC¡tll Tégime, nã o é difícil entender por que a discussã o política implicava a damentos, sob o pressuposto nã o declarado de ser entã o capaz de distinguir
£ts s+lperstiçõ es da cren a bem fundada.
relig¡ _ sa. Podemo-nos porém indagar por que a religiã o nã o era deixada
Tudo na passagem comentada parece de acordo com o só lido bom
em p¿tj quando se passava para a discussã o epistemoló gica. A resposta é
senso. Mas, se a exarninarmos com mais atençã o, nã o escapará seu sofisma:
imediata; assim tinha de suceder porque o cristianismo se tomava por uma
ela parte do suposto de que o exame crítico atestará a veracidade dos do-
explic£tçp(j
cumentos em que a fé cristã se apó ia. O resultado estava dado desde antes
totalizante. O processo de Galileu fora sua prova mais cabal. No entanto,
do exame; como se o que estivesse em discussã o fossem circunstâ ncias — se
agora o filó sofo e o cientista já podem ousar sem risco iminente: de
tal fenô meno poderia ser considerado milagroso, se tal a dã o indicativa

É preciso confessar que, se, no século em que estamos, o tom


santidade, etc. — e nã o a veracidade dos textos bá sicos. Q_ue sucederia se o
irreligioso nã o custa nada a certos escritores, a censura de irreligiã o
exame chegasse ao resultado contrá rio? Provavelmente, assim o fazia pelo
nã o custa nada a outros (D'Alembert, J.-R.: 1751, 15) receio de que, sem a artimanha, se multiplicariam os inimigos da Inc yclo-
podre. O certo é que, mais adiante, o autor procurará acentuar mesmo a
Utilidade da convivência do exercício da razã o com a cren a religiosa: “A
Haver essa maior tolerâ ncia nã o impedia, contudo, que uns e outros
*é ú indispensá vel na maior parte destas questõ es metafísicas; nã o para nos
usassem de cautela. Numa atitude entã o freqü ente, o geô metra procurará
esclarecer, mas para nos decidirmos definitivamente” (idem, 204) .
justificar os direitos da razã o tendo-os por distintos dos motivos da fé:
Evidentemente, D'Alembert evitava querelas com a Igreja. Mesmo
(...) Se a filosofia deve-se abster de expressar uma visã o sacrílega sobre porque pensa que o fundamento ú ltimo do realce da razã o está nos fins
os objetos da revelação, pode e deve mesmo discutir os motivos de prá ticos a que ela conduz. Desse modo, menos que por provas científicas,
nossa crensa. Com efeito, os princípios da fé sã o os mesmos que os que a fé é legitimada, de um lado por motivos emocionais, de outro, pela pre-
servem de fundamento à certeza histó rica; com a diferença de que, em ocupasao pragmá tica de o filó sofo concentrar-se apenas em questõ es de
matéria assegurada utilidade. O pragmá tico é confundido com o liberador. Impli-
de religiã o, os testemunhos que lhe servem de base devem ter um grau
citamente, D'Alembert estabelecia limites para a competência da esfera
de extensã o, de evidência e de f usa proporcional à importâ ncia e à su-
religiosa. Mas, de forma declarada, ressaltava sua engenhosa sol usao de
blimidade do objeto. Cabe, portanto, à razã o estabelecer neste gênero
as regras de crítica que servirã o para afastar as provas fracas, para compromisso.
distinguir as que poderiam ser comuns a todas as religiõ es das que sã o Compromisso idêntico é proposto por um cientista puro, que nunca se
pró prias à verdadeira, conceder enfim à s verdadeiras provas toda a luz engajou em projetos de repercussã o política imediata. Sintetizando as idé ias
I
de que sã o suscetíveis (oQ. cit., 128-9) de Maupertuis, escreve um historiador da ciência:

Se bem que o filó sofo nã o deve porter itne ‹rtte sacrilêge sua lee objets de Se a asao dos corpos uns sobre os outros obedece a leis tão sábias
IO TeHélation, tem o direito de examinar os motivos que sustentam a c re•sa. quanto as que decorrem do princípio da menor asa , como saber se
este não é
Tais motivos sã o semelhantes aos que orientam a certeza histó rica — por sua simplesmente “uma seqüência necessária da natureza dos corpos” e não
vez, já entendida como semelhante à certeza das ciê ncias físicas — com a a expressão da vontade e da sabedoria divinas? É o próprio Marpertuis
difere sa apenas de que devem ser ainda mais rigorosamente examinados; quem propõe a questão, mas a maneira um pouco rápida com que a
o objetivo dessa indagasã o seria separar as QTeuves foibIes e caracterizar as afasta não é convincente: mesmo neste caso, escreve, a Perfe'são do
Ser Supremo permaneceria intacta, todas as coisas sendo ordenadas
que seriam privilé gio da religiã o verdadeira. Sem pretender, por conseguinte,
de tal
explicar o ato mesmo da fé, a razã o se arvora o direito de examinar seus fun-
modo “que uma matemáóca cega e necessária executa o que a inteligência
que justificavat;y q intervençá n da mnnus emendntrix de Newton, sã o elas
mais esclarecida e livre prescrevia” (Ehrard, J.: 1963, I, 173)
mesmas periódicas, que a ordem da máquina celeste se restabelece por
Si pró pria, sem ter necessidade de adã o providencial alguma (Ehrard,
Na verdade, o mal disfar ado compromisso faz emergir o pyrobl ã J.:
bá sico da iridagasã o científica, na primeira metade do sé culo XVIII: é pos- of. cit., I, 175)
sível conciliar-se a autonomia da ciê ncia com a manutençã o da idéiet de
um legislador divino? A mal disfarsada cautela de Maupertuis, que Diderot Sem o mesmo impacto dos estudos de física, a ciência do homem,
desvaloriza-
der unciaria em De E Jnterbrétotíori de In naiuTe (1753) , mOã StTã dificuldade nascente na primeira metade do século XVIII, importará na
preocupaçõ es teoló gicas, contrapondo-se
çã o idêntica das corpo ao tradicional
ualismo entre e alma. Ademais, como a divisã o cartesiana entre
que encontrava o deísmo newtoniano — i. e., a afirmaçã o da divindade d
cogíto
comp autora da má quina do mundo, que nã o r ecessitaria do aparato res cogitons e res extenso fora freqü entemente usada para manter o
institucional
será menos
de uma Igreja — em nã o abrir as portas para um mero naturalismo, com o a salvo do mGtodo analítico, o pensamento de Descartes nã o
Mas a crítica
conseqü ente ostracismo da indagasao da Providência. E nã o podemos se- atacado por toda uma linha de pesquisas iniciada por Locke.'
humanas. Na
quer pensar que sempre se tratasse de um compromisso conscienteme nte a Descartes tampouco se restringe ao campo das ciê ncias
procurado, pelo qual o cientista tentasse evitar confusõ es com o poder Verdade, com a ênfase ria experiência, na indaga5á o dos fatos sensíveis,
l do
instituído. Cogitá -lo seria arbitrá rio, desde logo no caso de Newton, que com o maior interesse pelas ciências bioló gicas, a indagaçã o científica
intentava sim conciliar o princípio da atr•sã o dos corpos com a presensa século XVIII distinguir-se-á radicalmente da processada no século pre-
de Deus: “De acordo com seu ponto de vista, a atraçã o se explica seja por cedente. Para Descartes, o método analítico que propugnava tinha sua
uma intervensao direta de Deus, seja pela mediasã o do éter” (Ehrard, J.: ! fonte de certeza nas idéias que a mente encontrava dentro de si mesma;
1963, I, 128). Com as idéias do físico inglês passará o que já sucedera idéias portanto inatas, abrangentes da espécie que permitiriam o conhe-
com as de Descartes: seus propó sitos de harmonia da ciê ncia com a cimento da realidade empírica e, ao mesmo tempo, testemunhariam a
explicasã o religiosa serã o afastados, à medida mesmo que sua contrib• sa marca do Criador sobre sua criatura. Ora, o princ(pio das idéias inatas era
científica é aceita e desenvolvida. Em meados do século XVIII, o avanço da explicitamente rejeitado por Locke. Ainda que muito menos ele
estivesse disposto a abolir o conceito teoló gico da alma, sua preocu •s*
explicasã o científica cada vez mais expulsava a explicasã o religiosa e, para
bá sica era com o processo individual de compreensã o; por isso, passava a
usar a expressã o de Max Weber, ao “mundo desencantado” cada vez mais se
impunham modelos de ordem determinista: destacar o conjunto de opera õ es cumpridas no plano da experiência.
s
Mais do que o antagonismo de um pensador a outro, o confronto de
Em vez de reforçar uma teologia natural, o sistema de Maupertuis vem Locke com o legado de Descartes nos apresenta a diferensa de ê nfase
fornecer argumentos ao naturalismo, se nã o ao ateísmo. Esta viragem
que percorre as tradi- çõ es intelectuais dos sé culos XVII e XVIII. Ao
dialética será ainda mais acusada em seus trabalhos de genética. A
histó ria ulterior de seu princípio da menor açã o, limitado ã dinâ mica e dedutivismo e apriorismo de Descartes se contrapõ e o destaque da
privado por Lagrange de toda signifícasa firialista, devia desenvolver experiê ncia e da indusa . Os meios de captaçã o humana da natureza
os germes deterministas que continha. Nã o podemos nos impedir de nã o sã o dnteríores ao indivíduo, como se inferia da concepção das
aproximar esta evolusa inesperada da que, paralelamente, sofre a as- idéias inatas; ao contrário, esses meios
tronomia newtoniana, do deísmo do Newton para o ateísmo de
Laplace. (...) Laplace poderá demonstrar que as variasõ es seculaies dos
’ Sobre o desenvolvimento dos estudos sobre o homem, na primeira metade do século
planetas, XVIII, cf. Moravia, S.: 1970, espec. pp. 26-33.
se confundem com o pró prio indivíduo, pois sã o os seus pró prios e i I}ã .
liená veis sentidos. Apesar do simplismo da velha frase “nada se conhece i94
que antes nã o tenha passado pelos sentidos”, provisoriamente podemos
considerá -la o lema do experimentalismo do século. Na formulaçã o
precisa de Cassirer:

A natureza e o conhecimento hã o de ser postos em suas pró prias bases e


explicados em termos de suas pró prias condiSõ es. Em ambos os casos, a
passagem para os mundos transcendentais deve ser evitada, A neWum
elemento estranho deve-se permitir que apare5Et entre o conhecimento
e a realidade, entre o sujeito e o objeto. O problema deve ser posto no
plano da experiência e aí resolvido, pois qualquer passo além da
experiência signifícaria uma pseudo-soluSÕ o, uma explicaçã o do
desconhecido em termos do que é ainda menos conhecido. É assim
decisivamente rejeitada aquela mediasã o que o apriorismo e o
racionalismo consideraram a base
da mais alta certeza do conhecimento (Cassirer, E.: 1932, 97)

