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O IMPÉRIO ROMANO

E SUA DIVERSIDADE RELIGIOSA


Érica Cristhyane Morais da Silva
Gilvan Ventura da Silva
Roberta Alexandrina da Silva
Organizadores

O IMPÉRIO ROMANO
E SUA DIVERSIDADE RELIGIOSA

Vitória, 2019
Editora filiada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu)
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Diretor da Edufes Wilberth Salgueiro

Conselho Editorial Carlos Roberto Vallim, Cleonara Maria Schwartz,


Eneida Maria Souza Mendonça, Fátima Maria Silva,
Giancarlo Guizzardi, Gilvan Ventura da Silva,
José Armínio Ferreira, Josevane Carvalho Castro,
Julio César Bentivoglio, Luis Fernando Tavares de
Menezes, Marcos Vogel, Rogério Borges de Oliveira,
Sandra Soares Della Fonte

Coordenador Editorial Douglas Salomão


Secretário Josias Bravim

Preparação e Revisão de Texto George Vianna


Projeto Gráfico e Diagramação Samira Bolonha Gomes
Capa
Revisão Final Jussara Rodrigues
sumário

apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

prefácio
Um Império, muitas religiões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Fábio Duarte Joly

introdução
A atualidade do estudo das religiões antigas no Brasil:
A vida de Cristo nas mãos de Adalton Fernandes Lopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
André Leonardo Chevitarese

parte i
Rito, mito e magia no Principado

Di Penates, Eneias e Augusto: mito e religião na Eneida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55


Claudia Beltrão da Rosa

Uma análise do ritual expiatório à luz de Ab Vrbe Condita, de Tito Lívio . . . . . . . . . . . 73


Luciane Munhoz de Omena e Suiany Bueno Silva
O crime de magia no Principado romano:
considerações sobre crenças, leis e acusações de práticas mágicas . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Semíramis Corsi Silva

Crimen magiae: a legislação romana contra a magia


no contexto do julgamento de Apuleio de Madaura (séc. II d.C.) . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Belchior Monteiro Lima Neto

parte ii
O sagrado e seus lugares de devoção

Honra e vergonha: debates sobre a sexualização dos


espaços no Mediterrâneo Antigo e o locus da Carta aos Gálatas 3, 28 . . . . . . . . . . . . . 137
Roberta Alexandrina da Silva

O paganismo na Antiguidade Tardia: o Serapeum,


o templo alexandrino de Serápis, história, historiografia
e fontes documentais sobre sua destruição, em 392 d.C. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Érica Cristhyane Morais da Silva

Identidades, espaços comunitários e poderes rabínicos


tardo‑romanos em fontes talmúdicas (séc. IV-V d.C.) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Renata Rozental Sancovsky

A retórica dos espaços no Império cristão:


as construções religiosas de Justiniano na literatura tardo-antiga . . . . . . . . . . . . . . . 197
Lyvia Vasconcelos Baptista
parte iii
Aspectos da cristianização na Antiguidade Tardia

Combatendo em nome da fé:


Constantino e a campanha pelo dominium mundi (312-324 d.C.) . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Gilvan Ventura da Silva

Constantina Deo: florilégio de uma existência.


Textos, monumentos e hagiografia cristã (séc. IV d.C.) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
Silvia M. A. Siqueira

Memória e (re)criação de sentidos: a sacralização do poder


imperial no Adversus arrianos libri, de Hilário de Poitiers (séc. IV d. C.) . . . . . . . . . . . 249
Ana Teresa Marques Gonçalves e Fernando D. Teodoro Moura

Da coxia ao palco da política: o cristianismo, sua ideologia


e a partilha da autoridade na romanidade tardia (séc. IV-V) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Renan Frighetto

sobre os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293


apresentação

Na atualidade, tanto em termos do senso comum quanto da produção historiográfica,


ainda marcada, em certos casos, pela existência de lugares de memória que se revelam
dotados de notável resiliência, o Império Romano é por vezes considerado uma enti‑
dade unitária e relativamente harmônica, perspectiva que se exprime em múltiplos
domínios, como o da política, das relações sociais e da cultura. No caso das províncias
ocidentais, por exemplo, a “romanização”, isto é, a adoção de valores e costumes roma‑
nos pelas populações locais, é tomada quase como sinônimo de “civilização”, o que obs‑
curece em larga medida a nossa compreensão do processo que conduziu à emergência
do Império, pois esse processo é amiúde interpretado como uma aculturação voluntá‑
ria e irresistível das populações locais e pouco cultivadas, que manifestariam uma reve‑
rência e uma pronta adesão à cultura latina, como se pode constatar mediante a ênfase
dos especialistas em religião romana na prática da interpretatio, ou seja, na assimilação
sincrética entre as divindades autóctones e as latinas, sempre no sentido de valorizar
os atributos destas últimas. No que diz respeito ao Oriente, a capacidade de absorver
as maravilhas do helenismo e potencializá-las dentro de um império rico e territorial‑
mente vasto cativava as elites orientais, que viam no domínio de Roma a possibilidade
de afirmar-se na bacia do Mediterrâneo.
Essa imagem de um Império Romano unitário e coeso tem sofrido, ao longo das
últimas décadas, severas críticas, uma vez que a ideia da romanização como um processo
contínuo e unilateral tem se mostrado insustentável, em especial quando agregamos às
fontes textuais os dados provenientes da cultura material, o que nos coloca diante de uma
realidade absolutamente plural e híbrida. Se, por um lado, ocorre uma assimilação das

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práticas culturais latinas pelos provinciais, o movimento inverso é igualmente verda‑
deiro, o que implode qualquer possibilidade de falarmos numa identidade romana stricto
sensu. De fato, as cidades apresentavam uma população reduzida demais diante daquela
rural, e, nos cantões do Império, as massas camponesas não raro permaneceram alheias
às vicissitudes da política imperial. Além disso, temos evidências de que mesmo nos cen‑
tros urbanos, melhor servidos de sistemas de comunicação, o impacto da romanização foi
menor do que se costumava supor. Assim, a ideia de romanização se revela hoje muito
mais uma utopia civilizadora do que algo empiricamente verificável, razão pela qual o
alcance do poderio romano e sua capacidade de manter sob seu comando diversas áreas
são cada vez mais percebidos como acontecimentos limitados, havendo diversos espaços de
autonomia local. Muito embora o Império Romano seja um notável exemplo de unidade
político-militar, a estrutura social, por sua vez, não era homogênea. O que a historiogra‑
fia costuma denominar como sociedade romana é apenas uma abstração ou a generaliza‑
ção, para o conjunto das províncias, de uma realidade válida, talvez, apenas para Roma.
As clivagens socioculturais separavam cidadãos e não cidadãos (até o século III), livres
e não livres, ricos e pobres, letrados e iletrados, proprietários de terra e trabalhadores
manuais e, desde o início do século I, pagãos e cristãos, entre outros grupos. Desse modo,
até a época tardia não havia uniformidade jurídica nem tampouco uma legislação única
para todo o Império, mas sim uma multiplicidade de direitos, estatutos e posições sociais.
Quando observamos a história do Império em seu conjunto, é impossível ignorar
certa tendência à uniformização política e cultural. Com a instauração do Principado de
Augusto e, mais ainda, a partir das reformas administrativas de Cláudio, vemos o poder
imperial se organizar pouco a pouco em torno do comitatus, ao mesmo tempo que o centro
de poder se desloca da Península Itálica rumo às províncias. Em outro sentido, temos uma
ampla integração econômica promovida pelo Estado, bem como a unificação progressiva
dos códigos jurídicos, como vemos sob Diocleciano e sucessores. No plano da educação
formal, observamos igualmente uma padronização dos currículos, expressos em grego e
latim. Já no plano religioso, o fenômeno é tão ou mais evidente, com a progressiva afir‑
mação do monoteísmo cristão associado à ideia de um império unitário, inovação pró‑
pria da Antiguidade Tardia, cujo principal artífice foi Constantino. Ocorre, no entanto,
que todos esses fatores de unidade não podem ser tomados de modo absoluto, uma vez
que, no subterrâneo da sociedade imperial, atuaram desde sempre forças centrífugas que
confrontavam, com suas táticas cotidianas, a estratégia das autoridades imperiais para

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garantir o controle sobre o orbis romanorum. Um conjunto significativo dessas forças de
dispersão responsáveis por romper com o discurso normativo do poder era constituído
pelos distintos sistemas religiosos em interação de um lado a outro do Mediterrâneo –
de extração pagã, cristã, judaica ou maniqueísta –, pois, para além de quaisquer rótu‑
los que possamos forjar, por vezes replicando de modo descuidado a visão de mundo e
os preconceitos da elite pagã ou dos Padres da Igreja, prevalecia uma realidade desorde‑
nada, dinâmica, híbrida, caracterizada por uma associação de crenças e práticas das quais
o gnosticismo cristão talvez seja o principal expoente.
Este livro que o leitor ora tem em mãos representa a modesta contribuição de um
grupo de pesquisadores para as investigações que têm por finalidade compreender a
diversidade do Império Romano, em geral, e a pluralidade dos sistemas religiosos anti‑
gos, em particular. Agrupados em três eixos (Rito, mito e magia no Principado; O sagrado
e seus lugares de devoção; e Aspectos da cristianização na Antiguidade Tardia), os textos que
compõem a coletânea têm a pretensão de oferecer ao público um panorama das crenças
e práticas religiosas que floresceram durante os cerca de quinhentos anos de vigência da
dominação imperial romana na bacia do Mediterrâneo, numa perspectiva de valoriza‑
ção da diversidade, do multiculturalismo e do diálogo. Nesse sentido, esperamos trazer
mais elementos para o debate que hoje trava a sociedade brasileira em torno da importân‑
cia de se preservar a livre opção de credo e de se estimular a tolerância religiosa, assun‑
tos acerca dos quais o estudo da experiência romana pode se revelar bastante instrutivo,
como pretendemos demonstrar.

Vitória, ES, agosto de 2018


Os organizadores

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prefácio

Um Império, muitas religiões


Fábio Duarte Joly

O tema do presente livro – a diversidade religiosa no mundo romano – está em perfeita


sintonia com os desdobramentos atuais dos estudos sobre o Império Romano, que, nas
palavras de Norberto Luiz Guarinello (2008, p. 16), “parece-nos hoje muito mais diver‑
sificado e heterogêneo do que nos parecia vinte anos atrás. Representa um curioso pro‑
cesso de centralização política por meios militares, seguida por uma progressiva unificação
econômica e cultural que, contudo, jamais se realizou plenamente”. Por conseguinte, par‑
te-se agora do princípio que o cristianismo não evoluiu como um fenômeno religioso
original a partir do qual o Império Romano se transformou, e sim que o cristianismo foi
consequência da transformação do Império até a Antiguidade Tardia.
Nesse sentido, a cultura cristã não se explica fora dos quadros mais amplos de uma
cultura greco-romana que lhe deu forma, importando assim destacar o processo de ins‑
titucionalização do cristianismo, de ramificação do judaísmo para religião de Estado a
partir do século IV, e as consequências desse processo em termos de geração de novas
identidades, convivências com outras religiões e impacto nos padrões de urbanismo nas
diversas regiões do Império. O interesse recai sobre a sociedade multicultural da Anti‑
guidade Tardia, chamando a atenção antes para a diversidade e interação das tradições
culturais cristãs e “pagãs” do que exclusivamente para suas diferenças.
A própria relação entre o cristianismo e o judaísmo era, em grande parte, de com‑
plementaridade, de modo que inicialmente o cristianismo seria apenas outra maneira
de ser judeu. Embora seja difícil distinguir algumas práticas cristãs daquelas judaicas,
parece que há uma peculiaridade diante dos cultos cívicos romanos na apresentação que
o Novo Testamento faz dos grupos cristãos trocando notícias e saudações, discutindo

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questões de crença e interpretação das Escrituras e coletando dinheiro para auxílio de
outros cristãos. A Igreja cristã, a ekklesia, funcionaria como uma família alternativa, cal‑
cada no modelo da família extensa greco-romana, oferecendo suporte material e espiritual
a seus membros1. O cristianismo ofereceria, então, uma combinação distinta de auxí‑
lio mútuo, baseada numa ética compartilhada e num texto sagrado, inclusive com cone‑
xões mediterrânicas, que se estendia a mulheres, escravos e pobres (CLARK, 2004, p. 24).
Os grupos cristãos também se distinguiam pelo ataque a teologias rivais, muitas vezes
servindo-se do instrumental da retórica romana. Denunciava-se a religião romana tra‑
dicional e o judaísmo, mas também interpretações rivais dentro do próprio cristianismo.
A própria ortodoxia emergiu a partir do debate com as heresias, constituindo um
aspecto que Joseph Bryant (1993, p. 303) chamou de “dinâmica seita-Igreja” no con‑
texto de expansão do cristianismo no Império Romano. Bryant serve-se da distinção
entre seita e Igreja elaborada por Max Weber. Para este sociólogo, a seita é uma asso‑
ciação voluntária composta por aqueles que estão plenamente qualificados de um ponto
de vista religioso‑carismático, uma ecclesia pura. Como uma congregação de indiví‑
duos pessoalmente santificados, a seita é animada por padrões “heroicos” de religiosi‑
dade, rigor ascético e submissão a preceitos de fé. Trata-se de um grupo de eleitos por
Deus. Em contrapartida, a Igreja é uma organização em que a santidade carismática é
objetivada não em membros individuais, mas na própria instituição, na ordem clerical
e nos sacramentos. A Igreja pressupõe uma autoridade eclesiástica e disciplina. Nesse
processo de transição da seita à Igreja assistiu-se ao desenvolvimento de um ritual
litúrgico e instituição de sacramentos, uma gradual cristalização da ordem clerical, o
despontar de uma literatura cristã e a formação de um cânone de Escrituras, a articu‑
lação entre teologia e dogma e, por fim, os confrontos com heresias e cismas. Os anos
finais do século II testemunharam um aumento constante do número de adeptos do
cristianismo, uma crescente institucionalização dos cargos e rituais eclesiásticos, uma
hostilidade aos meios pagãos e aumento da perseguição religiosa. Essa conjuntura teria
acelerado a evolução interna do movimento cristão, levando suas comunidades a dis‑
sensos quanto a questões de autorrepresentação e razão existencial. Nesse momento,
já se observaria uma transição para uma maior afirmação da Igreja no século que pre‑
cedeu à conversão de Constantino. É a aliança entre Estado e Igreja que conferiu a

1  Ver, a respeito, Balch e Osiek (2003).

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passagem crucial nesse sentido, e este é um tema que alguns capítulos do livro bus‑
cam tratar, seja a partir de estudos de caso, seja pelo oferecimento de interpretações
de processos na longa duração.
Foi Constantino quem provocou a reunião do Concílio de Niceia, presidiu-a e inter‑
veio para definir o que devia ser a ortodoxia. Posteriormente, Teodósio confirmou o
credo de Niceia, impondo-o tanto aos laicos como aos clérigos. O próprio poder clerical
e a estrutura de funcionamento da Igreja desenvolveram-se pelo modelo civil da organi‑
zação imperial. Para Yvon Thébert (1988), a intervenção imperial no domínio religioso
visava à manutenção da ordem social, e daí os embates dos imperadores com seitas cris‑
tãs que se desviavam da ortodoxia conciliar. Igualmente, a integração das autoridades
religiosas no serviço do Estado e sua participação ativa na redefinição das relações sociais
e da natureza do poder teriam ocorrido sem perturbação do status quo, uma vez que os
bispos – figuras centrais na hierarquia eclesiástica – faziam parte das classes dominantes
do Império, em especial a partir do século IV, ou, quando isso não acontecia, ao menos
partilhariam uma cultura comum.
A interpretação de Peter Brown sobre este tema da ascensão do cristianismo foi mar‑
cante no debate historiográfico (eis por que o autor irlandês é uma menção frequente nos
capítulos deste livro que o leitor tem em mãos). Brown explica essa ascensão, em especial,
pelo surgimento de uma nova aristocracia sob Constantino, composta por grupos sociais
das províncias, mormente militares e funcionários imperiais, que deslocam do poder a
antiga aristocracia senatorial italiana. Em The world of Late Antiquity (1971), escreveu que a

facilidade com que o cristianismo se impõe às altas classes do Império Romano,


no século IV, é devida à revolução que coloca a corte imperial no centro da socie‑
dade do “homem novo”, o qual acha comparativamente fácil abandonar as crenças
conservadoras pela nova fé dos dominadores (BROWN, 1972, p. 29).

Nesse contexto de competição entre novas e antigas elites, a cultura clássica era dis‑
putada por cristãos e pagãos como um patrimônio que legitimava suas posições sociais,
e daí a disputa por qual seria a verdadeira paideia, a cristã ou a pagã. Para Brown, o cris‑
tianismo está intimamente ligado às modificações sociais do século III que levaram à crise
do modelo cívico tradicional, uma crise situada num progressivo afastamento entre ricos
e pobres nas cidades.

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A crise do século III leva os notáveis locais a não mais direcionarem suas fortunas
para a vida da cidade, por meio do evergetismo, mas para suas necessidades privadas
de prestígio. A Igreja, por sua vez, canaliza para si os anseios da população das classes
médias e baixas ao ocupar o lugar deixado vazio pelos notáveis, passando a organizar a
vida urbana (festas religiosas, redes de solidariedade, enterros). Por outro lado, a Igreja
não nega a cultura e modo de vida das elites, colocando-se como capaz de absorver toda
a sociedade, mas agora a partir de um deslocamento da fonte de poder. O “homem de
Deus” torna-se a fonte de autoridade. O Império Romano transforma-se numa comuni‑
dade de cidades; nestas, os bispos cristãos, os monges e os anacoretas aparecem como um
ponto de referência para os indivíduos. Além da mudança na composição das elites, um
outro pano de fundo dessa transformação foi a reorientação do poder imperial ante as
elites locais. Se até o século II o Império manteve-se governado por uma forma de con‑
senso entre essas elites e o imperador, que pouco intervinha diretamente nas cidades e
mantinha a captação de impostos em patamares aceitáveis, a partir do século III a inter‑
venção imperial se fez mais incisiva, com aumento de impostos e imposição de represen‑
tantes diretos do Estado na política das cidades. Isso contribuiu para o enfraquecimento
das elites locais, que deixaram de competir entre si nos quadros da cidade, em demons‑
trações de liberalidade pública e em construções e festivais religiosos, para se recolhe‑
rem ao âmbito privado, buscando, quando necessário, vínculos diretos com o imperador.
Esta tendência de uns poucos membros da comunidade local gozarem de um status pri‑
vilegiado a expensas dos demais permitiu a ascensão de líderes religiosos, tanto cristãos
como pagãos, que se colocavam como interlocutores públicos. Em suma, ao lado dos “ami‑
gos do imperador” surgiu um grupo dos “amigos de Deus”, cuja legitimidade do poder
teria uma sanção divina. Na visão de Peter Brown, Constantino como que incorporaria
estes dois polos: por um lado, foi um autocrata responsável pela maior intervenção esta‑
tal na sociedade tardo-antiga; por outro, sua conversão tornou-o um protegido de Deus.
Enfim, numa sociedade em que prevaleciam laços de amizade e patronato como elemen‑
tos de coesão social, a emergência de homens e mulheres que clamavam relações próxi‑
mas com patronos invisíveis significou que uma nova forma de poder estava disponível
aos habitantes das cidades mediterrâneas.
Como sublinhou Alexander Murray (1983), em resenha da obra de Brown, em seus
livros sobre a ascensão do cristianismo predomina uma visão funcionalista, no sentido
de que o conteúdo da crença religiosa é uma função de situações sociais. O surgimento

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de homens santos é resultado de anomalias criadas pela mobilidade social decorrente do
reforço da autoridade estatal sob Constantino e Diocleciano. Esse ponto remete, de acordo
com Claudia Rapp (2005), a uma característica da historiografia sobre a cristianização,
a saber, o estabelecimento do reinado de Constantino como um momento radical de
mudança, quando a etapa carismática e idealista do cristianismo primitivo (o que Bryant
qualificou como a etapa da seita) chega ao fim e a Igreja vai paulatinamente se transfor‑
mando para se adequar ao Império, quando então os bispos ascendem como lideranças.
Em complementaridade a essas discussões sobre o progressivo engaste do cristia‑
nismo no Império Romano, uma linha importante de estudos – e igualmente presente
neste livro – ressalta o impacto do cristianismo na urbanização e topografia das cida‑
des do Império. A título de exemplo, lembro do estudo de Lucrezia Spera (2003) sobre a
cristianização da Via Ápia, nos séculos III e IV, indicando que a consequência mais visí‑
vel desse fenômeno foi a transformação de espaços outrora privados em espaços públi‑
cos e coletivos, que combinavam funções funerárias e de culto de uma nova maneira.
Os escritores clássicos mencionavam horti, praedia e villae às vezes em conexão com san‑
tuários e mausoléus. Na República e Alto Império existia uma rede mais densa de espaços
de culto bem além da Via Ápia que funcionavam como locais de reunião para os campo‑
neses em festivais religiosos ligados às colheitas. A população urbana, por sua vez, ser‑
via-se dos espaços públicos dentro da cidade. Apenas com a difusão do cristianismo e
aquisição, pela Igreja, de grandes áreas fora dos muros é que a área suburbana adquiriu
um papel “público” novo e importante. Embora a autora afirme não ser possível gene‑
ralizar para a Antiguidade Tardia, acredita que um padrão semelhante fosse observável
na Itália, África Proconsular e Gália. O cristianismo, portanto, desempenhou um papel
relevante na transformação das cidades entre os séculos III e VII, seja nas áreas subur‑
banas, seja naquelas intramuros, com a criação de propriedades eclesiásticas relacionadas
com a presença de cemitérios comuns e santuários de mártires.
A questão que se coloca diante dessa constatação é como medir as variações regionais
desse processo de cristianização no que tange às construções religiosas. Como ilustração,
pode-se citar o caso do Peloponeso, tratado por Rebecca Sweetman (2010). Nessa região,
a partir do século V, igrejas, e também cemitérios, situavam-se nos espaços limítrofes
do centro urbano, sugerindo uma conexão com a posse de terras pela Igreja. Outro dado
de relevo é que muitas das igrejas do Peloponeso foram construídas nos limites de anti‑
gos santuários, não reutilizando templos anteriores como base para novas construções.

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Isso sugeriria uma preocupação em atingir um maior número da população, e não tanto
um desejo de subjugar cultos pagãos, ou seja, mantinha-se a estabilidade entre a popula‑
ção enquanto se levava a cabo a conversão. A concentração de rituais (enterros, batismo,
peregrinação etc.) reforçava um sentimento de pertença entre a população do território,
fortalecendo novas memórias em detrimento de outras mais antigas. Para Sweetman, um
estudo como este, de foco regional, quando colocado em comparação com aqueles diri‑
gidos a outras regiões do Império, revela que não havia um único programa de cristiani‑
zação, mas que este se revestia de diferentes ritmos e graus de imposição. Se, em Éfeso,
templos e espaços públicos foram convertidos em igrejas, isso está em contraste com a
situação em Roma. E Egito e Síria, por sua vez, registram atos mais violentos de destrui‑
ção de sítios politeístas do que a Grécia.
Igualmente se deve levar em conta, como salientou Laurence Foschia (2009), que
os templos pagãos não foram completamente eclipsados pelo florescimento de basílicas
cristãs na Grécia continental durante o século IV. Muitos santuários, templos, altares e
teatros foram reconstruídos. Até o começo do século V as autoridades imperiais, sobre‑
tudo governadores, mostravam-se dedicados ao processo de preservação desses edifícios,
mesmo que não mais para a realização de cultos pagãos. Esses atos explicavam‑se pela
compreensão dos templos como elementos centrais do urbanismo. Tal continuidade é
reveladora de certa tensão com o passado pagão, que se mantinha até mesmo durante o
processo de cristianização.
Cabe lembrar que esse fenômeno não se restringia às cidades e suas estruturas urba‑
nas, mas também envolvia o campo, como indica um interessante estudo de S. J. B.
Barnish (2001) a respeito da conversão de uma fonte sagrada pagã, dedicada à deusa Leu‑
coteia, em batistério cristão, na região de Padula, Itália, pela intervenção de um bispo.
Ao mesmo tempo que a natureza era “humanizada” pela associação da água a uma divin‑
dade, mantinha-se sua santidade ao associá-la a um único Deus. Isso numa localidade para
onde confluíam camponeses e comerciantes para a realização de feiras periódicas, pos‑
sibilitando assim uma política de conversão ao cristianismo que utilizava como suporte
o passado pagão. Estaria ocorrendo então, no século VI, um espraiamento da cristiani‑
zação para o mundo rural, como testemunhado também pela fundação de monastérios
por aristocratas e igrejas.
O entendimento que talvez unifique esse contexto de interpretações sobre o cristia‑
nismo, muito brevemente descrito em suas linhas gerais acima (e que obviamente não dá

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conta de todos os debates em curso), é que, como salienta Greg Woolf (2012), as religiões,
na Antiguidade Tardia, teriam emergido como uma resposta comum e muitas vezes bem‑
‑sucedida ao problema de como a religião deveria se inserir num império-mundo urba‑
nizado e cosmopolita. Isso implica considerar as fronteiras entre as religiões não como
estanques, e sim como pontes de contato que suscitavam tensões e embates, mas tam‑
bém sincretismos e diálogos, originando um sistema plural.
Os textos deste volume exprimem essa preocupação e abordam, cada qual à sua
maneira, como o “paganismo”, o cristianismo e o judaísmo reconfiguraram-se nos qua‑
dros de uma nova ordem, imposta por Roma, no Mediterrâneo. Claudia Beltrão da Rosa
e, na sequência, Luciane Munhoz de Omena e Suiany Bueno Silva tratam da época de
Augusto, explorando as facetas do pensamento religioso romano na literatura do período,
respectivamente, em Virgílio e Tito Lívio. As contribuições de Belchior Monteiro Lima
Neto e Semíramis Corsi Silva versam sobre o interessante tema da magia no Império
Romano e, sobretudo, como ela era tratada pela legislação romana. Roberta Alexandrina
da Silva analisa os conceitos de honra e vergonha – centrais na cultura mediterrânica –
no caso específico da Carta aos Gálatas. Renata Rozental Sancovsky estuda as literaturas
rabínicas da Antiguidade Tardia, centrando-se na questão da autoridade dos rabinos na
circulação e interpretação da cultura judaica no Império Romano.
As relações entre cristianismo e poder imperial são mais diretamente enfrentadas
por um grupo de textos que busca realçar as tensões envolvidas na definição do lugar do
imperador num contexto político-social cada vez mais cristianizado. Gilvan Ventura da
Silva analisa a ascensão de Constantino ao poder, que se serviu das pretensões univer‑
salistas do cristianismo para seus propósitos políticos. Renan Frighetto discute como
a consolidação sociopolítica do episcopado cristão nos séculos IV e V acentuou o pro‑
cesso de partilha da autoridade política imperial em curso desde o século III. Ana Teresa
Marques Gonçalves e Fernando Teodoro Moura demonstram como Hilário de Poitiers,
no século IV, buscou conjugar as duas posturas político-eclesiásticas mais representati‑
vas, a ariana moderada e a atanasiana/nicena, para apresentar determinada legitimação
do poder imperial. Silvia Siqueira estuda a história de Constantina, filha de Constan‑
tino I e Fausta, no século IV, analisando as variações de sua imagem em narrativas his‑
tóricas e monumentos.
As relações entre espaço urbano e religiões são objetos de dois capítulos. Érica Cris‑
thyane Morais da Silva estuda o caso do Serapeum, o templo alexandrino de Serápis,

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destruído em 392, enquanto Lyvia Vasconcelos Baptista aborda as construções religio‑
sas de Justiniano como tratadas na literatura tardo-antiga.
Por fim, André Leonardo Chevitarese oferece uma detida análise da obra A vida de
Cristo, do artista fluminense Adalton Fernandes Lopes, mostrando como este articulou
informações do Novo Testamento, da tradição cristã e da teologia medieval católica em
sua obra de arte em cerâmica.
O leitor dispõe assim de uma gama de textos que levam a pensar sobre a complexi‑
dade religiosa no Império Romano, que marcaria a cultura ocidental de maneira indelével.

Referências

BALCH, D. L.; OSIEK, C. (eds.). Early Christian families in context: an interdisci‑


plinary dialogue. Cambridge: William B. Eerdmans, 2003.
BARNISH, S. J. B. Religio in stagno: nature, divinity, and the Christianization of the coun‑
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n. 3, p. 387-402, 2001.
BROWN, P. O fim do mundo clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972.
BRYANT, J. M. The Sect-Church dynamic and Christian expansion in the Roman
Empire: persecution, penitential discipline, and schism in sociological perspective.
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21
introdução

A atualidade do estudo das


religiões antigas no Brasil:
A vida de Cristo nas mãos de
Adalton Fernandes Lopes
André Leonardo Chevitarese

Busca-se aqui analisar três questões centrais relacionadas à obra A vida de Cristo 2,
de Adalton Lopes3: (i) as “fontes” utilizadas para a sua composição; (ii) os temas por ele
escolhidos para desenvolvê-la; e (iii) os indícios presentes nesta obra que permitiriam
compreender a “experiência” do referido artista.
Antes de realizar esta análise, porém, apontar-se-ão alguns problemas relacionados
às escolhas conceituais amplamente disseminadas na historiografia relacionada ao refe‑
rido artista e à sua extensa produção artística.

1. Há pouquíssimas reflexões acadêmicas dedicadas à análise da vida de Adalton Lopes,


bem como de sua produção. Ao lê-las, porém, saltam aos olhos a rapidez e a facilidade
com que os especialistas classificam sua obra de “popular”. Para efeito de demonstração,
tomar-se-ão aqui dois trabalhos bem distintos, principalmente no que tange ao conhe‑
cimento do objeto, ao cuidado da reflexão e ao resultado final de seus escritos.

1.1. Em 2007, aparece o estudo mais completo já publicado sobre Adalton Lopes. Tra‑
ta‑se de um catálogo publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio‑
nal (Iphan) e pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Resultado

2  Gostaria de agradecer a Ângela Mascelani, diretora do Museu Casa do Pontal, por me autorizar a foto‑
grafar no pormenor cada aspecto constitutivo desta obra de Adalton Fernandes Lopes, bem como me per‑
mitir o seu uso para efeito de publicação acadêmica.
3  Para um aprofundamento dos dados biográficos deste artista, ver: Lima e Waldeck (2007, p. 5-11);
Mattos (2013, p. 23‑27).

23
da exposição Adalton: o senhor do barro, esta obra está organizada em três partes básicas:
a primeira delas tem como título Adalton, engenho e arte e foi escrita por Ricardo Gomes
Lima e Guaciara Waldeck; a segunda parte é composta por um brevíssimo depoimento
de Amélia Zaluar; e a terceira parte, cujo texto é de Ângela Mascelani, traz como título
Adalton Fernandes Lopes, em busca do homem integral.
Lê-se, na primeira parte da obra, Lima e Waldeck (2007, p. 5[a], 6[b], 12[c], grifos
nossos) classificando o artista em três momentos distintos:

[a] Como era quase inevitável no destino dos jovens da vizinhança, fato corrente
na trajetória de tantos artistas populares [...]
[b] [...] o artesão, artista popular, um mestre do barro.
[c] À época, o trabalho desenvolvido pela Divisão do Folclore foi de extrema impor‑
tância para a “revelação” da cultura popular fluminense.

O incômodo provocado pelo uso dos termos “artista popular” e “cultura popular” não
passa pelo fato de Adalton Lopes ser ou não um artista popular e/ou de a sua obra ser ou
não inserida no âmbito da cultura popular. A questão é de outra natureza, estando asso‑
ciada à falta de precisão conceitual, já que o uso não vem precedido por qualquer discus‑
são teórica que permita ao leitor compreender exatamente o que os autores entendem
por “popular”, e ao uso implícito do discurso de autoridade acadêmica, como que chan‑
celando a aplicação de tal terminologia. Este último aspecto pode ser observado no que
aqui pode ser denominado de “a descoberta do artista”. Listam-se alguns bons exemplos
fornecidos por Lima e Waldeck (2007, p. 9[a][b], 11[c]):

[a] No início da década de 1970, foi decisivo para a carreira do artista o encontro
com Maria Líbia Assef, uma das pessoas que, de imediato, reconheceu a impor‑
tância da obra que Adalton projetava. [...] A (referida) arte-educadora promoveu
suas primeiras exposições em Niterói.
[b] O jornalista (Paulo Afonso Grisolli) criou o Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural onde implementou a Divisão de Folclore adotando uma profícua política
de identificação e reconhecimento da cultura fluminense [...]. Tão logo criada, essa
Divisão, sob a coordenação de Cáscia Frade, iniciou um trabalho de “descoberta”
da cultura popular, até então pouco divulgada e reconhecida.

24
[c] Foi também na Divisão que Adalton conheceu a arte-educadora Amélia Zaluar,
contratada para ministrar as aulas referentes à unidade de artesanato e arte popu‑
lares no curso itinerante oferecido aos municípios do estado. Amélia era também
professora do Instituto Benett onde promoveu as primeiras exposições que o artista
realizou na cidade do Rio de Janeiro [...]. Foi também Amélia Zaluar quem levou
Jacques van de Beuque à casa do artista, em Niterói [...].

Percebe-se claramente, nas três passagens citadas, que o uso do termo popular passa
pela chancela institucional (Divisão de Folclore) e pelo olhar acadêmico (da arte-edu‑
cadora Cáscia Frade e da professora Amélia Zaluar). Dessa forma, tudo o que o artista
niteroiense havia produzido até então e/ou viesse futuramente a produzir, independen‑
temente da sua vontade e/ou da sua opinião, já estaria enquadrado no campo denomi‑
nado de “popular”.

1.2. Em 2013, ocorre a defesa da dissertação de mestrado de Juliana Paula Lima de


Mattos no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Unirio. Essa pesquisa se
caracteriza por um amontoado de textos e ideias soltos que muito pouco dizem sobre o
que foi enunciado no próprio título: A construção do artista popular e sua obra: a trajetória
de Adalton Fernandes Lopes no Museu Casa do Pontal.
Além da falta de discussão sobre o próprio objeto da pesquisa, resultado direto da
inexistência de hipóteses claras e definidas sustentadas por um quadro teórico e meto‑
dológico, verifica-se a ausência de análises sobre as obras de Adalton Lopes presentes
no Museu Casa do Pontal. O leitor fica sem entender o motivo dessa falta, pois a única
informação que a pesquisadora (MATTOS, 2013, p. 14) oferece é a seguinte: “Por diver‑
sas circunstâncias, não foi possível, para esse trabalho, apreciar os aspectos estéticos das
peças do Adalton Fernandes Lopes”.
Quais seriam essas circunstâncias? Como definir um artista como popular sem anali‑
sar a sua obra? Como falar da trajetória de Adalton Lopes no Museu Casa do Pontal sem
discutir pormenorizadamente o seu trabalho?
Ainda se pontua uma última observação. Por que Mattos (2013, p. 39) cita passagens
de Ricardo Gomes Lima em que o referido pesquisador fala acertadamente sobre o quanto

25
existe de discriminação por detrás da classificação “popular”4, se em nenhum momento
essa fala é entendida como procedimento de análise na dissertação? Assim, por exemplo,
pode-se perguntar: é a mesma coisa ter uma origem popular e ser um artista popular?
Apesar de essa questão estar presente no texto de Mattos (2013, p. 14[a], 22[b], 24-25[c],
grifos nossos), não há, em seu trabalho, uma reflexão sobre o assunto:

[a] [...] Adalton se junta a uma ampla lista de mais de 200 artistas de origem popular [...].
[b] Inicialmente faz-se importante inserir a trajetória de Adalton a uma vasta lista de
artistas de origem popular [...].
[c] [...] (Adalton Lopes) lembrou-se da matéria de jornal que o fez conhecer o
artista popular conhecido como Mestre Vitalino.

1.3. Não faz muito tempo, o autor (CHEVITARESE, 2013) desta introdução, ao ana‑
lisar a dramaturgia relacionada à Paixão de Cristo, que perpassa pela obra de Adalton
Lopes, verificou que a sua gênese não pode ser encontrada na “cultura popular”, mas
sim no seio de uma erudita teologia medieval católica, gestada entre os séculos XI e XV.
Foi um longo processo de aprendizado e sistematização até se chegar à forma como hoje
é conhecida. Todo esse longo tempo de gestação tinha por objetivo tornar passível de
compreensão pelo povo o ato sacrificial de Jesus; o povo que já não sabia ler nem escre‑
ver, que não conhecia mais o latim, muito menos possuía os refinamentos teológicos e
filosóficos necessários para compreender os fundamentos de sua experiência religiosa.
Daí a necessidade de se dramatizar a vida de Jesus, tornando-a acessível às pessoas mais
simples, portanto, à maioria esmagadora da sociedade medieval europeia.
Os seus primeiros idealizadores, portanto, não seriam “artistas populares”, mas o
alto clero, gente esclarecida, dotada de tempo (no sentido pleno do termo grego skolé)
para ler, estudar e escrever. São esses religiosos que vão roteirizar a vida de Jesus, preen‑
chendo todos os vazios deixados pelos relatos evangélicos. Para se entender o que essa
elite religiosa foi capaz de fazer, considere o seguinte exemplo: todo o processo visual
envolvendo Jesus carregando a sua cruz, desde a Fortaleza de Antônia, passando pelas
ruas de Jerusalém, até chegar ao Gólgota, é criação medieval. Nenhuma dessas informa‑
ções pormenorizadas provém do corpus neotestamentário. É como pensar a construção

4  Não deixa de ser paradoxal Lima ter esta percepção acerca do sentido de “popular” aplicado a um artista,
mas, ao mesmo tempo, usá-lo largamente em seus textos (ver acima item 1.1).

26
imagética da Última Ceia sem ter como referência o afresco de Leonardo da Vinci na
parte superior da entrada do refeitório da Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão.
Vale ainda a lembrança: toda essa dramaturgia, oriunda da sociedade europeia
medieval, tinha por base a matriz antissemita. Convém salientar, neste ponto espe‑
cífico, que a maior parte de todas as mais variadas representações imagéticas relacio‑
nadas à vida de Jesus enfatiza esse elemento, incluindo os filmes e a dramaturgia de
Oberammergau. Incrivelmente, uma das raras exceções a essa regra é A vida de Cristo
de Adalton Lopes.

2. Outros olhares para além do popular


As definições de “cultura popular” e “artista popular” não serão utilizadas aqui como
categorias de análise, pois estão assentadas em princípios estreitos, que em nada ajudam a
compreender Adalton Lopes, muito menos a sua obra. Esses princípios dialogam com uma
percepção da vida social e econômica em termos binários, além de conterem em si uma
dimensão por demais elitista. Um artista tão prolixo quanto Adalton Lopes, atento e capaz
de interferir, por meio de seu trabalho, no mundo que o cercava, merece uma análise muito
mais ampla e cuidadosa do que um simples e superficial olhar centrado no “preto e branco”,
“popular e erudito”. O espectro desta análise precisa agregar os muitos tons de cinza.
Busca-se, portanto, uma chave de leitura teórica que considere e inclua a “experiên‑
cia” e a “cultura” vividas por este artista niteroiense. Neste campo de análise, as reflexões
de Thompson (2008) constituem ótimos faróis a iluminar o debate.
De imediato, entende-se por experiência (THOMPSON, 2008, p. 164) o que impacta
e transforma homens e mulheres em sujeitos:

[...] não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que expe‑
rimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades
e interesses como antagonismos, e, então, “tratam” essa experiência em sua cons‑
ciência e cultura [...] das mais complexas maneiras e, em seguida [...], agem, por
sua vez, sobre sua situação determinada.

Admite-se, portanto, que Adalton Lopes (assim como todo e qualquer homem e/ou
mulher) não deve ser lido como um sujeito autônomo ou absolutamente livre. Muito pelo
contrário, ele precisa ser lido como um artesão pobre, cuja vida (bem como sua obra) está
profundamente marcada por uma sociedade com fortes contrastes econômicos e sociais.

27
Nesse sentido, torna-se bastante elucidativa, quando de seu depoimento sobre Adalton
Lopes, a colocação feita por Zaluar (2007, p. 21): “Nasceu e se criou na Favela do Maruí,
no bairro do Barreto, em Niterói, e só mudou para uma casa melhor nas imediações do
morro depois dos filhos já adultos”.
A sua condição econômica age em sua consciência e cultura, impactando a sua pro‑
dução artística. Implica dizer que o conceito de experiência não pode ser dissociado da
própria vida material do sujeito, no geral; de Adalton Lopes, no particular.
Essa chave de leitura faz-se presente na obra A vida de Cristo, incluindo o que pode‑
ria ser lido como sendo a sua própria assinatura autobiográfica: a representação de José
e Jesus carpinteiros. Acrescente-se aí o retrato que ele faz de Jesus, com ênfase na sim‑
plicidade, na pobreza e na bondade, sendo perseguido, preso, condenado e morto pela
ação dos poderosos. A ascensão de Jesus aos céus parece claramente sugerir ao observa‑
dor que Adalton Lopes só consegue realizar a justiça na sua plenitude fora da História.
Ainda no campo da definição do que Thompson (2008, p. 171) entende por expe‑
riência, ele afirma:

A experiência [...], em última instância, foi gerada na “vida material”, foi estrutu‑
rada em termos de classe, e, consequentemente, o “ser social” determinou a “cons‑
ciência social”.

Logo, não há como analisar A vida de Cristo sem considerar as suas condições mate‑
riais de vida, as quais impactaram fortemente a sua consciência social.
Outro ponto central nas discussões trazidas por Thompson diz respeito ao estreito diá‑
logo entre o conceito de experiência e o de cultura, com este último sendo uma espécie de DNA
a marcar e a definir olhares e expectativas do sujeito. Assim define Thompson (2008, p. 171):

As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no


âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou [...] como instinto proletário
etc. Elas também experimentam como sentimento e lidam com esses sentimentos
na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades,
como valores ou [...] na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura
(e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral.

28
Em se tratando de Adalton Lopes, a sua experiência, encravada nas contradições eco‑
nômicas e sociais, se expressa também nos sentimentos circunscritos na cultura, em espe‑
cial, no que interessa diretamente aqui, na sua arte e nas suas convicções religiosas. Isso
significa que é possível identificar estas características culturais na sua produção artís‑
tica, tornando-a específica e única.
Constata-se aqui um curioso dado trazido por Ângela Mascelani (2007, p. 34) neste
interessante diálogo entre experiência e cultura, com implicações na arte e nas convic‑
ções religiosas de Adalton Lopes.

Embora desde 2000 sua filha Cátia tenha se tornado sua principal colaboradora,
responsável pela pintura e outras tarefas menos complexas, esse papel foi exer‑
cido durante muitos anos pelo único filho homem do casal, Adaltinho, falecido
tragicamente em 1991. Completamente desorientado pela morte de Adaltinho,
Adalton diminuiu significativamente o ritmo de sua produção. Ficou desconso‑
lado com essa morte prematura e tentava obstinadamente entender por que seu
filho teria ido antes.
Depois dessa perda, converteu-se ao kardecismo.
“E, aí, foi para valer…”, diz D. Mirtes.

Por fim, mas não menos importante, Thompson (2008, p. 175) tece uma importante
observação sobre o conceito de valor. Nesse ponto, constata-se o uso do conceito de habitus
de Pierre Bourdieu, tal como pode ser observado abaixo:

Os valores não são “pensados”, nem “chamados”; são vividos, e surgem dentro
do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as
nossas ideias. São as normas, regras, expectativas etc. necessárias e aprendidas
(e “aprendidas” no sentimento) no habitus de viver; e apreendidas, em primeiro
lugar, na família, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a
vida social não poderia ser mantida e toda produção cessaria.

Não há como dissociar os valores da vida material e das relações materiais. Eles são
intrínsecos ao sujeito e foram aprendidos no seio da família, no trabalho e na comunidade

29
imediata. É nesse ambiente que surgem as ideias capazes de criar condições para supe‑
rar uma flagrante oposição (estrutura X sujeito) que, em si, teria a força de paralisar a
vida social, caso não fosse superada. São as ideias, caracterizadas na forma de aprendi‑
zado, que possibilitam o surgimento de uma noção mediadora, capaz de superar aquela
oposição, permitindo ao sujeito encontrar caminhos, criar táticas, como forma de ven‑
cer todos os obstáculos impostos pela vida social.
Esses dados também se aplicam na inteireza a Adalton Lopes, um homem repleto
de sentimentos religiosos, aprendidos no seio da família, da comunidade imediata e
da sua própria experiência. Esses valores religiosos são chaves de leitura, como forma
de estender as etapas constitutivas de A vida de Cristo. Esta obra fala muito das suas
expectativas, mesmo que elas viessem a se concretizar fora da História, tal como ele
expressava na sua enorme fé.

3. Uma breve leitura crítica sobre a A vida de Cristo

3.1. A vida de Cristo, cuja produção se deu na década de 1970, foi adquirida por
Jacques van de Beuque no ano de 1985 (MASCELANI, 2007, p. 30)5.
Pode-se dizer que esta obra foi composta a partir de três “fontes” básicas: (i) o corpus
neotestamentário; (ii) a tradição cristã, seja através do número de magos junto à manje‑
doura, seja pela presença de Verônica, seja ainda pelos detalhes sobre como se deu a cru‑
cificação de Jesus; e (iii) a que advém da teologia medieval católica, cuja ênfase repousa
no explicitar a violência contida no ato sacrificial de Jesus.
Cada uma dessas fontes deixa transparecer que não estamos diante de um artista anal‑
fabeto e/ou do que se poderia chamar de artista-copista, cujo mérito seria o de reproduzir
mais fielmente possível a vida e a Paixão de Jesus Cristo segundo modelos preestabelecidos

5  Este ano de aquisição é bem posterior ao de 1970, como proposto por Mattos (2013, p. 64, Anexo I,
linha nº 7) e na listagem anexa ao livro Adalton: o senhor do barro (2007). Talvez essa discrepância tempo‑
ral possa ser atribuída aos dizeres da placa afixada no painel expositor da peça no Museu Casa do Pontal,
onde se lê: “Adalton – Estado do Rio – Década de 70”. Esse marco temporal pode estar se referindo à época
em que a obra foi produzida, mas não adquirida pelo Museu. Se for este o caso, a placa poderia ser refor‑
mulada, trazendo os seguintes dizeres: “Adalton – Estado do Rio – Produzida na Década de 70 – Adquirida
pelo MCP em 1985”. Superar-se-ia, assim, o descompasso entre o dado da placa “Década de 70” e o ano que
o próprio artista atribuiu imediatamente abaixo da sigla RJ, [19]85.

30
pela Igreja Católica. Não é esse o caso de Adalton Lopes. É evidente que ele sabia ler6, e
ler muito bem, tal como Lima e Waldeck (2007, p. 5[a]) e Mascelani (2007, p. 32[b]) des‑
tacaram em dois momentos distintos:

[a] Apreciava a leitura, leitor voraz dos livros ao seu alcance, dos que lhe empres‑
tavam, do noticiário nos jornais [...]. Embora não fosse católico praticante, teve
sempre a Bíblia como uma de suas leituras obrigatórias [...].
[b] Foram os livros do pai (um homem extremamente devoto, “quase um pastor”),
sobretudo a Bíblia e outros de temática religiosa, que Adalton conservou e leu ao
longo de toda a vida.

Ele se encontrava num patamar muito acima do de um simples sujeito alfabetizado,


pois, para construir a sua referida obra, ele precisava: (i) compreender que as narrativas
evangélicas apresentavam entre si divergências, as quais impactavam a maneira de ver os
“fatos” relacionados à vida de Jesus; (ii) escolher, quase que cirurgicamente, o recorte ima‑
gético que seria dado no interior da história evangélica utilizada para compor os temas de
sua obra; e (iii) perceber uma série de sutilezas7 relativas à indumentária da época, aos traços
específicos da arquitetura do século I e às simbologias associadas ao poder imperial romano.

3.2. Adalton Lopes selecionou vinte temas para compor a sua obra (ver Apêndice I).
Apesar de a maior parte deles pertencer ao corpus neotestamentário, constata-se: (i) que
ele manteve diálogo com tradições cristãs tardias e contemporâneas; (ii) que essa sele‑
ção deve ser vista como fruto deliberado de uma escolha, a sua escolha, entre as inúme‑
ras possíveis, não apenas em relação a cada um dos temas selecionados, como também
no recorte imagético interno que deu para cada um deles; e (iii) que ele alterou de forma
deliberada a ordem cronológica de alguns “fatos” da vida de Cristo.

6  De acordo com Lima e Waldeck (2007, p. 5), Adalton Lopes possuía o que seria hoje o segundo grau completo.
7  Este aspecto também foi salientado por Mascelani (2007, p. 28), quando escreveu: “Nota-se que, neste
trabalho, assim como em outros feitos pelo artista, a realização da obra foi precedida por uma pesquisa, no
sentido formal do termo. [...] observa-se que Adalton optou por acompanhar realisticamente as narrati‑
vas oficiais desses acontecimentos, propostas pela Igreja Católica. O mesmo se dá em relação à iconografia,
com a valorização da indumentária da época, dos símbolos utilizados, dos tipos de edificações, e da defini‑
ção dos personagens envolvidos”.

31
3.3. Da seleção dos temas

3.3.1. Nascimento de Jesus


Este tema, embora visualmente marcado por elementos oriundos de Mt (2:1-2,7-12),
como estrela, camelos e magos, deve ser lido pelo viés da harmonização, com o artista
abrindo espaço para os dados advindos de Lc (2:6-7). Vê-se, na cena, a manjedoura carac‑
terizada pela presença de alguns animais. A criança repousa nos braços de Maria, sua mãe,
ao mesmo tempo que é observada bem de perto por José, que segura um cajado com sua
mão esquerda. Os magos reverenciam Jesus, além de lhe trazer presentes (ver Imagem 1).
Adalton Lopes representa um total de três magos, dos quais um, o mais à direita, é
negro. Esta representação, apesar de ser amplamente disseminada e, portanto, naturali‑
zada no cotidiano, não faz parte do corpus neotestamentário, sendo completamente depen‑
dente de uma tradição cristã tardia.

Imagem 1. Apresentação do Menino Jesus aos magos. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do
Pontal, 1985.

3.3.2. O massacre dos inocentes


Este tema pertence exclusivamente a Mt (2:16-18). Ele traz uma forte ruptura com a
cena anterior, dominada pelo ambiente calmo e idílico. O que aqui se explicita é a estupi‑
dez humana, marcada pela exacerbação da violência praticada pelos soldados de Herodes

32
contra recém-nascidos e crianças com até dois anos de idade. Toda a cena é dominada
por muito sangue e pais desesperados (ver Imagem 2).
Essa ênfase na brutalidade, que beira ou mesmo toca na esfera do insano, pode talvez
ser entendida como a maneira pela qual o próprio artista compreende a vida de Cristo,
com a violência, desde o início, a lhe rondar sempre bem de perto, terminando, inclu‑
sive, por alcançá-lo.

Imagem 2. O massacre dos inocentes. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.3. A fuga para o Egito


Uma vez mais, Adalton Lopes lança mão de passagens do evangelho de Mt (2:13‑15).
A sagrada família foge para o Egito por uma estrada montanhosa. José anda a pé, segu‑
rando na sua mão esquerda um cajado. Logo atrás dele está Maria, montada num burri‑
nho, trazendo em seus braços o menino Jesus (ver Imagem 2).
Nota-se, como já observado (ver item 3.3.1), a liberdade do artista em agregar à his‑
tória neotestamentária um dado que lhe é absolutamente estranho: a presença de um anjo
gigante, empunhando com a sua mão direita uma espada colossal, cuja ponta é vermelha.
Não deve passar despercebida a mudança feita por Adalton Lopes na ordem cronoló‑
gica do material neotestamentário. De acordo com Mt, primeiro, a sagrada família foge para

33
o Egito; depois, vem o massacre dos inocentes. No entanto, para o artista, os acontecimen‑
tos se deram de maneira absolutamente inversa: primeiro ocorreu o massacre dos inocen‑
tes; depois, a sagrada família fugiu para o Egito. Essa mudança ajuda a entender a presença
do anjo: ele tem por função impedir a aproximação dos soldados de Herodes. Se esta alte‑
ração cronológica fosse a única encontrada em sua obra, poder-se-ia facilmente atribuí-la a
uma confusão de Adalton Lopes, mas ela está longe de ser um caso isolado (ver Apêndice I).

3.3.4. José e Jesus carpinteiros


Este é um tema absolutamente relacionado com a modernidade, ou melhor, com
uma tradição cristã moderna. Tal como José, Jesus era um artesão, um trabalhador que
ganhava a vida por meio de suas mãos (ver Imagem 3).

Imagem 3. José e Jesus carpinteiros. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

Na longa duração, a tradição teológica optou pela harmonização da leitura sinótica, prio‑
rizando a dubiedade contida na pergunta de Mt (13:55): “Não é ele o filho do carpinteiro?”.
Essa questão tinha o mérito de deixar a dúvida no ar quanto à profissão de Jesus, ao mesmo
tempo que esvaziava possíveis interpretações incômodas advindas de Mc (6:3): “Não é este
o carpinteiro [...]?”. A referida passagem de Mt dialogaria mais de perto com aquela oriunda
de Lc (4:22), onde se lê: “Não é este o filho de José?”. No entanto, ela teria o mérito de ser

34
mais sutil do que a de Lc, que, pelo silêncio, nega ou esvazia qualquer relação de Jesus com
o mundo do trabalho. Mas, mesmo Mt deixa explícito que quem trabalhava com as mãos
era José, sendo absolutamente vago em relação à ocupação profissional do Filho de Deus.
Constata-se que Mt e Lc deixaram transparecer suas visões de classe. Ao não admi‑
tirem a possibilidade de Jesus ter sido um trabalhador manual, os dois evangelistas com‑
partilhavam de percepções próprias das elites mediterrânicas, que viam como desonroso
e vergonhoso um indivíduo ganhar a vida com o trabalho de suas mãos. Afinal, o tra‑
balho manual não dignificava ninguém, estando associado aos escravos, servos e pobres
livres (FINLEY, 1986, p. 52-57, 109-113). Na visão de ambos os evangelistas, Jesus, lido
como o Cristo, estaria muito acima desta incômoda situação de ter que trabalhar manual‑
mente para sobreviver.
Por motivos óbvios, Adalton Lopes optou por trabalhar com Mc, especialmente por‑
que ele o aproximava mais de Jesus, tornando-o um “colega” de profissão. Nesse sentido,
a inserção deste tema pode ser lida como um traço autobiográfico de Adalton Lopes, em
que ele, por meio da representação imagética de Jesus carpinteiro, se faz representar na
sua própria obra A vida de Cristo.

3.3.5. Jesus ensinando aos doutores no Templo de Jerusalém


Este tema é completamente dependente de Lc (2:41-52): Jesus encontra-se no Tem‑
plo de Jerusalém, diante dos sacerdotes, para ensiná-los a correta interpretação da Torá
(ver Imagem 4).
Deixando de lado a leitura lucana, pode-se ver aqui um raríssimo flash da vida de Jesus,
em que ele parece estar vivendo um ritual de passagem, sendo formalmente apresentado
à comunidade judaica, comprometendo-se a viver sob a luz da Torá. E, para marcar este
momento único e especial na vida de qualquer adolescente judeu, celebra-se o bar mitzvah.
Verifica-se, uma vez mais, Adalton Lopes invertendo a cronologia dos acontecimen‑
tos ocorridos na vida de Jesus (ver Apêndice I). Nos sinóticos, a referência a Jesus como
carpinteiro é feita na fase adulta, quando seu ministério já estava em curso, enquanto o
episódio do Templo claramente se relaciona a um momento na vida de Jesus em que ele
ainda dependia dos pais para ir e vir. Deve-se ter cuidado com o argumento de que até
recentemente a criança, independentemente de ser menino ou menina, desde a mais tenra
idade, trabalhava para ajudar no sustento da família. Esse argumento é bastante plausí‑
vel, mas não encontra bases sólidas nas narrativas evangélicas.

35
Imagem 4. Jesus ensinando aos doutores no Templo de Jerusalém. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo.
Museu Casa do Pontal, 1985.

Imagem 5. As bodas de Caná. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

36
3.3.6. As bodas de Caná
Este tema depende exclusivamente de Jo (2:1-11). De acordo com a narrativa, trata-se
do primeiro milagre realizado por Jesus (ver Imagem 5).
Instado por sua mãe, ele transforma água em vinho. Na obra de Adalton Lopes, duas
servas seguram vasos, como se estivessem vertendo o conteúdo de cada um deles nas
talhas assentadas no chão. Jesus, em pé, vestindo túnica branca, barbado e de cabelo com‑
prido, acompanha tudo com atenção. Ao seu lado direito está uma mulher com véu na
cabeça, muito provavelmente Maria, sua mãe. Dois outros homens compõem a cena, os
quais poderiam ser interpretados como o mestre-sala e o noivo. Os movimentos de suas
mãos parecem sugerir uma espécie de surpresa ou admiração pela excelente qualidade do
vinho num momento em que se deveria servir vinho de qualidade duvidosa.

3.3.7. Os primeiros discípulos


Observa-se, na cena, Jesus junto a um barco, cuja vela está aberta, conversando com
quatro homens, três deles em pé e o outro sentado no chão, provavelmente consertando
a rede (ver Imagem 6). Toda a cena parece derivar de Mt (4:18-22), muito embora ela
também possa ecoar mais distantemente Mc (1:16-20) e Lc (5:1-11).
O que não deve ser perdido de vista, porém, é o fato de todas as narrativas evan‑
gélicas serem unânimes em associar o início do ministério de Jesus com a presença de
discípulos. Implica dizer que, enquanto para os evangelistas Jesus primeiro fez alguns dis‑
cípulos e depois começou o seu ministério, para Adalton Lopes, primeiro Jesus realizou
um milagre e depois fez discípulos (ver Apêndice I). Mesmo em Jo (1:37-51), que traz
uma narrativa diferente daquela contida nos sinóticos, e este ponto deve ser sublinhado,
o tema que precede o das bodas de Caná é aquele que fala dos primeiros seguidores de
Jesus. Admitindo que Adalton Lopes tenha lido a narrativa joanina sobre as núpcias de
Caná, e não há nada que indique o contrário, a opção por alterar a ordem das narrativas
foi exclusivamente sua, sem qualquer respaldo na documentação.

3.3.8. Os milagres de Jesus


Não fica claro se a cena é composta por três ou quatro narrativas de milagres (ver Ima‑
gem 7). Tudo vai depender de como deve ser lido o homem de túnica azul e cabelo louro:
ele seria um discípulo de Jesus ou alguém por ele curado? A segunda opção parece ser a
mais apropriada, o que ajudaria a reforçar a exclusividade do poder que emanava de Jesus.

37
Imagem 6. Os primeiros discípulos. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

Imagem 7. Os milagres de Jesus. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

38
Nesse caso, este homem poderia ser, por exemplo, o leproso das narrativas sinó‑
ticas (Mc 1:40-45; Mt 8:2-4; Lc 5:12-16). Há outros três homens relacionados a curas
miraculosas: o que está deitado sobre a maca, sendo trazido por amigos diante de
Jesus; o que também se aproxima, apoiando-se numa muleta; e o que já foi curado,
que chega carregando as suas duas muletas. Chama a atenção, na cena, a presença do
que pode ser um tanque repleto de água. Seria uma referência a Betesda (Jo 5:1-9)?
No entanto, não há como se ter certeza sobre isso.

3.3.9. Ressurreição de Lázaro


A cena é derivada exclusivamente de Jo (11:1-44). Seis personagens são retratadas, das
quais duas podem ter atribuições confirmadas e outras duas têm suas identidades presu‑
midas (ver Imagem 8). Jesus, em pé, vestindo túnica branca e de cabelo comprido, está de
frente para o sepulcro, porém de costas para o público observador. À sua frente, em pé,
Lázaro, que acaba de sair do sepulcro, com túnica branca e a cabeça e o rosto cobertos pela
mortalha. Das três mulheres sentadas, duas delas são Marta e Maria, irmãs do ressuscitado.
Duas outras personagens – um homem vestindo túnica amarela e uma das mulheres sen‑
tadas – podem ser lidas como testemunhas oculares desta prodigiosa ação.

Imagem 8. A ressurreição de Lázaro. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

39
3.3.10. Jesus e a expulsão dos mercadores do Templo de Jerusalém
Toda a cena ecoa Jo (2:13-16). Com chicote na mão esquerda, Jesus derruba a mesa
do cambista e sua bolsa de moedas (ver Imagem 9). Muitas delas foram parar no chão.
Um cambista tenta salvar apressadamente algumas moedas que ainda estão sobre a mesa,
guardando-as em uma de suas bolsas de dinheiro. Nota-se que uma dessas bolsas caiu
no chão, espalhando moedas. Na confusão instalada, a porta de uma gaiola de pombas
se abriu e os pássaros aproveitaram para fugir. Atrás de Jesus, há uma jaula fechada que
aprisiona um animal.

Imagem 9. Jesus e a expulsão dos mercadores do Templo de Jerusalém. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo.
Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.11. Jesus no Getsêmani


Jesus, vestindo túnica branca, está em pé junto aos seus discípulos. Um deles parece
lhe cochichar algo, enquanto outro, um pouco mais afastado, parece vigiar o lugar (ver
Imagem 10). Toda a cena parece construída em cima do seguinte passo: “Aquele que vai
me entregar está chegando” (Mc 14:42; Mt 26:46).

40
Imagem 10. A traição de Judas. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.12. A traição de Judas


Judas, careca, imberbe, vestindo uma túnica vermelha com listras pretas, chega ao
Getsêmani (Mt 26:47; Mc 14:43; Lc 22:47; Jo 18:3) acompanhado por quatro guardas
romanos8. Um dos discípulos que acompanham Jesus, aquele com um turbante na cabeça,
observa a sua chegada. Eles trocam olhares entre si (ver Imagem 10).
O beijo de Judas no rosto de Jesus, tema amplamente enfatizado na longuíssima tra‑
dição cristã através dos mais diferentes suportes imagéticos, é chave de leitura para que
o público defina com precisão o exato momento em que se encontra a vida de Cristo.
Ao não querer representá-lo, Adalton Lopes se tornou um dos raros artistas a não enfa‑
tizar aquele ato, que, em si, é a marca mais visível do antissemitismo. Por isso, pode-se
dizer, com segurança, a dificuldade do público em ler a cena, já que o referido artista lhe
tirou a principal referência, a sua chave de leitura, símbolo por excelência do enorme
fosso que separa Jesus do judaísmo, os cristãos dos judeus. A ausência do beijo de Judas
desconcerta o público, tão habituado a ler Jesus como cristão, que consagrou sua vida

8  A presença de soldados romanos pode ser lida como um forte indício de que Adalton Lopes teria prio‑
rizado aqui o Evangelho de João em detrimento da leitura sinótica.

41
ao cristianismo (em particular, à denominação cristã do próprio observador), que mor‑
reu como um cristão. Analisando a personagem Judas em A vida de Cristo, constata-se
que Adalton Lopes instaurou um olhar absolutamente novo, ao decidir não trabalhar o
seu conluio com alguns membros do Sinédrio; ao não colocar em cena o seu famigerado
beijo; e ao não representar o seu suicídio através do enforcamento.

3.3.13. Julgamento de Jesus


Esta cena pode ser dividida em três camadas narrativas (ver Imagem 11). De ime‑
diato, encontra-se o palácio de Pilatos, caracterizado por quatro colunas jônicas e uma
grande porta. Em cada uma das extremidades da cobertura da entrada repousa uma águia,
símbolo do poder imperial romano. No chão, ao lado de cada uma das colunas, está‑
tuas de leões. Entre as colunas, dois soldados montam guarda diante da porta do palá‑
cio. Alguns degraus levam à parte externa intermediária do palácio, onde Pilatos lava as
mãos em uma pequena bacia estendida por um serviçal9.

Imagem 11. Julgamento de Jesus. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

9  Neste ponto da narrativa, Adalton Lopes segue de perto Mt (27:24).

42
Ao seu lado, Jesus, em pé, acaba de conhecer a sua sentença. Por fim, fora das depen‑
dências do palácio, há homens em pé, representando os muitos que tinham sido instiga‑
dos pelos sumos sacerdotes e anciãos10. Eles selaram o destino de Jesus, ao pedirem que ele
fosse crucificado (Mt 27:1-2, 11-14, 26; Mc 15:1-5, 9-15; Lc 23:1-7, 11-25; Jo 18:28-40).

3.3.14. A negação de Pedro


Em pé, num pátio, quatro homens estão ao redor de uma fogueira. Um deles é um
soldado romano e os outros são civis (ver Imagem 12).
A chave de leitura aqui é a fogueira. Dois evangelistas a citam (Lc 22:55-57; Jo 18:18, 25),
associando-a a Pedro. Convém observar, porém, que Adalton Lopes, ao colocar todas as
quatro personagens em pé, parece ter sido impactado pela narrativa de João (18:25), pois
somente ela diz textualmente que Simão estava em pé aquecendo-se, enquanto Lc (22:56)
fala de um grupo de pessoas se aquecendo do frio, com Pedro se sentando no meio delas.
No pátio, este discípulo aparece segurando um cajado com a mão esquerda, e a sua cabeça
está voltada para baixo, como se tivesse acabado de ouvir o galo cantar.

Imagem 12. A negação de Pedro. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

10  Considerando que somente a narrativa mateana traz a cena de Pilatos lavando as mãos, pode-se dedu‑
zir que aquele grupo de homens em pé, fora das dependências do palácio, tenha sido responsável por pedir
a crucificação de Jesus (Mt 27:19-20). Curiosamente, porém, Barrabás está ausente!

43
3.3.15. A coroa de espinhos
Toda a cena se passa no Pretório (ver imagens 12 e 13) e deve ser lida como um des‑
dobramento da decisão de Pilatos (ver item 3.3.13). A ênfase aqui recai no processo de
flagelação de Jesus, culminando na sua flagrante humilhação. Um dos soldados põe em
sua cabeça uma coroa de espinhos. Nota-se um manto escarlate cobrindo parte de suas
pernas (Mt 27:29; Mc 15:17; Jo 19:5).

Imagem 13. A coroa de espinhos, detalhe. Adalton F. Lopes.


A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.16. Jesus, o bom pastor


Em vez de as suas presenças serem lidas como simples ambientação da cena, as
cinco ovelhas constituem em si um tema. Situada entre dois momentos dramáticos, isto

44
é, entre aquele em que Jesus se fez homem e o que culmina na sua crucificação, toda a
cena parece ecoar Jo (10:11-18): Jesus como o bom pastor, aquele que dá a vida por suas
ovelhas (ver Imagem 14).
Trata-se de um belíssimo contraponto encravado entre dois momentos de profunda
violência, os quais se situam em contextos urbanos. Já as cinco ovelhas remetem o obser‑
vador ao ambiente rural, onde elas pastam e descansam em paz, longe de qualquer agi‑
tação e/ou perigo.

Imagem 14. Jesus, o Bom Pastor. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.17. Jesus carrega a sua cruz


Jesus carrega, pelas ruas de Jerusalém, uma enorme e pesada cruz (ver Imagem 14).
Ele é seguido de perto por dois soldados romanos: um deles segura uma lança, enquanto
o outro, além da lança, tem na sua mão direita um látego, que ele usa contra o Naza‑
reno. Dois outros homens acompanham logo atrás. Não há como precisar se estão ali
na condição de escarnecedores ou de discípulos. Há outro homem postado exatamente
em frente a Jesus. Ele tem barba e veste uma roupa verde. Os seus braços estão cla‑
ramente voltados para a frente, como se estivessem prontos para segurar a cruz, ali‑
viando os ombros do Nazareno daquele pesado fardo. Pode-se conjecturar que seria

45
Simão, o Cireneu (Mc 15:21; Mt 27:32; Lc 23:26), muito embora tal interpretação deva
ser lida apenas como uma suposição. A cena também traz três mulheres junto à porta
de uma casa. Todo este ambiente parece ecoar Mc (15:40) e Lc (23:27). No entanto,
uma delas, a primeira da esquerda para a direita, pode ser identificada como Verônica,
por causa do pano com o rosto de Cristo que ela segura nas mãos (ver Imagem 15). Vê-se,
uma vez mais, Adalton Lopes lançando mão da tradição antiga cristã11.

Imagem 15. Verônica. Adalton F. Lopes.


A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

11  Este nome não é em nenhum momento mencionado no corpus neotestamentário. A sua mais antiga
referência pode ser encontrada em Atos de Pilatos 7. Esta passagem parece ecoar Eusébio, História Eclesiástica,
7.18:1, que por sua vez reverbera Mt 9:20; Mc 5:25; Lc 8:43.

46
3.3.18. Jesus sendo pregado na cruz
Por mais surpreendente que possa parecer, muitos dos pormenores relaciona‑
dos à forma como Jesus foi crucificado não fazem parte da narrativa neotestamentária
(ver Imagem 16). Eles pertencem ao período medieval e seus desdobramentos estão
profundamente imbricados com a Paixão de Oberammergau (CHEVITARESE, 2013,
p. 28-33). As três mulheres próximas à cruz parecem ecoar exclusivamente Jo (19:25),
muito embora este evangelista cite quatro mulheres, em vez de três. A presença de sol‑
dados romanos é plenamente compatível com as narrativas evangélicas (Mc 15:20; Mt
27:32s; Lc 23:26s; Jo 19:23), enquanto os dois outros homens não podem ser categorica‑
mente definidos como discípulos.

Imagem 16. Jesus sendo pregado na cruz. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.19. A crucificação de Jesus


Além de Jesus, localizado no centro da cena, outros dois homens também estão cru‑
cificados (Mt 27:44; Mc 15:27; Lc 23:32; Jo 19:18)12.

12  A passagem para este espaço, que pode muito bem ser o Gólgota, é marcada por um estranho desní‑
vel (ver Imagem 16). Para superá-lo, é preciso subir uma escada de três degraus. De modo que a narrativa

47
Adalton Lopes parece seguir de perto a descrição joanina sobre os acontecimentos
no Gólgota (ver Imagem 17): junto à cruz, quatro mulheres, cujas cabeças estão cober‑
tas com véus (Jo 19:25), e um homem, que segura o que parece ser um cálice. Seria ele o
discípulo amado (Jo 19:26a)? Apesar de Jesus já estar morto, um soldado romano trans‑
passa-lhe o lado com sua lança (Jo 19:34).

Imagem 17. A crucificação de Jesus. Adalton F. Lopes. A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

3.3.20. Jesus ascende aos céus


Esta cena (ver Imagem 18) é toda ela derivada das duas obras de Lc, sendo a quase
totalidade dela advinda do seu evangelho (Lc 24:50-53), com exceção das nuvens, onde
se constata eco de seu outro livro (At 1:9).
Em uma paisagem montanhosa, onde corre um rio, seis discípulos testemunham a
ascensão de Jesus, por entre nuvens, ao céu.

imagética faça sentido – se é que pode existir alguma lógica neste passo específico –, principalmente quando
se considera que Jesus já foi preso na cruz, é necessário admitir que ele precisou ser transportado até ao
local de sua crucificação!

