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Bizantino
Jr.e
'rioFranco
deOliveira
Andrade
Fº
107
br silien e
Copyright © Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade
Filho
Responsável editorial:
Lilia Moritz Scbwarcz
Capa:
"O Todo-Poderoso", mosaico do séc. XI.
Revisão: lNDICE
Mârcia Takeuchi
Elisabeth Tasiro
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
As estruturas religiosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
As estruturas políticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
~estruturas econômicas ................... ,j8__
As estruturas sociais ........... -.. . . . . . . . . . . . 63
As estruturas culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
O legado de Bizâncio ....... ; . . . . . . . . . . . . . . . 92
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Indicações para leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
lrP
Editora Brasiliense S.A.
R. GeneralJardim, 160
01223 - São Paulo - SP
Fone (011)231-1422
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INTRODUÇÃO
"bizantino" foi vulgarizado apenas a partir do século JJSCUlativos.herdei!"os das antigüissimas.., religiões
XVI, depois do desmembramento do império, que egípcio-mesopotâmicas e da filosofia grega, o cristia- \/'
em vida se via como herdeiro e continuador do lm- ~ii"ãi>~iii.es.m~
nli_iii9- t~_!l!PO
f~tlJ_ede sentimento e de~~ p
·pério Romano. re!l,~x~9~_forisso envolvia a todos: -a pàlãvrI.iregll ,, 1t\~
Num certo sentido isso era verdadeiro, pois aqui- "igreja" tinha lá seu sentido literal, ãe comumdade;- ti . ,,) ·
lo que se tomou conhecido por Império Bizantino era -~Ígní§_candoo c_2njunjodosJiéis_,m~rto~ e:vi~os.Pará í)
na origem o Império Romano do Oriente ( Grécia, os ocide_ntais,de esp!}ito mais _pragmático, por m_yjto ·
Egito, Siria-Palestina, Mesopotâmia, Ásia Menor). tempo-ª reljglão foi vista como uma espécie de_prá-
E realmente, como Roma, Bizâncio uniu através de Í!~~jná •• ~ não podena_~~Lobi~to deisfu.dôé __
uma língua e uma determinada maneira de sentir e _ ~!>ªJç~, & pa_!!_eles Igreja design!!_!. hierarquia :
de pensar, povos que nada tinham de comum entre ~do!!L-o &!J!Pº d~essoa~e monopolizava a
si. Como os anfüms '!egos e romanos, os b~~ntinos comunic~ e a negociaçã_!Ufertilidade,sáúde;-n- O
corisiaeravam-se=osÍucõs l1âbitãrites':i}Q~mundocivi~ ~a, ~6ria,Elvação) C.Q!llJ)e~s. :J- - -
liiadO;--rotufan<IO.de.bi\ifiw todos os_que nãô--par- Contudo, os ocidentais não podiam deixar de se
ãoíóngo de sua
tfiiiãvani'-de süa· cülfiira:-ciiritff<lõ; espantar diante do esplendor de Constantinopla. Re-
extensa históriã, aê 33Cfâ 1453, aquele Estado foi aos velando surpresa, o cronista francês participante da
pou,cos mesclando suas raizes latinas com os ele- Quarta Cruzada confessou: "não creio que nas 40 ci-
mentos greco-orientais há muito enraizados naqueles dades mais ricas do mundo houvesse tantos bens
territórios, surgindo assim uma civilização nova, ori- como se encontraram em Constantinopla". De fato,
ginal, com personalidade própria. Por i§~,Jne~mo, a velha colônia grega de Bizâncio, criada no século
com o Ocidente qie9içv.al
s11!5 !'f'.ll-ªçQes sempre TtlraIJ?. VII a.C., fora refundada em 330 e tomada capital
dificeis. A língua grega, uma vida material fausfQfill, pelo imperador Constantino devido à sua excepcional
uina culfüiãrefiiiadã, a çoncepção de um imperador localização. Colocada entre a Europa e a ÃsiaJodo o
visto como vice-rei de Deus, eis âiguns dos elementos trânsito do mar Negro para9-Íriar Mêdiforrâneo 9hri-
e·
inconcebíveis pafa osocidentais que os afastava aos gãlõnamente .deveria Jlil.iiar .1>.m·_-ali.Estraiegica-
,~ bizantinos. - mente, à cidacle também era privilegiada, apresen-
Mesmo aquilo que poderia ser o_grande_ponto tando condições naturais que facilitavam sua defesa.
de contato, acabou J~(}~'?._Sisolar irremediavelmet:1!~= Assim, não é de se espantar que Constantinopla
o cristianismo. Elemento central nas duas civ11iza- tenha provavelmente se aproximado de ynunilhiQde
a
ções, · religÍão era vista, professada, sentida, de ma- h-ªbitantes. (no mesmo momento em que Roma ou
neiras düerentes. Para os orient~ds, sem_premais es- Paris não passavam de 20 000) e tenha sido por sé-
10 Hilário Francó Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho O Jmpmo Bizantino 11
culos um dos maiores centros urbanos do mundo. Aí melhor compreensibilidade da realidade histórica bi-
a atividade cultural era naturalmente intensa, e o zantina. Desta forma, deve-se ter sempre em mente
Ocidente apesar de seus preconceitos e res~st~n~ias - e em função disso há propositalmente repetições
acabou absorvendo· muito -õã culhifif bizantina/Por de um capitulo para outro - que na verdade todas
exenii>Iõ;··até·o-séêüloXII a arte-õcT<lentàfsegtiiu, às aquelas estruturas não existiam de maneira isolada.
vezes muito de perto, modelos bizantinos, como na Apenas a articulação entre elas nos permite entender
igreja que Carlos Magno mandou erguer em Aix-la- de forma adequada o que foi o Império Bizantino.
Chapelle 01.1na catedral de São Marcos, em Veneza/
Inúmeras vezes, em quase toda Europa, igrejas, mos-
teiroi;-palacío~ 'êstátiia.s;"piiituyas, iluminuras, f~
ram inspiradas na produção artística de Bizâncio/O
direito romãnó 1 que a pr6pna Itália esquecera du-
rante a Altà"-iêtadeMédiã;Toiredespertado ..no Oéí-
dente através da.compilação. e -sistematizaç_!'!.q_!!e
dele mandara fa~r _o imperador bizantino Ju§tigiil-
~:-x-nca· fil~~~_,grega pe~OU 1!~~~a C?5~
graçasa B~JP. mdiret@:.m.~11te no caso de Anst6-
teles (por inte!1:!}_Ç,4iCUWJ.J!lllçul1_11~n~s,Jbéri~~s),
di-
retamente ii:ode Plat~~~- _tjª11çiª<!!. Antiguidade,
esquecida por longo temj>~tpeloscristãos ocidentais,
seguiu o mesmo camiI,!_ho.Enf:in\....Pizânªo forneceu
o 'material índispensável Pa.ta..Q.UeaEuropa .~ .sobre-
tudo a Itália, por sua proximidade geográfica e suas
relações mais freqüentes coni os .biiantinos --"'.,pro-
duzisse o Renascimento dos séculos XV-XVI e com
ele entrasse na Modernidade.
Procurando examinar o significado histórico de
Bizâncio, e não simplesmente o desenrolar linear de
seus fatos, cada capitulo deste livro corresponde a
uma das estruturas básicas da vida do império. Claro
está, que tal divisão é apenas formal, visando uma
1 -Q' r~~ e.~~ r\J>~e,).»~ {:
freqüentemente acabava por indicar um quarto no- · perial de fins do século IX reconhecia que "o pa-
me, totalmente de sua confiança. Em função disso,. triarca é a imagem viva de Cristo". Por tudo isso, a
algumas vezes foram indicados laicos, que ocuparam concórdia entre o imperador e o patriarca era vista
o mais alto posto da hierarquia eclesiástica sem ja- como condição básica para o bem-estar espiritual e
mais terem anteriormente feito parte dela. Mas tal material dos bizantinos.
intervenção dos,soberanos
..... ,.......
..
nos negócios da Igreja era
...~•-.-•·•--·---~
.....- .
Abaixo do___pªqiJ!!ça na hierarquia_.f!~riçaj~
cõnsi~~~~timll_, .P!~!n~_porque, c~mo nos c~n- via, no século _){! __
pêrtO de. seis ce~tenas de bi~..Q~.~
ta um cronista do século XII, eles se Julgavam os ..~9!!~
.a!~~l:,ísP.<:>~ po~ª vez control,g_am~e.s qe
intérpretes infalíveis das cois~~-ª1,vfu~f:inurfümãs, pároc_gs.Q valor moral e cultural daquele vasto corpo
episcopal naturalmente variou conforme as épocas e
iit~é::;:~~ül:a?:~titl1l!°re:tfJ~: : os locais do Império Bizantino. Algum~~~---º.S.-~-
definidores dos dogmas". tt:iarcas J>!_e,<:~!LY.!!!LÇ2.W-Q!J~t.Jl_l!!Q~~i;~çja,, i~tp
Completava-se assim a fusão tipicamente bizan- é, o liãbito de certos bispos viverem em Constanti-
tina entre o temporal e o espiritual: o imperador,
como sabemos, reunia em si as duas atribuições, e o
nopJ~~ vwfà1iêlõ:süa.s :díõcêses 8pêiiãsesp9f !1-c;lisa-
mente, para receberem os rendimentos que gastavam
mesmo deveria então ocorrer com o segundo· perso- ~ÜIÍdãnãme~ã- éãi)fiãCçõino õ~Jilspõs· Il~(f po-
nagem do Estado, o patriarca. De fato, este, atém de CWIJP. ~---
Ç_M~_(aofo.iifmio do.s.P~5>Cº~h-!1...P.ªrtir .do
possuir a suprema jurisdição em matéria eclesiástica, 5.~_l~__ XU_~!~~eass!!)!m.~reçrutados exclusiva-
com suas sentenças criando jurisprudência, assesso- mente entre osmonges, o que_elevouseu qivéfmQral
rava o imperador mesmo em questões temporais. mas_~~º~-~~'myel ültefecfual. De qualquer forma,
:r C>~~c!!!2..W~l!llº':>--~ liavia m,iperador~~
~~S.<!~. os bispos estavam bem distanciados dos clérigos que
\1
imperatriz vivospara coroar o sucessor, isso er~ le.ito nas cidades ou nas aldeias rurais viviam próximos aos
pelo patÍiaj:çj.-:Nó·càsó·de minondaóêão imperador, fiéis, realizando os ofícios religiosos cotidianos. Di-
e,pafriãrc'a era figura obrigatória no conselho de re- vididos em,_v~as ordens hierarquizadas (leitor, sub-
gência, a que muitas vezes presidia~ Ainda que dé diácÕno;-diãcono, sacerdote, etc.), aqueles clérigos
maneira geral ao longo da história bizantin~ ele te- viviam na Sl,!~própria ~r.QQ!llil.commulher-e filhos. _
·nba permanecido. numa posição secundária em re- Aot<;>rizados· à. se""1eâii!lléD1·-:a"
tarefas artes~JJU
lação ao imperador, o patriarca podia, e o fez al-
gumas vezes, discutir e criticar atos do governo, im-
.cam~esmas
. --·-•.