Se esse paradigma se afasta do que estivera em vigência no sé culo XVII,


que entã o dizer de sua distin SÕ o quanto à cosmovisã o tradicional? Os funda-
mentos desta se enraizavam na escolá stica mediev ; pressupunham e
apresen- tavam uma ordem absolutamente estável. Três círculos de grandeza
decrescente a compuriham: Deus, a alma, o mundo. “Nã o há aqui lugar para a
dú vida e em todo pensamento há a consciência de ser respaldado por essa
ordem inviolá vel, que nã o é criada pelo pensamento mas apenas aceita pelo
pensamento“ (Cas-
sirer, E.: o9. cit., 39). O corihecimento humano é naturalmente restrito, por
ser o conhecimento de um ser finito. També m as trevas sã o nosso privilégio.
Nossa razã o é incerta; como tomá -la como suprema autoridade? Quando se
diz portanto, na desc sao dessa forma de pensamento, que “o conhecimento
da ‘natureza’ é sinô nimo ao conhecimento da cria Õ o” (Cassirer), quer-se
dizer que a obscuridade encontrada na natureza nã o representa,
necessariamente, um desafio para seu ultrapasse; entre o que sabemos e o
que é, há um for oso hiato; idêntico ao existente entre o infinito saber divino e
o precá rio de sua criatura. Por isso, em vez de sentir-se humilhado ou
instigado, o intelecto humano antes compreendia e aceitava seu posto
subaltemo na cosmogonia religiosamente orientada. Que outro lugar
naturalmente lhe caberia senã o o
de inferior ao ocupado pela revela sa , embora á frente dos duraçã o mais rapidamente mutá vel, porque estã o ligados à s conjunturas. Ao
outros animais e das coisas? É certo que as relasõ es entre lado da histó ria política, processa-se uma outra histó ria, de ritmo mais lento:
razã o e verdade religiosa tinham-se modificado no a histó ria das idéias. No caso que nos interessa, o Iluminismo é
Renascimento, recebendo a primeira uma maior congruente com os valores da burguesia, nã o porque o mundo
importâ ncia. Poré m, conforme o mostra a aná lise até de "inexoravelmente" se secularizasse. Por que esse processo teria de ser
pensadores menores, como os au- tores das poé ticas, a inexorável? Tal congruên-
razã o longe estava de se confundir com a autoridade. A
¡mitasã o dos antigos era determinada à medida que eles
eram tomados como a fonte da perfeisa i. e., como
autoridades, no campo da arte e da retó rica. É certo que,
algumas vezes, encontramos os renascentistas justificando a
imitasao dos antigos sob o argumento de que a razã o os
mostrava superiores. Porém isso nã o interfere no estatuto
subaltemo da razã o, enquanto faculdade individual, face à
presença dos modelos (autoridades) . O pensamento renas-
centista ainda permanece pró ximo da cosmogonia
tradicional. Apesar disso, nã o se pode deixar de notar a
modificasao que a idéia de natureza já sofrera. Em vez de
integrada em um quadro está vel, ela se convertera em uma
idéia dinâ mica; em vez de apenas prestar homenagem ao
Criador, a criatura, sob a forma do artista, se concebe como
capaz de retomar sua energia criadora. Mas nã o
generalizemos. Estes, já o sabemos, sã o "excessos"
reservacfos a ousados como Dü rer ou Giordano Bruno.
Nã o será preciso chamar a atensa para o papel desempenhado
por um
Descartes ou um Leibniz no processo de seculariza sã o do
pensamento. Tã o- só notemos que, como já foi dito sobre o
primeiro, sua difere•sa entre res cogitnns e res extenso
ainda deixava territó rio bastante para a negociasao com a
esfera religiosa e, assim, para a preservasã o de postulados
metafísicos.
Em suma, centrando nossa reflexã o nas relaçõ es do
racionalismo com o pensamento religioso, podemos dizer
que seu confronto, ao longo do século XVIII, nã o se
explicava apenas como rea5Õ o á s prerrogativas mudanas
da Igreja. Nã o se trata de negar o peso desse fator; é mesmo
legítimo afirmar-se que ele é o decisivo na predilesa que o
pú blico burguês marú festava pelos enciclopedistas. Mas é
pró prio dos fatores assim políticos ter um raio de
cia dependia sim de um conjunto mutá vel que, eventualmente fazia corri até há pouco

que a inteligentsin e a burguesia ericontrassem na Igreja um de seus


fortes adversá rios comuns.
O esclarecimento pareceu necessá rio para que nã o se tomasse o Hurra.
rlismo como um mero movimento anti-religioso. Contra tal clichê, há mais
de cinco décadas escrevera Cassirer:

Toda a aparente oposiçã o à religiã o que encontramos nesta é poca nã o


deveria nos cegar para o fato de que todos os problemas intelectuais estã o
fundidos com problemas religiosos e que aqueles encontram nestes sua
inspiraçã o mais constante e profunda. Quanto mais insuficientes parecem
as respostas religiosas pré vias a questõ es bá sicas de conhecimento e de
moralidade, tanto mais intensas e apaixonadas se tornam estas prÓ prias
questõ es (Cassirer, E.: oQ. cit., 133)

O juízo de Cassirer nã o impediu contudo que se continuasse a insistiu


no ateísmo iluminista. Por isso, em data mais recente, a sua afirmaçã o ainda
precisará ser desdobrada:

(...) Longe de simplesmente se opor à Igreja, [o pensamento do


sécu- lo XVIIII está profundamente engajado em uma séria e
apaixonada luta interna com a religião e recebe muitos de seus
problemas e mesmo de seus métodos de pensar da tradis âo religiosa
(Dieckmann,
H.: 1954, 301)

Em vez de uma genérica irreligiosidade, o que caracteriza a razã o nu-


minista é a eleisã o de um método: o método empírico de aná lise dos fenô -
menos, buscando-se alcar sar a síntese das leis a que estariam
submetidos. Considere-se essa orientaçã o como a estrutura do
pensamento do século, a
exemplo de Cassirer, ou apenas como uma das orientaçõ es dominantes, em
qualquer dos casos nã o podemos confundir o racionalismo com a irreligiosi-
dade. O Iluminismo apenas marca o momento em que o d(scurso científico
se toma o dominante.
Se admitimos que o ponto homogêneo do Iluminismo está no
privado da ciência, daí nã o deriva que por ele crie uma direito ú nica. Do
Iluminismo resulta tanto a ideologia do progresso e da evolu Õ o, de que
se alimentou o pensamento burguês, quanto a idéia do comunismo (cf. V enturi,
F.: 1971, 97). Embora a observaçã o seja importante, do ponto de vista deste
capítulo é outra a explorasao a preferir. Formulando-a de maneira esquemá tica: se
da cosmogonia medieval derivava a seguran sa do crente ante a experiência
completa do mundo, que pode resultar do privado agora concedido à razã o e à
experiência? O otimismo que D'Alembert demonstrava ente o avanço do
conhecimento, a convicsa que partilhava sobre a neces- sidade de que cada
ciência caracterizasse “os verdadeiros princípios de que se deve partir”, para que
tivesse certeza da utilidade de seus resultados, não o impedia de perceber que a
nova idéia de mundo o transformava em um enigma, de que só compreendemos
algumas sílabas. Conquanto partilhe da crensa de seus contemporâ neos de que o
ser constitui uma grande cadeia, D'Alembert nã o sabe menos que essa cadeia só
nos chega com hiatos:

Se as verdades apreserttassem a nosso espírito uma seqü ência nã o


interrompida, (...) tudo se reduziria a uma verdade ú nica, de que as outras
verdades nã o seriam senã o trad•sõ es diferentes. As ciências seriam entã o um
labirinto imenso, mas sem mistério, de que a inteli- gência suprema abarcaria
os contornos com o simplês olhar e de que nó s teríamos o fio. Mas este guia
tã o necessá rio nos falta (D'Alembert, J.-R.: 1759, 130)

Q_ue caminho entã o se mostra ao novo pensador? Por um lado, ele se


caracteriza pela busca de determinar os “fatos simples e reconhecidos, que nã o
supõ em outros e que, por conseguinte, nã o possam ser nem explicados, nem
contestados”. Tal como D'Alemhert o encara, o novo pensador tanto necessita de
conquistar sua certeza, quanto deve abominar as ri sõ es abs- tratas:

A filosofia nã o está destinada a se perder nas propriedades gerais do ser e da


substância, em questões inúteis sobre ri sões abstratas, em divisões arbitrárias
e em nomenclaturas etemas; ela é a ciência dos fatos ou a das quimeras
(idem, 131)

Q_ue seria esse abstrato que tanto indignava o prudente D'Alembert?


A que se correcta? A seqü ência do texto responde á s duas perguntas:

í?7
A ciência não só abandona ã ignorante sutileza dos séculos bárbaros estes yp8
objetos imaginários de especu1aSões e de disputas, que ainda ressoam
nas escolas, quanto se abstém mesmo de tratar questões cujo objeto
pode ser mais real porém cuja solu5ãO não é mais útil ao progresso
de nossos conhecimentos (idem, ibidem)

A passagem relaciona o abstrato ao nã o ú til e à s especula õ es imnginn


dos tempos bá rbaros. As especulasõ es imaginá rias representam o obstá culo
que os QhiÍosoQhes, em defesa do cá lculo pragmático, terão de denunciar e
identificar com as malditas supersti5Õ es. A defesa do progresso e do
avan5o da humanidade exige que o critério do ú til sobrepasse o ridículo
gasto do pensamento em elucubra õ es ociosas. A ciência, que se arvora
em bandei- ra da libertaçã o, supõ e planejamento e eficiência. Franco
Venturi dá -nos um exemplo da programasã o a que tendiam. Discutindo a
recepsã o pelos philosophes dos planos de Beccaria a propó sito do novo
direito penal, o
historiador descreve uma das sugestõ es entã o apresentadas sobre o destino
dos condenados:

(...) Atribui-se tradicionalmente a Morellet a seguinte idéia, que, mais


obviamente, se podia atribuir a Diderot: converter os condenados em
verdadeiros escravos, que, como tais, seriam “empregados na propagaSÕo
do gênero humano”. Seus filhos seriam “criados com cuidado, em lugares
destinados a esse fim”. A parte da vantagem econômica de aumentar
a usa de trabalho, isso também teria o proveito científico de
demonstrar
a falsidade do “preconceito da transmissão dos vícios”. O imoderado
filósofo, que assim raciocinava, chegava mesmo a pensar como estes
condenados podiam ser punidos em sua funÇÕo de reprodutores: “asso-
ciar mais ou menos ao próprio ato do prazer, à dostlra de tornar-se pai,
a humilhasao e a amargura” (Venturi, E: 1971, 113)

Por enfatizarem a liberdade, sem quererem confundi-la com as idéias


abstratas, os philosophes se faziam propugnadores do planejamento e do cá l-
culo pragmá tico-social estritos. Os dois aspectos nã o sã o sequer díspares: sã o
defensores da liberdade porque ela lhes parece mais ú til para a sociedade,
ná o apenas mais digna para a condi çã o humana. E, conquanto ainda seja
cedo para tratarmos do Iluminismo em relaçã o ao discurso ficcional, nã o
evitemos uma pequena observasao. Embora os bhiÍosobhes nã o se tomem
por cartesianos, nem por isso o legado do cogito desaparecera do sé culo. Em conhecido
ensaio sobre a prese•sa do cartesianismo na literatura do sé culo
CIII, Lanson anotava:

(...) Pelo espírito e pelo gosto, nossa literatura do século XVIII será toda
cartesiana. A exclusiva preocupasã o com as idéias, a idolatria da razã o (...),
a procura obstinada da distinçã o e da clareza nos pensamentos, o espírito
de abstrasao e de raciocínio em excesso, a sequidã o precisa da frase
admiravelmente nítida, tudo isso bem parece ser o ideal literá rio
correspondente ao método de Descartes (Lanson, G.: 1896, 81)

Dos elementos indicados, estã o presentes, nos Qhiloso9hes, pelo menos, o


cuidado com a clarté, a preocupas*o com as idéias, a idolatria da razã o.
Vejamos contudo melhor os sinais da presença cartesiana. Mostrando-a
incluída na querela dos antigos e dos modernos, Lanson considerava um de
seus indícios a concepçã o da poesia de um La Motte:

Uma frase nã o vale sená o pelo que propicia de conhecimento: é tanto mais
perfeita quanto menos provoque a imagina sao e a sensibilidade, cujo
despertar introduziria a confusã o nas n•sõ es das coisas e perturbaria
o exercício do julgamento (Lanson, G.: op. cit., 80)