48
Imagem 18. Jesus ascende aos céus. Adalton F. Lopes.
A vida de Cristo. Museu Casa do Pontal, 1985.

49
Considerações finais

O método utilizado por Adalton Lopes para compor a sua obra A vida de Cristo foi o de
harmonização das narrativas evangélicas. O emprego dessa metodologia está ampla‑
mente disseminado no meio teológico cristão, com forte impacto não apenas nas
vidas cotidianas de homens e mulheres que frequentam ambientes religiosos, como
também na indústria do entretenimento, por meio da dramatização da vida de Jesus.
A obra A vida de Cristo insere-se justamente neste campo.
No entanto, ao contrapor as narrativas evangélicas à referida obra, constata-se que
Adalton Lopes não se limitou a reproduzir uma tradição já consagrada, fossilizada no
tempo, de amplo domínio popular. Muito pelo contrário, o que ele fez foi interferir fla‑
grantemente na ordem dos fatos, invertendo algumas sequências das narrativas evangélicas
(ver Apêndice I). Tais mudanças devem ser lidas como uma decisão exclusivamente sua.
Um bom exemplo é a estruturação do tema da fuga de Belém (ver item 3.3.3).
De imediato, Adalton Lopes faz Belém viver um dia de caos e barbaridade, provocados
pela ação violenta dos soldados de Herodes, que assassinam brutalmente crianças com
até dois anos de idade. Diante do que parecia ser uma situação sem saída, com um risco
iminente de o plano de Deus fracassar, aparece um enorme anjo e retira daquela cidade,
de forma ilesa, a sagrada família, guiando-a em segurança por um caminho montanhoso
até o Egito. Implica dizer que a inversão cronológica serviu plenamente ao propósito
do artista, que pôde aumentar ainda mais a dramatização da fuga, reforçando o caráter
divino de Jesus, bem como revelando a real identidade de seu Pai.
Outra mudança visível na “construção narrativa” de A vida de Cristo é a quebra
com a longuíssima tradição cristã, especialmente com aquela que enfatiza a traição de
Judas. Essa tradição tem alimentado uma forte percepção antissemita (CHEVITARESE,
2013, Anexo I). No Rio de Janeiro, em particular, esse olhar está amplamente docu‑
mentado desde a primeira metade do século XIX, principalmente nas pinturas relacio‑
nadas à queimação e à malhação do boneco de Judas (CHEVITARESE, 2014, p. 201-219).
Curiosamente, porém, poder-se-ia dizer, remando contra essa tradição, que Adalton
Lopes esvazia esta percepção antissemita, já que ele deixa de fora de sua obra três ele‑
mentos-chaves: as tratativas entre os membros do Sinédrio e Judas; o beijo do traidor
no rosto de Jesus (Mt 26:48-49; Mc 14:44-45; Lc 22:47-48); e o seu suicídio (Mt 27:5;
Mc 14:44-45; Lc 22:47-48). A ausência do elemento antissemita na obra A vida de Cristo

50
pode ser explicada por conjunturas muito específicas no seio do catolicismo, as quais
tiveram forte impacto no Brasil: o Concílio Vaticano II (pensado aqui como um fator
diacrônico) e a Teologia da Libertação (entendido como um fator sincrônico). Por ser
um homem religioso, de orientação católica, dificilmente Adalton Lopes deixaria de
ser afetado pelo impacto desses dois fatores. O desenvolvimento de sua obra A vida de
Cristo serve de prova aqui.

Referências

CHEVITARESE, A. L. Jesus no cinema: um balanço histórico e cinematográfico entre


1905 e 1927. Rio de Janeiro: Kline, 2013.
______. Manifestações populares no Rio de Janeiro do século XIX: a queimação e a malha‑
ção do boneco de Judas. Coletânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 26, p. 201-219, 2014.
FINLEY, M. I. A economia antiga. Porto: Afrontamento, 1986.
LIMA, R. G.; WALDECK, G. Adalton, engenho e arte. In: LOPES, A. F. (org.). Adalton:
o senhor do barro. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, 2007. p. 5-20.
MASCELANI, A. Adalton Fernandes Lopes, em busca do homem integral. In: LOPES, A. F.
(org.). Adalton: o senhor do barro. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, 2007. p. 23-37.
MATTOS, J. P. L. A construção do artista popular e sua obra: a trajetória de Adal‑
ton Fernandes Lopes no Museu Casa do Pontal. 2013. Dissertação (Mestrado em
Memória Social) – Programa de Pós‑Graduação em Memória Social, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
THOMPSON, E. P. The poverty of theory and others essays. New York: Monthly
Review, 2008.
ZALUAR, A. Depoimento. In: LOPES, A. F. (org.). Adalton: o senhor do barro. Rio de
Janeiro: Iphan/CNFCP, 2007. p. 21.

51
Apêndice I
Temas selecionados da vida de Jesus

Cronologia
Passagens Tema
AFL NT
Mt 1:24, 2:1-2,7-12; Lc 2:1-20 Nascimento de Jesus 1 1
Mt 2:16-18 O massacre dos inocentes 2 3
Mt 2:13-15 A fuga para o Egito 3 2
Mc 6:3; Mt 13:55 José e Jesus carpinteiros 4 5
Jesus com os doutores
Lc 2:41-52 5 4
no Templo
Jo 2:1-11 As bodas de Caná 6 7
Mc 1:16-20; Mt 4:18-22; Lc 5:1-11;
Primeiros discípulos 7 6
Jo 1:35-51
Há inúmeras passagens Jesus e os milagres 8 8
Jo 11:1-44 A ressurreição de Lázaro 9 9
Jo 2:13-16 (cf. tb. Mc 11:15-17; A expulsão dos
10 10
Mt 21:12-13; Lc 19:45-46) mercadores do Templo
Mc 14:32; Mt 26:36; Lc 22:39 Jesus no Getsêmani 11 11
Mc 14:10-11; Mt 25:14-16;
A traição de Judas 12 12
Lc 22:1-6; Jo 18:1-3
Mc 15:1-5,9-15; Mt 27:1-2,
Julgamento de Jesus 13 14
11-14,26; Lc 23:1-7,11-25
Jo 18:18,25 A negação de Pedro 14 13
Mc 15:17; Mt 27:29; Jo 19:5 A coroa de espinhos 15 15
Jo 10:11-18 Jesus, o bom pastor 16 16
Mc 15:20-23; Mt 27:31;
Jesus carregando a cruz 17 17
Lc 23:27-28; Jo 19:17
Sem referência no NT Jesus sendo pregado na cruz 18 –
Jo 19:18,25-29,33-34 A crucificação de Jesus 19 18
Lc 24:50-53; At 1:9 Jesus ascende ao céu 20 19

Legendas: NT = Novo Testamento; AFL = Adalton Fernandes Lopes

52
Parte I
Rito, mito e magia no Principado
Di Penates, Eneias e Augusto:
mito e religião na Eneida
Claudia Beltrão da Rosa

Introdução

Três anos após Augusto se tornar pontifex maximus, a Ara Pacis Augustae foi dedicada
(dedicatio)13. Em sua face norte, há diversos fragmentos de uma cena de procissão, na qual
a figura identificada como Augusto aparece capite uelato, ou seja, como um oficiante, um
sacerdos. Caminhando em torno do sacellum, nos fragmentos do painel direito da face oeste,
uma figura geralmente identificada com Eneias é vista sacrificando. Trata-se de uma cena
de sacrifício, e, no fim do século I AEC, um padrão iconográfico desse tipo de ação reli‑
giosa estava consolidado – o que não quer dizer que não houvesse variações ou que o
significado da cena fosse unívoco (ELSNER, 1991; HÖLSCHER, 2004). Diversos elemen‑
tos criam a composição: figuras como o oficiante, capite uelato, representado sine tunica,

13 A Ara Pacis Augustae foi dedicada em 30 de julho de 9 AEC, no aniversário de Lívia. Sua constitutio,
porém, ocorreu em 4 de julho de 13 AEC, celebrando o retorno de Augusto a Roma, que passara cerca de
três anos fora da urbs. Após a celebração dos ludi Saeculares, em 17, e da adoção de Gaio e Lúcio, entre 16
e 13, Augusto e Druso Maior, filho de Lívia, se envolveram em diversas atividades nas províncias da His‑
pânia, da Gália e da Germânia, enquanto Agripa esteve em missão no Oriente. Augusto retornou a Roma
no verão de 13 (Dio C. 54.18.2-19.2). A observação das datas é interessante: o dia da constitutio do altar era
o aniversário da apotheosis de Rômulo (Cic. Rep., 1.25), seguindo-se os ludi Apollinares, de 6 a 13 de julho.
Poucos dias depois, entre 20 e 30 de julho, ocorriam os ludi Victoriae Caesaris, comemorando o sidus Iulius
de 44 AEC, e a data da dedicação do altar coincide tanto com o aniversário de Lívia como com o encerra‑
mento dos Jogos de César. Além disso, o mês fora recentemente rebatizado em honra do novo deus, diuus
Iulius. Para a lógica espacial, visual e as características deste santuário, ver Zanker (1988), Elsner (1991),
Torelli (1992) e Favro (1996). Sobre a divinização de Júlio César e de Augusto, ver Koortbojian (2013).

55
como se acreditava ter sido a mais antiga vestimenta masculina itálica (A. Gell. 6.12)14, cujo
braço direito provavelmente segurava a patera, indicando uma libação, ladeado por outra
figura, da qual se percebe apenas o braço direito, segurando uma lança; um uictimarius
conduzindo um animal em primeiro plano, no caso, uma porca, e um assistente levando
o urceus, um jarro para as libações, na mão direita e um prato com ofertas vegetais na
esquerda. Motivos vegetais e arquitetônicos ainda visíveis compõem a cena; por exemplo,
depreende-se dos fragmentos um carvalho, um altar e uma aedicula, um pequeno templo ao
fundo com duas estátuas de culto em seu interior, indicando os destinatários do sacrifício.

Figura 1 – Face oeste, painel direito. Ara Pacis. Foto da autora

Interessam-me especialmente as duas figuras no interior da aedicula, em segundo


plano à esquerda, que são geralmente interpretadas como os di Penates (Figura 1)15, nesta

14  Conferir também Plínio sobre as estátuas sine tunica no Capitólio: HN 34.23.
15  O arqueólogo P. Rehak (2006, p. 115-120) problematizou a identificação das figuras em questão, apre‑
sentando uma leitura divergente. Seu principal argumento tem como base as fórmulas iconográficas do

56
cena que, segundo J. Elsner, pode ser vista como o sacrifício original, não da origem deste
altar dedicado em gratidão ao princeps (RG 1, 12, 19-20), mas da própria urbs e da ances‑
tralidade de Augusto, remetendo o espectador ao passado, ao presente e ao futuro, pela
“[...] eterna repetição da ação sagrada através do tempo [...]” (ELSNER, 1991, p. 54-55).
Considerando que os Penates são deuses de grande relevância para a compreensão da
vida religiosa e social romana, meu objetivo é, com base na caracterização dessas divinda‑
des na Eneida, de Virgílio, compreender um dos maiores ícones da mitografia do século I
AEC, com sua lógica de continuidade e inovação, que marcará as esferas religiosa, polí‑
tica e econômica da sociedade romana sob Augusto. Na linguagem visual da Ara Pacis,
Eneias e Augusto surgem como sacerdotes, e, na poesia de Virgílio, o princeps, que, como
Eneias, cria/restaura a identidade religiosa romana (SCHEID, 2005; WALLACE-HADRILL,
1993, p. 72; GORDON, 1990), é o herdeiro e descendente de uma gens diuina, que cumpre
a profecia de Júpiter, que se origina na transferência dos Penates de Troia para a Itália.

Religião e mito na Roma do século I AEC

A religião romana é um sistema complexo de crenças e ações que garante simultanea‑


mente a legitimidade das ações humanas, a legitimidade do poder e o locus da comuni‑
dade humana estabelecida na urbs. Religião, sociedade e instituições são, portanto, termos
inseparáveis no estudo da Roma antiga, e um dos níveis pelos quais temos acesso a esta
religião é o da representação literária e imagética, destacando-se o tipo de linguagem
usada nos discursos e nas representações figurativas religiosas. Talvez uma das caracte‑
rísticas mais marcantes do pensamento religioso romano em suas diversas expressões é a

tema de Eneias e os Penates de Troia, consolidada na República Tardia: a cena do jovem Eneias (sem barba)
armado, com seu pai Anquises nos ombros e os Penates em sua mão direita, presente em várias moedas de
Júlio César. Outros argumentos se ligam ao fato de que, na Eneida, o sacrifício de Eneias se destina a Juno,
não aos Penates, destinatários apresentados por Varrão, e a uma interpretação da figura não identificada da
cena, ao lado do oficiante. Rehak defende que a cena não representa o sacrifício de Eneias na fundação de
Lavinium, e sim Numa ao lado de um rei estrangeiro, em um acordo de paz, e que os destinatários seriam
Júpiter e Dis Pater, ou Júpiter e Jano. Esta interpretação é instigante, mas trata a composição e a caracteriza‑
ção da cena visual como uma ilustração de textos e desconsidera as inovações visuais e semânticas baseadas
em uma forte interdiscursividade entre textos e obras visuais que caracterizaram a arte do período augustano.

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insistência na ideia de que seres humanos e divinos compartilham a mesma cidade: ciuitas
communis deorum atque hominum (Cic. Leg., 1.2.3). As divindades e instituições religiosas
romanas deviam sua presença na cidade à comunidade humana – pois não se tratava de
discutir a existência dos deuses –, configurando a paisagem religiosa da cidade de Roma16.
Tal experiência e expressão religiosas se tornaram um tema capital para as invecti‑
vas de escritores cristãos tardios. Agostinho, contudo, foi muito preciso ao citar Varrão
em uma passagem, indicando que, a despeito de seus comentários derrisórios, os pres‑
supostos religiosos romanos eram muito bem conhecidos por ele:

Varrão diz então que escreveu primeiro sobre as coisas humanas, depois sobre as
coisas divinas, porque estas foram instituídas pelos homens. Eis seu raciocínio:
“Como o pintor precede a pintura, como o arquiteto precede o edifício, também as
cidades precedem as instituições da cidade” [...]. E o próprio Varrão confirma que
escreveu primeiro sobre as coisas humanas, depois sobre as coisas divinas, porque
as cidades existiram primeiro e, em seguida, instituíram os ritos sagrados (CD 6.4)17.

As divindades eram aliadas dos humanos, eram suas concidadãs, incomensuravel‑


mente superiores aos humanos, mas pertencentes à mesma cidade, e os romanos eram
o povo dos deuses. Não havia discurso único ou homogêneo sobre os deuses e sobre as
ações religiosas em Roma, não havia livros que contivessem “a verdade” religiosa, muito
menos dogmas. Havia interpretações diversas sobre a natureza dos deuses e sua ação
no mundo, havia rituais nos quais se percebe uma relação ativa entre deuses e huma‑
nos, havia teologia no plural e crenças distintas, de acordo com diferentes grupos sociais,
políticos e profissionais da res publica. Havia teologias filosóficas, cívicas e poéticas18,

16 Compreendo paisagem religiosa como uma construção simbólica e dinâmica do espaço por meio da ação
conjunta da performance dos rituais, da pragmática poética dos mitos e narrativas e do discurso visual das
figurações de personagens e cenas, de acordo com as propostas de J. Scheid e F. de Polignac (2010, p. 430),
que apresentam o conceito de paisagem religiosa como uma leitura simbólica do espaço, entendida “em sua
materialidade visível e, metaforicamente, como o espectro de identidades religiosas múltiplas e negociadas”.
17  Segundo Scheid (2003, p. 148), “as divindades devem seu lugar não a qualquer epifania – i.e., não a
qualquer manifestação particular de sua parte –, mas, acima de tudo, à decisão humana, ao desejo do povo,
do senado, de um magistrado ou de um rei mítico”.
18  Os textos teológicos romanos são tradicionalmente divididos em três categorias: os filosóficos, os poé‑
ticos e os relacionados aos atos e registros culturais. Seu estudo permite compreender um sistema de pen‑
samento muito diferente do nosso, distinguindo o que é especulação racional ou poética do que é culto

58
e havia opiniões diversas, além das interpretações quotidianas, mas também havia tra‑
dições e práticas em comum.
Um elemento-chave da pesquisa sobre religiões e religiosidades de distintos gru‑
pos humanos é a análise do conjunto de textos que codificam e veiculam postulados e
conhecimentos religiosos, consolidando formas autorizadas de crenças e rituais, além
do estabelecimento de hierarquias. Textos escritos foram e são uma poderosa forma de
comunicação religiosa, política e institucional, e o estudo da dinâmica dos sistemas reli‑
giosos exige uma preocupação com as formas de comunicação dos conteúdos religiosos,
veiculando e estimulando formas de percepção e de comportamento, criando conheci‑
mentos religiosos. A codificação e a fixação desses conhecimentos são uma ótima ferra‑
menta na construção de sistemas religiosos de larga escala e expansíveis a outros grupos
humanos externos ao seu locus original, com variações regionais, decerto, mas sem per‑
der suas características principais (WHITEHOUSE; MCCAULEY, 2005; WHITEHOUSE;
MARTIN, 2004). O sistema religioso romano, que pode ser percebido com certa niti‑
dez nos séculos II e I AEC, expandiu-se em crenças, práticas e formas rituais, atingindo
locais e grupos humanos distantes de seu núcleo original no Lácio e arredores, ao longo
da constituição do imperium romanum. Um dos tópicos centrais da pesquisa sobre a reli‑
gião romana é a análise das formas dessa expansão e as interações religiosas no imperium.
Na Antiguidade romana, assim como hoje, é certo que a vasta maioria das pessoas
vivia e experimentava a religião oral, visual e gestualmente. Nenhum sistema religioso é
mediado apenas por escrito, nem os das “religiões do livro” atuais, muito menos o romano.
A comunicação oral, as performances rituais, os sons, etc. são componentes da experiên‑
cia religiosa e cultural romana (WISEMAN, 2014). Desse modo, boa parte das popula‑
ções, antigas e modernas, tem acesso ao conhecimento religioso (seja doutrinal ou não) de
modo exclusivamente oral/visual. Como um problema metodológico – talvez insolúvel –,
o estudo das antigas religiões depende tanto dos dados imagéticos como das evidências

propriamente dito. Essa divisão radica na classificação atribuída a Varrão, cuja principal fonte é Agostinho,
que também afirma que os tria genera theologiae são uma distinção de M. Cévola, o pontífice (CD 4.27.1;
6.5-6). Há todo um problema metodológico da tradição textual sobre esta tripartição, pois só temos cita‑
ções em autores tardios, problema agravado pelo costume de citar de cor, e não diretamente. A terceira cate‑
goria provavelmente se refere à religio publica e demanda muitos estudos (RÜPKE, 2005, 2012), mas meu
interesse aqui se liga à teologia dos poetas, especificamente ao mythos.

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gráficas/textuais, e não é raro que a interface entre as tradições orais/visuais e a escrita
seja esquecida ou minimizada19.
Meu interesse aqui é a linguagem mítica, que tem características próprias e uma
natureza envolvente, afetiva. O mito articula os fundamentos do que é sagrado, criando
um relato da origem de tudo que é pensado como grande e bom no mundo. O mito serve
como matriz da prática religiosa, da experiência religiosa no tempo e no espaço, propor‑
cionando imagens e modelos para guiar o comportamento humano, apresentando seu
passado, suas fundações, o que aconteceu “no princípio”, em narrativas modelares sobre
seres e objetos que os encarnam. As religiões são frequentemente tributárias da lingua‑
gem mítica, que nomeia os princípios e os poderes que governam o mundo, que man‑
têm, criam e recriam as vidas das comunidades humanas.
Estudar mitos requer uma abertura para permitir a comparação entre os dados nar‑
rativos, os iconográficos e os rituais, mas isso não quer dizer que a mitologia não deve
ser explorada per se, e sim que há que se lidar com dados e informações heterogêneas,
evitando a ingenuidade de acreditar no “domínio” do texto escrito sobre a vida religiosa
antiga20. Mito, imagem, ritual e as diversas especulações teóricas, literárias e cênicas

19  O sistema religioso romano é um dos poucos em que se pode estudar as mudanças ocorridas a partir
da prática regularizada da escrita, que criou um vocabulário, conteúdos e formas teológicas, ligados a um
processo maior de mudança cultural. Tal processo é caracterizado, em linhas gerais, pela constituição de
grandes corpora documentais e pela organização do conhecimento na República Tardia, transformando o
modo como as pessoas agiam e pensavam sobre si mesmas e sobre o mundo, afetando letrados e iletrados
(MOATTI, 2008; WISEMAN, 2014).
20  A atual pesquisa acadêmica sobre os deuses na mitologia vincula-se principalmente à escola fran‑
cesa, na senda de G. Dumézil e J-P. Vernant, por exemplo, enquanto a historiografia inglesa e alemã dedi‑
cou-se mais frequentemente ao estudo dos deuses no contexto ritual (por exemplo, W. Burkert). Para
Dumézil (1974), o quadro da kosmós grega em Roma corresponde ao quadro da cidade. Ao mito cosmo‑
gônico grego responde o mito de fundação romano, a fundação da urbs, e essa distinção é coerente com os
dados documentais. Os estudos de mitologia também devem muito a C. Lévi-Strauss e a F. de Sausurre,
para quem as narrativas míticas são um tipo rigoroso de linguagem, com um aspecto generativo. Um exce‑
lente exemplo desta linha é a obra Le métier de Zeus (1994), de J. Scheid e J. Svenbro, em que perguntam se
o mito, compreendido como narrativa, não seria um obstáculo para compreender o que denominam mito
de tipo não narrativo, por exemplo, os mitos iconográficos e rituais. A. Snodgrass, por exemplo, tratou bre‑
vemente dos mitos iconográficos em Homero e os artistas (2004). Não é a narrativa que, aprioristicamente,
detém a verdade do mito ou do ritual. Sobre o problema do valor dos mitos, uma referência já clássica é
Acreditaram os gregos em seus mitos?, de P. Veyne (1984).

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são elementos fundamentais para a pesquisa, que devem ser concatenados e cotejados.
Sobre este ponto, J.-P. Vernant (1990) já chamava a atenção, propugnando contra os
preconceitos “irracionalistas”, como os chamou, que levavam à rejeição das narrativas
míticas, concentrando o estudo das religiões apenas nos dados rituais. Essa postura reve‑
lava (e revela) um preconceito contra as diversas formas de sensibilidade religiosa antiga
(e moderna) e o poder das narrativas de criar mundos de compreensão. Vernant defendia
o mito como fonte da experiência religiosa, e hoje dizemos que o mito é uma das fontes
dessa experiência. Recusar o mito é um erro metodológico na pesquisa das religiões, anti‑
gas ou modernas. Podemos seguir Vernant neste ponto, sem adotar sua equivocada ideia
de que as formas de transmissão dos mitos em narrativas mais bem-sucedidas em termos
literários criaram “uma” religião grega no Mediterrâneo, ou um domínio do “mito grego”
na Antiguidade, o que gerou um helenocentrismo religioso que ainda tem seus adeptos.
Os dados documentais das religiões antigas indicam que isso não ocorreu (BREMMER;
HORSFALL, 1987; WISEMAN, 2004)21.
Nos mitos romanos, os deuses são personagens frequentes, e muitas vezes são atores
das narrativas22. Conhecemos principalmente os mitos narrados pelos poetas augustanos
Virgílio e Ovídio, e uma mitologia romana é datada amiúde da época de Augusto, pois,
infelizmente, narrativas anteriores – plenamente atestadas – são fragmentárias (FEENEY,
1998; WISEMAN, 1998). Na Eneida, articulam-se eventos prototípicos, apresentando-se

21  Sobre a tradicional questão do helenismo da mitografia do período augustano, pesquisas recentes
demonstraram que modelos helenísticos serviam como vetores para as representações e criações romanas
(MOATTI, 2008; HÖLSCHER, 2004).
22  O mito romano foi expresso em diferentes media, e o que mais dificulta a pesquisa é o caráter tardio
dessa mitologia, um desvio causado pela nossa documentação. Uma excelente análise da mitologia romana
é o artigo de Scheid (1985) sobre o encontro/negociação entre Numa e Júpiter em Ovídio, esclarecedor
sobre as relações recíprocas entre os deuses e os seres humanos. Para aqueles que seguem o cliché de que
os poetas augustanos adotaram não apenas a forma, mas conteúdos gregos, o comentário de um escritor
grego antigo sobre este mito é esclarecedor: “O cúmulo do absurdo é o encontro que lhe atribuem com
Júpiter [...] essas lendas, esses relatos ridículos mostram bem a mentalidade religiosa que o hábito fez nas‑
cer nos homens daquele tempo” (Plut. Numa, 15.3ss). A forma é helenística, mas o conteúdo é romano e é
coerente com o pensamento romano sobre os deuses. Para Scheid, Ovídio recorre à mimésis, que se vin‑
cula às representações religiosas romanas, para as quais os deuses são cidadãos de Roma, e a ação de Numa
se adéqua claramente à dos magistrados, oficiantes da religio publica. A ideia de que os deuses são cidadãos
e estão, como os demais cidadãos, sob a tutela do magistrado é expressa também por Cícero, Leg. 1.7.23:
“É correto ver este mundo inteiro como uma única cidade, pertencendo em comum aos deuses e aos homens”.

61
padrões e modelos para a vida religiosa (FEENEY, 1991). Esses eventos são concebidos
como históricos, tendo, contudo, uma natureza exemplar; são mitos fundadores, para‑
digmáticos e fontes de autoridade, criando uma visão de mundo, fornecendo normas e
precedentes e recriando a vida da comunidade em suas imagens. São, simultaneamente,
um fenômeno da linguagem e um modo de ver/viver o mundo expresso em imagens que
não estão confinadas no passado; elas são onipresentes no tempo e no espaço da cidade.

Construindo o mito na Eneida

Cerca de sete anos antes de Augusto se tornar pontifex maximus e dez anos antes da dedica‑
ção da Ara Pacis Augustae, foi publicada a Eneida, de Virgílio, e interessa-me aqui a obser‑
vação da representação dos di Penates nesta obra. Gentes, familiae e outros grupos sociais
construíam suas identidades por referência a tais deuses, mas o modo como os Penates
são representados na Eneida é bastante complexo, e muitos estudiosos da religião romana
chegaram a supor que Virgílio, cujo nascimento teria ocorrido em Andes, na Gália Cisal‑
pina, não tinha um conhecimento seguro sobre os Penates romanos (BOYANCÉ, 1972,
p. 65-72; DUBOURDIEU, 1989, p. 35-56, 161-196). É preciso pensar, contudo, que o
século I AEC viu coexistirem diferentes narrativas poéticas, visuais e especulações filo‑
sóficas e antiquárias sobre os deuses (FEENEY, 1998; MOATTI, 2008; RÜPKE, 2012)
e que essa coexistência é uma das características do sistema religioso romano.
A primeira menção explícita aos Penates na Eneida surge na fala da deusa Juno,
quando ela pede a Éolo para enviar uma tempestade sobre a frota troiana (Aen. 1.67-68):
“gens inimica mihi Tyrrehenum nauigat aequor / Ilium in Italiam portans uictosque penates”
[“gente inimiga me sulca o Tirreno, levando consigo / Troia e os vencidos Penates em
busca da Itália distante”] (grifo nosso)23. No proêmio, é dito que a Eneias coube a tarefa
de conduzir os deuses ao Lácio (inferretque deos Latio), mas, na fala de Juno, é uma gens
que está associada aos Penates, e esta gens conduz não só os deuses, mas também sua
cidade de origem, Troia (Ilium), à Itália. Os Penates não são mencionados apenas como
deuses familiares, mas como deuses de uma comunidade mais ampla. Mais importante,

23  Sigo a tradução do texto da Eneida de Virgílio por Carlos Alberto Nunes, organizada em edição bilín‑
gue por João Ângelo Oliva Neto para a Editora 34, 2014. Traduções de outros autores antigos são minhas.

62
esses deuses são “conduzidos” (portans)24. Os Penates surgem como objetos materiais,
o que está de acordo com a referência a uma descrição, feita por Varrão, dos Penates
como figuras de madeira ou de mármore trazidas de Troia por Eneias (Serv. ad Aen.,
1.378). Com tal base, é possível perguntar pela materialidade e mobilidade dos Penates
e pelo papel dessas divindades na formação do povo romano, visando ampliar a com‑
preensão das inter-relações entre religião, mito e sociedade na Roma do século I AEC.
Apesar de os Penates serem apresentados como objetos materiais (estátuas), há
uma grande diferença no modo como os deuses e outros objetos de culto são citados/
usados pelas personagens. O agonizante Heitor diz a Eneias, em sonho, que este rece‑
beria os sacra e os Penates da própria cidade de Troia (Virg. Aen., 2.270-297), e Eneias
deveria seguir sua recomendação, cuidando dos deuses até que fundasse novos muros
onde pudesse depositá-los (Virg. Aen., 2.294-295). Os Penates deviam ser cuidadosa‑
mente guardados, o que permite uma aproximação com a pergunta retórica de Cícero,
em Verr. 2.4.11, se alguém poderia acreditar que um certo Heius tivesse vendido seus
Penates a Verres sem ter sido forçado a tal. Um “verdadeiro romano”, como Heius é
apresentado, só venderia seus deuses domésticos se sofresse um grave revés financeiro
(“difficultas [...] rei nummaria [...] egestas [...]ius”), e, como Cícero o apresenta, não era o
caso. Na lógica do argumento, Verres certamente o forçara à venda. A dimensão reli‑
giosa dessas estátuas limitava seu comércio, pois a identidade e o poder de seu possui‑
dor estavam conectados com elas.
É por seus laços com Dárdano, Anquises e Eneias que os Penates são objeto de
extremo cuidado. Daí o caráter extraordinário da viagem de Eneias conduzindo os Pena‑
tes, pois, ao contrário de outros objetos e bens, esses deuses eram inalienáveis e imóveis,
ou seja, deviam ser mantidos em local seguro – idealmente, na área interna de um templo
(penus) ou no penitus de outros edifícios e residências, como a passagem de Cícero permite
depreender: “Penates siue a penu ducto nomine (est enim omne quo uescuntur homines penus),
siue ab do quod penitus insident: ex quo etiam penetrales a poetis uocantur” (Cic. Nat. D. 2.68)
[“Penates, quer seja um nome derivado de víveres (porque víveres são tudo aquilo que

24 O OCD (Oxford Classical Dictionary) 1408 apresenta dois sentidos para o vocábulo portans: 1º) transpor‑
tar; 2º) carregar com esforço físico. Já o ThLL (Thesaurus Linguae Latinae) X.2, 1.45, 2ff enfatiza a materia‑
lidade deste vocábulo, apresentando os seguintes sentidos: “de actione corporalis, oculis percipienda: A. portant
animantes uel uehicula: I. strictus portantur onera externa uel animantes perferendi, peruehendi ad alium locum”.

63
nutre aos homens), seja porque têm sua residência no interior: por isso os poetas os cha‑
mam também de profundos”].
A área interna de um templo (aedes) ou de uma domus era o local a partir do qual os
Penates dispensavam seu poder, mas, na Eneida, encontramos os deuses em uma situação
incomum, pois eles são movidos, transportados. O movimento desses deuses, extraordi‑
nário per se, pode ser o fundamento, por exemplo, de um relato do historiador grego Dio‑
nísio de Halicarnasso (Ant. Rom. 1.67): ao serem transferidos do Lavinium a Alba Longa,
os Penates, à noite e milagrosamente, retornaram ao seu lugar, no Lavinium.
Retornando à questão do caráter físico dos Penates, é preciso destacar que estão
relacionados a outros objetos sagrados (sacra), mas, para além de seu caráter material,
eles também são símbolos, representações. Nesse ponto, o conceito de “capital sim‑
bólico” (BOURDIEU, 2003, 1992; HÖLKESKAMP, 2014, 2006) é uma categoria apro‑
priada para compreendermos atualmente a relevância desses deuses para a personagem
Eneias e para o povo romano, um capital simbólico autenticado genealogicamente pelos
patres: no sonho de Eneias, Heitor está deixando sua pátria e seu pai, Príamo (“sat patriae
Priamoque datum”, 2.291), e recomenda os Penates a Eneias. A referência genealógica é
nítida também nas passagens relativas à partida de Eneias com seu pai, Anquises, seu
filho Ascânio/Iulo e os Penates de Troia:

[...] tu, genitor, cape sacra manu patriosque penatis...


[...]dextra se paruus Iulus
implicuit sequiturque patrem non passibus aequis;
pone subit coniux.(Virg. Aen., 2.717; 723-725)
[... tu, caro pai, leva os pátrios Penates e objetos do culto...]
[... da mão me tomando do lado direito, Iulo/ procura igualar-me na marcha, amiu‑
dando os passinhos. Atrás, a esposa me segue.]

Há uma grande quantidade de termos genealógicos nas passagens: genitor, pátrias,


paruus25, pater. E a relevância dos Penates na genealogia de Eneias é expressa com ainda
mais nitidez em Aen., 2.747: “Ascanium Anchisenque patrem Teucrosque penatis”. Os Penates
garantem a autoridade dos patres a Eneias, e a continuidade dessa autoridade aos futuros

25  Paruus aqui tem o sentido de “filho”, como em ThLL 10/1.553, 82ff.

64
patres de sua gens. Distintamente dos Lares, que são divindades de toda a familia romana,
incluindo mulheres e escravos, os Penates são estreitamente associados aos patres familias
e a seus sucessores.
Essas estátuas representam e mantêm a força religiosa, moral e, talvez, política de
seus detentores, formando um capital simbólico cumulativo, garantindo a continuidade
em um mundo marcado pela mudança. Talvez por isso a personagem Heitor diga que a
própria Troia deu os Penates a Eneias:

‘heu fuge, nate dea, teque his’ ait ‘eripe flammis.


hostis habet muros; ruit alto a culmine Troia.
sat patriae Priamoque datum: si Pergama dextra
defendi possent, etiam hac defensa fuissent.
sacra suosque tibi commendat Troia penatis
hos cape fatorum comites, his moenia quaere
magna pererrato statues quae denique ponto.’
sic ait et manibus vittas Vestamque potentem
aeternumque adytis effert penetralibus ignem. (Virg. Aen., 2.289-297)
[“Foge daqui, filho de uma deidade; do incêndio te livra.
Dentro dos muros campeia o inimigo; hoje Troia extinguiu-se.
Muito já demos a Príamo e à pátria. Se a Pergamo a destra
De algo valesse, estas mãos se imporiam na sua defesa.
Troia te entrega os seus deuses e os sacros objetos do culto.
Leva consigo esses sócios; procura morada para eles,
Grande cidade, depois de cortares o mar tormentoso”.
Disse, e entregou-se as sagradas insígnias e Vesta potente,
E o fogo eterno que ardia no lar, no santuário profundo.]

Mas, como a continuidade seria garantida, através de Eneias, às novas gerações de


patres do Lácio? Sobre este ponto, o juramento da longa passagem em 12.161-215 for‑
nece algumas pistas. Os troianos dão presentes a Latino e pedem a paz com o rei. Latino,
por sua vez, lhes dá cavalos e, a fim de seguir as instruções do oráculo e mostrar seu com‑
promisso em manter a paz, acrescenta sua filha, Lavínia, como noiva de Eneias. Lavínia
é o elemento-chave da continuidade, e Eneias reage com o juramento:

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Sin nostrum adnuerit nobis uictoria Martem
(ut potius teor et potius di nomina firment),
non nego nec Teucris Italos parere iubabo
nec mihi regna peto: paribus se legibus ambae
inuictae gentes aeterna in foedera mittant.
Sacra deosque dabo; socer arma Latino habeto,
imperium solemne socer; mihi moenia Teucri
constituent urbique dabit Lauinia nomen (Virg. Aen., 12.187-194).
[Se Marte nos der a vitória ambiciosa
conforme o espero (oxalá me confirmem os deuses o voto)
não forçarei à obediência dos teucros os povos da Itália,
nem o reinado reclamo sobre eles; num pacto perpétuo de paz e aliança
os dois povos potentes serão sempre amigos.
Nossas deidades e o culto daremos aos povos da Itália.
Fique Latino, meu sogro, com as armas e o império solene,
pois fundarão os troianos cidade de nome Lavínia.]

O vocábulo plural sacra, na expressão sacra deosque dabo, pode ser compreendido como
“rituais” ou “cultos”, como na tradução que sigo aqui, mas também pode ser entendido
como instrumenta sacra, referido aos objetos sagrados resgatados de Troia, como a ênfase
da passagem na materialidade permite aventar. Trata-se de um juramento no contexto
de uma negociação, e os Penates surgem como contrapartida do pacto entre os troianos
e os latinos. É preciso notar que não se trata de um simples “dote da noiva”, mas sim da
garantia da união entre o príncipe troiano e a princesa latina, na criação de uma nova
estirpe. Desse modo, não surpreende que Eneias não transmita os Penates diretamente
a seu filho Ascânio/Iulo, pois fora advertido em sonho que, na Itália, se tornaria pater
de um novo povo (“pater Aeneias, Romanae stirpis origo”, 12.166). Ao pronunciar sacra
deosque dabo, Eneias dá, mas também mantém os Penates. E, assim como os Penates, a
nova gens que nascerá de Eneias e Lavínia pertencerá simultaneamente às genealogias
de Dárdano e de Latino. Lavínia e os sacra deosque criam a nova gens, unindo troianos e
latinos na cidade. Os Penates garantem a continuidade genealógica e imperial de Roma,
que culmina em Augusto, futuro deus e pater patriae. Transferidos para uma “nova casa”,

66
eles também significam as mudanças no curso e em curso da história romana. Sua ação
incide sobre a sociedade do épico virgiliano e sobre a Roma augustana.

Considerações finais

Virgílio conecta teologicamente a gens Iulia a Eneias e a Lavínia, a troianos e a latinos,


e, na imagem de Augusto na batalha do Actium, vemos novamente os Penates em ação:

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar


cum patribus populoque penatibus et magis dis (Virg. Aen., 8.678-679).
[César Augusto se via na popa, de pé, comandando
Ítalos, gente do povo, o senado, os Penates, os deuses].

Mais uma vez, os Penates são movidos e se encontram em uma situação extraordi‑
nária de precariedade, encerrada com a vitória de Augusto. A vitória em Actium é o con‑
trário da derrota em Troia, assim como o ponto de chegada de um processo histórico
que levou os troianos derrotados pelos gregos à obtenção, quae romanos, do domínio do
mundo. Augusto surge como o clímax da história romana, uma história regida pela pro‑
vidência divina e epitomizada na profecia de Júpiter:

bellum ingens geret Italia, populosque feroces


contundet, moresque viris et moenia ponet,
tertia dum Latio regnantem viderit aestas,
ternaque transierint Rutulis hiberna subactis.
At puer Ascanius, cui nunc cognomen Iulo
additur,—Ilus erat, dum res stetit Ilia regno,—
triginta magnos volvendis mensibus orbis
imperio explebit, regnumque ab sede Lavini
transferet, et longam multa vi muniet Albam.
Hic iam ter centum totos regnabitur annos
gente sub Hectorea, donec regina sacerdos,
Marte gravis, geminam partu dabit Ilia prolem.

67
Inde lupae fulvo nutricis tegmine laetus
Romulus excipiet gentem, et Mavortia condet
moenia, Romanosque suo de nomine dicet.
His ego nec metas rerum nec tempora pono;
imperium sine fine dedi. Quin aspera Iuno,
quae mare nunc terrasque metu caelumque fatigat,
consilia in melius referet, mecumque fovebit
Romanos rerum dominos gentemque togatam:
sic placitum. Veniet lustris labentibus aetas,
cum domus Assaraci Phthiam clarasque Mycenas
servitio premet, ac victis dominabitur Argis.
Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,
imperium oceano, famam qui terminet astris,—
Iulius, a magno demissum nomen Iulo.
Hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum,
accipies secura; vocabitur hic quoque votis.
Aspera tum positis mitescent saecula bellis; [...] (Virg. Aen., 1.163-291)
[Guerras terríveis ele há de enfrentar, povos de ânimo fero
Domar no jugo, a seus homens dar leis e cidades muradas,
Quando, três anos corridos, estios e invernos gelados,
Reinar no Lácio e abater a fereza dos rútilos fortes.
Seu filho Ascânio, cognome de Iulo lhe foi acrescido
(Foi Ilo enquanto sabia-se de Ílio e da sua presença),
Governará por trinta anos, um mês depois do outro, a cidade,
E a capital de Lavínio, seu reino, aumentado de muito,
Para Alba alfim mudará, guarnecida de grandes muralhas.
Nestes domínios a gente de Heitor manterá o comando
Trezentos anos, até que a princesa Ília, sacerdotisa,
De Marte grávida, à luz há de dar os dois gêmeos preditos.
Rômulo, então, muito vaidoso da pele fulgente da loba,
Dominará nestes povos e, o burgo mavórcio erigindo
De fortes muros, seu nome dará aos romanos ditosos.
Prazo nem metas imponho às conquistas do povo escolhido.
Dou-lhes Império sem fim. Até Juno, a deidade ofendida,
Que à terra, ao céu e ao mar bravo trabalhos sem pausa ocasiona

68
Com seus temores, mudada em melhor, há de em breve os romanos
Favorecer, os senhores do mundo, esse povo togado.
Assim me apraz. Há de a idade chegar, na carreira dos lustros,
Em que a casa de Assáraco à ilustre Micenas e Ftia
Dominará, e sobre Argos vencida há de impor o seu jugo.
César de Troia, de origem tão bela, até as águas do Oceano
Vai estender-se; sua fama há de aos astros chegar dentro em pouco.
Do claro nome de Iulo provém o cognome de Júlio.
Livre do medo infundado, hás de um dia no Olimpo acolhê-lo,
Rico de espólios do Oriente. Invocado vai ser pelos homens.
Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos séculos.]

Na profecia de Júpiter, o destino de Roma é apresentado em três fases: a derrota


troiana e a viagem de Eneias – ponto de partida para a fundação de Roma por seu descen‑
dente, Rômulo (CORNELL, 1975, p. 13-16) –; a supremacia romana no mundo; e a vitória
de Augusto, descendente da gens diuina, filho do novo deus, sob cuja estrela a profecia se
concretiza (Virg. Aen., 9.48-9). Também na descrição do escudo de Eneias delineia-se a
história da Itália e o triunfo dos romanos, e a estrela do deus Júlio transmite o poder do
pater, brilhando sobre Augusto (Virg. Aen., 8.681). Os Penates e os divinizados Eneias,
Rômulo e Júlio César prepararam o caminho para a transformação de Augusto em diuus
Augustus, que realiza, torna real, a profecia. Pode-se falar aqui em uma teomorfização da
figura de Augusto, cujo elemento central foi a vinculação do princeps a momentos-chave
da história romana e o estabelecimento de múltiplas conexões entre Augusto e persona‑
gens e motivos religiosos, apresentando-o como descendente de deuses.
Essa imagem ecoará na mitografia augustana muito além da Eneida, e a historio‑
grafia antiquista por muito tempo perguntou pelo caráter das ações augustanas, no
que tange aos sacra publica, se político ou religioso. É possível que essa seja uma falsa
questão, que pode ser superada ao se observar como Augusto moldava a si mesmo
com base em seres transcendentes que existiam para seus contemporâneos, principal‑
mente através das representações literárias, cênicas e visuais, no momento em que o
passado romano era recriado em vários media (FEENEY, 1991, 1998; KOORTBOJIAN,
2013; WISEMAN, 2014), e o tema dos Penates deve ser compreendido como parte inte‑
grante da teologia do período. A linguagem imagética, poética e visual teve um grande
papel a desempenhar na criação do novo deus, apresentando Augusto in formam deorum.

69
Na Eneida, os Penates são os penhores da continuidade da grandeza entre Troia e Roma, e
este tema contribuiu para a percepção da imagem de Augusto como um símbolo atraente,
capaz de mobilizar as crenças, as consciências e as fantasias, e de suscitar poderosos sen‑
timentos religiosos. Em outras palavras, um deus.

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72
Uma análise do ritual expiatório à luz
de Ab Vrbe Condita, de Tito Lívio
Luciane Munhoz de Omena
Suiany Bueno Silva

Introdução

A terra tremeu; nos tempos públicos onde se realizava um lectistérnio26, as cabeças


dos deuses, que repousavam sobre os leitos, se voltaram, e o prato com sua tampa,
que fora colocado diante de Júpiter, caiu da mesa. O fato de os ratos terem previa‑
mente comido as azeitonas foi também interpretado como um prodígio. Por expia‑
ção, contentou-se em recomeçar os jogos (Titus Livius. Ab Vrbe Condita, XL, 59)27.

A epígrafe supracitada sugere as variadas manifestações religiosas representadas nas


narrativas de Tito Lívio (59 a.C.-12 a 17 d.C.) em Ab Vrbe Condita. Logo nos incita a com‑
preender os discursos e práticas ritualísticas como um objeto de pesquisa de fundamen‑
tal relevância para a reflexão acerca da experiência social do sagrado à época de Augusto.
Assim, nossa proposta visa à compreensão dos rituais expiatórios como uma ação, uma
prática que colocava em destaque a manutenção da pax deorum e a promoção da concor-
dia na comunidade cívica. Partindo dessas premissas, consideramos que a observância
dos prodígios, a partir da supplicatio, colocava em evidência a vinculação das manifesta‑
ções religiosas com o discurso institucional romano. Podemos perceber que a narrativa

26  O termo lectisternium, advindo da documentação em latim, significa lectus + sterno: lectistérnio – ação
de estender um leito, no qual se colocavam as estátuas dos deuses para lhes oferecer um banquete servido
pelos Collegium Septemvirorum Epulonum (Dicionário latino-português por Francisco Torrinha, 1942, p. 471).
27  Para a construção deste artigo, o texto original em latim consultado é aquele registrado na Loeb
Classical Library, como pode ser visto nas referências ao fim do capítulo.

73
liviana apresentava a religio como um espaço privilegiado para a construção de condu‑
tas cívicas que, segundo nossos pressupostos, exploravam a associação da comunidade
com as divindades.
Visto desse modo, o estudo das práticas religiosas nos possibilita compreender a
relação entre as crenças e as formas ritualísticas como elementos essenciais para a pro‑
moção da concordia na urbs e, por consequência, o ordenamento social na comunidade
cívica, de modo a promover uma publica memoria. Com esse viés interpretativo, acre‑
ditamos que a argumentatio de Tito Lívio indica as manifestações ritualísticas como
espaço de interações sociais, já que se vinculavam às formas de comunicação social e
política inscritas no período de Augusto. Nosso objetivo com essas discussões é refle‑
tir sobre o papel social dos ritos em Tito Lívio; assim, por meio do mapeamento docu‑
mental de Ab Vrbe Condita, selecionamos passagens em que Lívio traz à luz as práticas
rituais28, em especial aquelas concernentes à expiação como um modo de aplacar a
ira deorum. As discussões partirão da análise do ritual presente no Livro XXI, com o
intuito de compreender os prodígios como elementos que reconectam o indivíduo aos
deuses por meio do rito expiatório.

Ritos e prodígios em Tito Lívio

O episódio do Livro XXI refere-se ao contexto do confronto entre cartagineses e roma‑


nos, datado, aproximadamente, em 218 a.C., quando os cartagineses, comandados por
Hanão, foram derrotados pelas forças romanas, sob comando de Cneu Cipião. Nesse
mesmo contexto, Tito Lívio informa aos leitores-ouvintes que se produziram inúmeros
prodígios, tais como: 1 – uma criança de seis meses havia nascido livre e gritara “triunfo”
em pleno mercado de legumes; 2 – no Fórum Boário, a multidão testemunhou a subida
de um boi até o terceiro andar de um prédio e a sua inusitada queda, causada em função

28  Podemos destacar igualmente outras passagens acerca dos rituais expiatórios representados em Ab Vrbe
Condita. São elas: V, 13; VII, 2; VII, 27; XXI, 62; XXII, 1; XXII, 9 e 10; XXXVI, 1; XL, 59; XLII, 30; XXV, 2;
XXXIII, 42; XXXIX, 46; I, 26; II, 38; V, 50 e 52; VIII, 9 e 10; IX, 1; XXII, 9; XXIX, 18, 19 e 21; XXXI, 12;
XL, 37; XLII, 3; I, 20; II, 42; III, 10; V, 14, 18, 23 e 52; X, 23; XXI, 62; XXII, 1 e 9; XXIV, 10 e 44; XXV, 16;
XXVI, 23; XXVII, 4, 11, 23, 37, 51; XXVIII, 11; XXIX, 14; XXXI, 12; XXXII, 1, 9 e 29; XXXIV, 45;
XXXVII, 3; XL, 2, 19, 45 e 59; XLI, 13 e 16; XLII, 2 e 20; X, 23 – entre outras.

74
do medo do animal diante do alvoroço das pessoas presentes; 3 – o templo da Esperança,
situado no mercado de legumes, foi atingido por um raio; 4 – um corvo havia voado para
o templo de Juno e pousado sobre a almofada da deusa; e 5 – na região do Piceno, ocor‑
reu uma chuva de pedras (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62). Assim, parece-nos possível
deduzir que, nesse contexto bélico, a observação e interpretação dos prodígios torna‑
ram-se imprescindíveis. De acordo com as palavras de Tito Lívio:

Em relação a todos os prodígios anunciados ordenaram os decênviros que se con‑


sultassem os livros, salvo quanto à chuva de pedras no Piceno, que mereceu uma
novena. Quase toda a cidade se empenhou em afastar, mediante cerimônias, a
ameaça dos prodígios (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62).

Como supomos, o historiador paduano coloca em destaque a importância de se


consultar os decênviros e, igualmente, acentua a auctoritas deste colégio sacerdotal na
organização das ações rituais, pois, segundo suas argumentações, ao escrever sua obra,
fez-se tal como os homens de sabedoria, ao considerarem dignos de relato determina‑
dos acontecimentos ou sinais enviados pelos deuses, de modo que os prodígios se trans‑
formariam em objetos de consultas oficiais (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XLIII, 13), destinados
à aprovação sacerdotal.
Dessa forma, a partir do decreto dos decênviros, determinou-se a purificação da urbs
por meio da realização de sacrifícios oferecidos aos deuses, de maneira que, em Lanúvio,
Juno recebera uma oferenda de quarenta libras de ouro; no Aventino, as matronas dedi‑
caram à deusa uma estátua de bronze; em Ceres, onde as tabuinhas haviam encolhido,
determinou-se a realização de um banquete – lectisternium – e supplicatio à deusa For‑
tuna; em Roma, também se decretou um lectisternium e suplicações, respectivamente à
Juventude e ao templo de Hércules; imolaram-se vítimas ao Gênio, e o pretor Caio Atí‑
lio Serrano recebeu ordem de fazer votos para que a res publica romana permanecesse
intacta durante dez anos (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62). Realizadas as devidas expiações
e votos de acordo com as prescrições contidas nos Livros Sibilinos29, Tito Lívio (Ab vrbe
cond., XXI, 62) afirma que “viram-se em grande parte aliviar os sentimentos religiosos”.

29 Os Livros Sibilinos eram uma coleção que continha os oráculos das Sibilas, provenientes da cultura
grega (ROQUE, 2002, p. 138). Os livros foram guardados em uma arca posta em uma cripta de pedra

75
Assim, parece-nos possível deduzir que as ordens decretadas pelos decênviros con‑
cernentes à prática ritual expiatória permitiu à comunidade a promoção da concordia
entre os homens e o sagrado. De fato, compreendemos que a narrativa liviana acen‑
tua o rito expiatório como um remedium à ocorrência dos prodígios nefastos em mea‑
dos do combate dos romanos contra os cartagineses (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 51), de
modo a evitar o caos e a desordem na urbs. Nesse sentido, consideramos que o discurso
de Lívio expressa a observância do prodígio, da supplicatio e da realização do banquete –
lectisternium – como elementos constituintes da prática ritual expiatória, que objetivava
a placatio deorum, uma ação excepcional, um modo de reconexão com o espaço sagrado,
que atingia toda a comunidade cívica.
A respeito dessas discussões, Aline Abaecherli Boyce (1937, p. 158) argumenta
que o rito expiatório tornou-se uma ação satisfatória perante as divindades, uma
vez que atuava como um meio de placatio deorum e permitia, por isso, a instauratio da
concordia (Tit. Liv. Ab vrbe cond., V, 18). Segundo a argumentação de Tito Lívio, jun‑
tamente com a instauratio, compreendia-se a renovatio dos laços entre os homens e os
deuses (Tit. Liv. Ab vrbe cond., V, 52) (BOYCE, 1937, p. 166), já que “as cerimônias reli‑
giosas haviam sido restabelecidas em conformidade com os ritos, e os prodígios expiados”
(Tit. Liv. Ab vrbe cond., V, 18); isto é, o discurso liviano acentua a estreita relação entre
a ação expiatória, o ritual como prática de renovação e a reintegração por meio do apa‑
ziguamento da ira deorum. Como argumentamos, a prática ritualística regia as relações
entre seres humanos e o divino a partir da comemoração de cerimônias dedicadas aos

existente sob o templo de Júpiter Capitolino, em Roma. “Profetas mulheres que faziam previsões em enig‑
mas, as dez sibilas eram ‘imortais’ cujas palavras, segundo acreditavam os gregos e romanos, eram dotadas
de profundo significado para os mortais” (FISCHER, 2006, p. 73-74). Provavelmente, estes livros che‑
garam a Roma na época dos reis, trazidos talvez de Cumas para Roma, e foram colocados sob os cuida‑
dos dos sacerdotes. Consultados pelos pontífices em tempos de calamidades na ocorrência de prodígios
(Tit. Liv. Ab vrbe cond., VII, 27; XX, 9; LX, 19, 37, 45), os livros aconselhavam sobre a introdução dos
ritos e cultos sob a organização dos quindecênviros, os quais se encarregavam de vigiar as corresponden‑
tes celebrações. Tal como argumenta Scheid (1991, p. 45), os oráculos Sibilinos auxiliavam a res publica
a compreender os motivos das crises e expiá-las conforme a tradição. Interessa, sobretudo, ressaltar que
não se tratava de consultar qualquer oráculo. Reconheciam-se apenas os conjuntos de livros que estives‑
sem sob a proteção dos quindecênviros e que fossem divulgados por ordem senatorial, ou seja, “entre a
palavra, a vontade dos deuses e, entre estes e os cidadãos sempre se encontrava a presença dos magistra‑
dos e dos sacerdotes” (SCHEID, 1991, p. 45). Ver também Scheid (1998).

76
deuses, como forma de se aplacar os Manes e decidir quais prodígios enviados pelos
raios, ou por qualquer outro fenômeno, deveriam ser reconhecidos e expiados (Tit. Liv.
Ab vrbe cond., I, 20). A perspectiva de Tito Lívio revela-nos o papel das práticas de piacula
(expiar, apaziguar), em que a ação ritual se transformava em

um espaço de recordação, encenava a interação entre o mundo dos homens e o


mundo dos deuses, traduzia-se em sua dimensão simbólica, social e religiosa ao
promover, deste modo, a reintegração da comunidade ao sagrado (ASSMANN,
2008, p. 27-28).

Em razão disso, entendemos que a função da prática ritualística estaria associada ao


processo de reintegração do homem com o divino, de forma a reforçar os papéis sociais
na ação ritual e, como tal, unir indivíduos socialmente, exercendo seu papel coletivo na
promoção da concordia na comunidade cívica. Vistas desse modo, as manifestações ritua‑
lísticas referem-se não apenas aos sentimentos ou percepções individuais, mas, sobre‑
tudo, aos grupos sociais – à comunidade cívica –, sendo um dos principais fatores que
instituíam, consolidavam e mantinham a coesão e o ordenamento social, representan‑
do-os como uma ordem sagrada. Logo, os ritos expiatórios (ROSA, 2012b) são singu‑
lares às nossas percepções, pois evidenciam as práticas ritualísticas como ações da vida
cotidiana do romano; quer dizer, por meio da ação expiatória, o indivíduo restabelece
a conexão com o divino e, portanto, obtém a concordia como prática social, relacionada,
em nossas análises, às perspectivas da religiosidade.
Como parte desse diálogo, faz-se necessário discutirmos acerca do papel dos pro‑
dígios e da supplicatio presentes no ritual expiatório, pois, assim como compreendemos,
o episódio do Livro XXI destaca os prodígios e a necessidade das cerimônias expiató‑
rias como práticas fundamentais para a manutenção da relação com os deuses, com o
intuito de obter as benesses divinas e garantir, desse modo, a estabilidade na urbs romana
(SCHEID, 2009; FEENEY, 1998). Ao que nos parece, a execução correta dos ritos pres‑
critos tinha por finalidade conseguir o apoio divino para a comunidade; à vista disso,
essa característica contratual da religio romana se manifestava no permanente cuidado
que os homens deveriam ter para com a realização das coisas ditas sagradas – oferen‑
das, sacrifícios, festividades –, pois qualquer lapso, descuido ou inobservância das prá‑
ticas religiosas poderiam acarretar a ocorrência de prodígios funestos. Corrobora essa

77
hipótese Tito Lívio, no episódio do Livro XXI, ao destacar que toda a comunidade da
urbs se empenhou em afastar, mediante a prática de cerimônias e ritos, qualquer ameaça
advinda dos prodígios (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62). Logo, o ritual expiatório pode
ser compreendido como uma prática que colocava em destaque a interpretação, a obser‑
vância dos signos do prodígio por meio da ação expiada, pois, uma vez conhecido e
manifestado o prodígio, tornava-se necessário expiá-lo para restabelecer a comunica‑
ção com os deuses, por intermédio de um processo chamado de procuratio prodigiorum
(SÁNCHEZ SANZ, 2013, p. 16).
José Jiménez Delgado (1963, p. 404) reforça tais argumentações ao pontuar que os
prodígios ocupavam, de fato, um papel essencial na vida religiosa dos romanos. Como
expressão da vontade dos deuses e da pax deorum, evitava-se a infração e o não cumpri‑
mento das práticas ritualísticas, pois, como supomos, os fatos prodigiosos eram objetos
de minuciosa e atenta observação por parte dos representantes oficiais do povo. Sendo
assim, seguiam-se as deliberações e consultas ao colégio sacerdotal, em especial aos
decemuiri sacris faciundis30, ou quando necessário aos Livros Sibilinos (Tit. Liv. Ab vrbe cond.,
XLII, 2), de modo a se compreender o significado religioso dos acontecimentos prodi‑
giosos e, portanto, estabelecer as devidas ordens para organização das cerimônias ritua‑
lísticas – procuratio – ou expiação dos prodígios (JIMÉNEZ DELGADO, 1963, p. 404)31.
A partir do exposto, podemos compreender que os prodígios mencionados por
Tito Lívio não foram uma simples alusão desprovida de conexão temporal e contextual.
Pelo contrário, é relevante compreender quando, como e onde se produziram tais pro‑
dígios. Conforme propõe Jiménez Delgado (1963, p. 412), os prodígios eram provenien‑
tes de momentos críticos, diante de um perigo ou de calamidades públicas ocorridas em
vésperas de grandes acontecimentos. Por tal motivo, o momento histórico e o fattum
(Tit. Liv. Ab vrbe cond., XLII, 2) foram de suma relevância. Isso nos leva a crer que Tito
Lívio teve cuidado em recorrer às circunstâncias históricas que precediam o aparecimento
dos prodígios; tal suposição pode ser vislumbrada no episódio do Livro XXI, pois, como

30  Segundo Scheid (1991, p. 34-35), o colégio dos quindecênviros era encarregado da realização dos sacra
e das consultas aos Livros Sibilinos; possuíam como função a conservação, a consulta e a interpretação da
petição senatorial, dos Livros Sibilinos e do conjunto de prescrições e ritos. O colégio quindecenviral atuava
quando os signos exteriores – os prodígios – denunciavam a ruptura da concordia existente entre a urbs e as
divindades, em especial no que tange às precauções e expiações.
31  Consultar também as seguintes referências historiográficas: Bloch (1949); Turchi (1939).

78
supomos, os prodígios ocorridos em Roma no ano de 218 a.C. estiveram diante do con‑
texto histórico das guerras romanas contra os cartagineses (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62).
Visto desse modo, consideramos que, ao se manifestarem por meio de fenômenos
imprevistos, os prodígios foram configurados em duas categorias gerais, que determi‑
navam as características e manifestações singulares de cada acontecimento prodigioso,
sendo, portanto, compreendidos como prodígios celestes32 e prodígios terrestres33 (Cicero
De divinatio, I, 42). Esses prodígios anunciariam um perigo imediato, visto que, para os
romanos, não seria possível subsistir nenhuma sociedade sem a autorização dos deuses
(MACBAIN, 1982, p. 7; JIMÉNEZ DELGADO, 1963, p. 402). Consideramos assim que a
posição de Lívio perante os prodígios é, de fato, destacada ao longo de sua Ab Vrbe Condita,
pois, de acordo com suas palavras, os prodígios ocupavam um lugar importante na manu‑
tenção da vida religiosa dos romanos (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XLII, 2) e antecipavam, em
muitos casos, o princípio de cada guerra e de acontecimentos públicos; logo, por tais moti‑
vos, eram organizados rogativas, cultos, oferendas e sacrifícios aos deuses no intuito de
garantire a manutenção da pietas e, desse modo, obter benesses.
Já no episódio do Livro XXI, faz-se notar a presença dos prodígios no contexto da
guerra de Roma contra os cartagineses, um momento em que a urbs romana buscava
atrair alianças com as cidades da Hispânia. Interessante observar que o aparecimento
dos prodígios funestos em Roma desencadeou-se de modo variado e significativo, con‑
forme ressaltado em nossas análises, já que os prodígios ocorridos pertenceram à catego‑
ria dos prodígios celestes e dos prodígios terrestres (JIMÉNEZ DELGADO, 1961a, p. 443).
Tal pressuposto pode ser vislumbrado nas palavras de Lívio, quando destaca os seguin‑
tes acontecimentos: prodígios celestes – 1) “algo parecido com navios riscara o céu, quais
relâmpagos”; 2) “o templo da Esperança situado no mercado de legumes fora atingido
pelo raio”; 3) “No Piceno, choveram pedras” (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62); prodígios
terrestres – 1) “uma criança de seis meses, nascida livre, gritara triunfo! em pleno mer‑
cado de legumes”; 2) “no fórum Boário, um boi subira pelas próprias pernas ao terceiro

32  Podem ser compreendidos como exemplos de prodígios celestes (Tit. Liv. Ab vrbe cond., I, 28; XXX, 38;
XXXVIII, 36; XLIV, 37; XXVI, 5; XXVIII, 11; XXIX, 14; XLI, 21; XXII, 1; XXXI, 12; III, 9; XXIII, 31; XXIX, 14;
XLIII, 13; XL, 58; entre outros).
33  Podem ser compreendidos, à guisa de exemplificação, como prodígios terrestres (Tit. Liv. Ab vrbe cond.,
XXII, 1; XXIV, 10; XXVII, 11; XXVII, 23; XXVII, 37; XLV, 16; XXIII, 31; XL, 19; XLIII, 13; XXXV, 9;
X, 27; entre outros).

79
andar de um prédio, de onde atirou-se para baixo em decorrência do tumulto ocasionado”;
3) “Um corvo voara para o templo de Juno e pousou sobre a almofada da deusa”; 4) “No
território de Amiterno, avistaram-se a vida e os feitos do divino Augusto em diversos
locais fantasmas de aparência humana, velados de branco, que não falavam com ninguém”;
5) “em Ceres, tabuinhas de sorte encolheram-se por si mesmas”; 6) “na Gália, um lobo
arrebatou o gládio de uma sentinela e fugiu com ele” (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62).
Mediante essa esquematização, é relevante destacar, tal como propõe Jiménez Del‑
gado (1961b, p. 41-44), que os relatos dos prodígios acima constituem o primeiro passo
da execução do ritual expiatório; logo, parece possível deduzir que o segundo trataria da
tomada de posição do Senado ou dos grupos sacerdotais perante a ocorrência dos fenô‑
menos prodigiosos. A respeito dessas considerações, Tito Lívio, no episódio LXII do
Livro XXI, pontua que “em relação a todos os prodígios anunciados ordenaram os decên‑
viros que se consultassem os livros” (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62); assim, a partir do
exposto, podemos compreender que, dada a deliberação pelos decênviros e realizada a
consulta nos Livros Sibilinos, prosseguiu-se de acordo com o relato liviano ao estabele‑
cimento do decreto de expiação, pois, conforme o testemunho de Lívio, “quase toda a
cidade se empenhou em afastar, mediante cerimônias, a ameaça dos prodígios” (Tit. Liv.
Ab vrbe cond., XXI, 62). Ainda sobre os decretos, determinou-se a realização do lectister-
nium e da supplicatio; a partir dessas especificações, foi estabelecido o quarto passo do rito
expiatório: a prática ritualística. Tal como argumenta Tito Lívio (Ab vrbe cond., XXI, 62),

antes de mais nada, purificou-se a cidade, com grandes sacrifícios de vítimas aos
deuses indicados. Em Lanúvio, Juno recebeu uma oferenda de quarenta libras de
ouro; no Aventino, as matronas dedicaram à deusa uma estátua de bronze; em
Ceres, onde as tabuinhas haviam encolhido, decretou-se um lectistérnio e supli‑
cações à Fortuna, no Álgido; também em Roma se prescreveu um lectistérnio à
Juventude, mais suplicações no templo de Hércules, designado pelo nome, e em
seguida a todo o povo, em redor de todos os altares; imolaram-se cinco grandes
vítimas ao Gênio, e o pretor Caio Atílio Serrano recebeu ordem de fazer votos
para que [a res publica] romana permanecesse intacta durante os próximos dez anos.