p.ar_~somplementã.rseus
. .-
.
mentos, muitos deles acabaram-se voltando para ati-
----
magros rendi-
por penitências ao soberano, interditar-lhe os ofícios vi.dades suspeitas ( usura, jogo, .hospedaria, prosti-
religiosos e até excomungá-lo. Mesmo um código im- tuição) que de tempos em tempos os bispos procu~
O Império Bizantino
16 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho ;:,
1
rica), como aconteceu em boa parte da história do munhão para os leigos e de deposjçjQ_gara os clé-
!'
Ocidente medieval. niõs:lsso põrêiue,"na verãaoe-;á liturgia não é apenas
Na sua essência, a mentalidade cristã bizantina representação, mas atuaÍização, renovação do fato,
ji esteve voltada para a questão da Graça, da relação portanto presença objetiva da Divindade. Por exem-
direta com Deus, isto é, caracterizava-se por um plo, a celebração do Natal não é somente uma com~
acentuado sentimento de presença do sagrado entre moração do nascimento de Cristo, mas Ele rea.l~te
os homens. Para os bizantinos, a idéia de que "Deus n-ª1,cecom o rito. Ou seja, pelo mistério da lituqia o
se fez homem para que o homem possa se tomar cristão é colocado no tempo dos acontecimentos bl-
Deus"' era algo concreto e ansiosamente perseguido. blicos, vive-os como testemunha ocular. Nesse sen-
Assim buscava~se a fusão do material e do espiri~al ti_<f:~~abalhatambé!.!!-ª=-~~4_!1Jte~~ ~ iã!'el_~-~
(idêia ~resente no Ocidente apenas a partir do século dox~, c9m, iLlmensªcúpula. ..nw~tan~ o céu'-
XII), o que se refletiu, por exemplo, na concepção de onde se coloca em P.intura. ® rnosa•co o Cnsto Pau-
um Estado que era uma organização celeste na Terra. . tôcrãfür ..(ouseja, Todo-Poderoso) observando seus
Um bmmtino do século XII sintetizou a questão di- fiéiS. .. ·- . ... .. ----·----· -- -- . ··--
7.endoque "não se pode chamar ho~em, separada- ___ · Todo o ritual, utilizando cores e riquezas em
mente nem à alma nem ao corpo; é juntos que eles profusão, é acompªµljado PQLÇ,bU~,.Jl!t.maafi!i:
• ,, p .
constituema imagem de Deus . or 1sso mesmo, dadé destmadâ â fáíar não à razão dos fiéis, mas aos
nem as festas públicas ( como a comemoração ~ fun- seus sentimentos. E -sem
. atuígià
dóvida. seus .ob.i&-
daçlo de Co~tantinopla ou a coro~ão de ~m tmpe-. :nvos, como 'testemunham os emissários de um prfn-
rador) nem as privadas ( como os antversários, !este- cipe russo falando dos oflcios religiosos assistidospor
jados no dia do nascimento da pessoa e no dia_ do eles na catedral de Santa Sofia: "não sabemos se es-
santo cujo nome adotara) tinham caráter exclusiva- tivemos no Çéu ou n&_Tma, PQ~S.se~~fe-iiio
mente laico. . fiãtà.1esplendor ou beleZ@: ~m.parJ;ealgunia..na.Terra.
Essa constante presença do sapd(! __Jla v1d!. Não podemos descrevê-lo a vós; s6 sabemosque Deus
humanatràmparece na liturgia ("serviço público) bi: mora lá entre os homens e que o culto que eles ren-
zaDiina,~-muito mais que a la~_!ffi__ye o_Ey_g.- dem ultrapassa o modo de adorar de todos os outros
1
1
aeJho~. ~- 4~1.-ª9'.ªY~~d~l,t,,~_u~ram~se fat~ 9aL fugares. Não podémos esquecer tanta -beleza''. O
Hist6riaSa.grada, dramatizados, !~-~tr~dC>_~l?M!
=
t · mesmo devia acontecer nos inúmeros templos de todo
cada fiel descobrir a prõpria verd~c!~através da élÇ_ão território bizantino: s6 em Constantin~do
---.-Yê ·w -- resentadã.-Dãf" a falta à missa por um judeu ocidental queavtsltouno sécõlo :tn.JUiiiã.
domingos~guidos.ãcarretar a pena de exco- ufüi'igreJa-paracãéta dia do ano.
·----·· --·---------~
,·-----~- ..
22 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho ,f O Império Bizantino
::
Mas a melhor expressão da cotidiana presença 1 um eremita de vida santa produzia novas reliquias e
divina entre os homens estava no fervoroso culto bi- a constru~o de um novo mosteiro para abrigá-las.
zantino às reliquias e nos milagres por elas produ- Diante dess~ papel que as reliquias desempenhavam
zidos. As reliquias - pedaços de corpos santos ou na mentalidade bizantina, não é de se estran4ar gue
objetos que tinham tido contato com eles - existiam . quando no curso de uma invasão em 61S. os o~
em Bizftncio em tal quantidade que causavam admi- se ~possaram rla e ruz Sagrada. para os bizantinos
ração e inveja aos ocidentais. Aliás, quando do saque aquela luta ganhou aspecto de guerra santa e não
que os cruzados realizaram em Constantinopla em cessou até recuperarem o objeto sagrado f.f anõs· &'-
1204, dentre as riquezas mais. cobiçadas e levadas pois.-Pél11-mesma..razao; ·orõulfo de relfqufãs-;ãli-
para o Ocidente estavam as reliquias. Realmente, a 2:~~-p~los--europeu~ em·12Õ4afasfóu""irreversivel-
variedade que delas possuiam os bizantinos era es- mente Bizâncio ~<> O.c::idente.Os monges, antigos
pantosa: de Cristo tinham os cueiros, a camisa, a possuidores de boa parte daquelas reliquias, toma-
faixa, o cinto, as sandâlias, a túnica, o sudârio, uma ram-se os maiores inimigos de qualquer idéia de rea-
garrafa com seu sangue, a cruz, os pregos, a coroa de proximação com os ocidentais.
espinhos, a lança. Possuia-se até mesmo a bacia na Todo esse valor dado às reliquias devia-se à
qual Ele tinha lavado os pés dos discipulos e a toalha função protetora que elas exerciam, ajudando com
que usara para os enxugar. E também os cestos dos seus milagres não apenas aos bizantinos individual-
pães por Ele multiplicados e mesmo uma carta assi- mente, mas garantindo a própria sobrevivência do
nada por Ele próprio. Da Virgem tinha-se uma gar- império. Foi uma imagem santa da Virgem, defen-
rafa com seu leite, a túnica, a cinta e o manto. De sora de Constantinopla, que em procissão pelas mu-
inúmeros santos havia fragmentos espalhados por ralhas da cidade impediu que os persas e os âvaros a
todo império: de João Batista a cabeça, um dente, invadissem em 626, os ârabes em 677 e 717. O mesmo ·
um dedo, de São Paulo e São Mateus as cabeças, de tipo de milagre fez um véu da Virgem ao frustrar um
São Simã.oo joelho, de São Pedro a tibia, de São Es- ataque russo em 860. Ãs vezes, essas interferências
tevão a mão direita, de São Tiago um braço ... sobrenaturais na vida do império podiam ser mano-
_Aimportância da maiori~ ~StRosteiros de~~- bradas pelos homens. No século XII, no inicio de
ria em grande llm~LQQJ'ª!º -d~al>Jjg~~tnl:~!ígyias, uma guerra contra os húngaros, ocorreu um mau
q!le 1>§,fstji}imple~ _,:Pr.~~S..~,~acrallQY'anL-ª~le pressâgio. No fórum de Constantinopla havia duas\
~-espaço e seush~itil~tes, OSJ!l.ºl!Ses.Daí as freqüen- estâtuas de mulheres, uma hóngara, outra grega,
tes peregrinações àqueles mosteiros, que ganhavam tendo esta misteriosamente desmoronado enquanto
desta forma riqueza e prestigio. Por isso, a morte de aquela continuava de t>é. Para alterar o resultado d~
- -""
24 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho O Império Bizantino 25
prodígio, o imperador Manuel Comnent mandou cial do clero e intensa religiosidade popular, é que se
imediatamente levantar a estátua grega e.aerrubar a deve colocar às freqüentes e acirradas controvérsias
húngara. Essa providência produziu bons frutos, teológicas. Para os ocidentais, sempre de espírito
pois logo a guerra terminou através de negociações mais prático, os acalorados debates dos cristãos ori-
diplomáticas bastante favoráveis ao Império Bizan- entais sobre assuntos religiosos pareciam mero pas-
tino. satempo, uma "discussão bizantina", segundo a ex-
1
E~ clima de. fort~ .!@renaturalidade, de cons- pressão pejorativa que indicava a futilidade ( do ponto
'11 tante comunicação com-as coisas do Além, levou os de vista ocidental) daqueles debates. Muitas vezes,
bizantinos à prática de diversas formas de adivinha- porém, tais disputas tiveram profundas repercussões
ção. Buscando saber o que a Vontade Divina lhes sobre os rumos tomados pelo Império Bizantino. Não
reservava, eles recorriam especialmente à astrologia e sendo possível aqui acompanharmos as complexas
à interpretação de. sonhos. Também eram praticadas sutilezas teológicas e todos seus desdobramentos his-
as bibliomancia, ou seja, a abertura da Biblia ao tóricos, vamos nos limitar a lembrar um ou outro t
acaso, interpretando-se a passagem encontrada de desses debates e seus reflexos nas relações Bizâncio- \_Y
·· ·
acordo com as dúvidas átuais do consulente; a "lei- Ocidente. \r
tura" do vôo das aves, que pela sua altura, direção e O ponto de partida de tais divergências eram as \)}
duração indicavam acontecimentos futuros; a alek- inúmeras questões teologicamente mal esclarecidas
tryomancia, isto é, o método de se escrever as 24 pelas Escrituras_~·Na busc~ de uma intemretaç_ão
letras do alfabeto na areia, colocando grãos de ce- . consensual..,reuniram-se de 325 a 787 Sete Concilios
reais sobre elas e soltando um galo que ao picar de- ·Eçµm~~:~,éQULJ'~_s _4~L~tomas-
terminadas letras dava as indicações desejadas. Qes- C:Jistã$.