Diretamente, encontramos a imaginasao considerada fator de perturba- sa ;


eÍn é peTtuTbadora para a nitidez da razão e para o cálculo de sua utilidade. Será
ainda preciso resistir na simpatia do leitor burguês ante o interdito?
Mas compreendemos ainda nã o ser o momento de sistematizar a re- flexã o
sobre o destino do imaginá rio. Por ora, haste-nos anotar que, hostis ÓS
pTÓtíCaS supersticiosas e horendo de enfrentar uma poderoso trndiçÕ o Qtie afinnava
suas verdades excederem à capacidade de compTeensâo humana, os QhilosoQhes
ernm leundos o veT o imagínfiúo como elemento da mesmo famí- lia; tão Qerriicioso
no comércio Iírre dos homens quanto a mais limitodora dos crendices.
Se ainda nã o é o momento de aprofundarmos este aspecto é porque antes
precisamos continuar a contextualizasã o do Iluminismo. De imediato, há entã o
a necessidade de considerar as conseqü ências do experimentalismo,
decorrente da ê nfase concedida à s ciê ncias hir›1ú gicas. Essan conseqü ê rlC¡ã S que, para ele, possuem a evidência das verdades sensíveis e particulares
podem ser assim resumidas: 1. a recusa de qualquer idé ia que antes nã o (Diderot, D.: 1713, 235)
tenha sido submetida à crítica da razã o experimental (Horkheimer diria
da raz@O instrumental) ; 2. o privilé gio da observa5Õ o como maté ria-prima O mesmo Diderot será responsá vel por passagem ainda mais incisiva.
para oS juízos adequados. Tal privilégio, acentuado desde Bacon, dará , no Porque incluída em obra de puro combate político — a defesa do obbé de
entanto, lugar a grandes equívocos e a acusaçõ es injustas aos philosophes, Prades — será talvez menos conhecida que o trecho anterior:
se nã o q
considerarmos com extrema atençã o. Releiamos ainda uma vez as pá giflas Nada há de demonstrado na metafisica e nunca saberemos nada nem
de D'Alembert. Dissera ele que cabia ao investigador, antes de realiz am sobre nossas faculdades intelectuais, nem sobre a origem e o progresso
de nossos conhecimentos se o princípio antigo nadn esta no intelecto qite
qualquer operasao, estabelecer os verdadeiros princípios
antes não tenha passado peles sentidos não tivesse a fossa de um axioma
d ec siuê a n c i a . Logo entã o descrevia estes princípios como des {nit5 (Diderot, D.: 1151, 470)
simples et reconnus. Ao chamá -los de “fatos”, o autor podia levar o leitor a
pensá -los meros produtos da observ•sa . Mas o pró prio D'Alembert tem De modo muito mais contundente que D'Alembert, seu companheiro
consciência da pOSsibilidade do equívoco e, contra ele, escreve um afirmava que a experiência e a observasã o nã o podem ser considerados
largo esclarecimento. Opta agor t os termos de abertura de um procedimento científico: que sua luta,
por intitular os primeiros princípios de uma ciência de “idéias simples”, mesmo
i. e., “idéias que nã o se poderiam decompor, nem por conseguinte definir” pessoal, contra o apriorismo nã o o impedia de reconhecer que há axiomas
(idem, 138) ; acrescenta serem elas de duas espécies: as “que se adquirem de que nã o devemos pretender escapar.
por nossos sentidos, como as das cores particulares, do som, do odores, do Em síntese, o privilé gio da observaçã o pelo pensamento iluminista
frio, do calor, etc.”, e as abstratas. Q_uanto à segunda, por sua vez nã o se confundia para seus representantes mais agudos com um empirismo
especifica que “entendemos aqui por idé in aÜStTDta tOdFt idé ia pela qual absoluto. E isso é decisivo para nossa reflexã o posterior porque nos mostra
consideramos, em um mesmo objeto, uma ou apenas algumas de suas que a razã o nã o tinha sempre que se mostrar armada contra o oposto da
propriedades, sem levar em conta as demais” (idem, ibidem) . Pelo observasao, i. e., o imaginá rio. De fato, com freqü ência, a razã o o confundia
esclarecimento verifica- mos que o desprezo pela construçã o apenas com os sinais de torpeza e de ignorâ ncia. Mas nem sempre.
dedutiva e pela metafísica nã o significava a renú ncia de princípios
gerais e de evidências ri priori. O privilégio da observação na“o imQlicneo
2 . AS N O VA S P RE RRO GAT I VA S DA NATU RE Z
conSidCTÓ-la o termo inicial e fiwil de indogoçõo científica. Ao contrá rio, a
A : D ID E RO T E O I LU M I N ISM O
observaçã o já supunha o destaque de tal(is) propriedade(s) e nã o de
tal(is) outra(s) . Mas nã o é ainda tudo. Dependente de uma prévia decisã o,
Assim como a razã o começara seu longo processo de autonomia com
nato observativa, a observaÇÕ o tinha um alcance restrito e nã o confundido
o pensamento renascentista, també m a natureza aí perdera sua fu>sã o
com o ato interpretativo. Como dirá o co-editor da Enc yclopédie:
apenas subalterna e alegó rica. No entanto, em um e noutro caso seus di-
(...) Uma das principais diferenças do observador da natureza e de seu reitos permaneciam subordinados a uma hierarquia, que tornava razã o e
intérprete é que este parte do ponto em que os sentidos e os instru- natureza dependentes da voz da autoridade. E, muito embora o ava>so do
mentos abandonam o primeiro¡ ele conjectura, a partir do que é, o que absolutismo significasse que a autoridade suprema cada vez mais dependes-
ainda deve ser; extrai da ordem das coisas conclusões abstratas e
gerais,
se da vontade exclusiva do monarca, em matéria intelectual, a autoridade ÕO1
permanecia fundada na cosmogonia religiosa. Ora, o pensamento cristã o
nã o só restringia o papel da razã ; a nosã o de pecado original supunh;l a
corrups*o da natureza e, por conseguinte, sua inconfiabilidade. Situada na
escala mais baixa da criaçã o, a natureza é nã o só bruta mas traidora¡ nã o só
cega mas cú mplice no erro.
Da mesma forma que exaltam a razã o, os QhiIosoQhgs confiam na natu-
reza e a transformam em penhor do progresso. Em comum, razã o e natureza
conceder a seu cultor uma arma sem limites; sá o ainda tanto mais
atraentes quanto mais parecem se oferecer a todos os dispostos a cultivá -
las. Esta solidariedade positiva entre razã o e natureza é testemunhada em
uma das primeiras obras de Diderot, em que o deísmo entã o professado usa a
pró pria natureza contra os postulados dos defensores da fé tradicional:

As sutilezas da ontologia fizeram antes de tudo céticos; é ao conheci-


mento da natureza que estava reservado fazer verdadeiros deístas. Só
a descoberta dos germes dissipou uma das mais potentes objesões do
ateísmo (Diderot, D.: 1746, 18)

No entanto, outras má ximas das Pensõ es QhilosoQhiques apresentavam


corifigurasã o diversa. Se o autor logo abandonaria o deísmo aprendido com
Shaftesbury, em troca nunca negaria uma segunda relaçã o presente nas
Pensõ es. Mais imediatamente a compreenderemos se lermos em seqü ência
as má ximas V e VI, da Additíon rex Peruées:

Se a razão é um dom do céu e o mesmo pode-se dizer da fé, ele nos


con- cedeu dois presentes incompatíveis e cor traditórios. — Para
ultrapassar essa dificuldade, é preciso dizer que a fé é um princípio
quimérico e que não existe na natureza (Diderot, D.: 1762, 58)

A natureza contém a pedra de toque do confiá vel, ignora as quimeras


e, em troca, reforsa a corifiansa na razã o. Nã o que Diderot, mesmo nesta
fase inicial, pensasse em um circuito fechado, pelo qual a natureza, tã o
logo observada, falasse como razã o. A razã o era pensada como um meio
discrimi-
nados. Por isso, insistindo no ataque à superstisao e defendendo uma religião
natural, ainda dirá que “o exemplo, os prodígios e a autoridade podem fazer to los ou
hipó critas: só a razã o faz crentes” (Diderot, D.: 1746, 44). Tomada em si mesma,
vista com olhos apenas “naturais”, a natureza nã o é esclare-
cedora; ao contrá rio, assemelhar-se-ia a uma armadilha capaz de aprisionar todo
o tipo de presa, boa ou má . Nã o congeminada à razã o, nã o passa de um
amontoado de fatos, que valeriam tanto quanto as superstiçõ es:

Uma só demonstrasáo me toca mais que cinqüenta fatos. Grat Is à ex- trema
confíansa que tenho em minha razão, minha fé não está à mercê do primeiro
saltimbanco. (...) Deixem todas essas ilusões e raciocinemos. Estou mais seguro
de meu julgamento que de meus olhos (idem, 41)

Se, no momento da redasao das Pensõ es QhilosoQhiques, Diderot combi- nava


racionalismo e deísmo, em poucos anos o acordo se desfez e a religiã o natural
desapareceu de sua pena. Contudo o papel da natureza nã o será afetado em sua
nova diresa . Na Lett'Fe sim tes aveugles, o filó sofo se debru- ça sobre a questã o
de saber como opera o conhecimento em um cego de nascen sa. Em vez de
contestar-se em explorar o aspecto gnoseoló gico da questã o, tã o importante em
uma é poca em que tanto se discutia sobre o papel ó os sentidos na formasao das
idéias, Diderot, imaginariamente, se desloca para o leito do moribundo
Saunderson, o matemá tico cego, e ficcionaliza a discussã o deste com o
reverendo Holmes. O religioso pretende convencer o moribundo a renunciar ao
ateísmo e para tanto emprega o argumento da perfeisao da natureza: “(...) Ponha
as mã os sobre si mesmo e reencontrará a divindade no mecanismo admirá vel de
seus ó rgã os” (Diderot, D.: 1749, 119) . O velho argumento nã o poderia ser mais
inadequado. Contra ele, Saunderson encontra uma inesperada saída. Em discreta
alusã o a seu defeito congênito, o cego acusa seu pretenso conversor de,
ingenuamente, tentar fazê-lo corroborar uma harmonia e justeza da criaçã o que,
além de desmen- tida por seu pró prio caso, encobriria a questã o verdadeira:

Senhor Holmes, retornou Saunderson, eu lhe repito que tudo isso não é tão
belo para mim quanto para o senhor. Mas fosse o mecanismo animal tão
perfeito quanto o senhor pretende e que eu bem o quero crer, pois o senhor é
um homem honesto e incapaz de me enganar, que tem ele de comum com um
ser soberanamente inteligente? (idem, 119)
Porque nã o tern culpa em seu defeito, o cego nñ o pode aceitar a
separada da utilidade” (Diderot, D.: 1749, 83) . Dessa maneira, o Saun-
belezã do mundo, pressuposta pelo reverendo. Os acidentes que ferem e
derson que Diderot apresenta nã o só retirava dos creates uma das provas
persegue os homens, sem nenhuma responsabilidade deles, parecer
tianqü ilizadoras da prese>sa de seu Dens, como dessacralizava a beleza.
demonstrar que a beleza e a suposta perfe'sao do murido nã o
O belo nã o passa de um Rufus eocis se por ele nã o entendemos uma das
testemuham Sua pre- sença. Tal defesa da Providência nã o passaria de
formas do ú til. Se a contestasã o da divindade feria teó logos e devotos, a
um ato de prèsun Õ Çi €• irisensibilidade das criaturas hem integradas. Sem
quem a segunda atacaria? Nã o menos que a sociedade aristocrá tica. Isso
o reconhecer, elas assim cometem um ato de impiedade: considerar o
porque, embOra na vida prá tica, a aristocracia passasse por cima dos
criador responsá vel por um I natureza nem perfeita, nem justa, nem
regulamentos que a impediam de dedicar-se ă s pouco nobres atividades
tampouco sempre bela. Assim como o selvagem de Montaigrie, o cego de
do comércio e da indú stria, nã o deixava de conceber o prazer da beleza
Diderot demonstra que a Eu- ropa institucionalizada nã o é exemplo, riem
como um diver- timento refinado; o contrá rio do nec-otium; um ó cio da
para o resto do murtdo, mem para o pensamento. Por Saunderson, a
corte. Note-se que Diderot nã o é da família de Voltaire: suas formula soes
natureza reconhece suas falhas. O mundo se desencanta; a natureza nã o
nã o sã o apenas ou sobretudo engenhosas. Segundo as palavras que
atesta nada, senã o que seus corpos e pertences sã o mecanismos.
empresta ao matemá tico cego, quando afastamos a neblina metafísica, a
Ø_uase vinte anos depois, no Entretíen entTe D'Alembert ct Diderot, a
clareza destaca a verda- deira disposiçã o da beleza. Ná o menos que as
contestaçã o da divindade cristã assumirá outra volta, nã o menos ímpia:
formas naturais, as formas
Corifesso que um ser que existe em alguma parte e que não da arte, para que sejam belas, precisam ser ú teis. Temos assim constituído
corresponde a ponto algum do espas ; um ser que é inextenso e que um primeiro quadro: a indissolú vel uniã o que se estabelece entre razã o e
ocupa parte da extensão; que está inteiro em cada parte desta natureza relega ao mesmo plano de lixo intelectual a idéia de fé, as provas
extensão; que difere essencialmer te da matéria e que lhe está da existência de um ser superior, atento ao desenrolar de sua cri•sã o e o
unido¡ que a segue e que a move sem se mover; que age sobre ela e que princípio da beleza como constituído pela harmonia de suas partes. Em vez
sofre todas suas vicissitudes;
dessas velharias, a importâ ncia da utilidade. Mas nã o só . Antes mesmo do
um ser do qual não tenho a menor idéia; um ser de uma natureza assim
destaque da utilidade, aponta a relevâ ncia da ordem. Contemporâ neo do
contraditória é difïcil de admitir (Diderot, D.: 1769, 257)
nascimento do evolucionismo e participante em seu debate, Diderot nã o
só postula, intuitivamente, a idéia de selesã o natural (ct. Diderot, D.:
Se a passages testemunha que a questã o do criador nã o deixara de pre-
1749, 122), quanto dramatiza as snas conseqü ências. Saunderson,
ocupar o autor, nã o prova menos que a natureza dela já se autonomizara.
sensibilizado por seu defeito, apenas por inglesa polidez admite que o
Contraface necessá ria do primado da razã o, a natureza, ainda em
mundo obedece ă
obra de juventude, a Lettre sttr let aveugles, oferecia a Diderot a
ordem. Mas essa cordialidade perde seu sentido se mergulharmos no tempo
oportunidade de introduzir uma nota relevante sobre sua idéia da beleza.
e nos permitirmos imaginar a época em que as espécies ainda nã o estavam
O filó sofo faz Saunderson dizer que a cegueira nã o lhe impedia de
constituídas; sentimos entã o la matière se mouvoir et le chaos se débTOttillei.
compreender muito bem que é a simetria. Mais do que isso: possibilitava-
lhe corrigir a concep Õ o feita pelos que nã o sofrem sua carência. Ao passo Pelas palavras que empresta a seu personages, Diderot revela a
perple- xidade com que participava no debate sobre a evolusã o.
que, entre as criaturas normais, a simetria é considerada uma certa
disposiçã o dos objetos que motiva o recorihecimento do belo, sua Incorporando-se a seu personagem, faz com que ele superponha a
deficiência lhe ensina conclusã o diversa: “A beleza, para um cego, nã o imagem do caos remoto ao princípio da ordem a que, em seu estado
passa de uma palavra, quando está presente, obedece a natureza. Substituiçã o de princípios que nã o chocava
ao cego de Cambridge:
@_ue é este mundo, senhor Holmes? Um conjunto sujeito a revolusõ t s,
de Maupertuis, igualava “a desordem na natureza” nã o só ã destru'sao de “a
de que todas indicam uma tendência contínua à destruiSÕ o; uma
base da filosofia”, quanto “da pró pria existê ncia de Deus” (Diderot, D.: 1753,
sucessã o rá pida de seres que se sucedem, se estimulam e se dissipam;
uma simetria passageira; uma ordem momentâ nea (Diderot, D.: 1749, 229). A incidê ncia religiosa do problema só deixará de incomodá -lo em 1769,
123) quando a hipó tese de Deus será substituída pela hipó tese da sensibilidade,
dividida entre ativa e passiva, tomada como “qualidade geral e essencial da
Tal caó tica dinâ mica nã o deixaria de impressionar ao pró prio Didero ,

que via na existência de uma ordem, desde já no mundo físico e t maté ria”. Ao vislumbrar esse caminho explicativo, Diderot podia perceber
bio ló gico,
a cond'sã o necessá ria para a filosofia e a ciência: que o postulado de uma ordem inerente ao mundo da vida nã o o deixava à
mercê de uma necessá ria confissã o religiosa. Mas, em troca, outro risco se
adiantava:
(...) Se o estado dos seres se mostra em uma perpétua vicissitude; se a com que o autor reconhecesse nã o podermos, de antemã o, prescindír da
natureza está in feri, apesar da cadeia que liga os fenô menos, nã o há hgura de um criador. Diderot explicitamente o concedera em sua fase deísta.
filo- sofia. Toda nossa ciência natural também se torna tã o transitó ria
Discutindo as hipó tese.e
quanto as palavras. O que tomamos como a histó ria da natureza nã o é
senã o a histó ria muito incompleta de um instante (Diderot, D.: 1753,
240-1)

A independência absoluta de um único fato é incompatível com a


idéia de todo; e sem a idéia de todo não há mais filosofia (idem,
186)

Afírmá -lo significa que o autor nã o acata a explicaçã o mecar icista.


Reconhecendo seu pró prio “fictional dríee” (G. Hartman), Diderot impe-
de-se de acatar a tranqü ilidade maquinista de Helvétius, D'Holbach e La
Mettrie. Seu desagrado ante a idéia tradicional de imutabilidade do
mundo, nã o o predispunha a aceitar a maquinismo de seus amigos. Como
dirá um seu intérprete:

Pois a Natureza nã o tatearia se nã o buscasse, obscuramente, criar. E,


desde logo, nã o basta constatar — ou melhor, conceber — o lento aperfei-
s amento animal no curso das épocas; é necessá rio supor na origem uma
certa tendê ncia da maté ria a se orgarú zar (Ehrard, J.: 1963, I, 237)

A necessidade de pressupor uma ordem, sem que isso implicasse ou o


re- cuo em favor do teoló gico ou o endosso do mecanismo, significava
reconhecer, no mundo das formas vivas, uma finalidade obscura em atua ã o.
Hipó tese nã o só extremamente ousada, quanto que ainda se arriscava a fazer
como estaria assim armado contra o determiriismo que tampouco o satisfazia? questã o do determinismo, nela precisamos diferenciar dois momentos. Em
A pergunta, por certo, é descabida quanto ao mecanicismo cartesiano, porque, um primeiro,‘Diderot nã o só tende para a afirmasao de um determiriismo
mudando-se esse na categoria da extensã o, nã o seria compatível com uma global, quanto oferece armas para a sua propagaçã o. É este o Diderot que,
problemá tica fundada rio rrrovimento, a exemplo da de Diderot. Mas, se a em sua
secularizasã o do conhecimento, resultante da autonomizaçã o da razã o e de luta contra o pensamento defensor do inatismo, afirma que só a experiência
natureza, implicava a busca de estabelecimento de leis a que os fenô menos es- e o uso dos sentidos tornam o conhecimento explicá vel:
tariam subordinados, como se coritrapor a um determinismo latente? Por outra
parte, ao formularmos a pergunta, devemos nos indagar a nó s mesmos se nã o O homem falso e imaginá rio é aquele a quem se concedem nosõ es an-
teriores ao uso de seus sentidos. Essa foi a quimera de Platã o, de Santo
deslocamos para o século XVIII uma preocupasao contemporâ nea. Se o estudo
Agostinho e de Descartes (Diderot, D.: 1752, 450)
do pensamento iluminista é tanto mais apaixonante porque sentimos o cheiro
de nossa pró pria terra, é essa proximidade mesma que deve nos tomar mais E, no mesmo ensaio, explicava a formaçã o das idéias sobre o bem e o
prudentes. É a cautela que nos recomenda nã o ter a obra integral de Diderot mal como derivada de “uma ind•sa bastante imediata do bem e do mal
como um conjunto absolutamente harmô nico. Ao invé s dessa harmonia, na físico” (idem, 470).
Ao lado deste Diderot há um outro. Ele se patenteia na discussã o ÕO8
que empreende, em duas ocasiõ es (1758 e 1773-4), da obra de Helvé tius.
O autor comentado nã o apenas fora seu amigo, mas, acentua em nota o
editor Assé zat, contara com sua constante colaboraÇÕ o. IssO rlã O imp€•ditl
a Diderot que, à medida que envelhecia, deixasse de se satisfazer com
suas pró prias formulaçõ es anteriores, ao passo que Helvé tius as
sistematizav£t.
Assim, em sua obra pó stuma intitulada L'Homme, Helvétius contirruara a
defender ponto de vista que havia apresentado em Le Livre de l'esQrít: a
causa principal da diferen5a entre os homens nã o está em sua organiza5ã O
internet, mas decorre da educasã o que receberam. Em conseqü ência, para
ele, “todo homem é igualmente adequado a tudo” (Diderot, D.: 1774,
344), e só as vicissitudes biográ ficas explicariam a diversidade de seus
talentos.
Convenhamos que essa era uma conseqü ê ncia adequada ao postulado
de que o que somos é explicado pela experiência que tivemos. (Postulado
explicitado pelo pró prio Diderot) . Ao insurgir-se contra os princípios de
Helvétius, Diderot se retificava a si pró prio. E o fazia porque a tese central
de seu amigo nã o considerava que os mesmos acasos e a mesma educa ã o
engendram homens nã o pouco diversos. Nã o cessam entretanto aí as dife-
re•sas. Já a propó sito de Le Liere de l’esQút, Diderot se opusera à tese de que
“o prazer físico é o objeto derradeiro que as paixõ es se propõ em” (Diderot,
D.: 1758, 271) . A quem, na verdade, se dirigia o seu ataque? Poucos anos
atrá s, o pró prio Diderot nã o dissera que as idé ias de bem e de mal eram
generalizaçõ es reduzidas pela experiê ncia física de agrado e desagrado? E
como nã o observar a estreita relaÇÕ o entre este postulado e o de Helvé tius?
Ela nã o passaria despercebida a Diderot mesmo. Assim, um pouco antes da
passagem comentada, tocando na questã o da origem do justo e do injusto,
declarava:

Na verdade, é o interesse geral e particular que metamorfoseia a idéia


de justo e de injusto; mas sua essência é independente. O que parece
haver induzido nosso autor ao erro foi que se ateve aos fatos que lhe
apresentaram o justo e o injusto sob cem mil formas opostas e lhe
fecha- ram os olhos sobre a natureza do homem, onde teria
reconhecido seus fundamentos e sua origem (Diderot, D.: 1758a, 270)
Opondo-se ao tratado do amigr›, Diclerot se retific.ava a si má quina cujas aÇõ €•s sã o internamente determinadas:
pró prio. Parece entã o claro que este segundo Diderot se opunha a
uma explicaçã o absolutamente determinista; que sua contínua
ê nfase no pleno da experiência nã o renuncia ao uso de categoria
ri Qrtori. Cabe entã o perguntar: assim o faria em nome de um
indeterminismo, ao menos relativo? Nã o parece prová vel que
sua obra nos forneça elementos para uma resposta definitiva. É
preferí-
vel pensar que Diderot supõ e a presensa de uma gama tã o
diversificada de variá veis que seria impossível o
estabelecimento de determinasõ es globais:

Os melhores estudantes são comumente aqueles que dão


menos trabalho ao mestre. E não é raro que as cria•sas
menos cuidadas sejam os melhores súditos. Onde encontrar
a razão destes fenômenos? Na aptidão desigual à instr•são.
E de onde nasce esta aptidão desigual? Da natureza
ingrata ou indulgente, da diversidade da organiza sa
(Diderot, D.: 1774, 297)

