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Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 213-225, 2001.

QUEM ERAM OS GREGOS*

Jonathan M ark Hall**

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São


Paulo, 11: 213-225, 2001.

RESUMO: Partindo do princípio de que o conceito de etnicidade envolve a


percepção interna que cada membro de um grupo tem de si e do grupo ao qual
pertence e não necessariamente o que os outros pensam do grupo; e que um
grupo étnico define-se não pela soma de diferenças objetivamente obser­
váveis mas por apenas aquelas diferenças que os membros do grupo, eles
próprios, percebem como diferenças significantes, Jonathan Hall, neste artigo,
pretende mostrar por quais caminhos os gregos antigos construíram a sua
própria identidade. O papel desempenhado por Heródoto nesta construção é
destacado pelo Autor.

UNITERMOS: Etnicidade grega - Identidade cultural - Heródoto -


Jônios - Dórios.

Estamos tão acostumados hoje em dia a - historiador da Antigüidade na Universidade


enxergar a Grécia antiga como o berço da de Cambridge - nota: “Não provoca surpresa o
civilização Ocidental que, freqüentemente, fato de que durante o século XIX e a primeira
esquecemos como essa apropriação de um parte do XX, europeus e americanos educados
ancestral cultural - por vezes relutante - é em uma tradição clássica achavam absoluta­
recente. Aprendemos que os gregos criaram as mente natural cantar ‘A glória que foi a
bases políticas, artísticas, culturais, educacio­ Grécia’, como o fez Edgar Alian Poe em sua
nais filosóficas e científicas em que se funda­ Ode a Helena”. Em sua visita atribulada a
menta a cultura ocidental. Como Paul Cartledge Atenas em novembro de 1999, o ex-presidente
Clinton modificou o famoso aforismo de Percy
Shelley ao proclamar : “Somos todos gregos
não por causa dos monumentos e das memóri­
(*) Palestra proferida no Departamento de História
da FFLCH/USP, no dia 19 de junho de 2001. Tradu­ as, mas porque o que começou aqui há dois mil
ção de Maria Beatriz Borba Florenzano. e quinhentos anos acabou por abraçar, depois
(* * ) P rofessor de História Antiga do Departamento de todas as lutas sangrentas do século XX, o
de História da Universidade de Chicago - EUA. mundo todo.” Mas, afinal, quem foram os
Professor visitante do Programa de Pós-graduação
gregos?
em Arqueologia do M AE/USP durante o mês de junho
de 2001. Agradecem os à FAPESP a oportunidade da Esta questão foi colocada há quase
estada deste professor entre nós e o incentivo para a setenta e cinco anos por Sir John Linton
publicação desta palestra. Myres em uma conferência sua da tão presti-

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HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

giosa série Sather Lectures da Universidade de descendência, linguagem, religião e costu­


da Califórnia em Berkeley, na primavera de mes. Os classicistas, ele argumentava, aceita­
1927. Designado o primeiro Wykeham profes­ ram rapidamente a definição, porque “os testes
sor de História Grega da Universidade de propostos por Heródoto são aqueles aceitos
Oxford em 1910, Myres não era um historiador pela moderna antropologia”, mas, de fato, para
de gabinete. Com efeito, por sugestão de Sir Myres, toda a documentação disponível
Arthur Evans, filiou-se em 1893 à British sugeria que os gregos não eram uma popula­
School o f Archaeology em Atenas e no ano ção única, homogênea, mas sim um povo todo
seguinte iniciou uma escavação em Chipre. misturado de origens muito disparatadas.
Durante a primeira guerra mundial, foi despa­ De uma perspectiva moderna, um dos
chado pela British Admiralty à Dodecanese aspectos mais surpreendentes da tese de
onde suas incursões militares na costa da Myres é a sua fundamentação nos princípios
Anatólia valeram-lhe o apelido de ‘O Barba- da pseudo-ciência hoje completamente
negra do Egeu’ e, eventualmente, o comando desacreditada, a crâniometria. Partindo da
em chefe da Inteligência Britânica em Atenas. caracterização da paisagem grega, com suas
Afora os seus interesses arqueológicos pequenas e fragmentadas planícies costeiras e
(Myres publicara a coleção de antigüidades do com sua dependência na comunicação maríti­
Museu Cipriota e a coleção Cesnola do ma (o que implica em uma necessidade e
Metropolitan Museum o f Art) Myres era também em uma facilidade para o movimento
igualmente fascinado por Geografia Histórica e populacional), Myres argumentava que a
por Antropologia, campos em que, com Grécia tinha sido habitada, desde a Idade do
freqüência, reconhecia sua dívida intelectual Bronze, por uma população mista. Esta teria
ao classicista e antropólogo de Cambridge, Sir tido como origem os tipos mediterrânicos de
James Frazer. cabeça alongada associados às costas meridi­
No início de suas conferências, que foram onais do Mediterrâneo do Marrocos à Pérsia e
publicadas em 1930, Myres - como muitos os tipos alpinos-armenóides de cabeça larga,
estudiosos da História grega antes e depois principalmente distribuídos por todo o cintu­
dele - debruçou-se sobre uma das poucas rão montanhoso que vai dos Alpes ao Hindu-
definições de helenidade que os gregos nos Kush. Com o passar do tempo, o elemento
deixaram. O historiador Heródoto relata que na alpino-armenóide teria aumentado nesta
primavera de 479 a.C. - depois de que os mistura, mas não antes de ter ocorrido uma
gregos puseram em fuga a marinha persa em infiltração dos tipos de cabeças alongadas
Salamina mas antes de sua vitória final em provenientes do norte, de além do cinturão
Platéia - circularam rumores que os atenienses das montanhas centrais da Europa, os quais
estavam considerando a possibilidade de teriam se misturado aos tipos alpinos-arme­
abandonar a aliança grega e de passar para o nóides. Esta diversidade física poderia ser
lado dos persas. Heródoto conta que em uma identificada em outros tipos de evidências
tentativa de acalmar o ruído, os atenienses como a mistura de elementos indo-europeus e
negaram que tivessem qualquer intenção de não indo-europeus no idioma grego, a fusão
concluir um trato com o inimigo e ofereceram entre as divindades olímpicas ‘loiras’ com as
duas razões para isso. Em primeiro lugar, divindades da natureza mais morenas, freqüen­
tinham sido forçados a procurar a vingança temente femininas. E, ainda, na interpenetração
contra aqueles que haviam destruído suas de diferentes tipos de cultura material tal como
estátuas e seus templos. Em segundo lugar, a que Myres chamava de cultura cretense
tratava-se de uma questão de helenidade - neolítica da cestaria a qual ele, em última
‘isto é, nosso sangue comum, nossa língua análise, fazia derivar da África do Norte ou
comum, nossos lugares comuns de culto e de como a cultura de vasilhame vermelho (red
sacrifícios e outros costumes similares’. ware) da antiga Idade do Bronze das Cíclades
Diferentemente de outros historiadores, Myres e da Ásia Menor ou ainda como a cultura do
questionava a veracidade histórica desta vasilhame pintado (painted-ware culture)
definição tão direta de helenidade em termos própria da Tessália, representada principal­