Con~aruLd~.~® tais .de.batesfoj
!as prátiç~jp.,.!~c~~sivas, de__<:(?nsul!!}~Jorç_as· ª ..!'ivalidtlqe ~P~ ª~sés ~Ollais do.~
S(}bre~ª!u.i:-a~"
inimigos~
.··-••-.-··•--- '-·
eara.__~l?!~~icasati':!5~.,<i,~-P:~li~~ção
~quelas fõrças para benefi-ªpJ?rfümo ou P~1:1~ _de
·----' çii.~ apenas
:~91sffl1.1~iª -- -
,--, um passo.·- por-
::~~~~ra::~e
r:.ii::-~:~:Po
ao papa autoridade para tal decisão. Como Constan-
UI:!!~º• ·rog~se_tQ!.-
' ' '"''
Igreja através dos concílios - ganhava, forte cono- ainda hoje encontram-se na zona fronteiriça Tur-
. tação política. quia-Iraque~lrã-URSS. O papa, também descon-
Foi assim, por exemplo, com o monofisismo. No tente com a intervenção do imperador eni- quesfão
século V um patriarca de Constantinbpla, Nestorio, religiosa, Irias não se sentindo forte para pum-lo) ex-
defendeu a doutrina segundo a qual em Cristo as na- .c0mUngoÜo ~ãtríãrca de ConstanTmopfa:-Rra·o·pn:.:·-
turezas humana e divina estavam separadas, vendo merro cismaôu sêjã;al?sfameiita.,,.separaç!)p) ~@e
na Encarnação uma humanização quase total de RõiiiãeBizâncio. Se mais ou menos 50 anos depois,
Cristo, dai não aceitar que se chamasse a Virgem de no começo do século VIJ o imperador Justiniano
Mãe de Deus. Contra isso 'levantou-se a sé rival de abandonou o Henoticon, foi apenas pensando que o
Alexandria, caindo no exagero oposto, que procla-
mava a união quase completa das duas naturezas,
praticamente negando o caráter humano do Filho, e
fato facilitaria suas conquistas no Ocidente. Mas as
rela ões com Roma continuaram dificeis, tanto que
ep1-545 o a a f · ..
-
vado ara ons an-
portanto vendo-O com uma s6 natureza, dai o termo t.!,11~!!.Ju?.ression.i.49-ª,..,~ceitar
JU?.,Qntode vista Jm-
monofisismo. Num primeiro momento, o nestoria-
nismo foi condenado como herético, mas depois o.
p~tj&,.JalJat9, ali~.reite.tiq•:iS: ~ç}l~~-_ç!eJ?ois .· 1
,. '. ~ºJll !>UU:OP.8.11~ se1;1dQ ~egüestradg. orre~~,~e~i-\.·" w-
monofisismo também. "~/ !ade:> em.1.e.r.ritóagbizantino. " . ~ \J,: .·\~" _~
Na tentativa de encontrar um meio termo~a- ~ Muito mais sério, porém, para os ~tihós do \l ~
cifi~~i Bizâncio, o ·iliweraãõr"°zenã[Janço~ ª·· dou- Império Bizantino e suas relações com o Papado foi o
trina conhecida por Henoticon, procurando r~apro- movimento iconoclasta. Este representou a negação
xiniãr aquelas.,juas correntes através_ <lêf§rmu~ da validade dos icones, imagens pintadas ou escul-
vagas e conciliad.Õrª-li,Sua tentativa apenas descon- ; pidas de Cristo, da Virgem e dos santos. Na verdade,
tentôu 'àtodos. Q Egitoea Síria não 9-u~~~a;mnegar ' :rriaisdo .4t~e.~s im~. os icones são "uma
o monofisismo, descontentes com as detêrJl!!!lãÇÕêS .!e.v~~!'S~-ºda eternidade no tempo''. ~rovaçã~
dêConstaiitinopla e .por isso século elliero~~_pois ª~_Er6pria Encarnação, ~aJl__ÇA_clil~\lS
~~ram sem rêsistêncião domínio Íf!,be .. ~~-.!Uª tinha-se revelado ao homem e por isso é possível re-
religião não desapareCE?:U,to~~l~ente, e ~.!!!~hgje presentá-Lo de forma visivel._Em726, contudo, o
existemlgrejas monofisistas no Egito, Armênia, Etió- iíiiperâdor Leão III, motivado por razões religiosas e
pia e lndiá-~Os iiesforla.õos, por süã vez, refugiaram- politicas, decretou que a adoração de imagens era
se ·nos domínios do rei persa, alcançaram a China, idolatria e desencadeou por todo o império uma sis-
trabalharam como missionários entre os mongóis temática destruição dos ícones. Por um lado, isso
(ond~ Marco Polo os encontraria no século XIII) e expressava o pensamento de uma corrente que &;ehava
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1
28 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho O Império Bizantino
,, 1
1
'J '1.
1
1 (
do Papado quanto do Patriarcado, ocorreram exco-
'·''
~v,,~ 1
! 1 ;},,
munhões reciprocas e assim. o Cisma do ()ri~1!te.
,, Desde então a unidade cristã estava qúébrada, com 11
',: ✓
uma Igreja Católica Romana encabeçada pelo papa e
1,. uma Igreja Ortodoxa Grega chefiada pelo patriarca.
'\i\
1
Na verdade, porém, o rompimento não era irrever-
~ sível, tanto que pouco depois, em fins do século XI,
quando na Primeira Cruzada, os ortodoxos pediram
1 auxilio contra os muçulmanos e os católicos correram ,_,:,
~
1
1
a prestá-lo. Mas os intei:esses político-econômicos
1 ocidentais que levaram. à ocupação de Constanti-
i
nopla em 1204 definitivamente afastaram católicos e
f
1 ortodoxos. Para estes, os ocidentais, capazes de sa-
1
quearem com tal violência uma cidade cristã como i
' i.
Constantinopla, eram piores que os infiéis. -nesta
: 1
forma, as tentativas de união das duas Igrejas, uma
1 1
1: 1
no século XIII, outra no XV, foram apenas circuns- '/ 1
ILW - 1
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O lm~rio Bizantino 33
,I 111·,,
aristocrática, teve certo poder apenas nos séculos VI
~. , .
' 1
' e VII. Depois disso, ele quase sempre se limitou are-
r Deus. imperador era eleito pelo
1' r\
1, '
1
Mas em nnc1p10, 0 t tinopla ferendar o imperador que estivesse no poder, e pouco
,, \i 1O Exército e pelo Povo de Cons an . .
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Senado, pe
Como, con~d~ nã~ h:t::
• ma regra sucess6na ela-
vida O imperador coroa-
ramente defini a, am ue ele não fosse depois con-
influiu até mesmo em períodos de regência. O pa-
triarca, pelo contrário, constantemente fazia parte
do conselho regencial.
va seu sucessor' para q rática fazia parte do poder Portanto, havia uma certa tendência a que o
1\ 1\
testado. Des~ forma, ~: :scolher seu sucessor' que poder ficasse na mesma familia, tendo existido di-
il soberano do im.perad .tores deveriam aclamar, o nastias que governaram por longos períodos CODlO a
constitucionalmente os e1e1 V6.rias vezes chegou-se dos Macedônicos por 192anos(867-1059), a dos Com-
1
11
'1 '1'
,
mesmo a coroar mais t
que quase sempre _oco::~ co-imperador: no século
ileus coexistindo com cinco
X temos ocaso de um p asrém s6 um deles exercia o
nenos por 104(1081-1185), a dos Paleólogos por 192
(1261-1453). Contudo, a idéia de que o imperador
era em última análise um escolhido de Deus, deixava
1 0
' outr os imperadores. b a Depois de escolhid o, o aberta a porta para constantes golpes. Realmente, se
1\ '.