A prudê ncia que demonstra a passagem acima, o cuidado


em nã o reduzir o diverso a aplicaçõ es de uma lei ú nica, deveriam
també m levá -lo a discordar de seu nã o menos amigo D'Holbach.
No Systé me de Ía nnture (1770), D'Holbach, com imperturbá vel
serenidade, propunha um determinismo absoluto. Contra a
tradiçã o religiosa, que fundava a liberdade humana na potê ncia
da alma, o barã o declarava que tudo isso nã o passava de conversa
fraudulenta: “A vida do homem é uma linha que a natureza lhe
ordena que descreva sobre a face da terra, sem que nunca ele seja
capaz de desviar-se dela, sequer por um instante” (D'Holbach, Ti:
1770, 88) ; o homem “sempre age de acordo com leis necessá rias,
das quais nã o tem os meios de emanci- par-se” (idem, 90).
Se o indivíduo é mau, se sua conduta é daninha, assim
sucede porque a sociedade o deseducou e nã o lhe ofereceu
senã o exemplos condená veis. A moral e a política legítimas sã o
aquelas que, respeitando a determinaçã o natural do homem, o
ajudem nesta direçã o. Como “sua vontade será de- terminada
por aqueles objetos que julga ú teis” (ibidem, 89), uma
educaçã o correta nã o poderá senã o estimular e favorecer sua
vontade de bem-estar e de conservaçã o da existência,
fomentando sua compreensã o do ú til. O homem é uma
No homem, a liberdade é nada mais do que a necessidade contida ' *
dentro de si mesmo (ib., 103) de iTlOdo coerente. Lembre -se, por ex., a teoria do diafragma que Diderot
eXtTai do médico Bordeu. “Que é um ser sensível?” Diderot faz o doutor
se perguntar, para que logo responda: “Um ser abandonado à discr sao
Considerando estas curtas passagens, podemos supor quceraísticas
de Diderot a Helvétius se estenderiam ao tratado do rico barã o. Por iS o, ao do
contrá rio do que afirmava Pierre Naville (cf. Naville, P: 1967), Tiã O podem s diafragma” (Diderot, D.: 1769, 356) . É verdade que Bordeu-Diderot não
tomar as idé ias de Diderot e D'Holbach como superporiíveis. Mas iSSO pouco confunde essa determinaçã o com um deterrniriismo à maneira de D'Holbach;
'‘
ajuda para que se formule qual seria a posisã o exata do primeiro. É certo p rque nã o é o caso, o personagem-autor logo acrescentará que a
que os reparos que levantava a seus colegas mais convictamente determ¡. disposiçã o natural pode ser corrigida e, apesar do diafragma, o homem
nistas nã o o levariam a defender a liberdade como lime-arbítrio. O oposto sensível pode habilitar-se a tarefas a que, naturalmente, estaria proibido:
ao determinismo absoluto derivaria da compreensã o de que cada fenô meno
O grande homem, se lamentavelmente recebeu esta disposisâo
humano e social implica tamanho nú mero de variá veis que sua interpreta5Õ o
natural, ocupar-se-á sem descanso de enfraquecê-la, de nominá-la, de
só poderia ser feita o posteriori. Ora, essa incapacidade de previsã o sObre a tornar-se senhor de seus movimentos e em conservar na origem do
conduta do agente humano tomava problemá tica a pró pria admissã o do feixe (nervoso) todo seu império (Diderot, D.: 1769, 357)
determinismo. Poré m nos desiludiremos se procurarmos localizar passagens
em que a postura se afirme com precisã o. Mais prová vel seria que, dentro O ser dotado de razã o, ao contrá rio dos outros animais, poderia, dentro
de um esquema nã o mecâ nico e, por isso, mais flexível, Diderot pensasse de certos limites, se contrapor à sua determinasa natural.
que o que hoje é cientificamente inexplicá vel se tomasse explicado cem o A hipó tese mais plausível é a de que Diderot tenha terminado por
progresso de amanhá . Continuaria pois a defender um determinismo geral,
postular um determinismo moderado, tendencial, em vez de absoluto e
embora estivesse consciente de que o estado presente da ciê ncia nã o pudesse
me- canicista. Mas, de qualquer modo, nã o levou esse caminho muito
demonstrá -lo? Contra a hipó tese de um Diderot que, malgrado seus reparos,
adiante. Talvez assim tenha sucedido pela pró pria idéia de razáo que
continuava determinista, impõ e-se sua seguinte afirm: asa partilhava com seus contemporâ neos. Cassirer já indicara que o século
XVIII mantivera o postulado cartesiano de que a inteligência humana,
Q_ue é o espírito, a fineza, a penetrasã o, senã o a facilidade de perceber em
um ser, entre vá rios seres que a multidã o encarou cem vezes, qualidades, quaisquer que fossem os objetos a que se aplicasse, permanecia sempre
relasõ es que ningué m percebeu? Que é uma comparasa justa, nova e unifícadora:
picante, que é uma metá fora ousada, que é uma expressã o original se
nã o a expressã o de algumas relasõ es singulares entre seres conhecidos Com o advento do século XVIII, o absolutismo do princípio da unidade
que se aproximam e que se fazem, por algum lado, tocar? (Diderot, D.: parece ter perdido seu poder e haver aceito alguns limites e
1774,529) concessõ es. Estas modificasõ es contudo nã o atingem o fundamento do
pró prio pen- samento. Pois a funçã o da unificaçã o continua a ser
O novo e inesperado nã o é , por certo, algo misterioso e inexplicá vel, reconhecida como o papel bá sico da razã o (Cassirer, E.: oQ. cit., 23)
advindo de algo inefá vel. Mas a explicasã o de que se mostra passível nã o se
poderia converter em explicasao generalizadora. Mas não apostemos Se a inteligência deve-se prestar a tal unidade, se a aná lise físico-
dema- siado na diresã o apontada pela passagem. Nada indica que ela se matemá tica e, depois, a experimenta çã o, se mostram capazes de formular
afirmasse leis a que se submetem os fenô menos compreendidos, como conceber um
quadro epistemoló gico que se contrapusesse em absoluto à arquitetura
determinista?
RIO
CII
Sem dú vida, os melhores pensadores do século reconhecem os 1im;tq, leis da razão, quase não há uma obra elementar e dogmática de que se
de alcance das descobertas. Glosando D'Alembert, saberiam que, da “gt l„_ esteja totalmente satisfeito. Encontram-se estas produsões calsadas
de cadeia do ser”, se desvendaram apenas algumas sílabas. Mas a sobre as produsões dos homens e não sobre a verdade da natureza
pr@p¡j¿( (Diderot, D.: 1751, 184)
insistê ncia na idéia da cadeia do ser manifesta a sua cren ã na necessãr¡
5 ã
unidade do conhecimento. Poderia ser de outro modo, considerando-
Reescrevendo o enunciado em ordem direta: a verdade da natureza
s€•ns premissas nã o modificadas: a) a ordem da natureza nã o é afetada,
se t raduz sob a forma de leis da razã o, de que a EncJclopêdie procura ser a
qua1qçíet que seja o grau de nosso desconhecimento; b) o fundamento da
suma, COntrapondo-se à s obras que, amparadas na mera opiniã o dos
razã o é S€•q papel unificador? Em parte dos ilumiriistas franceses, como em
homens, justifiCam o jugo arbitrá rio da autoridade.
Voltaire, com
seu ceticismo irô nico quanto à legitimidade das especulaçõ es intelectuais, em Duas sã o as conseqü ê ncias do circuito ’razã o e natureza': a) a natureza
organizada é , para Diderot, “uma inspiradora e uma força para o homem”,
Helvétius e D'Holbach, com seu tranqü ilo mecanicismo, esse circuito nick
constituía sequer problema. Mas a mesma seguras t nã o se observa em {jp apresentando-se como a fonte “desta necessidade moral que [a ele] é bá si-
espírito da complexidade de Diderot. Daí a afirma ã o, apenas tendencia
ç l,
que Herbert Dieclcmann fazia a seu respeito: ca” (Venturi, F.: 1938, 157). Daí a veemência com que o Diderot ataca La
Mettrie, “cujos sofismas grosseiros, mas perigosos pela jovialidade com que os
Parece que o conceito da natureza, o método positivista e pragmático
I1
deviam-se erigir como absolutos no espírito de Diderot para que ele se
desse conta a que ponto essa maneira de pensar r egligencia a riqueza
da experiência humana (Dieckmann, H.: 1959, 65)

A notada oscilaçã o supunha que, em Diderot, o conceito de natureza,


de imediato, servia de ponta para uma orienta çã o determiriista, assim como
sua retifica ã o posterior implicava o recuo ante uma direi to, no entanto
nunca abandonada. Aedncemos o correlação deste nõ o resolvido voivé rn com
o diÍemn que analisaremos no capítulo seguinte: uma das conseqüências do
dgtgr- minismo seró o controle do imaginóúo, bem como os eeentitois recuos de
Diderot já anunciar a sua hesitação em consagró-lo.
Para que a natureza servisse de pista de lan Cimento para o vô o do
de- terminismo era preciso que ela mantivesse sua íntima solidariedade com
a razã o. Diderot neste ponto nã o muda. Assim, por ex., justificando o
motivo do empenho com a Encyclopédie e destacando seu cará ter político,
dirá , no verbete “Encyclopédie”:

Hoje que a filosofia avanSEt a grandes passos; que submete a seu


império todos os objetos de sua jurisdiSÁo; que seu tom é o tom
dominante e que se comesa a sacudir o jugo da autoridade e do
exemplo para se ater às
ressalta, revelam um escritor que nã o tem as primeiras idéias dos verdadeiros
fundamentos da moral (...)” (Diderot, D.: 1778, 217) ; b) a natureza deve ser
considerada o padrã o para a feitura e para o julgamento das obras de arte. Se
apenas um siêcle 9hilosoQhique poderia aspirar à corifecsao de uma encyclo9édie,
também só a ele caberia que “não mais se buscassem as regras nos autores, mas
na natureza” e que “se sentisse o falso e o arbitrá rio de tantas poé ticas falsas”
(Diderot, D.: 1751, 134) . Dessa maneira, Diderot se descartava das poéticas
clá ssicas, nã o porque propusessem o princípio da imitas* mas porque o sujeitavam
à autoridade meramente humana. Seria preciso rejeitá -las para que a verdadeira
imitasa pudesse ser compreendida e praticada; desloca- mento tanto mais
necessá rio, dirá um de seus comentadores, porquanto “é o arbitrá rio que conduz
ao mau gosto, portanto à falsa beleza¡ é, ao contrá rio, a necessidade das leis
racionais e naturais que comanda o bom gosto e, por conseguinte, a beleza
autêntica permanece subordinada à s exigê ncias do ú til”
(Belaval, Y.: 1950, 85). Estabelece-se pois um enlace direto entre a luta política dos
enciclopedistas e o esboço de uma filosofia da arte. A arbitrariedade dos
governos despó ticos nã o só contraria a razã o, nã o só estimula e se sustenta nas
supersti5Õ es, nã o apenas corrompe a moral, sacrifica o comércio e destró i os
grandes homens, mas també m atinge e macula o pró prio gosto das gentes. Contra
todo esse leque de maldades, há , no entanto, a estrada real que a
natureza oferece. Se, em rela ã o à moral natural, Diderot ainda crê p S:.ml Diante da diversidade dos costumes, para ele se trata, nã o de
transigir e, ao menos por cuidado com o olho de seu censor e com a açã d valorizar foS$e O mOdo primitivo, fosse a prá tica “civilizada”, mas de
Parlamentos, ainda admite ter a Deus por fundamento para a é tica, qtlã tyt determinar uma constante. O nativo Orou é o seu porta-voz. Ao contrá rio
à arte nenhum compromisso mais seria possível: de Rousseau, Diderot nã o tem o gosto pela especula5ã o sociopolítica. Em