Nota-se, portanto, que, cumpridas as devidas expiações e votos em acordo com as


prescrições dos Livros Sibilinos, a comunidade romana celebrou o restabelecimento da

80
comunicação com o sagrado e a instauração da concordia in urbs. Assim, parece-nos pos‑
sível deduzir que, ao interpretar e observar os sinais prodigiosos, a exigência res religiosa
concatenava-se ao cumprimento dos rituais religiosos (SCHEID, 1991). Tal como observa‑
mos, a supplicatio e a expiação (piacula) tornavam-se, de fato, um elemento de composição
do ritual expiatório. Diante dessas considerações, Lívio enfatiza, em uma das narrativas
do Livro XL, que, diante de uma primavera procelosa e como medida ritual perante a
ocorrência dos prodígios nefastos, ficou determinada a celebração de um dia de supplicatio
(Tit. Liv. Ab Vrbe Condita, XL, 2). A respeito dessas questões, cabe-nos destacar ainda a
referência de Tito Lívio presente no episódio II do livro XLII ao pontuar que “uma supli‑
cação seria celebrada para expiar os prodígios [...]. Procedeu-se então ao sacrifício, con‑
forme haviam declarado os decênviros que estavam escritos” (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XLII, 2).
A partir dessas narrativas, compreendemos a relevância dada à prática da supplicatio
como elemento da ação ritual, um modo de reconexão com o sagrado pela realização de
orações ofertadas a alguma divindade. Ao suplicar e expiar, a comunidade cívica recon‑
ciliava-se com as divindades, a fim de garantir a permanência da comunicação entre
humanos e deuses e, desse modo, promover a pax na Urbs. Assim, Tito Lívio, ao res‑
saltar, no episódio aqui discutido, as “suplicações à Fortuna, no Álgido” e as “suplica‑
ções no templo de Hércules, designado pelo nome” (Tit. Liv. Ab vrbe cond., XXI, 62), de
fato, acentua a suplicação como um dispositivo do ritus sacrorum tradidit, uma ação per‑
petrada em benefício do indivíduo e da comunidade cívica pela formulação de orações
ofertadas a alguma divindade. Tal percepção nos permite compreender que a supplicatio,
como conceito romano e prática constituinte do rito religioso, aparece em Ab Vrbe Condita
140 vezes; mediante o mapeamento documental, percebemos que, em todas as passa‑
gens, o termo supplicatio encontra-se diretamente relacionado aos conceitos prodigia,
lectisternium, sacrificaretur e piacula irae deum. Isso nos leva a crer que, ao fazer referência
a estes conceitos no episódio analisado, Tito Lívio pretendia enfatizar o ato da súplica e
a ação de expiar como momentos essenciais do rito expiatório, que constituíam as pres‑
crições rituais (SCHEID, 1991, p. 9), a fim de garantir a permanência da comunicação
entre comunidade e deuses. Naiden (2006) corrobora essas hipóteses ao pontuar que a
supplicatio, compreendida como elemento da ação ritual, significa tanto “apaziguo” quanto
“ajoelho”, e o termo latino supplex (“ajoelhar-se”) se refere ao gesto clássico dos suplicantes.
Segundo Naiden (2006, p. 7), quando comparadas ao ritual que lhes é mais semelhante, a
prece e a suplicação diferem no que tange ao papel dos deuses. Na prece, os deuses são os

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destinatários. Na suplicação, o homem é o destinatário, ou, se o suplicante estiver diante
de um altar e os oficiantes do rito lhe responderem em nome de um deus, os oficiantes
e o deus são, ambos, os destinatários. Mesmo nesta situação, na qual um deus é o desti‑
natário, os deuses são figuras secundárias, podem ser invocados num terceiro momento,
quando um suplicante faz seu pedido e apresenta seus argumentos; servem, igualmente,
como garantias de qualquer oferta ou auxílio. Outra característica distingue a suplicação
da prece: o endereçado, na prece, está ausente; na suplicação, o endereçado está presente.
Por essa razão, a suplicação de um deus só é possível se o deus responde por uma epifania.
De fato, compreendemos que a supplicatio se caracteriza por sua singularidade e por
suas etapas consideradas essenciais para o ato ritual e para a obtenção de uma resposta
favorável ante a argumentatio do pedido realizado. Sendo assim, torna-se imprescindí‑
vel destacarmos essas etapas, de modo a compreender as percepções, as afetividades e os
gestos simbólicos constituintes de um rito expiatório. Essa representatividade da supli‑
cação pode ser compreendida nas proposições de Naiden (2006, p. 4), ao pontuar que a
supplicatio desenvolve-se a partir de quatro etapas. A primeira delas é caracterizada pela
abordagem do suplicante a um destinatário num determinado local; a partir daí, desen‑
volve-se a segunda etapa, representada pelo uso expressivo dos gestos, como ajoelhar-se,
juntar as mãos e elevá-las ao alto ou curvar-se; nesta sequência, destaca-se o terceiro passo
quando ocorre o pedido, a formulação da argumentatio da súplica, totalmente verbal; o
quarto e último passo é, pois, a resposta do suplicado. Ele avalia os suplicantes, decide se
aceita ou rejeita o pedido.
Compreendemos que todas as etapas da ação da supplicatio são essenciais à prática
ritualística e, em especial, ao rito expiatório, pois, após a interpretação dos prodígios,
formulava-se a supplicatio e, em seguida, a expiação como modo de consagrar a ordem
sagrada. Logo, a abordagem, os gestos simbólicos, o pedido verbal e a resposta do supli‑
cado diante da argumentatio elaborada constituem, desse modo, etapas imbricadas do ato
de suplicar e, de fato, compunham a prática ritualística.
Como observamos até aqui, foi na perfeição ritualística que a divindade esteve
interessada, e só quando esta não é observada corretamente há o descontentamento.
Segundo Scheid (1991, p. 66): “Os reais humores dos deuses são dados através de fenô‑
menos espetaculares e ameaçadores”, os prodígios. Assim, de acordo com nossas hipóte‑
ses, a obrigação piacular (expiação) se relaciona diretamente a um fato objetivo: o êxito
ou o fracasso, os quais traduziriam a vontade dos deuses (SCHEID, 1991, p. 19), ou seja,

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os homens repetiam o rito religioso com a celebração de sacrifícios específicos fixados
pela tradição (POE, 1984, p. 61; BOYCE, 1937, p. 157-160), no claro intuito de recobra‑
rem o efeito positivo do ato sagrado. Corrobora essa hipótese o fato de os acontecimen‑
tos prodigiosos terem sido um dos temas mais recorrentes e presentes nos catálogos dos
livros pontificais, mediante a autorização senatorial, uma vez que os assuntos religiosos
se mesclavam aos assuntos políticos: “Remetiam-se os prodígios aos aruspíces estrus‑
cos se o Senado ordenasse” (Cicero De legibus, II, 9).
Mediante essas considerações, entendemos que os rituais religiosos devem ser inter‑
pretados “como complexos sistemas cognitivos, pois expressavam uma mescla de conhe‑
cimento religioso, conhecimento ritual e conhecimento simbólico” (ROSA, 2013, p. 123).
Tal como visualizamos nas narrativas acima, o ritual designa um modo de ação, uma forma
de celebrar/comemorar as práticas religiosas expressas na terminologia sacra ou caerimo-
niae, à medida que o ritual apresentava gestos e comportamentos da vida cotidiana, cuja
significação traduzia-se em honra, respeito, pietas e fides (SCHEID, 2009, p. 41). Tal como
pontua Scheid (2009, p. 41), a religião romana era ritualística; logo, a prática ritual cons‑
tituía um momento de interpretação, súplicas, oferendas e expiação, e, portanto, de com‑
partilhamento do sentimento religioso, um veículo de comunicação para com os deuses.
Nesse sentido, consideramos os ritos de caráter expiatório como práticas integran‑
tes da vida social, já que “um repertório de rituais integra aos modos e meios pelos quais
um povo comunica suas experiências” (BELL, 2006, apud ROSA, 2011, p. 142). O ato
ritual configurou-se, dessa forma, como um sistema culturalmente construído, um ins‑
trumento de comunicação simbólica que garantiria a glória da comunidade cívica, já que,
segundo Tito Lívio, Roma como nenhuma outra pátria era dada à observância dos ritos
religiosos (Tit. Liv. Ab vrbe cond., V, 1). Queremos, com isso, enfatizar que o discurso de
Tito Lívio ressalta as representações das práticas ritualísticas como dispositivos direcio‑
nados ao espaço institucional da cidade, à medida que o espaço religioso se confundia
com o espaço político pela renovação dos laços com o sagrado em benefício da res publica
(SCHEID, 1991, p. 22). Portanto, compreendemos que os ritos expiatórios representados
em Ab Vrbe Condita configuravam-se como um conjunto de ações ritualizadas, expressi‑
vas, detentoras de uma dimensão simbólica, uma vez que se transformavam em dispo‑
sitivos de poder, propiciando sentido e unidade à comunidade cívica que compartilhava
tais práticas sociais. Trata-se, sobretudo, de identificar como a religiosidade conduzia a
comunidade cívica de modo a ordenar as relações sociais, pois não se podia separar em

83
esferas distintas a ciuitas, a natureza, a divindade, o homem e o poder, já que todas as
ações e práticas sociais humanas exprimiriam a presença divina (NOGUEIRA, 2004, p. 23).
Partindo dessas premissas, acreditamos que as práticas ritualísticas indicavam um
modo de comunicação com os deuses e com a comunidade, à medida que o sagrado refle‑
tia‑se, de fato, nas construções, nas inscrições e nas produções textuais do século I a.C.
Desse modo, consideramos que as práticas ritualizadas configuraram-se como ações come‑
morativas e comunicativas. Como instrumentos por excelência, tais atividades permitem
a análise das relações que se estabeleciam entre poder, religio e memória (GONÇALVES,
2008, p. 28). Ora, toda comunidade precisa de algo para celebrar; assim, a ação/prática
ritualística, representada em Ab Vrbe Condita, divulgou mensagens, comportamentos e
símbolos, os quais auxiliaram a legitimar a tradição religiosa romana.
Nesse sentido, a obra de Tito Lívio é um lugar de poder e, consequentemente, um
espaço privilegiado de referências das condutas religiosas na Roma de Augusto, visto que
a religião foi um aspecto fundamental no governo de Augusto, uma vez que o princeps rela‑
cionou sua imagem à reestruturação e ressignificação das práticas religiosas, demonstrando,
dessa maneira, a pietas em suas ações. Segundo Scheid (2005, p. 187), as iniciativas religio‑
sas eram parte concomitante das perspectivas políticas de Augusto. Nessa conjuntura, pro‑
duzir imagens de piedade significava reivindicar a memória à religiosidade, às instituições
e às construções; logo, simbolizava respeitar os deuses e, com isso, promover a pax deorum.
A política de atenção religiosa, implementada por Augusto, indicou uma mescla entre
tradição e inovação no que tange à observância religiosa (SCHEID, 2007), posto que o
princeps foi visto como aquele que promoveria a manutenção dos ritos antigos e teria o
cuidado necessário em celebrar e comemorar as honras e ritos devotados aos deuses, uma
vez que os interesses divinos se voltavam à promoção do sucesso da Urbs (ROSA, 2008,
p. 16). Como afirma Scheid (2005, p. 177), a chamada reestruturação, promovida por
Augusto, em relação aos ritos religiosos, não se daria por meio de uma mudança radical,
mas seria uma reação contra a negligência aos deveres rituais e à conservação dos tem‑
plos, devido às agitações das guerras civis dos anos anteriores.
Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos que o discurso referente à negligência
e ao esquecimento das tradições religiosas tornou-se, de fato, um dispositivo de poder ao
permitir a associação de Augusto à imagem de restaurador das práticas religiosas. A partir
do exposto, podemos pressupor a relevância e representatividade do collegium pontificum,
pois, como sabemos, Augusto assumiu o cargo de pontifex maximus em 12 a.C., após a

84
morte de Lépido. Assim, interessa-nos destacar o papel do pontifex maximus enquanto
comandante do collegium pontificum: representava o chefe supremo da religião romana,
aquele que presidia todos os rituais expiatórios; assegurava com os decênviros a consulta
aos livros do destino, mediante pedido formal do Senado; apontava a lista dos sacerdotes;
abria oficialmente os templos34, os santuários e decretava os feriados públicos (SCHEID,
2005, p. 191). Logo, tal magistratura expressou a relação da religião como aspecto cívico
inseparável da vida pública de Roma (BOWERSOCK, 1990, p. 380-394). A fundação do
colégio dos pontífices é atribuída ao segundo rei de Roma, Numa Pompílio, o qual desig‑
nou ao pontífice todos os ritos sagrados transcritos e pormenorizados com os sacrifícios,
as datas, bem como os templos adequados às suas realizações (Tit. Liv. Ab vrbe cond., I, 20).
Submeteu todas as cerimônias públicas ou privadas às deliberações do pontífice para
que houvesse uma autoridade a qual o povo romano pudesse recorrer (Tit. Liv. Ab vrbe
cond., I, 20). Diante desse fato, compreendemos que Augusto, ao ser nomeado pontífice
máximo, mais uma vez recriava e associava à sua imagem um tipo de comportamento
cívico relacionado à ancestralidade de Roma, em particular ao reinado de Numa Pompí‑
lio, pela prática da pietas, ou seja, pela manutenção da relação entre os homens e os deuses.
A partir da aceitação dessa imagem de mantenedor das relações sociais para com as
divindades, Augusto empreendeu a reestruturação e a construção de diversos templos,
em especial o de Apollo35 (28 a.C.) e o de Marte (2 d.C.), tendo em vista que a observân‑
cia religiosa era responsável pela manutenção da ordem civil na res publica. Dessa forma,
a reconstrução de templos era vista como um retorno à estabilidade pela promoção da
concordia na comunidade cívica romana (GALINSKY, 2005, p. 74). Podemos perceber que

34  Sobre a construção dos templos, colocamos em destaque as palavras do próprio Augusto em sua Res
Gestae (XX): “Reformei oitenta e dois templos dos deuses da Urbs em meu sexto consulado e pela autori‑
dade senatorial, nada negligenciando do que era, então, preciso reformar”.
35  O templo de Apolo foi construído no período de Augusto, em 28 a.C., sobre o Palatino e destacou ele‑
mentos essenciais às reformas religiosas empreendidas pelo princeps (FAVRO, 1996). O templo de Apolo
estava ligado à domus de Augusto, e tal proximidade representava uma atenção para com o deus, uma vez
que Apolo estava ligado à imagem da guerra e, então, foi consagrado como protetor de Otaviano, após sua
vitória em Ácio por um prodigium, em 36 a.C. Segundo Scheid (2007), o templo de Apolo configurou-se
como um símbolo do novo regime imperial. Em nosso entender, a assimilação de Otaviano com o deus
Apolo indicava o comprometimento do futuro princeps com as observâncias religiosas, pois os templos
representavam mais que uma restauração religiosa, expressavam os ritos e cultos aos deuses como práticas
cívicas, direcionadas à manutenção da relação da comunidade com o sagrado.

85
Augusto criou condições para que se divulgasse um discurso de concordia, o qual condu‑
ziria o bom funcionamento da Urbs na paz e na guerra, pois a promoção da uirtus e da
concordia (Tit. Liv. Ab vrbe cond., V, 28) eram também a promoção da comunidade cívica.
É imprescindível mencionar que, além dos dispositivos textuais, tal como a nar‑
rativa histórica de Lívio, a domus de Augusto promovia nos suportes arquitetônicos
representações da concordia. Por exemplo, Lívia mandou construir um porticus dedicado
à Concordia Augusta em 7 a.C., em um bairro de Roma; o interessante é que, como pro‑
põe Eve d’Ambra (2012, p. 400-409), a concordia aparece também no mesmo período
em províncias romanas, da mesma maneira que em Pompeia. Nesta cidade, temos uma
mulher chamada Eumáquia, filha de Lucius e sacerdotisa pública, que, às suas expensas,
mandou construir um edifício dedicando-o à concordia et pietas de Augusto. Isso eviden‑
cia não somente o importante papel da personagem como representante da elite local
de Pompeia, mas, sobretudo, a promoção da concordia de Augusto a partir da manu‑
tenção dos ritos religiosos, na correta relação entre pietas e fides.
Ora, consideramos relevante pontuar as medidas religiosas promovidas à época de
Augusto (século I a.C.), uma vez que um estudo dos rituais religiosos, das festividades e
cerimônias permite-nos compreender os espaços de poder da Roma antiga, pois essas
manifestações e ações religiosas tornavam-se, por assim dizer, parte do discurso insti‑
tucional romano, transfigurando-se em símbolos de cidadania à medida que os cerimo‑
niais e os ritos convertiam-se em veículos de transmissão (WALLACE-HADRILL, 2008,
p. 41). Isso posto, parece-nos possível deduzir que a religião era expressão de uirtus,
pietas e fides, de modo que a comunidade se ligava à esfera sagrada; os deuses, por sua vez,
demonstravam sua pietas e benevolência concedendo pax e auxílio aos homens em suas
ações/práticas sociais (CHAMPEAUX, 2002, p. 15).

Considerações finais

Nosso objetivo, aqui, foi compreender os espaços de poder e autoridade da religião no


mundo romano por meio do testemunho de Tito Lívio, que se realiza ao pontuar em Ab
Vrbe Condita que a cidade de Roma foi fundada pela aprovação divina, revelada pelos augú‑
rios e auspícios, e ao afirmar que não houve lugar na cidade que não estivesse associado
ao sentimento religioso – religiones –; portanto, a presença dos deuses fazia-se constante.

86
Os sacrifícios e rituais possuíam seus lugares e dias fixados para sua realização (Tit. Liv.
Ab vrbe cond., V, 52). Com base no exposto, podemos compreender que o discurso liviano
coloca em evidência a importância da manutenção das relações para com os deuses pela
prática da ritualização, em especial no que tange às práticas expiatórias advindas da obser‑
vação e da interpretação dos prodígios. Tal como afirma Scheid (1991, p. 67), houve em
Roma sempre uma solução pragmática e formal para garantir o êxito da ação ritual. Em
Tito Lívio, essa solução vem do poder dos magistrados, do Senado que consulta os colégios
sacerdotais (LIMA, 2002, p. 70). Assim, como temos visto, as práticas que acarretavam a
transgressão à ordem vigente podiam levar a comunidade cívica ao caos e à desagrega‑
ção, já que se tratava de uma sociedade ávida pela promoção da concordia entre homens
e deuses como garantia da ordem cívica na res publica romana.
Nota-se, dessa maneira, que Ab Vrbe Condita exprimiu as interações e representações
religiosas como um sistema de comunicação entre a comunidade e os deuses (FEENEY,
1998, p. 120). Como argumenta Scheid (2005, p. 177), as ressignificações das práti‑
cas ritualísticas presentes na Ab Vrbe Condita se uniram a tantos outros instrumentos
(por exemplo, templos, festividades, estátuas, calendário religioso) no intuito de veicu‑
lar a relevância dos rituais à época de Augusto como dispositivos de poder direcionados
à manutenção da vida social da Urbs. Em razão disso, o exercício da religio expressava
e, ao mesmo tempo, criava um sentido de coletividade para a comunidade cívica à qual
se integrava. Tal como propõe Jan Assmann (2008, p. 29-31), a prática ritual cria um
espaço de recordação em que seus membros estabelecem uma linguagem comunicativa e
constroem laços de reciprocidade para com os deuses, em detrimento da manutenção da
concordia na comunidade cívica. Logo, a comunidade cívica que se celebra, se recorda e se
renova cerimonialmente pela execução do rito consuma e confirma sua identidade polí‑
tica, cultural e religiosa (ASSMANN, 2008, p. 33).
Com essas ressalvas, inferimos que estudar a forma como os antigos concebiam e
trabalhavam os seus espaços ritualísticos é peculiar e significativo, na medida em que nos
permite compreender suas representações, seus discursos, suas manifestações identitá‑
rias e suas produções de memória compartilhadas por uma comunidade cívica. Em vista
disso, o estudo das práticas religiosas, a partir da historiografia antiga, nos possibilita a
compreensão da relação entre as crenças e as formas ritualísticas como manifestações
do espaço sagrado de Roma. Por esse ponto de vista, consideramos que na Antiguidade
Clássica houve uma preocupação em associar os elementos da religio, tais como os ritos,

87
aos mecanismos de poder e de memória, inseridos nos espaços institucionais da Urbs
romana. Em razão desses aspectos, buscamos compreender como nosso documento ela‑
bora por meio de seus discursos o espaço das práticas e das condutas religiosas, pois, em
nosso entender, tais discursos representavam seu mundo social, determinado, eviden‑
temente, pelos interesses e concepções de mundo dos indivíduos (CHARTIER, 1990,
p. 19) que compunham os espaços cívicos de Roma.
Pelas nossas análises, Ab Vrbe Condita esteve em plena associação com as práticas reli‑
giosas, pois os rituais representados na escrita liviana se transformaram em assuntos pro‑
fícuos para os estudos históricos que objetivam relacionar a religio aos espaços de poder.
Sob essa perspectiva, as narrativas da Ab Vrbe Condita nos trazem numerosas referên‑
cias e possibilidades de reflexões críticas e atualizadas para o estudo das representações
sociais da religio na Roma de Augusto. Assim, trabalhar com essas representações tex‑
tuais e suas temáticas é reconhecer seu valor como testemunho histórico, como impor‑
tante registro das práticas, instituições e expectativas da domus de Augusto.

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92
O crime de magia no Principado romano:
considerações sobre crenças, leis e
acusações de práticas mágicas
Semíramis Corsi Silva

Introdução

Há um consenso entre os estudiosos de que a crença na magia se caracteriza como um


fenômeno onipresente nas mais diferentes sociedades de todos os tempos. Sob a rubrica
de magia estamos considerando diversos fenômenos que têm em comum a pretensão de
agir sobre a realidade sensível por meio de elaborados rituais e a utilização de procedi‑
mentos, objetos e forças sobrenaturais.
Os antigos romanos e os demais povos que compuseram o Império Romano não se
isentaram dessa crença. Os textos literários e a cultura material mostram que havia pra‑
ticantes de diversos tipos de magia no contexto tratado. Na Antiguidade romana pré‑
-cristã, entretanto, havia uma ambiguidade em relação ao que era considerado como
prática mágica, ora considerada não perigosa e parte de estudos filosóficos sistemati‑
zados e rituais religiosos, ora considerada atividade charlatanesca que devia ser punida
por leis severas. De maneira geral, os antigos romanos distinguiam as práticas de cunho
mágico consideradas populares, maléficas e charlatanescas – a γοητεία (goeteia) – de outra
magia considerada benéfica, a teurgia, incorporada em rituais de deuses da religião ofi‑
cial romana e parte de estudos filosóficos. Justamente por haver uma prática considerada
negativa e socialmente nociva, os romanos criaram leis e criminalizaram pessoas consi‑
deradas praticantes da goeteia.
Visando refletir sobre um ponto específico das leis romanas, apresentaremos aqui
aspectos do crime de magia para os antigos romanos e faremos considerações sobre algu‑
mas acusações que chegaram até nossos dias por meio da documentação textual.

93
Cumpre perceber que o Direito dos romanos é citado em muitas obras contempo‑
râneas, especialmente de não historiadores, como o maior legado que os romanos deixa‑
ram para a posteridade. No entanto, cabe aos estudiosos analisarem como este é fruto de
um contexto específico, no qual as leis em questão foram promulgadas e tiveram vigên‑
cia, diante de necessidades que eram muito peculiares aos antigos romanos e aos povos
que compuseram o Império Romano.
No presente capítulo, analisaremos o momento do Principado (séculos I, II e III), visando
compreender a criminalização das práticas mágicas também como fruto das crenças e do
próprio contexto histórico. No entanto, faremos de início uma exposição, ainda que breve,
de aspectos do tema na República romana, mais especificamente da problemática envol‑
vendo a questão da magia na elaboração da Lei das Doze Tábuas, em 451/450 a.C. Não ana‑
lisaremos a chamada Antiguidade Tardia (período de transição entre o Império Romano
e a Idade Média) por considerarmos que nesse período houve mudanças, no que tange
às representações sobre a magia, em relação aos períodos anteriores da história romana,
devido à ascensão do cristianismo como religião oficial do Império Romano no século IV36.
A criminalização das práticas de magia não foi um fenômeno exclusivo da Antiguidade
romana. Como sabemos, no período de transição da Idade Média para a Época Moderna,
com as agitações sociais decorrentes do desgaste do feudalismo, a introdução de novas
formas de relações pessoais, a Reforma Protestante, a Contrarreforma da Igreja Católica
e todos os acontecimentos típicos de um intenso período de transformações, temos uma
ostensiva perseguição a pessoas consideradas praticantes de magia. Nesse período, temos
também a demonização das práticas mágicas e a associação da magia, como representação,
ao universo feminino. A bruxa passou a ser conhecida como aquela mulher que supli‑
cava ao demônio, tendo um pacto com ele (GINZBURG, 1991). São perseguidas especial‑
mente mulheres, e temos o surgimento de bulas papais regulamentando as perseguições,
assim como a elaboração dos famosos manuais de inquisição, como o Manual do Inquisi-
dor (1376), de Nicolau Emérico, e o Malleus Maleficarum (1487), dos dominicanos Hein‑
rich Kramer e James Sprenger.

36  Com a oficialização do cristianismo como religião do Império Romano, temos o acirramento em rela‑
ção à proibição das práticas de magia. Sobre este tema, sugerimos a leitura da obra Reis, santos e feiticeiros,
de Gilvan Ventura da Silva. Nesse livro, resultado de sua tese de doutoramento, o autor analisa as perse‑
guições a magos e adivinhos pelo imperador Constâncio II, no âmbito das relações entre poder e religião.

94
A criminalização das práticas mágicas na Antiguidade romana é menos estudada
pelos pesquisadores do que a perseguição à bruxaria nos últimos séculos do Medievo e
na Época Moderna. Abre-se assim um campo de estudos para se compreender melhor o
contexto e diversos aspectos em torno das crenças e das relações de poder que envolviam
os processos na sociedade de Roma e de outras partes do Império Romano.
Como nosso estudo centra-se nas leis e em casos de acusações jurídicas, trataremos
do Império Romano como entidade político-administrativa reguladora de uma ordem
imperial, e não de culturas específicas dentro da grande pluralidade cultural do Império
Romano. Como veremos, as acusações de que temos relatos aconteceram em sua maio‑
ria na cidade de Roma, mas também temos relatos de acusações envolvendo provinciais
(como a acusação contra Apolônio de Tiana, oriundo da Capadócia) e nas províncias
(como a acusação contra Apuleio, na África Proconsular).
No presente capítulo, além das leis romanas que versaram sobre o crime de prática
de magia, analisaremos alguns processos da época, cuja documentação textual foi pre‑
servada e chegou até nossos dias. Comecemos pelas leis.

O crime de magia e as leis romanas

O uso da magia foi proibido em toda a tradição jurídica romana. Desde a Lei das Doze
Tábuas, primeiro conjunto de leis romanas escritas, é possível acusar uma pessoa como
responsável por práticas que podemos considerar relacionadas com o que os antigos
romanos compreendiam como magia, embora o termo magia em si ainda não apareça
na documentação dessa época.
Pela Lei das Doze Tábuas, o praticante de magia podia ser acusado por dois tipos
de ações distintas: fazer uso de sortilégios para transportar a colheita de um vizi‑
nho para seu próprio campo e fazer conjuros mágicos com o objetivo de causar dano
a alguém. Em ambos os casos, a pena prevista era a morte por fustigação ( SILVA,
2003, p. 227). Nosso conhecimento dessa lei é resultado das tentativas de compila‑
ções dela pelos antigos. James Rives (2002, p. 272) nos informa que a base defini‑
tiva da lei vem, provavelmente, das interpretações e comentários contidos no texto
produzido pelo jurista romano Sexto Élio Peto Catão (Commentaria Tripartita), em
torno de 200 a.C. Tal texto, por sua vez, é conhecido por meio das obras de Cícero.

95
Diante dessa situação, devemos ter em mente a problemática que o texto, fruto de
compilações, pode apresentar.
Temos também referências sobre o possível conteúdo dessa parte da Lei das Doze
Tábuas nos escritos de Plínio (História Natural), nos poemas de Virgílio (Bucólicas), em
Sêneca (Problemas naturais) e em Apuleio (Apologia). De acordo com a compilação dessa
parte da lei, temos, então:

3. Aquele que fez encantamentos contra a colheita de outrem; 4. Ou a colheu fur‑


tivamente à noite antes de amadurecer, ou a cortou depois de madura, será sacri‑
ficado a Ceres. 5. Se o autor do dano é impúbere, que seja fustigado a critério do
pretor e indenize o prejuízo em dobro. 17. Se alguém matou um homem livre e
empregou encantamentos (carmina) e veneno (venena), que seja sacrificado com o
último suplício (XII Tb, VII)37.

Como podemos perceber, a palavra magia não aparece explicitamente no texto da lei,
embora a ideia de emprego de cantos (carmina) tenha sido interpretada pelos estudiosos
– e apareça na própria documentação antiga de períodos posteriores à lei – como o uso
de rituais de cunho mágico (encantamentos) proibidos (RIVES, 2002). Por isso, associa‑
mos esta lei ao crime de magia.
Segundo Fritz Graf (1994, p. 53), dois pontos dessa lei devem ser destacados: o pri‑
meiro ponto é que ela não punia o encantamento como tal, mas punia a violação ao direito
da propriedade privada com o propósito de causar dano a outra pessoa ou a fim de enri‑
quecimento particular. Dessa maneira, não é a magia que está sendo punida, mas a violação
à propriedade privada, que pode vir a prejudicar o equilíbrio social e o status quo vigente.
O segundo ponto a ser destacado é que ela mostra que à época se acreditava que os ritos
de natureza mágica possuíam eficácia, podendo ter função tanto positiva como negativa.
Devemos observar também a ligação da magia com um crime contra as colheitas,
preocupação de grande destaque numa sociedade de base agrária.
Rives (2003, p. 313-314), em sua análise da Lei das Doze Tábuas, relaciona essa legis‑
lação que pune os praticantes da magia com uma passagem da Écloga VIII, da obra Bucó-
licas, de Virgílio (70-19 a.C.):

37  Tivemos acesso ao texto da Lei das Doze Tábuas por meio da edição de Meira (1961).

96
[...] De venenosas ervas está cheio
Eu te vi com elas
Em lobo transformaste
E nas selvas fragosas escondeste:
Faz sair os mortos
Do hediondo sepulcro:
A arrancar as colheitas
De seu campo nativo, e em um voo
Até sua voz transportá-las
E fazê-las cultivar em outro solo
Traga-me, versos meus, sem demora
O belo Dafnis, a quem minha alma adora (Virg. Buc., VIII, 95-100).

Por esse poema, vemos que o poeta Virgílio, ao se referir à magia amorosa, mostra
o uso de ervas maléficas (herbae venena) e reproduz o texto da Lei das Doze Tábuas tam‑
bém para esse tipo de magia, pois no poema o ritual mágico evoca a colheita de outra
pessoa, tal como punia a lei.
Como sabemos, os romanos dividiam o Direito em público e privado, conforme o
sujeito que sofria a ação, o Estado ou os indivíduos. Assim, de acordo com a Lei das Doze
Tábuas, o crime de magia se enquadrava como infração no âmbito do Direito privado. Ao
longo do Império há uma tendência em converter crimes da esfera privada em crimes
da esfera pública, contra o Estado, incluindo a magia e a adivinhação. Embora tenhamos
conhecimento que já durante a República, devido à preocupação das ordens dirigen‑
tes em proibir as práticas religiosas que pudessem interferir na moralidade e na ordem
pública, ritos báquicos e práticas de magia considerada maléfica passaram a ter conota‑
ção política (SILVA, 2003, p. 227).
Em 81 a.C., foi instituída pelo cônsul Lúcio Cornélio Sila a Lex Cornelia de sicariis et venefi-
ciis, que daí em diante balizou as ações legais contra a magia. Rives (2003, p. 318), no entanto,
acredita que essa lei não foi uma criação de Sila, mas uma reorganização simplificada de leis
já existentes sobre questões de assassinatos. Sila teria, segundo o autor, incluído na lei a puni‑
ção contra o uso de substâncias com o poder de afetar outrem negativamente (venena mala).
Assim como a Lei das Doze Tábuas, a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis não condenava
a magia como tal, mas os crimes que atentavam contra a vida dos cidadãos, equiparando
a magia ao envenenamento. Nesse sentido, como vemos, essa lei punia os fabricantes de

97
venenos38. O problema se deu devido ao fato de o termo veneficium, que deriva do grego,
significar não somente a fabricação de drogas e venenos, mas também a prática da magia
em geral. A Lex Cornelia especifica que existem poções que possuem propósitos diferen‑
tes, como o de curar; para estas, também é usado o termo venenum, sendo que a lei punia
os administradores de mala venena. Conforme o texto das Instituta de Marciano, a Lex
Cornelia pune quem produz, vende e administra venenos com o intento de matar alguém
(GRAF, 1994). A penalidade prevista é a deportação para uma ilha ou o confisco de todos
os bens do acusado. Vejamos o texto da própria lei em sua compilação, no Digesto39:

3. No capítulo quinto da Lei Cornélia sobre assassinos e envenenadores se castiga


a quem fabricar, vender ou possuir uma droga com a finalidade de matar alguém.
(1) A pena da mesma lei se aplica ao que vender ao público medicamentos nocivos
ou possuir tais medicamentos com a finalidade de matar. (2) Ao acrescentar o termo
“nocivo” à palavra “veneno” ou “droga” é mostrado que havia drogas que não eram
consideradas nocivas. Assim, é uma palavra indiferente, que abrange tanto o que
serve para curar, como o que serve para matar e também os “filtros do amor” [...].
(5) A pena da Lei Cornélia sobre assassinos e envenenadores é a deportação para
uma ilha e o confisco de todos os bens, mas hoje, muitas vezes, pessoas são casti‑
gadas com a morte, a não ser que sejam pessoas de alta posição, em cujos casos se
impõe a pena legal. Pessoas de baixa condição devem ser jogadas às feras e as de
alta posição devem ser deportadas para uma ilha (Dig., XLVIII, 8, 3).

Graf (1994, p. 71) faz uma observação sobre o contexto histórico em que foi promul‑
gada essa lei, em um momento preciso da história de Roma, quando, devido às guerras civis
entre Mário e Sila, fez-se necessário estabelecer punições maiores aos crimes contra a vida.

38  Conforme Mommsen ([1---?], p. 109), o termo sica era usado para designar uma adaga ou uma espada.
A punição pautada pela Lex Cornelia de assassinos e envenenadores versa, portanto, sobre o crime execu‑
tado com auxílio de instrumentos, no caso, venenos.
39  Cumpre destacar que essa lei não chegou até nós em sua forma original, mas através de compilações
antigas. Segundo Rives (2003, p. 318), as evidências mostram que a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis tinha
pelo menos seis seções, mas nos chegaram apenas três por meio da compilação no Digesto que integra o
Código Justiniano (Dig., XLVIII, 8). Entretanto, de acordo com esse estudioso, as três seções compiladas da lei
dão uma ideia geral dela. Tivemos acesso ao texto por meio da edição castelhana organizada por A. D’ Ors,
F. Hernández-Tejero, P. Fuenteseca, M. García-Garrido e J. Burillo (1975). A referida lei, no original em
latim, também pode ser encontrada no sítio eletrônico www.droitromain.upmf-grenoble.fr.

98
Devemos acrescentar a essa importante observação uma outra, de ordem filológica:
como vimos nas punições previstas na Lei das Doze Tábuas e no próprio texto citado da
Lex Cornelia de sicariis et veneficiis, embora falemos do crime de magia, o termo “magia”
(magica ars) em si não aparece nas leis até então. Como sabemos, a denominação de mago
(magus) não tinha uma conotação propriamente negativa entre gregos e romanos antigos,
que conheciam como magos os antigos sacerdotes caldeus e persas (Philostr. VA, I, 26;
VS, II, 523; Apollon. Epístolas 16 e 17). Portanto, o termo empregado no momento para
definir o crime de magia é veneficium. É com os escritos de Plínio, o Velho (23-79 d.C.),
que aparecerá, pela primeira vez na literatura que chegou até nós, a ideia de magica ars
associada a algo censurável e punível (RIVES, 2003, p. 322).
A adivinhação não oficial também foi intensamente praticada no âmbito da magia.
Mesmo a magia e a adivinhação constituindo diferentes modalidades de se lidar com o
sobrenatural, sob o governo de Augusto (27 a.C.-14 d.C.) e Tibério (14-17) infrações do
âmbito divinatório foram incorporadas ao crime de veneficium40.
Em 11, Augusto baixou um edito que estabeleceu proibições de consultas divinató‑
rias sobre a vida de uma pessoa e fixou normas de adivinhação a serem observadas em
todo o território do Império Romano. A violação da lei implicava as mesmas penalida‑
des da Lex Cornelia de sicariis et veneficiis. O “Edito de 11”, como ficou mais tarde conhe‑
cido, passou a inquirir sobre os crimes de adivinhação durante o Império. Sob o governo
de Augusto, Agripa, homem de confiança do imperador, proibiu a permanência de prati‑
cantes de magia e adivinhos na cidade de Roma, o que reiterava a política de Augusto de
tomar para si o controle das práticas oficiais de adivinhação, proibindo todas as demais
que se encontravam disseminadas pelo Império (GRIMAL, 1992, p. 37). A partir desse
momento, as leis que puniram praticantes de magia e adivinhos durante o Principado
ficaram estabelecidas, ocorrendo apenas o agravamento das penalidades com o passar do
tempo (SILVA, 2003, p. 229). No decurso do governo de Tibério, a situação se agravou,
uma vez que muitos adivinhos e magos foram expulsos da Península Itálica.
Além da Lex Cornelia de sicariis et veneficiis e do Edito de 11 promulgado por
Augusto, fixando as normas para o exercício da adivinhação, foram ainda publicados

40  A característica principal da magia, desde a Antiguidade, é obrigar forças sobrenaturais a obedecer ao
homem, enquanto a adivinhação implica uma maior subordinação do homem às divindades (MONTERO,
1998, p. 44).

99
dois senatusconsulta por Tibério, proibindo a presença de astrólogos e magos em Roma
e a consulta a adivinhos de forma secreta e sem testemunhas (SILVA, 2003, p. 228-229).
No século III, com as Sentenças de Paulo (Pauli Sententiae), jurisconsulto contemporâ‑
neo da dinastia dos Severos (193-235), as artes mágicas e divinatórias atraem uma atenção
especial, e até mesmo a posse de livros mágicos passa a ser proibida41. Tal agravamento
do crime de magia fica evidente no trecho a seguir:

14. Aqueles que fizerem abortíferos ou poções de amor, ainda que sem intenções
maléficas, devem ser punidos, uma vez que isso conduz a um mau exemplo: pes‑
soas de baixa condição (humiliores) sejam relegadas às minas, pessoas de mais alta
condição (honestiores), às ilhas, com confisco parcial de sua propriedade. Mas, se,
como resultado, uma mulher ou um homem morrer, a punição será a pena capital.
15. Aquele que, na realização ou na preparação para a realização de um rito impie‑
doso noturno, ordenar um encantamento, a petrificação ou a cegueira de alguém
deve ser crucificado ou jogado às feras. 16. Aquele que sacrificar um homem ou obti‑
ver presságios com seu sangue ou contaminar um santuário ou um templo deve ser
jogado às feras ou, se for de mais alta condição (honestiores), deve ser punido com
a pena de decapitação. 17. Foi decidido que os familiarizados com a arte da magia
(magicae artes conscios) incorram em mais severa punição, ou seja, serão jogados às
feras ou serão levados à cruz. Magos (magi) de fato, no entanto, devem ser jogados
vivos no fogo. 18. Ninguém deve ter livros mágicos (libri artis magicae), os quais,
quando encontrados, devem ser queimados e seus portadores, deportados para uma
ilha. Se forem pessoas de baixa condição (humiliores), pela cabeça deverão ser puni‑
dos com a pena de morte. Não só os que têm como profissão essa arte, mas também
os que detêm certos conhecimentos sobre ela. 19. Se a pessoa morrer por causa de
um medicamento (remedium) dado a um humano saudável ou em recuperação, se
for uma pessoa de alta condição, o criminoso será deportado (relegatus) para uma
ilha, se for de baixa condição, a pena será a de morte (Paulus Sententiae, V, 23, 14-19).

Como lemos, com as Sentenças de Paulo pela primeira vez o termo magus e suas deriva‑
ções aparecem de fato na legislação contra a magia. E, como veremos abaixo, no processo

41  As passagens da legislação conhecidas como Sentenças de Paulo são, de fato, uma compilação de Paul
Krüeger, de 1878, de numerosas fontes antigas que tratavam sobre as sentenças. Tivemos acesso ao texto
em latim e inglês no artigo de Rives (2003). A tradução é nossa.

100
contra Apolônio de Tiana, descrito por Filóstrato, escritor contemporâneo à elabora‑
ção das Sentenças de Paulo, a acusação de magia já aparece em termos explícitos; o mesmo
aconteceu na acusação contra Apuleio, ocorrida cerca de um século antes das Sentenças
e na qual a magia tem lugar central. Rives (2003, p. 333) propõe que essa mudança na
terminologia pode ter sido causada pela expansão territorial do Império Romano e pela
emergência de um novo discurso religioso, que surge nos vários cristianismos a partir
do século II. O mesmo Rives acredita, no entanto, que os termos magicae artes e magici
libri remontem à compilação das Sentenças de Paulo, realizada na época do imperador Dio‑
cleciano (284-305).
Conforme Andrzej Wypustek (1997, p. 285), no período em que as Sentenças de Paulo
foram elaboradas, o imperador Septímio Severo (193-211) foi cruel com magos, astró‑
logos e profetas dos sonhos. A partir de então, não apenas o conhecimento mágico, mas
a demonstração pública da prática e o aconselhamento mágico passam a ser punidos.
O tipo de prática acusada como magia se alargou, mas não se pretendeu o extermínio de
todos os envolvidos em magia. Circunstâncias adicionais eram requeridas para a persegui‑
ção de alguém considerado como feiticeiro42. No caso dos cristãos, por exemplo, o agra‑
vante era o fato de praticarem uma religião proibida ou, em alguns casos, a contumácia.
Ainda de acordo com Wypustek (1997, p. 277), em 1931 foi encontrada pelos arqueó‑
logos uma circular do período severiano dirigida aos estrategos do Egito que condenava
pessoas peritas nos conhecimentos sobrenaturais. Tal circular foi emitida pelo governa‑
dor romano da província do Egito. No mesmo ano, Septímio Severo visitou a região e
ordenou que doutrinas de magia e astrologia fossem retiradas dos templos.
Em resumo: várias medidas legais foram adotadas da República ao final do Princi‑
pado, a fim de incriminar praticantes de magia, primeiramente sem o emprego explícito
do termo magia (magicae artes) nas leis, mas já punindo práticas afins àquelas que incluí‑
mos hoje no conceito de magia (veneficium). Segundo Gilvan Ventura da Silva (2003, p.
229), durante o Principado houve uma relativa tolerância para com a magia e a adivinha‑
ção, agravando-se as penalidades somente com as Sentenças de Paulo. Por vezes, decretos
e expulsões atingiam praticantes de magia e adivinhos, mas nunca de maneira perma‑
nente, apenas em situações que mostravam certa emergência e ameaçavam a estabilidade

42  Ao utilizarmos o vocábulo feiticeiro, estamos nos referindo ao γόης (goes), os praticantes da magia con‑
siderada nefasta na época da República e do Principado. Mas cabe destacar que os romanos não emprega‑
vam o termo feiticeiro.

101
política, estando a repressão da magia ligada à própria crença no poder dos feiticeiros,
que eram temidos pelos dirigentes do Império. Durante o governo de Constâncio II
(337-361), já sendo o cristianismo permitido e tendo se convertido em religião da casa
imperial, houve uma repressão extensiva a tais práticas e aos feiticeiros, magos e adivi‑
nhos dentro do Império.
Analisaremos agora um caso de acusação do período da República e alguns casos
de acusações sob o Principado, com base na documentação escrita que chegou até nós.

A literatura sobre acusações a praticantes de magia

Não possuímos muitas informações sobre acusações de magia durante o período republi‑
cano, conhecendo apenas um processo da segunda metade do século II a.C., que recorre à Lei
das Doze Tábuas para incriminar os envolvidos. Sobre tal processo, Plínio, o Velho, no Livro
XVIII, de sua História Natural, pode ser usado como fonte histórica (GRAF, 1994, p. 53).
O processo em questão é contra o liberto oriental Fúrio Cresimo, homem que obtém
uma colheita bem superior às colheitas de todos seus vizinhos e à capacidade de produção
de sua propriedade. O processo está ambientado na cidade de Roma, em meio às agita‑
ções e ao temor por parte de grupos das elites romanas em relação à penetração dos cul‑
tos estrangeiros, temor esse que marca o período de expansão da Roma republicana. Sob
suspeita de prática de malefícios, o liberto é acusado por seus vizinhos de ter enfeitiçado
suas colheitas. A acusação reproduz fielmente o texto da Lei das Doze Tábuas.
Graf (1994, p. 76), com quem concordamos, ressalta que, no entanto, subjacente à
acusação de magia estava em jogo a integração de Cresimo na sociedade romana, uma
vez que o indíviduo em questão, além de ser um ex-escravo, era estrangeiro. De um lado,
havia o antigo escravo que enriqueceu de repente, ameaçando as estruturas sociais; de
outro lado, seus adversários, membros dos grupos da aristocracia romana. Cresimo pre‑
para-se para a defesa levando ao fórum de Roma seus familiares, animais e utensílios,
que ele diz serem os únicos responsáveis pela fartura de sua colheita. Cresimo se apre‑
senta como um agricultor virtuoso, mostrando possuir as verdadeiras virtudes de um
antigo agricultor romano, apesar de ser estrangeiro. A reação dos tribunos é unânime:
o antigo escravo é absolvido e ainda aceitam sua inclusão no estamento social que almeja.

102
Já durante o período do Principado, vemos as razões das acusações mudarem.
Na obra Anais, o historiador Tácito reporta dez acusações de crime de magia sob a dinas‑
tia dos Júlio‑Cláudios, sendo que, dessas dez, três eram de natureza não específica, em
duas aparece a adivinhação mágica e em cinco as acusações são de prática de malefício
(GRAF, 1994, p. 66). Citando Tácito, temos algumas dessas acusações:

A sua primeira mulher [referindo-se ao aristocrata Pláucio Silvano, do período


do imperador Tibério, acusado de matar a segunda mulher atirando-a da janela],
Numantina, foi depois disso acusada de ter feito enlouquecer o antigo marido
com certos encantos, porém a acusação não teve efeito, e ela foi declarada ino‑
cente (Tac. Ann., IV, 22).
Mas em Roma, dado já o primeiro golpe na família imperial, começou logo a prepa‑
ração da ruína futura de Agripina, fazendo-se com que sua prima Cláudia Pulqué‑
ria fosse acusada por Domício Afro. Este homem, que acabava de se tornar pretor,
ainda pouco condecorado, e por isso mesmo ansioso de se fazer célebre por qual‑
quer modo que fosse, acusou-a de crime de adultério com Fúrnio e de malefícios
e imprecações contra o imperador [...] (Tac. Ann., IV, 52).
[...] Agripina sempre implacável nos seus ódios, e inimiga de Lólia porque havia
sido sua rival quando se tratava do casamento do imperador, começou a lhe impu‑
tar falsos crimes e um acusador, que enfim falou que era dada aos mistérios dos cal‑
deus e dos magos e que tinha consultado o oráculo de Apolo Clário sobre as núpcias
do imperador. Depois disso, Cláudio, sem ouvir a acusada, e falando extensamente
no Senado de sua nobreza; como era filha de uma irmã de Volúsio; como tinha por
segundo tio paterno Cota Messalino, e como, enfim, em outro tempo foi casada
com Mémio Régulo; mas calando de propósito sobre o seu segundo casamento
com C. César, concluiu: “que era uma mulher perniciosíssima pelas suas más inten‑
ções contra a República; e que, portanto, se deveria acabar com esse fermento de
crimes, confiscando-lhe os bens, e expulsando-a da Itália” [...] (Tac. Ann., XII, 22).
Passando, então, o acusador a perguntar-lhe se era verdade ter ela [referindo‑se à
Servília] vendido os seus presentes de casamento e o seu colar para empregar este
dinheiro em mistérios e operações mágicas, não fez ela nada mais do que deitar‑
-se por terra e entrar por muito tempo a chorar, sem proferir uma única palavra
(Tac. Ann., XVI, 31).

103
Como vemos, a acusação citada na segunda passagem acima, do ano de 26, durante
o Principado de Tibério, quando se celebrou o julgamento de Cláudia Pulquéria (Claudia
Pulchra), neta de Otaviana (irmã de Augusto), era de adultério e malefício contra o impe‑
rador e tentativa de envenenamento.
Outro processo interessante, do período de governo de Nero, foi o que levou à morte
Servília, filha de Barea Sorano, mencionada na última passagem citada da obra de Tácito.
Servília foi acusada por práticas maléficas contra o imperador, mas a família dela já pos‑
suía um passado de acusações por crimes de lesa-majestade, o que pode ter acabado impli‑
cando na sentença de morte, como conclui Santiago Montero (1998, p. 182).
Essas duas acusações que acabamos de expor não são, como vimos, de magia tal como
conhecemos atualmente, mas de malefício e suas derivações, como já dissemos que eram
as acusações de práticas de natureza mágica, coincidindo assim com as punições imputa‑
das pela Lex Cornelia. Nessas acusações, em especial, vemos o temor em relação à morte
do imperador romano, o dirigente máximo do Estado.
Já na acusação contra Agripina, relatada no terceiro trecho citado de Tácito, a arte da
magia (arte dos sacerdotes caldeus e persas) aparece nos dizeres do escritor. Na acusação
relatada na passagem de Tácito, novamente a arte da magia aparece nos termos usados.
Acusação mais complexa e também de magia propriamente sofreu o filósofo Apu‑
leio, entre 156/158 e 161. Essa acusação de praticante de magia é a mais bem documen‑
tada que temos atualmente. O jovem Apuleio, filósofo e orador, após passar parte de
sua vida viajando por cidades do Império Romano pronunciando seus discursos, decide
estabelecer-se numa cidade da África romana, Oea (província da África proconsular),
e lá se casa com uma rica viúva, Emília Pudentila, mãe de um antigo amigo que o recebe
na cidade. Devemos destacar que a viúva se negava a casar-se novamente, tendo já con‑
traído esponsais com o irmão de seu falecido marido, aliança desfeita antes de conhecer
Apuleio43. Após o casamento, Apuleio é acusado pelos parentes da viúva de tê-la conquis‑
tado por meio de práticas de magia amorosa. Vários são os fatores que levam seus adver‑
sários à desconfiança, entre eles: uma passagem de uma carta de Pudentila, em que esta

43  Espécie de noivado moderno, os esponsais eram um compromisso de futuras núpcias, um contrato
verbal entre a família do noivo e a da noiva. A palavra esponsais, em latim sponsalia, deriva do verbo
latino spondere, que significa prometer; assim, esponsais seriam uma promessa mútua de casamento
(CARROZZO, 1991, p. 70).

104
diz que Apuleio é um mago e a enfeitiçou; o próprio fato de a viúva ter antes se negado
a contrair novo matrimônio e agora ter decidido se casar com o jovem; também o fato
de Apuleio fazer experiências com peixes venenosos, as quais, segundo ele, faziam parte
de um tratado naturalista que pretendia escrever.
Apuleio registra seu discurso de defesa na obra Apologia, em que faz, segundo ele pró‑
prio, uma verdadeira defesa da filosofia, uma filosofia de cunho mágico que começava a
aflorar no Império Romano, o neoplatonismo. Devido à falta de testemunhos e à ótima
retórica de Apuleio, que advoga em causa própria, o escritor parece ter sido absolvido
da acusação, uma vez que anos depois apresenta-se como sacerdote na cidade de Cartago.
A acusação é feita legalmente pelo filho mais novo de Pudentila, embora Apuleio
aponte outros envolvidos no processo de difamação e acusação contra ele, especialmente
Emiliano, outro irmão do falecido marido de Pudentila. As alegações dos acusadores eram
de Apuleio ser um filósofo formoso e eloquente; de fabricar um creme dental; de fazer
versos de amor para jovens garotos; de fazer uso de um espelho; de manumitir três escra‑
vos ao mesmo tempo; de comprar peixes que seriam usados com finalidades mágicas;
de fazer um escravo e uma mulher lançarem-se ao chão mediante poderes mágicos; de
possuir objetos mágicos secretos; de praticar sacrifícios noturnos; de possuir uma está‑
tua em formato de esqueleto, usada em malefícios mágicos; de praticar magia para con‑
quistar a viúva Pudentila; e de casar-se com Pudentila interessado em seu dinheiro.
Os diversos pontos de acusação contra Apuleio foram reunidos e estudados por nós
em nossa pesquisa de mestrado44, por meio da análise da própria defesa e estruturação
do discurso em três categorias: 1) argumentos relacionados à imagem de Apuleio como
filósofo, orador e homem público; 2) argumentos relacionados ao uso da magia e suas
relações com as especulações filosóficas do acusado; 3) argumentos relacionados à pos‑
sível aliança estabelecida com o casamento de Apuleio com Pudentila.
Dois pontos em especial chamam a nossa atenção em relação às leis do momento que
puniam o praticante de magia: as acusações de ter fabricado um creme dental e de com‑
prar peixes que seriam usados com finalidades mágicas.
Apuleio (Apologia, VI) menciona que seus acusadores se pronunciavam sobre a fabri‑
cação de um creme dental com tanta indignação como se se tratasse da fabricação de um
veneno. Assim sendo, acreditamos que os acusadores de Apuleio buscam mostrá-lo como

44  A dissertação foi, posteriormente, publicada sob a forma de livro. Consultar Silva (2012).

105
alguém que possui relações com a magia, já que, segundo Graf (1994, p. 56-57), o termo
veneficus, que deriva de veneficium, palavra de origem grega, significa não somente a fabri‑
cação de drogas e venenos, mas também encantamentos de todos os tipos. Como vimos,
a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis especifica que existem venenos que possuem propó‑
sitos de cura e outros maléficos, com propósito de matar, punindo somente os que admi‑
nistrassem mala venena, encantamentos com finalidades maléficas.
Também acusam Apuleio de ter comprado, para a prática mágica, peixes de uma
espécie venenosa, o Lepus marinus, e dois tipos de animais marinhos cujos nomes repre‑
sentam as denominações dos órgãos sexuais masculino e feminino, ueritilla e uirginal.
Conferimos que o problema da compra de peixes reside no fato de que a espé‑
cie Lepus marinus, adquirida por Apuleio, possui propriedades venenosas. De acordo
com fontes da época, como os escritos de Plínio, o Velho, em sua obra História Natu-
ral, o Lepus marinus não era um peixe propriamente, mas uma espécie de molusco
marinho, e se caracterizava como um dos mais venenosos animais do mar. O sim‑
ples contato com uma pessoa provocava alterações e reações estomacais imediatas.
Filóstrato também cita os poderes mortíferos dessa espécie na Vida de Apolônio de
Tiana. Assim sendo, notamos que os acusadores fazem com que o crime de Apuleio
recaia novamente na categoria de punição do fabricante de poções mágicas carac‑
terizadas como venenos na Lex Cornelia de sicariis et veneficiis. Também devemos
observar que esse ponto se refere a princípios da virtude simpática ou imitativa esta‑
belecidos conforme as leis da simpatia universal pelo antropólogo oitocentista James
Frazer. De acordo com os fundamentos dessas leis, o pensamento mágico admite
uma afinidade entre as coisas. Assim, os acusadores de Apuleio veem as proprieda‑
des mágicas dos peixes propícias para a magia amorosa no parentesco entre as pala‑
vras. Segundo Graf (1994, p. 87), a convicção de que o nome das coisas se assemelha
a suas propriedades está profundamente enraizada no pensamento greco-romano.
Na passagem a seguir, Apuleio também faz alusão à ligação do crime de que está
sendo acusado com as penalidades estabelecidas pela Lex Cornelia de sicariis et veneficiis,
comparando a acusação de praticante de magia com a de um assassino, de um envenena‑
dor ou de um ladrão, mas a diferencia das demais acusações:

[...] de acordo com a opinião comum, considera-se mago o que por sua comuni‑
cação com os deuses imortais é capaz de fazer tudo que é inacreditável pela força

106
misteriosa de certos encantamentos. E me admira uma coisa: vocês não têm medo
de acusar alguém que, segundo acreditam, pode fazer tantas coisas desse tipo?
Porque assim como qualquer pessoa pode se defender dos demais perigos, nin‑
guém pode se precaver contra um poder misterioso e sobrenatural. O que acusa
um assassino chega escoltado; o que acusa um envenenador pode tomar precau‑
ções ao comer alguma coisa; o que denuncia um ladrão pode vigiar seus bens. Mas,
ao contrário, o que leva ante os tribunais, acusado de um delito capital, um mago,
no sentido que definem estes ignorantes, com que escolta, com que precauções,
com que vigia pode evitar a ruína invisível e inevitável? (Apul. Apologia, 26, 6-9).

Na análise da autodefesa de Apuleio, na Apologia, podemos perceber que o escri‑


tor, sendo homem abastado e tendo recebido a educação dispensada às elites do Impé‑
rio Romano, configurou-se como um importante cidadão da África romana, chegando
a ocupar cargos políticos e sacerdotais. Também seus acusadores faziam parte da elite da
época, sendo todos ricos em termos de fortunas privadas. Embora Apuleio não nos for‑
neça muitos indícios das relações sociais e possivelmente dos cargos que seus acusadores
ocupavam em Oea, podemos deduzir, através dos dados sobre suas fortunas, que faziam
parte da elite dessa cidade, já que era comum que os cidadãos membros da elite econômica
fossem também os dirigentes e homens públicos nas cidades do Império. Assim, todas as
famílias envolvidas no processo parecem estar relacionadas às redes de poder que estru‑
turavam as relações políticas das cidades romanas no contexto do Principado, e indícios
arqueológicos sugerem que um importante membro dos Sicinii, família dos acusadores,
chegou a ser senador em Roma.
Além disso, devemos estar atentos para o fato de que casamentos na Antiguidade
romana eram extremamente importantes para as carreiras de homens públicos como
Apuleio e estavam relacionados com as alianças políticas entre as famílias da elite que
administrava as cidades do Império.
Outro detalhe importante para a compreensão do processo movido contra Apuleio
é o fato de o acusado ser um filósofo, um orador, um sacerdote e, de certa maneira, um
praticante da magia. Posições estas que lhe conferiam grande destaque nos setores da
vida pública romana, pois estavam também relacionadas com o poder e o prestígio social.
Diante do exposto, vale ressaltar que acreditamos que Apuleio foi acusado porque
a magia, naquela sociedade, tinha um significado maior do que apenas a prática em si,

107
estando relacionada não apenas à crença na capacidade de alterar o curso natural das ati‑
vidades humanas, que conferia status ao seu praticante, mas também ao poder político, já
que no Império Romano os próprios governantes eram adeptos de práticas desta natureza.
Assim, percebemos que a sociedade da época acreditava na magia como um instrumento
de poder e, por isso, acusava Apuleio de ser praticante de magia negativa, buscando eli‑
minar um inimigo em potencial45. Por tal temor à magia, vemos a criminalização desta
prática desde a Lei das Doze Tábuas.
Como o processo de Cresimo, do período republicano, o processo contra Apuleio deve
ser compreendido dentro das estruturas sociais e de poder vigentes à época, não podendo
o estudioso desvincular jamais as crenças e as acusações do contexto social e histórico.
Se Apuleio tivesse sido condenado no processo pela posição social que ocupava,
já que a lei diferenciava as punições pela camada social do acusado, como vimos, sua
pena seria a deportação para uma ilha e a perda de metade de seus bens e da cidadania
romana. No entanto, como comentamos, ele parece ter sido absolvido da acusação, pois
indica, em outra de suas obras, ter vivido os anos posteriores à acusação na cidade de
Cartago, onde ocupou um cargo sacerdotal (Apul. Florida, XVIII, XX). Acreditamos que
por ocasião do final do processo de magia ele partiu com sua esposa para essa cidade,
desenvolvendo atividades como médico, conferencista e advogado. Além disso, na obra
literária Metamorfoses, também de sua autoria, Apuleio parece fazer uma alusão metafó‑
rica ao processo que sofreu, apresentando-nos Lúcio, um jovem curioso que, ao realizar
um encantamento, é transformado em asno, recuperando a forma humana apenas ao
iniciar-se nos cultos mistéricos da deusa Ísis.
Outro processo de magia emblemático do período do Principado do qual temos notí‑
cia é o que foi movido contra Apolônio de Tiana, personagem que viveu, provavelmente,
no século I e cuja trajetória é permeada por dúvidas. Envolvido em diversas polêmicas,
Apolônio foi comparado a Jesus Cristo no século IV por Sosiano Hierocles, governador
da Bitínia e perseguidor de cristãos ao lado de Diocleciano, que teria valorizado os atri‑
butos miraculosos de Apolônio contra Jesus, testemunho que, porém, não chegou até
nossos dias. Tal comparação foi criticada mais tarde pelo historiador cristão Eusébio de
Cesareia, em sua obra Contra Hierocles.

45  Para mais informações sobre o processo e a defesa de Apuleio, consultar Silva (2012).

108
O processo contra Apolônio é relatado na biografia Vida de Apolônio de Tiana46, escrita
pelo sofista grego Flávio Filóstrato em meados do século III, portanto no período de acir‑
ramento legal das acusações contra praticantes de magia pelas Sentenças de Paulo.
Apolônio é acusado pelo imperador Domiciano (81-96). De maneira geral, a acu‑
sação é que Apolônio era praticante de magia nefasta, mas, como no caso de Apuleio,
várias acusações são, conforme mostra Filóstrato, levadas ao tribunal. Na Vida de Apolônio
(VII, 20), temos a apresentação dos seguintes argumentos de acusação47: sua maneira de
vestir e sua forma de viver; o fato de ser objeto de culto; de ter feito uma previsão em
Éfeso sobre uma praga48; de ter falado contra o imperador Domiciano, algumas vezes
em privado, outras com a intenção de que os deuses ouvissem; e, a mais grave de todas,
segundo o texto da VA: de ter realizado o sacrifício de um menino para Nerva, senador
na ocasião do processo e que se tornará imperador romano após o processo de Apolônio.
Como é possível concluir, embora os aspectos mágicos que envolvem Apolônio
estejam presentes na acusação, especialmente nos argumentos que dizem respeito a sua
forma de viver – que o preparava para uma vida ascética e lhe dava condições de fazer
previsões (Philostr. VA, VIII, 5) –, seu poder de fazer previsões e sua capacidade de exe‑
cutar rituais para um importante senador romano, há outros pontos que dizem respeito
diretamente à pessoa do imperador Domiciano. O fato de ter falado contra ele, obvia‑
mente, continha implicações políticas. No entanto, devemos salientar que mesmo as acu‑
sações que parecem apenas religiosas extrapolavam esse domínio na Antiguidade, pois
não podemos, para a sociedade do Principado, separar política de religiosidade, uma vez
que ambas as esferas se interpenetravam. Dessa forma, acreditamos que a acusação con‑
tra Apolônio de Tiana faça sentido pleno quando analisada em conformidade com as
relações de poder que envolviam Domiciano e um mago, no caso Apolônio, cujo conhe‑
cimento sobrenatural causava temor ao imperador49.

46  Abreviaremos o título da Vida de Apolônio de Tiana como VA, conforme regras de abreviatura de nomes
de autores e de obras clássicas utilizadas pelo Oxford Classical Dictionary.
47 Em VA, VIII, 5, o biógrafo comenta que houve outros pontos de acusação, mas que o acusador, Domi‑
ciano, se centrou nesses, que considerava conclusivos e difíceis de contestar.
48  Previsão descrita em Filóstrato (VA, IV, 10).
49  A magia como um sistema de saber e, consequentemente, como um poder foi bem analisada pelo
antropólogo Marcel Mauss. De acordo com ele, a magia se caracteriza como um fenômeno coletivo, em
que é a sociedade que atribui poder ao mago. Nesse sentido, a magia só é possível a partir do momento em

109
Como Apuleio, Apolônio advoga em causa própria diante do tribunal. Sua defesa,
apresentada por Filóstrato, segue como uma defesa da filosofia. No primeiro trecho
citado, Apolônio, ou melhor, seu biógrafo Filóstrato, mostra a Domiciano que, ao acusá-lo,
o imperador se opõe à filosofia:

Na causa entre mim e o imperador, quem será o juiz? Prosseguiu Apolônio. Pois
vou demonstrar que ele cometeu injustiça contra a filosofia (Philostr. VA, VIII, 2).
O litígio entre nós, ó imperador, se refere a questões graves. Pois vós vos envol‑
veis em questões em que nunca nenhum imperador se havia envolvido e dais assim
a impressão de que tendes má vontade contra a própria filosofia, sem nenhum
motivo justo (Philostr. VA, VIII, 7, 1).
Que grau de verdade alcança essa acusação fica evidente no testemunho destes
senhores, pois eu não estava nos subúrbios, mas na cidade; não estava fora das
muralhas, mas em uma casa; não estava com Nerva, mas com Filisco; não estava
degolando, mas suplicando por uma vida; não estava em favor do império, mas da
filosofia [...] (Philostr. VA, VIII, 7, 15).

Filóstrato (VA, VIII, 2, 7) também mostra Apolônio comparando sua defesa com a
do filósofo Sócrates, que foi acusado de corromper a juventude ateniense. Apolônio é, no
texto filostratiano, um sábio, sendo suas práticas de caráter mágico-religioso parte de sua
sabedoria; portanto, para Filóstrato, ele é um teurgo, é aquele que tem seus conhecimen‑
tos revelados pelos deuses por meio da ascese. Assim, Filóstrato retira de seu protagonista
qualquer ligação possível com a prática de magia considerada negativa, charlatanesca e
punida por lei pelos romanos, a goeteia, fazendo uma verdadeira defesa da teurgia como
forma de conhecimento:

Tomemos, no entanto, em consideração, outros argumentos: os feiticeiros (γόης,


goes), eu os considero os mais infortunados dos homens; recorrem uns ao interro‑
gatório de espíritos, outros a sacrifícios bárbaros, outros a pronunciar algum verso

que a sociedade acredita nela, é a tradição que lhe confere credibilidade, fazendo parte solidamente de deter‑
minada cultura (MONTERO, 1990, p. 18-19). A partir dessa teoria, Mauss trabalha a ideia de maná, que
seria o poder atribuído a determinado objeto ou a uma pessoa pela sociedade. A magia passou, então, a ser
compreendida como um sistema simbólico, parte de uma organização social.

110
ou a untar-se com algo, afirmando que podem alterar o curso do destino. Muitos
deles, submetidos a acusações, reconhecem ser expertos em tais procedimentos.
Mas nosso homem se submetia aos ditados das Moiras e pressentia, como neces‑
sário, determinados acontecimentos, ele os conhecia de antemão, não por prati‑
car a goeteia, e sim por revelação divina (Philostr. VA, V, 12).

Em outra passagem da obra (Philostr. VA, VII, 38-39), pela capacidade de Apolônio
em se libertar das correntes que o prendiam durante a prisão ordenada por Domiciano,
ele é visto como alguém com capacidades sobre-humanas, mas nunca como um mago
no sentido negativo que isso poderia ter naquele contexto50.
Também constatamos que Filóstrato afasta Apolônio de ligações com a goeteia por
ocasião da autodefesa do tianeu diante de Domiciano:

Quanto a essa arte, todos seus praticantes são gananciosos, pois as engenhosas
demonstrações que fazem, as fazem para obter benefícios e gastam muito dinheiro
enganando os que desejam alguma coisa, convencendo-os de que são capazes de
tudo. Desta forma, vê alguma riqueza em mim, imperador, para acreditar que me
dedico a essa falsa sabedoria? Além disso, vosso pai me considerava acima do desejo
de riqueza (Philostr. VA, VIII, 7, 3).

Em sua Apologia, Apuleio também recorreu à filosofia para se defender da acusação


de praticar magia e trouxe à tona, em diferentes pontos da defesa, suas especulações como
filósofo místico e naturalista (rebatendo acusações relacionadas à magia e à sua imagem
como filósofo) e como filósofo desprendido de preocupações com bens materiais (reba‑
tendo acusações relacionadas ao casamento por interesses financeiros com a viúva Puden‑
tila). O autor procura, assim, demonstrar a importância da sua imagem como filósofo e
convencer o juiz de sua inculpabilidade. A causa que Apuleio chamou em defesa foi a da
filosofia (Apul. Apol., I, 3; III, 6).

50  Outros trechos poderiam configurar Apolônio como um feiticeiro, mas, com a longa crítica aos aspec‑
tos negativos da magia, além da defesa, em todo o texto, de Apolônio como divino, percebemos que Filós‑
trato livra seu biografado de ser considerado um γόης (goes). Uma passagem interessante, nesse sentido, é
quando Apolônio desaparece do tribunal ante Domiciano, após ser absolvido da acusação de práticas mági‑
cas (Philostr. VA, VIII, 5).

111
Assim, tanto Apuleio em sua defesa quanto Filóstrato na defesa de Apolônio usam
a filosofia para legitimar as práticas de magia dentro dos limites que eram aceitos e para
rebater as acusações contra eles dirigidas. Cumpre ressaltar que o discurso de defesa
de Apolônio, apresentado por seu biógrafo Filóstrato, não é mencionado nas cartas
da tradição em torno do tianeu e é considerado por alguns estudiosos, como Pajares e
F. W. Lenz (FILÓSTRATO, 1979, p. 465), como invenção de Filóstrato. Acreditamos
que seja possível Filóstrato ter criado essa acusação e também sua defesa, uma vez que
isso lhe deu mais oportunidades para defender seu biografado das nefastas práticas da
goeteia, especialmente diante do aumento da preocupação legal com a magia verificado
no período severiano, como podemos constatar por meio das Sentenças de Paulo, às quais
já aludimos. Além disso, Filóstrato pode ter usado a mesma estratégia de Apuleio por ter
conhecimento de tal defesa devido à leitura da Apologia, uma vez que Apuleio poderia
ter chamado a atenção por seu interesse em filósofos e sofistas, já que também pode
ser caracterizado como um sofista51.
Assim sendo, tanto a acusação de Apuleio como a de Apolônio demonstram um
aspecto essencial da magia no Principado: a ambiguidade (ora positiva, ora negativa)
com que a prática era vista, sendo que o processo de Apuleio ocorre na África procon‑
sular, no século II, levantado por provinciais, e o de Apolônio é descrito por um autor
grego no Império Romano dos Severos, no século III, tendo possivelmente acontecido,
conforme o relato de Filóstrato, contra um provincial (Apolônio, oriundo da província
da Capadócia), no século I, na cidade de Roma.

Considerações finais

Diante do que apresentamos, podemos concluir que, para melhor penetrar no estudo da
magia romana, ainda que em suas representações, é necessário que o historiador, além
do testemunho legislativo, analise os processos e as circunstâncias em torno de cada um

51  Consideramos, no entanto, que Apuleio não possui uma das características centrais dos sofistas da
Segunda Sofística de Filóstrato: o domínio da cultura e da língua gregas. Embora ele conheça bem a lín‑
gua grega (Apul. Apologia, XXXVI, 5; Florida, IX, 29, XVIII, 37), suas obras são escritas em latim, demons‑
trando, que a arte de discursar em público também chamava a atenção dos falantes de latim das regiões por
onde passava, na África Romana.

112
deles, além, é claro, de realizar um diálogo com a documentação literária que nos foi legada,
pois os processos não chegaram por meio de fontes jurídicas, mas literárias. Assim sendo,
o direito, as punições advindas do código legislativo e os relatos contendo as acusações
são fundamentais para compreendermos o conteúdo das crenças, como, por exemplo, no
caso da magia simpática ou imitativa, como vemos no episódio da compra de peixes por
Apuleio para a prática de magia amorosa.
Cumpre destacar que as fontes trabalhadas contêm representações, aspectos sobre
as crenças, e não as práticas de magia em si. Para um estudo desta natureza, seria pre‑
ciso recorrer a uma análise sistemática da documentação material. Além do que, as fon‑
tes jurídicas estabelecem normas que estão longe de descrever as práticas propriamente
ditas e as crenças em torno delas.
Para compreendermos melhor o sentido da magia contida nas leis e nas acusações do
Principado que chegaram até nós, foi necessário explorarmos alguns testemunhos sobre
o período republicano e a documentação da época. Assim, vimos que nas Leis das Doze
Tábuas, promulgadas no contexto de expansão republicana, o crime de magia, mesmo
não aparecendo ainda com essa denominação, nos coloca diante de uma sociedade agrá‑
ria preocupada com a propriedade privada e com a penetração do elemento estrangeiro,
dilemas característicos do contexto histórico em questão. Já a Lex Cornelia de sicariis et
veneficiis equipara a magia ao assassinato, no caso por envenenamento, também expri‑
mindo uma preocupação própria do período de elaboração da lei, marcado pelos múlti‑
plos assassinatos perpetrados durante as guerras civis do final da República. As acusações
de magia dos primórdios do sistema imperial, por sua vez, costumam se referir a aten‑
tados contra a vida do imperador executados mediante o recurso às artes mágicas, reve‑
lando assim a preocupação com a integridade física do mais importante indivíduo em
Roma, o que também transparece no processo de Apolônio de Tiana, acusado de colocar
em risco a vida de Domiciano. Já o processo de Apuleio exprime as preocupações das eli‑
tes provinciais com o ordenamento político e social das cidades, apresentando elemen‑
tos importantes desse ordenamento, como o casamento entre homens e mulheres das
famílias das elites citadinas.
Ao longo do presente capítulo, esperamos ter esclarecido que a punição às práticas
mágicas não foi considerada como algo menor pelo Direito romano e que a categoria
do que os antigos romanos consideravam como magia não foi algo abstrato e sem sig‑
nificado, mas parte da organização social. Além disso, esperamos ter apresentado como

113
a magia, sua ambiguidade em termos de práticas e representações e as punições previs‑
tas no corpus legislativo antigo são elementos importantes para a compreensão histórica
da Antiguidade romana.

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115
Crimen magiae: a legislação romana
contra a magia no contexto do julgamento
de Apuleio de Madaura (séc. II d.C.)
Belchior Monteiro Lima Neto

Na Antiguidade greco-romana, a magia representava uma forma específica de poder,


colocado à disposição de determinados indivíduos52. Os magos seriam aqueles que
teriam a primazia de, por meio de um contato privilegiado com determinada divin‑
dade, produzir maravilhas e influenciar o curso normal dos eventos, sendo potencial‑
mente perigosos e agentes de instabilidade. Por meio de filtros, de revelações divinas
e de encantamentos diversos, teriam o poder de influenciar a vida das pessoas e da
própria comunidade. Não era prudente tê-los como adversários, visto que poderiam
utilizar seus conhecimentos sobrenaturais para prejudicar e até mesmo eliminar pos‑
síveis inimigos.

52  Pode-se pensar a magia como um elemento associado e pertencente a todo e qualquer sistema religioso,
definido como um conjunto de símbolos que atua para a formulação de conceitos de uma ordem de exis‑
tência sobrenatural, por meio do qual o homem obtém um mínimo de previsibilidade e de inteligibilidade
diante do desconhecido ou do pouco cognoscível (GEERTZ, 2008, p. 67). Os sistemas religiosos se subdivi‑
diriam em dois subsistemas: o devocional e o mágico. O primeiro se relacionaria a uma série de cerimônias
de reverência dispensadas pelos fiéis aos entes divinos, com a finalidade de saudação dos seres sobrenaturais
por meio da exaltação da sua glória, majestade, onipotência e magnanimidade. Já o segundo seria composto
por um conjunto de ritos (mágicos) que invocariam o auxílio de alguma divindade no intuito de produzir
alterações na ordem estabelecida pela realidade sensível. Desse modo, todo sistema religioso comportaria,
em maior ou menor escala, práticas consideradas mágicas. Em toda religião haveria certos ritos de caráter
divinatório, purificatório, apotropaico e de transmutação que buscariam intervir e alterar a realidade coti‑
diana vivida pelos fiéis, sendo um elemento indispensável para a própria consolidação de determinado culto
a existência de uma divindade propiciadora de prodígios que exaltem a sua superioridade sobre a natureza
e os demais seres (SILVA, 2003, p. 165-166).

