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TRI LO G I A D O
CONTROLE
O CONTROLE DO IMAGINÁ RIO
SOCIEDADE E DISCURSO FICCIONAL
O FIN GID OR E O CENSOR
Edior
José Mario Pereira
{} Qtd eCÍIReFl tOS ..............•..........................................................•..........•........
Edimia-ass'ustente A Inquietasao de Luiz Costa Lima — Hons Ulricà Giimbrecht.............................13
Christine Ajuz
1 . RAC I O NA LIS M O E RE L IG I ÃO
y88
Conhecida a justificaçã o teoló gica da autoridade moná rquica no
atiC¡tll Tégime, nã o é difícil entender por que a discussã o política implicava a damentos, sob o pressuposto nã o declarado de ser entã o capaz de distinguir
£ts s+lperstiçõ es da cren a bem fundada.
relig¡ _ sa. Podemo-nos porém indagar por que a religiã o nã o era deixada
Tudo na passagem comentada parece de acordo com o só lido bom
em p¿tj quando se passava para a discussã o epistemoló gica. A resposta é
senso. Mas, se a exarninarmos com mais atençã o, nã o escapará seu sofisma:
imediata; assim tinha de suceder porque o cristianismo se tomava por uma
ela parte do suposto de que o exame crítico atestará a veracidade dos do-
explic£tçp(j
cumentos em que a fé cristã se apó ia. O resultado estava dado desde antes
totalizante. O processo de Galileu fora sua prova mais cabal. No entanto,
do exame; como se o que estivesse em discussã o fossem circunstâ ncias — se
agora o filó sofo e o cientista já podem ousar sem risco iminente: de
tal fenô meno poderia ser considerado milagroso, se tal a dã o indicativa
Se bem que o filó sofo nã o deve porter itne ‹rtte sacrilêge sua lee objets de Se a asao dos corpos uns sobre os outros obedece a leis tão sábias
IO TeHélation, tem o direito de examinar os motivos que sustentam a c re•sa. quanto as que decorrem do princípio da menor asa , como saber se
este não é
Tais motivos sã o semelhantes aos que orientam a certeza histó rica — por sua simplesmente “uma seqüência necessária da natureza dos corpos” e não
vez, já entendida como semelhante à certeza das ciê ncias físicas — com a a expressão da vontade e da sabedoria divinas? É o próprio Marpertuis
difere sa apenas de que devem ser ainda mais rigorosamente examinados; quem propõe a questão, mas a maneira um pouco rápida com que a
o objetivo dessa indagasã o seria separar as QTeuves foibIes e caracterizar as afasta não é convincente: mesmo neste caso, escreve, a Perfe'são do
Ser Supremo permaneceria intacta, todas as coisas sendo ordenadas
que seriam privilé gio da religiã o verdadeira. Sem pretender, por conseguinte,
de tal
explicar o ato mesmo da fé, a razã o se arvora o direito de examinar seus fun-
modo “que uma matemáóca cega e necessária executa o que a inteligência
que justificavat;y q intervençá n da mnnus emendntrix de Newton, sã o elas
mais esclarecida e livre prescrevia” (Ehrard, J.: 1963, I, 173)
mesmas periódicas, que a ordem da máquina celeste se restabelece por
Si pró pria, sem ter necessidade de adã o providencial alguma (Ehrard,
Na verdade, o mal disfar ado compromisso faz emergir o pyrobl ã J.:
bá sico da iridagasã o científica, na primeira metade do sé culo XVIII: é pos- of. cit., I, 175)
sível conciliar-se a autonomia da ciê ncia com a manutençã o da idéiet de
um legislador divino? A mal disfarsada cautela de Maupertuis, que Diderot Sem o mesmo impacto dos estudos de física, a ciência do homem,
desvaloriza-
der unciaria em De E Jnterbrétotíori de In naiuTe (1753) , mOã StTã dificuldade nascente na primeira metade do século XVIII, importará na
preocupaçõ es teoló gicas, contrapondo-se
çã o idêntica das corpo ao tradicional
ualismo entre e alma. Ademais, como a divisã o cartesiana entre
que encontrava o deísmo newtoniano — i. e., a afirmaçã o da divindade d
cogíto
comp autora da má quina do mundo, que nã o r ecessitaria do aparato res cogitons e res extenso fora freqü entemente usada para manter o
institucional
será menos
de uma Igreja — em nã o abrir as portas para um mero naturalismo, com o a salvo do mGtodo analítico, o pensamento de Descartes nã o
Mas a crítica
conseqü ente ostracismo da indagasao da Providência. E nã o podemos se- atacado por toda uma linha de pesquisas iniciada por Locke.'