'' poder, o autocrator as eus. ois esse· ritual é um indivíduo conseguisse matar o imperador e assim
'I '.. imperador prec!~;\~=~:::~d!. Tal cerimônia tomar o trono, ele era visto como legítimo, pois se
,1 que lhe_garanti século VII, na catedral de Santa acreditava que só conseguira tal feito por ter a apro-
'' acontec~ desde O . m imperador vivo para vação divina. O fracasso da tentativa, porém, pela
Sofia. Quando não h!vta : sucessor' isso era feito razão inversa, era crime de lesa-majestade, punido
coroar aquele que sena ~
' ,1
',
:r
seu sucessor. Mais comumt 1: um' imperador menor
ocupar o trono co!11ore::U~o X geralmente essa re- ',
filados. O trono estava aberto a todos, excluindo-se
apenas os eunucos, homens castrados usados geral-
i
mente na guarda imperial justamente por sua impos-
de idade. A partir do resentante do Exér- sibilidade de ter herdeiros; os cegos, por isso muitos
:\ gência era ocupada por um rep . odia eleger um
d fo que em teona P destronados foram inutilizados dessa forma; os he-
t a:,
cito, uma as rças ática muitas e muitas vezes o reges declarados, pois devido ao -caráter sagrado do
,, imperador e que na assembléia essencialmente imperador, a discordância religiosa era crime polf-
' ' 1 sustentava. O Sen ' '
1 ,, 'l-,,
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36 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho O Império Bizantino
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tico· as mulheres, com exceção daquelas que to- Ocidente redescobriria bem mais tarde, no século
ma;am o poder como impera~ ou i:e~~nte,por es- XII, o Direito Romano graças à compilação justi-
tarem incapacitadas devido à impossibilidade de se- niana.
rem militares ou sacerdotes. . . . · O Império Bizantino, como sabemos, reunia di-
Aquele enorme poder imperial tinha apen~s ferentes nacionalidades, e assim era preciso um apa-
duas limitações estabelecidas pelo costume. A Pt:· relho administrativo bem montado para dar força e
meira era um juramento que o imperador devena coesão àquele mosaico de povos e culturas .. Em fun-
fazer quando de sua coroação, comprometend~-se a ção disso enunciou-se a fórmula "um só senhor, uma
respeitar os decretos dos Sete ConciliosEcum!m~os e s6 fé". Ou seja, como Deus atuava através dos anjos,
os direitos e privilégios da Igreja. Por decorrenc1~de o imperador fazia-o através de funcionários, permi-
seu poder sagrado, o imperador era a fonte de to o o tindo a unidade terrestre que se deveria basear na do
direito o único legislador' a "lei encarnada". Con- modelo celeste. Daí a vasta burocracia e sua rigida
tudo, ~aradoxalmente, o ?ireit~ repr~~tava a outra centralização nas mãos do imperador~Mais uma vez,
grande restrição à aufondade impenal. esta gerava Bizâncio encontrava nas suas próprias origens os ele-
as leis, mas estava submetida. a ela~. ~~ a grande mentos que lhe permitiriam satisfazer essa necessi-
importância dos códigos jurid1cos biza1;1tinos,espe- dade Política e psicológica. De fato, o Império Ro-
i cialmente do Corpus Juris Civilis o~ganizado no c~- mano, sobretudo seus territórios orientais que com-
' meço do século VI por ordem do imperador _Justi- poriam o Império Bizantino, tinha forte tradição
niano. Esse código foi resultado de uma_~o~p~ação centralista e burocrática. Por isso, até o início do sé-
do velho direito ,romano, parcialmente ci:isti~nizad~ culo VII o básico da administração bizantina foi for-
e adaptado às condições da época. Sua .P~e1ra ~a~ necido pelas antigas instituições romanas. Inade-
te ou Codex Justinianus reunia os editos 1mpena1s quadas depois daquele momento, foram abandona-
deseosc
d é uiº II , complementados. pelas
· Novellae,
t h das e com elas o latim, que além de deixar de ser o
leis lançadas pelo próprio Justiruano. A par e c~~e:- idioma administrativo do Oriente, perdia também
cida por Digesto reproduzia seletivamente as ~p1~1 s seu papel na religião e na cultura. Essa. transforma-
de grandes juristas clássicos. Por fim, aslnstitutiones ção não implicou, logicamente, na diminuição dá
serviam como uma espéci~ de m~nual ~ara, ~studan- importância de uma vasta burocracia, "armadura
tes, discutindo os princípios bâs1cos, filosoficos, do robusta que sustentou o Império Bizantino" (Diehl).
Direito. Esse Corpus se tomou desde então a ~ase Naquela primeira fase, o sistema administrativo.
'urídica de Bizâncio, sempre fundat?entando e m~;. ·dividia o império em prefeituras, por sua vez for-
~irando codificaçõesdos séculos segumtes. O própno madas por dioceses e estas por províncias. O co-
38 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho O Império Bizantino
39
O imperador, naturalmente, mantinha-se como tianismo, portanto, pela civilização. Eles passaram a
o Supremo Comandante, pois este era um de seus se ver como um povo eleito, destinado a defender
papéis essenciais. No entanto, ~ sistel!1~de thema~, toda Cristandade, dai uma das razões da superiori-
bastante eficiente do ponto de vtsta mibtar, não de!- dade que sentiam frente ao Ocidente. Os bizantinos
xou de trazer problemas políticos. De fato, a combi- se tomavam um instrumento de Deus face aos infiéis.
nação de altos postos militares com a posse_de gra1;1- Nascia então, por oposição ao conceito islâmico de
des propriedades gerou uma poderosa a~tocra_cia guerra santa, um verdadeiro "nacionalismo bizan-
que aos poucos foi rivalizando com o po~er impenal. tin?" (A~e~er). Ou seja, um vasto movimento que
Este estado de coisas levou mesmo em fins do século uma etnias diferentes frente a um inimigo comum: a
º.
X a que um militar e latifundiário tomasse pod~r solidariedade cristã confundia-se com a solidarie-
dade política para gerar aquele nacionalismo. Como
interrompendo temporariamente a poderosa dinastia
Macedônica. Da mesma forma, o imperador também definiu um imperador da época, a guerra pela Cris-
se via muitas vezes em dificuldades para controlar tandade tomava-se "uma virtude, e fonte de toda
glória". .
sua extensa, custosa e geralmente ~o~pt~ bu_ro-
:1 1' cracia. Noutros termos, se nenhum sudit? bizantino Ultrapassado o momento mais difícil no Orien-
punha em dúvida o caráter sagrado do tmperador, te, o Império Bizantino no século IX voltou nova-
isso não impedia que constantemente grandes buro- mente os olhos para o Ocidente. De um lado reto-
mando as velhas idéias de reestabelecimento da uni-
:d era tas , militares ou latifundiários. fossem tentados ea dade perdida em fins da Antiguidade com a divisão
tomar o poder, sabendo que se tivessem sucesso s -
i 1 do Império Romano, cuja metade ocidental havia
riam imediatamente aceitos por todos. D8! a ~o~tra-
1 ! i dit6ria estabilidade e instabili~de que. a ms~tuição sido conquistada pelos bárbaros germânicos. De ou-
r , 1
tro, porque ali um germano apoiado pelo papa usur-
1
1
,1
1
imperial provocou ao longo da vida de Bizâncio.
A partir de suas funções tradicionais de ~hefe do paraº. titulo imperial: Carlos Magno. A resposta a
Exército, da burocracia e, num certo. sentido, da lSSO foi o redespertar do universalismo bizantino a
Igreja, o imperador passou a ser o sim~olo natural ~e reafirmação dos direitos exclusivos do único império
um novo sentimento que se desenvolvia entre os bi- unive~al, do único e genuíno continuador do antigo
zantinos desde o século VII. Isto é, a luta então_co- Impéno Romano. Mas como a possibilidade de um
meçada contra os muçulmanos, que eram movidos domínio real sobre o Ocidente logo se revelou estar
pela religião e pela idéia de guerra santa, levou os definitivamente ultrapassada, Bizâncio concentrou
novamente suas forças nos Balcãs e no Oriente; A
/
O Império Bizantino 43
42 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho
1 roctone
t6ria em("matador
1014mandadde búl garos ") tenha após uma vi-
política imperialista decorrente disso levou Bizincio
em meados do século XI a estender suas fronteiras do povo. Significativame:i:e: 151~b~ome?s daquele
Eufrates e do Cáucaso à Itália, do Danúbio à Pales- : olhos vazados era o cast: as eis izantmas ter os
cavam o crime de lesa-m!f: ::;r;ado aos que prati-.
tina.
. O instrumento para essa obra benéfica a toda os búlgaros foram consid s e. s~o quer dizer que
humanidade - obra conduzidora de povos em di- contra seu soberano natur~radc_,s simples rebelados
reção a Deus, que incumbira o império dessa tarefa E importante lembrar ue ' o ~~erad~r _bizantino.
- era uma "guerra justa". Ou seja, que legitimava o ravam qualquer tortu q . as leis impenais conside-
imperialismo bizantino, na medida em que este re- da civilização bizan~= mcom!'atfvel. com o espfrito
presentava a ampliação do Estado encarregado do é, na clemência, a prin~!'::. ~:e ~an?"opia, isto
Bem universal. Por isso, nas palavras de um c6digo Contudo, não houve contr d" o imperador.
de leis do século IX, "a finalidade do imperador é aqueles que foram cegados a i~ão 1:1º ep_is6dio, pois
manter e salvaguardar pela sua virtude os bens pre- sem honra" E pe enciam a uma "raça
sentes, recuperar por sua ação vigilante os bens per-
• m suma as dif ld
levaram-no à prática de ~~u a~es. do império
didos, adquirir pór seu zelo, por sua aplicação e por sivo" (Obolensky) e assim um •~pe~alismo defen-
suas vitórias justas os bens faltantes". Essa visão de ao racismo. ao nacionalismo e mesmo
mundo e sua correspondente prática político-militar
levou de meados do século X a meados do XI ao
apogeu de Bizincio, sem dúvida a grande potência Naturalmente esses ele t
mundial de então. O imperador podia, com razão, se acabamos de ex~m· ar ti men os estruturais que
. es veram prese t
ver como o pai de todos os soberanos, como "Cristo dos mais
Nas
de onze séculos d .
suas linhas . ª _nes .ªº longo
VJ..dapolítica bizantina
gerais - poi 5 ã • •
no meio dos ap6stolos".
A conseqüência inevitável disSOfoi o desenvolvi- crever os inúmeros e m ·t
.