Na moral, não há senão Deus que deva servir de modelo para o homem; contraste com
nas artes, nã o há senã o a natureza (Diderot, D.: 1751, 234) sua extrema audá cia no campo da filosofia da ciência ou no enfrentamen-
to com os teó logos, no plano sociopolítico Diderot, em princípio, prefere
Já nã o será ocioso perguntarmo-nos até que ponto tal confiaria T¡¿t negar qualquer tetos predefinido. Como se temesse repetir os sofismas do
natureza nã o era uma transferência da combatida fé cristã . A supersti5@ genebrino, de que ele pró prio seria a primeira vítima (cf. Diderot, D.: 1774,
316), o autor repele as afirma sõ es peremptó rias. Assim o branco religioso,
engendradora dos cultos ritualizados nã o teria sido apenas substituída pelo
interlocutor de Orou, defende a prá tica da interdiçã o do incesto das críticas
destaque do natural? A questã o poderia ser avançada e logo chegar-se a uma
resposta se nã o houvesse sido proposta como modo de nos aproximarm s lansadas pelo anciã o nativo. Mas nem seus argumentos sã o concluden-
de um autor da complexidade de Diderot. Pois, se é justoassinalar que uma tes, nem Orou pretende provar a superioridade das prá ticas de seu povo.
das conseqü ê ncias da solidariedade entre razã o e natureza era provocar a
“ Contenta-se, ao invé s, em postular uma moral pragmá tica — o bem geral
e a utilidade particular nã o seriam alcan ÍÍveis pela ado5ã o de leis estra-
subordinasao da produçã o artística ao modelo da natureza, logo é preciso
acrescentar que ainda estamos longe de distinguir toda a problemá tica aí nhas aO povo, importadas apenas porque foram julgadas superiores. Muito
embora essa opiniã o pudesse ferir os valores dos missioná rios cristã os,
envolvida. Em poucas palavras, a hipó tese da transpos›sao do modelo reli-
ná o parecerá curiosa e estranha em um acérrimo defensor da natureza,
gioso seria absolutamente plausível caso do destaque da natureza resultasse
como Diderot? Se mesmo o religioso admitia, na discussã o com o chefe
uma concepsao determinista. Já vimos, entretanto, que, embora sem propor
nativo, que o incesto talvez nã o contrariasse a natureza, nã o seria esse
uma concepsao completamente distinta, Diderot dela se afastara. (O cará -
argumento suhciente para que o filó sofo entã o tomasse o suposto partido
ter ainda incompleto em que se encontra esta exposisa nos impede de ir
dos taitiariOS? rotas, para Diderot, os princípios não são dogmas. E, sendo
adiante. Suspendamos nosso juízo e prefiramos continuar o levantamento
ele ainda alguém simultaneamente dotado de espírito imaginativo e de
dos outros pontos necessá rios).
espírito positivO (Cf. Groethuysen, B.: 1913, 322 ss.) , tornava-se difícil,
Outra conseqü ência da solidariedade da razã o com a natureza con- senã o impossível, sem- pre manter a mesmíssima posisa . A flexibilidade,
cerne ao problema da histó ria. Vejamos como a questã o se apresenta em
a explorasao de novos â ngulos, a indicasao de outro caminho tomam-se
Diderot. Neste sentido, destaca-se o SitQQlérnent au vo yage de Bougainville,
por isso freqü entes nas
escrito provavelmente em 1773. Nesta obra, o autor considerava as reflexõ es
pá ginas de Diderot. Estes tras permanecem na segunda parte do 8iiQ-
acerca da vida taitiana que o capitã o Bougainville apresentara ao retomar plément. Saem de cena o religioso e o taitiano, sendo substituídos por dOÍS
de seu périplo pelo mundo. O tema do confronto da moral européia com
europeus, A e B, que comentam o primeiro diá logo. Fica agora ainda mais
os costumes de um povo primitivo nada tinha de inédito. Acentuando a
clara a recusa de Diderot de confundir a natureza com a sede do utó pico.
liberdade sexual dos selvagens e sua moral simples, o relato de Bougainville
Observando o interlocutor B que a histó ria ensina serem as nasõ es antigas
pareceria um estímulo para a exaltasao do estado de natureza. Porém nã o e
é essa a orientasao que Diderot lhe imprime. modernas sujeitas a três tipos de có digos, o da natureza, o civil e o
religioso, “que jamais estiveram de acordo”, seu interlocutor supõ e que
daí se deva deduzir “que, se julgamos necessá rio conservar todos os três,
é preciso que os dois ú ltimos sejam apenas có pias rigorosas do primeiro, o
qual trazemos
gravodn.s rio fundo de nossos coraçõ es” (Diderot, D.: 1773, 505) . pE s t e q B, de sua parte, se cala; ficaríamos em dú vida se esta era, de fato, a po-
d
é e,ntretanto, o pensamento de B: si5ã o de Diderot se, sem mais o recurso de interposto personagem, o mesmo

Isso não é exato. Ao nascer, náo trazemos senão uma semelhança de argumento nã o reaparecesse na Ré{Rtntíon de l'ouvrage d'Helrétiiis:
organização com outros seres, as mesmas necessidades, a inclinação
para os mesmos prazeres, uma aversão comum pelos mesmos sofrimentos Preferes portanto o estado selvagem ao estado policiado? Não. A popula-
(idem, ibidem) sa da espécie vai sempre crescendo nos povos policiados e diminuindo
nas nações selvagens. A duração média da vida do homem policiado
A resposta é intrigante. Por que, afinal, nã o lhe pareceria correto fund excede a durasa média da vida do selvagem. Tudo está dito (Diderot,
ar D.: 1774, 411)
os có digos da sociedade humana na semelhança de organizaçã o e nas incli-
nasõ es comuns? Sem responder diretamente, mais adiante B explica que nã o
Em vez, por conseguinte, de ou seguir a lisã o de Rousseau ou de se
seria o adequado porque “vícios e virtudes, tudo está igualmente na nature-
lhe opor, o SuQQlément prefere uma linha de moderaçã o, em que nã o se
za” (idem, 507) . O estado de sociedade, por conseguinte, nã o é responsá vel
negam os pró s e os noutras de cada posis* . Em face da pergunta de A:
pelo surgimento dos vícios: també m a eles somos naturalmente conduzidos. É
“Q_ue fa- remos, portanto? Retomaremos à natureza? Submeter-nos-emos
certo, acrescenta, que a vontade de posse do outro nã o é dada pela natureza.
à s leis?”, seu parceiro responde:
No entanto, desde que essa vontade se introduziu, os vícios e as virtudes se
sofisticaram e se transformaram em “virtudes e vícios imaginá rios”: Falaremos contra as leis insensatas até que sejam reformadas; e, enquanto
esperamos, nos submeteremos. Aquele que, por sua autoridade privada,
Tão logo a mulher se tornou a propriedade do homem e o gozo furrivo
foi encarado como um roubo, viu-se o nascimento dos termos pudor, infringe uma lei má , autoriza todos os outros a infringir as boas. Há
discrição, conveniência; vícios e virtudes imaginárias (idem, ihidem) menos inconveniente em ser louco com os loucos do que em ser sá bio
sozinho (idem, 515)
Ao nascemos, somos crisá lidas do que seremos. A sociedade apenas
nos desenvolverá . Nã o se trata, por isso, de optar entre uma sociedade pró - O mesmo Diderot a quem o determinismo mecanicista desagrada, se
xima à natureza e outra, civilizada. De qualquer modo, no diá logo referido abstém de propor modelos carismá ticos. Acatar a diversidade tem como
a balans• ainda se inclina a favor da primeira. Ante a pergunta “mas, enfim, contraface o respeito pelas palavras que a declaram. Assume por isso uma
diga-me, é preciso civilizar o homem ou abandoná -lo a seu instinto?”, B nã o linha política que, de imediato, o tornará menos influente que Rousseau
hesita na resposta: ou Voltaire.
Sumariamente descrita a discussã o sustentada no Supplément, voltemos
Se tiveres o propó sito de ser um tirano, civiliza-o; envenena-o o à questã o que a motivou. Disséramos que a solidariedade entre a razã o e
melhor que possas com uma moral contrá ria à natureza (idem, 511-2)
a natureza resultava da ausência de tetos como, no campo sociopolítico,
era lida a primeira; que, daí, provinha o problema específico da histó ria.
Pareceria entã o que o leitor era induzido a tomar o partido de Orou. Mas
Q_ue entá o nos propicia o exame que empreer demos? Nã o a resposta mais
à declaraçã o que acabamos de transcrever logo o outro personagem
esperá vel. Ela simplesmente seria: porque nã o se contextuliza a razã o, nã o
acrescenta:
há lugar para a histó ria. Este é tã o-só um dos lados da resposta. Assim, ao
Não duvido contudo que a vida média do homem civilizado é mais encontrarmos, no início do $upplément, Orou a defender o bem geral e o
longa que a vida média do homem selvagem [idem, 513) interesse particular, contra a pretensã o do emprego da lei abstratamente
superior, poderemos concluir que o personagem afasta a razã o abstrata, i."e„ aplicarem leis e
por si investida da capacidade de declarar o bem e a utilidade apropriadas. A
continua ã o do diá logo confirma a distâ ncia que Diderot guarda da
tradiçã o
do abstracionismo cartesiano. Pois os postulados de Descartes terminavam
por excluir a histó ria:

O indivíduo nã o é cognoscível nacionalmente; eis os grandes homens,


em sua fisionomia pró pria, eliminados. A obra da razã o é captar as re-
lasõ es e as conexõ es, nã o de assinalar as diferensas acidentais de
form.a e de superfície; eis as épocas, em seu cará ter original,
confundidas com a ciência universal do homem. As idéias, objeto da
razã o, matéria da
ciência, sã o concebidas fora do tempo e do espas . Eis a ri sa mesma
da histó ria abolida (Lanson, G.: 1896, 76)

Nã o obstante este nã o ser o tras dominante no SuQQlément, nele há


també m um tanto disso. Pequena parcela embora, a tradi sã o cartesiana
permanece no gosto das disti só es simples e abstratas. Vemo-lo na
passagem em que B introduz a idéia do conflito permanente entre o
homem natural e o homem artificial:

ueres saber a histó ria resumida de quase toda a nossa miséria? Ei-la.
Existia um homem natural: dentro deste homem, introduziu-se um
homem artificial; e criou-se na caverna uma guerra contínua que dura
toda a vida (Diderot, D.: 1773, 510-1)