humanas. Na
quer pensar que sempre se tratasse de um compromisso conscienteme nte a Descartes tampouco se restringe ao campo das ciê ncias
procurado, pelo qual o cientista tentasse evitar confusõ es com o poder Verdade, com a ênfase ria experiência, na indaga5á o dos fatos sensíveis,
l do
instituído. Cogitá -lo seria arbitrá rio, desde logo no caso de Newton, que com o maior interesse pelas ciências bioló gicas, a indagaçã o científica
intentava sim conciliar o princípio da atr•sã o dos corpos com a presensa século XVIII distinguir-se-á radicalmente da processada no século pre-
de Deus: “De acordo com seu ponto de vista, a atraçã o se explica seja por cedente. Para Descartes, o método analítico que propugnava tinha sua
uma intervensao direta de Deus, seja pela mediasã o do éter” (Ehrard, J.: ! fonte de certeza nas idéias que a mente encontrava dentro de si mesma;
1963, I, 128). Com as idéias do físico inglês passará o que já sucedera idéias portanto inatas, abrangentes da espécie que permitiriam o conhe-
com as de Descartes: seus propó sitos de harmonia da ciê ncia com a cimento da realidade empírica e, ao mesmo tempo, testemunhariam a
explicasã o religiosa serã o afastados, à medida mesmo que sua contrib• sa marca do Criador sobre sua criatura. Ora, o princ(pio das idéias inatas era
científica é aceita e desenvolvida. Em meados do século XVIII, o avanço da explicitamente rejeitado por Locke. Ainda que muito menos ele
estivesse disposto a abolir o conceito teoló gico da alma, sua preocu •s*
explicasã o científica cada vez mais expulsava a explicasã o religiosa e, para
bá sica era com o processo individual de compreensã o; por isso, passava a
usar a expressã o de Max Weber, ao “mundo desencantado” cada vez mais se
impunham modelos de ordem determinista: destacar o conjunto de opera õ es cumpridas no plano da experiência.
s
Mais do que o antagonismo de um pensador a outro, o confronto de
Em vez de reforçar uma teologia natural, o sistema de Maupertuis vem Locke com o legado de Descartes nos apresenta a diferensa de ê nfase
fornecer argumentos ao naturalismo, se nã o ao ateísmo. Esta viragem
que percorre as tradi- çõ es intelectuais dos sé culos XVII e XVIII. Ao
dialética será ainda mais acusada em seus trabalhos de genética. A
histó ria ulterior de seu princípio da menor açã o, limitado ã dinâ mica e dedutivismo e apriorismo de Descartes se contrapõ e o destaque da
privado por Lagrange de toda signifícasa firialista, devia desenvolver experiê ncia e da indusa . Os meios de captaçã o humana da natureza
os germes deterministas que continha. Nã o podemos nos impedir de nã o sã o dnteríores ao indivíduo, como se inferia da concepção das
aproximar esta evolusa inesperada da que, paralelamente, sofre a as- idéias inatas; ao contrário, esses meios
tronomia newtoniana, do deísmo do Newton para o ateísmo de
Laplace. (...) Laplace poderá demonstrar que as variasõ es seculaies dos
’ Sobre o desenvolvimento dos estudos sobre o homem, na primeira metade do século
planetas, XVIII, cf. Moravia, S.: 1970, espec. pp. 26-33.