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mente pelos jarros globulares encontrados no sicismo no século V a.C.: ‘de uma ances-
sítio de Dímini. tralidade híbrida, o povo grego de época
Que a Grécia tivesse recebido uma série de clássica chegou a estar constituído de tipos
ondas de migrantes não era àquela época muito próximos, quase de puro sangue’.
nenhuma novidade. Palavras e elementos não Myres estava interessado apenas em
indo-europeus no idioma grego eram tipicamen­ fatores supostamente objetivos que podiam
te explicados como sobreviventes de um ser observados externamente. Com efeito,
substrato lingüístico sobre o qual os invasores debruçou-se sobre a evidência do que ele
indo-europeus impuseram sua própria lingua­ chamou de ‘memória folclórica’, considerando
gem. Apenas um ano depois das Sather tais tradições como genuínas reminiscências
Lectures de Myres, o arqueólogo norte- históricas. Se o mito narrava estórias a respei­
americano Cari Blegen e o filólogo J.B. Haley to de heróis com nomes aparentemente não
publicaram um artigo no American Journal o f gregos como Pélops ou Arquésio que supos­
Archaeology no qual argumentavam que os tamente haviam chegado à Grécia três gera­
recém chegados indo-europeus haviam trazido ções antes da Guerra de Tróia, então, isto
com eles novos itens culturais tais como casas devia indicar uma época de imigração vinda do
em forma absidal, enterramentos em cista leste nos anos ao redor de 1260 a.C. E as
realizados em túmulos individuais e uma lendas a respeito de Cadmo que chegara em
cerâmica diferente, cinza encerada ‘miniana’. uma data anterior ainda, vindo da Fenicia a fim
Ainda que demorasse uma outra década até que de fundar a cidade de Tebas e aquelas a
Georges Dumézil elaborasse a sua teoria sobre a respeito de Dânao chegando do Egito para
estrutura tripartite dos mitos e da religião indo- assumir o reino em Argos, deveriam, similar­
européia, acreditava-se comumente, àquela mente, ser entendidas como referências a um
época, que as divindades olímpicas representa­ período ainda mais antigo de imigração ao
vam um estrato mais recente na história religio­ redor de 1400 a.C. Myres engenhosamente -
sa dos gregos, que haviam sido sobrepostas a ainda que equivocadamente - havia classifica­
uma base rígida de espíritos e de deusas-mãe. do os heróis do mito de acordo com gerações
Mas, Myres pensava de forma diferente de seus de trinta anos e até mesmo utilizou este
contemporâneos a respeito de um item bastante sistema para criar datas na cronologia ainda
importante. Para estes últimos, os gregos eram mal compreendida da cultura material da Idade
aqueles novos invasores que vinham de fora e do Bronze. Hoje, nossa tendência é ver os
que haviam trazido o discurso e as crenças mitos como tentativas das populações de
indo-européias e novos artefatos e formas tempos históricos de legitimação e de explica­
culturais à Península grega. Para Myres, por ção das circunstâncias do presente por meio
outro lado, os gregos tinham surgido no solo de uma referência ao passado; passado que
grego e isto era o resultado de seleção natural. poderia ou não ser fictício. E, como o que tem
Os gregos, diz ele, “conseguiram a unidade que de ser explicado ou legitimado no presente é
usufruíram em sua grande época, graças a sempre uma realidade em mutação, tradições
controles regionais bastante austeros que diferentes e novas acabam entrando no
eliminavam, selecionavam, favoreciam qualida­ vocabulário mítico, co-existindo - por vezes
des, faculdades e aspirações em uma população até em contradição com - as variantes anterio­
diversificada e heterogênea....na última crise, foi res. De fato, não há razão para supor que a
esta mesma diversidade e mistura caótica que figura de Pélops tenha se desenvolvido em
se tomou o mais potente estímulo na luta para qualquer outro lugar da Grécia a não ser no
‘bem viver’”. Assim, enquanto os outros próprio Peloponeso, que toma o seu nome.
historiadores falavam na ‘chegada’ dos gregos, Aliás, suspeita-se, ainda hoje, com bastante
Myres argumentava que os gregos estiveram freqüência, que Dânao e Cadmo não tenham
sempre no processo de se ‘tomarem’ gregos, sido vistos pelos habitantes da Grécia como
ainda que ele acreditasse que isto tivesse sido imigrantes do Leste até o século V a.C.
conseguido durante os séculos que imediata­ O que falta em todas estas análises e
mente precederam a época do ápice do clas- interpretações é a perspectiva de quem está