A marca cartesiana nã o é abolida, mesmo por que Diderot se quer


menos historiador do que moralista. Como demonstra seu Essni SttT Í43SYê
de Clao& et de NéTon, a histó ria romana basicamente lhe interessava para que
empre- endesse a apologia de Sê neca, obrigado a transigir com as
arbitrariedades do déspota, seu discípulo. De toda maneira, a orientasã o
moralista nã o impede
que notemos o quanto o autor se afasta de um racionalismo seco e inflexível.
Já a propó sito do texto anterior, H. Dieckmarin observada que “em face da
intemporalidade de um racionalismo rígido, o pensamento histó rico se
prepara. Abriu-se uma brecha na muralha até entã o oposta ao problema da
origem e do sentido do mundo” (Dieckmann, H.: 1959, 52). E isso porque,
embora nã o de forma explícita, ao reconhecimento da ilegitimidade de se
Costumes
a sociedades outras, sob o argumento de serem melhor rígida e {ormnlisto e a uma teoria titilitó ria de ane, mas tombé m no Iado de
conformes à Açã o, corresponde a admissã o da relatividade da uma indagação qite compreende serem os fe:nômenos e os objeios mais
cultura. Embora Diderot nã o tenha Sido o primeiro a acentuá-la, complicados do que supunha
nem a tenha sistematizado, sua curiosidade o levou a vencer o o modelo filosófico-científico em processo de expansão. Note-se bem que
limbo a que o Iluminismo relegava a histó ria (cf. Gay, fi: 1969, nã o falamos simplesmente em fases, pelas quais a obra do autor teria
37). Essa observasao será destacada no momento em que passado. Dizemos sim que nele se nota uma dualidade de posturas, uma
cogitarmos de sua posisao de crítico e filó sofo da arte. alternâ ncia de posiçõ es, nada menos que contraditó rias. Groethuysen, em
O exame, em suma, do SuQplé ment parcialmente ensaio tã o fascinante quanto pouco lembrado, afirmava que Diderot
contraria a diresao da aná lise que empreendíamos das resolvia a con-
conseqü ências da solidariedade da razã o com a natureza. trad sã o do espírito imaginativo e do espírito positivo, nele existentes,
Viramos que, com base na natureza, a razã o se tomava o pCirta- pelo reconhecimento de serem mú ltiplas as aproximasõ es possíveis dos
voz de uma moral leiga e a orientadora de uma nova legisla ã o dados da experiência (cf. Groethuysen, B.: 1913, 330). Mas esse
para a arte. Já o estudo da concepsao de ciê ncia por Diderot e, reconhecimento se
mais precisamente, a discussã o do determinismo nos mostrara manteve longe de criar uma síntese harmô nica. De nossa parte, acentuar
que sua posiÇ,'tã o se complexificava aquela dualidade é decisivo para a condusã o a ser emprestada ao capítulo
" ao se distanciar do mecanicismo freqü ente entre os
seguinte. Mais concretamente, para trabalharmos a correlaçã o dessa duali-
contemporâ neos. Na abordagem então da questã o da histó ria,
dade com a posisa nã o menos contraditó ria que veremos Diderot assumir
vimos aprofundada a insubmissão do autor aos esquemas
frente ao controle do ficcional.
dominantes no racionalismo. A complexidade de Diderot, se
Poderá com efeito parecer estranho ao leitor a convergência que
nã o seu paradoxo, está em que o encontremos nos dois lados
nosso estudo do Iluminismo progressivamente apresenta face a Diderot.
da discussão: no lado que tende a uma moral leigo e abstrata,
Já pode-
Diderot antes se apó ie nos debates
mos agora declarar que o fizemos mesmo por conta do cará ter trurtcadc,, Embora a reflexã o epistemoló gica de
dramá tico, intrigantemente contraditó rio de suas posiçõ es como filó sofo d bioló gicas do que no desenvolvimento da física
realizados dentro d£lS Ciências
arte. Mas será correto falar-se neste truncamertto quanto à arte? Se o
emborã d
esdenhasse as concÍtlsÕ es dã corrente mecanicista, seria decil
leitor t°:
heraclitiana. Suaorientaçã o é a aristotélica
deste capítulo já tiver lido outras das muitas abordagens que se dedicaray diSê -lo inclinado paxa uma visão atirado) . De acordo
a Diderot, poderá esperar que as palavras “trur camento”, “contradição» da-se bem: dO Aristóum
teles como nade
époC ã YLOTTII
a que a arte ná o pode-
e semelhantes nã o passem de uma tá tica expressiva, a ser vencida noutr (enten prinClpio verdade
Ela, a natureza conté m
çi C
esse rprincípio e quais os
passo, em que se mostrasse o acorde sintetizador de seu pensamento sobre ¿t ria renunciar. Mas ainda nã o sabemos como
introdutó io é aindaatuará
oportuno notar
arte. Chamamos a atençã o desta expectativa para que se evitem decepçó es. Efeitos de sua opera5á o. Neste
estágio
francesa de entã o. Por efeito da “querela
É , na verdade, comum encontrarmos entre os especialistas de Diderot a as tendências encontradas na arte
defensores dos modelos clásSiCOS
afirmasã o de que ele, em sua prá tica de crítico e romancista, ultrapassada dos antigos e dos modernos”, i. e., entre os
suas convicçõ es teó ricas. ‘É bastante natural que os especialistas em deter- cada grupo entendia a imitasao de
e os da expressã o do mundo presente,
minado tema ou figura de tal modo se identifiquem com ele que o defendem um ITlOdO'
e busquem a “melhor” interpretaçã o possível. Mas a passionalidade tem o século em que se opõ em “racionais”
Daí a extrema Confusão de um meio
defeito de obscurecer o objeto que a move. Nã o é o Diderot “prá tico” o e almas sensíveis”, defensores do ’bom gosto” e louvadores erttusias-
que contradita e vai além do teó rico. Tanto rio prá tico, quanto no teó rico inovadores e tradiciOnaÍlStEtS
tas do “gênio”, dogmá ticos e empiristas,
sobrevive o conflito. (Ehrard, J.: 1963, I, 256)
De todo modo, um dado é incontestá vel: por maiores que sejam suas
voltas, Diderot confia à imitasao da natureza a condiçã o de pedra angular Essas tendê ncÍaS se reapresentam da tla produsao artística da é poca. ASO
da obra de arte. Mas que entende por imitasao? Qual o papel que aí de- sinala Ehrard que a “defÍn'sa liberal natureza”, para a qual tudo seria
entã o possível,
sempenha o par “natureza e razá o”? Como ainda nos encontramos em um digno de imita sa, de fato nã o vinga e, em vez do realismo
momento preparató rio, considere-se o ambiente histó rico em que Diderot o que se atualiza é o naturalismo declamató rio do drama burguê s”, de que
pensava. Por Jacques Chouillet, sabemos que entã o se defrontavam duas a corrente
Diderot será um dOS representantes. Mas tal naturalismo nã o é
concepsõ es de natureza:
ú nica:
A primeira, de tipo aristotélico, transmitiu-se até ele por meio da tra- longe os mais nu-
Noutros textos críticos ou doutriná rios, que sã o de
dição clássica; (...) segundo essa try 'sao, a Natureza é desde logo um osi artística do
merosos, o justo sentimento do que deve ser a transp sa•
princípio de verdade e, em seguida, um modelo, que é preciso imitar, real é posto a ser v'sdos interditos do “bom gosto” e dos preconceitos
sem que se saiba muito bem se este modelo é a própria Natureza ou a estéticos da alta sociedade (Ehrard, j.: op. ciE., 257)
Natureza depurada pelo espírito do homem. (...) A outra concepção, de
tipo heraclitiano, representa a natureza como um “fluxo perpétuo”. Seu do gosto, sua
Se lx com et la vilÍe deixara de ser a instâ ncia modeladora
honnête homme.
sombra entretanto sobrevivia na manute•sao do ideal do
ressurgimento, no século XVIII, está em relação estreita com o desen-
volvimento da física experimental e com o nascimento das ciências da eillg que náo
vida: ela marca “a revanche de Gassendi sobre Descartes” (Chouillet, Auerbach escreveu sobre o padrão de gosto de ld cottr Cr 1
infiltrava o bon seris burguês. Com Ft
J.: 1973, 394) era mais o arÍSCOCTÁtÍCO, pOiS nele já se
à vontade
decadência do absolutismo e da submissã o das classes superiores
do monarca, o influxo dos valores burgueses só fizera crescer. Ele
trarisparece com nitidez no drame bour eois, onde a família e seus conflitos era o ideó logo de uma classe. Suas preocupasõ es podiam convergir com
internos sobres- saem sobre os temas clá ssicos, heró icos ou simplesmente os interesses da burguesia, mas a totalidade de seu pensamento nã o
poderia ser assim interpretada. O rumo que concedia à imitasã o,
psicoló gicos. Ess t influê ncia difusa nã o era acidental, pois a corifluência
eventualmente, podia concordar com o etos burguês. Mas seria
dos iluministas corri o meio profissional-liheral, saído da burguesia, nã o se
demasiado restritívo tomar o condicionamento burguês como critério
restringia à discussã C¡ político-religiosa. A burguesia, como dirá Habermas,
explicativo de suas idéias e de
nã o apenas pretendia entrar na arena política, mas transtomar as regras do
suas oscilaçõ es.
jogo, transformar o espaso pú blico. Por esse propó sito, para o qual se
Escrevemos “oscilaçã o” e a palavra nã o poderia ser trocada. No caso
qualificava pela substi-
da reflexã o sobre a arte, ela se introduz pelo ingresso de um novo vetor: o
*•›sã o do valor “ostentaçã o”, típico da sociedade estamental, pela razã o de
gênio e seu papel. Sua entrada no pensamento de Diderot tem conseqü ências
cá lculo, ela nã o só se mostrava ativa nas discussõ es imediatamente políticas,
como favorecia as expressõ es art(sticas mais adequadas a seus valores. Entre perturbadoras. Até agora tínhamos visto a mú tua sustentasa que razã o e
estes, estavam o destaque do ú til, o favorecimento de uma educa ã o mor£tl natureza se ofereciam, formando uma construsã o teó rica está vel. É verdade
5
e prá tica, o privilégio dos sentimentos e o elogio do bom senso. Contra que já a aná lise do SuQQlément assinalara uma mudansa no trato da razã o:
a em vez de abstrata e intemporal, ela se contextualizava e, implicitamente,
proposta burguesa, que tinha a oferecer a nobreza? O etos burguês se
acentuava a relatividade dos valores. Notava-se, ademais, a perda da sa-
irradia pela pró pria classe adversá ria — é bem sabido o favor que os cralidade da pró pria natureza, vista como o meio de que se originam nã o só
enciclopedistas tinham entre certos nobres e o entusiasmo com que as virtudes como os vícios. No entanto, assim como nã o aprofundara suas
recebiam os romances de Rousseau. Como dramaturgo, Diderot terá objesõ es ao mecanicismo, Diderot tampouco aprofundara a contextualizasa
muito menor êxito de pú bli- co. Isso, entretanto, nã o significa que Le Fils da razã o e a dessacralizasã o da natureza. Por isso o final do SitQQlérrient con-
riatitreÍ e Le PêTe de /nmiIle nã o tematizassem, com um incô modo tom tinha a afirmasã o apenas de que, se os membros das sociedades civilizadas
declamató rio, os valores da burgue- sia. Nã o seria prová vel descurá -lo em deveriam aprender com os praticantes das leis “naturais”, em troca nenhum
passagem de De In poésiC dTJ2 tiQue projeto transformador deveria cogitar de simplesmente adotá -las. O diá logo
em que o auto-exame é tomado por cond sã o da honestidade individual e
terminava por propor sugestõ es, sem que ousasse aprofundá -las.
da pró pria qualidade autoral: “Aconselharei este exame secreto a todos os
O gênio assinala os limites da razã o. A razã o nã o o explica. Se o meio
que quiserem escrever; por certo, eles se tomarã o pessoas mais honestas e
pode impedir sua eclosã o, por outro lado nã o consegue fomentá -lo. À au-
melhores autores” (Diderot, D.: 1758b, 204). Poder-se-ia mesmo dizer que
sê ncia de um crité rio explicativo geral, corresponde a absoluta singularidade
Diderot procura ganhar o pú blico burguês para a defesa do ator e do
de cada gênio. Ao passo que ele gira em ó rbita pró pria, possuidor de um
teatro, aclimatando à cena o etos da burguesia. Se a condiçã o do ator indissolú vel traço idiossincrá tico, a razã o só opera na descoberta das
permanecia miserá vel e continuava ele perseguido pelos tabus religiosos, regu- lasõ es gerais. Nã o podendo haver uma lei para a idiossincrasia, o
que chegavam a lhe proibir o direito de sepultura cristã , o filó sofo procura gênio nã o aponta senã o para a figura isolada de seu portador. Sem dú vida,
usar o prestígio da razã o em seu favor. O burguês está em processo de ao pensar assim, Diderot nã o trabalhava fora de um certo
ascensã o e, defensor da reforma política, Diderot tenta contribuir para condicionamento social.
que a reforma também incida no reconhecimento profissional do ator. Ao H. Dieckmann já assinalou que a importâ ncia do gê nio era provocada por
ressaltar a necessidade do auto-exame, como favorecedora da dois motivos: a) a desintegrasã o da teoria da arte do século XVII e de seus
honestidade, tentava conjurar os temores e preconceitos do espectador padrõ es de gosto; b) enquanto os modelos ideais precedentes, como o corte-
burguês e, simultaneamente, favore- cer os envolvidos na cena teatral — gíono e o honnéte homme, perdiam sua validade, “o estrato social ascendente
atores e dramaturgos. Mas Diderot nã o
da burguesia ainda nã o encontrara um novo lema para seu etos (Dieckmat ra,
genio om o postulado da imitaçã o era bem mais problemá tico. C Ori uanto
H.: 1941, 53-4). O ideal do honnête homme sobrevivera ã alian a supor
Diderot nunca se haja proposto o problema de forma direta, podemos
provisó rii da nobreza com a alta burguesia ã medida que se aclimatara á
que sua resposta começasse por uma negaçã o: a imitntio nã o se confunde
é Jcã dos negó cios. Mas esse lema apenas parcialmente podia cobrir o etos
C m £t obediência a modelos, nem muito menos com a fixa5ã o descritiva do
burguês,
porque nada dizia do apres deste pela individualidade. A excepcionalidã de OTÇó
observá vel. Esse pressuposto encamiriharia para a justificaçã o
fã inal:
do gê nio tem para o burguê s a flagrante vantagem de acentuar menos seu do imaginá rio consiste em tomar seu agente capaz de desvendar a lei que
cotidiano profissional do que um suposto cerne pessoal; de destacar seu comHxlda a natureza, as relasõ es que formam sua estrutura (cf. cap.
arrojo empresarial. Porém a idéia de gênio nunca poderá se converter no seguinte). Se o gênio nã o é explicá vel pela razã o, sua obra, contudo,
lema de uma coletividade, como uma classe; será apenas o ponto limite remete para o mesmo nú cleo de que a razã o se nutre: a ordem da
reservado a uns poucos: os gigantes do êxito, os beneficiá rios de uma natureza. Esta ordem, já o vimos, nã o se encerra no plano do observá vel.
jogada magistral. Por isso sua entrou asao posterior, no romantismo, selará O gênio é um mergulhador,
o advento de outra forma de relasao de seu detentor com a burguesia, já cuja descida permanece inexplicável.
entã o vitoriosa: em vez da confluência do homem de gênio com uma classe Nã o parece difícil perceber o efeito da indaga sã o sobre o gênio na
social, marcar-se-á entã o o abismo separador do gênio frente aos que o reflexã o sobre a arte. O Diderot que mantivera a estreita vinculaçã o da
cercam. Esta, entretanto, já seria uma etapa a que nossa pesquisa ná o se razã O COITI a natureza era aquele que, valorizando a arte por seu valor de
estende. Fiquemos pois nesta anterioridade da segunda metade do século imitasa , dela exigia o servis á comunidade, i. e., uma funçã o pedagó gica.
XVIII. Como qualquer outra tarefa humana, também a arte deveria ser ú til. Como
o filó sofo e o cientista, o artista deveria estar a se s da propag•sao das
Em Diderot, o vetor “gênio” tem o efeito de romper a unidade que
luzes.
razã o e natureza mantinham. Se, diante dele, a razã o se embarasa e cala,
é a natureza, sozinha, que a ele se liga. O poeta, escreve Diderot em De Ía Na medida em que o autor do Siipplément nã o acreditava na eficá cia de uma
poésie dramatique, “recebeu da natureza, em um grau superior, a qualidade transformasã o social realizada por um punhado de iluminados, tomava-se
que distingue o homem de gênio do homem ordiná rio e este do estú pido: a ainda mais imperiosa colaborasa de todos, no combate à s leis arbitrá rias.
imaginasã o” (Diderot, D.: 1758b, 219) . E, na Ré{utotíon: “É a natureza, é a Esse Diderot se convertia, apesar de sttes boas intençõ es, em um dos Qortn-vozeS
organizaçã o, sã o causas puramente físicas que preparam o homem de gênio; da manutenção do controle, se bem que transformado, do imnginóúo. Desde o
sã o as causas morais que o fazem eclodir” (Diderot, D.: 1774, 369) . Ná o é Renascimento até a culminâ ncia do absolutismo, o controle do imaginá rio
ocasional que suas reflexõ es sobre o gênio convoquem o poeta e o artista. fora sustentado por um argumento de fundo religioso. Com o Iluminismo e
Ao silêncio da razã o corresponde a entrada da imaginaçã o. Como poderá sua afinidade com o pragmatismo burguê s, o controle se seculariza. Sem seu
conciliá -la com a imitasã o? propó sito consciente e sem conhecer as palavras “controle” e “seculariza-
Era ainda de entendimento plausível o parentesco do gênio com a natu- çã o”, no sentido que as usamos, Diderot nã o deixará de contribuir para sua
reza. Sem que o filó sofo tente explicar como, algum motivo.tomaria o gênio atualizaçã o. Mas este é um Diderot. O outro é aquele que, exaltando o gênio
mais sensível a penetrar na natureza e nela descobrir o que seria vedado ao e a imaginasã o, nã o tem como, ao menos em um tempo imediato, prestar
mero observador. Negar o elo do gênio com a natureza representaria servis ao ideá rio da ordem burguesa. Precisamos contudo nos indagar se
arriscar- se a recair noutro modo de supersti çã o, pois, como dissera anos essa dicotomia é assim tã o drá stica. O privilégio mantido pela imitaçã o nã o
passados, as nosõ es que nã o se fundam na natureza se assemelham a conseguirá atravessar o fosso e reconstituir a unidade do pensamento do
á rvores sem raízes filó sofo? Eis enunciada a questã o bá sica a ser ainda trabalhada no pró ximo
(cf. Diderot, D.: 1753, § VIII). Mas a conciliaçã o da força divinató ria do capítulo. Mas antes de virmos a ele, confrontemos brevemente a diresã o
que se extrai de nosso exame com uma das interpretaçõ es mais graves d¢
período que temos estudado. 6z6