se confundem com o pró prio indivíduo, pois sã o os seus pró prios e i I}ã .
liená veis sentidos. Apesar do simplismo da velha frase “nada se conhece i94
que antes nã o tenha passado pelos sentidos”, provisoriamente podemos
considerá -la o lema do experimentalismo do século. Na formulaçã o
precisa de Cassirer:
í?7
A ciência não só abandona ã ignorante sutileza dos séculos bárbaros estes yp8
objetos imaginários de especu1aSões e de disputas, que ainda ressoam
nas escolas, quanto se abstém mesmo de tratar questões cujo objeto
pode ser mais real porém cuja solu5ãO não é mais útil ao progresso
de nossos conhecimentos (idem, ibidem)
(...) Pelo espírito e pelo gosto, nossa literatura do século XVIII será toda
cartesiana. A exclusiva preocupasã o com as idéias, a idolatria da razã o (...),
a procura obstinada da distinçã o e da clareza nos pensamentos, o espírito
de abstrasao e de raciocínio em excesso, a sequidã o precisa da frase
admiravelmente nítida, tudo isso bem parece ser o ideal literá rio
correspondente ao método de Descartes (Lanson, G.: 1896, 81)
Uma frase nã o vale sená o pelo que propicia de conhecimento: é tanto mais
perfeita quanto menos provoque a imagina sao e a sensibilidade, cujo
despertar introduziria a confusã o nas n•sõ es das coisas e perturbaria
o exercício do julgamento (Lanson, G.: op. cit., 80)
Uma só demonstrasáo me toca mais que cinqüenta fatos. Grat Is à ex- trema
confíansa que tenho em minha razão, minha fé não está à mercê do primeiro
saltimbanco. (...) Deixem todas essas ilusões e raciocinemos. Estou mais seguro
de meu julgamento que de meus olhos (idem, 41)
Senhor Holmes, retornou Saunderson, eu lhe repito que tudo isso não é tão
belo para mim quanto para o senhor. Mas fosse o mecanismo animal tão
perfeito quanto o senhor pretende e que eu bem o quero crer, pois o senhor é
um homem honesto e incapaz de me enganar, que tem ele de comum com um
ser soberanamente inteligente? (idem, 119)
Porque nã o tern culpa em seu defeito, o cego nñ o pode aceitar a
separada da utilidade” (Diderot, D.: 1749, 83) . Dessa maneira, o Saun-
belezã do mundo, pressuposta pelo reverendo. Os acidentes que ferem e
derson que Diderot apresenta nã o só retirava dos creates uma das provas
persegue os homens, sem nenhuma responsabilidade deles, parecer
tianqü ilizadoras da prese>sa de seu Dens, como dessacralizava a beleza.
demonstrar que a beleza e a suposta perfe'sao do murido nã o
O belo nã o passa de um Rufus eocis se por ele nã o entendemos uma das
testemuham Sua pre- sença. Tal defesa da Providência nã o passaria de
formas do ú til. Se a contestasã o da divindade feria teó logos e devotos, a
um ato de prèsun Õ Çi €• irisensibilidade das criaturas hem integradas. Sem
quem a segunda atacaria? Nã o menos que a sociedade aristocrá tica. Isso
o reconhecer, elas assim cometem um ato de impiedade: considerar o
porque, embOra na vida prá tica, a aristocracia passasse por cima dos
criador responsá vel por um I natureza nem perfeita, nem justa, nem
regulamentos que a impediam de dedicar-se ă s pouco nobres atividades
tampouco sempre bela. Assim como o selvagem de Montaigrie, o cego de
do comércio e da indú stria, nã o deixava de conceber o prazer da beleza
Diderot demonstra que a Eu- ropa institucionalizada nã o é exemplo, riem
como um diver- timento refinado; o contrá rio do nec-otium; um ó cio da
para o resto do murtdo, mem para o pensamento. Por Saunderson, a
corte. Note-se que Diderot nã o é da família de Voltaire: suas formula soes
natureza reconhece suas falhas. O mundo se desencanta; a natureza nã o
nã o sã o apenas ou sobretudo engenhosas. Segundo as palavras que
atesta nada, senã o que seus corpos e pertences sã o mecanismos.