117
De fato, o poder sobrenatural à disposição de certos indivíduos era algo preocupante
na sociedade romana imperial, principalmente se aqueles que o possuíam interrogavam
as potestades acerca da morte, da saúde ou de qualquer fato relacionado ao destino dos
imperadores ou de membros proeminentes da comunidade. Não à toa, entre os gover‑
nos de Augusto (27 a.C.-14 d.C.) e de Tibério (14-37) foram emanados um edito impe‑
rial e dois senatusconsulta – respectivamente, nos anos 11, 17 e 19 –, visando a regular a
prática da adivinhação e expulsando, da cidade de Roma, astrólogos, magos e adivinhos
(Dião Cássio Historia Romana, LVI, 23; Suetônio Tiberius, LXIII; Tácito Annales, 2, 27-32).
Percebe-se, por conseguinte, que ser denunciado por crimen magiae no período alto‑
-imperial romano era uma acusação grave53, ficando o infrator passível da pena capital,
podendo ser jogado às feras ou crucificado.
Em 159, Apuleio de Madaura foi julgado por crimen magiae (Apul. Apol., 9, 3). Apuleio
foi um autor norte-africano que viveu entre os anos de 120 e 180, tendo obtido grande noto‑
riedade como filósofo, orador e escritor de diversos gêneros literários54. Entre os anos de 157
e 159, ele viu-se envolvido num imbróglio na cidade de Oea55, localizada na região norte da
África conhecida como Tripolitânia. Nessa cidade, sua honra de filósofo e de autor de grande
erudição foi posta em dúvida e ele foi acusado como mago por parte da elite citadina local.
Em Oea, Apuleio se casou com a rica viúva Emília Pudentila. O casamento, no
entanto, não foi bem visto por parte da família do primeiro marido da viúva. Emí‑
lia Pudentila tinha sido casada com Sicínio Amico e, após a morte dele, a aliança entre
as famílias não se rompera, posto que fora acertado um contrato de futuro casamento
– sponsalia – entre a viúva e um irmão de seu falecido esposo, seu cunhado Sicínio Claro
(Apul. Apol., 63, 5)56. Ao desposar Emília Pudentila, Apuleio contribuiu para o rompimento

53  Utiliza-se o termo jurídico crimen para indicar a acusação de um ato ilícito cometido contra a ordem
estabelecida, contra uma comunidade, resultando num juízo público levado a cabo diante de um tribunal
presidido por um magistrado (MONTEMAYOR ACEVES, 2008, p. 203-204).
54  Em relação às obras escritas por Apuleio, há uma variedade ampla de estilos. Encontram-se discur‑
sos, textos filosóficos, poesias, novelas latinas, hinos, panegíricos, tratados de botânica, zoologia, medi‑
cina, astrologia, entre outros. Em suma, Apuleio era um autor polivalente e versado em diferentes gêneros
literários, escrevendo tanto em grego quanto em latim. Da vasta produção do autor, chegaram à contem‑
poraneidade apenas seis obras: uma novela latina (Metamorphoses), três tratados filosóficos (De Platone,
De Mundo e De Deo Socratis), um discurso jurídico (Apologia) e uma antologia de discursos laudatórios (Florida).
55  Oea é a atual cidade de Trípoli, na Líbia.
56  Segundo o Digestum (XXIII, I, 1), “a sponsalia era uma petição e uma promessa de futuras núpcias”.

118
da aliança político-familiar há muito estabelecida entre os Sicinii e os Aemilii – duas
das mais importantes gentes locais –, atraindo para si a oposição de parte da aristocra‑
cia oeaense57. Os inimigos do autor, em Oea, eram principalmente um ex-cunhado de
Pudentila, Sicínio Emiliano, e o filho mais novo da viúva, Sicínio Pudente. Foram eles
que acusaram formalmente Apuleio, visto como um caça-dotes, de utilizar magia amo‑
rosa para casar-se com a viúva, fato que o colocaria como réu no tribunal do procônsul
da África, em Sabrata, cidade vizinha a Oea, no ano de 15958.
Não por acaso, Apuleio foi acusado como mago, já que a própria cosmovisão filosó‑
fica do autor o aproximava da magia, fazendo parte de uma concepção que relacionava
misticismo, ocultismo e platonismo em um mesmo conjunto de crenças59. Apuleio, grosso
modo, buscava estabelecer a conexão dos seres humanos com o mundo sobrenatural a par‑
tir de uma reflexão vinculada à demonologia platônica, conceituando os daimones como
entidades divinas, intermediárias entre deuses e homens e propiciadoras de diversos pro‑
dígios associados à magia. A percepção teológico-filosófica de Apuleio demonstra a impor‑
tância que a magia possuía em seu sistema de pensamento, posto que o saber acerca dos

57  Pode-se inferir que a associação entre os Aemilii e Sicinii remontava a épocas mais antigas, estenden‑
do-se por um período de tempo anterior ao próprio casamento entre Emília Pudentila e Sicínio Amico.
Conforme a onomástica romana, o nome de um indivíduo era composto por seu prenome, secundado
pela alcunha gentílica e finalizado pelo da família, sendo, no caso das mulheres, inexistente o prenome
(SMITH, 2006, p. 15-18). Dessa forma, Emília Pudentila fazia parte da gens Emília e da família Pudente.
Observando-se que o outro irmão de seu falecido marido se chamava Sicínio Emiliano – não se sabe qual
seria o seu prenome –, é possível supor uma relação duradoura e tradicional entre as duas gentes, visto que
um dos três filhos do patriarca dos Sicinii possuía, como denominação de seu ramo familiar, a alcunha dos
Aemilii (BRADLEY, 2012, p. 52).
58  Em 159, a cidade de Sabrata recebeu a visita da comitiva (conventus) do procônsul da África, cargo
ocupado à época por Cláudio Máximo. Tratava-se de um conventus iuridici, uma espécie de tribunal itine‑
rante anualmente realizado por cada novo governador provincial, no qual o procônsul, acompanhado por
um conselho formado por funcionários e amici (consilium consularium virorum), instalava-se em algumas
das mais importantes cidades locais, com o intuito de atender as demandas jurídicas dos cidadãos romanos
(FOURNIER, 2009, p. 211-212).
59  Em termos filosóficos, Apuleio se filiava ao médio-platonismo, que se caracterizava como uma tentativa
de recuperação do suprassensível, do imaterial e do transcendente da filosofia platônica original. O período em
que viveu Apuleio foi marcado por uma maior aproximação da própria filosofia com a magia, transformando a
natureza das funções e das prerrogativas associadas aos filósofos, vistos então como homens divinos prodigio‑
sos que mantinham relações privilegiadas com as divindades, a exemplo de Apolônio de Tiana, Peregrino Pro‑
teo e Alexandre de Abonutico (HIDALGO DE LA VEGA, 2001, p. 216-217; MACMULLEN, 1966, p. 95-127).

119
daimones poderia proporcionar-lhe o poder de influenciar o curso dos eventos, de pre-
ver as ações futuras, de conceder a cura a diversas doenças, entre outros atos miraculosos60.
Na obra Apologia, transcrição do discurso de defesa de Apuleio em seu julgamento
em Sabrata, vê-se que as acusações impetradas contra o autor o denunciavam pelo uso
de peixes na preparação de um venenum, pela utilização de um jovem escravo e de uma
mulher epiléticos em rituais divinatórios, pela posse de objetos mágicos, pela prática
de sacrifícios noturnos, pela veneração de uma estátua abjeta de Mercúrio e, por fim,
como principal acusação, a de que Apuleio teria manipulado filtros de amor (venena)
com o intuito de enfeitiçar e seduzir Emília Pudentila (Apul. Apol., 29-65; 68-101). Tais
acusações, em alguma medida, apresentam elementos definidores do próprio crime de
magia à época de Apuleio. Contudo, para se compreender a criminalização dos magi
em meados do século II, faz-se necessário ir além do discurso do autor, analisando-o
a partir da leitura de outras fontes, principalmente as de cunho legal, que nos permi‑
tem responder questões como: o que constituía crimen magiae no Principado romano?
Quais as penalidades previstas e os atos de sortilégio prescritos na legislação romana
que regia o crime de magia? Em que medida as acusações impetradas contra o autor
madaurense o incriminavam como mago? A resposta a tais indagações é primordial,
uma vez que oferece uma compreensão mais sistemática da própria legislação que ins‑
truiu o julgamento de Apuleio, em Sabrata.
Desde o século V a.C., o Direito romano previa a criminalização dos atos relaciona‑
dos às artes mágicas. A Lex XII tabularum, primeiro conjunto de determinações jurídicas
da cidade de Roma, deliberava como passíveis de punição transportar para o seu próprio
campo, por intermédio de encantamentos, a colheita pertencente a outrem e também
o uso de conjuros mágicos com o objetivo de causar dano a alguém (Lex XII tabularum,
VIII, 8a; VIII, 8b; VIII, 1). Os termos utilizados para denominar os atos de sortilégio
eram, à época, excantare – no sentido de evocar ou fazer vir por meio de encantamen‑
tos – e (malum) carmen – que poderia ser traduzido, segundo o texto da lei, como cantos
ou conjuros mágicos61.

60  Para uma percepção pormenorizada sobre a demonologia apuleiana, ver: De Deo Socratis, De Platone
(I, 11, 204-207), De Mundo (344), Florida (X) e Apologia (34, 2-4).
61  Não se sabe, com precisão, o sentido conferido pelos romanos, no momento da composição da Lex
XII tabularum, a tais encantamentos e conjuros miraculosos. A identificação das ações prescritas na lei
com atos mágicos pode derivar do fato de que os comentadores posteriores, tais como Plínio, o Velho

120
As deliberações da Lex XII tabularum (VIII, 8a; VIII, 8b; VIII, 1), no tocante às sen‑
tenças que criminalizavam a magia, reprimiam todo e qualquer ato miraculoso que
atentasse contra a propriedade privada ou a integridade física dos cidadãos romanos,
expressando os receios de uma comunidade predominantemente agrária (GRAF, 1994,
p. 53). Do texto original da lei, temos, atualmente, apenas fragmentos preservados por
autores de períodos posteriores, tais como Plínio, o Velho (Naturalis Historia, XXVIII, 7),
e Virgílio (Bucolica, 8, 99), e esses escritores nada informam acerca das penas previstas
àqueles que praticavam atos mágicos ilícitos62. Na época de Apuleio, a Lex XII tabularum
ainda se encontrava em vigor, posto que o próprio autor afirma que essa lei penali‑
zava “as misteriosas e nefastas influências que [os magos] poderiam exercer sobre as
colheitas” (Apul. Apol., 47, 3).
Outra legislação específica destinada a regular as práticas mágicas tidas como maléfi‑
cas só surgiu no final do período republicano. Em 81 a.C., Sila promulgou a Lex Cornelia
de Sicarii et Veneficis, uma lei que tinha por objetivo salvaguardar a ordem e a segurança
pessoal dos cidadãos, num momento em que o sistema republicano romano começava a
sucumbir diante do embate entre diferentes facções rivais. A Lex Cornelia legislava sobre
uma série de crimes, tais como homicídio, porte de arma com intenções assassinas, latro‑
cínio, incêndio criminoso, calúnia com intuito de condenar um inocente à pena capital e,
por fim, administração de venenos (mala venena) com propósitos homicidas. Em suma,
a lei regulava toda e qualquer ação que ameaçasse a vida de cidadãos romanos, inclusive
os atos de sortilégio (RIVES, 2003, p. 317-318).
O termo venenum (plural venena) possuía um duplo significado. O primeiro con‑
cernia à manipulação de algum tipo de remédio ou droga, os ditos bona venena, produ‑
zidos com intenções médicas e terapêuticas. O segundo relacionava-se à preparação de

(Nat. Hist., XVIII, 41-43), e Virgílio (Bucolica, 8, 99), tenham associado excantare e o malum carmen com prá‑
ticas mágicas existentes em sua época (RIVES, 2002, p. 270-271).
62  Há notícia de apenas uma acusação de magia que teria sido julgada por intermédio da Lex XII
tabularum, ocorrida no início do século II a.C. De acordo com Plínio, o Velho (Nat. Hist., XVIII, 41-43),
o liberto Fúrio Cresimo teria sido acusado de uso de malum carmen e de roubar as colheitas alheias, uma
vez que a produção de suas terras excedia a normalidade. Em sua defesa, Fúrio teria levado ao tribunal
sua família, escravaria e ferramentas de trabalho, que seriam, segundo ele, os reais responsáveis por sua
excepcional colheita. Por meio de tal expediente, Fúrio foi absolvido das acusações que pesavam contra ele
(KIPPENBERG, 1997, p. 145). Para uma análise mais acurada acerca da acusação de magia impetrada con‑
tra Fúrio Cresimo, ver: Graf (1994, p. 76-79).

121
filtros ou substâncias mágicos, caracterizados como mala venena, quer dizer, medicamenta
manipulados com intenções espúrias (COLLINS, 2008, p. 144-145). Percebe-se que, na
medida em que o conhecimento das propriedades contidas nos elementos da natureza
era considerado patrimônio por excelência dos magos, o termo venenum foi integrado ao
vocabulário jurídico romano, por intermédio da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, como
sinônimo de poção mágica assassina (SILVA, 2003, p. 228).
O texto original da Lex Cornelia não nos foi legado na íntegra. A sua reconstituição
parcial somente pôde ser efetuada por meio dos comentários de fontes jurídicas tardias,
provenientes dos séculos III, IV e VI, tais como as Pauli Sententiae (5, 23, 1; 5, 23, 14-19),
a Mosaicarum et Romanarum legum Collatio (II, 1-3) e o Digestum (XLVIII, VIII, 1-17). De
acordo com Rives (2006, p. 49), o conteúdo da lei promulgada por Sila, em 81 a.C., pro‑
vavelmente previa apenas a seguinte sentença para aqueles que administrassem malum
venenum: “A Lex Cornelia infligia a pena de deportação a quem [...] possuiu, vendeu ou
preparou veneno com o objetivo de assassinar um homem” (Pauli Sententiae, 5, 23, 1).
Pela análise da Lex XII tabularum e da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, que regula‑
vam o crime de magia no Principado, observa-se a inexistência de uma condenação das
artes magicae por si mesmas, penalizando-se, tão somente, o mau uso que delas alguns
indivíduos poderiam fazer. Embora a prática mágica fosse acompanhada com certo des‑
conforto pelos poderes públicos – como demonstram os diversos editos e senatusconsulta
promulgados no período imperial contra magos e correlatos –, em termos gerais, a posi‑
ção do Estado romano em relação à magia era caracterizada por certa tolerância, pelo
menos até finais do século III (SILVA, 2003, p. 229)63.
As punições prescritas na Lex XII tabularum e na Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis
recaíam sobre o exercício do malum carmen e do malum venenum, não se penalizando,
dessa forma, todos os tipos de carmina e venena, mas somente os que representavam
algum perigo à ordem pública ou ao bem-estar dos cidadãos (GRAF, 1994, p. 59). Cor‑
roborando tal afirmação, pode-se citar o comentário do jurista Ulpiano, feito no início

63  “Durante mais de três séculos, não constatamos a existência de nenhuma proibição geral do exercí‑
cio da magia e da adivinhação por toda a extensão do Império. Os decretos de expulsão, que, vez por outra,
atingiam os astrólogos, arúspices e correlatos, limitaram-se à cidade de Roma ou, no máximo, à Península
Itálica, ao mesmo tempo que nunca se pretendeu que tais medidas fossem permanentes, uma vez que elas
eram tomadas apenas em situações de emergência, quando a instabilidade política na capital do Império
atingia limites insuportáveis” (SILVA, 2003, p. 229).

122
do século III, acerca do senatusconsultum de 17, no qual Tibério legislou contra astrólo‑
gos, caldeus e afins: “os antigos pareceram visar não a doutrina [mágica] ela mesma, mas
a sua exposição em público” (Coll. II, 2)64.
Não por acaso, Apuleio, mesmo formalmente acusado de crimen magiae, pôde admitir,
perante o tribunal do procônsul da África, ser um filósofo conhecedor de práticas mági‑
cas teúrgicas (Apul. Apol., 25, 9; 26, 1-2; 26, 6-9). Em Apologia, o autor não esconde a sua
familiaridade com a magia, considerando-a “uma ciência agradável aos deuses imortais,
[...] evidentemente piedosa e ciente das coisas divinas” (Apul. Apol., 26, 1-2). As afirma‑
ções de Apuleio fazem crer que, em meados do século II, época de seu julgamento, em
Sabrata, as leis romanas referentes ao exercício da magia continuavam a punir unica‑
mente os indivíduos que praticassem magica maleficia (Apul. Apol., 69, 4).
De fato, somente em finais do século III, como demonstram os comentários sobre a
Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis elaborados pelo jurista (Pseudo) Paulo, a legislação que
disciplinava os atos de sortilégio no Império Romano começou a criminalizar a magia por
ela mesma, independentemente do exercício bom ou mau que dela os indíviduos pudes‑
sem fazer65. Segundo consta nas Pauli Sententiae (5, 23, 17-18):

Todos os culpados de magicae artes devem sofrer o summum supplicium, ou seja, a


exposição às feras ou à cruz. Os magos, eles mesmos, devem ser queimados vivos.
Ninguém deve possuir livros de artes mágicas. Quaisquer que sejam as pessoas com
as quais se encontre esse tipo de livro, os livros serão queimados publicamente e
seus possessores terão os seus bens confiscados. Os honestiores serão deportados
para uma ilha e os humiliores sofrerão a pena capital. Não somente o exercício dessa
arte, mas a própria ciência é proibida.

Até o início do período imperial, os termos utilizados pelas leis romanas para caracte‑
rizar os praticantes de atos de sortilégio eram carmen, excantare e veneficium. O substantivo
magus (do grego magós) – que posteriormente deu origem aos cognatos magicus e magia,

64  Sob o governo de Severo Alexandre (222-235), foram criadas e subvencionadas pelo Estado imperial
cadeiras para o ensino da astrologia e da aruspicina em Roma, indicando que os saberes mágicos em si mes‑
mos ainda não representavam uma ameaça à ordem estabelecida (SILVA, 2003, p. 231).
65  O termo (Pseudo) Paulo é utlizado para referir ao autor das Pauli Sententiae, uma vez que essa obra
pode ser considerada apócrifa, sendo equivocadamente atribuída ao jurista Paulo (GODDARD, 2010, p. 1-2).

123
derivados provavelmente do grego magicos, mageia66 – é primeiro introduzido na língua
latina em meados do século I a.C., por Cícero (De divinatione, I, 46; I, 91) e Catulo (Carmen,
90)67. Em consonância com sua procedência etimológica helênica, o termo magus foi ini‑
cialmente associado, pelos autores latinos, aos sacerdotes persas, os denominados magoi,
representantes, segundo Heródoto (Hist., I, 101), de uma tribo ou sociedade secreta, respon‑
sáveis pelos sacrifícios reais, pelos ritos funerários, pela adivinhação e pela interpretação
dos sonhos entre os persas (GRAF, 1994, p. 31-32; p. 46-47; MARCO SIMÓN, 2001, p. 110).
Na primeira ocorrência conhecida da palavra magus, em latim, Cícero (De div., I, 46)
oferece a seguinte definição: “os magos [...] eram uma espécie de sábio e estudioso que
possuíam os persas”. Mais adiante, o autor informa acerca da magorum disciplina et scientia,
quer dizer, da “disciplina e ciência dos magos” (De div., I, 91). Também em meados do
século I a.C., Catulo (Carm., 90) se mostrava de acordo com a conotação dada por Cícero
ao termo magus, afirmando que “os magos [...] aprendiam a arte persa da adivinhação
[...] e adoravam seus deuses com gratidão”.
Pouco tempo após o aparecimento da palavra magus (magicus) no vocabulário latino,
o termo ganhou novas conotações, aumentando o leque semântico que o caracteri‑
zava apenas como uma espécie de antigo sacerdote persa. Os poetas latinos do final do
século I a.C. e início do século I empreenderam uma ampliação do significado do termo
magus/magicus, associando-lhe elementos que o relacionavam a toda sorte de atos de
sortilégio maléficos e ímpios. Autores como Virgílio (Bucolica, 8, 66; Aeneis, 4, 492-493),
Ovídio (Metamorphoses, 7, 192-298), Lucano (Pharsalia, 6, 430-830), entre outros, tende‑
ram a representar os magi como arquétipos de uma superstitio68 e de uma alteridade iden‑
tificadas com a barbárie (MARCO SIMÓN, 2001, p. 119-112)69.

66  Para uma análise aprofundada acerca da origem dos substantivos magós e magus, na Grécia e em Roma,
ver: Bremmer (1999).
67  O adjetivo magicus foi primeiro utilizado na língua latina por Virgílio (Bucolica, 8, 66; Aeneis, 4, 492-
493), no final do século I a.C, sendo preferencialmente usado na poesia latina dos primeiros dois séculos da
era imperial. Já o termo magia tem a sua primeira ocorrência, em latim, somente em meados do século II, na
Apologia (2, 2; 9, 5; 25, 5; 26, 1; 27, 9; 27, 12; 28, 4; 29, 1), de Apuleio. Até meados do século II, os termos que
designavam as práticas mágicas se limitavam ao substantivo magus e ao adjetivo magicus (RIVES, 2010, p. 58).
68  Os romanos compreendiam a superstitio como uma forma não sancionada, excessiva e imprópria de
cultuar e honrar os deuses (COLLINS, 2008, p. 147).
69  Para uma análise pormenorizada acerca da representação dos praticantes de magia na poesia latina,
ver: Tupet (1976).

124
Vê-se a ampliação semântica do termo magus/magicus completar-se com Plínio,
o Velho (Nat. Hist., XXX), na medida em que esse autor associava as magicae vanitates a
uma série de tradições religiosas de diferentes povos, lugares e épocas. Da Pérsia, a ars
magica, inicialmente criada por Zoroastro, teria se expandido para Grécia, Palestina, Itá‑
lia e Bretanha, influenciando os ritos e as crenças de diversas etnias. Plínio, em sua nar‑
rativa, demonstra como a magia, originalmente limitada às crenças religiosas persas, se
tornou sinônimo de atos de sortilégio em geral. Além disso, observa-se o substantivo
magus sendo associado ao termo veneficus, fato que leva a crer numa possível crimina‑
lização da magia, a partir de meados do século I, sob a Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis
(Plin. Nat. Hist., XXV, 127; XXX, 17; XXXVI, 139).
Corroborando essa tendência de associação dos termos magus e veneficus, verificada
em Plínio, o Velho, Quintiliano (Institutio oratoria, 7, 3, 7) questionava-se acerca do fato
de que os carmina magorum poderiam ser considerados um tipo de veneficium. Tal indaga‑
ção elaborada por Quintiliano faz inferir acerca da existência de um processo de amplia‑
ção da abrangência da própria Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, que a princípio fora
somente reservada para casos de assassinato praticados com a administração de malum
venenum. Progressivamente, a lei agregou sob a sua rubrica uma série de atos miraculo‑
sos considerados ilegais, fato que pode ser observado por intermédio da leitura de um
senatusconsultum, do século II, que estabelecia que “fosse castigado com a pena desta lei
[Lex Cornelia] todo aquele que houvesse celebrado mala sacrificia” (Dig. XLVIII, VIII, 13).
Não à toa, sob o governo de Tibério (14-37), o crime relacionado ao veneficium foi
associado a uma ampla gama de infrações identificadas com as práticas mágicas e divi‑
natórias. Após debelar o suposto complô de Druso70, ocorrido no ano de 15, foram pro‑
mulgados, em 17, dois senatusconsulta expulsando da cidade de Roma e da Itália diversos
astrólogos e magos (mathematici et magi), além de imporem aos mathematici, chaldaei,
harioli e correlatos a proibição da água e do fogo, assim como o confisco dos bens e a pena
capital, caso os culpados fossem estrangeiros (Tac. Ann., 2, 32, 3; Coll., XV, 2, 1)71. Dois
anos depois, em 19, o mesmo imperador promulgou outro senatusconsultum, só que agora
proibindo a consulta, em segredo e sem testemunhas, aos arúspices (Suet. Tib., LXIII).

70  Libo Druso, no ano de 15, foi oficialmente acusado de conspirar contra Tibério, por conta de sua apro‑
ximação com a magia e por investigar sobre o destino do imperador (Tac. Ann., 2, 27-32).
71  A interdição de água e fogo era uma fórmula jurídica arcaica que significava a perda da cidadania,
o confisco dos bens e o exílio perpétuo (MURGA, 1996, p. 196).

125
Uma boa medida da ampliação da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, no que tange
à penalização das artes magicae, nos é oferecida pelos processos jurídicos relatados
nos Annales, de Tácito. Ali, há diversas acusações de magia julgadas por meio da Lex
Cornelia, sem que, necessariamente, tenha ocorrido qualquer assassinato em decorrência
da administração de malum venenum, como originalmente prescrevia a lei promulgada
por Sila, em 81 a.C.72 Podem-se citar, como exemplos, os casos de Numantina, primeira
mulher do pretor Plautio Silvano, indiciada, em 23, por ter enlouquecido seu marido
com encantamentos e filtros mágicos (Tac. Ann., 3, 4, 22); de Estatílio Tauro, que, em
53, foi acusado de magicae superstitiones, suicidando-se antes de uma possível condena‑
ção (Tac. Ann., 12, 59); e de Servília, incriminada e punida com a pena capital por ter
feito consultas aos astrólogos e ter pago por magica sacra (Tac. Ann., 16, 30).
De fato, é necessário ter em mente que as leis romanas não constituíam um sis‑
tema estático e imune a mudanças progressivas ao longo do tempo. É possível que a
Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis tenha sido ampliada em sua abrangência diante das
penalidades prescritas aos praticantes de artes mágicas por meio da introdução de
novas jurisprudências, de editos imperiais, de senatusconsulta e do trabalho de inte‑
pretação legal empreendido por diversos juristas. Como resultado desse processo, a
lei, que originalmente prescrevia penas contra o homicídio praticado por intermé‑
dio da administração de malum venenum, foi paulatinamente estendida e empregada
para reprimir os magi.
É provável, nesse sentido, que as acusações levadas a cabo contra Apuleio tenham
sido julgadas tendo em vista as penalidades prescritas na Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis,
a despeito do completo silêncio, verificado em Apologia, em relação à lei que culpabilizava
o autor73. Embora não tenha sido formalmente acusado de manipular malum venenum

72  As acusações de magia relatadas por Tácito, nos Annales, refletiam uma luta violenta pelo poder entre
os membros da elite senatorial romana, não sendo por acaso que a maioria das acusações se associava ao
crime de lesa-majestade (MARCO SIMÓN, 2001, p. 114).
73 Em Apologia, Apuleio não menciona explicitamente sob qual lei ele foi incriminado. Apenas em uma
única passagem, o autor afirmava que a “magia [...] era penalizada pelas leis e estava proibida desde os tem‑
pos mais antigos pelas XII Tábuas” (Apul. Apol., 47, 3). Tal fato demonstra que essa antiga legislação ainda
era levada em consideração no tocante à criminalização das artes mágicas, em meados do século II; con‑
tudo, como Apuleio não havia sido acusado de excantare qualquer colheita alheia, nem mesmo entoado
malum carmen contra outrem, é improvável que ele tenha sido julgado por intermédio da Lex XII tabularum.

126
com a intenção de matar alguém74, Apuleio foi enquadrado na Lex Cornelia, uma vez que
essa mesma lei, em meados do século II, foi aplicada contra uma gama variada de prá‑
ticas mágicas maléficas, como as supostamente executadas pelo réu, em Oea (HUNINK,
1997, p. 13; GRAF, 1994, p. 80). O próprio autor confirma tal interpretação, oferecendo
uma pista acerca da lei que instruiu seu julgamento, em um excerto no qual ele compara
os crimes que lhe foram imputados àqueles praticados por assassinos (sicarii) e enve‑
nenadores (veneficis), passagem que pode ser uma menção implícita à Lex Cornelia de
Sicariis et Veneficis (Apul. Apol., 26, 6-8; COLLINS, 2008, p. 152)75.
Postula-se que, em meados do século II, época em que Apuleio foi julgado por crimen
magiae (Apul. Apol., 5, 25), a abrangência da Lex Cornelia havia se ampliado consideravel‑
mente em relação ao seu conteúdo original. Pode-se ter uma medida acerca das penalidades
que teriam recaído sobre o autor madaurense por intermédio da análise dos comentários
legais de juristas de períodos posteriores, tais como Ulpiano, (Pseudo) Paulo e Marciano.
Os textos elaborados por tais autores, mesmo tardios, provenientes do século III, são as
únicas fontes disponíveis para o conhecimento atual acerca da Lex Cornelia de Sicarii et
Veneficis. Por meio da interpretação fornecida por tais juristas, contida na Collatio, nas
Pauli Sententiae e no Digestum, pode-se vislumbrar o conteúdo jurídico prescrito na legis‑
lação que criminalizava a magia em meados do século II, permitindo, em alguma medida,
reconstituir o substrato legal com base no qual Apuleio teria sido julgado.
A Collatio foi elaborada como uma compilação comparativa do direito mosaico e
romano, entre o final do século IV e o início do V, por um autor desconhecido. A obra
apresenta os extratos dos comentários legais de vários juristas, tais como Gaio, Papi‑
niano, Paulo e Ulpiano. No tocante à Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, a Collatio (II, 1-3)

74  Apuleio havia sido caluniado, antes do julgamento propriamente dito, de ter assassinado Ponciano,
filho mais velho de Pudentila, com malum venenum. Essa acusação, no entanto, não foi levada a cabo oficial‑
mente diante do tribunal do procônsul da África, em Sabrata. Acreditamos, mediante tal constatação, que
a acusação tenha assumido, tão somente, a forma de uma infâmia pública divulgada no cotidiano citadino
de Oea, provavelmente disseminada por intermédio de boatos (Apul. Apol., 1, 5; 2, 1; 78, 1-2).
75  Neste ponto, nossas observações vão de encontro à hipótese proposta por James Rives (2006, p. 60;
2008, p. 21), para quem Apuleio não fora julgado nos termos da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, mas
somente sob a acusação de ser um mago e desviante religioso, um indivíduo que colocaria em perigo a ordem
pública da cidade de Oea. Para Rives (2006, p. 49; 64-65; 2008, p. 20), a Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis,
em meados do século II, era ainda limitada a julgar somente os casos de magia associados a algum tipo de
homicídio, fato que excluiria qualquer possibilidade de Apuleio ser incriminado por intermédio dessa lei.

127
reproduz as intepretações de Ulpiano, elaboradas no início do século III. Trata-se, tão
somente, de alguns comentários feitos pelo jurista em relação a um senatusconsultum, pro‑
mulgado por Tibério, em 17, e acerca do Edito de 11, prescrito por Augusto (MONTE‑
MAYOR ACEVES, 1994, p. xv-xxvii). O texto da obra afirma que:

A hábil impostura e a obstinada persuasão dos astrólogos são desde então proi‑
bidas. O texto subsiste do Senatusconsultum dado sob o consulado de Pompônio e
Rufo, que decretava contra os astrólogos, caldeus, hariolus e outras personagens
[...] a proibição da água e do fogo, o confisco dos bens e a pena de morte se o cul‑
pado fosse estrangeiro. [...]
Muito frequentemente, enfim, e mais ou menos por todos os príncipes, foi proibido
a qualquer um se misturar em superstições desse gênero, e aqueles que o fizeram
foram punidos de modo diverso, segundo a importância da sua consulta. Aqueles
que colocaram questões a respeito da vida do príncipe foram atingidos com a pena
capital ou com algum castigo severo; aqueles que consultaram sobre eles mesmos
ou sobre os seus foram punidos de modo mais leve. Aqueles que passam por vati-
cinatores devem ser igualmente atingidos, visto que eles exercem uma arte repro‑
vável, que se coloca frequentemente contra a ordem pública e o governo do povo
romano (Coll., II, 1-3).

As Pauli Sententiae são uma obra apócrifa atribuída, por equívoco, ao jurista Paulo,
sendo datada do século III. O código exprime, em alguma medida, as práticas jurídicas
do governo de Diocleciano (284-305), período no qual se observa um endurecimento
concernente às leis que penalizavam os praticantes de magia76. Não obstante as inter‑
polações provenientes da época em que foram escritas, as Pauli Sententiae são uma fonte
importante para o conhecimento acerca das leis que criminalizavam a magia no Princi‑
pado, proporcionando a leitura dos excertos mais completos em relação à Lex Cornelia
de Sicarii et Veneficis (GODDARD, 2010, p. 1-2). Segundo consta nas Pauli Sententiae
(5, 23, 1; 5, 23, 14-19):

76  No reinado de Diocleciano, por volta do ano 296, ocorreu, pela primeira vez, a promulgação de
uma lei vetando a prática de um saber esotérico específico em todo o Império. De acordo com o Digestum
(IX, XVIII, 2), “a arte da astrologia [mathematica ars] é condenável e proibida de um modo geral”.

128
A Lex Cornelia infligia a pena de deportação [...] a quem possuiu, vendeu ou pre‑
parou veneno com objetivo de assassinar um homem. [...] Se deve agora castigar
todos esses crimes por meio da pena capital para os honestiores, ao passo que os
humiliores devem ser crucificados ou serem lançados às feras.
Os que fornecerem poções de aborto ou filtros amorosos, mesmo que não tenham
agido por dolo, devem ser punidos, pois isso é um mau exemplo. Os humiliores
serão condenados às minas e os honestiores relegados em uma ilha, após confisco
de uma parte de seus bens. Mas se a poção fez perecer um homem ou uma mulher,
eles devem padecer o summum supplicium (na cruz).
Todos aqueles que cumpriram ou fizeram cumprir sacrifícios ímpios ou noturnos
a fim de lançar um encanto sobre alguém, de o enfeitiçar ou devotar por defixio,
devem ser crucificados ou lançados às feras.
Aqueles que sacrificam um homem em um templo ou em um lugar consagrado,
devem ser expostos às feras ou sofrer a pena capital, se honestiores.
Se alguém, com a intenção de curar um homem, lhe deu um remédio que o fez
perecer, deve ser deportado em uma ilha se for honestior ou sofrer a pena capital,
se humilior77.

Pode-se finalizar a reconstituição da legislação que penalizava a magia no Prin‑


cipado por intermédio do Digestum, uma compilação de leis imperiais empreendida
por Justiniano, no início do século VI. No tocante à Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis,
o código oferece excertos da obra Institutas, do jurista Marciano, que escreveu os seus
comentários acerca da lei no início do século III. As sentenças de Marciano podem
ser reconstituídas da seguinte forma (Dig., XLVIII, VIII, 1, 1; XLVIII, VIII, 3, 1-3;
XLVIII, VIII, 3, 5):

77  Não estão incluídos, nessa reconstituição da Lex Cornelia de Sicariis et Veneficis, os excertos das Pauli
Sententiae (5, 23, 17-18), uma vez que tais passagens representam uma interpolação tardia do texto da lei,
proveniente do final do século III. Essa posição é corroborada, em grande parte, pelo fato de tais excertos
culpabilizarem a magia em si, e não somente os atos maléficos ligados às artes mágicas, prescrição que, se
estivesse em vigor em meados do século II, época na qual Apuleio é acusado de crimen magiae, inviabiliza‑
ria a posição de filósofo teúrgico assumida pelo autor madaurense diante do tribunal do procônsul da África
(Apul. Apol., 25, 9; 26, 1-2; 26, 6-9).

129
Perante a Lex Cornelia a respeito dos assassinos e envenenadores, [...] é respon‑
sável quem produz e administra venenos com o propósito de matar um homem.
Perante o capítulo V da mesma Lex Cornelia sobre assassinos e envenenadores, é
punido quem produz, vende ou possui uma droga com o propósito de homicí‑
dio. A pessoa que vende poções prejudiciais [mala medicamenta] ao público ou as
possui com o propósito de homicídio é responsável com a penalidade do mesmo
regulamento.
É ordenado por senatusconsultum que uma mulher que, não por malícia admitida,
mas por falta de cuidado, administrou uma droga da fertilidade pela qual o desti‑
natário morre, deve ser relegada.
É estabelecido por outro senatusconsultum que vendedores de cosméticos [pigmentarii]
estão sujeitos à penalidade dessa lei se eles de modo negligente entregarem a alguém
cicuta, acônito, polen de pinho, salamandra, besouro venenoso, mandrágora ou,
exceto com o propósito de purificação, cantáridas.
A penalidade da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis é a deportação para uma ilha e
o confisco de todas as propriedades. Contudo, hoje em dia a punição capital é um
costume, exceto para os honestiores, que não estão sujeitos à punição estatutária;
os humiliores são habitualmente crucificados ou atirados às feras.

Por intermédio desses códigos jurídicos apresentados, pode-se entrever a base legal
que constituía o crimen magiae à época de Apuleio. A Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis
prescrevia uma série de penalidades associadas aos atos mágicos em geral, prevendo
punições que variavam de acordo com a posição social do acusado e com a gravidade
da ação (mágica) ilícita cometida. Em resumo, era considerado crime vaticinar acerca
do futuro dos indivíduos, principalmente dos imperadores, sendo prevista a pena capi‑
tal aos infratores (Coll., II, 1-3). Quem possuísse, vendesse ou preparasse algum tipo
de venenum com intenções homicidas também seria castigado com a pena capital, caso
fosse honestior, e crucificado ou jogado às feras, para os humiliores (Pauli Sent., 5, 23, 1;
Dig., XLVIII, VIII, 3, 1). Aqueles que fornecessem drogas letais, filtros de amor ou
abortivos seriam enviados às minas (humiliores) ou exilados com o confisco de parte
dos bens (honestiores) (Dig., XLVIII, VIII, 3, 5; Pauli Sent., 5, 23, 14). Os que realizassem
defixiones, sacrifícios humanos e ritos ímpios noturnos seriam crucificados ou lançados

130
às feras (Pauli Sent., 5, 23, 15; 5, 23, 16). Tais eram as penalidades e as ações mágicas
prescritas na Lex Cornelia de Sicariis et Veneficis.
As sentenças comentadas por juristas como Ulpiano, (Pseudo) Paulo e Marciano –
contidas, respectivamente, na Collatio, nas Pauli Sententiae e no Digestum – permitem-nos
vislumbrar o substrato legal que provavelmente instruía o crimen magiae em meados
do século II. Por meio da reconstituição da lei que criminalizava a magia no Principado,
pode-se avaliar, de modo mais sistemático, não apenas as acusações sofridas por Apu‑
leio, mas as eventuais punições às quais estaria sujeito, caso fosse condenado pelo tri‑
bunal proconsular estabelecido em Sabrata78.

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78  Apuleio, ao que tudo indica, foi absolvido oficialmente das acusações. Mesmo que não tenhamos
nenhuma referência acerca de sua absolvição em Apologia, podemos conjecturar que sua defesa foi bem‑
-sucedida pela observação de sua biografia posterior. Dois dados podem ser aqui evocados. O primeiro é a
própria confecção da obra Metamorphoses, posterior à Apologia, na qual se mencionam, em diversas passa‑
gens, relatos de práticas mágicas. Provavelmente, se Apuleio fosse condenado, ele não se arriscaria a escre‑
ver uma obra tão detalhada em questões ligadas às artes magicae. O segundo ponto a ser destacado é que, em
Florida, o autor apresenta uma carreira bem-sucedida de filósofo e orador na cidade de Cartago, projeção
pública impensável se ele tivesse sido condenado no tribunal do procônsul Cláudio Máximo.

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134
Parte II
O sagrado e seus
lugares de devoção
Honra e vergonha: debates sobre
a sexualização dos espaços no
Mediterrâneo Antigo e o
locus da Carta aos Gálatas 3, 28
Roberta Alexandrina da Silva

Entre a honra e a vergonha

De acordo com Michel Foucault, nos últimos três séculos, temos a instauração de um con‑
junto de regras e normas que visam regular e rotular as práticas dos indivíduos. Para o
autor, há o nascimento das ciências do homem no século XVIII. Pelo olhar e pela obser‑
vação, com efeito, essas ciências contribuíram para situar um conjunto de procedimentos
e de técnicas de individuação e de identificação que tendem a englobar todos os homens
numa sociedade (TRONCA, 1987, p. 89-90). Foucault argumenta que, no curso dos sécu‑
los XVII e XVIII, surge a prática da “disciplina”, que se torna a “fórmula de dominação”;
quando as técnicas disciplinares não se limitam mais em definir as relações no interior de
um grupo ou de uma classe, mas invadem progressivamente, e de forma difusa, a socie‑
dade em seu conjunto. Além disso, essas fórmulas gerais de dominação, que se inscrevem
numa filosofia política utilitarista, implicam não mais apenas “renúncias” e “apagamen‑
tos” quanto a si, mas um domínio dos outros e de si, concretizado em comportamentos
produtivos que atingem o sujeito. Essa notoriedade das práticas do sujeito foi importante,
no século XIX, para um crescente interesse do homem nas ciências. Com isso, a sexuali‑
dade humana passou a ser considerada um campo aberto para estudo.
Segundo Lourdes Feitosa (2002, p. 35), o estudo sobre questões de sexo e gênero
ainda é recente na pesquisa histórica. A autora compartilha das reflexões pós-modernas
de que a ideia inconteste da supremacia do poder masculino sobre o feminino precisa
ser mais ponderada, vislumbrando-se a possibilidade de uma mesma sociedade conceber
diversos modelos de comportamento de homens e mulheres Essa percepção de Lourdes

137
Feitosa é pertinente também para se tratar das sociedades mediterrânicas no século I,
momento em que as sociedades antigas não estavam marcadas apenas pela diferencia‑
ção básica entre homens de estrato superior e inferior, mas também por questões que
envolviam os gêneros masculino e feminino. Tomando como base tais referências, cen‑
trar-me-ei, em especial, nos significados e valores tradicionais associados ao que seriam
o masculino e o feminino no início da idade imperial, travando ao mesmo tempo um
debate teórico sobre o significado de categorias como honra e vergonha, a fim de com‑
preender como esses valores são incorporados ao corpus paulinum.
Para a compreensão dessas questões, são da maior importância os trabalhos de antropó‑
logos como Mary Douglas (1976) e J. G. Peristiany (1971), que discutem a definição de valo‑
res culturais relativos ao campo da sexualidade, travando um debate envolvendo questões de
gênero, no qual o masculino e o feminino configuram constructos sociais e culturais, ao esta‑
belecerem as atribuições dos papéis sexuais e a distribuição de competências entre os gêneros.
Honra era o equivalente à reputação, enquanto vergonha era a preocupação com
a reputação, uma sensibilidade para com ela e, também, para com a opinião dos outros
(MALINA, 1981, p. 28). Ou seja, seria o outro – um grupo, uma sociedade ou qualquer
entidade – que imporia ao indivíduo valores como honra e vergonha. Ao transportar‑
mos essas questões para o campo dos estudos de gênero, percebemos que as diferentes
atribuições de papéis e competências a homens e mulheres correspondiam a estereóti‑
pos de gênero que se associavam a valores orientadores e, supostamente, expressavam
“qualidades” tipicamente masculinas e femininas.
A honra é um símbolo que define a masculinidade para o homem. Dessa forma, a
masculinidade teria várias conotações, como coragem, ação, autoridade sobre a famí‑
lia e controle do espaço público; além disso, incluía também a defesa da reputação con‑
tra a submissão e a humilhação. No entanto, para a mulher, honra possui um sentido de
honorabilidade, levando-a a comportar-se com vergonha, de maneira que suas atitudes
devem ser calcadas na compreensão da sua vulnerabilidade sexual e na recusa a qualquer
indiscrição. A feminilidade funciona, assim, como um símbolo de vergonha, tornando‑
-se o hímen a fronteira penetrável do corpo da mulher. Nessa divisão sexual do trabalho,
honra era considerada um aspecto da natureza masculina expressa no desejo natural da
agressividade sexual. Vergonha, por sua vez, era um atributo feminino, indicando pas‑
sividade, subordinação e exclusão no espaço doméstico.

138
Mary Douglas (1976, p. 36), na obra Pureza e perigo, faz a seguinte observação sobre
esse assunto:

Existem crenças, por exemplo, segundo as quais cada um dos sexos constitui
um perigo para o outro quando entram em contato por meio de fluídos sexuais.
De acordo com outras crenças, apenas um sexo é posto em perigo pelo contacto
com o outro, geralmente o sexo masculino pelo sexo feminino, mas, por vezes,
o inverso. No domínio sexual, estas noções de perigo são a expressão de uma sime‑
tria ou de uma hierarquia. É pouco provável que exprimem qualquer aspecto da
relação real entre os sexos.

Com isso, percebe-se que as sociedades mediterrânicas da Antiguidade caracteriza‑


vam‑se por uma diferenciação bastante estrita dos papéis sociais e âmbitos de competência
destinados aos gêneros. O oposto cultural entre masculino e feminino assumia múlti‑
plas formas, de maneira que os papéis sexuais não eram definidos ou fixados em termos
monolíticos. Do ponto de vista das fontes disponíveis, temos uma variedade de represen‑
tações do masculino e do feminino, nos textos produzidos no século I, que não se enqua‑
dram em papéis sexuais preestabelecidos, mas que são constructos históricos e culturais.
Partindo-se dessa premissa, outro aspecto importante a ser levado em conta é aquele
centrado na compreensão de conceitos que abarcam o público e o privado, ou seja, o
espaço do homem e o da mulher. Ao se observar como foram concebidos, nas várias
cidades e culturas ao longo de todo o Mediterrâneo Antigo, o público e o privado, o
espaço político e o espaço doméstico, tal como modernamente concebidos, podem ser
contestados, pois os autores gregos e romanos nos revelam situações nas quais tanto
o masculino quanto o feminino se emaranhavam nesses espaços. Desse modo, traba‑
lharei com tais categorias a fim de compreender como a oposição estrutural entre o
masculino e o feminino aparece no corpus Paulinum e, também, como observamos uma
fluidez dos papéis sexuais.
De acordo com Philip F. Esler (2000), um valor central no Mediterrâneo moderno é
a concepção de honra, compreendida como um sentido próprio de valor por um grupo
relevante. Segundo o autor, o oposto de honra é a noção de vergonha, que adquire múl‑
tiplas colorações em diferentes regiões no Mediterrâneo:

139
Honour can either be ascribed (that is, simply attributed to a person by virtue of
birth or position) or achieved (that is, actively gained from another in various
social arenas in forms of interaction described as the pattern of challenge-and-
-response). The desire to obtain honor motivates many interactions between indi‑
viduals and the groups whom they represent (ESLER, 2000, p. 16)79.

Esses conceitos, que advêm da Antropologia Cultural, detêm-se na compreensão


transcultural e comparativa de indivíduos qualificados como estrangeiros, especial‑
mente em como eles diferem de nós e do nosso grupo social. Para o estudo desses con‑
ceitos, algumas obras são fundamentais, como Honra e vergonha, de J. G. Peristiany, que
analisa os valores próprios das sociedades mediterrânicas na atualidade, bem como
O evangelho social de Jesus: o Reino de Deus em perspectiva mediterrânea, de Bruce Malina,
em que as informações comparativas sobre grupos sociais do Mediterrâneo atual ajudam
a estabelecer as dimensões de cenários “possíveis” e até mesmo “prováveis” de interação
entre os grupos, descrevendo casos que podem servir de contraponto a interpretações
já estabelecidas (MALINA, 2004, p. 17). Trabalhos de Julian Pitt-Rivers (1961, 1977)
e de John Davis (1977) sustentam que grupos mediterrânicos tradicionais atuais veem
o mundo, sobretudo, em termos de divisão sexual do trabalho enraizada nas concep‑
ções de honra e vergonha e que a pesquisa histórica confirma a presença desse cenário
em registros textuais bastante antigos, como as obras de Homero ou o Antigo Testa‑
mento. De acordo com Jerome Neyrey (1998), é grande a probabilidade de que essa
forma peculiar de divisão sexual do trabalho e da sociedade também estivesse presente
nos tempos do Novo Testamento.
Na discussão que se segue, voltar-me-ei para a interpretação do corpus Paulinum, um
conjunto de escritos que procedem do Mediterrâneo oriental no período greco-romano e
que remontam ao século I. Entretanto, antes de prosseguir com o debate sobre as comu‑
nidades paulinas, acredito ser pertinente apresentar alguns exemplos de como se defi‑
niam os papéis sexuais no Mediterrâneo Antigo.

79  Minha tradução: “Honra pode ser atribuída (isto é, simplesmente atribuída à pessoa em virtude de nas‑
cimento ou posição) ou obtida (ou seja, ativamente tomada de outro em várias arenas sociais sob a forma de
interações descritas como um padrão de desafio-e-resposta). O desejo de obtenção da honra motiva mui‑
tas interações entre indivíduos e os grupos que eles representam”.

140
Masculinidades e feminilidades: uma reflexão sobre a sociedade
mediterrânea greco-romana

Após a discussão de alguns aspectos envolvendo os usos dos conceitos de honra e ver‑
gonha, dedicar-me-ei, neste subitem, a refletir sobre a suposta rigidez na delimitação de
papéis masculinos e femininos na Antiguidade. Nesse sentido, faz-se necessário mencio‑
nar algumas situações próprias do mundo greco-romano que rompem a homogeneização
do ser homem e do ser mulher. Quando mulheres exibiam certos comportamentos presu‑
mivelmente próprios dos homens por “natureza”, eram consideradas masculinas. Temos
alguns exemplos, registrados por gregos e romanos, acerca de atitudes masculinas atri‑
buídas às mulheres. Na obra Agamenon, do poeta trágico Ésquilo, Clitemnestra é descrita
como uma mulher de grande inteligência e que por isso revestia atributos masculinos.
Salústio, na obra Catilina, nos legou uma descrição detalhada da aristocrata Semprônia,
criticada tanto por sua conexão com o conspirador Catilina como por sua falta de inibição:

Ahora entre estas mujeres estaba Sempronia, quien a menudo cometió muchas
faltas de osadía masculina. Esta mujer era bastante afortunada con su familia y su
aspecto, y especialmente con su marido y sus hijos; había leído bastante literatura
griega y latina, era capaz de tocar la lira y bailar con mucha más habilidad que la
que cualquier mujer respetable hubiera necesitado tener, y era también habilidosa
en otras actividades que eran carne y hueso de la vida de placer. Pero Ella apre‑
ciaba cualquier cosa antes que tener decoro y moralidad; pasarías un momento
difícil determinando qué derrochó más, si su dinero o su reputación; su apetitos
sexuales eran tan ardientes que tomo la iniciativa con los hombres mucho más fre‑
cuentemente que ellos la tomaron con Ella. Antes de la conspiración había roto
a menudo su palabra, no reconoció sus deudas, había estado implicada en asesi‑
nato, y se hundió en los abismos de la depravación como resultado de su alto tren
de vida y sus pocos fondos. Incluso poseía unas fuerzas intelectuales que no son de
ninguna manera desdeñable: la habilidad de escribir versos, decir chistes, hablar
ya sea modesta, tierna o insolentemente; en una palabra, tenía mucho ingenio y
encanto (Sal. Cat., 25)80.

80  Minha tradução: “Agora entre estas mulheres estava Semprônia, quem frequentemente cometeu
muitas faltas de ousadia masculina. Esta mulher era bastante favorecida por sua família e por seu aspecto,

141
Não somente Salústio, escritor do final da República, nos descreve uma mulher com
características masculinas. Juvenal, um autor romano da época imperial, via a inversão
entre papéis masculinos e femininos como danosa:

Aún más desesperante es la mujer que tan pronto se sienta al banquete y empieza
a conversar de poetas y de poesía, comparando a Virgilio con Homero: profesores,
críticos, legisladores, subastadores – incluso otra mujer – no pueden decir palabra.
Ella resuena de tal forma que creerías que todas las ollas y las cacerolas se estuvie‑
ran estrellando contra el suelo o que cada campana de la ciudad estuviere sonando.
Ella sola, por si misma, hace tanto ruido como una tribu primitiva ahuyentando
a un eclipse. Debería aprender la lección de los filósofos: “la moderación es nece‑
saria incluso para los intelectuales”. Y si aún quiere aparecer educada y elocuente,
deja su vestido como un hombre, ofrece sacrificios a los dioses de los hombres y
se baña en los baños de los hombres. Las esposas no deberían intentar ser orado‑
res públicas; no deberían utilizar ardides retóricos; no deberían leer a todos los
clásicos – deben existir algunas cosas que las mujeres no comprendan. Yo mismo
no puedo entender a una mujer que puede citar las reglas de la gramática y nunca
comete una falta y cita a confusos y olvidados poetas – como si los hombres se pre‑
ocupasen de tales cosas. Si Ella tiene que corregir a alguien, permítasele corregir a
sus amigas y deje a su marido en paz (Juv. Sat., 6, 434‑456)81.

e especialmente por seu marido e seus filhos; havia lido muitas obras gregas e latinas, era capaz de tocar
a lira e dançar com muito mais habilidade que qualquer mulher respeitável tivesse necessitado ter, e era
também habilidosa noutras atividades que eram carne e osso da vida de prazer. Mas ela apreciava qual‑
quer coisa antes de ter decoro e moralidade; passaria um momento difícil determinando o que desperdiçou
mais, se seu dinheiro ou sua reputação; seus apetites sexuais eram tão ardentes que tomou a iniciativa com
os homens muito mais frequentemente que eles a tomaram com ela. Antes da conspiração havia quebrado
repetidamente sua palavra, não reconheceu suas dívidas, havia estado implicada em assassinato e se afundou
nos abismos da depravação como resultado de seu viver luxuoso e seus poucos recursos. Inclusive possuía
uma força intelectual que não é de nenhuma maneira desdenhável: a habilidade de escrever versos, con‑
tar piadas, falar e ser modesta, meiga ou insolentemente; numa palavra, tinha muita sagacidade e encanto”.
81  Minha tradução: “Ainda mais preocupante é a mulher que se senta no banquete e começa a falar de
poetas e poesia, comparando Virgílio com Homero: professores, críticos, legisladores, leiloeiros – inclusive
outra mulher – não podem dizer uma palavra. Ela ressoa de tal forma que você iria acreditar que todos os
potes e caçarolas caíram no chão ou que cada sino da cidade tivesse sido tocado. Ela sozinha, por si mesma,
faz tanto ruído como uma tribo primitiva afugentando um eclipse. Deveria aprender a lição dos filóso‑
fos: ‘a moderação é necessária mesmo para os intelectuais’. E se ainda quer parecer educada e eloquente,

142
Aqui foram citados apenas dois exemplos, contudo há uma gama variada de textos e
discursos que descrevem como para alguns autores os atributos sexuais não eram fixos. É
possível também inferir de alguns textos que atributos e qualidades “femininas” eram asso‑
ciados ao homem, como vemos em algumas descrições do ato sexual, quando o homem
era tratado como passivo, em latim effeminatus e, em grego, malakoV.
A pesquisa de doutorado desenvolvida por Lourdes Feitosa sobre as relações entre
sexo e afeto nos grafites pompeianos aponta práticas que, em seu âmago, encontram-se
relacionadas à sexualidade masculina e à feminina, como a ação de future (foder) e de
cunnun lingere (praticar a cunilíngua), havendo inclusive exemplos de grafites em que
essas relações eram invertidas. Esse é o caso das inscrições contidas em CIL, IV, 2081:
“Colepius pater cunnu linget”, e em 4304: “Seruilius amat nec illi sit copia/Seuil cunnulin [...] e”,
havendo ainda exemplos de homens que realizavam práticas sexuais atribuídas às mulheres.
Para Michel Foucault (2005, p. 9-10), na obra História da sexualidade: a vontade de saber, o
saber médico que se profissionaliza durante os séculos XVIII e XIX se torna um ponto impor‑
tante para a compreensão da análise geográfica que o corpo desempenhou no século XX:

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As prá‑
ticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva
e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma certa familia‑
ridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se
comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, trans‑
gressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astu‑
tas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os “corpos
pavoneavam”. Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noi‑
tes monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente
encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absor‑
ve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala.

se veste como um homem, oferecendo sacrifícios aos deuses dos homens e se banha nos banhos dos homens.
As esposas não deveriam tentar ser oradoras públicas; não deveriam utilizar ardis retóricos; não deveriam
ler todos os clássicos – devem existir algumas coisas que as mulheres não compreendam. Eu mesmo não
posso entender uma mulher que tenha condições de citar as regras da gramática e nunca cometa uma falta
e que mencione poetas confusos e esquecidos – como se os homens se preocupassem com tais coisas. Se ela
tem que corrigir alguém, que lhe seja permitido corrigir suas amigas e deixe seu marido em paz.”

143
O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma,
detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segrego.
No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexuali‑
dade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta
encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa
os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiado, vira anormal: receberá
este status e deverá pagar com sanções (grifos nossos).

Com isso, de acordo com as explanações de Foucault, certas categorias envolvendo a


sexualidade são termos contemporâneos e não aplicáveis à Antiguidade. A questão envol‑
vendo a heterossexualidade e a homossexualidade se insere nesse debate.
Na Antiguidade, a condição de “ser ativo” ou de “ser passivo” não indicava se o indi‑
víduo era ou não homossexual, como acontece na atualidade. O estatuto jurídico é que
definia a condição de livre, liberto e escravo como imperativo para a delimitação dessas
condutas. Para Paul Veyne (2000, p. 45-59), “ser ativo” era “ser viril”, qualquer que fosse
o sexo do parceiro passivo. No entanto, a pederastia constituía um problema menor se
fosse praticada por um homem livre ativo com um escravo, um homem de condição infe‑
rior ou uma mulher. De acordo com o autor (VEYNE, 1985, p. 39), as práticas sexuais na
sociedade romana eram vistas da seguinte forma:

Amar a um rapaz ou uma mulher, como expressão aplicada a um homem, volta um


sem número de vezes nos escritos dos antigos: um equivalia ao outro e o que se
pensava de um pensava-se do outro. Não é exato que os pagãos tenham encarado a
homossexualidade com um olhar indulgente: a verdade é que não a viram como um
problema à parte; cada um condenava ou admitia a paixão amorosa (cuja legitimi‑
dade era a seus olhos discutível) e a liberdade dos costumes. Se por um lado repro‑
vavam a homofilia, não a reprovavam de modo diferente do amor das cortesãs e das
ligações extraconjugais – ao menos enquanto se tratava de homossexualidade ativa.
Tinham três pontos de referência que nada têm a ver com os nossos: liberdade amo‑
rosa ou conjugalidade exclusiva, atividade ou passividade, homem livre ou escravo.

As afirmações feitas aqui, primeiramente por Foucault e depois por Veyne, são úteis,
pois por intermédio delas podemos compreender que “homossexualidade” e “heterosse‑

144
xualidade” são categorias analíticas impróprias para a análise da diversidade de compor‑
tamentos masculinos e femininos na Antiguidade. Nesse sentido, concordo com Judith
Butler (2003, p. 57) quando a autora afirma que tais categorias são ambíguas e, de certo
modo, incoerentes, sendo amiúde suprimidas e/ou ressignificadas no interior de um binô‑
mio disjuntivo e assimétrico composto pelos elementos masculino e feminino. Contudo,
essas configurações culturais de gênero operam como lugares de intervenção, denúncia
e deslocamento dessas reificações. Em outras palavras, a “unidade” gênero é o efeito de
uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da hete‑
rossexualidade compulsória.
Retomando a análise do trecho supracitado de Veyne, temos, na Antiguidade, uma
situação na qual o corpo dos escravos e libertos serviria antes e acima de tudo à satisfação
do desejo sexual dos senhores, situação que constituía mais um fator de desonra para aque‑
les (GALÁN, 1996, p. 29). Sêneca, na sua obra Sobre as controvérsias, faz a seguinte afirma‑
ção: “impudicita in ingênuo crimen est, in servo necessitas, in liberto officium”. Essa máxima de
Sêneca reafirma a posição da aristocracia, através do desempenho sexual, definindo cada
grupo por meio de estruturas que condizem com a honra e a vergonha. Mediante a pros‑
pecção de vários textos latinos e gregos, revela-se uma estrutura de pensamento segundo a
qual os papéis sexuais eram determinados por questões pertencentes aos domínios público
e privado, sendo inegável que as comunidades paulinas não faziam parte de tal estrutura.
Segundo Peter Brown (2000, p. 232-233), preocupações similares determinaram, na
sociedade romana, a atitude diante das relações sexuais, não havendo a distinção entre
amor homossexual e amor heterossexual como definido na contemporaneidade. A vergo‑
nha que poderia estar ligada a uma relação homossexual residia apenas no “contágio moral”,
que poderia levar um homem das classes superiores a submeter-se fisicamente, adotando
uma posição passiva no ato sexual, impudicitia, ou moralmente, se entregando a um infe‑
rior de qualquer sexo.
Para Eva Cantarella (1992), essa ausência de delimitação stricto sensu de atitudes homo
ou heterossexuais revela a ambiguidade das práticas sexuais na Antiguidade. A “masculi‑
nidade” era a virtude superior do cidadão, e isso era um predicado complexo, que incluía
força física e superioridade militar, características da sexualidade masculina. Para a autora,
a comparação entre o amante e o soldado era um lugar comum literário entre os romanos,
tendo sido Júlio César o primeiro de uma linha de conquistadores romanos que nem sempre
foram exclusivamente dominantes quando se tratava de sexo (CANTARELLA, 1992, p. 158).

145
De toda essa discussão, pode-se afirmar que masculinidades e feminilidades são dis‑
cursos construídos culturalmente, pois, ao mesmo tempo que temos posicionamentos
visando a delimitar os papéis sexuais, em outros espaços e momentos, o masculino e o
feminino emergem como categorias fluidas e condicionadas muitas vezes por interes‑
ses políticos. Percebe-se assim que as identidades, incluindo as de gênero, não são fixas,
escapando a regras muito rígidas.
Mediante a análise do contexto histórico do século I, é possível perceber como ques‑
tões envolvendo honra e vergonha são importantes para a compreensão das comunida‑
des cristãs, em especial daquelas fundadas por Paulo. Com isso, podemos entender como
algumas imposições e atitudes de Paulo – ou de uma tradição associada a ele – se ade‑
quavam (ou não) às estruturas que repartiam os sexos em setores binários e estanques.

O corpus Paulinum e o contexto de Gálatas 3, 28

Compreender o movimento cristão, nos seus primórdios, como um grupo coeso é algo
errôneo, pois, na verdade, as primeiras comunidades cristãs eram multiformes e hetero‑
gêneas, fazendo parte de várias cidades do Mediterrâneo marcadas por tensões entre lide‑
ranças. O movimento religioso propalado por Paulo de Tarso foi mais um entre vários
que existiram; alguns caíram no esquecimento, mas os escritos paulinos permaneceram
e tornaram-se referências fundamentais para o cristianismo. Portanto, analisar o corpus
Paulinum no contexto do qual estamos tratando, século I e início do II, é desconstruir tam‑
bém a ideia de um movimento paulino unificado, enfatizando subjetividades, paulinismos
e a fluidez que caracterizaram o cristianismo antigo, ou melhor, os cristianismos antigos.
Nesse sentido, temos que compreender o corpus Paulinum diante da totalidade dos
textos neotestamentários. O Novo Testamento compreende uma coleção de 27 livros,
que em parte se diferenciam por particularidades de linguagem e de período; e a distin‑
ção entre eles é evidente, se considerarmos o conteúdo e a intenção de cada autor. Em
face de tal diversidade, é costume que a maioria das edições da Bíblia traga uma introdu‑
ção explicativa sobre o texto que o leitor irá consultar.
A divisão das edições do NT é orientada pelos gêneros literários, de acordo com esta
ordem: os quatro evangelhos, Atos dos Apóstolos, as 21 cartas e o Apocalipse. Os textos mais
antigos que temos do cânone neotestamentário são as cartas paulinas, as autênticas, que

146
remontam às décadas de 50 a 60. São elas: Primeira aos tessalonicenses, Primeira e Segunda
aos coríntios, Romanos, Filemon e Filipenses. A autoria das demais cartas de Paulo é discu‑
tida, pois aparecem no final do século I ou início do II, como: Segunda carta aos tessaloni-
censes, Colossenses, Efésios, Tito, Primeira e Segunda a Timóteo. Essas epístolas representam
a força da influência paulina nas comunidades denominadas pós-paulinas ou deuteropau‑
linas. Esse segundo grupo de cartas, elaborado após a morte de Paulo, mas sob influên‑
cia paulina, contém uma reinterpretação e atualização do pensamento de Paulo, que se
fazia então ouvir na comunidade.
Uma coleção de dez cartas paulinas é claramente atestada pela primeira vez no cânone
marcionita (cerca de 140). No final do século I e início do II, já temos autores cristãos que
conhecem algumas cartas paulinas, como Clemente Romano, que em sua Carta aos corín-
tios faz uma citação da Primeira carta aos coríntios (Clemente, Ep. ad Cor., 47,1), e Inácio de
Antioquia, que, segundo J. Quasten (1955), foi influenciado pelo pensamento paulino e
já menciona as Cartas aos romanos, a Primeira aos coríntios, Colossenses e Efésios. Contudo,
as cartas paulinas contêm orientações destinadas unicamente a comunidades determi‑
nadas e em situações precisas. A preservação do material paulino por indivíduos perten‑
centes a tais comunidades indica que se buscava conservar a memória de Paulo após sua
morte, ocorrida na década de 60 do século I.
Para Helmut Koester (2005, p. 5), as cartas paulinas foram um instrumento “políti‑
co-eclesiástico que operava a par do veículo político e propagandístico de comunicação
oral durante a ausência do apóstolo, promovendo a organização contínua e a manuten‑
ção das comunidades cristãs que haviam sido fundadas por Paulo”. Embora essas cartas
fossem elaboradas com base nos modelos judaicos e greco-romanos, sua retórica foi ins‑
pirada em situações específicas enfrentadas por cada comunidade. O autor continua a
argumentação afirmando que, como instrumento político, as cartas paulinas exerceram
um forte impacto sobre o período seguinte, de modo que o emprego da epístola com
objetivos de organização eclesial se tornou bastante comum.
Um aspecto importante é saber para qual segmento social Paulo escrevia. Segundo
Peter Brown (1990, p. 65), os principais impulsionadores do missionarismo paulino eram
homens abastados, letrados, que viviam nas cidades do Império Romano.
Na produção da literatura epistolar imperial, os cristãos tomaram as cartas de Paulo
como modelo. Assim, o gênero da carta paulina continuava a ser imitado gerações depois
de Paulo, como comprovam as chamadas epístolas pós-paulinas ou deuteropaulinas:

147
Segunda aos tessalonicenses, Colossenses, Efésios, Primeira e Segunda a Timóteo e Tito, Laodi-
censes e Terceira aos coríntios (estas duas últimas não foram incluídas no cânone neotes‑
tamentário). Todos esses escritos não somente imitam o esquema da carta paulina, mas
também atribuem o seu conteúdo à autoridade do apóstolo.
As cartas paulinas, portanto, são documentos que têm por finalidade o alargamento
do campo da atividade missionária, no qual a projeção pessoal e a causa do Evangelho
se interpenetram.
Outro aspecto a destacar no corpus Paulinum é a herança cultural legada à Cristan‑
dade, já que os textos paulinos fundaram boa parte da estrutura eclesial e ditaram questões
envolvendo a moralidade e os preceitos relativos a honra e vergonha. Tanto que Paulo
tornou-se uma personagem marcante nos estudos do cristianismo antigo. Ora, a marca
paulina na história do cristianismo é tão evidente que James Dunn (2004, p. 27) faz a
seguinte afirmação: “Pois o mais notável no decorrer dos séculos não foi tanto o respeito
por Paulo, o canonizado fundador da Igreja, e sim o impacto da própria teologia de Paulo”.
Para Wayne Meeks (1992, p. 128-129), como o cristianismo era uma ramificação
do judaísmo, os grupos cristãos que viviam nas cidades tinham a sinagoga da Diáspora
como o modelo mais aproximado para constituir suas comunidades, incorporando dois
traços importantes da cultura judaica: o espaço doméstico e as associações. O cristia‑
nismo paulino se valeu dessa estrutura para a formação de suas comunidades. Existem,
de fato, numerosas semelhanças entre as comunidades judaicas greco-romanas e os gru‑
pos paulinos que se desenvolveram ao lado delas. O principal termo utilizado por Paulo
para se referir ao seu movimento como um todo e às comunidades locais formadas por
cristãos foi ekklhsia.
ekklhsia, tal como empregado por Paulo, remonta ao uso dado ao termo por judeus
de língua grega, na Septuaginta, que tomavam ecclesia como a “assembleia” de todo o povo
de Israel, embora o seu significado primevo fosse o de “assembleia” de cidadãos da polis.
Esse vocábulo ocorre ao todo 114 vezes no Novo Testamento, e, no corpus Paulinum,
as ocorrências chegam a 62, sendo mais frequentes na Primeira carta aos coríntios.
Outro ponto de diferença reside no fato de que Paulo menciona “assembleias de Deus”,
no plural, enquanto o uso, na Septuaginta, é sempre no singular. Toda reunião de batiza‑
dos em nome do Cristo é uma “assembleia de Deus”, como atestam as várias citações no
corpus Paulinum. As residências de Priscila e Áquila, de Ninfa e de Filemon também são
denominadas ekklhsiai. O fato de o fiel se reunir para o culto estava em continuidade

148
direta com a assembleia de Israel, formando assim a assembleia de Deus. Nesse sentido,
é compreensível o trecho da Carta aos Gálatas 3, 27-29:

27
pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo.
28
Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher;
pois todos vós sois um só em Cristo Jesus.
29
E se vós sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo
a promessa (grifo nosso).

Foi por meio dessa noção de unidade comunal, que perpetuava a descendência de
Abraão, que as comunidades paulinas se definiram, embora tenham surgido problemas
de ordem comportamental que confrontavam tal unidade, como veremos a seguir.
O trecho da Carta aos Gálatas 3, 28 é considerado por muitos especialistas como o
locus classicus do ensino de Paulo sobre as mulheres nas suas comunidades. Contudo, o
conteúdo desse trecho também gerou mal-estar em algumas comunidades, além de dis‑
cursos que visaram a abreviar e omitir a oposição contida na declaração: “não há homem
nem mulher”. J. E. Crouch (1972, p. 144) sustenta, porém, que os textos de Gl 3, 28 e
Cl 3, 11-25; 4,1 se relacionam mutuamente.
Vejamos a omissão na Carta aos colossenses 3, 9-11:

9
Não mintais uns aos outros. Vós vos desvestistes do homem velho com as suas
práticas
10
e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a ima‑
gem do seu Criador.
11
Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo,
livre, mas Cristo é tudo em todos.

Ainda existem outras omissões, como no texto da Primeira carta aos coríntios 12, 12-13,
na qual se faz a seguinte afirmação:

12
Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os
membros do corpo, apesar de serem muitos, foram um só corpo. Assim também
acontece com Cristo.

149
Pois fomos todos batizados num só espírito para ser um só corpo, judeus e gre‑
13

gos, escravos e livres, e todos bebemos de um só espírito.

Tanto em Colossenses como em Primeira aos coríntios, 12,12-13 vemos reforçada a ideia
de superação e de surgimento do novo. Wayne Meeks (1974) sublinhou a importância da
fórmula de reunificação dos membros da assembleia contida em Gálatas 3, 28, argumen‑
tando que a declaração de Gálatas fornece uma preciosa intuição sobre a autocompreensão
dos cristãos acerca do ritual iniciático do batismo nos primeiros tempos do cristianismo:

Reinforced by dramatic gestures (disrobing, immersion, robing), such a declaration


would carry – within the community for which its language was meaningful – the
Power to assist in shaping the symbolic universe by wich that group distinguished
itself from the ordinary “world” of the larger society82 (MEEKS, 1974, p. 182).