°
n nos mteressa des-
ui as vezes confu f t
mento da crença na superioridade bizantina em re- compuseram aquela históri sos a os que
lação a outros povos. Mesmo búlgaros ou francos, em três perlodos O Alt a -:-• podemos dividi-la
reconhecidamente cristãOS, mereciam expressões na qual Bizânci~ aindaº~mpério (JJ0-610) _foia fase
como "raça sem honra e sem dignidade", "raça cor- dade, deixando cada vezusca!a sua pr6pna identi-
rompida", "raça bárbara". Todos aqueles que não ap@ndiceoriental do lmpé .m;s de ser apenas um
compartilhavam da concepção de vida dos bizantinos o Ocidente mergulhava n~º . omano. Ã medida que
eram rotulados negativamente, e tratados de forma invadido e dividido pelos bár~searosque o le!aria Cons-
germb1cos, a ser
correspondente. Isso explica que Basilio li Bulga-
44 . · nnA-drade Filho·
Hilário Franco Jr. e Ruy de Ol,ve,ra
O Império Bizantino 45
restaurado no sul do Itália. A Síria, perdida três sé- sido perdidos durante a ocupação latina e não havia
culos e meio antes, fÔi reconquistada, ainda que mais condições de se recuperá-los. Os grandes pro-
apenas parcial e temporariamente. O reino búlgaro prietários rurais haviam-se fortalecido novamente
recém-formado e que se revelava perigoso, foi com- causando duplo prejuízo: econômico, pois suas terr~
pletamente esmagado e colocado na órbita da in- trabalhadas por camponeses dependentes eram me-
fluência bizantina. O mesmo aconteceu, por vias pa- ~os ~rodu~~as; politico, ao escaparem da obrigações
cíficas, através da cristianização e da aculturação, fiscais e militares. O comércio tomara-se uma ativi-
com a Rússia. Baseada nesse extenso território, numa dade ~otalmente dominada pelos ocidentais, primeiro
força militar respeitada, numa agricultura produtiva venezianos depois genoveses. Diante desse quadro,
com suas pequenas propriedades, num comércio in- não é de surpreender que a outrora poderosa Cons-
tenso, Constantinopla era a mais brilhante cidade do tantinopla - praticamente tudo que restara do an-
mundo. Correspondentemente, a produção cultural teriormente extenso Império Bizantino - tenha caí-
naquele período foi bastante rica. do em 1453 frente aos turcos. O império chegava ao
Mas todo esse poder e prestígio afastara Bizân- fim, mas sua civilização continuou sobrevivendo em
cio do Ocidente, o que culminou em 1054 com a se- muitas regiões que dele tinham feito parte ou que
paração das suas Igrejas, e em 1204 com uma trai- tinham sentido a força de sua atração.
çoeira ocupação de Constantinopla por parte dos cru-
zados, teoricamente aliados do império contra os
muçulmanos. Desta forma, por mais de meio século
os ocidentais dominaram a grande cidade e alguns
outros territórios formando o Império Latino de Cons-
tantinopla (1204-1261). Os bizantinos organizaram
então três Estados menores que reivindicavam a con-
dição de herdeiros do verdadeiro império, que pre-
tendiam reconstituir. Por fim, com a ajuda de Gê-
nova, que não aceitava os benefícios que sua rival
V-eneza tirava do Império Latino, os bizantinos re-
conquistaram Constantinopla.
Mas no Baixo Império (1261-1453) que come-
çava, Bizâncio não foi nem sombra daquele poderoso
Estado do período anterior. Muitos territ6rios tinham
O Império Bizantino 49
real.
Toda esta prosperidade do império dependia
como tivemos oportunidade de examinar de um~
ampla administração, de uma ativa diplo~acia e de
uma poderosa força armada, que demandavam vas-
tos ·recursos econômicos. Apesar da existência de
grandes cidades, portos, indústrias e um pujante co-
~ércio,. sua economia permanecia basicamente agrã~
na. Ma1er calculou que as cidades participavam com
AS ESTRUTURASECONÔMICAS apenas 5% das rendas impetj.ais e que se necessitava
de dezenove pessoas trabalhando no campo para que
a~enas uma pudesse viver na cidade. Assim, a capa-
cidade produtiva e tributãria, responsãvel pela sua
Constantinopla foi, sem dúvida, o grande centro sobrevivência, residia sobretudo no campo. Diante
urbano da Europa Medieval. Todos que par~ ela deste quadro, percebe-se que o poder efetivo do im-
fluíam espantavam-se com sua grandiosidade e ri- pério estã em relação direta com as oscilações fron-
queza. Um .deles, ocidental, sobre ela dirã: "é uma teiriças, com o vigor ou fraqueza relativa das grandes
grande cidade de negócios; os comerciantes chegam a propriedades rurais em cada fase de sua história. Em
ela de todos os paises do mundo; excetuando Bagdã, , cons:q~ência, elaborou-se um opressivo dirigismo
não existe no universo cidade alguma que a ela se · econom1coestatal, que restringia a iniciativa privada
possa comparar". Durante muito tempo, a cidade através de severas normas e o desenvolvimento de
não foi apenas a capital do Império Romano do uma inevitãvel burocracia, uma das principais fontes
Oriente, mas a capital da comunidade mediterrâni- de despesa do Estado.
ca. Em seu porto, mercadorias de diversas procedên- Assim, o papel do Estado na economia foi deci-
cias se aglomeravam e, para alguns, transmitiam sivo em muitos momentos, ainda que não tenha exis-
apenas uma pãlida idéia da riqueza do império. tido uma doutrina econômica defendida por ele. Na
Porém, as maravilhas de que falam os cronistas em verdade, a prática, a política econômica adotada era
muito amplia o fascínio que a cidade exerce, escon- resultante da própria evolução histórica de Bizâncio.
dendo atrãs de um "aspecto inesgotãvel", um sis-1· Esta ~oi,,,m8:rcadapela herança romana, dai, apesar
tema econômico oscilante e muitas vezes dependente. da ex1stenc1ade um comércio importante em boa
Na verdade, sua riqueza era muito mais aparente que parte de sua história, o fundamental ter sido a agri-
;,<.
/,"
Hüário Franco Jr. e Ruy de Oliveira ,Andrade Filh , O Império Bizantino
51
cultura. Do século III veio o estatismo econômico, rações na estrutura política bizantina, debilitando-a.
fórmula tentada para contornar a grave crise do fim No entanto, a prosperidade será, até o final do
do mundo antigo e que pôde ser facilmente assimi- século XI, a grande marca do Império e de sua ca-
lada por Bizâncio, pois seu nascimento se dera na- pital para todos que conheceram ou deles ouviram
quele contexto e porque, reforçando esta tendência, falar. Um francês do século X dirá que Constanti-
faziam parte de seu território os antigos reinos hele- nopla "é a glória da Grécia, sua riqueza é famosa e é
nísticos, onde o dirigismo era antigo e estava enrai- ainda mais rica que sua fama". Muitos comerciantes
zado na mentalidade. · chegavam a empreender seis meses de duras e peri-
~ Ainda que o objetivo desta política fosse mais. gosas viagens para lá venderem suas mercadorias e
· fiscalista que protecionista, em alguns setores exis- obterem as raras especiarias, os produtos de luxo tão
tiam monopólios estatais, especialmente naqueles decantados. A existência de uma moeda forte e es-
considerados vitais. Pelo mesmo motivo, os artesãos tável, o nomisma, muito contribuía para a realização
os comerciantes estavam reunidos em corporações deste comércio internacional. Sedas, tecidos de linho,.
·gidamente regulamentadas e supervisionadas pelo perfumes, jóias, objetos de marfim ricamente traba-
"'\IJstado.Contudo, o grau de intervenção imperial va- lhados, relicários, diversos tipos de especiarias; estas
liou conforme as circunstâncias históricas, ainda que mercadorias e muitas outras estimulavam os comer-
de maneira geral tenha prevalecido o papel do Estado ciantes de diversas partes do mundo a se dirigirem pa-
como definidor das linhas de rumo da economia, fato ra o império. Feiras realizadas em diversas de suas ci-
perfeitamente aceito pelos bizantinos acostumados à dades, expunham mercadorias européias, islâmicas,
sacralização da autoridade política. O resultado dis- persas, indianas e chinesas; em geral, elas coincidiam
so foi uma iniciativa privada extremamente limitada com as comemorações do "santo" local e promoviam
na medida que o Estado determinava as quantidades grandes afluxos de traficantes locais e estrangeiros.
de mercadorias a serem vendidas, os preços, os sa- O artesanato do império muito contribuía para
lários, os lucros a serem obtidos. Uma conseqüência o sucesso destas "feiras" e deste comércio, desta-
de extrema importância adveio desta politica econô- cando-se o de Constantinopla. Todos seus ramos,
mica: a aristocracia não podia investir na produção como já tivemos oportunidade de mencionar, es-
industrial, controlada pelo governo, nem tinha inte- tavam agrupados em corporações, regime que pre-
resse em fazê-lo no comércio, onde os riscos eram tendia defender os trabalhadores do desemprego, ga-
grandes. Assim, voltou-se completamente .para a rantir aos consumidores abundância de produtos de
agricultura. Esta intima ligação da aristocracia com boa qualidade e a bom preço, combater a ociosidade
a terra provocou, como sabemos, importantes alte- e os ganhos exagerados, manter a reputação dos ar-
52 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filhd O Império Bizantino
53
tigos industriais, principal fonte de exportação. Di- de ouro por vez, depois de provar ter utilizado a pri-
rigindo cada corporação havia um presidente esco- meira.
lhido por seus membros, mas cujo nome deveria ter a Mas essa severidade não afetava apenas aos co-
aprovação do prefeito local. Para se ingressar em merciantes locais. Todos os comerciantes que se diri-
uma corporação, devia-se fazer um pedido ao pre- giam ao império tinham seus barcos revistados na
feito apresentando uma petição com a assinatura de entrada e na saida e suas mercadorias eram rigoro-
l cinco membros que garantissem sua honorabilidade samente registradas. Limitava-se seu tempo de per-
e sua aptidão profissional. Sendo dada a licença, pa- manência, taxavam-se suas mercadorias e proibia-se
gava-se uma taxa variável conforme a corporação. O a venda de determinados produtos que poderiam
1! ' local de estabelecimento da oficina ou loja também concorrer com similares produzidos pelo império.