empresta ao matemá tico cego, quando afastamos a neblina metafísica, a
Ø_uase vinte anos depois, no Entretíen entTe D'Alembert ct Diderot, a
clareza destaca a verda- deira disposiçã o da beleza. Ná o menos que as
contestaçã o da divindade cristã assumirá outra volta, nã o menos ímpia:
formas naturais, as formas
Corifesso que um ser que existe em alguma parte e que não da arte, para que sejam belas, precisam ser ú teis. Temos assim constituído
corresponde a ponto algum do espas ; um ser que é inextenso e que um primeiro quadro: a indissolú vel uniã o que se estabelece entre razã o e
ocupa parte da extensão; que está inteiro em cada parte desta natureza relega ao mesmo plano de lixo intelectual a idéia de fé, as provas
extensão; que difere essencialmer te da matéria e que lhe está da existência de um ser superior, atento ao desenrolar de sua cri•sã o e o
unido¡ que a segue e que a move sem se mover; que age sobre ela e que princípio da beleza como constituído pela harmonia de suas partes. Em vez
sofre todas suas vicissitudes;
dessas velharias, a importâ ncia da utilidade. Mas nã o só . Antes mesmo do
um ser do qual não tenho a menor idéia; um ser de uma natureza assim
destaque da utilidade, aponta a relevâ ncia da ordem. Contemporâ neo do
contraditória é difïcil de admitir (Diderot, D.: 1769, 257)
nascimento do evolucionismo e participante em seu debate, Diderot nã o
só postula, intuitivamente, a idéia de selesã o natural (ct. Diderot, D.:
Se a passages testemunha que a questã o do criador nã o deixara de pre-
1749, 122), quanto dramatiza as snas conseqü ências. Saunderson,
ocupar o autor, nã o prova menos que a natureza dela já se autonomizara.
sensibilizado por seu defeito, apenas por inglesa polidez admite que o
Contraface necessá ria do primado da razã o, a natureza, ainda em
mundo obedece ă
obra de juventude, a Lettre sttr let aveugles, oferecia a Diderot a
ordem. Mas essa cordialidade perde seu sentido se mergulharmos no tempo
oportunidade de introduzir uma nota relevante sobre sua idéia da beleza.
e nos permitirmos imaginar a época em que as espécies ainda nã o estavam
O filó sofo faz Saunderson dizer que a cegueira nã o lhe impedia de
constituídas; sentimos entã o la matière se mouvoir et le chaos se débTOttillei.
compreender muito bem que é a simetria. Mais do que isso: possibilitava-
lhe corrigir a concep Õ o feita pelos que nã o sofrem sua carência. Ao passo Pelas palavras que empresta a seu personages, Diderot revela a
perple- xidade com que participava no debate sobre a evolusã o.