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dentro do grupo. Com efeito, considera-se um Argos ou Acaia. O nome Helas é encontrado na
princípio cardinal do pensamento antropológi­ Ilíada, mas a área à qual este nome se refere é
co desde pelo menos os anos 1960, que o extremamente limitada. No livro IX, o velho
conceito de etnicidade envolve muito mais a Fênix relembra as proezas de sua juventude e
percepção interna de cada membro de um reconta como havia fugido da casa de seus pais
grupo. O grupo étnico é, assim, definido não em Helas e havia se dirigido para a corte do rei
pela soma de diferenças objetivamente obser­ Peleu na vizinha Ftiótida. Esta e outras passa­
váveis mas por apenas aquelas diferenças que gens tomam claro que Helas aqui define uma
os membros do grupo, eles próprios, percebem área relativamente pequena, ao redor do vale do
como diferenças significantes. E esta idéia não rio Espérquio na Grécia central (Fig. 1). Na
é uma invenção da era pós ‘melting pot’: já em Odisséia, entretanto, Helas parece ter sido
1912, o grande sociólogo alemão Max Weber imaginada como uma área já muito maior.
definira os grupos étnicos como ‘os grupos Menelau deplora o destino do filho de Ulisses,
humanos que mantêm uma crença subjetiva em Telêmaco, enquanto este viaja ‘através da
sua descendência comum .... sem importar se Hélade e do coração das terras argivas’.
uma relação objetiva de sangue existe ou não”. Enquanto isso, Penélope orgulha-se que a fama
Assim, minha preocupação hoje, não é com o de seu marido, Ulisses, espalha-se também
que nós pensamos que os gregos eram mas ‘através da Hélade e do coração das terras
com o que eles pensavam que eram. Ao mesmo argivas’. Mas o destino de Telêmaco não seria
tempo que concordo com a conclusão de tão terrível se ele tivesse tido intenção de visitar
Myres de que os gregos estavam ‘sempre no somente o vale do Espérquio e a cidade de
processo de vir a ser’ eu proponho que este Argos. Da mesma forma, o elogio de Penélope,
processo não havia sido concluído antes do se tomado no sentido literal, poderia ser uma
período clássico e que os critérios em que os forma de gabar-se da reputação do marido. Ao
gregos fundamentavam sua auto-identificação contrário, parece claro que esta fórmula foi
transformaram-se de acordo com a época. empregada para abranger a Grécia em geral,
Aparentemente, há poucos grupos étnicos onde Hélade é a Grécia central, ao norte do
através da História que não tenham expressado istmo de Corinto e o coração das terras argivas
sua auto-consciência comum por meio de um é o Peloponeso, uso atestado ainda muito
nome coletivo. A razão disto não é difícil de posteriormente em Demóstenes e em Plínio, o
determinar. A etnicidade depende de catego- Velho (Fig. 2). Uma ampliação da abrangência
rização, ou seja, da habilidade em dividir o geográfica de ‘Helas’ aparece ao final do século
mundo entre ‘nós’ e ‘eles’. E a categorização é VII a.C. quando o poeta espartano Alemão
muito melhor operacionalizada quando há descreve o troiano Paris como ‘um mal para
nomes. É, portanto, surpreendente que os Helas, produtora de homens’. Mas, mesmo
nomes que os gregos utilizaram para designa- então, outros fragmentos poéticos do período
rem-se a si mesmos - Helenos - e a terra que sugerem que Helas pode ter indicado apenas
habitavam - Helas - aparecem relativamente uma porção principal da Grécia, com exclusão
tarde nas fontes textuais. As nossas mais de muitas das ilhas do Egeu (Fig. 3). Teremos
antigas obras sobreviventes são provavelmente que esperar pela poesia de Xenófanes em
os poemas épicos homéricos: a Ilíada que se meados do século VI a.C., para encontrar o
acredita tenha adquirido mais ou menos a forma primeiro emprego do termo Helas significando
que conhecemos hoje ao final do século VIII sem ambigüidades o que chamaríamos de Grécia
a.C. ou talvez no transcorrer do início do século - ou então para ser mais precisos - o Mundo
VII a.C. e a Odisséia cuja composição é prova­ grego. Encontraremos o mesmo padrão com
velmente de uma geração mais tarde. Nos dois relação ao termo ‘helenos’ que não é empregado
poemas os gregos que sitiam a cidade de Tróia para designar os gregos em um sentido abran­
são coletivamente denominados aqueus, gente e coletivo antes do século VI a.C.. Na
argivos, dânaos - aparentemente de modo poesia pós-homérica mais antiga, os gregos são
intercambiável - mas não helenos. E sua terra chamados de pan-helenos; termo que implica em
de origem é referida não como Helas mas como pluralidade muito mais do que em unidade.

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Fig. 3.