Em outras palavras, o iniciado ficava fortemente impressionado por entrar para


um grupo que proclamava a abolição de três fronteiras identitárias: a étnica, a social e a
sexual. De acordo com Peter Brown (1990, p. 52), o ingresso nas comunidades cristãs por
intermédio do batismo estava ligado a rituais que encenavam um despojamento explí‑
cito das marcas distintivas em que se baseava a sociedade antiga; despojados desses tra‑
ços, os fiéis estariam, segundo o autor, resgatando uma unidade original e indiferenciada.
De acordo com Meeks (1974, p. 200), a afirmação “não há homem nem mulher”, em
Gálatas, 3, 28, situa-se nos termos de uma restauração escatológica da imagem original
divina, andrógina; todavia, em algumas passagens do corpus Paulinum, como na Primeira
carta aos coríntios, 11,2-16 e 14,33-36, observa-se uma tendência à reafirmação da dis‑
tinção entre homens e mulheres, não havendo assim o abandono das características que
definiriam um homem e uma mulher Na realidade, a questão essencial para Paulo não
era proclamar o fim de qualquer distinção na comunidade – judeu e grego, escravo e livre,

82  Minha tradução: “Reforçado por gestos dramáticos (despir, imergir, vestir), tal declaração transpor‑
taria – dentro da comunidade para a qual sua linguagem for significativa – o Poder para assistir na forma‑
ção do universo simbólico por meio do qual o grupo se distinguia ‘do mundo’ comum da sociedade mais
ampla”. Segundo o autor, no mito da androginia, um ser humano original fora criado com características
masculinas e femininas. Em círculos judaicos, temos igualmente uma referência a esse mito na narrativa
da criação em Gn 1,12-27: “homem e mulher, Ele os criou”.

150
homem e mulher –, mas promover a unidade. Nos textos da Primeira carta aos coríntios,
11, 2-16 e 14, 33-36, temos uma retomada da distinção sexual através de discursos que
envolvem honra e vergonha, com o intuito de edificação da comunidade.
Meeks (1974, p. 203) segue a mesma linha de raciocínio de Robin Scroggs, decla‑
rando “that Paul wanted to eliminate the inequality between the sexes, while the gnostics wanted
to eliminate the distintions between the sexes83”.
Para John Dominic Crossan (1994), na obra O Jesus histórico: a vida de um camponês
judeu do Mediterrâneo, textos não canônicos, como o Evangelho dos Egípcios, a Segunda
Clemente e textos do século II, como o Evangelho de Tomé, se posicionam a favor da supe‑
ração do sexismo. Vejamos:

Evangelho Egípcio
5b
Quando Salomé interrogou sobre o tempo no qual as coisas por ela perguntadas
seriam tornadas conhecidas, o Senhor respondeu: “Quando conculcardes o hábito
da vergonha, quando os dois forem um, e o homem com a mulher não forem nem
masculino nem feminino”.
Segunda Clemente
Em todo tempo, no amor e na justiça, esperemos o reino de Deus, já que não
sabemos quando será o dia de seu aparecimento. Uma vez em que o interrogaram
quando viria seu reino, o próprio Senhor respondeu: “Quando os dois forem um,
e o exterior for como o interior, e o homem e as mulheres não forem nem mas‑
culino nem feminino”.
Evangelho de Tomé – Logia 22
Jesus viu crianças sendo amamentadas. Ele disse aos seus discípulos, “Estas crian‑
ças sendo amamentadas são como aqueles que entram no Reino”.
Eles indagaram a ele, “Devemos nós, então como crianças, entrar no Reino?”
Jesus disse a eles, “Quando fizerdes dois de um, e quando fizerdes de dentro como
fora e de fora como dentro, e acima como abaixo, e quando fizerdes o homem e a
mulher um único e o mesmo, para que o homem deixe de ser homem e a mulher
deixe de ser mulher, e quando adaptardes os olhos no lugar de um olho, e uma

83  Minha tradução: “Que Paulo queria eliminar a desigualdade entre os sexos, enquanto os gnósticos que‑
riam eliminar a distinção entre os sexos”.

151
mão no lugar de uma mão, e um pé no lugar de um pé, e a semelhança no lugar de
uma semelhança; então entrareis no Reino”.

Para Margaret Y. MacDonald (1996, p. 186-190), o Evangelho Egípcio, a Segunda Cle-


mente e o Evangelho de Tomé, textos escritos no século II, apresentam uma formulação
diferente da divisão tripartida contida em Gl 3, 27-28. Tal divisão, porém, não assina‑
lava ao fim e ao cabo três distinções, pois se tratava apenas de três maneiras diferentes
de expressar a mesma coisa: o novo.
Em seu artigo The sexual liberation of the Apostle Paul, Robert Jewett (1979, p. 67-74)
argumenta que as cartas autênticas de Paulo posicionam-se de modo progressivo no
sentido da igualdade entre os cristãos, mantendo ao mesmo tempo uma insistência
sobre o predicado divino da diferença sexual. Para o autor, os códigos domésticos,
logo, os textos pós-paulinos, surgiram como um contraponto e uma trava aos exces‑
sos provocados por mulheres e escravos em âmbito comunal, o Paulo de Colossenses,
primeiro texto do Novo Testamento no qual se constata a presença dos códigos de
conduta doméstica, estaria lutando para conciliar dois pontos aparentemente contra‑
ditórios: a diferença da identidade sexual, por uma parte, e a igualdade na distribuição
da honra e da vergonha, por outra.
Para Elisabeth S. Fiorenza (2004, p. 222), a práxis inserida nesse trecho de Gálatas 3, 28
engendrou um novo comportamento, ao menos no tocante às mulheres que exerciam
papéis de liderança nas comunidades domésticas e no movimento em seus primórdios.
Uma carta de Plínio endereçada a Trajano, no começo do século II, informa que servae
eram ministrae na comunidade de Bitínia (Plin. Ep., 10. 96). Na mesma época, Inácio de
Antioquia envia uma carta a Policarpo, na qual faz uma advertência aos cristãos para que
não libertem seus escravos nem escravas às custas da Igreja:

Não desprezem os escravos e as escravas. Contudo, que eles não se inflem de orgu‑
lho, mas que sirvam com maior zelo para a glória de Deus, a fim de obterem de
Deus liberdade maior. Que eles não procurem tornarem-se livres à custa da comu‑
nidade, para não se tornarem escravos do desejo (Ign. Antiochensis Ep., 4, 3).

Essa exortação de Inácio a Policarpo é signficativa, pois nos permite supor que
escravos que se tornassem cristãos esperavam que sua liberdade fosse comprada pela

152
comunidade. Isso explica a inclusão, na carta do corpus Paulinum destinada a Filemon, do
episódio da fuga do escravo Onésimo.
A perspectiva suscitada em Gl 3, 28, de se alcançar a liberdade por meio do batismo,
não era mero entusiasmo retórico, assim como não era a promessa da superação das dis‑
tinções entre judeus e gregos. De fato, podemos afirmar que todo o trabalho de Paulo cen‑
trou-se em torno da abolição de distinções religiosas entre judeus e gregos, como vemos
no trecho da Carta aos romanos 10, 12-13: “De sorte que não há distinção entre judeu e
grego, pois ele é Senhor de todos, rico para todos os que o invocam. Porque todo aquele
que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Para Crossan (1994, p. 334), Paulo estava muito mais preocupado com a distinção
judeu/grego e escravo/livre do que com a distinção entre homem e mulher. Essa dico‑
tomia entrou em Gálatas 3, 27-28 devido a uma tradição anterior, mas foi abandonada
ao longo da transmissão da tradição paulina.
O fato de Paulo denominar-se “Apóstolo dos gentios” se deve ao ardor missioná‑
rio que desenvolveu ao pregar em várias cidades e regiões do Mediterrâneo e que acar‑
retou uma série de atritos com outras personagens, como Pedro e membros do grupo
judaico-cristão. De fato, em certa ocasião, Paulo enfrenta publicamente Pedro, fazendo
a seguinte acusação: “mas quando vi que não andava retamente segundo a verdade do
evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives à margem dos
gentios e não dos judeus, por que forças os gentios a viverem como judeus?” (Gl 2,14).
Para Paulo Augusto de Souza Nogueira (2009, p. 134), não se trata aqui somente de
afirmar (ou não) o valor da circuncisão; a questão reside no fato de que a circuncisão
física, em Paulo, é espiritualizada, como demonstra a expressão “circuncisão do cora‑
ção”. Portanto, podemos afirmar que todo o conteúdo da Carta aos gálatas gira em torno
da “nova criação”.
Em que pese tal debate acerca do lugar ocupado por homens e mulheres nas comu‑
nidades cristãs dos primeiros tempos, conhecemos exemplos de situações semelhantes
em outras comunidades antigas. Diversos cultos mistéricos advindos do Oriente, com
exceção do mitraísmo, admitiam mulheres no ofício do culto (MEEKS, 1974, p. 168).
De acordo com Sarah Pomeroy (1990, p. 247), as congregações da deusa Ísis pode‑
riam, no Império Romano, ser consideradas sediciosas devido ao espaço de atuação das
mulheres no culto. Calcula-se que, entre os fiéis de Ísis, pelo menos um terço era for‑
mado por mulheres (POMEROY, 1990, p. 247).

153
Na Antiguidade, havia inclusive justificativas teóricas para a equidade entre os sexos.
Os estoicos, por exemplo, adotaram a seguinte epigrama atribuída a Antístenes: “A vir‑
tude é a mesma para o homem e para a mulher” (Diog. Laert. 6,12). Afirma-se também
que Cleanto (Diog. Laert., 7.175) escreveu um livro sobre o assunto, embora as mulhe‑
res tenham permanecido ausentes entre os discípulos dos filósofos estoicos, tanto dos
primeiros estoicos quanto dos posteriores.
À medida que as comunidades cristãs ofereciam aos que adentravam em contato com
elas a experiência de um espaço alternativo no contexto das cidades greco-romanas, o ini‑
ciado adquiria status e uma posição de igualdade, mesmo sendo escravo ou mulher. Com
isso, o movimento cristão exibe uma característica conflituosa, pois se coloca em oposição
a instituições milenares, como a escravidão e a família patriarcal. Segundo Peter Brown
(1988, p. 52), Paulo, em suas cartas às comunidades, se posiciona como um “homem que
coloca sacos de areia, apressadamente, nas margens de uma torrente potencialmente
devastadora, cujo ímpeto, como ele sabia perfeitamente, devia muito à sua própria men‑
sagem e exemplos prévios”.
Essa inferência, que emerge na Carta aos gálatas, tornou-se bastante influente, como
vemos na formação do cânone por Marcião, um autor para quem o velho deveria ser
suprimido e o novo, difundido. Contudo, essa formulação contida em Gálatas suscitou
sérios problemas numa comunidade radicada numa cidade cosmopolita da Acaia: Corinto.
A visão cristã inicial da Carta aos gálatas 3, 28 que era observada nas comunidades pau‑
linas atraía para o movimento, especialmente, escravos e mulheres, mas também criava
tensões e conflitos de natureza cultural, como vemos em Corinto. Certos cultos pratica‑
dos nesse momento, como o da Grande Deusa, atraíam homens e mulheres, escravos e
livres, asiáticos, gregos, romanos, que dele participavam plenamente. Num tal contexto,
a confissão batismal de Gálatas não poderia ser tão “utópica”. À medida que os cristãos
compreendiam em si mesmos uma nova família, exprimiam essa autocompreensão, em
termos institucionais, nas comunidades, que se reuniam então em ambiente doméstico.
Logo, o movimento missionário cristão oferecia uma crença e uma práxis religiosa alter‑
nativas às da sociedade greco-romana da época.
Além do mandamento referente ao silêncio das mulheres, inserido no texto da Pri-
meira carta aos coríntios 14, uma boa parte da “má reputação” atribuída a Paulo no que se
refere à divisão sexual resulta de declarações contidas nas cartas “pós-paulinas”. Conforme

154
já mencionei, compreendo o substrato pós-paulino das epístolas como documentos inseridos
no corpus Paulinum, num período posterior a Paulo. Refiro-me, mais especificamente, à Carta
aos Colossenses, aos Efésios e à coleção conhecida como Cartas pastorais: Primeira e Segunda a
Timóteo e a Tito. Como estas cartas portam o nome de Paulo, exerceram um papel marcante
na concepção popular acerca da atitude do apóstolo para com as mulheres. De suas pres‑
crições morais foram derivados os “códigos domésticos” adotados nas comunidades cristãs.
Esses códigos domésticos, no entanto, não eram exclusivamente cristãos. Como é
possível depreender dos argumentos expostos, no início da Era imperial havia uma ampla
literatura helenístico-judaica que tratava das questões de honra e vergonha como funda‑
mentos da ética patriarcal da família greco-romana. Nas três relações sociais mencionadas
anteriormente, tal “código” convidava à submissão os membros subalternos da sociedade,
isto é, a esposa, o filho e o escravo, ao passo que estimulava a amabilidade e a razoabili‑
dade por parte dos membros superiores (o marido, o pai e o senhor).
Em suma, a passagem contida na Carta aos Gálatas 3, 28 nos insere num debate em
que questões envolvendo honra e vergonha são suplantadas em prol de uma igualdade
comunal compartilhada pelos membros das nascentes comunidades cristãs.

Considerações finais

Ao analisar o contexto do século I, fiz uma análise sobre como questões que envolvem
honra e vergonha são importantes para compreendermos as comunidades cristãs dos
primeiros tempos, em especial as paulinas. Com isso, podemos perceber como algumas
imposições e posturas de Paulo, replicadas pela tradição paulina, se conformavam à estru‑
tura que repartia os sexos num campo binário e estanque; diferentemente, entretanto,
do que se apregoava em Gálatas 3, 28, ou seja, que as barreiras sociais, étnicas e, princi‑
palmente, sexuais poderiam ser suplantadas pelo batismo.
Ao abordar as questões envolvendo honra e vergonha, empreguei uma metodologia
que analisou os discursos inseridos em alguns textos do corpus Paulinum, tanto os autên‑
ticos quanto aqueles que nos foram transmitidos pela tradição, tendo por referência a
ética sexual e moral propugnada pelos cristãos. Para concluir, reafirmo que compreendo
Paulo (ou Paulos) como um sujeito de seu momento histórico e cultural.

155
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159
O paganismo na Antiguidade Tardia:
o Serapeum, o templo alexandrino de Serápis,
história, historiografia e fontes documentais
sobre sua destruição, em 392 d.C.
Érica Cristhyane Morais da Silva

Introdução

O tema do paganismo tardo‑antigo sempre esteve presente, como objeto de investiga‑


ção, na historiografia contemporânea entre os especialistas que se dedicam ao estudo do
Mundo Antigo. Não obstante, o tratamento dado ao paganismo esteve agregado, muito
frequentemente, aos estudos sobre a emergência do cristianismo no contexto da Anti‑
guidade Tardia. Nesse sentido, o paganismo tardo‑antigo surge como uma religião quase
sempre fadada ao fracasso e ao desaparecimento. Com a contribuição da cultura material
e a aproximação com a Arqueologia, seu estudo, sob a perspectiva histórica, se transfor‑
mou há pouco mais de uma década. A relação da transformação da paisagem urbana com
os âmbitos da política e da religião tem sido uma tendência recente entre os estudos his‑
tóricos sobre o paganismo tardo‑antigo, e um novo olhar fundamentado em reconhe‑
cidas evidências trazem à luz novas interpretações. Um exemplo disso é o investimento
significativo dos historiadores e arqueólogos no estudo sobre as cidades, sua estrutura
arquitetônica, sua paisagem urbana, associando‑as às atividades e à intervenção humana
nos espaços. A materialidade que se impõe e se transforma, e é imbricada à ação e às ati‑
vidades humanas, é interpretada com o auxílio tanto da documentação textual quanto de
cultura material (LAVAN; MULRYAN, 2011). Assim, as cidades tardo‑antigas intrigam,
de fato, como argumenta Christopher Haas (1997, p. 5), os estudiosos sobre o Mundo
Antigo, e um movimento de renovação do campo da História Urbana destaca o quanto
ainda precisamos refletir sobre este importante objeto privilegiado de investigação da his‑
tória, que é a cidade. No espaço deste capítulo, iremos nos dedicar a discorrer sobre um

161
evento em particular, a destruição do Templo de Serápis, o Serapeum, localizado numa
cidade ímpar do Império Romano tardo‑antigo, Alexandria, no Egito, considerando, por‑
tanto, tanto os avanços alcançados mediante os estudos arqueológicos quanto os de cará‑
ter histórico acerca dessa cidade.

A historiografia, a história e os documentos sobre o Serapeum em


Alexandria

Nas últimas décadas, houve uma ampliação significativa do número de obras sobre Ale‑
xandria, mesmo se excetuarmos a expressiva historiografia acerca dos bispos e persona‑
gens importantes que estão vinculados à história dessa cidade84. A obra de Christopher
Haas, Alexandria in Late Antiquity, é uma obra de referência sobre os conflitos e a presença
de comunidades diversas na cidade de Alexandria. Outo autor de referência sobre Ale‑
xandria é Edward J. Watts, que, com as obras Riot in Alexandria e City and school in Late
Antique Athens and Alexandria, fornece importantes evidências sobre a cidade, o ensino
e a vida intelectual agregada ao Serapeum (SHEPARDSON, 2014, p. 234). Em 2008, em
particular, houve um significativo impulso para a história de Alexandria, no geral, e para
a história do Serapeum, em particular. De acordo com Jitse H. F. Dijkstra (2012, p. 355),
desde 1895, quando G. Botti afirmou que o Serapeum era “um planalto rochoso entre‑
gue a cães abandonados e a guias de má fama”, várias campanhas de escavação tiveram
lugar no sítio outrora famoso sem que os resultados dessas limitadas investigações fos‑
sem amplamente divulgados até 2008, momento em que Michael Sabottka disponibiliza,
mediante publicação, ao grande público alemão e francês, sua dissertação de 1985, inti‑
tulada Das Serapeum in Alexandria, que torna acessíveis materiais da campanha de esca‑
vações da “Sieglin Expedition” (1898‑1902) e um estudo da arquitetura do Serapeum.
Na esteira desse trabalho, Judith Mckenzie (2010, p. 173‑202) renovou e atualizou os estu‑
dos sobre a arquitetura e a história do Serapeum. Uma importante contribuição também

84  Sobre Alexandria foram publicadas, nos últimos anos, algumas obras que já se tornaram referências:
Edward J. Watts (2010); Judith McKenzie (2010); Christopher Haas (1997). O interesse na história da cidade
de Alexandria não se restringiu ao âmbito acadêmico. Nos últimos anos, se produziu uma narrativa cine‑
matográfica: Alexandria (2009), filme sobre Hipátia.

162
aos estudos sobre o Serapeum foi a publicação recente, em 1997, dos livros X e XI da His-
tória Eclesiástica, de Rufino de Aquileia, principal testemunha contemporânea dos acon‑
tecimentos que levaram ao episódio da destruição do Serapeum, em 392, por Philipe R.
Amidon. Excetuando essa documentação textual mais extensa sobre o Serapeum e sobre
a destruição desse Templo de Serápis, em 392, os escritores tardo‑antigos que escreve‑
ram sobre o assunto foram Sozomeno (Historia ecclesiastica), Teodoreto de Ciro (Historia
ecclesiastica), Eunápio de Sardis (Vitae sophistarum), Sócrates de Constantinopla, também
conhecido por Sócrates Escolástico (Historia ecclesiastica) e Evágrio Escolástico (Historia
ecclesiastica), que menciona brevemente a destruição. Embora Marco, o Diácono (Vita
Porphirii), não se dedique a mencionar a destruição do Serapeum, há um longo extrato
da documentação em que se propõe a escrever sobre a destruição de templos no Impé‑
rio Romano, em especial a preocupação de persuadir imperadores a continuarem com a
política de interdição do paganismo.
Talvez uma compreensão mais ampla do processo de destruição/abandono/tomada
dos templos se beneficie dessa documentação e da referência bibliográfica From temple to
church, de Johannes Hahn, Stephen Emmel, Ulrich Gotter, que sinaliza as últimas inves‑
tigações sobre a temática. Associada a essa documentação escrita, temos uma coleção
importante de cultura material proveniente das campanhas de escavação no sítio arqueo‑
lógico do Serapeum, como mencionado anteriormente, e que se tornou disponível ao
público especializado. Em The architecture of Alexandria and Egypt, c. 300 B.C. to A.D. 700,
publicado em 2007, Judith McKenzie viabiliza, em particular, um extenso estudo sobre
a cidade de Alexandria com base nas evidências arqueológicas, não prescindindo, obvia‑
mente, da documentação escrita. Em Making and breaking the gods, Troels Myrup Kris‑
tensen (2013) oferece uma revigorada abordagem sobre o tema da destruição do Serapeum
a partir da reflexão acerca do destino dado à decoração escultural do templo que, segundo
o autor, é bastante reconhecido, mediante inúmeras evidências provenientes de docu‑
mentação textual, mas escassamente debatido do ponto de vista arqueológico.
O conjunto dessa bibliografia e documentação fornece, em particular, ao tema do
Serapeum novas possibilidades de reflexões. Nas palavras de Lothar Haselberger (2008,
p. 703), “a redescoberta acadêmica da arquitetura de Alexandria oferece um progresso
espetacular”. Alexandria é uma cidade complexa, onde políticas urbanas eram mais intrin‑
cadas e difíceis devido à rivalidade entre comunidades no espaço urbano. O impera‑
dor e os bispos são evocados a se apresentarem, constantemente, como responsáveis na

163
gerência citadina, e, em muitas ocasiões, a própria elite e as autoridades citadinas apare‑
cem no cenário descrito pelos autores cristãos. Não obstante, à luz dessa nova historio‑
grafia e revisitando a documentação, apresentaremos a história do episódio da destruição
do Serapeum, compreendendo que o espaço urbano alexandrino é um campo de concor‑
rências várias, não apenas restritas às tensões pagano‑cristãs, embora aqui nos dedique‑
mos, especificamente, às comunidades pagãs e cristãs alocadas na cidade.

O culto de Serápis e a estrutura arquitetônica do Serapeum em


Alexandria

Alexandria ad Aegyptum é uma das cidades célebres do Mundo Antigo. Entre as “biogra‑
fias citadinas” da Antiguidade, Alexandria emerge como uma cidade distinta, singular e
com uma história urbana notória, alçando um status proeminente nas políticas impe‑
riais, nos desenvolvimentos econômicos e na história religiosa tardo‑antiga (HAAS, 1997,
p. 6). Fundada por Alexandre em 331 a.C., Alexandria se distingue também pela his‑
tória de seus cultos e templos. Com base em um extrato documental, datado de 360,
sobre um comerciante em visita à Alexandria que se deslumbra com a monumentali‑
dade das construções e se fascina com uma cultura particularmente pagã, Johannes Hahn
(2008, p. 335‑336, tradução nossa) argumenta que:

Claramente, nosso autor não considera mais a vitalidade dos cultos pagãos como
evidente. Em sua terra natal – talvez Fenícia ou Síria – o cristianismo era ativa‑
mente apoiado pelos imperadores em Constantinopla e já era uma força dominante.
Na verdade, muitos dos cultos pagãos já haviam perdido seu poder de atração e,
em muitos lugares, os pagãos foram forçados a uma reação defensiva. Entretanto,
Alexandria ainda era um lugar excepcional de adoração pagã de fato. Nesta cidade,
existiu uma variedade natural de cultos pagãos: deuses gregos, egípcios, orientais
e de origem europeia eram venerados aí, outros cultos eram continuamente inau‑
gurados e o sincretismo tinha lugar.

Alexandria é, de fato, uma entre tantas cidades dos deuses, constituída por templos,
festivais, estátuas que impressionavam (WATTS, 2015, p. 17‑36). No entanto, considerar

164
Alexandria como um lugar de excelência do paganismo nos parece desconsiderar a hete‑
rogeneidade das comunidades pagãs, a forma como a cultura pagã e suas construções
se integram ao espaço físico, que quase desvanece na paisagem urbana em outras cida‑
des. Em 360, o paganismo ainda permanece presente, haja vista o exemplo da cidade
de Antioquia, mesmo sendo considerada, insistentemente, como uma cidade cristã
pelas fontes documentais escritas de autores cristãos e cuja interpretação é confirmada,
geralmente, em uma determinada historiografia85. Pelo contrário, Antioquia de Oron‑
tes, na Síria, é uma metrópole cuja população é diversa, composta tanto por comu‑
nidades cristãs (tão heterogêneas que, por exemplo, produziam lideranças episcopais
distintas, chegando a ter nomeados três bispos de tendências distintas, arianas e nice‑
nas) como por comunidades pagãs e judaicas, presentes e ativas na concorrência pelo
espaço físico citadino. E, mesmo na época de Justiniano, várias evidências apresentam
uma significativa continuidade do paganismo nas cidades do Mediterrâneo Oriental
(BELL, 2013, p. 238‑240). Nesse sentido, Alexandria seria uma, entre outras cidades,
que apresenta a diversidade, mas também a particularidade de sua cultura expressa
ainda em sua materialidade espacial.
A comunidade pagã de Alexandria tem uma larga tradição e vivacidade próprias.
Uma documentação intitulada, tradicionalmente, de Notitia Urbis Alexandrinae, derivada
de um original grego do século IV, fornece dados estatísticos sobre a estrutura física rela‑
cionada à comunidade pagã alexandrina no contexto da Antiguidade Tardia (FRASER,
1951, p. 104; HAAS, 1997, p. 141):

A Grande Alexandria foi erguida no Egito no sétimo ano de Alexandre. Ele rei‑
nou por doze anos e construiu doze cidades, batizando cada uma delas em seu
nome. Estas cidades foram traçadas pelos ilustres geômetras atenienses Aristóteles,
Timoneu e Péricles.
Em Antioquia, existiu (ou existe) no meio do demosion, em uma coluna de Apolo,
em um estela de bronze, uma inscrição que se lê como se segue: Bartela é maior que
Éfeso por 3.011 pés; Éfeso suplanta Nicomédia por 1.700 pés, Nicomédia supera

85  Para uma perspectiva mais matizada sobre a cidade de Antioquia, conferir, por exemplo: Gilvan Ven‑
tura da Silva (2012); Margarida Maria de Carvalho (2005).

165
Antioquia por 1.820 pés e Alexandria é ainda maior que estas quatro cidades, pois
suas medidas são 14.987 pés.
Em Alexandria, podem ser encontrados, no Bairro A:
308 templos, 1.655 pátios, 5.058 residências, 108 termas, 237 tabernas, 112 pórticos.
No Bairro B:
110 templos, 1.002 pátios, 5.990 residências, 145 termas, 107 tabernas.
No Bairro G:
855 templos, 955 pátios, 2.140 residências, ... termas, 205 tabernas, 78 pórticos.
No Bairro D:
800 templos, 1.120 pátios, 5.515 residências, 118 termas, 178 tabernas, 98 (pórticos).
No Bairro E:
405 templos, 1.420 pátios, 5.593 residências, [...] termas, 118 tabernas, 56 pórticos.
Desse modo, o total de templos é 2.393 (na verdade, 2.478); de pátios 8.102 (na
verdade, 6.152); de residências, 47.790 (na verdade, 24.296); de termas, 1.561; e
tabernas, 935 (na verdade, 845); de pórticos, 456.
Nisto, não está incluído o Bairro de Adriano, que é imenso, nem o de Lochias,
localizado fora da ilha de Faros, nem o da ilha de Antirhodos, nem o do Refúgio
do Serapeum, nem o da ilha de Anotinos Pandotos, nem o de Zefirion, nem o de
Canopo, nem o do Novo Canal, nem o de Nicópole, nem o do Campo de Manu‑
tio, nem o de Bendideion.
Alexandria é a mais esplêndida das cidades do mundo habitado86.

Embora as estatísticas não sejam confiáveis, o texto nos mostra uma estrutura física
monumental, digna de ser exaltada e celebrada. A quantidade de templos e sua distribui‑
ção por vários bairros é outro aspecto destacado no documento. Embora, novamente,
destaquemos aqui que essa estatística não seja representativa de realidade, a presença
de mais de um templo é importante na medida em que demonstra também a presença
pagã por todo o espaço urbano, não apenas centrado no complexo do Serapeum, embora
este se diferencie pela sua história, monumentalidade e importância para Alexandria e

86  Tradução para o português realizada por intermédio do texto disponível, na versão inglesa, fornecido
por Peter M. Fraser (1951, p. 104).

166
para o Egito. Em especial, Serápis é uma importante divindade pagã para a população
alexandrina. A história do culto a Serápis em Alexandria remonta ao reino dos Lágida.
E, ao contrário do que, geralmente, se argumenta, conforme Rogério Sousa (2015, p. 134),
a origem do culto a Serápis é autóctone (e não alóctone), tendo sido proposto em razão
de uma força político‑cultural significativa de unidade:

A fundação formal do culto de Serápis ocorreu entre os reinados de Ptolemeu I


Sóter e Ptolemeu II Filadelfo, sensivelmente entre 306 a.C. e 282 a.C., e constituiu
um poderoso instrumento político que os primeiros soberanos Lágida souberam
utilizar para congregar, sob o seu domínio, uma população heterogênea e multi‑
cultural constituída majoritariamente por egípcios e gregos, mas em que também
os judeus desempenhavam um papel importante. A difusão e a penetração do culto,
tanto em Alexandria como em todo o mundo helenístico, indiciam, no entanto,
que estamos perante um fenómeno que transcende largamente a esfera política.
O sucesso do culto estava alicerçado na consistência, no alcance e no significado
da mensagem filosófico-teológica que lhe estava associada.

Junto com a importância desse culto para as populações alexandrinas, no particular,


e para a população do Egito, no geral, acompanharemos a expressão de sua arquitetura e
estrutura. As campanhas de escavações no sítio do Templo de Serápis se iniciaram entre
os anos de 1894 e 1898 sob a liderança de Giuseppe Botti (MCKENZIE, 2009, p. 774;
DIJKSTRA, 2012, p. 355). O marco que localiza o sítio é a Coluna de Diocleciano, conhe‑
cida também como Pilar de Pompeu, que pode ser vista ainda hoje na paisagem urbana da
Alexandria contemporânea (MCKENZIE, 2010, p. 8). Sua arquitetura e o complexo tem‑
plário foram alvo de várias reformas ao longo de sua existência (MCKENZIE; GIBSON;
REYES, 2004, p. 73‑121). Com uma presença imponente87, o Serapeum de Alexandria é
um exemplo da presença material do paganismo no espaço urbano da cidade. O Serapeum
(Santuário de Serápis) consistia em um complexo de construções e edifícios composto

87  Para saber mais sobre sua estrutura imponente em termos arquitetônicos e estruturais – a natureza e
composição de seu edifício –, as reformas e transformações do complexo templário, conferir o artigo intitu‑
lado Reconstructing the Serapeum in Alexandria from the archaeological evidence, de autoria de Judith S. McKenzie,
Sheila Gibson e A. T. Reyes. Conferir referência completa na lista bibliográfica ao final deste capítulo.

167
de um pátio colonado que enclausurava o templo e outros edifícios (MCKENZIE,
2009, p. 773; Imagem 1). Localizado no Bairro de Racótis, o templo de Serápis, no inte‑
rior do complexo do Serapeum, abrigava uma estátua de Serápis cujas medidas foram esti‑
madas sem uma precisão específica, apenas pela adjetivação de suas dimensões, como
“enorme” e “admirável”. Rufino de Aquileia (Hist. Eccl., XI.23) é o autor cristão que mais
desvela a estrutura física e material do complexo:

No meio de todo o espaço, estava o edifício do templo, construído esplêndida e


ricamente na parte exterior com pedras e adornado com colunas de mármore. Den‑
tro deste templo, a imagem de Serápis era enorme e espantosa, estendendo-se de
uma parede pelo lado esquerdo até a outra pelo lado direito. Este potentado, se
dizia, era composto por todo tipo de metal e madeira. As paredes do interior do
santuário eram revestidas de placas de ouro e, acima delas, placas de prata e, na
extremidade imediatamente superior, placas de cobre feitas de metais preciosos.
Também se compunha de dispositivos construídos para causar, com astuta habili‑
dade, espanto e admiração na audiência e visitantes. Na parte oriental do templo,
havia uma pequena abertura que era fabricada de tal maneira para que fosse possí‑
vel a imagem de Hélio saudar Serápis e, quando chega a hora e a imagem adentra,
uma fresta de Hélio proveniente da pequena abertura ilumina a boca e os lábios
de Serápis, de modo que, aos olhos dos visitantes e observadores, Serápis parece
ser agraciado com um beijo do deus Hélio (tradução nossa).

Rufino nos fornece, assim, uma visão monumental e divina da localização do templo,
da estátua de Serápis e dos materiais que o adornam. Uma história, em particular, pode
ser extraída dos excertos do testemunho de Rufino sobre o Serapeum. Frank R. Trombley
(2014, p. 133‑135), com base nos testemunhos de Rufino, desvela a engenharia helenís‑
tica empregada na construção e disposição da estátua e os mecanismos que contribui‑
riam para se produzir uma atmosfera de mistério, numa espécie de “ilusão divina”. Assim,
segundo Trombley, o desmantelamento do templo e sua estátua nos ataques cristãos ao
Serapeum, em 392, significaria a revelação de uma fraude dos cultos antigos, que, por meio
de dispositivos, forjavam a potência e o poder divinos de Serápis. O templo não perderia,
contudo, sua majestade ou sua importância na cidade de Alexandria.

168
Imagem 1 – Reconstrução do Serapeum na fase romana
após se erigir a Coluna de Diocleciano (298)88
(Esta coluna também é conhecida como Pilar de Pompeu)

Fonte: McKenzie, Gibson e Reyes (2004, Plate I).

88  Agradeço à Professora Judith McKenzie, da Faculty of Oriental Studies da University of Oxford, pelo
envio da imagem e pela autorização de sua publicação.

169
O reúso das instalações do templo, de sua riqueza e construção pelos cristãos é um
outro capítulo da história do Serapeum que tem sido escrita na última década. E as evi‑
dências sobre isso são abundantes. Sócrates de Constantinopla (Hist. Eccl., V.17) nos apre‑
senta, por exemplo, a presença contínua de elementos que permaneceram mesmo sob a
ocupação dos cristãos:

Quando o templo de Serápis foi desmantelado e desnudado, foram encontradas


pedras gravadas com certos caracteres, que chamaram de hieróglifos com formas
de cruzes. Tanto cristãos como pagãos, ao verem esses hieróglifos, apropriada‑
mente, os leram segundo suas respectivas religiões: pois os cristãos, que afirmam
que a cruz é sinal da salvação de Cristo, proclamam que os caracteres são, pecu‑
liarmente, deles; mas os pagãos alegam que os caracteres talvez pertençam tanto a
Cristo quanto a Serápis, algo comum a ambos; pois, dizem eles, isto simboliza uma
coisa para os cristãos e uma outra para os pagãos (tradução nossa).

Nesse sentido, o Serapeum, suas partes integrantes e tudo o que ele representa confi‑
gurariam entremundos entre o cristianismo e o paganismo. E o esforço e o investimento
das narrativas de autores cristãos em promoverem-se mediante a destruição do Serapeum
não são fortuitos, muito menos arbitrários. Os testemunhos dos autores cristãos se vale‑
ram dos acontecimentos para afirmar a figura episcopal e o cristianismo.

A destruição do Serapeum alexandrino e a afirmação do poder


episcopal

Na cidade de Alexandria, há a existência e a memória de uma biblioteca majestosa, bem


como de templos e santuários, sendo também um lugar de palácios, jardins reais e insti‑
tuições públicas (HELLER‑ROAZEN, 2002, p. 134). Todavia, desde o período helenístico
até a época romana, muitos desses monumentos foram alvo de uma tradição de destrui-
ções89. A biblioteca de Alexandria (Mouseion ptolomaico) foi uma das mais memoráveis

89  Daniel Heller-Roazen (2002, p. 133‑153) faz uso desta expressão para refletir sobre a Biblioteca de
Alexandria.

170
construções da cidade, bem como uma das perdas mais sofridas e sentidas até hoje, em
virtude de sua destruição (THIEM, 1979, p. 507‑526; HELLER‑ROAZEN, 2002, p. 135;
POLASTRON, 2013, p. 24‑36).
A história do Mouseion ptolomaico se confunde com a história do Serapeum, com‑
plexo templário que abrigava tanto o santuário de Serápis como uma biblioteca, e,
embora não haja consenso sobre a distinção entre ambos, os dois foram alvo de ata‑
ques e destruição que revelam um topos: as narrativas sobre o aniquilamento dessas
construções evidenciam como agente uma figura ilustre filiada a uma distinta orienta‑
ção cultural e religiosa. Assim, tem‑se que a Biblioteca de Alexandria teria sucumbido
sob o governo de Júlio César ou sob o governo de Teodósio, ou ainda sob o Califado
de Omar, em depredações classificadas respectivamente como “pagãs”, “cristãs” e “sar‑
racenas” (THIEM, 1979, p. 507-509). Se, por um lado, nós temos o destaque da parti‑
cipação imperial nesse processo de transformação da paisagem urbana, por outro, há
a importante evidência das narrativas cristãs antigas que reforçam o papel desempe‑
nhado pelo episcopado na destruição dos templos.
A destruição de templos também está relacionada, estreitamente, à promoção da
autoridade episcopal. Os autores cristãos da Antiguidade Tardia escreveram extensi‑
vamente sobre os acontecimentos da destruição do Serapeum, não hesitando em emi‑
tir opiniões próprias sobre o assunto (Socrates Hist. Eccl., V.16‑17; Sozomen Hist. Eccl.,
VII.15; Theodoretus Hist. Eccl., V.22). Sócrates (Hist. Eccl., V.15) inicia seu relato sobre
a destruição do Serapeum afirmando: “Sob a solicitação de Teófilo, bispo de Alexan‑
dria, o imperador promulgou uma ordem, naquele momento, para a demolição de
templos pagãos daquela cidade”. Para Sócrates, Teófilo havia solicitado a Teodósio
que autorizasse a destruição de templos em Alexandria. O autor ainda atribui ao bispo
a autoridade de “impor” ao imperador a premissa de que a execução dessa ordem deve‑
ria ser sob a direção dele, Teófilo. Sozomeno (Hist. Eccl., VII, 15) começa sua narrativa
com a sucessão episcopal na cidade de Antioquia e, ao iniciar os relatos sobre os acon‑
tecimentos em Alexandria, apenas comenta: “Nesta mesma época, o bispo de Alexan‑
dria, para quem o templo de Dionísio lhe foi concedido pelo imperador, por pedido
feito pelo próprio bispo, converteu o edifício em igreja”.
No testemunho de Sozomeno, o templo de Dionísio seria desmantelado em suas par‑
tes, causando a fúria da comunidade pagã alexandrina, que, em reação, ataca cristãos, se
refugia no Serapeum e tortura aqueles que foram capturados e mantidos cativos dentro

171
do templo. Diferentemente da narrativa de Sócrates, no que se refere à figura do bispo,
Sozomeno sequer nomina o bispo alexandrino, mencionando apenas “o bispo de Ale‑
xandria”. A comparação dessas duas formas distintas de caracterizar os acontecimentos,
a de Sócrates e a de Sozomeno, pode contribuir muito para nossa compreensão acerca
da interpretação dos fatos, além de revelar os interesses particulares de cada um desses
autores cristãos antigos.
O papel ativo desempenhado por Teófilo nos acontecimentos do Serapeum, na nar‑
rativa de Sócrates, pode estar relacionado ao juízo que este historiador faz do exercício
do poder episcopal e do próprio comportamento de Teófilo de Alexandria. Sócrates fora
educado por dois importantes sofistas implicados também nos acontecimentos da destrui‑
ção do templo, Amônio e Heládio, o que seria indicativo de uma perspectiva cristã per‑
meada por uma formação pagã (Socrates Hist. Eccl., V.16; TROMBLEY, 2014, p. 141‑143).
Vale a pena destacar que a ação detalhada e o envolvimento de Teófilo no desmantela‑
mento do Serapeum parecem mais desqualificar a figura do bispo pela violência dos seus
atos do que, propriamente, compor o cenário dos acontecimentos da destruição.
Sozomeno, por sua vez, seria muito mais a favor de uma ideia de cristianização
(TROMBLEY, 2014, p. 127), portanto omite qualquer possibilidade que possa significar
mácula à ação cristã sob beneplácito imperial – como seria o caso do comportamento
impróprio de Teófilo de Alexandria na ação contra o Serapeum (Sozom. Hist. Eccl., VII.15).
David Rohrbacher (2002, p. 195) contribui com mais algumas inferências sobre essa
comparação entre os testemunhos de Sócrates e Sozomeno acerca da figura de Teófilo,
no referente a outro episódio: o conflito entre João Crisóstomo e Teófilo de Alexandria.
Assim nos permite também compreender melhor o caso específico das diferenças de rela‑
tos entre ambos os historiadores sobre o caso da destruição do Serapeum no que se refere
à ênfase ou não na figura de Teófilo:

Teófilo é retratado como um oportunista, disposto a usar acusações lacunares de


heterodoxia contra os adversários para fins nefastos. Sócrates afirma que Teófilo,
a princípio, tinha sido um dos apoiadores da teoria de Orígenes sobre a natureza
incorpórea de Deus, mas que ele tinha mudado de ideia para apoiar o lado oposto,

172
a teoria antiorigenista, por razões políticas e estratégicas (6,9). Contrariado pelo
posicionamento de Téofilo, Sócrates inclui uma longa digressão em apoio a Orí‑
genes, louvando o brilhantismo de suas ideias (6.13). Sócrates também estabelece
uma distinção nítida entre Proclo, o excelente bispo contemporâneo de Constan‑
tinopla, e o perseguidor Teófilo (7,45). Sozomeno é menos tolerante com o desvio
doutrinário que Sócrates, omite qualquer defesa da questionável ortodoxia de Orí‑
genes e minimiza o papel da ideologia no comportamento Teófilo (tradução nossa).

Assim, o que Sócrates e Sozomeno nos apresentam, em seus testemunhos, é, na


realidade, a preocupação com a definição e afirmação de uma autoridade episcopal cal‑
cada em ideais de comportamento ou recurso legal e aceito à violência pelo episcopado
(GADDIS, 2005, p. 251‑282). Nesse sentido, a promoção e a afirmação da autoridade
episcopal foram parte de um processo muito mais complexo do que supúnhamos, por
meio dos relatos cristãos e eivados de um investimento amplo de promoção disso,
mediante narrativas de confirmação/negação de autoridades episcopais, fundamenta‑
das em exemplos práticos.
Na historiografia, a destruição do Serapeum é compreendida, geralmente, como o
último ato que implicou o triunfo do cristianismo sobre o paganismo (HANRAHAN,
1962, p. 38). Ou, em outras palavras, “um episódio ícone”, que sinalizou e representou a
cristianização de Alexandria, reconhecida como o último reduto do paganismo e, por‑
tanto, do Império Romano tardo‑antigo (GWYNN, 2012).
A iconografia é outro suporte por meio do qual se promoveu e se reforçou a imagem
de um bispo que triunfa sobre seu inimigo, reinando sobre a idolatria pagã, em uma pro‑
moção visual do evento da destruição do Templo de Serápis, em Alexandria. A imagem
evocada em um manuscrito presente em um fragmento do Papiro Golenishchev90, prova‑
velmente do século V, reforça essa interpretação. Como podemos observar na Imagem 2,
o bispo Teófilo de Alexandria se posiciona triunfante, colocando-se acima do Templo
de Serápis, o Serapeum. Figura central e, dimensionalmente, maior que a majestosa pre‑
sença do Serapeum com a estátua do Serápis, representado com um módio à cabeça e no
interior do templo, Teófilo segura um rolo de papiro com a mão direita.

90  Para um estudo detalhado sobre o manuscrito, a história e a edição de Adolf Bauer do Papiro
Golenishchev, conferir o artigo de R. W. Burgess e Jitse H. F. Dijkstra (2013, p. 39-114).

173
Imagem 2 – Teófilo de Alexandria e o Serapeum
(Fragmento do Papiro Golenishchev, c. séc. V,
com a reconstituição do texto realizada por Adolfo Bauer)

Fonte: Bauer e Strzygowski (1905, Tafel VI, Verso).

Considerações finais

A destruição do Serapeum, em 392, é um dos acontecimentos emblemáticos evocados na


historiografia acerca dos conflitos pagano‑cristãos. A diversidade cultural e religiosa de
cidades como Alexandria não pode ser desconsiderada na compreensão de acontecimen‑
tos como este. Entre cristãos e pagãos, o templo e sua história, sua construção, reconstru‑
ção e reúso pelos cristãos marcam significativamente a paisagem urbana de Alexandria.
A força desse símbolo e de sua presença não desapareceu completamente da memória e
da história da população alexandrina, da cidade e do Império Romano. Os cristãos não
se eximiram de ressignificar e fazer uso das instalações e estruturas do Serapeum a partir
de uma cultura que é, sem dúvida, compartilhada.

174
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177
Identidades, espaços comunitários
e poderes rabínicos tardo‑romanos em
fontes talmúdicas (séc. IV-V d.C.)
Renata Rozental Sancovsky

[...] Não há nenhum dos sistemas mitológicos de que tentamos definir as estruturas
que não se ligue muito diretamente a fenômenos de crise: aceleração brutal do pro‑
cesso de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desa‑
gregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam
a vida coletiva. Nenhum que não se relacione a situações de vacuidade, de inquie‑
tação, de angústia ou de contestação. [...] é que nos períodos críticos que os mitos
políticos afirmam‑se com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade, exercem
com mais violência seu poder de atração (GIRARDET, 1987, p. 180).

A ampliação dos horizontes e das escalas de observação do historiador sobre as rea‑


lidades humanas constitui, sem dúvida, uma das principais transformações epistemo‑
lógicas do saber histórico nas três últimas décadas do século XX. É nesse sentido que a
aproximação às fontes ditas “literárias” na pesquisa histórica traz de fato, ao historiador,
novos desafios e complexidades de entendimento do real, do mitológico e do singular.
Com base nesse pressuposto, buscamos analisar não apenas processos de construção
e reprodução de parte dos universos judaicos no período tardo-romano – tendo como
eixo fundamental o rol de textos extraídos da chamada “literatura rabínico-talmúdica” –,
mas também os processos de circularidade de bens simbólicos contidos em suas múlti‑
plas e variadas vozes.
Diante da diversidade sociocultural que caracterizou o Império Romano, a comu‑
nidade judaica, como parte integrante e ativa dessa diversidade, oscilava, permanente‑
mente, na dinâmica entre interação e isolacionismo. Concentrando-se, sobretudo, em

179
espaços urbanos estritamente comunitários, o mundo judaico da época exibia uma socie‑
dade poliglota, multiforme, com visíveis traços oriundos de suas raízes culturais regio‑
nais, sendo, portanto, extremamente hetero­gênea (NEUSNER, 1987, p. 13-28).
Nesse quadro, dilemas de autorreferência identitária devem ser considerados pelo
historiador, a partir de diálogos com a Sociologia:

[...] A tradição rabínica manteve o caráter bricoleur da cultura judaica, aceitando no


seu interior a convivência de interpretações diversas sustentando-se num tripé de
esperança messiânica, obediência aos mandamentos e auto-organização comunal,
que não pretendia nem desejava ser reduzido a um conjunto de dogmas ou a uma
doutrina racional coerente. O judaísmo rabínico era auto-referido, não procurando
maior coerência lógica e discursiva – a coerência de suas práticas se orientava no
sentido de manter e reproduzir o judaísmo (SORJ; GRIN, 1993, p. 9).

São de fato consideráveis os impactos de uma longa discussão historiográfica sobre os


fatores de diferenciação da vida judaica e romana tardo-antigas. Mas destaquemos aqui os
trabalhos desenvolvidos por Shaye D. Cohen (Brown University), que desde os anos 90
do século XX tem se debruçado sobre os chamados “protocolos de alteridade” de judeus
e romanos (fossem pagãos, fossem em processo de cristianização), nos séculos IV e V.
A partir de um minucioso trabalho de leitura dos autores antigos – destacadamente
retirados da patrística clássica oriental e ocidental –, Cohen (1993) estudou alguns dos
principais mecanismos sociais que poderiam demarcar as “diferenças” judaicas no mundo
romano, lançando mão, para tal, do conceito de jewishness, algo que poderíamos aqui tra‑
duzir, talvez, como “judeidade”. Com o estudo, Cohen constata, finalmente, que toda uma
gama de atributos que poderiam a priori tornar os judeus ainda mais peculiares, ou até
afastá-los do convívio romano, significou, antes e sobretudo, relevante fator de integra‑
ção e hibridização dos elementos sociais judaicos.
Assim, o historiador levanta as seguintes hipóteses:
a) Nenhum autor antigo teria afirmado que os judeus diferenciavam-se por sua apa‑
rência ou mesmo por sua indumentária;
b) Nenhum autor antigo teria afirmado que os judeus se distinguiam por seus nomes,
quando, em muitos casos analisados (epigrafias tumulares, sobretudo), encontra‑
vam-se registros de nomes com clara natureza etimológica romano-helenística;

180
c) Não haveria, para o mundo tardo-romano, séries de registros de linhagens genea‑
lógicas (à exceção das linhagens rabínicas) afirmando quem era, de fato, judeu ou
não. Em se tratando de conversos ao judaísmo, a questão tornava-se ainda mais
complexa;
d) Em muitos casos, a circuncisão, elemento supostamente característico ao perten‑
cimento judaico, também era praticada por outros agrupamentos sociais romanos.
Ou seja, não mais se poderia apontá-la como “marca infalível” de uma “judeidade”.
Indaguemos, então: o que teria (ou quais elementos teriam) tornado os judeus do
mundo tardo-romano “diferenciáveis” do restante das populações em que estavam inseridos?
Fatores como a nova conjuntura pós-exílica a partir de 70, num processo paulatino
de crise do judaísmo na província da Judeia romana entre os séculos II e IV, e a ascen‑
são gradativa do judaísmo babilônico indicam-nos que a pessoa e a imagem do rabino
incorporariam novos direcionamentos e encargos sociais (BOYARIN, 1994). Para além
da já tradicional representatividade espiritual e acepção sobrenatural, o rabino apresen‑
tar-se-ia como detentor do que poderíamos aqui denominar de “poder étnico”. É o que
comprova Daniel Boyarin (1994, p. 11), ao empregar

[...] a palavra rabi sempre que me refiro ao grupo específico de líderes religiosos
judaicos que floresceu na Palestina e na Babilônia, entre o século II e o final do
século VI. Este grupo surgiu de uma das ramificações do judaísmo no século I e sua
hegemonia cultural sobre a massa dos judeus cresceu sem interrupções ao longo
deste período. Foi nessa época que as maiores obras literárias do judaísmo rabínico –
os midrashim [sic] e os Talmudes [sic] – foram escritas. Os seus cognatos históri‑
cos mais próximos, portanto, são os Padres da Igreja. Quando me refiro àqueles que
ocupam qualquer cargo religioso no judaísmo em geral, emprego o termo rabino.

Como representação, o rabino torna-se a imagem da unidade na diversidade, da


“sabedoria como salvação” (BAER, 1972, p. 65-90), em tempos de rupturas religiosas e
desmembramentos dos antigos tecidos sociais na Judeia romana (STROUMSA, 2009).
Perante a iminência de um universo judaico que parecia desmantelar-se (COHEN, 2010,
p. 282-296), eis que os rabinos assumiriam a responsabilidade de reerguer, ou ao menos
assegurar, em termos discursivos e ritualísticos, a práxis e a fé de suas comunidades. Cer‑
tamente, tais kehilot ou aljamas (congregações judaicas) encontravam-se abaladas, não

181
apenas pelos impactos do processo diaspórico pós-exílico, mas também pela memória
da destruição do templo de Jerusalém e de sua cidade ancestral e, não menos relevante,
pela ascensão do universalismo cristão acompanhado pelo choque da desilusão messiâ‑
nica (LEVINE, 2004). Ambas gradativamente destruíam a escatológica expectativa judaica
pela redenção final.

[...] Um estudioso do século III ensinou que a era messiânica diferiria da presente
apenas na liberdade de Israel do jugo de impérios estrangeiros; outro declarou que
“Todos os alegados fins do mundo já vieram e se foram; agora tudo depende do
arrependimento de boas ações”; e um rabino do IV século, único nessa visão, che‑
gou ao ponto de dizer que nenhum Messias pessoal deveria ser esperado, já que as
profecias relevantes já teriam sido cumpridas há muito tempo, na pessoa de Eze‑
quias [...] (GOLDBERG; RAYNER, 1989, p. 306).

Estamos, enfim, diante de um conjunto apurado de estratégias de discursividades em


busca do convencimento de comunidades em crise. É importante ressaltar, entretanto,
que, embora no cristianismo percebamos nítidas tendências universalistas na metodolo‑
gia de convencimento, em se tratando das culturas judaicas mediterrânicas, veremos que
as estratégias se mostrariam absolutamente inversas. Michel de Certeau outrora aludiu
à questão dos usos de estratégias sociais as quais, cotidianamente, redefinem e redistri‑
buem de forma dinâmica os poderes em sociedade. Nesse sentido, as estratégias apon‑
tariam para as formas de resistência “[...] que o estabelecimento de um lugar oferece ao
gasto do tempo [...]” (CERTEAU, 1996, p. 102).
Ainda que em muitos casos o proselitismo judaico atuasse como saída mais plau‑
sível para as questões que envolviam interações culturais (ATTIAS, 1997, p. 37-46), o
convencimento na cultura judaica objetivava nada mais do que reafirmar de forma endó‑
gena suas tradições, reconhecendo, na autoridade rabínica, o canal de concretização des‑
sas práticas, sobretudo no alcance de uma necessária autonomia social para efetivá-las.
Reside nessa percepção multifacetada das autoridades rabínicas o processo histórico defi‑
nido por Oded Irshai como “florescimento da cultura sinagogal” (IRSHAI, 2002, p. 194).
A disposição do poder político no mundo judaico tardo-romano, em seus fatores
efetivos de diferenciação, configurava-se prioritariamente pela organização conferida à
autoridade rabínica dentro dos vários núcleos comunitários. Politicamente constituída

182
por assembleias de caráter local, essa autoridade foi composta, em sua maioria, por rabi‑
nos ou arquissinagogos.
Como pilar moral e espiritual da localidade, caberia ao poder de sua palavra deter‑
minar como se deveria proceder a uma adequada conduta judaica, alcançada com base
em princípios éticos e ordenadores oriundos das diversas correntes interpretativas da
tradição religiosa mosaica, presentes na mishnah (Torah oral).

[...] Durante o período tanaítico (período de compilação da Mishná [versão oral da


Torah – séc. II d.C.] os discípulos dos Hachamim [do hebraico, Sábios, Doutos] são
obrigados a cultivar uma linguagem, porte e estilo que os distinguiam. Isto, con‑
seqüentemente, desenvolveu um verdadeiro código de maneiras a serem seguidas
pelo Haham (Sábio) no seu aspecto público. Dessa forma, o Rabi Iohanan adver‑
tia que “qualquer erudito sobre cujo vestuário se observe uma mancha de gordura,
é digno de morte” (URBACH, 1972, p. 150).

Nesse sentido, podemos definir seu poder como protocolar, como aquele que con‑
solida e impõe concepções de mundo que poderiam forjar possíveis “sensos comuns”
comunitários. Como pilar judicial e administrativo, o rabino determinaria, nessa nova
conjuntura, direitos de propriedade, e à sua autoridade seria reservado o direito decisó‑
rio acerca de querelas sobre bens fundiários, trabalhos e trabalhadores, negócios, acor‑
dos comerciais, ou alianças e tratados matrimoniais.
Através do texto talmúdico, podemos identificar a formação de um novo universo for‑
mado por visões rabínicas de mundo91. Um tanto peculiar em meio aos intentos políticos
e religiosos universalizantes do pensamento cristão no século IV, a visão rabínica de
mundo esteve calcada, essencialmente, em ideais hierarquizados e plurais de sociedade,
mas principalmente nas nucleações construídas pelas dinâmicas rabínicas locais (THE
SONCINO TALMUD, MASSECHET AVOT, 2:4).
Com base no princípio de tal hierarquização, o poder rabínico em todas as suas
dimensões buscaria, através da circulação do Talmud e do Midrash e de suas discussões,

91  Tal como definiu Clifford Geertz (1989, p. 143-144), em seu clássico A interpretação das culturas: “A
visão de mundo é o quadro que (um povo) elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu con‑
ceito de natureza, de si mesmo, da sociedade [...]”.

183
referendar-se como único poder essencialmente apto, religiosa e intelectualmente, a con‑
ferir uma memória religiosa e cultural aos judeus das aljamas. Nesse ponto, igualmente,
percebemos as graves contendas internas às comunidades judaicas mediterrâneas, que
tenderam a modificar os focos e seus centros gravitacionais. Passavam a esvaziar o papel
das antigas “casas de estudo” e de suas instituições patriarcais e a exaltar, entre os sécu‑
los II e IV, os novos ambientes sinagogais.
Historiadores como Baruch Blumenkranz, David Biale e Oded Irshai afirmaram que
o despontar do bairro judeu na conjuntura romana pós-exílica derivaria, então, de duas
principais células institucionais: a Sinagoga e a Escola. Irshai (2002) foi além, em suas
análises, ao transcrever um célebre ditado midráshico que dizia “[...] uma pequena cidade,
esta é uma sinagoga” (ECCLESIASTES RABBAH 9:14), afirmando categoricamente a pul‑
verização mediterrânea dos poderes e hierarquias culturais como essência do próprio
judaísmo rabínico tardo-antigo.
A presença dessas duas instituições – a Sinagoga e a Escola (BLUMENKRANZ, 1960,
p. 37) – pressupunha a necessidade de um aparato burocrático e funcional de estudiosos,
religiosos e administradores. Além do rabino, citemos o hazzan (cantor litúrgico e lide‑
rança cerimonial), o sofer (escriba) e o gabai (tesoureiro, coletor e administrador finan‑
ceiro de doações e verbas sinagogais).
No Talmud, por exemplo, encontraremos diversas referências à necessidade de supre‑
macia da coletividade sobre as vontades individuais. Uma discussão talmúdica sobre os
responsáveis pela doação de animais para sacrifícios, em dias de festividades do calen‑
dário judaico, nos revela o importante papel rabínico e dos chamados “fundos comuni‑
tários” – reservas monetárias ou em espécie, formadas pela contribuição dos membros
da congregação.
Ocupando o topo da cadeia de laços pessoais, o núcleo rabínico teria, na memória
ratificada pela cultura talmúdica, instrumentos de legitimidade perante as demais instân‑
cias tardo-romanas de poder. Dessa forma, o judaísmo rabínico como complexo político
e cultural se vê responsável pela conformação das estruturas de sustentação do mundo
judaico ou, ainda, do que ora denominamos de ethos (GEERTZ, 1989, p. 143), expresso a
partir de três eixos primordiais: a práxis religiosa, suas leis orais e escritas e a memória.
Para o ethos comunitário, muito além de representar a “Casa de Orações”, onde se
ratifica o ideal de devoção ao Deus da Lei Mosaica, a Sinagoga sintetizaria um complexo
conjunto de simbologias judaicas, fosse como eixo cultural de publicização da fé, fosse

184
como organismo político soberano, legitimador do caráter vertical da hierarquização
social, sendo, esta última, marca fundamental de sua estrutura.
Os cargos auferidos por seletos membros da comunidade judaica remeteriam, neces‑
sariamente, às suas posições na cadeia de fidelidades pessoais e aos respectivos graus de
reconhecimento social. O tratado talmúdico Berachot (do hebraico “bênçãos”), por exem‑
plo, abordando as atribuições essenciais para a formação de eruditos no seio da comuni‑
dade, exterioriza o vínculo historicamente estabelecido entre intelectualidade religiosa e
poder. Adin Steinsaltz, ao estudar a questão da erudição rabínica, cita uma interessante
definição de origem baraíta92 que nos esclarece sobre esse aspecto:

[...] A Torah é maior do que o sacerdócio ou a monarquia, pois a monarquia requer


trinta qualidades e o sacerdócio vinte quatro, enquanto a Torah demanda qua‑
renta e oito atributos: estudo, audibilidade, pronúncia distinta, compreensão, dis‑
cernimento do coração, temor religioso, reverência, humildade, alegria, pureza,
prestação de serviços aos sábios, apego aos colegas, discussão com discípulos, tran‑
qüilidade, conhecimento da Bíblia e da Mishnah, moderação em negócios, mode‑
ração no intercâmbio mundano, moderação no prazer, no sono, na conversação,
no riso, por tolerância, por bom coração, por fé no sábio, por aceitação de castigo,
por reconhecer seu lugar, por se regozijar com a porção que lhe cabe, por come‑
dimento na fala, por não proclamar mérito próprio, por ser amado, por amar o
Onipotente, por amor à humanidade, por amor à justiça, retidão e admoestação,
por esquivar-se de honrarias, por não se gabar de sua instrução, por não se delei‑
tar em proferir decisões, por suportar o jugo com outros, por julgar favoravel‑
mente seu semelhante, por mostrar-lhe a verdade, por levá-lo à paz, por ser sereno
no estudo, por perguntar, responder, ouvir e acrescentar ao que é estudado, por
aprender com o objetivo de ensinar, por estudar com o objetivo de praticar, por
tornar mais sábio seu mestre, prestando atenção a seu discurso, por citar as coisas
em nome de seu autor [...] (STEINSALTZ, 1990, p. 360‑361).

92  Baraítas: líderes rabínicos do século II que, entre os inúmeros Tanaim participantes dos debates exegé‑
ticos judaicos, encerravam em si a responsabilidade de memorizar, integralmente, o conteúdo da Lei Oral
Judaica – Mishnah – e todos os seus apêndices – Baraitot. Tanaim: lideranças rabínicas que, antecessoras dos
Amoraim, foram as responsáveis pela compilação, no século II, na Palestina, da Mishnah.

185
Como vemos, o poder quase vitalício delegado aos “sábios da comunidade” remete‑
ria, necessariamente, a uma aglutinação, pela instituição sinagogal, de atributos políti‑
cos, religiosos e culturais, em que se destacam desde relações de patrocínio entre o líder
da Sinagoga (rabino‑chefe ou arquissinagogo) e a aljama como um todo até a mais tra‑
dicional posição de liderança espiritual.
Assim, a Sinagoga, como podemos perceber, exercia funções sociais que transcen‑
diam à mera espacialidade da práxis religiosa. Tratava-se de um locus de coesão, de encon‑
tros e discussões religiosas e calorosos debates de tradições rabínicas, de escolha e tomada
de decisões políticas, marcadas por sua inerente diversidade. Através de sua imposição
institucional, auferia-se a legitimidade de determinados protocolos de leitura, ou, antes,
impor-se-iam o controle de ideias e apropriações sobre os textos exegéticos.
Do seu interior os rabinos-chefes irradiavam liderança e autoridade, uma vez que,
para além dos muros comunitários, eram-lhes tolhidas quase todas as possibilidades for‑
mais de exercício de poder político (BONFIL, 1998).
Outra curiosa passagem do tratado talmúdico Berachot descreve o lugar efetivo da Sina‑
goga no cotidiano masculino da comunidade. Ao voltar de um dia de trabalho, o homem,
antes de pensar em sua casa, sua alimentação e seu descanso, deveria ir à Sinagoga. Lá iria
aprofundar seus estudos bíblicos, sua memorização da Mishnah (Lei Oral) e recitaria as devi‑
das orações diárias. As discussões talmúdicas entre Rabi Eliezer e Raban Gamliel sobre os
horários adequados à última oração do dia, conhecida como Shemá, deixavam bem claro que
aquele que deixasse para fazer as orações somente quando estivesse em sua casa não estaria
livre das trangressões. Dessa forma, o horário da meia-noite foi estabelecido como limite para
a recitação obrigatória masculina do Shemá (THE SONCINO TALMUD, BERACHOT, 2a).
Como se pode perceber, determinar limites para essa autoridade, controlando a circu‑
laridade de importantes textos, cujos conteúdos reafirmavam a própria hierarquia rabínica,
constituiu um dos principais meios encontrados para acelerar o controle, o regramento
e a lenta diluição da vida judaica no mundo romano. Entretanto, vemos, não somente
em Justiniano, no século VI, mas em diversos governantes germânicos já do medievo93,
o uso de tais mecanismos de coerção, condenando a intrusão “não controlada e incon‑
trolável” (CHARTIER, 1996, p. 78) do Talmud no universo da cultura escrita.

93  Os monarcas visigodos Recesvinto (649-672) e Ervigio (680-687) representam importantes exemplos
de governantes que teriam alertado para a difusão da cultura talmúdica nas aljamas ibéricas.

186
É exatamente por esse viés que nos encaminha Roger Chartier, quando afirma que
se deve dar

[...] à leitura o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora e não anulá-la
no texto lido [...]. Em seguida, pensar que os atos de leitura que dão aos textos sig‑
nificações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou
individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de lei‑
tura depositados no objeto lido (CHARTIER, 1996, p. 78).

Nesse sentido, historiadores como Roberto Bonfil já afirmaram que em torno dos
conflitos de imposição e controle na difusão de ideias residia grande parte das dispu‑
tas entre autoridades cristãs e as atuantes elites rabínicas. Ao aspirarem, literalmente,
ao “[...] exercício da autoridade e do poder” (BONFIL, 1998, p. 185), teriam rabinos e
bispos o desejo de estruturar uma série de atributos culturalmente repressivos, dou‑
trinando seus grupamentos comunitários para que soubessem “discernir” entre o que
seria “nocivo” e o que seria “útil” ao conhecimento e ao bem comum. Nesse ponto,
Bonfil não vê contradições entre as metodologias judaicas e cristãs de construção das
cadeias de poder e solidariedade.
Ainda que Bonfil não aponte discrepâncias significativas entre os papéis atribuí‑
dos às lideranças religiosas nas comunidades judaicas e cristãs, algumas diferenças cru‑
ciais precisam ser aqui destacadas. Tanto na bacia do Mediterrâneo Ocidental quanto
no universo bizantino, a condição dos rabinos e das próprias aljamas diferenciava-se, e
muito, da organização social e política assumida pelas comunidades episcopais cristãs
coevas. As diferenças residiam, sobretudo, no status alcançado pelas elites cristãs naquele
momento, nos objetivos pelos quais se aspirava ao poder e, principalmente, na forma
como este poder era pensado e exercido.
Reiteramos que possíveis respostas às buscas identitárias judaicas tardo-antigas, em
suas pluralidades e expressões, estariam, em nosso entendimento, assentadas no chamado
“judaísmo rabínico” e em sua mais densa expressão textual – o Talmud.
Muito se indagou acerca de como teriam as diversas comunidades judaicas medi‑
terrâneas travado os primeiros contatos com o Talmud. Teriam de fato conhecido ao
menos um pedaço desses volumosos textos, já conhecidos (integralmente ou em parte)
no Oriente bizantino e babilônico?

187
Tanto no Mundo Antigo quanto no medieval ficaram conhecidos, não somente entre
as comunidades judaicas, os proeminentes papéis de escribas e copistas. Imediatamente
após a compilação do texto talmúdico, era necessário afirmá-lo, juntamente ao Tanach
(Bíblia hebraica), como uma importante fonte de estudos de Escolas e Academias Rabí‑
nicas. Entretanto, as cópias eram feitas manualmente e, de fato, eram raras as comuni‑
dades que conseguiam ter acesso ao conteúdo integral do texto, por sinal, extremamente
extenso. Essa dificuldade tornava o estudo e o conhecimento do Talmud, durante a Idade
Média, parciais e lacunares.
Partindo dessa hipótese, o talmudista Adin Steinsaltz chegou a afirmar que mui‑
tas cópias do texto talmúdico foram feitas por estudantes de academias. Entretanto, na
maioria dos casos, esses exemplares não se destinavam ao público em geral. Lembran‑
do-se da preeminência dos trabalhos das academias da Babilônia, Steinsaltz defende que
as primeiras cópias do texto talmúdico teriam sido enviadas para a Europa e o Norte
da África por meio de reconhecidas lideranças intelectuais babilônicas – os gueonim.
Da mesma forma como atuaram as gerações de sábios na Galileia, os amoraim, no sen‑
tido de compilar o Talmud Yerushalmi, os gueonim da Babilônia assumiram, a partir do
século V, a importante tarefa de compilar e expandir o texto talmúdico. Para Steinsaltz,
então, a versão que teria sido conhecida na Europa e na África Setentrional não poderia
ser outra senão a versão babilônica do Talmud.
Na Península Ibérica, o Talmud, de acordo com Steinsaltz, teria chegado por volta
do século VI, período de intensos debates nas academias babilônicas. As primeiras
cópias recebidas pelos judeus ibéricos teriam supostamente sido feitas por uma versão
oral ditada por um gaon babilônico que estivera visitando o território. Para o autor,
não era incomum que muitos sábios memorizassem enormes trechos do texto talmú‑
dico, muito em função, talvez, da tradição mishnaica, que desde o século II mantinha
seu conteúdo em versão oral.
As hipóteses de Steinsaltz sugerem, na realidade, uma absoluta ausência de comu‑
nicação e intercâmbio culturais entre os judeus da Península Ibérica e as comunidades
da Judeia, defendendo uma forte afinidade dos primeiros com as tradições babilônicas.
De fato, sabemos que no século VI não encontramos naquela região a mesma vivacidade
intelectual rabínica que havia em territórios babilônicos.
As leis de Justiniano, do século VI, voltadas às comunidades judaicas e precisamente
dedicadas em deter a circulação do conteúdo talmúdico entre as aljamas do Mediterrâneo

188
Oriental (SANCOVSKY, 2010), são evidências mais do que suficientes para afirmarmos
que essas aljamas continuavam como referências culturais para diversos outros núcleos
judaicos, submetidos ao poder romano bizantino.
Em termos de memória histórica literária, vale aqui acrescentar que, desde finais da
Idade Média, o Talmud Yerushalmi foi praticamente renegado por estudiosos e rabinos,
por considerarem tal versão incompleta ou menos profunda do que aquela produzida na
Babilônia, quase um século e meio depois. Ainda que Steinsaltz reconhecesse problemas
relativos à circulação e à produção da cultura escrita na Idade Média, concedeu lugar pri‑
vilegiado às próprias capacidades inventivas das autoridades rabínicas e lançou mão de
probabilidades sobre a circulação textual sem quaisquer referências às fontes consultadas.
Seguindo a mesma tendência de vários estudiosos do Talmud, Steinsaltz antecipa
para o século VI a proeminência do Talmud babilônico na bacia do Mediterrâneo, quando
afirma que:

[...] No período dos gueonim, frequentemente se pedia às academias da Babilônia


que fornecessem cópias do Talmud, e as primeiras cópias na Espanha foram apa‑
rentemente feitas a partir de uma versão ditada de memória por um gaon que lá
chegara. Os doutos das primeiras gerações costumavam memorizar grandes quan‑
tidades de lei oral. Certos trabalhos individuais eram largamente difundidos por
conterem amiúde ensinamentos de importância prática ou serem considerados
parte do currículo básico, mas eram raras as edições completas do Talmud. Por
exemplo, o professor de Rashi [principal Rabino Babilônico] nunca estudou o tra‑
tado Avodah Zarah [idolatria], simplesmente por nunca ter conseguido obter uma
cópia dele. Condições similares parecem ter prevalecido em muitas comunidades
judaicas em todo o mundo (STEINSALTZ, 1990, p. 102).