que, entre as criaturas normais, a simetria é considerada uma certa
disposiçã o dos objetos que motiva o recorihecimento do belo, sua Incorporando-se a seu personagem, faz com que ele superponha a
deficiência lhe ensina conclusã o diversa: “A beleza, para um cego, nã o imagem do caos remoto ao princípio da ordem a que, em seu estado
passa de uma palavra, quando está presente, obedece a natureza. Substituiçã o de princípios que nã o chocava
ao cego de Cambridge:
@_ue é este mundo, senhor Holmes? Um conjunto sujeito a revolusõ t s,
de Maupertuis, igualava “a desordem na natureza” nã o só ã destru'sao de “a
de que todas indicam uma tendência contínua à destruiSÕ o; uma
base da filosofia”, quanto “da pró pria existê ncia de Deus” (Diderot, D.: 1753,
sucessã o rá pida de seres que se sucedem, se estimulam e se dissipam;
uma simetria passageira; uma ordem momentâ nea (Diderot, D.: 1749, 229). A incidê ncia religiosa do problema só deixará de incomodá -lo em 1769,
123) quando a hipó tese de Deus será substituída pela hipó tese da sensibilidade,
dividida entre ativa e passiva, tomada como “qualidade geral e essencial da
Tal caó tica dinâ mica nã o deixaria de impressionar ao pró prio Didero ,
que via na existência de uma ordem, desde já no mundo físico e t maté ria”. Ao vislumbrar esse caminho explicativo, Diderot podia perceber
bio ló gico,
a cond'sã o necessá ria para a filosofia e a ciência: que o postulado de uma ordem inerente ao mundo da vida nã o o deixava à
mercê de uma necessá ria confissã o religiosa. Mas, em troca, outro risco se
adiantava:
(...) Se o estado dos seres se mostra em uma perpétua vicissitude; se a com que o autor reconhecesse nã o podermos, de antemã o, prescindír da
natureza está in feri, apesar da cadeia que liga os fenô menos, nã o há hgura de um criador. Diderot explicitamente o concedera em sua fase deísta.
filo- sofia. Toda nossa ciência natural também se torna tã o transitó ria
Discutindo as hipó tese.e
quanto as palavras. O que tomamos como a histó ria da natureza nã o é
senã o a histó ria muito incompleta de um instante (Diderot, D.: 1753,
240-1)
Na moral, não há senão Deus que deva servir de modelo para o homem; contraste com
nas artes, nã o há senã o a natureza (Diderot, D.: 1751, 234) sua extrema audá cia no campo da filosofia da ciência ou no enfrentamen-
to com os teó logos, no plano sociopolítico Diderot, em princípio, prefere
Já nã o será ocioso perguntarmo-nos até que ponto tal confiaria T¡¿t negar qualquer tetos predefinido. Como se temesse repetir os sofismas do
natureza nã o era uma transferência da combatida fé cristã . A supersti5@ genebrino, de que ele pró prio seria a primeira vítima (cf. Diderot, D.: 1774,
316), o autor repele as afirma sõ es peremptó rias. Assim o branco religioso,
engendradora dos cultos ritualizados nã o teria sido apenas substituída pelo
interlocutor de Orou, defende a prá tica da interdiçã o do incesto das críticas
destaque do natural? A questã o poderia ser avançada e logo chegar-se a uma
resposta se nã o houvesse sido proposta como modo de nos aproximarm s lansadas pelo anciã o nativo. Mas nem seus argumentos sã o concluden-
de um autor da complexidade de Diderot. Pois, se é justoassinalar que uma tes, nem Orou pretende provar a superioridade das prá ticas de seu povo.
das conseqü ê ncias da solidariedade entre razã o e natureza era provocar a
“ Contenta-se, ao invé s, em postular uma moral pragmá tica — o bem geral
e a utilidade particular nã o seriam alcan ÍÍveis pela ado5ã o de leis estra-
subordinasao da produçã o artística ao modelo da natureza, logo é preciso
acrescentar que ainda estamos longe de distinguir toda a problemá tica aí nhas aO povo, importadas apenas porque foram julgadas superiores. Muito
embora essa opiniã o pudesse ferir os valores dos missioná rios cristã os,
envolvida. Em poucas palavras, a hipó tese da transpos›sao do modelo reli-
ná o parecerá curiosa e estranha em um acérrimo defensor da natureza,
gioso seria absolutamente plausível caso do destaque da natureza resultasse
como Diderot? Se mesmo o religioso admitia, na discussã o com o chefe
uma concepsao determinista. Já vimos, entretanto, que, embora sem propor
nativo, que o incesto talvez nã o contrariasse a natureza, nã o seria esse
uma concepsao completamente distinta, Diderot dela se afastara. (O cará -
argumento suhciente para que o filó sofo entã o tomasse o suposto partido
ter ainda incompleto em que se encontra esta exposisa nos impede de ir
dos taitiariOS? rotas, para Diderot, os princípios não são dogmas. E, sendo
adiante. Suspendamos nosso juízo e prefiramos continuar o levantamento
ele ainda alguém simultaneamente dotado de espírito imaginativo e de
dos outros pontos necessá rios).