Que o século VI a.C. tenha sido um helenos, representados por um herói epônimo
período crucial para a cristalização da identida­ chamado Heleno que, por sua vez, era visto
de grega é também sugerido pela tradição como o pai ou como o avô destes grupos
genealógica encontrada em um poema frag­ constitutivos.
mentário denominado Catálogo de Mulheres Há duas razões pelas quais pode-se supor
que, se acredita, foi composto na primeira que Heleno não havia sido concebido original­
metade do século VI a.C.. O poema registra mente como o ancestral de Éolo, Doro, íon e
que o herói Heleno teve três filhos, Doro, Xuto Aqueu. Em primeiro lugar, enquanto o termo
e Éolo, e que Xuto teve como filhos, Aqueu e ‘helenes’ não indicava, como vimos, o povo
íon. Esta árvore familiar funciona para fazer a que chamamos de gregos até pelo menos o
relação dos principais grupos populacionais século VI a.C., a literatura mais antiga reconhe­
da Grécia entre si e para criar uma identidade ce a existência dos outros grupos: os dórios e
helénica mais abrangente. Os eólios, represen­ os jônios aparecem uma única vez nos poemas
tados pela figura epônima de Éolo eram as homéricos e o poeta Hesíodo que escreveu no
populações que habitavam as regiões da início do século VII a.C. registra que o seu pai
Grécia central, a Tessália e a Beócia juntamente havia migrado para a Grécia central vindo da
com a faixa norte do litoral da Anatólia. Os cidade eólia de Cime na Ásia Menor. Em
dórios, representados metaforicamente por segundo lugar, há uma intrusão na genealogia
Doro, habitavam partes do Peloponeso, as da figura de Xuto, filho de Heleno e pai de íon
ilhas do sul do Egeu, incluindo Creta e o e de Aqueu. Por que deveriam íon e Aqueu ser
sudoeste da Ásia Menor. Os jônios, simboliza­ vistos como os netos e não como os filhos de
dos pela figura de íon, ocuparam Atenas e a Heleno e por que não há uma população ‘xutia’
Ática, a ilha de Eubéia, as ilhas Cíclades e a na Grécia que fosse representada por Xuto? A
costa central da Anatólia. Por fim, Aqueu melhor explicação é que os jônios e os aqueus
representava os aqueus que haviam se estavam ansiosos para estabelecer laços de
estabelecido - pensava-se - ao longo da costa parentesco entre si por meio da figura comum
sul do Golfo de Corinto. Juntos, eólios, dórios, de Xuto antes que tivessem percebido ou
jônios e aqueus podiam ser vistos como sentido qualquer afinidade maior com eólios

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ou dórios. Isto, por sua vez, sugeriria que a santuário oracular de Apoio em Delfos. Além
genealogia apresentada no Catálogo de disso, pode não ser acidental que as elites
Mulheres constitui o produto final de um tessálias começaram a obter muitas vitórias
processo gradual por meio do qual populações nos Jogos Olímpicos em tomo da metade do
originalmente independentes procuraram século VI a.C.. No início do século V a.C ./a•
estabelecer laços étnicos entre si acrescentan­ participação nos jogos Olímpicos estava »
do os nomes de seus ancestrais à mesma restrita àqueles que podiam alegar descendên­
árvore familiar e eventualmente traçando uma cia helénica e é, portanto, totalmente possível
descendência comum até Heleno. A identidade que foi na órbita trans-regional dos jogos que
helénica foi construída de forma agregativa a identidade helénica surgiu, na medida em
por meio da percepção de similaridades com que as elites dórias, jônias e aquéias começa­
grupos de pares. ram a forjar relações de parentesco fictícias
As evidências fragmentárias que possuí­ com os eólios da Tessália. Este tipo de registro
mos a respeito deste período provavelmente agregativo, não podia ser nunca inteiramente
nunca revelarão com qualquer certeza os inclusivo: a associação em um clube apenas
motivos e os agentes que estiveram por trás assume significância e kudos se para outros a
da criação da auto-consciência grega no entrada for negada. Uma outra razão para
século VI a.C., mas os tessálios do centro- suspeitar o envolvimento dos tessálios é que
oeste da Grécia são sem dúvida os suspeitos alguns de seus vizinhos - como, por exemplo,
mais óbvios. Em primeiro lugar, a tradição os parrásios e os magnésios que parecem ter
derivava a descendência de Heleno do herói tido um relacionamento de dependência com
tessálio Deucalião. Em segundo lugar, os relação aos tessálios - não eram considerados
tessálios que se viam como eólios originais helenos porque seus ancestrais epônimos não
podiam derivar sua própria descendência do estavam em uma linha direta de descendência
filho mais velho de Heleno. Os tessálios de Heleno e, de fato, não há nenhum registro
tinham desde o século VII a.C. sido o poder de vencedor nos Jogos Olímpicos nesse período
dominante no Conselho que administrava o que fosse parrásio ou magnésio (Fig. 4). Há,