1 11n'
i,' 1, era designado pelo prefeito, no bairro em que se Também existiam certos artigos cuja venda estava
'! 'r agrupavam os profissionais do mesmo ramo. As ma-
térias-primas e as mercadorias eram compradas se-
proibida aos estrangeiros. Uma eficiente fisca~ação
aduaneira incumbia-se do cumprimento destas de-
:(
,1 gundo cotas fixadas por aquela autoridade, que ainda terminações; severas penas e humilhações prescre-
1 indicava os fornecedores. Toda mercadoria, antes de viam-se para os infratores. Enquanto durou sua pree-
ser vendida, recebia uma estampilha do poder pú- minência mediterrânica, Bizâncio pôde reservar-se a
blico. cômoda posição de receber as mercadorias do estran-
Cada corporação tinha o monopólio de sua espe- geiro sem importá-las e de deixar a cargo destes mes-
cialidade, que devia ser respeitada. A transgressão mos estrangeiros a venda de sua produção. A partir
ao regulamento implicava a expulsão da corporação, do final do século XI, todavia, sua supremacia finan-
confisco da propriedade ou multa em dinheiro, fla- ceira e comercial começará a sofrer a devastadora
gelos e corte do cabelo e da barba (atos humilhantes) concorrência das cidades italianas.
e em casos graves o desterro ou a perda de uma das Até então, três fatores se agregavam para privi-
mãos. Tal sistema não incentivava as iniciativas pes- legiar a prosperidade do Império. Em primeiro lugar
soais, dificultando as inovações técnicas e impedindo a localização geográfica,· pois era ponto de união
grandes ganhos: Gérard Walter calculou em cerca de entre a Europa e a Ásia. Em seu território desembo-
17%-o lucro sobre o preço de venda da mercadoria, cavam as principais rotas comerciais da época: as
sem se levar em conta as despesas gerais. O ritmo de mercadorias do Extremo Oriente vindas pelo Oceano
produção era lento e a produtividade baixa em fun- Indico e subindo o Nilo chegavam a Alexandria; atra-
ção da rigida regulamentação: por exemplo, cada vessando a Pérsia pelo oásis da Sogdiana alcançavam
ourives só podia comprar uma libra (459,S gramas) a Síria; da Ásia Central pelo mar Cáspio atingiam o
54 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filh , O Império Bizantino 55
mar Negro. Em segundo lugar, a existência de exce- Contudo, os historiadores discutem muito sobre
lentes portos em seus territórios, como Alexandria, a continuidade ou não desse comércio após o século
os portos da Síria, da Anatólia, da Grécia, do mar VIH. De um ponto de vista, as conquistas árabes que
Negro e sobretudo Constantinopla. Esta dominava as no século VH tiraram o Egito e a Síria do império
ligações do Mediterrâneo com o mar Negro, era o não chegaram a interromper o comércio dos "sírios",
ponto de encontro de pessoas e mercadorias de todas o que teria ocorrido com o domínio muçulmano da
as procedências, era enfim "o grande empório em Espanha, no século VIH, e a pirataria dos. dois sé-
que se centralizava o comércio do mundo" (Diehl). culos seguintes. De outro ponto de vista, o fato de os
Por último, a marinha bizantina com seu domínio "sírios" terem desaparecido do mundo ocidental não
sobre o Mediterrâneo permitia que os comerciantes , significou um corte com aquela região, pois as re-
da Siria, do Egito e da Ãsia Menor, chamados gene- lações continuaram através dos gregos e dos judeus.
ricamente de "sírios", pudessem manter relações De qualquer forma, o fim do domínio bizantino
com todos os territórios banhados por aquele mar. sobre o Egito e a Síria representou a perda de dois
O comércio com o Oriente levava a Bizâncio pro- terminais de rotas que traziam para Bizâncio pro-
dutos de luxo, sobretudo especiarias e seda. No sul, dutos orientais. Procurou-se então intensificar a ter-
os portos da Criméria comerciavam com os povos das ceira rota, que desembocava no mar Negro. Assim, o
estepes, levando-lhes produtos manufaturados da comércio bizantino precisou mudar de orientação -
Síria e de Constantinopla e obtendo em troca peles, via Itália para com o Ocidente, via mar Negro para
escravos e provavelmente âmbar. Com as tribos do com o Oriente - com a expansão muçulmana, mas
Cáucaso trocava-se trigo, vinho e sal por peles de ' não declinou.
carneiros. Para o Ocidente os "sírios" levavam pro- Sua decadência viria apenas no século XII, do-
dutos orientais, estabelecendo-se em colônias nas minado desde então pelos italianos, que colhiam seus
principais cidades daquela região. Em Roma a co- resultados. Jâ em 922 os venezianos recebiam de Ba-
lônia síria era tão poderosa e prestigiosa que de 686 a sílio I liberdade de comércio no porto de Constanti-
752 apenas um papa não foi de origem grega ou síria. nopla, pagando uma taxa inferior à de outros estran-
Refletindo tal situação, a influência cultural bizan- geiros. A verdadeira penetração latina, porém, co-
tina sobre a Itália daquela época foi marcante. Tam- meçou mais tarde, quando precisando de ajuda con-
bém na Gália havia muitas e prósperas colônias sí- tra os normandos, Bizâncio chamou os venezianos,
rias, como em Marselha e Narbone. As relações co- também temerosos de um crescente poder por parte
merciais com os "sírios" estendiam-se mesmo até a daqueles. Assim, em 1082 Veneza recebia isenção
Inglaterra. total de taxas alfandegárias, um bairro em Constan-
56 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Fil ., O Império Bizantino 57
tinopla e liberdade de trânsito em todo império com nefícios e seu poderio no mar; os gregos se debili-
exceção do mar Negro. Mas para contrabalançar a tavam progressivamente, e cada dia somava uma
- crescente influência dos venezianos, Bizâncio pre- desgraça a mais às calamidades dos dias anteriores".
cisou no começo do século XII conceder privilégios Paralelo ao declínio do comércio exterior e conse-
comerciais a Pisa. Como isso não se revelou sufi- qüente à economia urbana, o triunfo da grande pro-
ciente, também os genoveses receberam vantagens priedade não só rompia o equilíbrio entre a cidade e
para fazer frente ao poderio veneziano. Mas tudo o campo como levava a aristocracia a cobrar sua de-
que Bizâncio conseguiu com essa política foi trans- cisiva participação nas estruturas do império. Os
ferir para seu próprio território a rivalidade e as grupos sociais intermediários, que nas cidades e no
guerras que opunham Veneza e Gênova. O império campo permitiram durante bom tempo uma fonte de
i tornava-se "o teatro e a vitima" (Diehl) daquelas clis- ingressos essencial para a fazenda do império e pos-
putas comerciais. sibilitaram a estabilidade do Estado, estavam agora
De fato, foi procurando apossar-se definitiva- esfacelados. Os grandes proprietários que sempre se
mente e com exclusividade do comércio bizantino, opuseram ao rigido centralismo e intervencionismo
'·1\' que Veneza soube explorar as divergências político- estatal, em sua luta pelo poder, acabaram - junta-
1,
religiosas entre Ocidente e Bizâncio de forma a fazer mente com o declínio comercial e financeiro - com-
.,1
a Quarta Cruzada trabalhar a seu favor. Desta ma- prometendo de forma irreversível a capacidade de
:11''
,1
neira, é que se es.tabeleceuo Império Latino de Cons- sobrevivência do Império. Mas observemos sua evo:-
;11 tantinopla (1204-1261), que beneficiou fundamental- lução ao longo da existência de Bizâncio.
lil\ mente os interesses mercantis venezianos. Por causa A história agrária bizantina pode ser dividida
disso, Gênova ajudou a reconstituição do Império Bi- em três fases: até o século VII a estrutura da agricul-
,1111.'
11'1 zantino, que em troca lhe entregava praticamente o tura romana foi mantida; daquele momento ao sé-
111
dominio sobre seu comércio. Chegou-se mesmo a culo X, graças a uma mudança no regime de proprie-
(\1. cobrar uma taxa de todos os navios não genoveses - dade da terra, defendendo-se o pequeno proprie-
inclusive bizantinos - que se dirigissem ao mar târio, alcançou-se a maior produtividade agricola da
1,! Negro. Bizâncio perdera o controle sobre seus pró- ,história do império; no último periodo, encerrado
L prios territórios. Portanto, à hegemonia econômica .c:omo fim do Estado bizantino no século XV, os
":\i veneziana no Império Bizantino seguia-se a hegemo- grandes domínios reapareceram e passaram a predo-
1 nia genovesa. . minar.
Um cronista bizantino lamentava-se dizendo Na primeira fase, como aliás ao longo de toda a
que "os latinos aumentavam continuamente seus be- história bizantina, as necessidades fiscais do Estado
:1
1
Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Fll O Império Bizantino 59
58
é que determinaram as condições da agricultura. tuida por um imposto per capita e outro sobre a
Assim o sistema tributârio criado para fazer frente terra, sem a necessidade de sujeitar o contribuinte ao
'
aos problemas .
do século III continuou a ser. empre- solo. No caso das terras que escapavam a essa re-
gado, ligando o indivíduo à terra. Sem condições. ~e forma, cada aldeia devia um imposto global, que era
satisfazer as necessidades do Estado no que dizia dividido entre as propriedades individuais. Os mem-
respeito aos impostos, a população rural colocava-se bros da aldeia respondiam solidariamente ao paga-
sob a proteção de um senhor poderoso, oferecendo- mento do imposto, pois se um camponês não pagasse
lhe suas terras e seu serviço. Ainda que legalmente ' sua parte o vizinho era obrigado a fazê-lo, mas ga-
1
1,1 livres estes camponeses perdiam sua liberdade de nhando o direito de usufruto sobre aquela terra. Tal
1 li movi:nento tomando-se servos. Surgiam desta forma sistema era conhecido por a/lelengyon.