espírito positivO (Cf. Groethuysen, B.: 1913, 322 ss.) , tornava-se difícil,
Outra conseqü ência da solidariedade da razã o com a natureza con- senã o impossível, sem- pre manter a mesmíssima posisa . A flexibilidade,
cerne ao problema da histó ria. Vejamos como a questã o se apresenta em
a explorasao de novos â ngulos, a indicasao de outro caminho tomam-se
Diderot. Neste sentido, destaca-se o SitQQlérnent au vo yage de Bougainville,
por isso freqü entes nas
escrito provavelmente em 1773. Nesta obra, o autor considerava as reflexõ es
pá ginas de Diderot. Estes tras permanecem na segunda parte do 8iiQ-
acerca da vida taitiana que o capitã o Bougainville apresentara ao retomar plément. Saem de cena o religioso e o taitiano, sendo substituídos por dOÍS
de seu périplo pelo mundo. O tema do confronto da moral européia com
europeus, A e B, que comentam o primeiro diá logo. Fica agora ainda mais
os costumes de um povo primitivo nada tinha de inédito. Acentuando a
clara a recusa de Diderot de confundir a natureza com a sede do utó pico.
liberdade sexual dos selvagens e sua moral simples, o relato de Bougainville
Observando o interlocutor B que a histó ria ensina serem as nasõ es antigas
pareceria um estímulo para a exaltasao do estado de natureza. Porém nã o e
é essa a orientasao que Diderot lhe imprime. modernas sujeitas a três tipos de có digos, o da natureza, o civil e o
religioso, “que jamais estiveram de acordo”, seu interlocutor supõ e que
daí se deva deduzir “que, se julgamos necessá rio conservar todos os três,
é preciso que os dois ú ltimos sejam apenas có pias rigorosas do primeiro, o
qual trazemos
gravodn.s rio fundo de nossos coraçõ es” (Diderot, D.: 1773, 505) . pE s t e q B, de sua parte, se cala; ficaríamos em dú vida se esta era, de fato, a po-
d
é e,ntretanto, o pensamento de B: si5ã o de Diderot se, sem mais o recurso de interposto personagem, o mesmo
Isso não é exato. Ao nascer, náo trazemos senão uma semelhança de argumento nã o reaparecesse na Ré{Rtntíon de l'ouvrage d'Helrétiiis:
organização com outros seres, as mesmas necessidades, a inclinação
para os mesmos prazeres, uma aversão comum pelos mesmos sofrimentos Preferes portanto o estado selvagem ao estado policiado? Não. A popula-
(idem, ibidem) sa da espécie vai sempre crescendo nos povos policiados e diminuindo
nas nações selvagens. A duração média da vida do homem policiado
A resposta é intrigante. Por que, afinal, nã o lhe pareceria correto fund excede a durasa média da vida do selvagem. Tudo está dito (Diderot,
ar D.: 1774, 411)
os có digos da sociedade humana na semelhança de organizaçã o e nas incli-
nasõ es comuns? Sem responder diretamente, mais adiante B explica que nã o
Em vez, por conseguinte, de ou seguir a lisã o de Rousseau ou de se
seria o adequado porque “vícios e virtudes, tudo está igualmente na nature-
lhe opor, o SuQQlément prefere uma linha de moderaçã o, em que nã o se
za” (idem, 507) . O estado de sociedade, por conseguinte, nã o é responsá vel
negam os pró s e os noutras de cada posis* . Em face da pergunta de A:
pelo surgimento dos vícios: també m a eles somos naturalmente conduzidos. É
“Q_ue fa- remos, portanto? Retomaremos à natureza? Submeter-nos-emos
certo, acrescenta, que a vontade de posse do outro nã o é dada pela natureza.