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entretanto, outros grupos que hoje considera­ muitas das práticas das elites - gerou uma
ríamos como gregos, aos quais não se atribuía visão negativa dessa região. A palavra
- no século VI a.C. - uma descendência ‘bárbaros’ - tanto o adjetivo quanto o subs­
helénica, entre eles, os etólios da Grécia tantivo - registrada apenas ocasionalmente
ocidental e os arcádios do Peloponeso central. antes da invasão, entra agora no uso comum
Mais recentemente, os especialistas têm para designar não apenas os persas mas todos
sugerido com freqüência que um sentimento os outros grupos de não-gregos, sem qualquer
de auto-consciência verdadeira, de helenidade, diferenciação. Na tragédia e na comédia grega,
surgiu apenas depois da invasão dos persas e os personagens bárbaros assumem um papel
a sua derrota na Grécia nos anos 480-479. A mais central e são em geral representados
evidência examinada até o momento parece como cruéis, sem moderação, covardes, servis
refutar esta hipótese. Muitos gregos, ainda e afeminados.
que nem todos, procuraram uma unidade Na Ática, os pintores de vasos também
comum em termos de parentesco compartilha­ mostram uma nova fascinação em pintar guerrei­
do, pelo menos duas gerações antes da ros bárbaros, e adaptam esquemas iconográficos
invasão dos persas. Entretanto, é verdade que anteriormente empregados para representar
a invasão persa teve um efeito na forma como grupos não gregos como as Amazonas, adicio­
os gregos se enxergavam. Tendo incorporado nando traços característicos gregos.
as cidades gregas da Ásia Menor em seu Diante dos estereótipos no teatro e nas
Império em meados do século VI a.C., no início artes, os gregos começam a especular mais a
do V a.C., os persas voltaram a sua atenção respeito de sua própria identidade. Começam a
para a Grécia. O golpe na Ática, em 490 a.C., foi perguntar-se o que, afinal, torna os bárbaros
revertido por Atenas na Planície de Maratona, tão estranhos. O que quero dizer é que se a
mas em apenas seis anos o Rei persa Xerxes já identidade grega foi construída de forma
estava realizando preparativos para uma agregativa por meio das similaridades entre
invasão em larga escala da Grécia tanto por grupos de pares, ela era agora definida em
terra quanto por mar. Conquistando a Trácia termos das diferenças percebidas e em oposi­
aos poucos e em seguida a Macedônia, Xerxes ção a grupos externos de bárbaros. Esta
chegou à Tessália em 480 a.C.; depois de mudança no mecanismo definidor da auto-
superar a resistência espartana no desfiladeiro consciência grega permitiu uma maior inclusão
das Termopilas, avançou para capturar a que agora podia abranger grupos como os
própria Atenas a qual os atenienses haviam arcádios ou os etólios, mas também requeria
optado por abandonar. O esforço de defesa, que a especificidade grega fosse imaginada em
estruturado por uma coalizão de apenas uma termos mais concretos que uma simples
meia dúzia de cidades sob a liderança de afinidade genealógica.
Esparta, ofereceu pouca esperança ou qual­ Diferentemente dos autores de peças, seus
quer otimismo. Entretanto, a habilidade em contemporâneos, Heródoto não tinha idéias
escolher as táticas a serem empregadas e uma negativas em relação aos não-gregos - muito
boa dose de sorte permitiram que a marinha mais tarde, o próprio Plutarco viria a acusá-lo
grega obtivesse uma vitória decisiva sobre os de ser amigo dos bárbaros - ao contrário, suas
persas em Salamina e, na primavera seguinte, Histórias são muito mais do que uma simples
as forças gregas venceram o enorme exército narrativa a respeito das causas e dos eventos
persa em Platéia. A libertação da ameaça de ligados à invasão persa. Na verdade, é possí­
invasão persa parece ter desencadeado uma vel afirmar que esta obra é uma meditação a
atitude completamente nova dos gregos em respeito da natureza da própria identidade
relação ao Oriente. Nos século VII e VI a.C., o grega e por isso talvez valha a pena retomar à
Oriente era um objeto de fascinação exótica definição de identidade grega que Heródoto
para os gregos, ou pelo menos nas elites coloca na boca dos atenienses e com a qual
gregas, mas a invasão persa e a ascensão dei início a esta palestra. Esta definição que
concomitante da democracia em várias cidades tem quatro aspectos - descendência, língua,
gregas - prática que servia à marginalização de religião e costumes - é ainda aceita como a

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principal (ou pelo menos a mais válida) as informações oferecidas pelas inscrições
definição grega de helenidade. Entretanto, eu oficiais e por alguns grafites eventuais.
concordaria com Myres que nenhum destes Conhecemos, por isso, as variadas formas em
traços teria sido identificável por si só para os que eram escritos os diferentes dialetos. Mas,
gregos do século V a.C. e que esta definição é, como os sinais do alfabeto são muito menos
portanto, uma parte de um projeto intencional numerosos do que a quantidade de sons
de Heródoto mais do que uma simples reflexão vocálicos que podem ser produzidos oralmen­
a respeito das atitudes suas contemporâneas. te, é muito possível que os dialetos fossem
Vejamos o que nos revela em primeiro muito mais diferentes em suas formas orais do
lugar a descendência. Como vimos, a idéia de que podemos imaginar a partir de suas formas
que os gregos poderiam ser unificados por um escritas. Certamente, a evidência comparativa
mesmo parentesco já tinha trânsito corrente no não nos autoriza a considerar, com segurança,
século VI a.C. quando era expressa de forma o fato de que todos os que falavam dialetos
figurada por meio da genealogia no Catálogo gregos poderiam compreender-se mutuamente
das Mulheres. Notamos também, por outro e, portanto, assumir uma afinidade étnica.
lado, que a ligação dos heróis epônimos Éolo, Mesmo em nossos dias, os que falam dialetos
Doro, Ion e Aqueu era uma invenção relativa­ na Itália são, com freqüência, incapazes de
mente recente e que estes grupos constituti­ compreender uns aos outros: alguns milaneses
vos tinham tido uma existência anterior mais afirmam que compreendem melhor o espanhol
ou menos independente talvez por um par de do que o dialeto siciliano. E, portanto, prová­
séculos. Além disso, lembramos que apesar de vel que um residente de Atenas, uma cidade
Heródoto narrar episódios do início do século cosmopolita que abrigava muitos residentes
V a.C., ele está fazendo o seu relato mais ou estrangeiros, possuísse uma facilidade maior
menos meio século depois. Com efeito, não apenas para compreender a fala dos outros. Mas, um
Heródoto viveu por todo o período em que as fazendeiro que vivia isolado em algum cantão
hostilidades entre Atenas e E sparta chega­ da Arcádia pode ter tido muita dificuldade em
ram ao ápice logo depois do final da guerra reconhecer uma similaridade lingüística entre o
contra os persas, como também ele sobreviveu seu dialeto e os demais. O que é interessante é
em pelo menos dois anos à deflagração da que até onde vai o meu conhecimento, Heródoto
Guerra do Peloponeso, conflito entre as duas é o primeiro autor a fazer referência a uma
cidades e seus respectivos aliados. Tanto única língua ‘grega’, sugerindo que, anterior­
antes quanto durante a guerra, Atenas procu­ mente a ele, nem todos os gregos pertences­
rou galvanizar o apoio entre suas aliadas sem a uma única comunidade lingüística.
apelando a uma descendência jónica comum Agora, com relação à religião. Tendemos
enquanto Esparta chegava a resultados nos dias de hoje a considerar as crenças e as
similares promovendo sua herança dórica. Esta práticas religiosas dos gregos a partir de uma
retórica bipolar entre jônios e dórios militava perspectiva comparativa, por meio da qual a
contra a crença da filiação a uma única família sua estrutura e o seu conteúdo são contrasta­
grega. dos com as tradições judaico-cristãs e com a
Em segundo lugar, vejamos a questão da teologia islâmica. Entretanto, tal como no caso
língua. Do mesmo modo que os italianos não da linguagem, a religião no mundo grego
falavam italiano antes do ‘Risorgimento’, os operava essencialmente no nível da cidade-
gregos do século V a.C. também não falavam estado, o que implica que crenças e práticas
‘grego’. Ao contrário, cada região e cada podiam variar de região para região. Na
cidade-estado tinha o seu próprio dialeto do planície argiva, na Grécia do sul, por exemplo,
grego. Considera-se normalmente que esses a deusa Hera, que é para nós tão conhecida da
dialetos eram inteligíveis entre si, mas, na epopéia homérica como a esposa sofrida de um
ausência de registro literário de como os Zeus bastante namorador, era cultuada como
gregos se com unicavam com os que não uma virgem que presidia os ritos da agricultura
falavam o grego - e muito menos com os que e da fertilidade, enquanto na própria cidade de
falavam dialetos - tudo o que possuímos são Argos, o culto de Afrodite, praticado em um