'1\,' ',, grandes proprietârios, donos de imensas riquezas e Tanto num caso como noutro a vida quotidiana
, .i 1
do camponês bizantino não era fácil, geralmente
de poder, como o caso da familia d?s Apion, no
1
r Egito, que nos séculos V, VI e VII tinha ~m s~as morando numa cabana bastante simples, trabalhan-
1
,1~,; mãos extensos territórios, um corpo de funcionânos do com recursos precários e extremamente depen-
lt !\1 para administrâ-los, prisões, sistema próprio ~ dentes das condições naturais, vitima do banditismo
pesos e medidas, um serviço de transporte~ _parti- endêmico em certas regiões e de invasões estrangeiras
,J' '
,,·1 cular para ligar suas terras, um regime especifico de em outra. A produtividade agricola, ainda que su-
. ,ili
11
11
arrecadação de impostos. Enfim, um verdadeiro Es- perior à do Ocidente da mesma época, não permitia
1
'·11 grandes exceden!es. A criação era muito importante,
,1 /,\ : tado dentro do Estado.
No século VII, porém, o poder dessa aristocra- sobretudo na Ásia Menor, com o gado sendo o prin-
1
'.1\\ll cia diminuiu devido às invasões eslavas, âvaras, per- cipal bem do camponês e a medida de sua riqueza
pessoal. Em função disso, a carne era pouco consu-
l11
'111.
I.',
111,1
sas ·e ârabes, que devastavam a terra, destruíam as
colheitas, escravizavam a população. A grande pro- mida, pois implicava abater o animal, mas o leite e
priedade, no entanto, não desapareceu. Mas o f~to seus derivados eram bastante utilizados. A caça,
,\ 1:.\11, porém, permitia ao camponês o consumo de carne de
1 11 ' significativo desse periodo foi a reforma empreendida
1: pelo imperador Heráclio (610-641). Este criou, como tempos em tempos. A pesca complementava sua ali-
vimos os themas, províncias militarizadas cujas tro- mentação com mais frequência.
i pas ~cebiam terras que deveriam cultivar. O fil~~ Tal situação tornou-se mais difícil desde o sé-
primogênito de um soldado herdava os deveres mib- culo X com a desintegração das comunidades cam-
tares do paí e os outros filhos tomavam-se camp~- ' ponesas livres. Como o sistema a/lelengyon forçava a
neses livres. Assim, a tributação anterior era substi- emigração daqueles que não conseguiam pagar os
',
60 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filh O ImpérioBizantino
61
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impostos, muitas terras passavam para as mãos do
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! da Catedral de Santo Estevao, Saens. Ser "bizantino" não implica uma "nacionali-
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dade".Os estrangeiros de Constantinopla, já em sua
1
64 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filh O Império Bizantino
65
segunda geração eram considerados "romanos de estiveram continuamente sujeitos a violências, quase
origem" (Walter). Para tanto, bastava que falasse o sempre instiladas pela Igreja. Tal intolerância; de
grego e fosse ortodoxo. E~ ~?e da gra!ld.; fl~tua- certa forma, era justificável para um bizantino; pois
ção de suas fronteiras, sena difícil uma exis~encia t_ão no império, "a ortodoxia tomava o lugar da naciona-
prolongada sem esta elasticidade de ~u~ cidadama. lidade" (Diehl). A sua manutenção material muitas
Eslavos búlgaros, georgianos, armemos, persas, vezes cobrava atitudes extremas: deslocavam-se po-
russos, ~ormandos, gregos, italian~s, an~l~-saxões e pulações inteiras, construíam-se fortalezas frontei-
outros confundiam-se em meio à mstabilldade das riças, realizavam-se campanhas contra tribos ou po-
·1 feições do império. Estas geralmente enc~ntravam vos insubmissos. A estes procedimentos, reunia-se a
1.
,. um freio a oeste no Adriático; ao norte, a hnh~ tr~- tentativas de assimilação onde tinham papel desta-
dicional do Danúbio e do mar Negro; ao sul~ pnmei- cado a língua grega e a ortodoxia religiosa para asse-
,1,
ramente o Egito e depois ~~ta, sem?re disputa~ gurar a unidade em meio ao redemoinho das mi-
,,, pelos árabes. No oriente, Sina, Palesti~a, Anat6ha, grações.
'),
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0
11
Georgia e Armênia formavam uma lm~a . sempre A religião ocupava um lugar de destaque na vida
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1 muito apagada e indecisa. Mas mes~o o~ h~it~s geo- da população do império e, em especial, de sua ca-
'
,, '
' gráficos não definem uma "área bizantin~ 'Já q~e pital. O sobrenatural tinha um destacado papel no
~i eram completamente extravasados pela diplomaci_a quotidiano: problemas políticos ou sociais acabavam
i•i1
'"'I da Roma Oriental. Muitos são os povos a ~~~er. tn- por tomar feições religiosas; as festas quase sempre
:,1i butos à sua civilização, incluindo até os mimigos eram religiosas; até mesmo o comércio carregava
'( '
'ntimos". Geralmente, quando derrotada pela força símbolos religiosos. Tal fervor era agravado pelas
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'11 ,1
~as armas; Bizâncio ressurgia vi~oriosa?ela força das constantes tensões que passava o império. Portanto,
'li;
ili. idéias; a renascença é disto o mais clássico dos exem- não causa espanto as rivalidades que eventualmente
'1!1
,1
'i afloravam entre suas principais cidades. ConstanH-
1
razão do forte conservadorismo presente em suas es- da~, tradição e mudança coexistindo simultanea-
truturas, um papel de mero compilador, sem origi- meJ\te, compõem a dinâmica da civilização bizan-
nalidade ou criatividade. Muitas vezes, os próprios tina.\ A sfntese destas duas fortes tendências cimen-
bizantinos contribuíram para esta falsa idéia. Basta tam a originalidade de Bizâncio.
para tanto citarmos o célebre João Damasceno que já ~s transformações político-administrativas e as
dizia: "nada direi que venha de mim mesmo". O medidas econômicas do Baixo Império Romano cons-
peso da tradição romana do Baixo Império, a influên- truíram seus alicerces. Sua estrutura se forjará ap6s
cia sempre presente da Grécia clássica e helenística, árdua luta pela supremacia de Constantinopla frente
a ortodoxia religiosa com verdades definitivas e trans- a outros baluartes do helenismo, comoAlexandria e
cedentes, etc., de fato contribuem para um forte tra- Antioquia. O cristianismo triunfante assume e incor-
dicionalismo e conservadorismo arraigado em sua pora a tradição clássica, determinando o estilo do
sociedade. Em grande parte, a sobrevivência do Im- novo edificio e imprimindo-lhe um formato especial e
pério se fez por este gosto ao rigor tradicionalista, original. A língua grega será o cimento que lhe pro-
superando crises, sobrevivendo aos caprichos de al- moverá, junto à ortodoxia, a unidade. Por fim, o aca-
guns déspotas e observando com profunda descon- bamento será realizado pelos influxos do oriente
fiança os reformadores. persa e posteriormente do Islão.
Esta "pintura" realmente nos deixa tentados a ~ claro que, apesar de vitorioso, o cristianismo
simplificar sua civilização, rotulando-a como estática não provocou grandes alterações na formação edu-
e simples reprodutora de velhos modelos. Porém, cacional do homem bizantino. O ensino religioso
uma análise mais atenta facilmente a destrói. A pró- processava-se paralelamente ao laico e era efetuado
pria verificação de sua evolução histórica, de sua lon- por um clérigo. A Igreja não se opunha - com raras
gevidade, atesta a presença de elementos de transfor- exceções - ao ensino dos literatos pagãos. Os profes-
mação, de mudanças. Reformas como as de Heráclio, sores laicos poderiam ser "particulares", pertencen-
dos Isáurios - apenas para citar alguns - com- tes a uma Universidade ou Escola; uma única exi-
provam a maleabilidade e a capacidade de adaptação gência começou a tornar-se clara com Justiniano:
do império. A continua flutuação das fronteiras, os todos os professores universitários deveriam ser cris-
diversos contatos com outros povos e civilizações, cri- tãos. Tal exigência era possível não apenas pelo pró-
ses profundas,. implicaram amplas mudanças estru- prio caráter do bizantino, como pelo fato de o Estado
turais, buscas constantes de novas soluções para subvencioná-los.
novos problemas. Esta nova "tela" sobre a qual dei- O outono marcava o final das "férias escolares"
tamos nossos olhos explicita a idéia de que, na ver~ e estudava-se quase sem interrupções significativas
80 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade O Império Bizantino 81
cidas. Em termos de lingua, o latim após Justiniano Planta da Igreja de Santa Sofia, Constantinopla.
82 Hilário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade O Império Bizantino 83
somente era empregado em cunhagens e em citaçõtr5. po, marca o aparecimento de um novo estilo, e marca
O grego merecia: todas as atenções, excetuando-se o igualmente o apogeu deste estilo". Na verdade, os
estudo da poesia clâssica, que exigia uma pronú-ttcia progressos da arquitetura bizantina não cessaram em
âtica antiga, distante da corrente no império. As Santa Sofia, como muito pode-se observar na pos-
demais "não eram dignas de erudição" (Runcinian). terior arquitetura religiosa, bastando para tanto citar
A medicina pouco progrediu após Hipócrates; a geo- os mosteiros de Hosios Lucas do século X e o de
grafia progredia em termos de cartografia, mas per- Dafni do século XI. A respeito da arquitetura pro-
maneciam discussões a respeito da planicidade do fana, infelizmente pouquissima coisa resta, além de
planeta. Na química, apesar do "fogo grego", não ruínas e descrições. Mas pode-se imaginâ-la pelas
existiram progressos. A mecânica, além dos animais maravilhas que se contam, por exemplo, do Palâcio
que rodeavam o trono para, movimentando-se .e ru- Imperial, que resumia influências arquitetônicas pela
gindo, impressionar os visitantes, realizou progressos somatória de dependências construidas cumulativa-
em função da engenharia. mente. Pelo Hipódromo, que junto com Santa Sofia e
A arquitetura traz grandes transformações. Sua o Palâcio, formavam a "trindade" arquitetônica de
maior glória espelha-se em Santa Sofia, a Igreja· da Constantinopla.