Apresentando alguns pontos de concordância com as ideias supracitadas, concernen‑


tes aos problemas de leitura e acesso aos textos talmúdicos no Ocidente dos primeiros
séculos medievais, o historiador Yossef Hayim Yerushalmi (1992) faz, contudo, impor‑
tantes ressalvas interpretativas. Defende de início que a História Judaica Medieval, da
forma como a concebemos hoje, dificilmente poderia ser escrita, caso não se levasse em
profunda consideração os impactos causados pelo judaísmo rabínico no Ocidente, acom‑
panhados da ampla circulação do Talmud entre as suas diversas formações comunitárias.

189
Yerushalmi chega a afirmar, inclusive, que um suposto desinteresse rabínico pelo
tempo histórico pós-bíblico, ou até pela escrita de uma História dos Judeus, adviria, pos‑
sivelmente, dos reiterados debates e estudos em torno do Talmud, cuja hermenêutica rea‑
firmava a Bíblia hebraica como experiência memorialista judaica na História: “[...] Sem
dúvida, a falta de interesse dos judeus medievais pela história escrita pode ser atribuída
em certa medida, ao impacto do Judaísmo Talmúdico, fundamento de toda a existência
e criatividade judaicas na Idade Média” (YERUSHALMI, 1992, p. 52).
O possível desinteresse dos rabinos pela história mundana, segundo Yerushalmi,
derivava, portanto, da ideia de que a Torah (Pentateuco) não representava apenas a tra‑
jetória passada dos judeus, mas também, e sobretudo, um modelo de conduta, um modus
operandi para todos os judeus. Através do texto talmúdico, defendeu Yerushalmi, muitos
rabinos reproduziam hábitos e comportamentos, fruto dos esforços de interpretação e
discussão sobre a Torah, a Mishnah, o Talmud, o Midrash, além dos comentários rabíni‑
cos já da Idade Média, ou Tossafot. A sua principal missão seria fazer dos judeus um povo
sagrado, através do “[...] estudo e cumprimento da lei escrita e oral, o estabelecimento
de uma sociedade judaica baseada totalmente em seus preceitos e ideais, e, no tocante ao
futuro, confiança, paciência e orações” (YERUSHALMI, 1992, p. 43).
Se de fato existe o reconhecimento de um “vácuo historiográfico” nas narrativas judai‑
cas a partir do judaísmo rabínico e em boa parte da Idade Média, Yerushalmi afirma ter
sido a circulação do Talmud um de seus principais vetores, consolidando-se como “lite‑
ratura-referência”, de extrema necessidade coletiva. Através dele, a herança rabínica for‑
jaria hábitos de pensamento presente e legados para as gerações futuras.
Se Yerushalmi defende a presença do Talmud no Ocidente tardo-romano e medie‑
val, qual a versão, segundo ele, mais utilizada durante os séculos VI e VII? Contrariando
as hipóteses de Steinsaltz, o autor cita a obra Ordem dos Sábios Mishnaicos e Amoraicos, de
produção anterior ao século IX. Tais escritos preocupavam-se em examinar cronologi‑
camente as chamadas cadeias de perpasse das leis e das interpretações ou comentários
rabínicos sobre as tradições veterotestamentárias.
Para Yerushalmi, a preocupação dessa obra da Alta Idade Média Ocidental em demar‑
car listagens de sábios e doutos da lei demonstra, na realidade, o grande conhecimento
genealógico que seus autores tinham sobre as gerações de líderes então responsáveis, ainda
na Judeia romana, pelas compilações dos textos da Mishnah e do Talmud de Jerusalém.

190
Assim como podemos perceber com a Ordem dos Sábios Mishnaicos e Amoraicos, a
grande maioria dos escritos judaicos europeus da Alta Idade Média é de procedência anô‑
nima e apresenta forte caráter exegético. A partir dos assuntos tratados nesses escritos,
Yerushalmi sugere, enfim, a presença de substratos orientais de cultura como predomi‑
nantes entre as comunidades judaicas mediterrâneas, reforçando, portanto, a hipótese da
incidência de intercâmbios culturais entre as aljamas da Judeia e as das diásporas ocidentais.
Caminhando por trajetórias analíticas muito semelhantes as de Yossef H. Yerushalmi,
Roberto Bonfil vem reforçar a corrente historiográfica que defende ser a cultura judaica
romana aquela de maior influxo sobre a vida judaica no Ocidente dos primeiros séculos
da Idade Média. Entretanto, enquanto Yerushalmi (1992) se apoia nos escritos exegéti‑
cos para fundamentar suas hipóteses, Bonfil (1998) estabelece outro interessante parâ‑
metro interpretativo. Trata-se da dicotomia oralidade-escrita.
Segundo ele, durante toda a Antiguidade Tardia presenciou-se, entre os judeus do
Ocidente, um fenômeno cultural já anteriormente abordado neste trabalho: a absoluta
necessidade da presença do rabino como expressão de autoridade e sabedoria, na inter‑
mediação entre o sagrado e o indivíduo. Através dessa mediação, manteve-se durante
muitos séculos a prática de retórica oral de textos ditos “legítimos” por tais autoridades.
Sabemos que, paralelamente à compilação da Mishnah (século II) e do próprio
Talmud Yerushalmi (século IV), a tradição oral obteve amplo espaço de atuação no âmago
da cultura rabínica. Muito dessa oralidade desdobrou-se na transmissão de textos de
caráter místico ou mágico, característicos das tradições palestinas, principalmente no
tocante ao reverenciamento dos chamados “sábios ou doutos da lei”, como Akiva, Gamaliel,
Hillel, Shamai, entre outros.
Bonfil propõe, nesse sentido, que muitas das práticas de leitura e oralidade ado‑
tadas por judeus do Ocidente mediterrâneo decorreriam da “[...] forte influência do
substrato de cultura palestina ao qual é correto atribuir uma boa parte desses livros”
(BONFIL, 1998, p. 196).
É importante, também, nesta conjuntura de análise, destacar o problema que envol‑
via a compreensão desses textos. Provavelmente, a tradição oral como herança da Judeia
romana obteve êxito durante muitos séculos. Não eram poucos os ouvintes que sequer
podiam compreender o hebraico ou o aramaico, idiomas comumente apresentados na
literatura e liturgias rabínicas.

191
Sob perspectiva de formação de novas hierarquias sociais e redes ativas de sociabili‑
dade, tornava-se cada vez mais premente, senão indispensável, em um ambiente de cres‑
cente ruralização, mas de clara resistência da vida urbana, que o rabino e sua sinagoga
estivessem presentes. Poderia ele transmitir, com seus conhecimentos, conteúdos que
julgasse “adequados” ou “propícios” àquela congregação94.
Nesse sentido, Roberto Bonfil (1998) afirma que não foram escassos os casos em que,
durante as cerimônias de celebração da Páscoa judaica (Pessach), usualmente realizadas
em ambiente doméstico e familiar, a Sinagoga foi utilizada como solução para um grande
impasse. Poucos membros da comunidade sabiam recitar a Haggadah, livro de narrativas
e memórias do êxodo egípcio, em hebraico. Assim, durante os rituais de comensalidade
coletiva, a sinagoga tornou-se, em muitos lugares do Mediterrâneo, o locus preferencial
de celebração festiva.
Somente a partir do século IX, com o processo mais substancial de urbanização das
comunidades da Europa Ocidental, veremos uma forte difusão do Talmud da Babilô‑
nia, em substituição às tradições jerusolimitas de oralidade. E, já no século XI, tanto a
alfabetização comunitária quanto o acesso aos textos sagrados, problemas recorrentes
durante a Alta Idade Média, foram praticamente extintos em grande parte das aljamas
(BONFIL, 1998, p. 202).
Nesse processo de circularidade e trocas culturais, o rabino passa a representar a
autoridade que definiria, em função da carência de informações de sua comunidade, os
chamados “protocolos de leitura” (CHARTIER, 1996). Seus encargos sociais adquiriam
maior expressividade, na medida em que ele aglutinava a reprodução das tradições orais
vindas do Oriente romano ou babilônico ao importante papel de decifração ou mesmo
de decodificação dos conteúdos escritos da cultura judaica.
Ancorando-nos nos pensamentos de Stuart Hall (2014), ao discutirmos o surgi‑
mento das inéditas culturas sinagogais na bacia do Mediterrâeno tardo-antigo entre os
séculos II e V, devemos compreendê-las, portanto, como loca de construção de identi‑
dades polisssêmicas.

94  É fundamental destacar que a permanência de tradições orais no seio das aljamas ocidentais não signi‑
ficava, contudo, um processo de analfabetismo coletivo. Antes, pelo contrário, neste período muitas esco‑
las rabínicas surgem no Ocidente Medieval, garantindo a uma parcela da comunidade o contato, via escrita,
com textos sagrados.

192
Assim como se revelam nos próprios ritmos, complexidades e incompletudes dos
textos rabínicos (LEVINAS, 2003), as chamadas culturas sinagogais traduzem-se como
signos de diferença, de busca por uma homogeneidade improvável e também pela exclu‑
são. Definem-se identitariamente menos pelo sentido tradicional das chamadas unidades
orgânicas ou idênticas do que por suas digressões interpretativas sobre os escritos rabí‑
nicos e os usos/condutas sociais a serem tomados com base em tais digressões.
Se, assim como já propôs Hall (2014, p. 109-110), toda identidade é construída
pelo signo da diferença, as literaturas rabínicas tardo-romanas de natureza talmúdica e
midráshica não podem ser estudadas e analisadas, ao combinarem-se ao universo sinago‑
gal, pelo viés da uniformidade, ou da “mesmidade”. As comunidades por que circulavam
suas leituras, ainda que respaldadas em autoridades rabínicas locais, exibiam dinâmicas
e poderes sociais igualmente polissêmicos. Suas variadas falas mostram, antes, a necessi‑
dade de diferenciação em relação ao coletivo. Revelam igualmente suas escolas interpre‑
tativas, genealogias e escolas rabínicas antagônicas, além das múltiplas faces discursivas
da diferença dentro do que se convencionou denominar “judaísmo rabínico”.

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196
A retórica dos espaços no Império cristão:
as construções religiosas de Justiniano
na literatura tardo-antiga95
Lyvia Vasconcelos Baptista

Introdução

Dentro da reflexão sobre “religiosidades” no Império Romano Tardio e da preocupa‑


ção bastante pertinente em explorar os elementos que auxiliam a pensar a experiência
do sagrado de uma forma plural, este capítulo apresenta a problemática do espaço trans‑
formado em discurso, no contexto das fundações e reformas de edifícios religiosos no
século VI. O objetivo principal é perceber como o relato das construções de igrejas e san‑
tuários, por toda a extensão de um império governado por Justiniano, veicula um con‑
junto de sentidos muito rico, que passa longe da simples descrição da realidade material.
O século VI é frequentemente compreendido como o ponto culminante de um perío-
do marcado por intensa transformação do espaço cristão, como sugere o trecho abaixo:

Note-se que São Mócio foi originalmente construída por Constantino, o Grande
(324-37), quando um grande número de pagãos viviam naquela área. E havia um
templo de Zeus lá, no lugar onde <e com aquelas pedras> ele construiu a Igreja. Ela
entrou em colapso no reino de Constâncio (337-61), durante o seu terceiro con‑
sulado (342). Na época de Teodosio, o grande (379‑95), os arianos foram expul‑
sos das igrejas sagradas e, se dirigindo para a igreja de São Mócio, quiseram ela e
pediram ao imperador permissão para ficarem lá, o que de fato aconteceu. Então,

95  Agradeço aos organizadores deste volume pela oportunidade de contribuir com o esforço de repen‑
sar a pluralidade religiosa no Império Romano, especialmente à Profa. Érica Cristhyane Morais da Silva
pelo convite.

197
os arianos imediatamente reconstruíram essa mesma igreja, que foi utilizada por
eles para os serviços divinos por sete anos. Ela foi destruída, como relatamos, no
sétimo ano quando eles estavam celebrando a liturgia; e nela muitos arianos foram
mortos. Mas no tempo do imperador Justiniano (527-65) a mesma igreja foi recons‑
truída, tal como está até hoje.

O fragmento foi retirado do parágrafo inicial da Parastaseis Syntomoi Chronikai96,


cujo manuscrito data do século XI. Na tradução de 1984, elaborada por Averil Cameron
e Judith Herrin, as editoras chamam a atenção para o caráter instigante e problemá‑
tico da obra. As dificuldades de compreensão do texto (bastante repetitivo e por demais
incompleto) e a falta de clareza das circunstâncias de elaboração colocaram a Parastaseis
numa posição desprivilegiada no debate acadêmico97, que sempre abordou com suspeita
esse “guia turístico de curiosidades de Constantinopla”98. Por outro lado, provavelmente
escrita no século VIII, a Parastaseis comporta uma série de valiosas referências ao mundo
cultural bizantino de um período sobre o qual temos poucos documentos literários,
além de informar sobre o desenvolvimento da arquitetura urbana da capital do Império
(CAMERON; HERRIN, 1984, p. 1).
Notadamente, o documento informa que a igreja de São Mócio passou por algu‑
mas transformações desde o período de sua construção, tendo alcançado apenas durante
o governo de Justiniano a sua forma final. Entre os anos 527 e 565, Constantinopla e
as regiões ao redor passaram por um bem-sucedido programa de construção imperial.
Justiniano reformou e levantou muralhas e fortalezas, hospícios, palácio suburbanos,
prédios públicos, aquedutos e cisternas, estradas, banhos e monumentos, mas, princi‑
palmente, igrejas e santuários, em diversas partes do Império. Muitas dessas construções
ainda podem ser encontradas, principalmente na antiga capital do Império, a Istambul

96  Segundo os comentários de Averil Cameron e J. Herrin (1984, p. 1-25), a Parastaseis é uma fonte
importante para a discussão das atitudes medievais com relação à capital cristã e seu passado pagão. É pos‑
sível afirmar que foi um trabalho de grupo, devido à falta de homogeneidade textual e muitas repetições
dos tópicos tratados. Os compiladores parecem ter sido um grupo de funcionários do século VII ou início
do VIII, devido à preocupação com a temática da idolatria.
97  Recentemente, esforços têm sido feitos para divulgar uma análise mais elaborada da obra como pro‑
duto literário e fonte de informação histórica, a exemplo do artigo de Benjamin Anderson (2011).
98  Referência à interpretação de Cyril Mango (1963, p. 60).

198
moderna. O nível da técnica e da inovação arquitetônica empregado é frequentemente
ressaltado como uma das realizações mais positivas do “período justiniânico” e, para auto‑
res como James Evans (2005, p. 59), “a arquitetura do Império Bizantino nunca alcan‑
çou tais níveis novamente”.
O fragmento da Parastaseis deixa claro que a construção de igrejas não é uma novi‑
dade no século VI. Um dos tópicos bastante explorados no estudo sobre as relações entre
a Igreja e o Estado bizantino, desde a transformação da antiga colônia grega em capital do
Império, é a atividade construtora dos seus governantes. Gregory Armstrong (1967, p. 5),
num dos textos sobre as construções religiosas realizadas entre os anos de 313 e 363, res‑
salta que séculos antes muitos imperadores ficaram conhecidos como grandes construto‑
res, a exemplo de Adriano, Trajano, Tibério, Domiciano, Antonino Pio, Marco Aurélio,
Diocleciano, Galério, Maxêncio e Licínio. O autor defende a ideia de que Constantino
teria um plano arquitetônico em mente que exprimia o objetivo de transformar a cidade
no centro religioso do Império. A denominação “basílica” para as igrejas construídas pelo
imperador indicaria o uso das construções religiosas para fins políticos, já que o termo
sugere que “elas eram edifícios oficiais, possuidoras de um status legal e função comparável
e mesmo derivada daquela estabelecida na legislação de Constantino sobre essas questões,
como por exemplo o papel civil-judicial dos bispos [...]”; assim, as igrejas se tornaram cen‑
tros administrativos, jurídicos e de propaganda imperial99 (ARMSTRONG, 1967, p. 9-10).
Considerar em demasia um “plano arquitetônico” balizando as ações de Constan‑
tino pode levar a algumas interpretações precipitadas. Bryan Ward-Perkins (2012, p. 60)
compara as construções entre Roma e Constantinopla e afirma não haver evidência que
Constantino considerasse esta altera Roma um centro cristão importante, pelo fato de ter
concentrado suas construções eclesiásticas na parte oriental do Império e na Terra Santa.
Somente nos séculos IV e V vemos o aparecimento de igrejas suntuosamente decoradas
na nova capital, e a “primazia de Constantinopla sobre Roma100 com relação à constru‑

99  Deno Geanakoplos (1966, p. 173), imerso na discussão sobre o “cesaropapismo”, ressalta a raiz comum
dos termos basilica e basileus, afirmando que muitas razões contribuíram para a adoção desse tipo de constru‑
ção na época de Constantino, principalmente porque sua forma parece melhor adaptada para acompanhar
o crescimento das congregações cristãs daquele período; e, no Oriente helenístico e na Roma pagã, a estru‑
tura alongada, retangular com colunatas no interior, já havia sido o padrão da arquitetura governamental.
100  Bryan Ward-Perkins compara Roma e Constantinopla, considerando os elementos que eram com‑
partilhados por suas experiências religiosas. Sobre o culto aos santos, por exemplo, esclarece o autor,

199
ção de igrejas só foi conclusivamente estabelecida por Justiniano, quando ele reformou
Santa Sofia” (WARD-PERKINS, 2012, p. 77).
Assim, seria apenas com Justiniano que um programa sistemático de construções na
capital e fora dela teria de fato sido concebido como política imperial. As ações de Justi‑
niano foram, por seus próprios escritos, justificadas pela necessidade de restauração ter‑
ritorial e unificação religiosa. No texto Constitutio Deo auctore, presente no seu código de
leis, o imperador afirma estar governando sob a autoridade de Deus, um Império que “[...]
foi entregue a nós pela Sua Majestade Celestial, nós guerreamos com sucesso, adornamos
a paz, restauramos a estrutura do estado, e assim, elevamos nossas mentes na contempla‑
ção do auxílio da onipotente divindade [...]” (Constitutio Deo auctore, Corpus Iuris Civilis).
Não apenas na obra jurídica do imperador, mas em outras fontes do período, encon‑
tramos as mesmas referências. Flávio Coripo (século VI) informa que, quando Justi‑
niano morreu, não mudou de cor, “mas continuou brilhando com a sua luminosidade
usual. A morte impressionante do homem mostrava por meio de sinais claros que ele
tinha conquistado o mundo” (In laudem Iustini Augusti minoris, I, 240). Outro escritor do
século VI, Paulo, descreve a igreja de Santa Sofia após a restauração determinada pelo
imperador, saudando-o por esse feito, e não apenas “[...] porque ele adequou seu jugo
aos domínios da terra, nem porque ele ampliou os imensuráveis espaços de seu trono
para além das fronteiras ultra periféricas [...]” (Paulus Silentiarius, Descriptio sanctae
Sophiae magnae ecclesiae, 135-150).
O esforço de restauração e reconquista dos territórios que, no passado, os antigos
romanos “[...] perderam por sua negligência” (Novelas, 30.11.2) pode ser associado a uma
espécie de projeto arquitetônico e imagético de propaganda imperial encabeçado por Jus‑
tiniano. Assim, a construção de edifícios grandiosos para reproduzir elementos cristãos
na capital e em diferentes regiões do Império seria parte importante desse plano político.
A impressiva atividade construtora do imperador no século VI é uma questão que
mobiliza análises em áreas diferentes. Segundo Cyril Mango (2004), desde o governo de

Constantinopla parece ter superado a velha capital algum tempo depois da sua fundação. No século VI,
acompanhamos a adoção da Virgem Maria como patrona de Constantinopla. Segundo o autor, “Ela foi,
obviamente, uma intercessora particularmente bem colocada, e seu corpo não estava disponível a nenhuma
outra cidade, já que se aceitava que ela, como Cristo, ascendeu diretamente ao céu. Ela deixou, entretanto,
na terra algumas relíquias especiais – seu vestido e seu cinto – ambos reclamados por Constantinopla”
(WARD-PERKINS, 2012, p. 62).

200
Teodósio (379-395), Constantinopla já estava ornamentada com um número considerá‑
vel de igrejas, com destaque para aquela de Santa Maria de Calcoprateia e a de São João
de Estúdio. No governo de Justiniano, as construções de uso religioso e de caridade se
sobressaíram àquelas de caráter civil ou cívico, como as salas de reunião, pórticos, termas
e teatros. Se havia apenas quatorze igrejas no final do século IV e início do V, um século
mais tarde pelo menos cinquenta poderiam ser encontradas na capital.

Essa multiplicação de igrejas não está limitada somente a Constantinopla, é um


fenômeno complexo que demanda uma investigação aprofundada. Basta observar
que a construção de igrejas perdeu toda a ligação com as necessidades litúrgicas e
pastorais da comunidade: se construía para abrigar uma relíquia, para dar graças
por um voto realizado, por razões financeiras, seguramente por razões de prestí‑
gio, como no caso da riquíssima dama Anicia Juliana que, logo antes do advento de
Justiniano, construiu sobre a sua propriedade a majestosa igreja de São Polyeucte,
a mais barroca e uma das maiores de Constantinopla [...] (MANGO, 2004, p. 52).

Os sucessores imediatos de Justiniano, como Justino II, Tibério, Maurício e Focas,


continua o autor, também construíram edifícios públicos e igrejas na capital e nas provín‑
cias, mas “[...] a obra de Justiniano em Constantinopla marca, sobretudo, uma mudança
que anuncia a Idade Média” (MANGO, 2004, p. 52), por todas as suas características téc‑
nicas e culturais.

201
As construções religiosas de Justiniano na historiografia do século VI

A atividade construtora de Justiniano não passou despercebida pelos autores que esta‑
vam escrevendo sobre o seu governo, como Procópio de Cesareia101, Agatias de Mirina102
e João Malalas103.
Agatias inicia a sua narrativa apresentando uma visão muito positiva do governo de
Justiniano a partir de uma reflexão geral. Segundo o autor: “Honra e sucesso são realmente
os culminantes naturais das vitórias e troféus militares, da reconstrução e embelezamento
das cidades, bem como de todas aquelas ações grandiosas e maravilhosas” (Agath. Hist.,
praef., I). As Histórias de Agatias prosseguem, relatando principalmente as ações militares

101  Conhecemos três trabalhos cuja autoria é remetida a Procópio de Cesareia: História das guerras (Hyper
ton polemōn logoi), História secreta (Anekdota) e Sobre os edifícios (Ktismata). Os escritos tratam das atividades do
imperador Justiniano de forma muito controversa. A primeira obra, dividida em oito livros, descreve as expe‑
dições e campanhas militares do exército imperial contra os povos considerados bárbaros. Os dois primeiros
livros acompanham as rivalidades com os persas, durante os anos de 257 a 549. Os livros III e IV narram as
campanhas empreendidas, entre 533 e 534 contra os vândalos. As campanhas contra os ostrogodos, na Itália,
entre os anos de 536 e 540 compõem o assunto dos livros V, VI e VII. O livro VIII apresenta uma peculiar
configuração, uma vez que descreve os acontecimentos entre os anos de 550 a 553, abandonando as unidades
de sentido militares, adotadas nos sete primeiros. Já a História secreta, o trabalho mais polêmico, se propõe a
relatar os eventos descritos na obra anterior, apresentados sob um ponto de vista diferente, atribuindo uma
carga negativa às ações de Justiniano, Teodora, Belisário e Antonina. A composição Sobre os edifícios é con‑
siderada quase um panegírico, apresentando a atividade construtora e benevolente do imperador Justiniano.
102  Agatias nos informa que nasceu em Mirina e esteve em Alexandria na época de um grande terremoto
(Histórias, II.15.5-7). Segundo Averil Cameron (1970, p. 1-2), se o historiador tinha aproximadamente vinte
anos quando começou seus estudos jurídicos, e a sua mudança se deu aproximadamente na época do ter‑
remoto mencionado, portanto, em 551, ele deve ter nascido por volta de 532. Entre suas obras conhecidas,
contam-se: nove livros de poesia em hexâmetros, denominados Daphniaca, e alguns epigramas com temas
tradicionais, como amor e amizade (sua compilação é usualmente denominada Cyclo). Agatias também escre‑
veu uma História dos acontecimentos de seu período, continuando a obra de Procópio, História das guerras.
103  João Malalas é reconhecido por sua habilidade de cronista, sendo considerado pela historiografia como
um dos principais autores do século VI. A avaliação sobre o seu trabalho posiciona a Cronografia como um
modelo seguido pelos autores que o sucederam no mesmo gênero. Elizabeth e Michael Jeffreys, juntamente
com Roger Scott (1985, p. xxiii), na tradução que elaboram da obra de Malalas, afirmam que, aparentemente,
esta circulou em duas edições. A original teria alcançado o final do livro 17 e foi conhecida em Antioquia no
início de 530. A versão atualizada ampliou a crônica até os eventos do governo de Justiniano, adicionando o
livro 18, quando percebemos uma mudança de cenário e ponto de vista, de Antioquia para Constantinopla.

202
dos godos contra os exércitos imperiais. No Livro 5, a descrição do impacto social e mate‑
rial provocado pelo terremoto que atingiu Constantinopla, em dezembro de 557, chama a
atenção por sua riqueza de detalhes. O autor informa, desde as primeiras sensações do tre‑
mor, que ele próprio sentiu as tentativas eruditas ou não de explicar o evento, até perda
de bens e vidas na capital (Agath. Hist., V.3-9). Ao final, afirma, as pessoas continuaram
sentindo os tremores, mesmo que eles tivessem cessado, tal foi o choque emocional pro‑
vocado por aquela “calamidade” (Agath. Hist., V.9.1). Diante da destruição dos edifícios
na cidade, Agatias informa que o imperador Justiniano restaurou vários prédios públicos,
dando atenção especial a Santa Sofia. Como resultado do terremoto, a igreja perdeu o seu
domo, que tinha sido anteriormente reparado e ampliado. Os esforços de restauração envol‑
veram uma nova técnica de construção, a fim de dar maior sustentação aos arcos. Agatias
(Hist., V.21.2) também menciona a cidade de Prima Justiniana, na Iliria, cidade natal do
imperador, que foi por este adornada com uma “variedade de esplêndidos edifícios públicos”.
De forma mais direta que Agatias, João Malalas descreve em vários momentos as
ações de construção e reforma ditadas pelo imperador. Seu livro XVIII, dedicado ao tempo
do reinado de Justiniano, começa com uma referencia rápida aos anos de governo, à apa‑
rência física do imperador e seus interesses ideológicos104. Diferentemente do padrão
narrativo do livro XVII, dedicado ao governo de Justino, cuja primeira atividade impe‑
rial informada foi organizar o corpo administrativo do Império, chamando do exílio
alguns patrícios e senadores, a primeira ação destacada de Justiniano foi a indicação
de um comes Orientis em Antioquia, em 527, enviado especialmente para reconstruir
a cidade de Palmira, na Fenícia, “com igrejas e banhos públicos” (Chronica, XVIII.2).
Em seguida, informa o autor, o governo reconstruiu Martirópolis, mudando o nome
da cidade para Justinianópolis, dotando-a de muralhas e colunatas novamente (Chron.,
XVIII.5). Algumas referências aparecem para a reconstrução de aquedutos, reserva‑
tórios e banhos públicos (Chron., XVIII.17, 33, 71); uma ponte de madeira sob o rio
Sangarios (Chron., XVIII.130); a restauração de cidades nas províncias orientais, depois
dos terremotos (Chron., XVIII.112); além da menção à restauração do domo da Santa
Sofia (Chron., XVIII.128) e a sua ampliação posterior (Chron., XVIII.143).

104  Malalas (XVIII.1) informa que o imperador “na aparência era baixo, robusto, com um bom nariz, a
pele clara, cabelos encaracolados, rosto redondo, bonito, com entradas no cabelo, uma tez corada, com cabelo
e barba grisalhos; ele era magnânimo e cristão. Favorecia a facção dos Azuis. Era um trácio, de Bederiana”.

203
A referência positiva das ações de Justiniano e a importância atribuída aos seus
esforços de (re)construção na capital e províncias do Império aproximam a interpre‑
tação feita das obras destes autores de um tipo de divulgação oficial do projeto de Jus‑
tiniano105. Nenhum autor, entretanto, foi mais associado ao discurso de governo do
que Procópio de Cesareia por uma de suas obras. O escrito Sobre os edifícios (Ktismata)
apresenta uma longa tradição de análises e interpretações106. Das obras procopianas,
é o livro que mais aparece em estudos dedicados às evidências arqueológicas inseri‑
das nas fontes textuais, embora a precisão dos dados ali contidos seja, frequentemente,
questionada, considerando o argumento de sua forte vinculação com o poder imperial.
A obra é um verdadeiro panegírico ao imperador, ressaltando sua habilidade de ben‑
feitor ao promover construções importantes aos seus súditos, sendo apresentada de
forma laudatória e, portanto, repleta de elogios e listas imprecisas de trabalhos de cons‑
trução/restauração realizados na capital do Império e nas regiões próximas (SARADI,
2006, p. 71). As investigações têm mostrado os problemas das informações contidas
na obra, resultado, algumas vezes, não do erro, mas da falta de detalhe ou excesso de
informações incompletas. Importa ressaltar que o próprio autor menciona os limites
do seu trabalho no final do texto. Segundo Procópio (VI.7.18), a obra sobre as cons‑
truções de Justiniano foi elaborada com o máximo de habilidade, entretanto, “estou
completamente consciente que existem muitas outras [construções] que eu não men‑
cionei ou que passaram despercebidas por causa de seu grande número, ou permane‑
ceram totalmente desconhecidos para mim”.

105  Ver, por exemplo, o trabalho de Averil Cameron e Alan Cameron (1966), sobre a obra poética de
Agatias, o artigo de Roger Scott (1985) sobre a relação entre a História secreta, de Procópio, e a Cronografia,
de João Malalas, com o imperador. Mais recentemente, Michael Whitby (2001) revisou os argumentos de
alguns autores que aproximam ou distanciam o conteúdo da obra procopiana da propaganda política de
Justiniano. Segundo Warren Treadgold (2007, p. 732), seguramente Malalas teria copiado informações de
outras obras, principalmente de Eustátio de Epifânia, e adicionado alguns detalhes irreais com um obje‑
tivo literário de levar o leitor a pensar que ele tinha fontes adicionais e um propósito profissional de con‑
seguir uma promoção no corpo burocrático do Império, veiculando, portanto, um tipo de propaganda
positiva do imperador.
106  Já no I Congresso Internacional de Estudos Bizantinos, realizado em Bucareste, no ano de 1924, vemos,
na seção sobre historiografia bizantina, a obra sobre as construções de Justiniano aparecer como único livro
de Procópio a ocupar um lugar na mesa de comunicações. O texto, elaborado por M. N. Vulic, tinha como
título: “Parle des Quelque noms de lieu chez Procope (De aedificiis)” (1925).

204
No escrito Sobre os edifícios, Justiniano é caracterizado como um governante que
assumiu o poder quando o Império estava em desordem e tornou-o muito maior terri‑
torialmente e muito mais notável107. A obra é um contraponto importante na avaliação
da imagem imperial divulgada por Procópio. Ao contrário das críticas encontradas na
História secreta de forma tão evidente e, de forma mais indireta, na História das guerras,
em Sobre os edifícios Justiniano é um governante preocupado em fortificar as frontei‑
ras, construir e reconstruir cidades, oferecendo segurança e conforto aos seus súditos.
Para Helen Saradi (2006, p. 72), o propósito de Procópio, ao enfatizar a atividade de res‑
tauração, não era encontrar as causas do declínio das construções urbanas, como já foi
sugerido, mas tão somente destacar a magnificência do programa de Justiniano. Mesmo
com as limitações de abordagem do objeto que um panegírico poderia acarretar, a obra
é essencial para a investigação das prioridades do urbanismo no século VI. Vemos, por
exemplo, que a principal “prioridade do programa de restauração justiniânico, como ele
emerge do Sobre os edifícios de Procópio, era com a segurança da cidade” (SARADI, 2006,
p. 73), reformando muros para defesa, construindo fortalezas em cidades estratégicas e,
algumas vezes, realocando cidades inteiras para lugares cuja defesa natural era possível.
O elemento religioso recebe grande destaque na descrição das atividades do impe‑
rador108. Procópio informa que a igreja chamada “Sofia” foi queimada com a permissão
de Deus, que tinha planos muito mais grandiosos, realizados por Justiniano (que deter‑
minou sua forma final). Segundo Procópio (De aedificiis, I.1.22-25), os cristãos teriam
rezado para a igreja ser destruída se soubessem o que no futuro se faria com a sua estru‑
tura, “um espetáculo de maravilhosa beleza”. Da mesma forma, o imperador teria restau‑
rado a igreja chamada “Eirienê”, que foi queimada por sua proximidade com a Grande
Igreja (Santa Sofia) (De aedificiis, I.2.13).
Próximo ao seu palácio, na capital, Justiniano teria construído a igreja de Pedro e
Paulo e um santuário para os santos Sérgio e Baco, duas construções que se igualavam
em beleza e porte. Elas compartilhavam a mesma entrada, mas se diferenciavam quanto à

107  Segundo Procópio (De aedificiis, I.1, 6): “Na nossa época nasceu o imperador Justiniano, que, assu‑
mindo o Império quando ele estava assediado pela desordem, não fez somente ele maior em extensão, mas
também muito mais notável”.
108  Procópio (De aedificiis, V.8.10-38) dá grande atenção às igrejas e santuários construídos no Império
por Justiniano e informa também, no final da obra, uma lista dos mosteiros restaurados em Jerusalém, na
Fenícia e na Mesopotâmia.

205
estrutura, “pois o longo eixo (mêkos) de uma delas é construído de forma linear, enquanto
na outra igreja as colunas representam a maior parte em um semicírculo (hêmikyklos)”
(Proc. De aedificiis, I.4.6). Essas duas igrejas, afirmava o historiador, eram tão admirá‑
veis “que elas manifestadamente formaram e adornaram toda a cidade, e não meramente
o palácio” (Proc. De aedificiis, I.4.8). Procópio segue a narrativa apontando as igrejas e
santuários que foram erguidos ou restaurados em Constantinopla, mas afirma que “enu‑
merar todos os edifícios sagrados que foram construídos pelo comprimento e largura
de todo o império romano é uma tarefa difícil, ou melhor, completamente impossível”
(Proc. De aedificiis, I.9.17), pois, além da reconstrução dos edifícios religiosos da capi‑
tal, o imperador teria construído várias igrejas para a Mãe de Deus109 em todas as par‑
tes do seu território, “igrejas tão magníficas e tão grandes e erigidas com tal desembolso
generoso de dinheiro, que se alguém visse uma delas somente, suporia que o impera‑
dor tivesse construído aquele único trabalho e gastado todo o tempo do seu reino [...]”
(Proc. De aedificiis, I.3.2)110.
A qualidade de ser magnífico e, portanto, “admirável” aparece frequentemente asso‑
ciada aos edifícios religiosos no período de Justiniano, quando consideramos as fontes
do século VI e dos períodos posteriores. Richard Kieckhefer (2004, p. 10) afirma que,

109  John Cotsonis (2002) apresenta um conjunto iconográfico que associa Justiniano à Virgem Maria.
Segundo o autor, a imagem do imperador e da Mãe de Deus nos selos bizantinos tem um significado muito
particular, porque envolve a relação entre a responsabilidade jurídica e a proteção divina.
110  Em outra obra, o historiador usa esse mesmo argumento para criticar a política de Justiniano pelos gas‑
tos excessivos em algumas construções (observe-se que não há uma crítica a todo o projeto imperial). Segundo
o autor, “esse Justiniano, quando o tio Justino assumiu o poder imperial, encontrou os cofres do Estado reple‑
tos de dinheiro, pois Anastácio, que foi o mais precavido e também o melhor administrador dentre todos
os imperadores, temeroso que ocorresse exatamente o que aconteceu, que aquele que o sucedesse ao trono
deixasse os cofres escassos, roubando seus súditos, colocou ouro em abundância no tesouro antes de morrer.
Todo esse dinheiro Justiniano o dilapidou, seja em construções perto do mar que careciam de qualquer sen‑
tido; seja para mostrar a sua amizade com os bárbaros” (Proc. História Secreta. XIX.4-6). De qualquer forma,
assim como era recorrente na tradição literária clássica a associação de líderes com a atividade de construção
e embelezamento urbano, também é comum encontrarmos críticas aos imperadores por essa mesma ativi‑
dade, já que fatalmente envolvia grandes recursos humanos e materiais. Lactâncio (De Mortibus Persecutorum,
7) julga Diocleciano (244-311) também por sua “paixão sem fim pela construção”, levantando por todas as
províncias muralhas, circus, casas de trabalhos, suporte para a guerra e casas para sua esposa ou filha, deixando
sem moradia as pessoas que viviam antes no território escolhido. Depois de pronto o empreendimento, mui‑
tas vezes era demolido pela ordem do próprio imperador, que começava um novo projeto.

206
para entender o papel das igrejas numa comunidade segundo um estudo que articule os
saberes da Ciência da Religião, da Arquitetura e da História, é preciso dar atenção a duas
questões primordiais, a partir das quais outras emergem: 1) como esses espaços sagra‑
dos eram usados? e 2) que tipo de reação eles provocam? Para responder, o autor toma a
igreja de Santa Sofia como um dos estudos de caso e aborda quatro pontos principais: a
dinâmica espacial das igrejas, seu centro focal, sua ressonância simbólica e seu impacto
estético. O caráter estético dessas construções se relaciona com o seu propósito de servir
como metáfora da presença do divino, numa realidade material.
A importância estética das igrejas é apenas um dos elementos que a descrição deta‑
lhada de Procópio sugere. O autor informa sobre a construção de igrejas em algumas
regiões específicas fora da capital. Na cidade de Zenóbia, onde flui o rio Eufrates, o impe‑
rador teria construído muralhas e fortalezas para a proteção dos súditos contra os persas,
mas também igrejas e outros edifícios (Proc. De aedificiis, II.8.24). Em outra cidade, cha‑
mada Eufratésia (na estrada de Palmira), existia uma igreja dedicada a São Sérgio, a par‑
tir da qual se formou uma aglomeração urbana no passado, parcamente protegida contra
os sarracenos. Com o tempo, essa igreja passou a receber muitos tesouros, tornando-se
poderosa e celebrada. O imperador, considerando essa nova posição do santuário, resol‑
veu dar maior atenção àquele território, protegendo a igreja e a cidade com uma robusta
muralha. Khusro, o rei dos persas, teria feito um enorme esforço, sem sucesso, para cap‑
turar a cidade, como informa Procópio (De aedificiis, II.9, 3-9). Nesse caso, a igreja serve
mesmo como ponto articulador de toda a estrutura urbana e é ela que determina a aten‑
ção do imperador demandada para a região.
Duas passagens da obra procopiana sugerem caminhos interpretativos muito seme‑
lhantes ao retratarem a importância da construção de igrejas em regiões recém-converti‑
das ao cristianismo. Inicialmente, o historiador informa que um grupo do sul do Cáucaso,
os tzani, vizinhos dos armênios, levava uma vida selvagem, considerando árvores e pás‑
saros como deuses, mas, no contexto das guerras de Justiniano contra os bárbaros, eles se
tornaram súditos do Império, adotando o cristianismo e um estilo de vida mais brando.
Segundo Procópio (De aedificiis, III.6.12), para evitar que os tzani retomassem os hábi‑
tos originais, o imperador construiu uma igreja, possibilitando que eles fizessem devida‑
mente os sacramentos, pois deveriam lembrar “que eram seres humanos”.
Na Líbia, Procópio (De aedificiis, VI.2.15) informa que existiam duas cidades com o
mesmo nome, cujos habitantes “preservaram as práticas da Antiguidade, pois eles tinham

207
sofrido a doença do politeísmo até o presente”. Nos tempos antigos, informa o historiador,
havia templos dedicados a Amon e Alexandre da Macedônia, tendo os nativos o costume
de realizar sacrifícios ainda. Por esse motivo, Justiniano não apenas forneceu meios de pro‑
teção para a cidade, mas acima de tudo estava preocupado em salvar aquelas almas. Assim,
ele tornou toda a população cristã e construiu para eles uma igreja dedicada à Mãe de Deus
“para ser a guardiã da segurança das cidades e da verdadeira fé” (Proc. De aedificiis, VI.2.18-20).
O historiador revela, como narrador, somente a intenção de Justiniano em converter
e assegurar o cumprimento litúrgico do cristianismo nas regiões conquistadas e conver‑
tidas, mas parece informar mais do que isso, quando damos atenção a determinada pas‑
sagem anterior a esta. O autor informa que, entre os dardanianos que viviam próximo de
Bederiana, havia um que considerava o imperador um “fundador do mundo civilizado”.
Teria sido perto de onde vivia esse grupo que Justiniano construiu a cidade de Justiniana
Prima, dotando-a de muros, aquedutos e algumas igrejas e tornando-a grande, populosa
e abençoada em todos os aspectos (Proc. De aedificiis, IV.1.17-24). Provavelmente, uma
cidade modelo de um “padrão cultural” espalhado pelas guerras de (re)conquista.
Não apenas a cidade de Justiniana Prima se torna um espaço protegido por Deus, mas,
segundo a narrativa de Procópio (De aedificiis, V.6.16-21), todo o esforço de Justiniano é
coroado pelos desígnios divinos. O autor afirma, por exemplo, que, embora todas as cons‑
truções fossem realizadas pela força e habilidade humanas, em algumas ocasiões o impe‑
rador teria se beneficiado unicamente da fé, sendo diretamente ajudado por Deus, como
no caso específico da construção de uma igreja cujas colunas não eram adequadas para
a beleza do empreendimento e não podiam suportar o peso que ficava sobre elas. Justi‑
niano teria ficado impaciente com essa impossibilidade, mas Deus imediatamente revelou
um suporte natural de um tipo de pedra perfeitamente adequada para aquele propósito.
A construção das igrejas, dessa forma, deixa de ser uma mera utilização do espaço e a
arquitetura religiosa assume aspectos simbólicos que nos informam sobre os seus supos‑
tos sentidos e metáforas.

Considerações finais

As obras de Agatias, Malalas e Procópio instigaram um conjunto investigativo interes‑


sado em precisar a real vinculação dos conteúdos de seus escritos com a propaganda

208
política de Justiniano. Essa problemática norteou grande parte da leitura desses auto‑
res, principalmente no caso de Procópio, devido à especificidade de sua produção: três
obras aparentemente muito distintas sobre o reinado de Justiniano. Na verdade, esse
tema não deixa de ser relevante, mas acaba escondendo uma rica gama de elementos
que podem ser discutidos com base no material documental. O objetivo deste capítulo
foi, longe de determinar que tipo de propaganda oficial é veiculada nos textos bizanti‑
nos do século VI, explorar os caminhos retóricos utilizados para apresentar um contexto
cultural específico a partir da percepção do espaço arquitetônico cristão. Claramente, as
obras se relacionam com o poder imperial. É sobre ele que tratam e é com um público
de súditos do imperador que primeiramente dialogam. Mas, acima de tudo, nas Histó-
rias, Cronografia e Sobre os edifícios, vemos a transformação do espaço em discurso, e essa
é uma perspectiva interessante.
Duas observações, com jeito de hipóteses, podem ser feitas para concluir a discussão
feita ao longo deste texto. Em primeiro lugar, as três obras, apesar das suas diferenças
de estilo literário, apresentam a importância das construções no governo de Justiniano
e, principalmente, a urgência desse programa num período de profundas transforma‑
ções religiosas, expansão territorial e problemas com catástrofes naturais, tal como os
terremotos que abalaram muitas regiões. Independentemente da aprovação da política
imperial e do projeto de reconquista, Procópio, Agatias e Malalas relatam a (re)funda‑
ção desses espaços sagrados como uma das principais atividades do governo e, dentro
desse esforço, a importância da beleza dos espaços arquitetônicos. O destaque é principal‑
mente dado aos serviços feitos na Santa Sofia, que ainda recorta o espaço turco. Mesmo
Malalas, cujo foco recai quase sempre nos espaços circundantes a Antioquia, faz referên‑
cia às transformações da arquitetura da Grande Igreja de Constantinopla. Portanto, essa
construção sugere a importância da capital no projeto de transformação arquitetônica
dos espaços religiosos111.

111  A iconografia também reforça este argumento, mostrando o imperador carregando Santa Sofia nos
braços, algumas vezes como um presente ofertado à Virgem Maria. Precisamente, em selos do século XI,
XII e XIV encontramos a imagem de Justiniano e da Virgem carregando juntos uma maquete da Grande
Igreja. As duas personagens estão frente a frente (COTSONIS, 2002, p. 43-45). Em um dos mosaicos da
Santa Sofia, datado do século X, vemos Justiniano de um lado, carregando a Santa Sofia, e Constantino
de outro, carregando uma cidade, provavelmente Constantinopla, ambos, no mesmo nível, oferecendo as

209
Assim, quando Justiniano morre, por todo o Império o ambicioso programa de cons‑
truções deixa sua marca, de tal forma que, nos séculos posteriores, as igrejas bizantinas
apresentarão proporções mais modestas (EVANS, 2005, p. 59). Um projeto tão significa‑
tivo não deixaria de ser associado à figura de seu realizador, a despeito das críticas nega‑
tivas que poderiam ser dirigidas às ações do imperador.
Não falamos, todavia, das construções em si mesmas, mas do discurso elaborado
sobre elas. Em segundo lugar, portanto, gostaria de enfatizar que os três autores atri‑
buem uma escala de importância muito diferente com relação às construções religiosas,
mas a obra de Procópio faz mais do que isso, na medida em que fornece uma extensiva
reflexão teórica sobre a percepção dos espaços num contexto de produção específico. A
sua obra sobre a lista de construções realizadas por Justiniano revela uma experiência
muito racionalizada do espaço arquitetônico. Iuliana-Elena Gavril (2012) e Averil Came‑
ron (1996) já haviam chamado a atenção para isso, por caminhos diferentes.
Cameron (1996, p. 85) afirma que a obra Sobre os edifícios claramente apresenta uma
unidade de sentido centrada na descrição de igrejas, fortificações e fornecimento de água,
mas considera que não haveria evidências claras de que Procópio tivesse focado nesses
elementos como resultado de uma decisão consciente. Gavril (2012, p. 167), ao contrário,
destaca o arranjo consciente do autor na forma como ele apresenta os conteúdos, desta‑
cando como a ekphrasis (descrição do espaço) da Santa Sofia foi inteligentemente orde‑
nada a partir de uma “descrição de sequências visuais, que são essenciais para entender o
layout da igreja, sugerindo que Santa Sofia era percebida como um espaço centralizado”.
Assim, a escrita, a partir de uma organização didática, nos levaria a perceber não apenas a
posição espacial ocupada pela igreja, mas os seus sentidos simbólicos veiculados naquela
sociedade, inclusive a concepção do que era considerado materialmente belo.
Já Elsner (2007, p. 33-35) afirma que o trabalho de Procópio sobre os edifícios justi‑
niânicos, muito mais do que um objeto de propaganda imperial, configura-se como uma
peça-chave na reflexão sobre como os monumentos se transformam em texto. O pane‑
gírico procopiano seria tão rico de elementos a serem explorados que, de forma muito
consciente, o autor teria adicionado ao texto camadas de diferentes estilos narrativos,
mas ao mesmo tempo criado alguma coisa muito nova e autêntica.

maquetes à Virgem, sentada no centro com Jesus no colo. As quatro personagens usam auréola e parece
haver uma igualdade em importância entre a igreja e a cidade como um todo.

210
Esse material autêntico criado por Procópio, no contexto literário do século VI, apre‑
senta elementos que sugerem a compreensão de um sistema de relações espaciais112, a
saber: a articulação entre a função prática das construções (o uso de materiais específi‑
cos, o local estratégico, os trabalhadores envolvidos no processo) e o seu sentido social
(a centralidade das igrejas, sua vinculação com um processo de cristianização e “civili‑
dade”, a associação entre a materialidade das construções e a política imperial). Assim, as
construções de edifícios cristãos não apenas são descritas pela literatura romana tardia,
mas atuam diretamente na criação de um conjunto de percepções teóricas muito sofisti‑
cado sobre a dinâmica social arquitetônica, ou seja, atuam na elaboração de uma verda‑
deira retórica dos espaços.

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112  A base desta observação é a formulação moderna de uma teoria social das relações espaciais, que, por
lidar com argumentos teóricos e científicos, é capaz de dialogar com contextos específicos e diversificados.
Bill Hillier e Julienne Hanson (1984, p. 1), por exemplo, divulgam em 1984 um conjunto de considerações
que nos ajudam diretamente a pensar na retórica bizantina dos espaços. Segundo esses autores: “Quando
pensamos em um artefato é possível seguir uma certa lógica. Em primeiro lugar, percebemos objetivos fun‑
cionais: a reunião de materiais que darão a sua forma; então observamos seu estilo: ornamentação e embe‑
lezamento, variáveis pela identidade cultural com a qual estamos lidando. O primeiro elemento tem a ver
com a função prática do objeto, o segundo com o seu uso social, o seu sentido. Essa lógica também pode
ser usada para interpretar construções, também elas portadoras de uma função própria e aspectos culturais
determinantes. Mas as construções apresentam uma propriedade particular que complica essa relação entre a
utilidade e o sentido social, porque o seu propósito não é a materialidade em si, mas a ordenação do espaço”.

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WHITBY, M. Pride and prejudice in Procopius’ buildings: imperial images in Constan‑
tinople. Antiquité Tardive, Paris, v. 8, p. 59-66, 2001.

214
Parte III
Aspectos da cristianização
na Antiguidade Tardia
Combatendo em nome da fé:
Constantino e a campanha pelo
dominium mundi (312-324 d.C.)
Gilvan Ventura da Silva

Introdução

A vitória de Constantino sobre Maxêncio, em 28 de outubro de 312, e a sua posterior


entrada triunfal em Roma, no dia seguinte à batalha da Ponte Mílvia, representaram
acontecimentos decisivos para a história do Império Romano. A derrota de Maxêncio e
a ocupação de Roma devem ser encaradas como uma etapa decisiva para a afirmação de
um soberano que havia começado sua carreira política na condição de usurpador, ao ser
elevado ao cargo de Augusto pelo exército em 306, logo após a morte de seu pai, Cons‑
tâncio Cloro, fato que acarretou um grave embaraço a Galério, o sênior da Tetrarquia
à época. Confrontado com as pretensões do herdeiro de Constâncio Cloro, Galério ter‑
minou vendo-se obrigado a assimilá-lo ao colégio dos tetrarcas, embora na condição de
César, o que significava tão somente uma solução provisória para o problema. Nos seis
anos decorridos entre a ascensão de Constantino e a batalha da Ponte Mílvia, o Oci‑
dente foi partilhado entre dois imperadores, Constantino e Maxêncio, secundados pela
inoportuna presença de Maximiano, que, insatisfeito por Diocleciano o ter compelido a
renunciar à púrpura, em 305, resolve mais uma vez retornar à cena política, o que torna
a situação ainda mais delicada. O desfecho desse processo se deu, por um lado, com a
morte de Maximiano, que, acusado de conspiração, foi executado por ordem de Cons‑
tantino; e, por outro lado, com a vitória de 312, o que permitiu a Constantino anexar a
Península Itálica e a África do Norte, territórios então governados por Maxêncio. Mais
que isso, o vencedor podia agora ocupar o coração do próprio Império, a Cidade Eterna,

217
capitalizando assim o apoio da elite senatorial e da população de Roma a suas pretensões
de emular Diocleciano na liderança do colégio imperial.
Sabemos que, um pouco antes da batalha da Ponte Mílvia, os espectadores reuni‑
dos no Circo Máximo para celebrar as quinquennalia de Maxêncio já haviam tributado
apoio a Constantino, declarando-o invencível (Lactant. De mort. pers., 44, 7). Por ocasião
da sua entrada triunfal na cidade, Constantino recebeu diversas homenagens prestadas
pelo Senado, entre as quais se contam a dedicação de uma coroa de ouro e de uma está‑
tua e a concessão do título de Augusto sênior, o que lhe conferia a ambicionada prima‑
zia diante de Maximino Daia e de Licínio, que governavam o Oriente. Na condição de
Augusto sênior, Constantino detinha agora o privilégio de inscrever seu nome no caput
da lista dos imperadores, fato que não tardou a explorar (BARNES, 1981, p. 46). Desde
então, passou a investir no fortalecimento da sua posição, o que implicou, de início, a ado‑
ção de pelo menos três medidas. Em primeiro lugar, a obliteração da memória de Maxên‑
cio por meio de uma eficiente operação de damnatio memoriae, que incluiu a apropriação
da monumental basílica erguida junto ao fórum pelo adversário, a dissolução da guarda
pretoriana e a construção de uma igreja no Célio, local de reunião dos equites singulares,
a tropa de elite de Maxêncio (CURRAN, 2002, p. 76). Em segundo lugar, a aliança com
Licínio visando a eliminar Maximino Daia, cuja obstinação em prosseguir com a polí‑
tica religiosa da Tetrarquia configurava um ponto de agudo desequilíbrio dentro do sis‑
tema político imperial. E, em terceiro lugar, mas não menos importante, a consolidação
dos laços que uniam o imperador à comunidade dos cristãos, tanto em virtude das suas
próprias convicções religiosas quanto em reconhecimento ao auxílio que o episcopado
poderia lhe prestar na sua cruzada rumo ao controle de todo o Império.
A batalha da Ponte Mílvia assinala uma reviravolta sem precedentes na posição do
cristianismo diante dos demais sistemas religiosos que vicejaram no Império Romano.
De fato, do ponto de vista simbólico, a campanha se encontra cercada por referências
extraídas da tradição judaico-cristã. A derrocada de Maxêncio se deu por intervenção de
um poderosíssimo símbolo apotropaico, o Chi-Ro, aposto sobre os escudos das legiões
por determinação de Constantino após uma visão sobrenatural que assim o instruía a
proceder a fim de lograr a vitória (De mort. persec., 44, 5, 6). Maxêncio, qual encarnação
romana do faraó egípcio, sucumbe nas águas do Tibre, afogado na própria obstinação e
soberba, ao passo que Constantino, o novo Moisés, pode agora guiar o seu povo rumo a
um futuro melhor, livre do jugo que o oprimia (Euseb. Hist. eccl., IX, 9, 5-8). Ao adentrar

218
a cidade com o seu cortejo, Constantino se exime de prestar reverência a Júpiter Capi‑
tolino pela vitória, sem dúvida em reconhecimento à dívida que possui para com o deus
dos cristãos, ao qual doravante servirá com fervor crescente. Seu envolvimento com
a Igreja e suas inúmeras ações em prol dos cristãos logo o habilitaram, mediante uma
hábil e sólida propaganda, a se apresentar como o defensor primaz da causa cristã den‑
tro de uma lógica bipolar própria de todo embate político-ideológico. Nessa empreitada,
Constantino se indispôs primeiro com Maximino Daia, a quem escreveu determinando
a imediata suspensão da perseguição aos cristãos nos territórios orientais. Em seguida,
atacou Licínio, convertido no novo flagelo da Igreja e, por extensão, do gênero humano.
Em nome da proteção aos cristãos do Oriente, será deflagrada uma autêntica guerra reli‑
giosa, ao término da qual o último entrave à reunificação do orbis romanorum por Cons‑
tantino terá sido removido, para a glória de Deus e de seu humilde servo, o próprio
imperador. Em face de uma situação como essa, torna-se necessário investigar os moti‑
vos pelos quais o confronto entre ambos os imperadores se revestiu de um conteúdo reli‑
gioso tão acentuado, o que forçosamente nos conduz a refletir sobre o comportamento
político por eles adotado diante do cristianismo entre 312 e 324.

De Cibale a Crisópolis, a ruptura da “concordia imperii”

A partir de 312, Constantino começa a implementar, no Ocidente, uma política de favore‑


cimento explícito aos cristãos, contando com o apoio, ao menos num primeiro momento,
de Licínio, que nesse ponto subscreve a proclamação de tolerância feita por Galério às
vésperas de sua morte, em 311. O acordo entre os imperadores sobre a posição oficial
perante o cristianismo se encontra expresso com clareza no texto das circulares de junho
de 313, expedidas por Licínio aos governadores das províncias do Oriente, ao se apode‑
rar de Nicomédia, a capital de Maximino Daia. Nelas, o imperador faz menção ao encon‑
tro entre ele e Constantino ocorrido em Milão, em fevereiro, quando teriam acertado
as bases da política religiosa a ser doravante observada (De mort. pers., 48, 1-2). Muito
embora Licínio fosse pagão, a consolidação do seu domínio sobre os territórios orientais
foi acompanhada de um expurgo contra todos os que, direta ou indiretamente, apoiaram
a política de perseguição de Maximino, entre os quais figuravam Valéria e Prisca, filha
e esposa de Diocleciano; Culciano e Teocteno, responsáveis por inúmeras atrocidades

219
contra os cristãos do Oriente; além dos magos e profetas de Antioquia (Hist. eccl., IX, 11,
4-5). A atuação pró-cristã de Licínio é reconhecida por Eusébio de Cesareia (Hist. eccl.,
IX, 11, 7), que, ao celebrar a morte de Maximino Daia, ocorrida em julho de 313, registra
que Constantino e Licínio “extirparam primeiro do mundo inteiro o ódio a Deus, depois
manifestaram, através dos bens cuja administração Deus lhes havia sabiamente confiado,
o amor à virtude e a Deus, a piedade e o reconhecimento para com a divindade, por meio
da legislação em favor dos cristãos”. Desse ponto de vista, a opção religiosa de Licínio
não significava, em meados de 313, risco aparente para a Igreja. Logo, porém, a maneira
pela qual Constantino, no Ocidente, se comportava em relação ao cristianismo altera‑
ria por completo o rumo da situação, conduzindo à irrupção de uma nova guerra civil.
O pano de fundo da crescente hostilidade que opôs de maneira irremediável Licí‑
nio a Constantino foi, sem dúvida, a opção deste último por fundamentar boa parte
da sua legitimidade no cristianismo, fazendo do episcopado e das comunidades cris‑
tãs uma base de apoio primordial para que pudesse aspirar ao dominium mundi. Licínio,
a despeito de ter sido, num primeiro momento, partidário da política religiosa de tole‑
rância propugnada por Constantino e, antes dele, pelo próprio Constâncio Cloro, que
aplicou de maneira bastante branda, nos territórios ocidentais, os editos de persegui‑
ção de Diocleciano e Galério, não se manifestava a favor da concordia imperii e pelo
fim do terror religioso por nutrir qualquer simpatia pelo cristianismo, ao contrário de
Constantino. Licínio, mesmo tendo rogado junto com suas tropas ao deus dos cristãos
antes da batalha definitiva contra Maximino Daia em 313, fato que, segundo Lactâncio
(De mort. pers., 46, 3-7), ocorreu por intercessão de um anjo que, em sonho, teria revelado
ao imperador a oração, jamais fez profissão de fé em favor do cristianismo, razão pela
qual se eximiu de adotar em seus territórios a política de evergetismo para com a Igreja
inaugurada por Constantino (PIETRI, 1995, p. 202). Sua opção religiosa sempre foi o
paganismo, ao contrário do que nos induzem a concluir Lactâncio e Eusébio de Cesareia.
Na realidade, Lactâncio publica seu De mortibus persecutorum um pouco depois do encon‑
tro de 313, em Milão, antes, portanto, do início das hostilidades entre os dois imperado‑
res, o que o leva a assumir um tom respeitoso para com Licínio, como seria de se esperar
(DRAKE, 2002, p. 196). Já Eusébio de Cesareia, escrevendo após o triunfo de Constan‑
tino, não hesita em apresentar Licínio como um trânsfuga do cristianismo, alguém que
foi agraciado por Deus com o governo do Império, mas infelizmente não soube se man‑
ter fiel a Ele, tendo sucumbido à influência do demônio (Hist. eccl., X, 1-2). Em todo caso,

220
é possível também que Licínio tenha consentido em apoiar o fim da perseguição aos
cristãos devido aos acordos mantidos com Constantino, tendo em vista a erradicação de
Maximino Daia, que continuava, em seus territórios, a política de intolerância inaugu‑
rada em 303. Desse modo, a benevolência inicial para com os cristãos demonstrada por
Licínio poderia representar a opção por um padrão de comportamento político distinto
do de Maximino Daia, com a finalidade de se dissociar deste último.
Constantino, por sua vez, já ascende ao governo de Roma como um imperador pró‑
-cristão, adotando uma série de medidas legislativas em favor do cristianismo. Em 313,
escreve ao procônsul da África ordenando a restituição dos bens confiscados aos cris‑
tãos, ao passo que concede ao bispo de Cartago, Ceciliano, uma dotação de cento e vinte
mil folles a ser distribuída entre os beneficiários das congregações norte-africanas, fato
inédito na história das relações da Igreja com o Estado romano (PIETRI, 1995, p. 198).
No mesmo ano, Constantino transfere para as igrejas as doações públicas concedidas aos
templos e isenta os sacerdotes cristãos dos munera, privilégio reservado ordinariamente
a algumas categorias específicas, como a dos atletas, médicos e professores. Antes dos
clérigos cristãos, apenas os sacerdotes pagãos do Egito haviam gozado de tal prerroga‑
tiva, em virtude de uma tradição local (BEARD; NORTH; PRICE, 2004, p. 367). Por uma
lei de 318 ou 321, os juízes seculares são obrigados a reconhecer a jurisdição episcopal.
Em 321, Constantino decide que o dies Solis, o domingo, seria feriado, a fim de que os
bispos pudessem reunir a assembleia, além de determinar que as disposições de um tes‑
tador em favor da Igreja seriam válidas mesmo se não seguissem a praxe legal (PIETRI,
1995, p. 212). A par dessas ações, decisivas para a configuração da Igreja como uma enti‑
dade dotada de reconhecimento jurídico pleno, Constantino investe na sua imagem como
um imperador eleito pela divindade judaico-cristã, como comprova a sua estátua monu‑
mental erguida na Basílica de Maxêncio. Na mão direita, o imperador portava o “salví‑
fico sinal da cruz” (Euseb. Vit. Const. I, 40, 1), identificado por Barnes (1981, p. 46) como
sendo o labarum, o estandarte cristão empregado para derrotar Maxêncio, em 312. Já em
315, os temas cristãos fazem seu ingresso irreversível na numismática imperial, numa
série destinada a celebrar as decenallia: sobre moedas de ouro e prata cunhadas pelo ate‑
liê de Ticinum, o imperador aparece ornado com um elmo no qual se encontra inscrito o
Chi-Ro, o monograma de Cristo (BRUUN, 1966, p. 36). A identificação de Constantino
com o cristianismo é expressa igualmente por intermédio das igrejas que ergue com recur‑
sos públicos, em especial aquelas localizadas em Roma, tais como a basílica lateranense,

221
construída nas imediações do Célio, uma das regiões mais nobres da Urbs, a igreja de San
Lorenzo Fuori Le Mura e a basílica de São Pedro, o mais espetacular aparato da arquite‑
tura cristã na Roma da Antiguidade Tardia (CURRAN, 2002, p. 93). Todas essas medi‑
das permitiram a Constantino explorar a imagem de defensor dos cristãos no momento
em que se iniciaram as hostilidades com Licínio, fruto em boa medida da disposição do
imperador em sustentar a qualquer preço a preeminência diante do colega do Oriente.
A inquietação de Constantino com os rumos que a política imperial vinha tomando
se acentua em 315, quando Constância, sua irmã, dá a luz a Liciniano, filho de Licínio,
acontecimento que tornava a sucessão dinástica mais complicada. Na expectativa de regu‑
lar a sucessão, Constantino propõe a nomeação de Bassiano, seu cunhado, como César,
ao lado de Crispo, filho do primeiro casamento de Constantino com Minervina. Tendo
como referência o sistema tetrárquico, o imperador poderia assim afastar Liciniano da dis‑
puta por uma posição no colégio imperial (BARNES, 1981, p. 66). A proposta, no entanto,
é recusada por Licínio. A partir daí, as relações entre os imperadores se torna tensa,
tanto que a numismática de Constantino logo abandona qualquer referência ao colega
(PIETRI, 1995, p. 201). O Origo Constantini, uma fonte pró-constantiniana do século IV,
nos informa que Licínio teria então se aproximado de Bassiano com a finalidade de con‑
vencê-lo a assassinar Constantino. Descoberto o complô, Bassiano é executado, ao passo
que Senécio, seu irmão e cúmplice na trama, busca refúgio no Oriente, sendo acolhido
por Licínio, que se nega a entregá-lo. Na mesma passagem, o Origo registra que Licí‑
nio teria feito destruir estátuas de Constantino em Emona, na fronteira do território de
ambos, o que equivalia a uma autêntica declaração de guerra (Or. Const., V, 15). Em 8 de
outubro de 316, Constantino ataca Licínio em Cibale, no caminho de Sírmio, já em ter‑
reno inimigo. Em seguida, defronta-se com Valente, dux nomeado César a fim de auxiliar
no esforço de guerra, vencendo-o em Adrianópolis. Licínio, no entanto, é hábil o sufi‑
ciente para impedir que Constantino prossiga rumo a Bizâncio e daí a Nicomédia, o que
obriga o agressor a celebrar a paz. O acordo inclui a anexação de toda a Europa por Cons‑
tantino (com exceção da Trácia, da Mésia e da Cítia Menor), a destituição de Valente e a
designação de Crispo e Constantino II, filhos de Constantino, como Césares, ao lado de
Liciniano. Em 1º de março de 317, em Sérdica, uma cerimônia celebra a investidura dos
Césares e sela a paz entre os Augustos, mas não por muito tempo (BARNES, 1981, p. 67).

222
Licínio, temeroso de que os cristãos do Oriente preferissem ser governados por
Constantino (Sozom. Hist. eccl., I, 7, 1), resolve adotar um conjunto de medidas res‑
tritivas contra o cristianismo, das quais nos dá notícia Eusébio (Vit. Const., I, 51-54).
O imperador começa expulsando do palácio os cristãos. Em seguida, proíbe o deslo‑
camento dos bispos, a realização de concílios e a celebração de cultos por homens e
mulheres em conjunto. Aos bispos era permitido apenas ensinar os homens, enquanto
as mulheres deveriam ser instruídas por devotas. Licinío determina também que as
cerimônias cristãs sejam doravante realizadas fora dos muros da cidade, de modo a não
macular o espaço urbano, consagrado às divindades, e que os funcionários públicos sacri‑
fiquem aos deuses protetores do Império. Depois disso, cancela os privilégios do clero,
inscrevendo os sacerdotes na cúria urbana e obrigando-os a cumprir as liturgias públicas
(BARNES, 1981, p. 71). Esse repertório de medidas reabilita os poderes dos governado‑
res de província para punir os cristãos, embora não se produza nada comparável ao que
sucedeu nos tempos de Diocleciano, Galério e Maximino Daia. Entre os martírios ocor‑
ridos sob Licínio, contam-se o de Basílio de Amaseia, no Ponto, e o dos Quarenta Már‑
tires de Sebaste. A razão dessas execuções talvez resida no fato de que Licínio temesse
particularmente pela lealdade da igreja da Armênia, cuja cristianização se iniciara em 314.
Em 321, uma embaixada persa havia visitado Constantino, o que, na avaliação de
Licínio, traduziria a busca por uma solução de compromisso com as congregações do
Oriente e, por extensão, a possibilidade de que os cristãos da Armênia viessem a decla‑
rar apoio a Constantino no caso de uma nova guerra (BARNES, 1981, p. 72). A exe‑
cução dos mártires armênios tornou a situação entre os imperadores ainda mais tensa.
Em seus territórios, Licínio se prepara para a guerra, baixando medidas severas contra
os contribuintes por ocasião do censo de 321 (Vit. Const., I, 55, 1-2). Em 323, a invasão
da Mésia pelos sármatas fornece a Constantino o pretexto para cruzar os territórios
de Licínio, que responde proibindo a circulação, nas províncias orientais, das moedas
comemorativas da vitória contra os sármatas. As hostilidades estavam assim oficial‑
mente reabertas. O desfecho da guerra civil foi a vitória de Constantino na batalha de
Crisópolis, em 18 de setembro de 324. Vencido, Licínio abdica da púrpura imperial.
Por intercessão de Constância e de Eusébio de Nicomédia, Constantino decide poupar
a vida de Licínio, que, no entanto, é assassinado no ano seguinte.

223
Um imperador protegido pelo labarum

Muito embora a interpretação do anônimo autor da Origo sobre os passos que conduzi‑
ram ao choque entre Licínio e Constantino seja abertamente favorável a este último, não
podemos ignorar o testemunho de Zózimo (II, XVIII, 1), que exime Licínio da respon‑
sabilidade pela guerra civil, atribuindo-a ao desejo de Constantino em se apoderar dos
territórios do rival. Além disso, no início de 321, Constantino decide, junto com Crispo,
ocupar o consulado, numa atitude unilateral que exige de Licínio resposta semelhante.
Naturalmente que a deflagração do conflito comportou agressões de ambas as partes, sem
que tenhamos condições de determinar o principal responsável. No entanto, os relatos
subsistentes nos permitem captar com maiores detalhes o esforço empreendido por Cons‑
tantino no sentido de transformar a campanha contra Lícinio numa autêntica cruzada em
defesa do cristianismo, a ponto de se produzir uma imagem francamente desfavorável de
Licínio, compartilhada inclusive pelos pagãos. Assim Aurélio Vítor (Caes., 41.5.) imputa
a Licínio atrocidades horríveis cometidas contra escravos e filósofos, ainda que inocen‑
tes. Já o autor anônimo do Epítome (XLI) afirma que Licínio era de uma avareza execrá‑
vel e de espírito intratável, especialmente contra os letrados. No entanto, o ataque mais
contundente contra o imperador foi desferido por Eusébio de Cesareia, o “príncipe” dos
intelectuais cristãos a serviço de Constantino. A oposição entre os imperadores é des‑
crita por Eusébio (Vit. Const., I, 49, 1-2) nos seguintes termos:

[Constantino] era informado de que uma besta horrível havia, no Oriente, se insta‑
lado à espreita sobre a Igreja de Deus e sobre os demais provinciais, como se o maligno
demônio lutasse por levar a cabo justamente o contrário do que se fazia por parte
daquele homem caro a Deus, até o ponto em que o Império Romano, em seu con‑
junto, parecia dividido em duas partes, semelhante uma delas ao dia, à noite a outra:
a escuridão cobria aqueles a quem coube a sorte de habitar no Oriente. De modo
inverso, um dia radiante refulgia sobre os da outra parte. E como Deus proporcio‑
nava a estes últimos inumeráveis bens, tal espetáculo resultou insuportável à inveja,
que odeia toda beleza, assim como ao tirano que oprimia a outra parte da população.