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pequeno santuário próximo ao famoso teatro babilónicos, libios e, sobretudo, egípcios -


da cidade, aparenta ter um aspecto marcial é manter os hábitos dessas populações não
muito diferente da deusa sensual cultuada gregas como um espelho, onde os gregos
pelas cortesãs de Corinto. Com efeito, Heródoto pudessem olhar e perceber aquilo que eles
não faz qualquer menção em sua definição de próprios tinham em comum entre si. Quando
helenidade às crenças comuns, apenas aos Heródoto descreve como os homens egípcios
santuários e aos sacrifícios, mas aqui também ficam em casa tecendo enquanto suas mulhe­
a comunhão grega de culto não pode ter sido res vão ao mercado, ou como as mulheres
totalmente evidente. Os Mistérios eleusínios egípcias urinavam em pé enquanto os homens
eram supostamente restritos àqueles que o faziam de cócoras, sua intenção não é a de
podiam entender a língua grega (o que poderia disseminar conhecimento científico a respeito
incluir os que falassem o grego correntemente, dos hábitos egípcios, mas sim convidar a sua
mas que de fato nem eram gregos) e a partici­ audiência e os seus leitores a contemplar o
pação nos jogos olímpicos era, como já que finalmente dá uma coerência aos seus
mencionamos, limitada àqueles que podiam próprios hábitos e às suas próprias práticas
alegar descendência helênica. Mas, este tipo coletivas.
de restrição não parece ter sido aplicada a Mesmo assim, eu acredito que Heródoto
Delfos, onde até o rei lídio, Creso, podia faz mais do que simplesmente ampliar os
consultar o oráculo. No início do período critérios que definem a helenidade. Quando
arcaico, oitenta e cinco por cento das dedica­ analisados à luz das Histórias em geral, salta à
ções em metal no santuário de Hera na ilha de vista que a estes quatro ingredientes de
Samos são de fabricação médio-oriental ou helenidade não é dado o mesmo peso. De fato,
egípcia. No santuário de Hera em Peracora, nas eles são apresentados em ordem crescente de
proximidades de Corinto, três quartos do importância. Assim, são os costumes, segui­
material metálico são de origem fenícia. A dos das práticas religiosas e da linguagem os
proveniência de um artefato não identifica itens que mais atraem Heródoto quando ele
necessariamente o seu doador, mas porcenta­ descreve as populações que não são gregas.
gens tão altas como estas não devem ser As noções de descendência é dada, compa­
simplesmente explicadas como o resultado de rativamente, pouca atenção. Heródoto nos
comércio e de trocas ainda que estas ativida­ diz, por exemplo, que os cáunios da Ásia
des sejam responsáveis por parte destas Menor, apesar de possuirem a mesma língua
oferendas. De um outro lado, há evidências de e de reconhecerem a mesma origem que
que as comunidades de culto muitas vezes seus vizinhos, os cários, são diferentes deles
separavam os gregos ao invés de uni-los. Diz- porque os seus costumes e modos de vida são
se que a sacerdotisa de Atena Polias na diferentes. Ao contrário, os côlquios, do litoral
acrópole ateniense tentou impedir que o rei leste do Mar Negro são, na realidade, egípcios:
espartano Cleômenes oferecesse sacrifícios, a esta conclusão ele chega não apenas com
alegando que ele era um dório e uma inscrição base na aparente similaridade física entre as
do século V a.C. proveniente de um santuário duas populações, mas porque os côlquios
da ilha jônica de Paros também proíbe o praticam a circuncisão e trabalham o linho tal
acesso aos estrangeiros dórios. como os egípcios.
Ao descrever os costumes dos persas e O mesmo parece aplicar-se aos próprios
dos citas, Heródoto salienta o fato de que gregos. Heródoto observa que apesar de
estes não erigiam estátuas, altares ou templos reivindicar o nascimento puro, os jônios da
aos deuses. Parece querer dizer que as práticas Ásia Menor são todos misturados já que
religiosas persas e citas eram assim diametral­ descendem não apenas de ancestrais jônios
mente opostas àquelas dos gregos e, com como também de dórios e de populações não
efeito, um dos propósitos das digressões gregas como os abantes, os minios, os dríopes
etnográficas por vezes bastante longas de e os pelasgos. É evidente que se os jônios
Heródoto - não apenas a respeito dos persas e possuem uma origem misturada, fica difícil
citas como também a respeito dos lídios, sustentar que os próprios gregos, coletiva­