Sagrada Sabedoria. Construida entre 532 e 537 por Por sua vez, o Direito após Justiniano ressentiu-
Antêmio de Trales e Isidoro de Mileto, ostenta uma se do declinio do latim e do ensino entre os séculos
cúpula de 32 metros de diâmetro e 60 de altura, VII e IX. Em 1045 Constantino IX funda a escola de
criando a impressão de estar suspensa no ar. Reunia Direito obrigando todos os advogados com pretensões
a forma da basílica da arte primitiva cristã, a técnica a exercer a profissão de freqüentâ-la, demonstrando
retangular trazida do oriente e que possibilitava a claramente o quanto o autodidatismo havia feito
distribuição da pressão da cúpula e a forma crucifor- decair seu conhecimento. O Corpus Juris Civilis ha-
me que desenvolviam os arquitetos cristãos. Iustinias via permanecido em vigor até a publicação da Écloga
no, maravilhado com a obra, agradecia a Deus que de Leão Isaurio em 739, introduzindo princlpios
lhe achou "digno de completar tão grande obra e ul- cristãos no Direito. Mas os Isãurios, como sabemos,
trapassar o próprio Salomãotf. Diehl vai mais além levam o estigma da icQnoclastia. Portanto, com os
em seu deslumbramento: "Notre Dame de Paris, por Macedônios, publica-se aBas(/ica de Leão VI - que
muito notãvel que seja, tem monumentos que a igua- não destrói a obra dos Isáurios -, último código pro-
lam. São Pedro de Roma tem um pouco de falta de mulgado. O Direito Canônico bizantino tem sua
originalidade e só é cristã por aquilo a que se destina; compilação na Syntagma e uma obra publicada a
Santa Sofia, ao contrãrio, é única e, ao mesmo tem- respeito do assunto, a Exegesis Canonum, de 1175.
84 Hilário Franco Jr. e Ruj de Oliveira Andrade O Império Bizantino
Pela data e pelo último -título, percebe-se que neste O dogmatismo e o rel>uscamento retórico fi-
campo o latim prosseguia sendo estudado e utilizado. zeram malograr as hagiografias - vidas de santos
Os contatos mais intensos entre Ocidente e Oriente - , tão populares na tradição oral do Ocidente e, so-
também provocaram uma maior vulgarização do mente nos hinos sacros, manteve-se uma força cria-
latim. tiva. Neles, ironicamente, destacam-se o diádoco Ro-
A literatura, çomo já mencionamos, inaugurava mano üudeu convertido) e o próprio João Damas-
os estudos do bizantino e primava-se pelos autores ceno, sírio e místico. O objetivismo e a didática levam
clássicos. Esta admiração exagerada é, em grande ao fracasso as tentativas de poemas líricos; os gran-
parte, responsável pela ausência de uma espontanei- des amores e paixões são desterrados à épica po-
dade, da elaboração de um vernáculo próprio, de pular. A história, porém, salvará a literatura sendo
uma força criadora. Permanece grega e erudita, ar- uma de suas mais notáveis contribuições. Ela já era
caica, imitativa e artificial. A literatura teológica, detentora de grande tradição clássica e contava com-
uma das grandes paixões do império-cristão, é um nomes de peso, como Heródoto e Tucídides entre
dos poucos ramos que escapa a esta letargia. As cons- outros. Já no século VI encontramos Procópio e sua
tantes discussões, as ·heresias, fazem proliferar pá- História Secreta. Depois dele, diversos autores do gê-
ginas e mais páginas em defesa da ortodoxia. Tam- nero adquirem importância e destaque, como Nice-
bém a convivência com minorias judaicas, com o isla- tas, Constantino VII, Ana Comneno, Ducas, etc. Esta
mismo, a tomaram proffcua. O pensamento grego foi uma tradição que jamais morreu. Chega mesmo a
uniu-se ao cristão e diversas obras adaptaram os filó- ser surpreendente, em muitos autores que estudam a
sofos gregos em defesa da religião. Porém, a partir história do próprio império, de seus amigos e inimi-
do século IX, também a teologia encontrou-se prisio- gos, a imparcialidade, como no caso de Nicetas Aco-
neira do "passado cristão". As "verdades" já es- miniato que escreveu sobre a queda de Constantino-
tavam expostas pelos teólogos antigos e desconfiava- pla em 1204. Primavam-se pela correção nas observa-
se das idéias originais a ponto de João Damasceno ções, na documentação de que se muniam, na objeti-
proferir sua já citada frase: "nada direi que venha de vidade com que abordavam seus temas, o que per-
mim mesmo". O desconhecimento e mesmo "des- mite até perdoar certas parcialidades que podemos
prezo" pelo trabalho teológico do Ocidente protelou mesmo considerar "naturais".
a tradução e o conhecimento de um Santo Agostinho Grande parte do sucesso deste gênero da litera-
ou um São Tomás de Aquino, que lhes poderia re- tura bizantina deve-se à concessão que fizeram seus
novar e mesmo encetar um novo diálogo entre as autores à língua corrente; também o interesse que a
Igrejas cismáticas. história despertava na população, chegando a equi-
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Hilário ·Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filh ·· O Império Bizantino 87
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1
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interesse popular contribuem para o surgimento das dinâmico da Roma Oriental, encontra uma de suas
1 Crônicas, de temas amplos e variados e que abran- sinteses mais completas nas artes. Santa Sofia, a
1l
111: 1 gem desde a história da Grécia ou de Roma até as Igreja da Sagrada Sabedoria, é um de seus mais be-
1
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'
proezas de um Alexandre Magno e adaptações de los exemplos. A arte bizantina é sobretudo religiosa,
contos orientais com vestimentas cristãs. A litera- "mas nem por isso cristã" (Runciman). O império
tura, através das Crônicas, deixava a preocupação carrega uma multiplicidade de fontes e soube adap-
erudita e o refinamento retórico dos salões, ganhan- tar-se sem prejuizo de suas bases clássicas. O sopro
do as ruas e readquirindo força e originalidade. Ela inovador provém do Oriente com sua arte mais di-
nos brinda com obras como Barlaão e Josafá e a poe- reta, mais mistica, rompendo ou adaptando a fluidez
sia épica de Digenis Akritas que se iguala e, segundo e a naturalidade da arte helênica. A complicada e
a opinião de alguns, supera qualquer outra canção detalhista pompa romana cede seu lugar a uma pom-
de gesta. pa mais simples, porém mais íntima do persa. Este
Ligada ao gênero "história". as biografias se ati- ma~or misticismo e simplicidade - sem sacrifício da
veram mais àos temas hagiográficos e foram engo- pompa - vem diretamente aos interesses da Igreja,
lidas pela literatura teológica. As autobiografias fo- recentemente aceita pelo império e logo seu braço di-
ram muito raras. Manuais descritivos de Constanti- reito. O império terrestre deveria refletir os esplen-
nopla, manuais militares, administrativos e obras dores do "celeste", buscando uma grandeza transcen-
enciclopédicas - algumas de grande valor - com- dente e inacessível. Logo, a frontalidade procura
pletam este rápido quadro da literatura bizantina. assumir o papel de indutora da espiritualidade, com
Afora a história, a crônica e. o início da literatura imagens rigidas, rodeadas por anjos e com as digni-
teológica, Bizâncio reservou-se o papel de preserva- dades centrais geralmente inexpressivas e, portanto,
dora minuciosa da tradição e da filosofia clássica. intocáveis. Em geral, obedecem o ritual da corte e
Após a conquista de Constantinopla pela Quarta ganham a magnificência dos mosaicos que possibi-
Cruzada em 1204, pouco se conhece da posterior or- litam grandes efeitos sem perder a simplicidade e
ganização do ensino, ressaltando-se o fato de que, ao obviedade, mas também sem prejuizo da suntuosi-
menos, a retomada dos estudos clássicos e a inserção dade. A arte religiosa avança sobre temas como a
dos conhecimentos ocidentais são extremamente re- Paixão de Cristo; a iconografia sobre Cristo, a Vir-
vigoradas sob os Paleó[Qgos. 8 o contraste com o de- gem e os Profetas; a temática profana sobre os triun-
clinio material do :iµtpério que ruma, de fo:r'mairre- fos imperiais.
versivel, para sua conquista pelos Otomanos. A nova arte deste primeiro periodo áureo dota-
88 Hüário Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filh · O Império Bizantino 89
Ravena serve de inspiração para a construção da de dições de Constantinopla. Desnecessúio seria co-
Aix-la-Chapelle por Carlos Magno; a Igreja de São mentar a respeito das influências de Bidncic) sobre a
Marcos de Veneza tem seu modelo na Igreja dos Rússia; para tanto, bastaria lembrar a existenc:iitda
Santos Apóstolos em Constantinopla. Na Alemanha, igreja de Santa Sofia de Kiev.
ilustrações riquissimas atestam a influência bizan- Desta forma, o Império Bizantino sobreviveu;à
tina. No entanto, também é certo, como nos fala gradativa redução das fronteiras territoriais. corres-
Diehl, que a "arte do oriente contribuiu para des- ponderá uma expansão paralela das fronteiras·inte-
pertar nos artistas do Ocidente a consciência de suas lectuais, artísticas e culturais. Em ~ Yida,Bidncio
próprias qualidades; e mediante a influência de ou- soube conciliar elementos tão contradit6rios como a
tras correntes e tradições, muitos deles se emanci- tradição e a mudança. Pois foi essa mesma capaci-
param". dade sempre presente em sua civili:r.açlo que lhe
A escola de Bolonha revive o Direito de Justi- colheu uma última vitória diante de seu declfnin m-
niano e auxilia o crescimento do poder das monar- oente: a imortalidade.
quias frente ao da Igreja e dos senhores feudais.
Apesar do constante atrito entre as Igrejas do Ociden-
te e do Oriente, é em João Damasceno que Pedro Lom-
bardo e São Tomâs de Aquino se inspiram. Platão
retomarâ o Ocidente graças ao renascimento does-
tudo de suas obras pela Universidade de Constanti-
nopla. Também dos humanistas bizantinos se reto-
marâ no Ocidente o estudo dos clássicos.
Ocidente e Oriente lhe serão grandes tributârios. i
-------
trais familiares da nobreza bizantina. Também entre
eles, a Igreja Ortodoxa serâ a mantenedora das tra- Mosaico. Juízo p;, · , . séc. XII. Catedralde Tarallo.ltMitl.
O Império Bizantino 93