A polarização que se cria aqui é entre a luz e as trevas, que cobrem dois territórios dis‑
tintos. O primeiro deles, governado por um soberano que encarna a imagem do mal, o que

224
o aproxima de Satã, com seu ódio à benevolência divina e suas investidas contra a Criação
na tentativa de afrontar a Deus, razão pela qual Eusébio qualifica Licínio, em outra pas‑
sagem da Vita Constantini (II, 1, 2), como uma serpente que respirava um ódio enfurecido
e ameaçador. Já no outro território, ou seja, no Ocidente, rebrilha a luz por meio da ação
de um imperador que, à semelhança do Sol, ilumina toda a superfície do orbis romanorum,
sendo, portanto, capaz de reunir, a partir de um epicentro, a totalidade dos territórios
do Império (Vit. Const., II, 19, 1). E isso em virtude da intercessão direta de Deus, que age
com a finalidade de socorrer os orientais, enviando-lhes Constantino, uma grande lumi‑
nária que sobrepuja a escuridão da noite (Vit. Const., II, 2, 3). Desse modo, instaura-se um
jogo bipolar, no qual Constantino se apresenta como um emissário divino com a incum‑
bência de liberar as populações do Oriente subjugadas por Licínio, a encarnação do mal.
Para tanto, Constantino recorre a um poderoso símbolo salvífico e apotropaico, o labarum,
posto à frente de todos os destacamentos de cavalaria e infantaria (Vit. Const., II, 3, 2).
O labarum é o estandarte cristão que, do século IV em diante, tende a substituir o
vexillum, uma das mais antigas insígnias militares pagãs, na iconografia oficial do Impé‑
rio (GRABAR, 1936, p. 156). A origem do labarum se encontra eivada de controvérsias,
a começar pela própria terminologia. De acordo com Grégoire (1964), o termo labarum
– grafado por vezes laborum – é um neologismo consagrado após Constantino, cuja eti‑
mologia deve remontar a laureum, um vocábulo do latim de caserna empregado como
sinônimo de signum ou vexillum, isto é, o estandarte com os símbolos imperiais dis‑
posto à frente das legiões. O labarum seria, pois, um tipo específico de estandarte militar
ostentado pelos imperadores cristãos a partir de Constantino. O artefato era confeccio‑
nado segundo os antigos padrões dos vexilla. Sobre uma armação cruciforme se esten‑
dia uma peça de tecido bordado a ouro ou feito de púrpura (suparum), fixando-se logo
abaixo a imagem do imperador e/ou imperadores reinantes. No entanto, duas particu‑
laridades distinguiam o labarum dos emblemas precedentes: em primeiro lugar, a pre‑
sença, no ápice, do Chi-Ro, o monograma de Cristo, em substituição à imagem de um
deus, de um animal – como a águia – ou de uma grinalda. Em segundo lugar, sua extrema
riqueza, uma vez que o labarum constantiniano era recoberto de pedras preciosas, ao passo
que os medalhões com a imagem dos imperadores eram cunhados em ouro (Figura 1).
A descrição literária mais antiga do labarum que possuímos nos é transmitida por Eusébio
de Cesareia (Vit. Const., I, 31). Segundo o autor, o modelo do estandarte teria sido reve‑
lado a Constantino em sonho pelo próprio Cristo ao anoitecer do mesmo dia em que,

225
no céu, o imperador e suas tropas contemplaram uma visão reluzente de um troféu sob a
forma de cruz acompanhado da expressão Hoc signo victor eris, “Com este signo vencerás”.
No mesmo sonho, Cristo teria recomendado a Constantino que se servisse do estandarte
como um talismã contra os inimigos, num momento em que o imperador se encontrava
empenhado em dar combate a Maxêncio.

Figura 1: Reconstituição do labarum


Fonte: Leclercq (1928).

A primeira representação iconográfica do labarum que possuímos provém de uma


série monetária em bronze cunhada em 327 pelo ateliê de Constantinopla e se encon‑
tra associada à vitória em Crisópolis. Nela, o labarum, tal como descrito por Eusébio,
aparece transpassando o dragão, associado a Licínio (BRUUN, 1966, p. 64). Nesse con‑
texto, o labarum emerge como o símbolo da vitória contra o último dos perseguidores
da Igreja. A descrição de Eusébio acerca da campanha definitiva contra Licínio, em 324,

226
contém uma clara referência aos poderes mágicos atribuídos ao labarum. Segundo o autor
(Vit. Const., II, 8, 1; 9, 1-2), Constantino teria vencido Licínio

Pondo sempre à frente de sua coorte pessoal o sinal salvífico (i. é, o labarum), pois
onde este se encontrava presente, se produzia a fuga dos inimigos, perseguidos
pelos vencedores. O fato não escapava ao imperador e se este via que alguma uni‑
dade de seu próprio exército fraquejava, ordenava que ali mesmo, qual triunfante
talismã, se mostrasse visível o salvífico troféu, com o qual imediatamente aflo‑
rava a vitória. E ocorria que um vigor e uma energia, por algum desígnio divino,
robusteciam os combatentes. [...] Em certa ocasião, em meio ao fragor do combate,
quando o estrépito e a confusão iam invadindo o exército, aquele que levava nos
ombros o emblema foi tomado pelo medo na peleja. Ato contínuo, o entregou a
outro para poder fugir ao combate. Como este o recebera, o desertor se colocou
fora da proteção do emblema e um dardo que lhe foi lançado cravou-se em seu
ventre e lhe foi arrebatada a vida. Ali mesmo caiu o cadáver como recompensa da
sua covardia e incredulidade, enquanto se produziu a proteção da vida daquele que
portava no alto o salvífico sinal.

Protegido pelos poderes miraculosos do labarum, Constantino adentra os territórios


de Licínio com a certeza da vitória, como outrora havia acontecido às portas de Roma,
na campanha contra Maxêncio. O labarum, um símbolo revelado pela própria divindade,
se converte assim em um instrumento mágico manejado pelo imperador na sua cruzada
contra o último dos perseguidores. Símbolo apotropaico por excelência, o labarum repre‑
senta a união entre céu e terra, a conexão que se estabelece entre o imperador e o logos,
ao mesmo tempo que por seu intermédio a ameaça à fé cristã é debelada. Nesse sentido,
o labarum, empregado contra Licínio, é um importante recurso simbólico à disposição de
Constantino para concretizar o domínio único sobre o Império, recebendo uma atenção
especial na narrativa de Eusébio acerca da batalha de Crisópolis. Por outro lado, Licínio
é qualificado não apenas como o infiel, o insano que decidiu, por inveja, se voltar contra
Deus, o que justifica a punição a ele infligida por intermédio do labarum, mas também
como uma fera, uma besta selvagem (Vit. Const., II, 1) responsável pela adoção de “leis
bárbaras” contra os orientais (Hist. eccl., X, VIII, 12), o que nos remete a uma nova pola‑
rização, desta vez entre natureza e cultura.

227
Considerações finais

Mediante a tessitura de elementos bipolares, princípio fundamental das representações


sociais e dos processos de classificação e valoração nelas implicados (SILVA, 2000, p. 82),
é que se forja a imagem cristã de um imperador providencial, um combatente em nome
da verdadeira fé, que supera as angústias do tempo presente e traz consolo para o povo
de Deus, tornando-se assim um “instrumento de comunhão, agente de mediação e de
solidificação social” que lança as bases de uma nova autoridade, como sói ocorrer com os
heróis (GIRARDET, 1987, p. 95). Desse modo, a possibilidade de afirmação de uma ordem
política adaptada à mensagem universalista do cristianismo dependia visceralmente da
cristianização plena do cargo imperial, o que não provoca estranhamento em se tratando
de um credo religioso intolerante, que sempre propugnou a extirpação do paganismo,
do judaísmo e dos grupos cristãos concorrentes, qualificados amiúde como heréticos.
O cristianismo, ao adotar um comportamento excludente diante de outras crenças con‑
trárias à sua própria visão de mundo, não poderia tolerar por muito tempo a permanên‑
cia de um imperador pagão no Oriente, ao menos não enquanto, no Ocidente, já reinava
um Augusto comprometido com a causa cristã. Nesse caso específico, as pretensões uni‑
versalistas do cristianismo aliadas à rejeição ostensiva do paganismo se converteram em
um notável apoio para um imperador que ambicionava o dominium mundi, a exemplo de
Constantino. Não que as ações perpetradas por Licínio após Cibale não tenham causado
efetivo tormento aos cristãos do Oriente, no entanto o mais importante não é determi‑
nar se Licínio constituía ou não uma ameaça para o cristianismo àquela altura, mas com‑
preender os meandros da representação que se forjou para que Constantino, o vencedor
de Crisópolis, pudesse não apenas justificar a vitória sobre o oponente, mas estabelecer
as bases de uma nova autoridade política consoante com a redefinição da própria iden‑
tidade romana, pois, como sugere Girardet (1987, p. 95), reconhecer a autoridade que
o herói providencial vem instituir é ao mesmo tempo “reencontrar a si mesmo e reen‑
contrar os Outros”.

228
Referências

Documentação primária impressa


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polis: Vozes, 2000.

230
Constantina Deo: florilégio de uma existência.
Textos, monumentos e hagiografia cristã (séc. IV d.C.)

Silvia M. A. Siqueira

Introdução

Este texto reúne uma pequena coleção de testemunhos históricos, apenas fragmentos, que
contribuem para compor a história de uma mulher, Constantina, que viveu no século IV.
O texto inspira-se no artigo de Foucault “A vida dos homens infames113”, no qual o autor
discorre sobre algumas personagens com vidas repletas de infortúnios, que viveram à
margem, mas por um breve momento tiveram suas vidas registradas:

É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas,


desditas e aventuras sem número, recolhidas numa mão-cheia de palavras. Vidas
breves, achadas a esmo em livros e documentos. Exempla, mas – ao contrário daque‑
les que os sábios recolhiam no decurso das suas leituras –, são exemplos que tem
menos de lições a serem meditadas, do que de breves efeitos cuja força se desva‑
nece quase que imediatamente (FOUCAULT, 2009, p. 89-90).

Valemo-nos aqui de uma antologia de existência, visto que, na narrativa histórica,


há muito predomina a escassez de documentos sobre as mulheres, desde o aspecto de sua
existência concreta até a sua história individual, um silêncio sobre a existência humana
que, se não fosse o breve encontro com o poder, jamais haveria de deixar um traço de si.

113  Publicado originalmente como “La vie des hommes infâmes” (Les Cahiers du Chemin, n. 29,
p. 12-29, 1977).

231
Este é o caso da nossa escolhida, Constantina. Ainda que mulher do mais alto estrato
social, somente foi possível saber dela por meio de informações fragmentárias e varia‑
das, a que procuramos dar aqui um significado histórico.

Florilégio ou antologia de uma existência: Constantina

Ao discorrer sobre a historiografia romana, cristã e não cristã, no século IV114, Momi‑
gliano (1993, p. 95-112) argumenta que a conversão ao cristianismo proporcionava uma
ampliação do ambiente histórico, em que as pessoas aprendiam uma nova história por
meio da recente religião, enquanto a escrita histórica manteve-se, de modo geral, na forma
tradicional, tratando, sobretudo, da história política e militar. Nessa fase, a composição
textual de inspiração cristã tratou de narrativas de viagens, obras polêmicas sobre deba‑
tes da época; no entanto, obras específicas de história, elaboradas conforme os esquemas
da historiografia clássica, não foram escritas (LANA, 1990). Ainda segundo nosso autor,
com o passar do tempo os cristãos criaram um gênero inédito, a História Eclesiástica com
Eusebio de Cesareia. Gradativamente, com a narração da vida, lendas e histórias de pes‑
soas santas, predominantemente homens, nasceu a hagiografia, o que não implicou na
cristianização da história política e militar e do gênero biográfico.
Pouco se encontra sobre os fenômenos econômicos, sociais e religiosos em detri‑
mento dos feitos políticos e militares. Os historiadores tratam, sobretudo, de sua pró‑
pria história contemporânea, ou mesmo do passado imediato, por meio de técnicas que
priorizam a observação direta para analisar o presente e a tradição oral para o estudo
do passado. As questões relacionadas à religião e aos aspectos morais apenas eram
mencionadas quando influenciavam os acontecimentos políticos e militares concretos
(LANA, 1990). Do mesmo modo, em nenhum dos autores encontramos um espaço

114  A produção historiográfica não cristã do século IV tem como expoentes Sexto Aurélio Vítor, com
sua obra Liber de Caesaribus, também conhecida como Historiae abbreviatae, que apresenta as biografias dos
imperadores de Augusto a Constâncio; Eutrópio, em seu Breviarum ab urbe condita, escrito por solicitação
do imperador Valente, uma espécie de manual de história para as pessoas cultas; Historia Augusta ou Vita
diversorum principum et tyrannorum, um conjunto de biografias de imperadores no período entre 96 e 284;
Amiano Marcelino, seguramente o historiador de maior destaque desse século, e sua obra Rerum gestarum
Libri, que se inicia com Nerva e finaliza com a morte de Valente, em Adrianópolis, no ano 378.

232
específico para tratar de qualquer mulher que seja; não há na história espaço específico
para o feminino, que será inserido timidamente em um contexto tipicamente cristão, por
meio das biografias (GIANNARELLI, 1992).
As mulheres raramente aparecem nas narrativas históricas (PERROT, 2007) e, quando
mencionadas, estão relacionadas aos aspectos morais, religiosos, às intrigas palacianas,
ou seja, em casos específicos, quando não há como separá-las dos elementos masculi‑
nos, objetos dos relatos. Elas estão em breves fissuras do registro histórico, em algumas
informações. São pequenas as fendas pelas quais podemos ler fragmentos de discursos
que representam as vidas das mulheres, nem sempre proporcionando para o público lei‑
tor uma imagem positiva e digna.
Sobre o silêncio do relato histórico sobre as mulheres e o mundo feminino muito
se tem discorrido desde a emergência dos diferentes ramos de estudos voltados para esta
temática, e especialmente sobre a necessidade de reunir um corpus documental significa‑
tivo e variado para escrever sobre elas. Os escritores gregos e romanos tinham por hábito
elogiar suas mulheres nas lápides, deixando uma imagem idealizada de esposa e mãe ínte‑
gra, dedicada à família e ao cuidado da casa, sempre distante dos olhares e do contato
com os estranhos para evitar a contaminação de uma descendência legítima do nomen
gentilício (CENERINI, 2002, p. 8). De modo geral, elas são descritas, exortadas, aconse‑
lhadas, idealizadas, criando-se assim uma avalanche de discursos e imagens em que são
representadas e imaginadas sob múltiplas faces; de qualquer maneira, sempre por meio
da visão do outro, nunca pela delas próprias. Aparecem quase como sombras, pequenos
lampejos que invadem tacitamente um espaço que não é o seu.

[…] foi porém necessário que um feixe de luz, ao menos por um instante, as viesse
iluminar. Luz essa que vem do exterior. Aquilo que as arranca à noite em que elas
poderiam, e talvez devessem sempre, ter ficado, é o encontro com o poder: sem
este choque, é indubitável que nenhuma palavra teria ficado para lembrar o seu
fugidio trajecto (FOUCAULT, 2009, p. 97).

Ora, o contato com o poder ou a proximidade com a vida pública e a política mas‑
culina é a prioridade da escrita da história no século IV, que privilegia mencionar a
mulher no relato histórico a partir do lugar ocupado e o papel social desempenhado por
ela. Entretanto, a variedade de documentação evidencia, ainda que de modo bastante

233
fragmentado, as atividades e obras femininas em documentos epigráficos, arqueológicos
e jurídicos; em suas fissuras, deixam entrever mulheres diversificadas, ricas e resolutas,
que fizeram, a despeito de todas as regras impostas, seu próprio caminho. Geralmente,
são essas as mulheres julgadas negativamente pelos escritores antigos, enquanto, na epi‑
grafia, mencionam-se mulheres que têm autossuficiência do ponto de vista econômico,
com visibilidade social, que se dedicam para a comunidade e por isso foram objeto de
homenagens públicas nas diversas cidades do Império Romano. Contudo, são documen‑
tos que mencionam, sobretudo, mulheres oriundas das mais altas posições sociais, aris‑
tocratas que viviam nas cidades e gravitavam em torno de famosos políticos, ou mesmo
elas próprias muito ricas, que puderam registrar a memória de si nos espaços cívicos e
nas decorações urbanas (CENERINI, 2002, p. 9).
Um exemplo desse tipo de mulher é Constantina, conhecida também como Constân‑
cia, a primogênita do imperador romano Constantino I e Fausta, irmã de Constantino II,
Constâncio II, Constante I e Helena. As informações sobre ela são muito controversas.
Na historiografia, aparece como a filha do imperador que foi dada em casamento para
consolidar alianças e que, em determinados momentos, agiu com muita maldade. Em
fontes cristãs, é apresentada como felix virgo e devota da mártir Agnese e do Cristo115.
Amiano Marcelino menciona o seu nome como Constantina, mas em algumas inscrições
aparece o nome Constantia. Considerando que são muito parecidos, seria uma varia‑
ção onomástica? Ou seria uma forma de distinção entre duas mulheres diametralmente
opostas? Essas problemáticas conduziram a uma série de pesquisas, que terminaram por
concluir que se trata da mesma mulher (SCHIVO, 2007), especialmente porque qualquer
um dos nomes tem a raiz em Constantino116, pai dela, o homem que conquistou o trono

115  As discussões sobre a documentação são muito variáveis, algumas vezes controversas, para uma aná‑
lise cuidadosa. Sobre a datação e os testemunhos relativos a Constantina, ver: Schivo (2007); Harries (2014);
Trout (2014, 2015). Sobre o verbete “Constantina”, ver: Jones, Martindale e Morris (1971).
116  Os nomes masculinos típicos continham três nomes próprios (tria nomina) formados por praenomen,
seguido pelo nomen, que indicava o gentilício (a família de origem, gens), e o cognomen, que indicava a família
nuclear em relação à gens. Por exemplo, Constantino: Flavius Valerius Constantinus, cujo título imperial oficial
era IMPERATOR CAESAR FLAVIVS CONSTANTINVS PIVS FELIX INVICTVS AVGVSTVS. Após 312,
acrescentou-se o MAXIMVS (“o Grande”), e depois de 325, substituiu-se INVICTVS por VICTOR, possivel‑
mente porque INVICTVS estava relacionado ao culto ao Sol Invictus. Para os nomes femininos, havia poucas
diferenças. As mulheres eram designadas apenas por dois nomes: o gentilício e o nome da família. Para elas,

234
romano, “se tornou cristão e a Igreja se tornou uma potência” (VEYNE, 2010, p. 14). Além
disso: “É como se os romanos quisessem sugerir, não muito sutilmente, que as mulheres
não eram ou não deveriam ser indivíduos genuínos, mas apenas frações de uma família”
(FINLEY, 1991, p. 151-152).

Constantina: Megaera quaedam mortais

Constantina teria nascido entre 318 e 321, do segundo casamento de Constantino, com
Fausta. O primeiro matrimônio da jovem ocorreu provavelmente em 335, com Hani‑
baliano, filho do meio-irmão de Constantino, Dalmácio, quando ele recebeu do tio a
coroa de rei do Ponto e da Capadócia (Rex Regum et Ponticarum Gentium) e a prima como
esposa. Entretanto, Hanibaliano não resistiu às disputas depois da morte de Constan‑
tino, em 337, e foi assassinado após uma conspiração de soldados, em Constantino‑
pla. Assim, a jovem permaneceu viúva até 351, quando o imperador Constâncio, seu
irmão, a deu em casamento a Constâncio Galo, sobrinho de Constantino, visto que
Galo era filho de Júlio Constâncio, cujo pai foi o imperador Constâncio Cloro e a mãe,
Teodora; portanto, também meio-irmão de Constantino. O matrimônio aconteceu na
ocasião em que Constâncio Galo foi nomeado César, e o casal partiu para Antioquia.
Considerando Amiano Marcelino (Res Gestae, XIV, 11, 27), parece que ali viveram até
o final da vida de ambos.
Assim, temos dois casamentos, com respectivos primos, duas colaborações políticas
e a “divisão” do poder no interior da dinastia constantiniana. Já informações pessoais da
jovem, nada sabemos. As notícias que chegaram até nós estão relacionadas com o frio
caráter de seu segundo marido. Amiano Marcelino (Res Gestae, XIV, 1, 2), ao discorrer
sobre a insensibilidade de Galo César, menciona que o soberano recebeu “um maléfico
estímulo por parte da mulher” e que ela tinha muito orgulho de ser irmã do imperador
e também do fato de que seu pai, Constantino, no passado, deu-a em casamento ao rei
Hanibaliano. Amiano (Res Gestae, XIV, 1, 2) descreve-a como “verdadeiramente uma
megera mortal que excitava continuamente a crueldade do marido e não menos que ele

não se usava o praenomen próprio, mas aquele do pai e, às vezes, do marido. Assim, elas não eram indicadas
com um nome individual. Nomes como Cornélia, Cecília e Túlia são gentilícios (CANTARELLA, 2010, p. 187).

235
era ávida pelo sangue humano”. Em outra passagem, quando a narrativa continua a des‑
tacar a crueldade e a ferocidade de Galo César, ela é mais uma vez mencionada como uma
colaboradora astuciosa em seus atos infames:

Como se tudo isso não bastasse, o seu impetuoso propósito de fazer mal foi exci‑
tado por uma mulher de baixa condição, que levada para a régia sob sua solicita‑
ção, revelou que alguns soldados tramavam armadilhas secretamente. Constantina
exultante de alegria, como se já a vida do marido fosse segura, a recompensou com
presentes e a fez subir sobre um coche, e fez sair ostentosamente através das por‑
tas do palácio, para que outros fossem atraídos para este gênero de denunciar fatos
símiles ou mais graves (Am. Marc. Res Gestae, XIV, 7, 4).

Amiano Marcelino (Res Gestae, XIV, 9, 4) evidencia, na narrativa, que considera este
César cruel e intolerante e não deixa de explicitar o seu juízo sobre a própria influência
da esposa: “Em seguida às cruéis ordens deste homem, que era incitado pela rainha, a qual
de quando em quando dava a ver seu vulto de uma tenda, muitos não puderam defen‑
der-se das acusações e pereceram sem defesa”. Sendo assim, parece que a esposa se man‑
tinha próxima do marido nas audiências, possibilitando, nesse caso, a compreensão da
influência exercida por ela sobre os atos do companheiro e, também, de sua responsabili‑
dade pelas ações descabidas, sendo comparsa na decadência. A fama da maldade e dos atos
insanos cometidos por ele fez com que o imperador enviasse representantes para inqui‑
rir sobre o excesso de violência do Cesar: “às suas perguntas Galo, pálido como Adrasto,
limitou-se a responder que havia ordenado assassiná-los mais por instigação da mulher
Constantina [...]” (Am. Marc. Res Gestae, XIV, 11, 22).
A construção da figura feminina de Constância segue um padrão comum na his‑
toriografia sobre as mulheres, trazendo a pior imagem possível, não obstante ser uma
figura da mais alta estirpe social, tendo recebido do pai, após o casamento com Hani‑
baliano, o título honorífico de Augusta, título imperial romano de alta menção honrosa
empregado para ressaltar as qualidades de majestade e notabilidade, ainda que, para o
feminino, a titulação não corresponda ao masculino, especialmente em relação aos polí‑
ticos do Império. Não é possível saber com detalhes até que ponto ela podia agir como
Augusta nem mesmo a dimensão de sua influência em ações políticas, o que não invalida

236
a possibilidade de exercício do poder quando necessário, como parece ser o caso pela
narrativa de Marcelino.
Em uma escala de valores, a filha de Constantino e irmã do imperador ocupa um
lugar significativo, ainda que não reconhecidamente parte da oficialidade. Ela pode não
ter o poder em si, mas tem prestígio e ancestralidade da família. Lembrando que, na tra‑
dição romana, a família tem um significado bastante complexo, definindo, de modo geral,
um conjunto de pessoas ou de bens que reunia o grupo ligado por vínculos de parentela,
o patrimônio familiar, os escravos que dependiam de um único senhor. Logo, se há um
conjunto maior, em termos de relações no núcleo familiar mais próximo, é natural que
diferentes relações sejam estabelecidas. Salisbury (1995, p. 97-116) destaca as expecta‑
tivas sociais dos pais em relação às filhas, entre as elites romanas. Segundo ela, trata-se
de uma valoração cultural enfatizada por meio dos laços familiares, especialmente em
relação a uma deferência e lealdade. Além disso, o grande poder que o paterfamilias exer‑
cia sobre os membros da própria família por meio da patria potestas justificava a rela‑
ção entre pai e filha, especialmente porque aquele tem o poder jurídico tanto sobre os
filhos quantos sobre as filhas. As mulheres juridicamente são consideradas incapazes e
protegidas por meio da tutela mulierum. Não cabia nenhum tipo de escolha, a idade ou
mesmo o marido. Tudo era conduzido pela valorização do estatuto social, e o respon‑
sável pela manutenção dessa situação era justamente o pai. A história de Constantina,
quando analisada por meio da sua genealogia familiar, evidencia os muitos pactos que
Constantino fez, no decorrer de sua vida, para estabelecer alianças e acordos até chegar
a ser único no comando – prática muito comum nos jogos de poder, que continuou a
ser exercida pelos herdeiros de Constantino.
Assim sendo, no Mundo Antigo, tradicionalmente falando, o destino das mulheres se
concluía por meio do casamento e da maternidade. Não ter participação oficial reconhecida
na vida pública teria marcado uma ausência de identidade individual, já que a existência
feminina justificava-se única e exclusivamente para o âmbito doméstico, especialmente
para a função procriativa. No caso da história de Constantino e sua família, esta é uma
narrativa sobre a dominação masculina, escrita por homens e para homens, enquanto as
mulheres imperiais foram utilizadas como alianças políticas, elos dinásticos e reprodu‑
toras dos herdeiros. Assim, do ponto de vista histórico e das fontes escritas, as mulheres,
quando mencionadas, são definidas como perigosas e ameaçadoras (HARRIES, 2014), já

237
que, se aparecem em relatos, é porque estão fora do seu lugar social, um ambiente que
não merece registro nas fontes, o mundo doméstico.
Entretanto, pode-se pensar por outro ângulo, já que a História das Mulheres está
indelevelmente marcada pela ausência de documentação. As poucas frestas abertas pela
“inovadora” História Eclesiástica e o conjunto documental cristão inserem as mulheres como
modelos da piedade cristã, sobretudo as mártires, as virgens e as viúvas. Elas são destina‑
tárias de tratados, exortações, aconselhamentos e até biografias, fartamente representadas
e imaginadas. Algumas vezes são mencionadas em tratados visando condenar compor‑
tamentos – o das matronas, por exemplo –, mas também há uma literatura de exorta‑
ção e santificação, cujas representações e imagens das personagens femininas dão a ideia
de que a devoção cristã foi um caminho para adquirir um novo status para a sua própria
independência diante da dominação masculina, especialmente em Roma.
Voltando à questão da identidade individual, como afirmar a não existência de uma
identificação própria se o conjunto da cultura escrita é marcado pela ausência da escrita
de “si mesma”? Podemos supor, a partir da preparação educacional, que as mulheres
oriundas dos estratos sociais elevados eram preparadas para a manutenção do status quo
dominante por meio do desempenho social adequado de suas funções. Assim, em um
campo restrito de ações, era precisamente no espaço “apropriado” para as mulheres que
elas podiam e atuavam. As representações de mulheres nos relatos sobre a domus impe‑
rial indicam o papel político desempenhado por meio da reprodução, que assegurava a
descendência legítima das gentes.
Constantina seguramente recebera uma educação adequada para o seu nível social,
considerando que a partir dessa “preparação” ela tem a consciência do seu lugar no mundo.
No sentido de saber que o seu campo de ação depende das suas relações familiares, ela
muito possivelmente tinha conhecimento do seu papel. É o próprio historiador que adje‑
tiva o envaidecimento para justificar a má influência sobre o marido, o germanitate Augusti
surgida supra modum. Assim, sua identificação é marcada pelo seu lugar de origem, a famí‑
lia: filha e neta de imperador, irmã de imperador, esposa de um César e neta de Helena,
que será uma das grandes benemerentes do cristianismo do século IV. Uma filha cujo pai,
preso nas inúmeras teias das intrigas palacianas, assassinou a própria mãe, cujo primeiro
marido também foi morto nessa rede fatal e implacável de relações.
Amiano utiliza Constantina para reforçar e justificar o caráter violento e cruel do
marido, proporcionando uma imagem que não constitui exemplum de bondade. Por meio

238
do relato do historiador, não há como negar o papel ocupado por ela na política, seja do
pai, Constantino, seja do irmão, Constâncio II. Os dois casamentos foram alianças estra‑
tégicas em prol do Império e do poder, sendo então justificável qualquer atitude em prol
da manutenção da posição da família constantiniana no poder.
Filostórgio117 também relata a influência de Constantina na política. Segundo ele,
após a morte de Constantino, Constâncio estava lutando em Edessa, na Mesopotâmia,
quando ela (no texto original, Constância), temendo que o usurpador Magnêncio ascen‑
desse rapidamente e consumasse o controle sobre todo o Império, outorgou o título de
César a um dos generais romanos, de nome Vetrânio. Parece que ela tinha o poder para
fazer isso, pois ainda em vida o seu pai adornou-a com um diadema e concedeu-lhe o
título de Augusta (Philost. Hist. Eccl., 3.22):

Constância, esposa de Galo, ficou exasperada com essas palavras. Galo era ambos
César e esposo da Augusta – (esta última dignidade ela própria recebeu de seu pai)
– […] então ela arrastou-o para o lugar do julgamento com as suas próprias mãos, e
entregou-os nas mãos dos assistentes, que imediatamente levaram-nos para Domi‑
ciano. Ela arrastou Môncio para baixo do trono dele, e amarrando os pés, subme‑
tendo-o à morte com toda espécie de insultos, isso foi feito com muita pressa e
com consentimento de Galo (Philost. Hist. Eccl., 3.28).

Ora, mesmo considerando os exageros do texto, refletindo sobre a ação de Constan‑


tina, com sua atitude irascível, de violência adequada para momentos extremos e própria
de pessoas que exercem o poder, como supor que alguém que age assim não tem uma iden‑
tidade calcada nas bases do poder? Mesmo que em uma escala das relações desiguais haja
também um posto para ela, defender o seu lugar no mundo é proteger o seu status e lugar
social. Sua imagem de mulher cruel e raivosa foi registrada por um historiador contem‑
porâneo e, posteriormente, por um historiador cristão. Ela é representada por eles como
aquela que defende e age pelo e para o marido, mas poderia estar agindo para si mesma.

117  Sua obra História Eclesiástica tem doze livros, começando com o cisma ariano, em 425. A obra sobre‑
viveu no resumo (Epitome) de Fócio, patriarca de Constantinopla, em 853, que por sua vez acusa Filostór‑
gio de ser ariano.

239
Constantina: Deus Venerans Christoque dicata

Algumas narrativas de inspiração cristã sobre as motivações para a construção da basí‑


lica em homenagem à mártir Agnese estão relacionadas com Constantina. Uma delas
conta que a filha de Constantino contraiu lepra e, doente, foi visitar o local – a suposta
catacumba – onde estava sepultada a mártir Agnese. Prostrou-se e, chorando, rogou
pela intercessão da santa, que veio então até ela e disse: “Sede constante, Constantina,
acreditai em Jesus Cristo, filho de Deus, que dá saúde”. Ela então decidiu ser “constante”,
imitando a virgem mártir (SALISBURY, 1995, p. 99).
Em outra fonte, os Atos de Santa Agnese (Acta Sanct.Ianuarii II), narra-se que a vir‑
gem Constância, sendo milagrosamente curada, dirige-se ao pai e aos irmãos para que
ordenem construir uma basílica para a santa e, próximo ao local, quis também que fosse
erguido o seu próprio mausoléu. Diz-se ainda que ela quis consagrar-se a Deus para
imitar sua benfeitora, levando assim seu próprio exemplo a muitos jovens de diver‑
sas condições sociais.
O Liber Pontificalis informa que o imperador Constantino, graças às orações da filha
Constantina, mandou construir uma basílica em homenagem à mártir Agnese (SALIS‑
BURY, 2001, p. 67-68; 1995, p. 98-109; HARRIES, 2014). A inscrição, colocada na abside
da basílica de santa Agnese, existente antes da sua reedificação pelo Papa Simaco no
século VI, traz o seguinte acróstico:

Constantia Deum Venerans Christoque dicata


Omnibus imprensis devota mente paratis
Numine divino multum Christoque iuvante
Templorum quod vincit opus terrnaque cuncta
Aurea quae rutilant summi fastigia tecti
Tartaream solus potuit qui vincere mortem
Invectus coelo solusque inferre triumphum,
Nomen Adae referens et corpus et omnia lembra
A mortis tenebris et caeca nocte levata.
Dignum igitur munus martyr devotaque Christo
Ex opibus nostris per saecula longa tenebis.
O feliz virgo, memorandi nominis Agnes.

240
Constantina venerada de Deus e convertida ao Cristo, forneceu com o coração
devoto todas as despesas, assaz ajudada pela vontade divina e por Cristo, dedi‑
cou o templo da vitoriosa virgem Agnese, o qual supera em todas as estruturas
dos templos e todas as construções profanas, cujos fastígios dos tetos elevados são
reluzentes de ouro. O nome de Cristo se celebra nesta sede, o qual apenas vence
a morte tartárea e, elevado ao céu, apenas triunfou: portando o nome de Adão, o
corpo e todos os membros, retirou das trevas da morte e da noite cega. O digno
dom, ó mártir devota a Cristo, constituído pela nossas substâncias, conservai por
longo século, ó virgem feliz, de memorando o nome de Agnese (TROUT, 2015;
SCHIVO, 2007; BRANDENBURG, 2006, p. 2).

Assim, o acróstico CONSTANTINA DEO (Constantina para Deus) registra-a como


fundadora da igreja. Parece ser esta uma fonte segura118, além de outras informações
que complementam aquelas enunciadas na dedicatória. Muito possivelmente, ela patro‑
cinou a basílica em homenagem à mártir Agnese, em uma propriedade imperial da
Via Nomentana, em Roma, no período de viuvez de Hanibaliano, entre 337 e 351. São
poucas as informações de Agnese, mártir que foi sepultada nas catacumbas vizinhas.
Entretanto, sabe-se que, nessa época, o culto aos mártires era muito popular, e, no caso
específico de Agnese, houve um aumento de sua importância, o que pode colaborar
com a hipótese de Constantina ter atuado como patrona dessa edificação e fundado
um santuário digno de celebrações comemorativas da mártir, seguindo assim o exem‑
plo da avó paterna, Helena, que também foi lembrada e santificada pela sua beneme‑
rência cristã. Do ponto de vista da análise textual desse epigrama, ele segue a tradição
de composição clássica.
Analisando as diferentes maneiras de ser cristão ou cristã nos séculos IV e V, Trout
(2014, p. 215-234) demonstra que a poesia epigráfica foi um meio peculiar de expressão,
tanto da individualidade quanto da idiossincrasia, que possibilitou demarcar o território
da identidade feminina, ao contrário da identificação representada por meio das fontes
literárias. É um estudo que reúne um conjunto relativamente pequeno de informações,
em que predominam as homenagens para filhas e jovens esposas, dedicadas por pais e

118  A inscrição dedicatória está registrada no Manuscrito Prudenciano: CVR-NS- VIII, 20752 = ILCV
1768 (SILVAGNI et al., 1922-1992).

241
maridos, verificando que também nesse locus as projeções masculinas da “feminilidade”
podem ser usadas para dificultar a compreensão do que significava “ser mulher” e indi‑
car facetas da identidade feminina na Antiguidade Tardia, menos abertamente mediada
pelos homens do que as imagens extraídas da literatura.
O acróstico é uma composição poética em que cada verso principia por uma das
letras da palavra que lhe serve de tema. Um epigrama que usa essa técnica de composi‑
ção evidencia o uso inteligente do jogo de palavras na poesia, é um sinal para os leito‑
res de autoproclamação. Constantina, ao deixar ali o seu nome, introduzindo o poema
tanto horizontalmente quanto verticalmente, molda a sua devoção e destaca a sua íntima
relação com o divino e o Cristo (TROUT, 2015). A composição usa a métrica clássica
virgiliana e ovidiana e, ao compor lançando mão do modelo romano de escrita erudita,
faz uso de uma tradição clássica. Autores como Virgílio e Ovídio inserem os leitores no
campo de formação da educação e da cultura clássica. Usá-los proporciona um destaque
para Constantina, e não para a virgem mártir – esta última aparece como uma leve som‑
bra. A basílica, cuja construção resulta de patrocínio da filha de Constantino, termina
por inserir nos versos a veneração a Deus e a conversão ao Cristo, o verdadeiro vence‑
dor, inserindo Agnese como coadjuvante que, de qualquer maneira, tem uma importân‑
cia fundamental no contexto cristão desse período.
Outro documento bastante interessante, não ligado especificamente à Constantina,
mas, sim, à mártir Agnese, é o Carme, cuja autoria é atribuída ao papa Dâmaso. O poema
se encontra sobre uma lápide exposta na escadaria da Basílica de Santa Agnese. Segundo
o texto, a jovenzinha, ainda com a idade entre 12 ou 13, testemunhou a sua fé ao Cristo
e foi condenada ao martírio, que muito possivelmente ocorreu no período de Diocle‑
ciano, entre 303 e 313 (PAUTRIER, 2013, p. 224-225).

FAMA REFERT SANCTOS DUDUM RETULISSE PARENTES. AGNEN CUM


LUGUBRES CANTUS TUBA CONCERNISTE. NUTRICIS PREMIUM SUBITO
LIQUIDE PUELLAM. SPONTE TRUCIS CALCASSE MINAS RABIEMQUE
TYRANNI. URERE CUM FLAMMIS VOLUISSET NOBILE CORPUS. VIRIBUS
INMENSUM PARVIS SUPERASSE TIMOREM. NUDAQUE PROFUSUM CRINEM
PER MEMBRA PEDISSE. NE DOMINI TEMPLUM FACIES PERITURA VIDERET. O
VENERANDA MIHI SANCTUM DECUS ALMA PUDORIS. UT DAMASI PRECIBUS
FAVEAS PRECOR INCLYTA MARTYR.

242
Segundo uma antiga tradição, os pais santos relataram que quando o estrondo
(da perseguição) fez ouvir lugubremente a sua voz, não obstante fosse menina, ele‑
vou-se prontamente do seio da nutriz, para enfrentar, espontaneamente, a ira e
a ameaça do feroz tirano, o qual quis queimar o nobre corpo. Com forças tênues
soube superar um medo tremendo, e soltou os cabelos sobre os membros nus, para
impedir que o templo de Deus (o corpo) fosse profanado pelo olhar dos mortais.
Ó eleita e benigna mártir, por mim venerada, que santamente honraste o pudor,
te peço que atenda às preces de Dâmaso (BRANDENBURG, 2006).

A inscrição, datada do século IV, foi confeccionada por Fúrio Dionísio Filócalo, calí‑
grafo do século IV, que ficou famoso pelas suas epígrafes em mármore ricamente orna‑
mentadas ditadas pelo papa Dâmaso. Quanto ao texto, este segue o estilo tradicional
das inscrições, qual seja, é escrito com letras maiúsculas, adotando um estilo conciso e
solene para homenagear a mártir. O texto segue as regras de composição da Antiguidade
Tardia, apresentando assim as características específicas da mensagem cristã com o intento
de veiculação para um público amplo e heterogêneo.
Sobre o estilo da composição, Milazzo (2015, p. 397-399) afirma tratar-se de uma
poética que faz uso de recursos estéticos diversificados, estimulando tanto as emoções
quanto o intelecto ao remeter aos métodos de composição da literatura clássica, em espe‑
cial aos versos hexâmetros com “sabor” virgiliano, que tecem uma fina rede entre remi‑
niscências profanas e referências bíblicas e trançam uma imagem da mártir e de suas
vicissitudes enevoadas em seus traços reais, mas com clara força evocativa. A memó‑
ria do martírio é colocada em uma tradição oral difusa, patrimônio da memória coletiva
que o pontífice fixa na singela homenagem, evidenciando em diferentes lugares as qua‑
lidades de Agnese, que era ainda uma menina quando saltou dos braços da nutriz para
as mãos do tirano. Ela, embora jovem, foi capaz de uma atitude de muita coragem, de
modo que a figura da garota assume a função de exemplum para as moças, um exemplo
coerente com o projeto do Papa Dâmaso de promover a opção da virgindade. No final,
como se o poeta estivesse “assinando” o texto, dirige-se à mártir, acrescentando apelati‑
vos que legitimam as virtudes da menina, definida como veneranda, alma, inclyta martyr,
juntamente com decus pudoris; o martírio e o pudor estão intimamente associados. Enfim,
temos aqui a homenagem de um papa que ficou muito famoso por ter feito encontrar,
especialmente em Roma, diferentes sepulturas de mártires, alguns corpos depositados

243
quase que invisivelmente nas catacumbas da cidade, não apenas visibilizando os locais,
mas consolidando esses lugares de culto e favorecendo sobremaneira a monumentaliza‑
ção de uma Roma cristã.
Enfim, tanto o epigrama de Constantina quanto o carme de Dâmaso seguem os
padrões de composição da norma culta e clássica, evidenciando que o público leitor com‑
preende e faz parte desse meio cultural. E mais, seja ela – que ofereceu seu patrocínio
para a construção da basílica como enaltecimento de sua ação de evergeta –, seja o carme
do papa para a mártir Agnese – usado como propaganda da virgindade para as jovens –,
ambas as ações se circunscrevem em um processo bastante complexo de consolidação do
cristianismo no interior da cidade de Roma, uma espécie de propaganda de si que favo‑
recia e publicizava a imagem individual da protagonista mediante a construção de um
delicado e forte elo com a menina Agnese.
Em um contexto mais amplo, em que a nobreza senatorial adquire visibilidade, ante‑
riormente completamente ofuscada pelo imperador, a partir de Constantino o centro das
decisões políticas muda para Constantinopla, possibilitando então a inserção de novos
patronos na cidade. Entra assim em cena o evergetismo privado e o protagonismo dos
funcionários públicos, particularmente os prefeitos urbanos, que, a partir de 331, passam
a ser responsáveis pela manutenção dos edifícios, assim como pela projeção da própria
comunidade cristã, mais especificamente por meio do pontífice, construindo-se novos
lugares para os cultos cristãos – as basílicas suburbanas – ao lado dos cemitérios e dos
túmulos dos mártires (LIVERANI, 2000, p. 49), como é o caso da Basílica de Santa Agnese.

Memória de Constantina: o mausoléu de Santa Constância

Sobre a morte de Constantina, sabemos por meio de Amiano Marcelino (Res Gestae,
XIV, 11, 6) que Galo César e a esposa foram convidados a ir ao encontro de Constâncio.
Ela, por conhecer bem o caráter do irmão, que algumas vezes se mostrava sanguinário,
partiu antes do marido visando acalmar Constâncio, mas, “quando chegou à Bitínia, foi
atacada de improviso por uma violenta febre e morreu na estação de Caenos Galicanos”.
Sabemos ainda da angústia do viúvo para salvar-se, já que não podia mais contar com a
esposa. E, assim, laconicamente, somos informados da morte da Augusta. Mais adiante,
Amiano (Res Gestae, XXI, 1, 5) ainda nos informa sobre o lugar de sepultura da Augusta:

244
enviou para Roma os restos mortais de sua mulher Helena, para que fossem sepul‑
tos em uma propriedade nos arredores da Urbe, localizada na via Nomentana,
onde precedentemente havia sido sepultada também a mulher de Galo, Constan‑
tina, que era irmã de Helena.

Sendo assim, foi construído um mesmo magnífico monumento funerário para duas
princesas piedosas, ao lado de uma igreja dedicada à menina, virgem e mártir Agnese,
ficando na memória patrimonial a marca de uma igreja e um jazigo para encerrar e guar‑
dar a lembrança de três mulheres. Vidas que chegaram até nós, quase invisíveis, pequenos
fios, “[…] traços breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes em virtude do seu contato
momentâneo com o poder [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 98).
O culto aos mortos e a construção de mausoléus, monumentos erguidos em memória
de um morto nele encerrado, eram parte da tradição romana muito antes do cristianismo,
e esse antigo costume manteve-se até o século V, uma prática disseminada nos domínios
romanos. Um mausoléu geralmente era um edifício majestoso, cujo luxo dependia da con‑
dição financeira da família que encomendava o túmulo. A função predominante era tor‑
nar inesquecível a memória do defunto, mantendo viva a recordação do destinatário do
sepulcro, realçando a fama real ou almejada. Particularmente, para as sepulturas impe‑
riais, preferiam-se os mausoléus redondos, cuja forma derivava dos heróa arcaicos. As
sepulturas de Constantino e dos membros de sua família mantêm o modelo tradicional
na construção dos monumentos funerários, havendo, no entanto, uma diferença subs‑
tancial, pois essas luxuosas construções situavam-se em ambientes cristãos, geralmente
próximos da sepultura dos mártires e santos. A suntuosidade dos mausoléus imperiais
ofuscava sobremaneira aqueles dos mártires e santos; estes, por sua vez, engrandeciam
os túmulos dos soberanos.
Constantino mandou construir santuários espetaculares e mausoléus cristãos nos arre‑
dores de Roma, além de sepulcros imperiais suntuosos dedicados à memória de mulheres
da família. Ao lado da tumba de Santa Agnese, foi construído o mausoléu de Constantina,
que corresponde, nos dias de hoje, à igreja de Santa Constância, em Roma. Inicialmente, não
foi erguido como templo. Nele, predomina uma decoração com motivos campestres, como
a uva. Tratava-se de um mausoléu secular, de propriedade imperial, construído para uma
grande princesa e que passou a ser denominado por alguns como a “Tumba de Baco”, justa‑
mente por causa da decoração das uvas recém-colhidas (BROWN, 2014, p. 339).

245
Assim, podemos ver o mausoléu de Constantina construído ao lado do nártex da basí‑
lica circular de Santa Agnese. A construção ocorreu muito provavelmente entre os anos
de 340 e 345. Ainda hoje preservado, exceto o átrio, possui uma planta circular, com um
vão central que abriga uma cúpula originalmente decorada com cenas do Velho Testa‑
mento, enquadradas por cariátides douradas, sustentada por uma colunata e circundada
por um deambulatório coberto por uma abóbada de berço inteiramente revestida por uma
decoração musiva, que é ampliada em um vão maior originalmente decorado com mosai‑
cos representando a Jerusalém celeste, no eixo com a entrada, onde provavelmente esta‑
vam colocados o sarcófago da princesa (morta em 354) e da irmã Helena (morta em 360).
O edifício passou a ser designado como mausoléu de “Santa Constância” quando Cons‑
tantina passou a ser venerada como uma santa, no medievo.

Considerações finais

Considerando que pouco se fala das mulheres nos registros históricos do século IV, a
despeito de todas as dificuldades, Constantina aparece nas fissuras da narrativa histó‑
rica representada como uma mulher de gênio forte e cruel; mas a memória patrimonial
e monumental, capaz de criar narrativas as mais variadas, nos deixou como registro uma
mulher que patrocinou a construção de um templo para uma jovem mártir e que, ao lado
de tão doce menina, foi elevada à última morada da nobre princesa. Quis o contexto his‑
tórico da legitimação do cristianismo que a Augusta tivesse o nome um pouco alterado,
como que para a santificar, de Constantina, filha do ilustre imperador, para Constân‑
cia, indicando firmeza, segurança, coragem, características dignas de uma santa. Apesar
de todas as dificuldades e silêncios sobre as mulheres nas documentações oficiais, pró‑
prias para o uso da história política ou militar, o testemunho monumental demonstra a
força que tem na preservação da memória. Um patrimônio histórico de valor inestimável,
ainda hoje usado como templo para celebrações religiosas, faz pensar que Constantina
tem vida e força por meio dos documentos que a ela se referem, em dois monumentos e
na hagiografia cristã medieval, pelos quais se legitima a posição de uma poderosa Augusta
que é venerada como Santa Constância.

246
Referências

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248
Memória e (re)criação de sentidos: a sacralização
do poder imperial no Adversus arrianos libri,
de Hilário de Poitiers (séc. IV d. C.)
Ana Teresa Marques Gonçalves
Fernando D. Teodoro Moura

Henri Bergson (1999), em Matière et mémoire, nos auxilia a pensar como as memórias são
conservadas. Para ele, existem dois tipos de memória: uma memória-contração, em que
variedades de lembranças são contraídas em um ponto mínimo; e uma memória-lem‑
brança, que seria toda a extensão das lembranças passadas. Nessa linha, Joёl Candau asse‑
vera que a memória é sempre a consubstancialização atualizada do passado, “mais do que
uma reconstituição fiel do mesmo” (CANDAU, 2011, p. 9). De tal modo, Gilberto Velho
assegura que memória e projetos “são amarras fundamentais. São visões retrospectivas
e prospectivas que situam o indivíduo [...] dentro de uma conjuntura de vida, na suces‑
são das etapas de sua trajetória” (VELHO, 2003, p. 101).
Assegurando o cuidado metodológico, tais posturas sobre a consubstancialização da
ausência, via narrativa memorialística, podem auxiliar-nos a refletir sobre a maneira pela
qual os cristãos realizaram uma contração memorial que buscava centralizar as múltiplas
orientações, produzidas pelas divergentes memórias, provindas de experiências cristãs,
presentificadas/consubstancializadas em uma forma politicamente engajada com proje‑
tos memoriais, que arquitetavam um tipo de identidade cristã compatível com o então
Império Romano Tardio.
Nesse ínterim, buscamos delimitar como os grupos clericais, que não possuíam uma
unidade político-religiosa, procuraram compor, por meio de recursos vindos tanto da pró‑
pria tradição judaico-cristã quanto da greco-romana, uma unidade simbólica ao grande
Império Romano. Sabemos que esse tenso processo buscava desenvolver, por aproxi‑
mações/mutações entre elementos díspares, desconexos e mesmo concorrentes, uma

249
concórdia para estabelecer um tipo específico de poder, o qual Gilvan Ventura da Silva
chama de “realeza sagrada119” (SILVA, 2000b, p. 193).
O presente trabalho busca delimitar, dentro do espaço aqui permitido, como Hilário
de Poitiers domesticou traços, que per si eram desconexos, do passado judaico-cristão em
uma continuidade estruturante de uma memória, que produziria conectividades entre a
então centralizada identidade cristã e uma unidade simbólica do Império Romano, repre‑
sentada em nosso trabalho pela sacralidade do poder de seu pontifex maximus.
Para isso, nossa abordagem se detém a analisar o Contra os arianos, escrito por Hilá‑
rio, que nasceu no início do século IV, possivelmente entre 310-320 da era comum, em
Pictavium (Poitiers), na Gália Aquitânia Segunda, atual Poitiers, na França, de pais ricos
e pagãos. Venâncio Fortunato informa que Hilário foi casado e teve uma filha de nome
Abram (Vite dei Santi Ilario e Radegonda di Poitiers I, 6).
As referências que temos da vida de Hilário foram obtidas por meio de conclusões
extraídas de alguns escritos seus, com destaque para as informações provindas do pre‑
fácio do Contra os arianos (I. 1-14). Além disso, o De Viris Illustribus, escrito por Jerô‑
nimo, faz a seguinte alusão: “Hilário, bispo da cidade de Poitiers, na Aquitânia, exilado na
Frígia pelo sínodo de Béziers por obra da facção de Saturnino, bispo de Arles, escreveu
doze livros contra os arianos” (Jerome. De viris illustribus. 100, apud Petri, 2000, p. 7).
Também temos notícia de Hilário por meio da obra Vite dei Santi Ilario e Radegonda di
Poitiers, de Fortunato. E, por último, podemos obter conhecimentos a respeito do bispo
de Poitiers com os livros Vida de San Martín e as Crônicas, ambos escritos por Sulpício
Severo (DOIGNON, 1971; HENNE, 2006).
Para melhor entender o batismo de Hilário, ocorrido em 345, julgamos ser neces‑
sário compreender, em primeiro lugar, o conceito de ruptura do “modelo de paridade”
cunhado por Peter Brown (1984, p. 78; SILVA, 2003b, p. 25). Tal modelo teria irrompido,
gradativamente, em meados do século III, desencadeando mutações em estruturas sociais,
políticas e religiosas que mantinham certa unidade simbólica para o orbis romanorum,
corolário que era constante e necessário. Assim, nesse contexto

119  Sabemos claramente que Hilário não utilizou o termo realeza sagrada, no entanto, entendemos que
ele desenvolveu via sua exegese bíblica uma política eclesiástica que tanto unia cristãos arianos moderados
e nicenos quanto aproximava a imagem do regente imperial à de Cristo, o que fazia do Imperador a ima‑
gem perfeita de Cristo, que era igual a Deus, na Terra.

250
[...] alguns indivíduos passam a gozar de um estatuto privilegiado no seio das comu‑
nidades locais, o que conduzia, no plano religioso, à fixação de uma hierarquia espi‑
ritual cada vez mais rígida. A ruptura desse modelo de paridade só poderia estar
relacionada, em nossa opinião, a transformações significativas na estrutura social
das cidades, como as produzidas pela crise do século III [...]. Do mesmo modo,
Athanassiadi, [...] ao tratar do processo de apropriação da autoridade divina dos
oráculos por parte de indivíduos excepcionais, tende a atribuir uma importância
significativa ao contexto de crise vivido em meados do século III para o eclipse da
prática oracular clássica (SILVA, 2003b, p. 25).

Devido às reorientações ocorridas no Império Romano, surgiu no campo religioso


um paulatino esgotamento da capacidade dos homens de estabelecerem, por si mesmos,
contatos com o divino (SILVA, 2003b). Isso coadunou com um “abandono progressivo
da antiga concepção grega segundo a qual a razão, exercitando-se por ela mesma, seria
capaz de penetrar na essência das coisas” (SILVA, 2003b, p. 20). É em meio a esse tenso
momento que tentamos entender a ressignificação intelectual e religiosa que Hilário expe‑
rienciou, conforme se nota a seguir, numa passagem em que ele argumenta que:

Muitos afirmam a existência de numerosas famílias de pretensos deuses e, julgando


haver na natureza divina o sexo masculino e feminino, sustentavam haver nasci‑
mento e sucessões de deuses. Pregavam a existência de deuses, uns maiores e outros
menores, diferentes quanto ao poder […]. No meio de tudo isso, meu espírito solí‑
cito, esforçando-se por seguir o caminho útil e necessário para o conhecimento de
seu Senhor, não considerou digno de Deus o descanso pelas coisas criadas por Ele
e julgava também não competir à natureza forte e incorrupta o sexo dos deuses e
as sucessões de progenitores e nascidos (Hil. De Trinitate, I, 1-4).

Sara Petri (2011, p. 74) assegura que essa postura de se colocar como alguém que
“procurava investigar o sentido propriamente religioso da vida humana” (Hil. De Trinitate,
I, 1) ecoa o incipit do Sobre o orador (1, 1, 1) ciceroniano (“A mim que pensava frequente‑
mente e percorria as antigas memórias [...]”). Assim, ainda com Petri (2011, p. 75), per‑
cebemos que essa postura de buscar um “aperfeiçoamento interno” já se fazia presente na
obra Divinae instituitiones (3, 9, 6-6), de Lucio Célio Firmiano Lactâncio.

251
Após seu batismo, em 345, Hilário foi nomeado bispo da cidade de Poitiers (354-355).
A ascensão à domus ecclesiae lhe outorgou poderes de ação e de palavra, um prestígio tradi‑
cionalmente conferido a pessoas de seu nível social e intelectual (GRIFFE, 1965, p. 66‑67).
Essa ascendência proporcionou ao bispo gaulês considerável influência política e reli‑
giosa na Gália (SIMONETTI, 2002, p. 675-676), a qual se dividia em vários grupos que
disputavam o poder de instituir uma ortodoxia episcopal definitiva, que unificaria todas
as comunidades cristãs por meio de um sistema doutrinário e dogmático centralizante.
Instruído segundo os princípios da paideia greco-romana em Bordeaux, à época
núcleo intelectual da Gália (SIMONETTI, 2002, p. 675-676), Hilário possuía, segundo
Philippe Henne (2006, p. 7), uma instrução baseada em gramática e retórica, o que lhe
propiciou uma notável precisão de linguagem e concisão de fórmulas. Isso, por sua vez,
suportou a hipótese de que Hilário teria sido funcionário do Império, conjectura essa aba‑
lizada por duas questões: a primeira seria porque Hilário “tinha um estilo mais de jurista
do que de poeta”; e a segunda, de que a cidade de Poitiers era então centro administra‑
tivo e jurídico do Império na Gália Aquitânia Segunda (HENNE, 2006, p. 26).
Segundo Jean Doignon (1971, p. 85), os códices mais antigos que temos do Con-
tra os arianos são os do Vaticanus Basilicanus e o Parisinus Latinus, que foi reintitulado de
Collectanea antiariana Parisina e encontra-se depositado na Bibliothèque de l’Arsenal,
em Paris. Na Itália, temos uma cópia feita, provavelmente, por Cassiodoro no século VI,
que é a Veronensis (PETRI 2011, p. 194-195; MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 325;
HENNE, 2006, p. 79).
Escrito em latim, o Contra os arianos está organizado em doze panfletos, constituí‑
dos por pequenos capítulos, compostos provavelmente ao longo do exílio de Hilário
no Oriente Médio, no decorrer dos anos de 356-360 (BORCHARDT, 1966, p. 39). Pos‑
suindo uma tipologia de caráter dogmático (altercatio, controvérsia), esses livros reto‑
mam, segundo Moreschini e Norelli, “o legado da tradição teológica ocidental, formada
por Tertuliano e Novaciano, [...] atualizando-a e confrontando-a com as últimas aqui‑
sições da teologia grega” (MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 328; HENNE, 2006, p. 81).
Para Émile Goffinet (1965, p. 6-7):

Graças aos contatos que teve com o mundo grego, Hilário foi influenciado pela
literatura grega cristã e isso marca a evolução de sua obra literária e de seu método
científico. Para estudar Santo Hilário é preciso considerar sua cultura latina e

252
sua cultura grega, que se desenvolveu consideravelmente durante seu exílio. No
momento em que o conhecimento do grego diminuía sensivelmente no Ocidente,
o helenismo de Hilário constitui um campo de ligação entre o Ocidente e o Oriente.
Assim, B. Altaner pode escrever que Agostinho conheceu a obra de Orígenes, den‑
tre outras, pela tradução de Hilário. E. Mersch já tinha chamado a atenção para a
grande importância da influência grega sobre santo Hilário.

Em relação a isso, Werner Jaeger assegura que, certamente, mediante o uso da lín‑
gua grega os cristãos tiveram à sua disposição “todo um mundo de conceitos, catego‑
rias de pensamento, metáforas herdadas e subtis conotações de sentido” (JAEGER, 2002,
p. 17-18). No entanto, Henri-Irénée Marrou nos alerta que, mesmo havendo essa “osmose
cultural” entre as duas culturas, é fundamental esclarecer que “a oposição que separava
esta cultura do cristianismo era profunda” (MARROU, 1975, p. 486-487).
Doignon (1971, p. 177) afirma que a carta de Ário, compilada no livro quarto e recom‑
pilada no sexto, foi escrita originalmente em grego, e que Hilário a traduziu para o latim,
ainda que “só tendo um sopro da cultura clássica”, como atesta Jerônimo, podendo até
mesmo ter utilizado um tradutor.
Philippe Henne (2006, p. 80), em seu livro Introduction à Hilaire de Poitiers, afirma
que não sabemos se Hilário tinha conferido título a esses livros, uma vez que o nome
De Trinitate foi localizado em manuscritos tardios, como os de Fortunato120 (séc. VI)
e Cassiodoro121. Adversus Arrianos libri122 é a nomenclatura que nos transmite Jerô‑
nimo123 (séc. IV); De Fide foi o título usado por Cassiodoro de Encan (séc. VI); nos
manuscritos mais antigos, não se encontra titulação para esse escrito do bispo pictaviense
(SIMONETTI, 2002, p. 46-49).
Analisamos o processo de constituição do dogma da Trindade, mais especificamente
a determinação da identidade de Cristo e sua relação com Deus124. Defendemos que essas
formulações buscavam centralizar uma identidade cristã voltada ao reconhecimento de
um tipo específico de sacralidade do poder do regente imperial.

120  Vita Hil., 14 (SIMONETTI, 2002, p. 46).


121  Inst., I, 26 (SIMONETTI, 2002, p. 46).
122  Título que utilizamos por defendermos que seja mais adequado aos objetivos de escrita da obra.
123  De Viris Illustribus, 100 (SIMONETTI, 2002, p. 46).
124  Logo, a terceira pessoa da Trindade não é objeto deste trabalho.

253
Conforme Silva (2000b, p. 189), não podemos afirmar que a elevação do cristianismo,
no Império, à condição de uma religião lícita tenha sido um fator que erradicou as ado‑
rações feitas ao imperador. Pelo contrário, “a proximidade do soberano com o divino
era um fato indiscutível, tanto que, após Constantino a devotio, o juramento de fideli‑
dade do populus romanus, passou a ser prestado ao imperador e à Santíssima Trindade”
(ULLMAN apud SILVA, 2000b, p. 190).
Para Alba López (2011, p. 38), os bispos desse período apoiaram a relevância de um
imperador para os cristãos e assim foram transformados em aliados do Império. Dessa
maneira, segundo a autora, no “imaginário político cristão, o imperador começa a tomar
um cariz diferente, vinculando-se cada vez mais à divindade e à concepção de Logos até
o ponto de aparecer como imagem de Deus enquanto supremo soberano do céu”. Nesse
sentido, o cristão Flávio Vegécio Renato declarou que:

Os soldados juram por Deus, pelo Cristo e pelo Espírito Santo, e pela Majestade
do Imperador que após Deus deve ser o principal objeto do amor e da veneração
dos povos, pois desde que ele foi declarado Augusto, lhe são devidas uma fideli‑
dade inviolável e uma homenagem constante, como a imagem viva da divindade e
é servir a Deus na guerra e em tudo servir fielmente o príncipe que reina por sua
graça (De re militari II, V apud SILVA, 2000b, p. 190).

Sabemos que esse processo foi iniciado com a concessão de licitude à religião cristã,
com o chamado Edito de Milão (313), no qual o imperador Constantino I, não tornando
o cristianismo a religião oficial, fato que só ocorreria com o imperador Teodósio125, abriu
caminho para que os clérigos pudessem se debruçar sobre assuntos internos da Cristan‑
dade. Logo, o problema da identidade cristã foi intensificado e desencadeou uma ingente
luta para estabelecer uma ordem institucional conforme os traços estruturantes de uma
memória bíblica, que, por sua vez, teria o papel de estabelecer uma unidade simbólica
entre o modus vivendi cristão e o romano.

125  Para mais informações sobre o governo do imperador Teodósio, ver: Empire chrétien et église aux IVe
et Ve siècles, intégration ou “concordat”? Le témoignage du Code Théodosien. Os textos que compõem esta obra
foram reunidos e editados por J.-N. Guinot e Fr. R Richard.

254
A unificação das práticas religiosas no mundo cristão objetivava arquitetar uma uni‑
dade de sentidos entre os diferentes agentes religiosos, atender à vontade de se produzir uma
verdade válida para qualquer cristão e institucionalizar uma política religiosa que seria efe‑
tivamente legitimada com status de religio lícita (verdadeira) diante do poder imperial. Este
agiria com rigor diante das demais interpretações, que seriam tachadas de superstitio (falsa).
Pierre Bourdieu (2013, p. 69) assinala que os sistemas religiosos contribuem para a
manutenção e legitimação da ordem política. Tais sistemas estabelecem mecanismos que
naturalizam as estruturas políticas e os combates simbólicos, que expressam as tentativas
de subversão da ordem estabelecida. Tal controle era, com efeito, necessário à sociedade
romana tardia, pois ir contra essa “ordem da sociedade é sempre arriscar-se a mergulhar
na anomia, é [...] aliar-se às forças privadas da escuridão” (BERGER, 1985, p. 52).
Para Robert A. Markus (1997, p. 13), a comunidade cristã “viu-se muito cedo em sua
história forçada a perguntar-se o que era ela mesma”. Porém, asseguramos que esse pro‑
cesso foi intensificado no século IV e objetivava, por um lado, cerrar as fronteiras entre
cristãos e eles mesmos, e entre cristãos, gentios e judeus; e, por outro, delimitar uma
aproximação entre Igreja e Império Romano.
Produtoras até então de distintas orientações para as comunidades cristãs, as desco‑
nexas experiências judaico-cristãs constituintes de conflitantes memórias cristãs foram,
a partir de celeumas trinitárias, canalizadas e enrijecidas em um corpus doutrinário e
dogmático engajado com a política-eclesiástica desejada. Destarte, os diferentes modos
de voltar ao passado evangélico e gerar consciência político-religiosa seriam ordena‑
dos e unificados por mecanismos internos e externos da Igreja e do Império Romano
(GALVÃO-SOBRINHO, 2013).
Nesse caminho, antes de analisarmos as maneiras pelas quais a narrativa do bispo de
Poitiers estava engajada com o contexto político-religioso de estabelecimento de estrutu‑
ras conectivas entre as comunidades cristãs e o poder imperial, é necessário ater-nos em
algumas posturas referentes à efetiva representatividade de Hilário para defender a pro‑
posta político‑religiosa definida no Concílio de Niceia, em 325 (GRIFFE, 1964, p. 201).
Ao analisarmos conjunturalmente as ações de Hilário com relação ao momento polí‑
tico-religioso pelo qual ele passava, percebemos a impossibilidade de atribuir uma única
postura político-religiosa às suas ações e propostas, mas consideramos que essas foram
adaptadas aos diferentes momentos políticos que o bispo vivia, ou seja, antes, durante e
depois do exílio no Sínodo de Béziers, em 356 (DOUAIS, 1875, p. 3).

255
Antes e durante seu exílio na Frígia, Oriente Médio, Hilário tentou realizar aproxi‑
mações políticas com o imperador Constâncio II (Hil. Liber II ad Constantium, 1.I). Mesmo
na obra Contra os arianos, o autor demonstra uma postura de mediação e aproximação, ao
combater somente os cristãos arianos mais radicais, partidários do trinitarismo do presbí‑
tero Ário. Assim, avaliamos que Hilário não tinha uma posição extrema, pois, ao escrever
a obra In Constantium (contra Constâncio II), na qual o imperador é equiparado ao anti‑
cristo (Hil. In Const., 6), o bispo foi entendido como extremamente contrário à política
religiosa desse imperador, mas entendemos que tais leituras são apressadas e descontex‑
tualizadas, porquanto um olhar mais demorado aos meandros políticos e espaço-tempo‑
rais em que a obra foi propagada revela que apenas tardiamente esse escrito apareceu no
cenário político-religioso. Jerônimo (De Viris Illustribus, 100) defende que isso se deu tão
somente com a morte do próprio imperador Constâncio II (SIMONETTI, 2002, p. 676;
ROCHER, 1987, p. 30). Sabemos que acusações de tal nível a um imperador, mesmo nesse
período, não seriam toleradas e caracterizariam um crime de lesa-majestade.
Defendemos que Hilário estava trabalhando em uma proposta maior, talvez como um
agente intermediário, que havia se interessado em estabelecer uma concórdia entre bispos
do Ocidente, especificamente os da Gália, Germânia e Bretanha126, em uma estratégia de
mediação política que possibilitaria unificar a Cristandade e, assim, construir mecanismos
para legitimar tanto um grupo de bispos quanto a autoridade do imperador Constâncio II
perante as comunidades cristãs (ABOGADO, 2013; LE GUILLOU, 1968; PETRI, 2011, p. 50).
Hilário endereçou três escritos ao imperador Constâncio II. Do primeiro, um pan‑
fleto escrito em sua defesa antes do exílio, Primeiro livro ao imperador Constâncio II (Liber
prior ad Constatium Augustum), obtivemos uma carta coletiva, provavelmente do Con‑
cílio de Sárdica (343), endereçada ao imperador, alertando-o dos acontecimentos desse
encontro e dos possíveis cismas futuros (MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 325-326).
As outras duas cartas foram elaboradas ao longo do exílio de Hilário de Poitiers. Numa
delas, Líber secundus ad Constantium Augustum, escrita em 360, Hilário solicita ao impera‑
dor que lhe conceda um debate tetê-à-tête com Saturnino de Arles, “para forçá-lo a admi‑
tir suas mentiras e seus erros” (MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 325). Nessa obra, o
bispo Hilário (Ad Const., 2-4) tenta fazer a seguinte aproximação:

126  Hilário, quando exilado no Oriente, enviava cartas “informando” os acontecimentos ocorridos em
sínodos e concílios (Ilari di Poitiers. Sinodi e Fede degli Orientali. 1993).

256
Mas estou em exílio não por sua culpa, mas por causa de uma facção e por causa
das falsas notícias do sínodo levadas e ti, devoto imperador [...]. Reconhece a fé que
há muito, ótimo e religiosíssimo imperador, desejas ouvir dos bispos e não ouves.

Não sendo concedida sua petição, Hilário escreveu também, em 360, um violento
panfleto, Contra Constantum imperatorem, no qual “nos informa das manobras fraudulen‑
tas empreendidas pelas autoridades imperiais contra os defensores da ortodoxia e, como
exemplo, dos acontecimentos do Concílio de Selêucia de 359” (MORESCHINI; NORELLI,
2000, p. 326; SMULDERS, 1944, p. 63), e expressa sua aversão à política religiosa implan‑
tada pelo regente imperial:

Eu grito em tua face, Constâncio, o que teria declarado a Nero, o que Décio e Maxi‑
miano teriam ouvido de minha boca: tu combates contra Deus, tu te desembestas
contra a Igreja, tu persegues os santos os pregadores do Cristo, tu esmagas a reli‑
gião, tirano não mais em matéria profana, mas em matéria religiosa. [...] tu te passas
falsamente por cristão, tu que és o novo inimigo de Cristo; precursor do Anti‑
cristo. [...] tu inventas fórmulas de fé [...] tu substituis os bons bispos pelos maus.
[...] tu superas o diabo e persegues sem martirizar (Hil. In Const., 6).

Silva (2003a, p. 231), em seu artigo “Constâncio II, o Anticristo: Hilário de Poitiers
e a construção da imagem imperial”, trata dos ataques que o bispo gaulês dirigiu a Cons‑
tâncio II, estigmatizando-o como filho e anjo de Satã, vinculando as ações do impera‑
dor ao cumprimento da profecia evangélica anunciada por Jesus Cristo, segundo a qual
haveria, no futuro, um tempo de renúncia da verdadeira doutrina em prol dos ensina‑
mentos difundidos pelos falsos apóstolos.
Tais considerações de Silva são incontestáveis diante das afirmações da própria fonte.
No entanto, optamos por analisá-la contextualmente, pois assim podemos compreender
que Hilário defendera, antes do exílio (em 356), uma proposta próxima da ratificada em
Niceia, da qual não participou127, e que, em determinado momento do exílio, ele vislum‑
brou a possibilidade de estabelecer vínculos entre a teoria definida em Niceia, em 325,

127  “Hilário teria se oposto às propostas arianas, não com base na fórmula de Nicéia, mas partindo da dou‑
trina tradicional, isto é, a de tipo tertuliânea, do Contra Práxeas” (MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 322).