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mente, constituem um único grupo de descen­ Grécia ocidental os quais, apesar de original­
dência e esta é a razão pela qual sempre se mente bárbaros, haviam se helenizado por meio
sugere que Heródoto está de alguma maneira do contato com os gregos da vizinha Ambrácia.
‘indeferindo’ as verdadeiras credenciais Se pensarmos que bárbaros podiam tornar-se
gregas dos jônios. O desprezo que Heródoto gregos ao adotar os costumes gregos, então
tem pelos jônios da Ásia Menor é bastante alguns gregos poderiam ser considerados
evidente em sua obra, entretanto, não são ‘mais bárbaros’ por conta de seu modo de vida
estes os únicos a terem a pureza de sua mais atrasado. Tucídides nos fala que mesmo
descendência questionada por este autor. em seus dias, os habitantes de Locris Ozólia,
Heródoto nos diz que os atenienses - que da Etólia e da Acamânia na Grécia ocidental
também se consideravam jônios quando lhes ainda carregavam as armas em público, prática
interessava - eram originalmente uma popula­ que havia sido comum entre todos os gregos,
ção não grega de pelasgos que ‘aprenderam o mas, que naquela época era encontrada apenas
grego quando se tornaram helenos’. Conside­ entre as populações bárbaras.
rando que, com toda a probabilidade, Históri­ Resta-nos perguntar porque os gregos
as foi uma obra dirigida a uma audiência de começaram a ver-se mais em termos de costu­
atenienses, esta afirmativa dificilmente pode mes e de cultura do que em termos de paren­
implicar um insulto étnico. Com efeito, a crença tesco. Até um certo ponto, as antigas explana­
de que os atenienses eram pelasgos antes de ções genealógicas de helenidade tinham
serem gregos combina perfeitamente com sobrevivido à sua utilidade funcional. Por um
outro mito de origens que os atenienses lado, elas não eram suficientemente inclusivas:
professavam - quando não se faziam passar os gregos sem dúvida haviam percebido que
por jônios - de que eram autóctones, de que os arcádios que lutaram tão bravamente pela
nunca haviam deixado o seu território e que liberdade da Grécia na invasão persa não
eram descendentes de Erecteu, aquele que podiam reivindicar qualquer descendência de
havia nascido da terra. Para os atenienses, o Heleno. Por outro lado, não havia nada que
mito de autoctonia era mais uma fonte de garantisse a exclusividade destas explanações
orgulho do que um motivo para vergonha: este genealógicas. Os cidadãos de Argos no
mito os marcava como uma das populações Peloponeso mantiveram uma neutralidade
mais antigas da Grécia e privilegiava a crença bastante rigorosa durante o conflito com os
em uma igualdade primordial fazendo derivar a persas e Heródoto nos diz que isto se deveu a
descendência mais do próprio território ático uma missão diplomática que os persas envia­
do que de progenitores humanos diferencia­ ram a Argos na qual eles pleiteavam uma
dos. As conclusões parecem, então, muito descendência comum já que Perses, o ances­
claras: para Heródoto, era a cultura comum que tral epônimo dos persas, era filho do herói
definia o que era ser grego, muito mais do que argivo Perseus. A reivindicação pode nos
a descendência compartilhada. parecer hoje ridícula, mas a verdade é que, na
Sendo ou não Heródoto o primeiro a Grécia antiga, o parentesco fictício servia
formular essa definição de helenidade mais tipicamente como a linguagem da diplomacia.
voltada para o lado cultural, trata-se de uma Também a crescente polarização do mundo
concepção atestada com cada vez maior grego - que resultou em última instância na
freqüência em outras obras do final do século guerra do Peloponeso - facilitou a crença em
V e do século IV. a.C.. Tucídides, por exemplo, uma única comunidade de parentela. Há razões
questiona se os gregos estavam originalmente suficientes, no entanto, para se acreditar que
relacionados uns aos outros: segundo este Atenas tenha contribuído de maneira decisiva
autor, foram tribos originalmente independen­ à formulação desta nova definição de heleni­
tes que assumiram o nome de helenos por meio dade que se fundamentava em um critério mais
de contatos com os filhos de Heleno e não por cultural.
descendência destes. Tucídides também Em primeiro lugar, o século V a.C. presen­
apresenta um paralelo para o caso ateniense ciou a ascensão da democracia radical em
em sua descrição dos argivos anfílocos da Atenas. Mais do que uma simples extensão