3. RA ZÃO CO M O I N ST RU M EN T O

Dos livros já dedicados ao tema do Iluminismo nenhum mais arbitrá -


rio e mais fascinante que o Diolektík deT AiiÇlâ riing, de Max Horkheimer
e Theodor W. Adorno. Terminado em 1944, durante o exflio norte-
americano
dos autores, só publicado em 1947, em Amsterdã , a Dioléticn é ensombrecida
não só pelo pesadelo do nazismo, como pelo contato ao vivo com uma
socie- dade altamente pragmá tica e massificada. Se os autores eram quase
inertes testemunhas do confronto da bestialidade ariana veTsus a
imbecilizasã o do
biibbÍe gum, que saída poderiam ver para o antigo sonho de liberasã o huma-
na? Que fu•sao ainda poderia ter a teoria crítica? Sem se preocuparem em
fazer distinçõ es que lhes pareceriam adjetivas, os autores incluem as diresõ es
presentes na atualidade como inimigas do antigo projeto e disparam contra
elas a mesma acusasao:

O que os descarados fascistas hipocritamente louvam e os dóceis


técnicos humanistas põem em prática — a infatigável autodestru'sa do
Ilumi- nismo — requer que a filosofia se descarte mesmo dos úlõmos
vestígios de inocência a propósito dos hábitos e tendências do espírito
da época (Horkheimer, M. e Adorno, T W: 1947, XI)

O espírito da época a que acusam nã o é visto como degenerescência


ou falsificasão do Iluminismo; ao contrário, como sua rea1i••s* . O
Ilumi- nismo traria consigo seu pró prio aniquilamento. Nó s, os
contemporâ neos,
somos suas testemunhas. Impotente ante as tendê ncias presentes na histó ria
ocidental, à teoria crítica estaria limitado o papel de denú ncia. Ou, se nã o
apenas isso, de reinterpretaçã o do pró prio cará ter iluminista. Conforme
os autores, isso com que nos defrontamos é bem o resultado cabal de um
processo iniciado muito antes do pró prio Iluminismo, pois constatá vel
na pró pria figuraçã o do mito homérico. Daí a estranha igualdade que
estabelecem na introdusa mesma de seu livro: “o mito já é iluminista;
e iltlminismo reverte á mitologia” (op. cit. , XVI). Por que assim? mito ainda conteria um segundo e distinto tras : a fatalidade do poder.
A per- gunta que deverá espontaneamente surgir em “Apenas aquele que sempre se submete, sobrevive face aos deuses. (...) A
qualquer leitor nã o será semelhan £f do homem com Deus consiste na sabedoria sobre a
respondida de modo pleno. A escura tragicidade sob a qual a existência, no apoio do mestre e senhor e no comando. (...) Os homens
Dialética foi concebida nã o permitiu aos autores o desenrolar pagam o aumento de seu poder com a alienasã o daquilo sobre
argumentativo que seria desejá vel. Encontramo-rios com um
tom passional que aproxima, sem maiores mediasõ es, o mítico
da AitÇlâ rurig, que toma o positivismo co mteano e o
neopositivismo contemporâ neo como seus sucessores e her-
deiros e o império dos media, onde Bach e Beethoven serã o
interrompidos e deformados pela publicidade de qualquer
mercadoria. As passagens, as possíveis muda>sas de sentido
desaparecem ante a macabra via imperial desdobrada desde a
Grécia homérica. E o livro, que tanto denuncia a razã o abstrata,
paradoxalmente termina por apresentar uma visã o ú nica e abs-
trata da histó ria. Mas as falhas evidentes, que tornam a
Dialética algo de
semelhante ao que, no fim dã Primeira Grande Guerra, fora A
Decodéncia do Ocidente, de Spengler, nã o nos impedem de
reconhecer o que nele há de agudamente premonitó rio. De
acordo com sua tese principal, mito e Iluminismo sã o termos
conversíveis. Q_ue sustenta a idéia de que o mito já anuncia o
Iluminismo? Se bem os compreendemos, os autores se apó iam
no seguinte raciocínio: o impulso primordial para o mito
resulta do terror pâ nico da morte. Esse terror dilacera o
homem, que entã o procura desco- brir um sentido para o
mundo e para a sua existência. O conhecimento, oferecido pela
orden•sã o da narrativa mítica, oferece-lhe a porta. Esse
conhecimento se especifica pelas idéias de destino e de ciclo. O
suceder das estasõ es do ano ascende à condisao de alegoria
orientadora. A vida contém o crepú sculo dourado do outono e
a paz gelada do inverno. Essa prepara a terra para o novo
nascimento. O ritual do eterno retorno con-
cede ao indivíduo um sentido gregá rio. Com os outros
membros da tribo, participa de um movimento que a todos
empresta significaçã o. Esta, pois, seria a mancha iluminista
contida no mito; mancha liberadora do caos agô nico. Contudo o
que exercem seu poder” (oQ. cit., 9). O mito é simultaneamente liberador 6z8
e ocultador. Os autores concretizam sua tese pela aná lise do episó dio d,qS
sereias, na Odisséio. Para veneer a seduÇÒ o de seu canto, Ulisses impõ e qțl€
os tripular tes ponham cera nos ouvidos, ao passo que ele, o mestre e senhC¡t,
é preso ao mastro. Escuta a doce sedu sã o das origens, mas é mariietado p t
sua pró pria vor tade, ao passo que seus sú ditos, presos ă
l acbou ttai d i a n a , sequer a ouvem. O mito é liberador e escravizador
porque recalca, abstrai e universaliza; porque toma como destino o que é
conseqü erite a um projeto humanamente concebido. O mito serve-se do
cor hecimento para recalcar
o conhecimento do particularizado. Ä medida que este é esmagado pelo
estabelecimento de leis gerais, a vertente mítica do pensamento
apresenta, defende e propugr a a manuter çã o do state quo.
Já ao tentarmos descrever o momento de ida do mito para o
momento iluminista implicitamente tocamos no trajeto inverso. Essa
regressã o nã o serta menos inevitá vel pelo cará ter ocultador latente no
pró prio impulso desmitologizante: “O princípio da imanência, a explica5Õ o
de cada evento como repetiçã o, que o Iluminismo deferide contra a
imaginaçã o mítica, é o princípio do pró prio mito” (oQ. cit., 12) ; “Antes, os
fetiches eram sujeitos ă s leis da equivalência. Agora, a pró pria
equivalência se tornou em fetiche” (idem, 17).
Deste modo, por enfatizar a unidade da natureza, a determina5Õ o
total dos fenô menos humanos, por abstrair-se do particular em prol de
pretensas leis universais e, sobretudo, por justificar as a õ es humanas
fundamen- talmente enquanto ú teis e voltadas para a preserva ÇÒ o da
existência e o hem-estar individual, o pensamento iluminista repetiria o
tra5Ci negro do pensamento mítico: “O terror mítico temido pelo
Iluminismo concorda corn o mito. O Iluminismo o recorihece nã o só nos
conceitos e nas palavras nã o clarificadas, como se demonstra pela crítica
semâ ntica da liriguagem, mas em qualquer afirmaçã o humana que nã o
teriha lugar no contexto final da auto-preservasa ” (ibidem, 29).
Por mais fortes que sejam as obje5õ es que se possam fazer as genera-
lizasõ es dos autores, o DioIgktík der AuĘlä rting'nomeia um ponto que nã o
deve ser descurado. O Iluminismo, de fato, pensava a razã o como instru-
mentalidade, como forma de domínio da natureza, o que, em ú ltima
aná lise,
tomava o conhecimento descartú vel, desde c¡ue nñ o fosse ú til'. Nesse sentido, a
arte didá tica que propunham nã o era apenas uma arte domesticada, mas que
privava da estreita margem de manobra confiada a toda atividade inte-
lectual: aceitá vel e promovida enquanto auxiliar da proposta de domínio. Ná o
estranha pois o elogio iluminista da ciência, como tampouco desmente a tese de
Horkheimer-Adorno o favor crescente que hoje parece gozar mes-
mo a ciência pura. Ela é fomentada pela espera•sa de que seus resultados
possam se converter, dentro de certo tempo, em parafemá lias mais eficazes de
exercício do poder e de multiplica sã o do capital. Contudo a paradoxal
uniformidade postulada pelos autores deixa passar uma tensã o existente
dentro do pró prio Iluminismo. Como o capítulo agora encerrado comes u a
mostrar, é, em Diderot, que essa tensã o melhor se acusa. Caberá ă s pá ginas
seguintes especificá -lo, no seu trato da arte.

Minneapolis: 1" versã o — outubro, 1985


2^ versão — mars 1986

' É oportuno comparar as reflexões de Horkheimer e Adorno com as que apresenta


R. Sennett sobre a sociedade norte-americana de agora (cf. Sennett, R.: 1979, pp.
406-18).

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