257
e a tríade afirmada no Concílio de Constantinopla128, em 381, a fim de mediar uma con‑
córdia político-religiosa entre os clérigos e, assim, eleger um grupo predominante (orto‑
doxo) entre os dois maiores grupos cristãos do Império Romano naquele momento:
os arianos e os nicenos. Ao final do exílio, por volta de dezembro de 361, voltou a defen‑
der as doutrinas de Niceia, porquanto o imperador Constâncio II já morrera, e essa pro‑
posta despontava como vencedora, surgindo daí o panfleto In Constatium129.
Alba López defende que durante o século IV temos um choque de duas concepções
de poder completamente distintas. Para a autora, os cristãos arianos e nicenos130 produ‑
ziram, mediante intensos processos exegéticos, tipos distintos de legitimidade acerca do
poder do imperador. Assim, para a autora:

A doutrina emanada das Sagradas Escrituras e a interpretação que delas se fez vão
marcar a relação do cristão com o monarca e o poder, seja ela relacionada aos inte‑
resses cristãos ou não. Contudo, as principais passagens vétero e neotestamentá‑
rias terão um uso bastante regular, sendo que tanto arianos quanto ortodoxos farão
delas um uso frequente. Porém, sua seleção e interpretação variarão segundo a
intenção de cada facção, que acentuará, atenuará ou omitirá passagens e interpre‑
tações segundo a conveniência. Desse modo, o recurso à autoridade das Sagradas
Escrituras se converte em algo habitual (ALBA LÓPEZ, 2011, p. 39).

Ao assumir a igreja de Baucális131, em Alexandria, Ário iniciou sua pregação, que foi
fortemente rebatida por alguns bispos ocidentais. Tais lutas fizeram com que os escritos

128  Esses clérigos defendiam que Cristo fosse homoiosios a Deus, que era semelhante (homoi) em substân‑
cia/essência (ousia) a Deus. Que possuía algumas características paternas, mas que não era igual ao Deus
Pai, pois somente este era ingênito (SPINELLI, 2002, p. 241).
129  “É possível e mesmo provável que o texto do Livre contre Constance foi conhecido por um círculo de
amigos, ou pelo menos algumas partes deles, antes de dezembro de 361. Mas a redação definitiva – que
permite dizer que o livro está escrito – só adviria após 3 novembro 361, data da morte de Constâncio”
(ROCHER, 1987, p. 30‑31).
130  Claro que tanto arianos quanto nicenos não se autodenominavam assim, mas católicos e ortodoxos
(WILLIAMS, 2010, p. 101).
131  “Em 314, Alexandre pouco depois de se tornar bispo, o tinha liberado para pregar numa igreja de
Baucális, um distrito próximo ao Grande Porto [...]. Ário era um [...] famoso orador, ou talvez fosse melhor
dizer cantor, já que tinha o hábito de transformar sua teologia em poesia e cantá-la para seus congregados

258
de Ário sofressem o que os romanos chamavam de damnatio memoriae, ou seja, sua memó‑
ria foi apagada, seus livros, considerados heréticos, foram queimados, só restando frag‑
mentos em escritos de seus adversários132 (JOHNSON, 2001, p. 109).
Simon e Benoit assinalam que o arianismo133 se baseava na reflexão sobre Deus. Para
os arianos, Deus seria o único criador e todos os outros seres estavam condicionados à
ordem de criação. Dessa maneira, Cristo seria uma criatura, pois houve tempo “em que
não existia e em que Deus não era Pai” (SIMON; BENOIT, 1987, p. 171-173).
Para Ário, a tríade cristã possuía um “particular: [...] a mônada divina, sozinha e
fechada em si mesma, criara o Logos, criatura perfeita, mas que estava bem abaixo daquele;
por sua vez, o Logos-Filho criara outra criatura perfeita, o Espírito Santo” (SIMON;
BENOIT, 1987, p. 171). Alba López assegura que as posturas de Ário são complexas e
difíceis de rastrear, mas, de modo amplo, poderíamos definir que:

Ário tomou sua acentuada unicidade de Atenágoras, o subordinacionismo de


Orígenes, a diferença entre Pai criador e Filho πоίημα de Dionisio de Alexan‑
dria, a radicalização subordinacionista de Teognosto ao entender o Filho como
“modelo” da criação e, finalmente, o antiorigenismo de Pedro, o Mártir, o que
chegará a contradizer a tese da eterna geração do Filho (BERNARD apud ALBA
LÓPEZ, 2011, p. 56).

extasiados. Segundo o bispo, este seu talento para a imaginação fértil e a música acabou sendo uma parte
de problema. Recentemente, Ário tinha escrito um poema longo clamado Thalia – O banquete – num com‑
passo rítmico usado nas baladas populares. O povo já cantava a música em todo o Mediterrâneo oriental.
As canções populares, como os grãos e as notícias, viajavam por mar” (RUBENSTEIN, 2001, p. 77).
132  “Em 333, [...] Constantino ordenou uma ação selvagem contra os escritos arianos: ‘se for encontrado
qualquer tratado composto por Ário, que seja atirado às chamas [...] a fim de que não reste dele qualquer
recordação [...] [e] se alguém for pego ocultando um livro de Ário e não o trouxer de pronto para fora e
queimá-lo, a penalidade será a morte; o criminoso deverá sofrer sua punição imediatamente após conde‑
nação’” (JOHNSON, 2001, p. 109).
133  “No ano 341, os bispos reunidos em Antioquia declararam, em um prefácio de uma profissão de
fé não nicena, que não eram seguidores de Ário, pois como poderia, enquanto bispos, serem seguidores
de um presbítero” (WILLIAMS, 2010, p. 101-102)? Logo, os nomes nicenos e arianos eram estigmatiza‑
ções formuladas por seus concorrentes e “tinham como finalidade construir uma imagem de seus inimi‑
gos como grupo uniforme comprometido, explicita ou implicitamente, com uma determinada doutrina”
(WILLIAMS, 2010, p. 102).

259
Para o presbítero de Baucális, a Trindade era formada por pessoas134 diferentes em rela‑
ção às suas naturezas. Essa postura se apoiava na concepção de que Cristo deveria ser um
modelo para os cristãos e, portanto, não poderia ser igual a Deus (MAGALHÃES, 2009, p. 97).
Em relação ao regime de memória135 constituído pelo presbítero Ário, atemo-nos a
algumas questões: primeiro, só temos acesso a ele por meio do De Trinitate de Hilário, seu
adversário; segundo, o diálogo entre ambos se desenvolve por via única, ou seja, somente
o bispo conduz a discussão e não existe uma contra-argumentação. No entanto, Alejan‑
dro Martínez Sierra nos auxilia a interpretar a exegese e o argumento ariano:

É típico, na exegese ariana, buscar no texto que se defende uma palavra-chave, que
funcione como um eixo central, em torno do qual todo o comentário escriturístico,
que descobre diretamente a inferioridade de natureza de Cristo, ou uma qualidade
inerente a sua pessoa humana-divina, que necessariamente carrega com uma infe‑
rioridade (MARTÍNEZ SIERRA, 1964, p. 75).

Com base nessas conjunturas, analisamos o regime de memória supostamente


arquitetado por Ário. Um dos pontos basilares de sua postura era compreender o
mundo político-religioso por meio de uma forte organização em categorias hierár‑
quicas, como expressa em sua tríade. Esta possuía hierarquias extremamente fixas,
ou seja, quando o presbítero apresenta a tríade Pai, Filho e Espírito Santo, ele eviden‑
cia como deve ser concatenada toda a organização mental, social, política e religiosa
dos romanos cristãos. No livro quarto, Hilário afirma que Ário construía seu projeto
trinitário do seguinte modo:

134  A tudo isto, se juntava a confusão provocada pelo termo “pessoa” atribuído às figuras da Trindade.
Em grego, pròsopon podia exprimir uma realidade distinta, ao passo que a palavra latina persona vinha da
arte dramática, significando a “máscara” com que os atores cobriam o rosto no palco, o que transmitia a
ideia de que as três pessoas não eram mais do que manifestações sobrepostas de uma única individualidade
(DONINI, 1988, p. 230-231).
135  O regime de memória cristão é um conceito tributário da longa duração braudeliana, buscando dar
conta de um processo que orquestra uma continuidade de experiências produzidas em uma duração memo‑
rialística que possuía, em seu bojo, traços específicos do passado politicamente evocados em um tour de
engajamento por meio do qual se constrói uma fronteira entre as comunidades cristãs.

260
Conhecemos um só Deus, único incriado, único eterno, único sem princípio, único
verdadeiramente bom, único poderoso, que cria ordena e dispõe todas as coisas,
inalterável, imutável, justo e inteiramente bom. Deus da lei e dos profetas e do
Novo Testamento […]. Por isso são três as Pessoas (hypostaseis): Pai, Filho e Espí‑
rito Santo. Certamente Deus é causa de todas as coisas, absolutamente único e sem
começo. O Filho saiu do Pai, fora do tempo, criado e constituído antes dos sécu‑
los não existia antes de nascer, mas nasceu antes de todas as coisas, fora do tempo.
Recebe seu ser, Ele só, do Pai só. Não é nem eterno, nem coeterno, nem incriado
junto com o Pai, nem tem seu ser junto com o Pai (Hil. De Trinitate, IV, 12-13).

Desse modo, podemos compreender que, para Ário, a Trindade e o mundo cristão
deveriam possuir organizações hierárquicas que seriam análogas em todo o orbis romanorum.
Sua estratégia foi a de produzir um tipo de sentido que provesse orientações natura‑
lizantes de um modus vivendi baseado na hierarquia eclesiástica e imperial. Podemos
entender, com base nesse sistema, que um possível regime de memória ariano realizava
uma leitura bíblica margeada por suportes de orientação estáveis, cujo escopo imagé‑
tico definido pelo presbítero previa a hierarquização dos seres divinos, e, nisso, o Pai
seria superior ao Filho:

Deus lhe é superior como seu Deus, pois existe antes dele. Se as palavras “dele”
(Rm 11, 28), “do Pai” (Sl, 109, 3) e “saí do Pai e vim” (Jo 16, 28) se entendem como
se fossem parte de sua única substância ou como uma prolação que se estende, o
Pai, segundo eles, seria composto, divisível, mutável e corpóreo e, segundo suas
próprias palavras, o Deus incorpóreo suportaria as consequências de sua corpo‑
reidade (Hil. De Trinitate, IV, 13).

Diante desse argumento, Hilário utiliza sempre o texto bíblico como elemento pro‑
motor de autoridade, porquanto “em cada questão, cada problema analisado, cada denún‑
cia contra seus inimigos tem como base uma detalhada argumentação fundamentada na
interpretação [...] da Bíblia” (ALBA LÓPEZ, 2013, p. 25). Assim, afirma que o presbítero
alexandrino usurpou os testemunhos das palavras divinas, tecendo mentiras sobre elas
(Hil. De Trinitate, IV, 14), e refuta-o utilizando “a autoridade das mesmas palavras divi‑
nas”. Hilário prossegue:

261
[...] seguiremos, por conseguinte, a autoridade das mesmas palavras divinas, tra‑
taremos cada um dos temas [...], visto que se deve apreender o sentido do que é
dito a partir das causas pelas quais é dito e não se deve subordinar o sentido à pala‑
vra, mas a palavra ao sentido. Por essa razão, estudaremos tanto as palavras ditas
como sua causa e seu sentido e tornaremos a tratar de cada uma segundo a ordem
determinada (Hil. De Trinitate, IV, 14).

Esse debate narrativo evidencia a oposição entre os clérigos para obter o monopó‑
lio do sagrado, ou melhor, delimitar as estruturas que ditariam os limites entre o sagrado
e o profano (BOURDIEU, 2013, p. 43; ELIADE, 2013). Compreendemos que a proposta
de Hilário estava direcionada a negar esse tipo de postura doutrinária, tida por ele como
exacerbada, e a restabelecer a teoria trinitária construída pelos arianos moderados. Em
seu quarto livro, encontramos evidências dessa proposta moderadora. Assim, ao rece‑
ber a crítica de que Jesus não era Deus, Hilário responde:

A Igreja o detesta, o rechaça, o condena, pois ela conhece um só Deus, do qual tudo
procede, e um só Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo foi feito (1 Cor 8, 6).
Um de quem tudo procede, Um por meio de quem tudo foi feito, a origem de todas
as coisas, que está em um só, e a criação de tudo, por meio de um só. Naquele que
é UM, de quem tudo procede, reconhece o poder da inascibilidade; no que é Um,
por meio de quem tudo foi feito (Hil. De Trinitate, IV, 6).

Dessa maneira, Hilário definia uma postura mediana, colocando Cristo como um
Deus que tudo realiza, negando, por um lado, os argumentos de Ário de que haveria um
tempo em que Cristo não existia e, por outro, não adotando o radicalismo niceno, que
defendia que Cristo seria um Deus exatamente (homoousios) como o Pai. Nesse ínterim,
o regime de memória organizado pelo bispo de Poitiers era estrategicamente modelado
por elementos provenientes tanto da teoria ariana moderada, provavelmente adquiridos
durante o exílio, quanto da nicena.
Hilário assevera que Ário negava “que Deus esteja em Deus”, ou seja, que o Filho
(Cristo) fosse consubstancial (igual em substância) ao Pai, que poderiam existir múlti‑
plas revelações de um Deus ingênito, pois o próprio Deus afirmou: “Não há outro Deus
além de mim” (Is, 45,14). Diante disso, Hilário refuta que, sendo Deus um ser creatio ex

262
nihilo, ele poderia também ser um Deus unigênito (Hil. De Trinitate. IV, 42). E argumenta
apoiando‑se na autoridade dos testemunhos do livro de Jeremias:

[…] a Jeremias, que ensina o mesmo: Este é o nosso Deus, e a seu lado não se encon‑
trará nenhum outro. Encontrou todo o caminho da ciência, e o deu a Jacó, seu servo,
e a Israel, seu dileto. Depois foi visto na Terra, e conviveu com os homens (Br. 3,
36-38). Já dissera acima: É um homem, e quem o conhece? (Jr. 17, 9; LXX). Tens,
portanto, um Deus visto na terra, morando entre os homens. Pergunto então como
pensas que se deve compreender esta palavra: Ninguém jamais viu a Deus, a não ser
o Filho unigênito que está no seio do Pai (Jó 1, 18), quando Jeremias fala de um Deus
que foi visto na terra e conviveu com os homens. Certamente o Pai é visível somente
para o Filho. Quem é, então, aquele que foi visto e conviveu com os homens? É, sem
dúvida, o nosso Deus, visível como homem e Deus palpável (Hil. De Trinitate, IV, 42).

Percebemos, nessa passagem, efeitos validativos importantes do uso da memória


bíblica nos escritos hilarianos, pois, a partir dos testemunhos de Jeremias e de Baruch,
Hilário questiona de que modo “Deus pode ser visto sob um aspecto e manter-se, ao
mesmo tempo, invisível sob outro”, pois ninguém pode ver Deus e ficar vivo (Ex, 33, 18).
Para Manuel Ferreira, quando Hilário confronta

[...] os dois textos aparentemente contraditórios, demonstra facilmente que “Deus”


não significa o mesmo num e noutro. Num, trata-se do Pai; e ninguém o pode ver.
Noutro, do Filho; e foi visto na terra. E, portanto, o Filho é Deus [...]. E aí têm os
arianos todos os elementos do silogismo: Deus foi visto; o Deus visto não é o Pai,
mas o Verbo; logo, este é Deus por natureza (FERREIRA, 1995, p. 68).

A estratégia exegética de Hilário é situar o uso da memória bíblica por meio das cone‑
xões entre os testemunhos, evidenciando o entendimento de que Cristo – Deus unigê‑
nito – agia já no Antigo Testamento através de aparições teofânicas, o que denota uma
tentativa de se construir uma linha temporal em que Cristo fora Deus atemporalmente,
tendo sua existência, assim, conjugada com a do Pai.
A teoria do bispo pictaviense tentava estabelecer uma fórmula que possuísse elemen‑
tos das duas posturas político-eclesiásticas mais representativas na segunda metade do

263
século IV, a ariana moderada e a atanasiana/nicena136. Para esse fim, ele teve de utilizar
chaves validativas dos dois regimes de memória.
Nessa perspectiva, tentava-se produzir uma memória que apresentava mecanismos
produtores de elementos que seriam necessários à legitimação dos poderes do impera‑
dor. E, desse modo, destacamos a dissertação de Rosane Dias de Alencar, na qual a autora
sustenta que a Bíblia era tida como chave para a construção da imagem heroica do impe‑
rador Constantino I:

A memória à qual remonta é o que chamamos de memória apostólica. O bispo de


Cesaréia organiza uma seleção de acontecimentos que viabiliza uma analogia capaz
de associar fatos contemporâneos a fatos bíblicos, bem como personagens con‑
temporâneos a personagens bíblicos. Reivindica-se para Constantino a imagem
bíblica de Moisés e dos Apóstolos (ALENCAR, 2007, p. 101).

Entendemos que, no período do imperador Constâncio II, processo análogo não seria
válido por si só para a construção da boa imagem do regente imperial. Porquanto, nesse
momento, a imagem sagrada do príncipe seria obtida, também, por outras vias, esta‑
belecidas por meio de doutrinas, dogmas e do uso da autoridade bíblica, que ao mesmo
tempo possibilitava aos cristãos seu relacionamento com a divindade cristã e com o pró‑
prio mundo terreno que os cercava. Esse processo de “construção da imagem heroica do
imperador” não se daria somente por analogia, mas pela forma como os cristãos iriam se
apropriar do passado evangélico e gerar sentido em seu presente.
Assim, não bastava ao regente associar sua imagem a figuras do passado bíblico para
obter legitimidade perante o mundo cristão, mas era mister que todo o mundo romano

136  Atanásio “nasceu em Alexandria por volta de 295, provavelmente de pais não cristãos, de língua grega
[...]. A sua principal fonte de inspiração era a Bíblia grega: entre os Padres gregos, inspirou-se especial‑
mente em Inácio, Atenágoras, Irineu, Orígenes [...]. Acompanhando seu bispo ao concílio de Niceia [...].
Os três Discursos contra os arianos representa a obra dogmática mais importante de Atanásio. Nos primeiros
dois Discursos dá um resumo da doutrina de Ário, critica algumas argumentações arianas mais correntes e
condena a exegese ariana de alguns textos bíblicos importantes. O terceiro (Discurso), além disso, debate
as limitações humanas de nosso Senhor e a afirmação ariana de que o Verbo teria sua origem na vontade
do Pai, não de sua natureza [...]. A doutrina sobre Deus de Atanásio o situa na tradição platônica e alexan‑
drina” (STEAD, 2002, p. 188-191).

264
estivesse analogamente associado à tríade cristã, ou seja, do modo como a Trindade se
organizava também deveria derivar o modus vivendi dos romanos. E nesse processo enfa‑
tizamos o objetivo de Hilário de estabelecer, com base na superação da proposta ariana e
balizado na Bíblia, um vínculo entre o poder da divindade cristã e o do princeps.
O bispo de Pictavium arquitetou um regime de memória que possibilitava um tipo
específico de Trindade, que outorgaria ao regente imperial a possibilidade de reger seu
poder nos seguintes moldes: ele seria a representação de Deus (Cristo), mas não Deus
totalmente igual ao Pai. Todavia seria aquele que faz todas as coisas, pois Deus (Pai) cria,
e o imperador (Cristo) faz todas as coisas (Hil. De Trinitate, IV, 6; LADARIA, 1989, p. 7).
A teoria trinitária do bispo de Poitiers possuía um caráter de moderação e ao mesmo
tempo não determinava que Cristo (imperador, Deus unigênito) era totalmente igual ao
Deus ingênito, bem como não definia Cristo como um homem que detinha caracterís‑
ticas especiais. Tal moderação objetivava estabelecer uma síntese trinitária entre atana‑
sianos e arianos moderados, além de ordenar estruturas internas em meios cristãos que
os adequassem ao poder imperial.

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268
Da coxia ao palco da política: o cristianismo,
sua ideologia e a partilha da autoridade
na romanidade tardia (séc. IV-V)
Renan Frighetto

Autoridade, cristianismo e Antiguidade Tardia

Ao estudarmos os períodos mais recuados da história, como a Antiguidade e a Idade


Média, salta aos nossos olhos a importância dada pelas fontes manuscritas aos princi‑
pais atores da cena política, social, econômica e cultural daquelas sociedades, a antiga
e a medieval. De fato, o destaque oferecido àqueles que eram apresentados como “os
melhores” (agathoi/optimatibus) no mundo greco-romano revela-nos a concepção socio‑
política própria do pensamento antigo, das épocas clássica e helenística, de que o exer‑
cício do poder era apropriado aos considerados como os “capazes” de conduzir o corpo
social na direção mais adequada ao bem coletivo, aqui entendidos como todos os pos‑
suidores da condição de cidadania. Nesse sentido parecem caminhar as propostas apre‑
sentadas tanto pelo pensamento isocrático como pelo aristotélico, nos quais a basileia,
entendida como o sistema político ideal, era a melhor politeia, já que os mais capazes
exerceriam o poder e seriam os portadores da autoridade no momento das decisões
(PLÁCIDO SUÁREZ, 2007, p. 133-134). Portanto, se a prática cotidiana da atuação
política estava restrita aos “melhores”, devemos dizer que os resultados alcançados por
essa atividade limitavam-se àqueles que, efetivamente, estavam integrados ao corpo
de cidadania (SANCHO ROCHER, 2002, p. 240-244). Tal raciocínio aparece, de forma
destacada, nas obras de Cícero, nos estertores da República romana, em particular
no seu tratado Das Leis, quando assevera que a autoridade estava centrada no Senado

269
(Cic. De Leg., III, 28)137, autêntico defensor das tradições ancestrais e instituição que melhor
representava, na lógica ciceroniana, a Respublica enquanto basileia. Contudo, sabemos que
a personificação do poder político ocorrida ao longo do século I a.C., no mundo republi‑
cano romano, terminou por apresentar “novas” lideranças políticas, ação esta que promo‑
veu um “tsunami” político, caracterizado pelas constantes guerras civis que transformaram
a própria ideia de basileia (SILVA, 2003, p. 106), que passou a centrar-se no fortaleci‑
mento de uma personagem que, além de líder, será a detentora da autoridade, o princeps.
Parece-nos indubitável que a auctoritas ganhou uma caracterização de virtude princi‑
pal, que a associava à noção de poder detido e, ao mesmo tempo, concedido à mais desta‑
cada personagem da cena política romana a partir de Augusto (BÖRM, 2014, p. 240). Mais
que uma construção teórica, a existência de uma autoridade “prática” reforçava ainda mais
a importância do princeps, pois cabia a ele decidir, intermediar assuntos polêmicos, legis‑
lar e defender os interesses de todos os cidadãos, estabelecer a paz e a concórdia interna e
também garantir a segurança nas áreas limítrofes, elementos pragmáticos que reforçavam
o reconhecimento da importância do detentor da auctoritas no universo social romano.
Se, por um lado, esta personagem era reconhecida pela concentração de poderes políticos
e militares em suas mãos – a potestas e o imperium –, por outra parte, devemos recordar
que estes jamais apareceriam como “tomados de assalto” por aquela, mas sim concedidos
pelo conjunto das instituições herdeiras do passado republicano, o Senado, as assembleias
e, também, pelo populus romanorum (ROWE, 2013, p. 3-9). Portanto, o equilíbrio político
e a forte institucionalização entre os atores detentores do poder e participantes da arena
política tornavam a autoridade do princeps, teoricamente, incontestável, na medida em
que estava ancorada em um princípio de legitimidade reconhecido por todos. Ao fim e
ao cabo, tratava-se de um “poder legítimo” sustentado por este apoio institucional – que
envolvia também as magistraturas e o corpo de cidadania de uma forma mais ampla –,
assim como por uma “fonte de poder” emanada pelos poderes superiores, celestiais, que
reconheciam naquele princeps vitorioso um escolhido para governar todos visando ao
bem comum (HIDALGO DE LA VEGA, 1995, p. 108-127). Logo, a autoridade centrada
na figura do princeps tinha como ponto de partida os poderes emanados e concedidos por

137 “[...] Nam ita se res habet, ut si senatus dominus sit publici consilii, quodque is creverit defendant omnes, et
si ordines reliqui principis ordinis consilio rem publicam gubernari velint, possit ex temperatione iuris, cum potestas
in populo, auctoritas in senatu sit, teneri ille moderatus et concors civitatis status [...]”.

270
esta plêiade de instituições, grupos e indivíduos, dando-nos a sensação da existência de
uma unidade ideal, perfeita e, simultaneamente, distante da realidade.
Tal perspectiva política e institucional começou a ganhar novos contornos a par‑
tir da ascensão do cristianismo no mundo mediterrânico, especialmente com a difusão
do pensamento cristão, revelado, por exemplo, por Agostinho de Hipona, que conso‑
lidou a ideia de que a autoridade, pautada pela sabedoria, emanava de Deus, realçando
ainda mais a “fonte de poder” advinda de potências celestiais138. Porém, é importante fri‑
sar que a consolidação desse pensamento, bem como do próprio cristianismo, foi pau‑
latina, distanciando-se da interpretação simplista que sugere uma dominação rápida e
total da ecclesia cristã sobre as estruturas sociopolíticas e culturais greco-romanas, basea‑
das na tradicional ciuitas clássico-helenística, que ganhou uma nova configuração a partir
do século III. Exatamente naquele espaço da comunidade cívica, transformado a partir da
promulgação do Edito de Caracala, de 212, que nos apresenta uma nova dinâmica socio‑
cultural e militar amparada na difusão da cidadania a todos os homens livres no mundo
romano e que já vinha configurando-se desde o século II, estabeleceram-se grupos que
professavam a crença no cristianismo de uma forma um tanto difusa e diversa, levando‑
-nos a pluralizá-la: nesse sentido, podemos dizer que inexistia uma unidade dogmática
naquela que definimos como a ecclesia primitiva e, por isso, encontramos “cristianismos”
no largo espectro geográfico do mundo greco-romano e mediterrânico (HUMFRESS, 2007,
p. 218-220). As diferentes interpretações, cada qual a sua maneira, ofereciam uma explica‑
ção relativa à natureza de Cristo, gerando controvérsias e querelas que foram “resolvidas”
a partir do Concílio de Niceia de 325. Podemos dizer que este conflito entre tendências
dogmáticas associadas aos ambientes cristãos de Alexandria, de Antioquia ou de Cartago
foi o autêntico “motor” para o estabelecimento da distinção entre ortodoxia e heterodo‑
xia, pois, conforme nos indica Marcos (2009, p. 14):

El conflicto, que ha marcado la historia del cristianismo desde sus orígenes,


se revela como un instrumento de primera importancia en la definición de la orto‑
doxia y en la construcción de la identidad cristiana, en cuanto que ha urgido a la
Iglesia a desarrollar estrategias para lograr la unidad. De esta forma, las “herejías”,

138 Aug. De Civ. Dei, VIII, 1: [...] Porro si sapientia Deus est, per quem facta sunt omnia, sicut diuina auctoritas
ueritasque monstrauit, uerus philosophus est amator Dei [...].

271
las fuerzas que en apariencia debilitaban a la institución, la han hecho más fuerte,
revelándose al final como factores claves para la cohesión.

Nesse sentido, a pluralidade gerou a busca pela unidade dogmática que denomina‑
mos com a palavra “ortodoxia”. Contudo, parece-nos essencial observar que tal busca
unitária promovida por parte dos pensadores cristãos caminhava na contramão dos acon‑
tecimentos políticos ocorridos desde finais do século II e que acentuavam mais a parti‑
lha da autoridade imperial em detrimento de uma proposta de unidade, característica de
um novo momento da história do mundo greco-romano e mediterrânico, denominado
como a Antiguidade Tardia.
A Antiguidade Tardia foi marcada por um intenso processo de transformações polí‑
ticas com relação ao período helenístico que a precedeu (FRIGHETTO, 2014, p. 19-33;
GASPARRI; LA ROCCA, 2013, p. 24-25; CARRIÉ; ROUSSELLE, 1999, p. 21). Essa afir‑
mação está assente em uma premissa histórica, na medida em que observamos, de fato,
uma paulatina substituição da concentração de poderes políticos nas mãos do princeps
do século II por uma disseminação desses poderes entre vários, inclusive concomitantes,
príncipes ao longo do século III. Como nos indica Valério Neri:

A partire da Marco Aurelio e Lucio Vero c’erano stati collegi imperiali formati da due
o anche tre Augusti, come nel breve periodo fra il 209 e il 211 con Settimio Severo
e i figli Caracalla e Geta. Una coppia di Augusti è testimoniata frequentemente nel
III secolo: Settimio Severo e il figlio Caracalla dal 198 al 209; Caracalla e Geta dal
211 al 212; Pupieno e Balbino nel 238; Filippo e il figlio Filippo iunior dal 247 al 249;
Decio e il figlio Erennio Etrusco nel 251; Treboniano Gallo e il figlio di Decio,
Ostiliano, sempre nel 251; Valeriano e il figlio Gallieno dal 253 al 260; infine Caro e
il figlio Carino nel 283 e Carino e il fratello Numeriano nel 284 (NERI, 2013b, p. 659).

Uma explicação plausível para essa constatação residia na dificuldade efetiva de um


único governante exercer, e ter reconhecida, sua autoridade sobre um território impe‑
rial vasto, variegado em termos sociais e culturais, aspecto que acabava gerando desequi‑
líbrios entre as distintas regiões do mundo imperial romano, que abriam caminho para
as contestações internas, potenciadas pela ameaça dos saques promovidos pelas popula‑
ções bárbaras localizadas para além dos limites do orbis romanorum (FRIGHETTO, 2015,

272
p. 242-243). A conturbação gerada por tais problemas de ordem político-militar aca‑
bava promovendo, entre os pensadores, o anseio pelo regresso daqueles períodos menos
confusos, quando a unidade política à volta da figura do princeps trazia uma sensação
de segurança que, de forma efetiva, nem sempre era plenamente verdadeira. Sabemos,
com efeito, que os reinados de Trajano (98-117), Adriano (117-138) e Marco Aurélio
(161-180) foram marcados por problemas internos e externos de grande intensidade, que
nos revelam um século II bem menos pacífico que a idealização dos pensadores sugere
(LIEBESCHUETZ, 2011, p. 14), levando-nos a apontar o princípio de uma readequação
política que teve seu começo exatamente naquela época considerada como dourada e que
se estendeu ao longo de todo o século III.
Passado um século de turbulências políticas no mundo imperial romano, o advento
de Aureliano (270-275) e, logo depois, de Diocleciano (284-305) trouxe um novo sig‑
nificado ao conceito de unidade política, que a partir do final do século III ganhou uma
conotação de unidade compartilhada (ZUGRAVU, 2011, p. 285-286; NERI, 2013b,
p. 660). Aquela se amparava, sobretudo, na figura do princeps receptor do apoio divino e,
ao mesmo tempo, que partilhava seu poder com seus mais próximos aliados, como nos
apresenta Mamertino, o autor do Panegírico a Maximiano de 289:

[...] os reinos dos persas acabaram submetendo-se voluntariamente a Diocleciano.


Ele obteve essa capitulação graças a Júpiter, seu pai, que estremece o universo pela
majestade de seu nome. Tu, imperador invencível (Maximiano) [...] é o filho de
Hércules e precisa valorizar apenas as tuas vitórias [...] (Pan. Max., a.289, VII, 5-7)139.

O compartilhamento do poder político e militar foi o que estruturou a Tetrarquia,


novo sistema político imperial romano, inaugurado em 293, que dividiu as responsabili‑
dades políticas e militares pela defesa da ordem imperial interna entre os quatro mais des‑
tacados chefes legionários do mundo romano. Fixava-se, também, uma hierarquia entre
os tetrarcas estabelecida a partir da noção de autoridade delegada, concedida de um para os
demais. Assim, Diocleciano, criador do novo sistema político, aparecia, em termos práticos

139  Pan. Max., a.289, VII, 5-7: [...] antequam Diocletiano sponte se dederent regna Persarum. Verum hoc Iouis
sui more nutu illo pátrio, quo omnia contremescunt, et maiestate uestri nominis consecutus est; tu autem, imperator
inuicte [...] Herculei generis hoc fatum est uirtuti tuae debere quod uindicas [...].

273
e teóricos, como o concessor da autoridade aos demais – Maximiano, Galério e Constâncio
Cloro –, sendo, por isso, o mais importante dos tetrarcas, conforme nos indica Aurélio Vítor:

[...] eles (Diocleciano e Maximiano) nomeiam como césares a Julio Constancio e


Galerio Maximiano, cujo sobrenome era Armentario [...]. Todos eram originários
do Ilírico e embora pouco cultos, mas educados pelas dificuldades do campo e do
exército foram bons governantes. O que prova que os homens se fazem com mais
frequência virtuosos e sábios com a experiência da adversidade [...]. Finalmente,
contemplavam a Valério (Diocleciano) como a um pai ou à maneira de um grande
deus [...] o poder se dividiu em quatro partes e todas as regiões que estão além
dos Alpes da Gália foram encomendadas a Constancio, África e Itália à Hercúleo
(Maximiano), a costa do Ilírico até o estreito do Ponto à Galério; o resto ficou em
poder de Valério (Diocleciano) [...] (Aur. Vic. De Caes., 39, 24-31).

É interessante notar que apesar da efetiva implantação do princípio da unidade com‑


partilhada, que se tornou uma prática comum ao longo dos séculos IV e V (CAMERON,
2013, p. 106-107; LIZZI TESTA, 2009a, p. 271-272; MORENO FERRERO, 2013, p. 140),
mas com conotações hereditárias, os pensadores políticos e religiosos romanos manti‑
veram o discurso da unidade política centrada na figura do princeps-imperator. Exemplo
disso encontramos nas palavras de Paulo Orósio:

[...] Mas não apenas os godos, também os outros reis, dos alanos, dos vandalos
e suevos, estavam dispostos a firmar conosco um pacto do mesmo tipo, e envia‑
ram ao imperador Honório esta mensagem: “Tu mantem a paz e recebe nossos
reféns; nós lutamos para nosso prejuízo, morremos em nosso detrimento, ven‑
cemos para ti, mas com imortal benefício para o teu poder, se perecemos uns e
outros”. Quem poderia acreditar nestas coisas se os fatos não o evidenciassem? [...]
(Or. Hist. Adv. Pag., VII, 43, 14-15).

Parece-nos certo afirmar que tal perspectiva encontrava consonância com as pro‑
postas teóricas neoplatônicas, relacionadas à ideia da unidade em diversos graus que con‑
duz ao Uno, ou seja, o princípio supremo que seria a própria divindade relacionada, neste
caso, à autoridade imperial desde os tempos de Constantino. Como indica Tarmo Toom:

274
[...] Nevertheless, Constantine’s transcendent God was undoubtedly a Christian
God. In order to affirm the diversified unity of the one transcendent God, Con‑
stantine turned to the idea of the Son as the logos (…). The concept of logos helped
Constantine to rescue the idea of the oneness of God and also to “accommodate”
the Son of God into the one God [...] (TOOM, 2014, p. 118‑119).

Ora, transpondo essa interpretação ao ambiente político-institucional, observamos


uma tendente valorização teórica da premissa unitária à volta da figura do princeps/impe-
rator quando este, portador de virtudes divinas, é apontado como o interlocutor entre
a divindade celestial e o corpo social tardo-antigo (LIZZI TESTA, 2009a, p. 390). Dis‑
curso tremendamente reverberado pelos pensadores cristãos católicos, como Ambrósio
de Milão, segundo o qual o imperador Teodósio apresentava-se como autêntico inter‑
mediário entre o Deus católico e os homens, graças à sua misericórdia:

[...] Teodósio, pleno de temor por Deus, pleno de misericórdia, esperamos por sua aco‑
lhida junto a Cristo, pois o Senhor acolhe a todos os homens. Bom é o homem mise‑
ricordioso, aquele que se destaca, que reflete, que com o remédio alheio se cura [...]140.

Esse papel intermediador entre o divino e o terreno, amparado em uma imagem vir‑
tuosa apresentada por Ambrósio e que estava assente na misericórdia possuída por Teo‑
dósio, acabava promovendo, desde um ponto de vista retórico, os soberanos tardo-antigos
a uma posição superior a dos demais integrantes aristocráticos e nobiliárquicos, tanto no
Império Romano Tardio como nas futuras monarquias romano-bárbaras que o sucede‑
ram nos territórios ocidentais. Indubitavelmente esse raciocínio teórico encontrou uma
repercussão prática com a formulação de códigos legais que reforçavam a autoridade do
imperator e a sua vinculação ao Deus cristão. Como informa Jill Harries:

[...] The authority, as well as the power, of the emperor was reinforced by cere‑
monial, increasingly hierarchical elite, and his self-representation through his laws

140 Amb. De Ob. Theod., 16: “[...] Theodosius vero plenus timoris Dei, plenus misericordiae, speramus quod
liberis suis apud Christum praesul assistat, si Dominus propitius sit rebus humanis. Bonum est misericors homo,
qui dum aliis subvenit, sibi consulit et in alieno remedio vulnerat sua curat [...].

275
(…). The authority of imperial lex scripta was constantly reinforced by the language
of constitutions. Through the rhetoric of legislation, a moral universe was created,
headed by a caring emperor […] (HARRIES, 2001, p. 57-58).

Do ponto de vista teórico dos pensadores cristãos, o imperador surgia como respon‑
sável pela elaboração e aplicação das leis, graças ao reconhecimento e ao apoio oferecido
a ele pelo Deus católico, sendo este último a verdadeira “fonte de poder” imperial. Assim,
na perspectiva ideológica cristã, os imperadores romano-tardios surgiam como os grandes
responsáveis pela imposição da justiça e pela fixação da ordem interna vislumbrada, em
termos práticos, com o estabelecimento da pax após o Edito de Milão de 313, que coinci‑
diu com o arrefecimento das dissensões político-religiosas e o término das perseguições
promovidas pelo poder imperial contra as comunidades cristãs, colocando o cristianismo
no mesmo patamar dos cultos ancestrais greco-romanos (NERI, 2013a, p. 74; CAMERON,
2013, p. 111). O texto do Edito de 313, firmado pelos augustos Constantino e Licínio e des‑
crito por Lactâncio e Eusébio de Cesareia, demonstra-nos tanto o reconhecimento socio‑
político do papel de legisladores assumido pelos imperatores como a efetiva existência do
equilíbrio entre as práticas religiosas cristãs e greco-romanas a partir daquele momento:

[...] para que saibas que concedemos aos próprios cristãos incondicional e absoluta
faculdade para praticar sua religião. Ao constatar que lhes outorgamos isso, deve
entender tua excelência que também aos demais se lhes concede licença igualmente
manifesta e incondicional para observar sua religião em ordem para a conservação da
paz em nossos dias, de modo que cada qual tenha livre faculdade de praticar o culto
que deseje. Atuamos assim para não dar a aparência de manter a menor restrição
com algum culto ou religião [...] (Lact. De mort. pers., 48, 5-6; Eus. Caes. HE, X, 6-8).

Das perseguições ao reconhecimento imperial: a ascensão do


cristianismo

Desde os finais do século II as comunidades cristãs eram atentamente monitoradas pelo


poder imperial romano, por conta da difusão entre os cristãos do montanismo, movi‑
mento rigorista associado às revoltas judaicas com forte perfil antirromano (SORDI, 2011,

276
p. 105-106), revelando um debate político e cultural em um momento de intensas difi‑
culdades político-militares nos territórios imperiais romanos. Esses problemas que
acabaram gerando conflitos sociopolíticos que envolveram os cristãos, na medida em
que estes se negavam a ter uma participação mais ativa em prol da defesa da ideologia
imperial, que tentava resgatar os valores tradicionais do passado romano, como o culto
imperial, vistos como promotores da unidade política à volta do imperator (SILVA, 2006,
p. 247-253). Essa confrontação alcançou uma temperatura elevada entre o período de
Décio (249-251) e Aureliano (270-275), culminando na promulgação de éditos persecu‑
tórios contra os cristãos, que tiveram uma visão muito negativa por parte dos que foram
perseguidos, expressada por Lactâncio de forma emblemática:

[...] Com efeito, depois de muitos anos, surgiu para vexar a Igreja o execrável ani‑
mal Décio. Pois quem, senão um mau, pode ser perseguidor da Justiça? [...]. Não
muito depois, também Valeriano, arrebatado por uma cólera semelhante, levan‑
tou contra Deus suas mãos ímpias e, embora por breve espaço de tempo, derra‑
mou muito sangue dos justos. [...] Aureliano, que era destemperado e violento,
embora recordasse do cativeiro de Valeriano, esqueceu, contudo, qual havia sido
sua culpa e castigo subsequente e provocou a ira de Deus com suas ações crimi‑
nais [...] (Lact. De mort. pers., 4, 1; 5, 1; 6, 1).

Observamos que o autor, proveniente da Numídia e discípulo do retórico Arnóbio,


associava os cristãos como à justiça divina, e os imperadores que os perseguiam, como
Décio, Valeriano e Aureliano, e atuavam contra a vontade de Deus eram, por isso, enqua‑
drados como “maus” governantes que foram, segundo a ótica cristã, merecidamente cas‑
tigados. É interessante notarmos que o númida, de forma indireta, sugere que aqueles
“maus” imperadores atuavam contrariamente à busca pela unidade sociopolítica no mundo
romano ao promoverem ações que geravam conflitos, confrontações e perseguições, que,
do ponto de vista pragmático, reforçam a noção da existência de uma fratura da autori‑
dade imperial romana no século III, o que culminou com o compartilhamento do poder
político proposto pelo sistema tetrárquico.
O incremento das perseguições perpetradas pela autoridade imperial no período da
tetrarquia entre os anos de 303 e 311 e as ações levadas a cabo por cada um dos tetrar‑
cas nesse período fortalecem o argumento do compartilhamento do poder político no

277
mundo romano contra a ideia de uma interação uníssona e coletiva conduzida pelos
dois augustos – Diocleciano e Maximiano – e pelos dois Césares – Galério e Constâncio.
É inquestionável que o impacto mais severo das perseguições no período tetrárquico
incidiu sobre as províncias romanas orientais e, nos territórios ocidentais, sobre a Itália
e a África, enquanto outras regiões, como a Gália e a Britânia, sofreram de forma mais
limitada, certamente por conta das dificuldades político-militares que assolavam aque‑
las áreas desde os finais do século II e primórdios do século III. Com efeito, de acordo
com Lactâncio, “toda a terra era submetida às vexações e, excetuando as Galias, desde
o Oriente até o Ocidente três bestas ferocíssimas exercitavam a sua violência” (Lact.
De mort. pers., 16, 1). Ora, sabemos bem que Constâncio, César de Maximiano, exercia
a sua autoridade como tetrarca sobre os territórios da Gália e Britânia, sendo provável
que tenha optado por uma política de apaziguamento com os grupos cristãos naque‑
las buliçosas áreas, com vistas à estabilização das regiões por ele controladas141. Nova‑
mente, contamos com as informações legadas por Lactâncio, bem como por Eutrópio,
sobre a atitude deste tetrarca:

[...] Quanto a Constâncio, para que não parecesse que desobedecia às ordens de
seus superiores, se limitou a permitir que fossem destruídos os lugares de reunião,
ou seja, as paredes que podiam ser reconstruídas, mas conservou intacto o verda‑
deiro templo de Deus que se encontra dentro das pessoas (Lact. De mort. pers., 15, 7).
[...] Constâncio, contente com o título de Augusto, recusou a responsabilidade
do governo da Itália e da África. Foi um homem excepcional e de uma generosi‑
dade sem limites, respeitoso com a riqueza dos provinciais e cidadãos [...]. Este
não apenas mereceu afeto, mas inclusive a veneração dos habitantes da Gália [...]
(Eutr. Brev., X, 2-3).

Esta postura menos virulenta com relação aos cristãos certamente opôs Constân‑
cio aos demais tetrarcas, gerando certa desconfiança de Diocleciano, Maximiano e Galé‑
rio com relação ao César dos territórios da Gália e da Britânia. Motivo que explicaria o
envio de seu filho, Constantino, à corte de Nicomédia, como nos informa o Anônimo
Valesiano, ao dizer que “ele (Constantino) foi enviado como refém para Diocleciano e

141  Sobre o assunto, conferir o que nos diz Eutrópio (Breviarum, IX, 23; X, 2-3).

278
Galério142”. Ideia igualmente apontada tanto por Lactâncio como por Eusébio de Cesa‑
reia e Aurélio Vítor:

[...] Constâncio tinha também um filho, Constantino, jovem santíssimo e total‑


mente digno deste alto cargo, a quem por sua distinguida e digna presença física,
por seu gênio militar, por sua integridade de costumes e sua extraordinária afabi‑
lidade, os soldados lhe amavam e os simples particulares o desejavam como impe‑
rador. Se encontrava presente no palácio, pois tempos antes Diocleciano o havia
nomeado tribuno de primeira ordem [...] (Lact. De mort. pers., 18, 10).
[...] Constantino [...] quase um jovem, vivia no meio daqueles na mansão tirânica
justamente como aquele servidor de Deus que de modo algum tomava parte, ape‑
sar do jovem que era, nas mesmas atitudes dos ateus [...] (Eus. Caes. VC, I, 12, 2).
[...] Constantino cujo espírito, forte e poderoso, desde criança estava dominado
pela paixão de governar [...] estava retido por Galério como refém sob um pre‑
texto religioso [...] (Aur. Vic. De Caes., 40, 2).

É possível, inclusive, associarmos esta atitude de aproximação e tolerância da parte


de um dos tetrarcas, oposta à levada a cabo pelos outros três tetrarcas, com o ânimo que
levou certas comunidades cristãs a reunirem-se para discutir temas vinculados tanto ao
dogma como à moral e às ações de caráter jurídico e social de seus integrantes. Esse foi o
caso do concílio celebrado na localidade de Iliberri, na província da Bética, numa datação
incerta entre os anos de 300 e 314 (GARCIA MORENO, 2005, p. 170), que contou com a
participação de dezenove bispos e vinte clérigos das províncias hispânicas143, e cuja rea‑
lização foi uma demonstração de certa vitalidade das comunidades cristãs fixadas no sul
da Hispania, pois, como indica Garcia Moreno, as firmas presentes nas atas revelam-nos:

[...] Unas comunidades cristianas que, por otro lado, aparecen especialmente mal dis‑
tribuídas por el mapa de las provincias hispánicas, con muy pocas en las provincias
de Lusitania, Tarraconense y Galecia, y un gran número en la Bética y en las zonas
de la Cartaginense más próxima a esta última... (GARCIA MORENO, 2005, p. 171).

142  An. Val., II, 2: “[...] litteris minus instructus, obses apud Dioclecianum et Galerium [...]”.
143  Conc. Illib., a.305-306, Prol.

279
Recordemos que, pouco tempo depois da promulgação do edito de tolerância de
Galério, no ano de 311144, e na sequência do edito promulgado por Constantino e Licí‑
nio em Milão no ano de 313, outras importantes reuniões conciliares foram celebra‑
das – o sínodo de Roma de 313 e o concílio de Arles de 314, ambas dirigidas à solução
do problema donatista (LENSKI, 2013, p. 241; CAMERON, 2013, p. 112; ELTON, 2006,
p. 199-204) – antes do primeiro concílio ecumênico realizado em Niceia, no ano de 325,
sinais inequívocos da importância sociopolítica adquirida pelos cristãos desde meados
do século III, o que levou Ramón Teja a afirmar que:

[...] Constantino, más que innovar, cuando convirtió el cristianismo en religión


privilegiada por el Estado romano, lo que llevó a cabo fue una política de gran
realismo político al reconocer su enorme arraigo social y las grandes posibili‑
dades que ofrecía para instaurar una política religiosa de carácter imperial [...]
(TEJA, 2005, p. 197-198).

Parece-nos, portanto, evidente que a política de aproximação promovida por


Constantino a partir de 313 elevava-o à condição de reconstrutor da unidade socio‑
política romana, ao favorecer e integrar, como religio licita imperial, o cristianismo, o
que potenciou a participação deste nos ambientes políticos e culturais do universo cita‑
dino romano. De fato, mais e mais indivíduos que faziam parte da burocracia urbana e
imperial declaravam-se cristãos, fazendo com que, de forma paulatina, os mais impor‑
tantes cargos e funções fossem ocupados por seguidores do cristianismo. Contudo,
tais conversões são motivo de dúvidas entre os especialistas, que questionam sua vera‑
cidade, pois, como recentemente indicou Ramón Teja, “más que de una conversión
al cristianismo habría que hablar de una paganización del cristianismo” (TEJA, 2015,
p. 113), detalhe que reforçaria significativamente a ideia de que Constantino buscava
congregar todos os cultos mais relevantes existentes no mundo romano com a inten‑
ção de criar um novo culto imperial, mais ecumênico e universal (WALLRAFF, 2013,
p. 304). Seja como for, verificamos que a ideologia cristã ganhou, desde o período cons‑
tantiniano, uma difusão significativa no espaço sociopolítico e cultural romano, mini‑
mizando e superando em importância os tradicionais cultos imperiais sem, contudo,

144 Lact. De mort. pers., 34-35; Eus. HE, VIII, 17.

280
abandonar a ideologia imperial centrada na perspectiva da unidade política à volta da
figura do imperator sacratissimus. Uma mensagem, indubitavelmente, relacionada com
o passado universalista e centralizador romano e que, a partir do primeiro quarto do
século IV, foi reverberada pelos mais importantes representantes do universo cris‑
tão: referimo-nos aos bispos.

Um novo compartilhamento da autoridade política: os poderes


imperiais e episcopais

Aquele realismo político que aproximava a autoridade imperial romana à coletividade


cristã amparava-se em uma ecclesia alicerçada sobre bases institucionais e hierárquicas,
a partir das quais o grupo de fiéis elegia, concedia e reconhecia o poder e a autoridade
àquele que era considerado como o seu mais destacado representante, o bispo. Como
indica Claudia Rapp:

[...] the reign of Constantine is the first time that groups of Christians in cities and
towns that had until then existed in loosely organized communities under the pas‑
toral care and administrative leadership of their bishops and priests enjoyed rec‑
ognition from the outside […]. In this matter, Christian communities began to
grow into the church as an institution. This fostered the need for a new concep‑
tualization of the public significance of the church within its political context of
city and empire [...] (RAPP, 2014, p. 154).

De fato, os representantes episcopais destacavam-se, desde os primórdios da consti‑


tuição das comunidades cristãs, como líderes espirituais possuidores de virtudes pessoais
que guiavam os fiéis (RAPP, 2013, p. 24), seguindo, para tanto, o preceito apostólico con‑
tido na Primeira Epístola de Paulo a Timóteo:

[...] Fiel é esta palavra: se alguém aspira ao cargo de epíscopo, boa obra deseja.
É preciso, porém, que o epíscopo seja irrepreensível, esposo de uma única mulher,
sóbrio, cheio de bom senso, simples no vestir, hospitaleiro, competente no ensino,
nem dado ao vinho, nem briguento, mas indulgente, pacífico, desinteresseiro.

281
Que ele saiba governar bem a própria casa, mantendo os filhos na submissão,
com toda dignidade. Pois se alguém não sabe governar bem a própria casa, como
cuidará da Igreja de Deus [...] (I Tim., 3, 1-4).

Esse princípio, vocacionado exclusivamente à administração das comunidades cris‑


tãs primitivas, foi alterado a partir do concílio de Niceia de 325, quando a função episco‑
pal ganhou uma projeção social, econômica, cultural e política que excedia as atribuições
especificamente religiosas (RAPP, 2013, p. 23), revelando que a partir de então o bispo
transforma-se em uma das personagens mais destacadas no âmbito da sociedade tardo‑
-antiga. Portanto, parece-nos certo confirmar a indissociabilidade entre os contextos polí‑
tico, religioso e cultural durante a Antiguidade Tardia, que encontrava, segundo Teja, na
figura episcopal um de seus mais importantes catalizadores:

[...] Pero en una sociedad como la antigua, donde lo religioso no constituye un


elemento autónomo y aislable de los social y lo político, pocos eran los que, como
Agustín, estaban capacitados para establecer distinciones entre el juicio divino y
el humano. Como historiador que soy permítaseme abordar aquí una valoración
de la figura del obispo tardo-antiguo desde la perspectiva humana y social [...]
(TEJA, 1999, p. 97).

Essa projeção, que envolvia uma dimensão sociopolítica e cultural, revelava e


reforçava a importância do bispo como forjador de elaborações teóricas que visavam
a projetar a primazia do poder político imperial – e, posteriormente, o régio – tanto
sobre o conjunto da sociedade romano-tardia como das monarquias romano-bárbaras
herdeiras da autoridade imperial romana nos territórios ocidentais. De fato, a cons‑
trução da imagem virtuosa dos imperadores, associada à intervenção e ao favoreci‑
mento do Deus cristão, feita ao longo do século IV por meio dos encômios, panegíricos,
biografias, crônicas, histórias eclesiásticas e orações fúnebres, tinha na figura epis‑
copal um de seus mais significativos representantes (NERI, 2013a, p. 85). Ambrósio
de Milão, em finais do século IV, ofereceu-nos uma entre muitas descrições de impe‑
radores da grandeza de Teodósio (379-395), apresentando-o como portador de inú‑
meras virtudes propriamente cristãs, como o perdão, que conduziam o governante à
felicitas aeterna concedida por Deus:

282
[...] Teodósio, de augusta memória, pensava receber um benefício quando se lhe
solicitava perdoar; e quando a ira lhe havia alterado completamente, então estava
disposto a perdoar 145.

Essa citação feita pelo bispo de Milão era parte do elogio fúnebre dirigido ao recém‑
-falecido imperador no ano de 395146, colocando-nos diante de dois dos mais impor‑
tantes líderes sociopolíticos e culturais da Antiguidade Tardia, o imperador merecedor
de tal honra e o bispo milanês que o organizou e o declarou publicamente (RAPP, 2013,
p. 3). Com efeito, ambos se destacaram no mundo imperial romano tardio do século IV
como representantes máximos em dois espaços sociopolíticos a priori específicos, mas
que ao longo do período tardo-antigo acabaram integrando-se no ambiente urbano, o
da comunidade cívica e o da comunidade de fiéis (LIEBESCHUETZ, 2011, p. 31; RAPP,
2013, p. 160-163), fusão incrementada pela relevância do cristianismo, especialmente
em sua vertente social (NERI, 2006, p. 297-298). Essa atuação propiciou à figura epis‑
copal alcançar um destaque fundamental nos territórios ocidentais romanos, que assis‑
tiram à paulatina fratura da autoridade imperial no decorrer do século V (CURCHIN,
2014, p. 284; HUMFRESS, 2007, p. 58). Na opinião de Ramón Teja:

[...] el llegar a ser obispo se convierte en un ideal y un objetivo altamente apete‑


cido y en una forma de promoción social que compite y supera las posibilidades
que ofrecía el cursus honorum tradicional de las magistraturas civiles y de la polí‑
tica [...] (TEJA, 1999, p. 98).

Podemos dizer, portanto, que a assunção episcopal no universo sociopolítico e


institucional da ciuitas tardo-antiga acabou por levar à própria inclusão dos bispos
no entourage político imperial desde os tempos de Constantino (CAMERON, 2013,
p. 111-112; TEJA, 2005, p. 209-212; MILLAR, 2001, p. 472), aproximação destacada
por Claire Sotinel nestes termos:

145 Amb. De Ob. Theod., 13: Benefcium se putabat accepisse augustae memoriae Theodosius, cum rogaretur
ignoscere; et tunc proprior erat veniae, cum fuisset commotio majoriracundiae...
146  Das várias fontes que se referem à morte de Teodósio, ver: Or. Hist. Ad Pag., VII, 35, 23; Marc. Com.
Chron., a.395, 1; Hydt. Chron., a.395, XVII.

283
[...] la proximité aux pouvoir central, si elle est un élément clé de l’analyse de
l’Église en tant qu’institution au sein du monde impérial ou des royaumes qui lui
succèdent, n’a pas grand sens sociologique, puisque, à chaque fois, seul un évêque
– ou un petit groupe d’évêques – se trouve en contact direct avec le détenteur du
pouvoir [...] (SOTINEL, 2006, p. 379).

Assim, podemos dizer que, a partir da promulgação do edito de Milão de 313, o papel
sociopolítico do bispo cristão ganhou significativa projeção no espaço das ciuitates roma‑
nas, especialmente como articulador do contato entre o poder imperial e o populus fixado
no ambiente urbano, e sobre o qual a figura episcopal estendeu a sua proteção e cuidado,
devido, sobretudo, ao que apontou Claudia Rapp como:

[...] The accelerated progress of Christianization and the recruitment of bishops


predominantly from among the curiales combined to bring about the increasing
identification of church and empire, on the one hand, and the bishop’s de facto
patronage of his city, on the other [...] (RAPP, 2013, p. 274).

Além disso, devemos realçar o papel jurídico assumido pela figura episcopal no
ambiente urbano, na medida em que os juízes seculares, segundo uma lei exarada por
Constantino e presente no Codex Theodosianus (CT, I, 27, 1), deveriam respeitar as deci‑
sões legais tomadas pelo bispo, consideradas como legítimas e “sagradas” (pro sanctis),
e, por esse motivo, inapeláveis (LENSKI, 2016, p. 198). Nesse sentido, o cuidado epis‑
copal pela defesa e proteção das populações urbanas (NERI, 2014, p. 107) acabou por
subtrair esta função de benfeitoria social que, anteriormente, era uma atribuição da
autoridade imperial, fosse por meio de seus representantes burocráticos urbanos, fosse
por sua intervenção direta.
Um exemplo revelador dessa íntima filiação entre o bispo e o populus citadino nos é
oferecido pelo relato de Sócrates Escolástico, em sua História Eclesiástica, ao referir-se à
pugna que opôs Ambrósio de Milão a Justina, mãe do jovem imperador Valentiniano II
(375-392) e defensora do credo ariano (LIEBESCHUETZ, 2011, p. 59-60). A diferença
dogmática entre ambos provocou a efervescência e o confronto social em Milão, culmi‑
nando com a ameaça contra Ambrósio de ser exilado de sua sede episcopal. Mas, como
informou Sócrates Escolástico, “o incrível amor que o populus tinha por Ambrósio o fez

284
resistir e aqueles que o ameaçavam com o exílio foram repelidos”147. Recordemos que o
bispo, segundo Claudia Rapp, aparecia como o verdadeiro patronus e público benfeitor do
populus da cidade, mimetizando aquilo que o uir sanctus cristão praticava entre os rústi‑
cos do mundo rural. A fama relacionada ao prestígio social adquirido pelo bispo por sua
atuação pública transformou-o em um líder cívico, garantindo-lhe o apoio daqueles que
eram diretamente beneficiados por sua atuação social (RAPP, 2013, p. 156).
Esse papel de destaque sociopolítico nos ambientes urbanos da figura episcopal na
Antiguidade Tardia foi acompanhado, por certo, de uma importante dose de cautela
por parte dos bispos, a fim de que estivessem junto ao poder político sem que fossem
por ele contaminados (TEJA, 1999, p. 105). Para superarem os portadores de tal poder,
como o imperador, surgindo como autênticos detentores da auctoritas, os bispos cristãos
apoiavam-se numa aprimorada formação pessoal amparada tanto pela paideia helenís‑
tica (SÁNCHEZ VENDRAMINI, 2014, p. 48-61; AGOSTI, 2013, p. 127-128; CARVALHO,
2010, p. 25-34) como na Didaché cristã (NERI, 2010, p. 80-81; LIZZI TESTA, 2009b,
p. 533-534; RAPP, 2013, p. 29-32), que garantia uma ampla erudição a esses homens,
que, na opinião de Peter Brown (1992, p. 44), “[...] knew how to command respect,
not by violence [...] but through the potent ‘spell’ of his personal eloquence [...]”, o que
lhes possibilitava aconselhar e, inclusive, criticar certas posturas da autoridade imperial
através de escritos laudatórios e fúnebres, como aquele feito por Ambrósio de Milão
em honra do imperador Teodósio. Logo, o bispo cristão acabava detendo para si uma
importante parcela da autoridade que, a priori, seria atribuída à figura imperial, espe‑
cialmente no ambiente urbano.

[...] Pero como maestro, el obispo necesita también de la retórica. La retórica del
mundo helenístico y romano significaba no sólo la capacidad de defender a los
demás mediante el uso de la palabra, sino que era la mejor expresión de la cultura,
de la vida urbana [...]. Se explica así por qué los obispos se convirtieron en los nue‑
vos dirigentes políticos de su tiempo. Basta leer la rica producción epistolar de los
obispos de esta época para comprender la inagotable y variopinta capacidad de
acción que estos hombres desarrollaban (TEJA, 1999, p. 86-89).

147  Socr. Sch. V, 11: …Cumque populus pro incredibili amore quo Ambrosium prosequebatur, resisteret, et eos qui
in exsilium rapere contendebant, repelleret…

285
De fato, ao lermos o elogio fúnebre feito por Ambrósio a Teodósio, observamos
uma intensidade retórica muito variada, que nos dá a estranha sensação de que o bispo
milanês estava, na verdade, fazendo uma crítica ao falecido imperador, sendo, por isso,
completamente incongruente com a proposta de oferecer-lhe uma homenagem póstuma,
parecendo colocar-se numa posição mais elevada, ao menos do ponto de vista cultural e
moral, que o homenageado. Com efeito, era no mínimo curioso que o princeps christianus
sacratissimus, desde a perspectiva de Ambrósio, tivesse que alcançar a ira profunda para,
posteriormente, perdoar, pois o perdão, entendido pelo milanês como uma ação caracte‑
rística da figura imperial e geralmente associado às virtudes da clementia e da misericordia
(SORDI, 2011, p. 210; PEREIRA, 1982, p. 362-362), aparecia como uma das qualidades
mais destacadas da personalidade de Teodósio, já que de acordo com a retórica ambro‑
siana o imperador “desejava vencer, não castigar”148, e era “um juiz equânime que nunca
rechaçava o perdão a quem reconhecia sua culpa”149. Por certo que tais ideias realçadas
por Ambrósio revelam-nos um tom completamente panegirístico desse epitáfio diri‑
gido a Teodósio, embora devamos reconhecer que estavam mais acordes com a retórica
de valorização ideológica do poder do christianus imperator do que com a realidade prá‑
tica de um chefe militar vitorioso que derrotou o usurpador Magno Máximo150, estabele‑
ceu um foedus com os godos151, castigou severamente a população de Tessalônica após os
incidentes antigóticos de 382152 e lutou contra o usurpador Eugênio, vencendo-o153. Ou
seja, observamos que a retórica ambrosiana buscava exaltar a figura de Teodósio como
uir christianus, em que o perdão surgia como uma das uirtutes fundamentais e básicas do
bom governante, característica que, na opinião de Catherine Ware, aparece vinculada à
imagem imperial desde a época do Principado:

[...] As imperial praise became formalized, the writers of the rhetorical hand‑
books, familiar with philosophical writings on kingship, promoted the concept of

148 Amb. De Ob. Theod., 13: [...] Vincere enim voleat [...].


149 Amb. De Ob. Theod., 13: [...] non plectere aequitatis judex, non poenae arbiter, qui numquam veniam
confitenti negaret [ ...].
150 Or. Hist. Adv. Pag., VII, 35, 1-5; Pan. Theod.; Socr. Sch. HE, V, 14.
151 Or. Hist. Adv. Pag., VII, 34, 6; Pan. Theod.
152 Amb. Epist., LI, 6.
153 Or. Hist. Adv. Pag., VII, 35, 11-20; Socr. Sch. HE, V, 25.

286
canonical virtue, but an alternative, more practical canon developed alongside the
traditional four […]. Noreña identifies aequitas (fairness), pietas, uirtus, liberalitas
(generosity) and prouidentia (foresight) as the virtues most commonly found on
coins from 69 to 235 CE […]. These same virtues are also promoted in panegyrics
of the third and fourth centuries [...] (WARE, 2014, p. 88).

Considerações finais

A imagem da figura imperial, elaborada a partir da retórica episcopal, associava o poder


e a autoridade detida pelo princeps christianus sacratissimus como parte de uma delegação
que era concedida pela vontade de Deus e dos homens, o que podemos enquadrar no
âmbito das readequações político-culturais características da Antiguidade Tardia, que
tinham, na mensagem episcopal, o seu principal veículo difusor. Esta construção ideo‑
lógica e retórica característica do pensamento episcopal tentava acentuar a supremacia
da autoridade e do poder imperial sobre o conjunto da sociedade tardo-antiga ocidental,
coligando-se, neste caso, a uma tradição do pensamento neoplatônico (TORRES PRIETO,
2013, p. 13; AGOSTI, 2013, p. 125; DE SANCTIS, 2012, p. 28-29) que influenciou decisi‑
vamente os pensadores cristãos entre os séculos IV e V, como sugere Henry Chadwick:

[...] Ambrose of Milan was preaching eloquent sermons, of which he admired


the oratory but went on to be impressed by the content. Ambrose found conge‑
nial matter in Plotinus and Porphyry and had a command of Greek greater than
Augustine had acquired. Ambrose’s discourse on the life of the patriarch Isaac was
a both Christian and Neoplatonic [...] (CHADWICK, 2001, p. 77).

O caminho trilhado para que o cristianismo atingisse tal preponderância no uni‑


verso político da Antiguidade Tardia envolveu a elaboração de um discurso ideológico
legitimador que, teoricamente, validava a concessão ao imperator de poderes políticos
voltados ao exercício equilibrado do governo, provenientes do aval divino e, também,
dos grupos sociopolíticos que compartilhavam e apoiavam os imperatores em suas atri‑
buições. Com efeito, sem o apoio dos segmentos aristocráticos e nobiliárquicos seria
impossível aos portadores do poder imperial, tanto em termos teóricos como práticos,

287
o desenvolvimento organizado do exercício do poder político (FRIGHETTO, 2014,
p. 26). Exatamente no interior deste conjunto aristocrático-nobiliárquico, que compu‑
nha a sociedade política tardo-antiga, encontramos os agentes sociais responsáveis pela
integração do pensamento cristão aos argumentos ideológicos constituintes da supre‑
macia dos poderes imperiais. Referimo-nos aos integrantes do ambiente episcopal que
participavam do entourage imperial e que acabaram integrando as antigas estruturas, ou
criaram um novo grupo, daquela que definimos como a elite sociopolítica tardo-romana.

[...] peut se demander si la reconnaissance institutionelle des Églises chrétiennes


a permis aux évêques d’être assimilés à tel ou tel groupe des élites imperiales, ou
s’ils constituent un nouveau groupe au sein de l’ensemble hétérogène que forment
les élites du monde romaine tardif [...] (SOTINEL, 2006, p. 378).

Dessa forma, a partir do reinado de Constantino verificamos, através do relato das fon‑
tes, que os bispos deixaram sua condição de coadjuvantes passando ao posto de atores princi‑
pais no palco político, social, jurídico e cultural no Império Romano Tardio, defendendo, do
ponto de vista ideológico e teórico, a supremacia da autoridade imperial sobre o corpo social
tardo-romano. Porém, é importante notar que a atuação episcopal ganhou uma grande pro‑
jeção no âmbito da cidade tardo-antiga graças à ação sociojurídica e caritativa desenvolvida
pelos bispos no universo urbano, atividade que acabou concorrendo e ofuscando o papel
de benfeitoria social que anteriormente cabia tanto à aristocracia senatorial, às instituições
municipais romanas, como à própria autoridade imperial. Nesse sentido, podemos dizer que
a consolidação sociopolítica do episcopado cristão nos séculos IV e V acentuou o processo de
partilha da autoridade política imperial, já observada na perspectiva político-militar desde o
século III e que ganhou um impulso maior com o estabelecimento das monarquias romano‑
-bárbaras a partir da primeira metade do século V. O cristianismo e as instituições a ele vin‑
culadas, como a ecclesia e o episcopado, apesar de teoricamente defenderem a unidade como
premissa para o estabelecimento da pax e da ordem sociopolítica no mundo tardo-romano,
contribuíram, na prática, para a atomização da autoridade imperial. Podemos dizer que nos
encontramos diante de um sintoma muito característico desse momento histórico marcado
por readequações e transformações, que foi a Antiguidade Tardia.

288
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292
sobre os autores

ANA TERESA MARQUES GONÇALVES é professora do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal de Goiás, mestra em História Social pela Universidade de
São Paulo, doutora em História Econômica pela mesma instituição, pesquisadora do Labo‑
ratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade II do CNPq.

ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE é professor dos programas de Pós-Graduação em


História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e em História da Uni‑
versidade Estadual de Campinas, mestre em História Social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e fez
pós-doutorado em História na Unicamp.

BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO é professor do Programa de Pós-Graduação em His‑


tória da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutor em História pela mesma
instituição e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir).

CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA é professora do Programa de Pós-Graduação em His‑


tória da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra em História Antiga e Medie‑
val pela mesma instituição, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
e membro do Núcleo de Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo (Nero), da
Unirio. Realizou ainda estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Histó‑
ria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

293
ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA é professora do Programa de Pós‑Graduação
em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestra em História pela mesma
instituição, doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (campus de Franca)
e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir).

FÁBIO DUARTE JOLY é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Univer‑


sidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutor em História Econômica pela Universidade
de São Paulo e fez pós-doutorado na mesma instituição. É pesquisador do Laboratório de
Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade II do CNPq.

FERNANDO D. TEODORO MOURA é mestre e doutorando em História pela Univer‑


sidade Federal de Goiás.

GILVAN VENTURA DA SILVA é professor do Programa de Pós-Graduação em His‑


tória da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História Antiga e Medieval
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História Econômica pela Uni‑
versidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano
(Leir) e bolsista produtividade I-C do CNPq.

LUCIANE MUNHOZ DE OMENA é professora do Programa de Pós-Graduação em His‑


tória da Universidade Federal de Goiás, doutora em História Social pela Universidade
de São Pauloe realizou mestrado e pós-doutorado em História Social na Universidade
Estadual de Campinas.

LYVIA VASCONCELOS BAPTISTA é professora do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mestra em História pela
Universidade Federal de Goiás e doutora em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

RENAN FRIGHETTO é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Uni‑


versidade Federal do Paraná, mestre em História Antiga e Medieval pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, doutor em História Antiga pela Universidade de Salamanca,

294
pesquisador do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (Nemed), da UFPR, e bolsista produ‑
tividade I-D do CNPq.

RENATA ROZENTAL SANCOVSKY é professora do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestra em História Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em História Social pela Universidade
de São Paulo e realizou pós-doutorado em Arqueologia no Museu Nacional, pesquisa‑
dora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos (Pluralitas) e do Grupo de Pesquisa
Jesus Histórico e sua Recepção (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

ROBERTA ALEXANDRINA DA SILVA é professora do Programa de Pós-Graduação


em Linguagens e Saberes da Amazônia e do Mestrado Profissional em História, ambos
da Universidade Federal do Pará, mestra e doutora em História Social pela Universidade
Estadual de Campinas e realizou pós-doutorado em História na Universidade Federal do
Espírito Santo.

SEMÍRAMIS CORSI SILVA é professora de História Antiga da Universidade Federal de


Santa Maria, mestra e doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (campus
de Franca) e pesquisadora do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano
(G.Leir/Unesp/Franca).

SILVIA MARCIA ALVES SIQUEIRA é professora do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Estadual do Ceará, mestra e doutora em História pela Univer‑
sidade Estadual Paulista (campus de Assis). Realizou ainda estágio pós-doutoral em His‑
tória Antiga pela Università degli Studi Roma Tre.

SUIANY BUENO SILVA é mestra e doutoranda em História pela Universidade Fede‑


ral de Goiás.

295
Este impresso foi composto utilizando-se a família tipográfica
Crimson Text. Sua capa foi impressa em papel Supremo 250 g/m²
e seu miolo em papel apergaminhado 90 g/m², medindo 18 x 23 cm,
com uma tiragem de 400 exemplares.

É permitida a reprodução parcial desta obra, desde que


citada a fonte e que não seja para qualquer fim comercial.

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