à s leis?”, seu parceiro responde:
No entanto, desde que essa vontade se introduziu, os vícios e as virtudes se
sofisticaram e se transformaram em “virtudes e vícios imaginá rios”: Falaremos contra as leis insensatas até que sejam reformadas; e, enquanto
esperamos, nos submeteremos. Aquele que, por sua autoridade privada,
Tão logo a mulher se tornou a propriedade do homem e o gozo furrivo
foi encarado como um roubo, viu-se o nascimento dos termos pudor, infringe uma lei má , autoriza todos os outros a infringir as boas. Há
discrição, conveniência; vícios e virtudes imaginárias (idem, ihidem) menos inconveniente em ser louco com os loucos do que em ser sá bio
sozinho (idem, 515)
Ao nascemos, somos crisá lidas do que seremos. A sociedade apenas
nos desenvolverá . Nã o se trata, por isso, de optar entre uma sociedade pró - O mesmo Diderot a quem o determinismo mecanicista desagrada, se
xima à natureza e outra, civilizada. De qualquer modo, no diá logo referido abstém de propor modelos carismá ticos. Acatar a diversidade tem como
a balans• ainda se inclina a favor da primeira. Ante a pergunta “mas, enfim, contraface o respeito pelas palavras que a declaram. Assume por isso uma
diga-me, é preciso civilizar o homem ou abandoná -lo a seu instinto?”, B nã o linha política que, de imediato, o tornará menos influente que Rousseau
hesita na resposta: ou Voltaire.
Sumariamente descrita a discussã o sustentada no Supplément, voltemos
Se tiveres o propó sito de ser um tirano, civiliza-o; envenena-o o à questã o que a motivou. Disséramos que a solidariedade entre a razã o e
melhor que possas com uma moral contrá ria à natureza (idem, 511-2)
a natureza resultava da ausência de tetos como, no campo sociopolítico,
era lida a primeira; que, daí, provinha o problema específico da histó ria.
Pareceria entã o que o leitor era induzido a tomar o partido de Orou. Mas
Q_ue entá o nos propicia o exame que empreer demos? Nã o a resposta mais
à declaraçã o que acabamos de transcrever logo o outro personagem
esperá vel. Ela simplesmente seria: porque nã o se contextuliza a razã o, nã o
acrescenta:
há lugar para a histó ria. Este é tã o-só um dos lados da resposta. Assim, ao
Não duvido contudo que a vida média do homem civilizado é mais encontrarmos, no início do $upplément, Orou a defender o bem geral e o
longa que a vida média do homem selvagem [idem, 513) interesse particular, contra a pretensã o do emprego da lei abstratamente
superior, poderemos concluir que o personagem afasta a razã o abstrata, i."e„ aplicarem leis e
por si investida da capacidade de declarar o bem e a utilidade apropriadas. A
continua ã o do diá logo confirma a distâ ncia que Diderot guarda da
tradiçã o
do abstracionismo cartesiano. Pois os postulados de Descartes terminavam
por excluir a histó ria:
ueres saber a histó ria resumida de quase toda a nossa miséria? Ei-la.
Existia um homem natural: dentro deste homem, introduziu-se um
homem artificial; e criou-se na caverna uma guerra contínua que dura
toda a vida (Diderot, D.: 1773, 510-1)
3. RA ZÃO CO M O I N ST RU M EN T O