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dos privilégios e das obrigações políticas a reunido uma imensa quantidade de riqueza
uma camada masculina mais abrangente, a devido à sua hegemonia sobre aliados que
democracia - que significa literalmente o poder pagavam um alto tributo e a sua força econô­
das pessoas comuns - representava a vitória mica atuava como um imã poderoso sobre
do cidadão comum sobre as elites que eram, intelectuais e artistas bem como sobre merca­
como vimos, elites fascinadas com o Oriente a dores e artesãos. Na oração fúnebre para os
ponto de ter importado e imitado produtos e primeiros tombados na Guerra do Peloponeso,
práticas orientais. Profissão de afinidades Péricles enfatizou os valores e as característi­
genealógicas são difíceis de discernir, mas cas que faziam de Atenas uma cidade única e
transgressões orientalizantes por parte das proclamou que ela provia uma paideusis para o
elites podiam ser verificadas de forma melhor resto da Grécia. A palavra paideusis é freqüen­
na esfera cultural, assegurando à cultura o temente traduzida por ‘educação’, mas o seu
papel de fronteira de controle entre helenismo sentido verdadeiro inclui as tradições e os
e barbárie. Antes das guerras persas, importa­ valores culturais que são transmitidos de
ção ou imitação direta de artefatos orientais geração em geração por meio da educação.
criavam itens de prestígio cuja dificuldade de Atenas emerge como a escola da Grécia - uma
aquisição marcava seus proprietários atenien­ ascendência intelectual comemorada no
ses como membros de uma elite trans-regional. famoso afresco de Rafael intitulado ‘A escola
Depois das guerras persas, no entanto, tais de Atenas’ de 1510-1511. O uso do critério de
itens foram adaptados nas mãos dos artesãos cultura no lugar do critério de descendência
atenienses. Artefatos de cerâmica, de metal ou para a definição de helenidade permitiu aos
mesmo vestimentas foram transformados nas atenienses suplantarem Esparta como a cidade
mãos de hábeis artífices. Assim, sem uma elite paradigmática por excelência. Platão chamaria
que os utilizasse com exclusividade, sem os Atenas de ‘prefeitura’ da Grécia e no túmulo
traços orientais por demais marcantes, esses de Eurípides, Atenas era descrita como a
itens foram simultaneamente democratizados ‘Helas da Hélade’. Entretanto, a formulação
ao mesmo tempo em que foram helenizados. mais explícita desta hegemonia cultural
Em segundo lugar, ainda que o mito da ateniense foi feita por Isócrates em um de seus
autoctonía conferisse uma antiguidade discursos - o Panegírico - escrito em torno
prestigiosa aos atenienses e justificassem o de 380 a.C.: “A nossa cidade ultrapassou de
seu sistema democrático, era incompatível com tanto os outros homens, no que diz respeito à
a genealogia grega mais antiga que colocava sabedoria e à expressão, que seus alunos
os atenienses no interior de um grupo jónico tornaram-se professores de outros. O resulta­
mais abrangente. De fato, se os atenienses do é que o nome de helenos não mais indica
eram descendentes da terra, não podiam então uma afiliação étnica mas sim uma disposição.
ser jônios e, portanto, não podiam ser original­ Com efeito, aqueles que se chamam helenos
mente helenos, como deixa bem claro o relato são aqueles que compartilham nossa cultura
de Heródoto a respeito das origens pelasgas (paideusis) mais do que uma herança biológica
dos atenienses. Assim, os atenienses não comum.” Em outro discurso, escrito nos anos
podiam afirmar com certeza que eles eram da 350 a.C., Isócrates descreveu Atenas como a
mais pura origem helénica como talvez os única cidade verdadeira da Grécia, enquanto
espartanos acreditavam ser nesse período. Tebas, Esparta e Corinto aparecem como meras
Mas os espartanos não podiam competir no aldeias.
domínio cultural. Esparta, ainda que poderosa Como freqüentemente acontece, quase
militarmente, tinha adotado conscientemente toda a nossa documentação escrita vem de
uma ideologia arcaizante que isolava os Atenas e, portanto, não podemos considerar
cidadãos do mundo exterior tanto quanto que esta definição cultural de helenidade
possível. A prata cunhada era proibida, a fosse necessariamente aceita por todos os
adoção de práticas não espartanas era mal demais não-atenienses. Com efeito, para a
vista e estrangeiros eram com regularidade maioria da população das cidades fora de
deportados. Atenas, em contraste, tinha Atenas, outros imperativos mais mundanos

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tais como a subsistência e a defesa eram, ancestrais. Os papiros dos séculos III, II e I a.C.
provavelmente, muito mais importantes do parecem indicar que os trácios foram gradual­
que a preocupação em definir um sentido de mente absorvidos à população grega do Egito
identidade grega que, com freqüência, tinha ptolemaico e Diodoro, historiador do século I
pouca relevância prática no cotidiano. Entre a.C., observa que, em seus dias, a população
as elites não atenienses, entretanto, suspeita- indígena da Sicilia aprendeu o grego, adotou os
se que a definição de helenidade não era costumes gregos e tomou-se praticamente
fundamentalmente questionada. A potência indistinguível do restante da população grega
das capitais culturais é que em um período da ilha. O seu contemporâneo mais jovem,
relativamente curto a sua propaganda consci­ Dionisio de Halicamasso, definia a helenidade
ente torna-se auto-sustentada. Tais ‘centros como o falar a língua grega, praticar o modo de
culturais’ servem, assim, como protetores da vida grego, reconhecer os deuses gregos e
autenticidade cultural cuja contestação é, por empregar leis razoáveis. O que é notável nesta
definição, não autêntica. definição é não apenas a similaridade em
Certamente, no mundo multi-cultural relação à caracterização criada por Heródoto,
inaugurado pelas conquistas de Alexandre, o mas também a omissão pouco discreta da lista
Grande, a descendência era um critério de da descendência. Sir John Myres estava certo:
helenidade sem sentido. Os gregos do período os gregos estavam sempre no processo de
helenístico, eram aqueles que haviam se tornarem-se gregos, mas os estágios cruciais
beneficiado de uma educação grega, que nesta evolução ocorreram não nas brumas
falavam o dialeto de Atenas (pelo menos no escuras da proto-história, mas no próprio
contexto formal) e participavam da vida do período que, para nós, define a glória da
Ginásio, independentemente da origem de seus Grécia.

HALL, J. Who were the Greeks. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São
Paulo, 11: 213-225, 2001.

ABSTRACT: The main goal of this article is to trace the ways followed by
the Greeks in building up their own identity. The Author assumes that ethnicity
is very much a matter of internal perceptions and that the ethnic group is
defined not by the sum of objectively observable differences but only by
those differences that members themselves regard as significant. The role of
Herodotus in this construct is stressed by the Author.

UNITERMS: Greek Ethnicity - Cultural Identity - Herodotos - Ionians -


Dorians.

R ecebido p a ra pu blicação em 15 de dezem bro de 2001.

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