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Obras de Psicologia e de Psicanálise são incluídas nesta

coleção obedecendo ao critério de apresentar uma sólida


fundamentação teórica, independente de escolas ou
orientações ideológicas. Reúne textos de autores consagrados,
antigos ou modernos, que, através de manuais, ensaios ou
pesquisas aplicadas, forneçam subsídios consistentes para
a formação teórica ou a prática clínica.

CAPA Projeto gráfico Marcos Lisboa


PSICOLOGIA DO JOGO

V.xu-a CíoíudUa 2013


Daniil B. Elkonin

PSICOLOGIA DO JOGO

Tradução ÁLVARO CABRAL

*
wmfmartinsfontes
SÀO PAULO 2009
Esta obrafoi publicada originalmente em nisso com o titulo
PSICOLOCÍA1CRI por Editorial Pedagógica. Moscou.
Copyright © Editorial Pedagógica, Moscou, 1978.
Copyright © 1998, Editora WMF Martins Fontes Lida
Sito Paulo, para a presente edição.

1? edição 1998
2í edição 2009

Tradução
(a partir da i'ersão espanhola de Venancio Uribes,
publicada por Visor Libros)
ÁLVARO CABRAL

Revisão técnica e da tradução


Claudia Berliner
Revisões gráficas
Ligia Silva
Ivete Batista dos Santos
Produção gráíica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Elkonin, Daniil B.
Psicologia do jogo / Daniil B. E lkonin; tradução de Álvaro
Cabral. - 2? ed. - São Paulo Editora WMF Martins Fontes,
2009. - (Coleção Textos de psicologia)
Titulo original: Psicologia igri.
Bibliografia.
ISBN 978-85*7827-204-3
1. Jogos infantis - Aspectos psicológicos 2. Psicologia in­
fantil I. Titulo. II. Série.
09-09770________________________________________CDP-155.418
índices para catálogo sistemático:
1. Jogos : Psicologia infantil 155.418

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora WMF M artins Fotttes Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3293.8150 íax (11) 3101.1042
e-mail: info@wmfirutrtinsfontes.com.br Uttpjfn.ninv.iumfmartinsfontes.com.br
À memória de minhas filhas Natasha e Gália e
de sua mãe, Nemanova. tragicamente mortas
durante a Grande Guerra Pátria.
>*
índice

Prólogo da edição espanhola IX


Nota do autor. Biografia das pesquisas 1
Capítulo 1
O objeto das pesquisas é a forma da atividade
lúdica das crianças 11
1. A palavra 'jogo O jogo e as formas iniciais de arte 11
2. Unidadefundamental daforma evoluída de atividade lúdica.
Natureza lúdica. Natureza social do jogo de papéis 21
Capítulo 2
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 39
1.Da história dos brinquedos 39
2. Origem histórica da forma desenvolvida de atividade
lúdica 48
Capitulo 3
Teoria do jogo 83
1•Teorias gerais do jogo: Groos e Buytendijk 83
2. Teorias e problemas da pesquisa do jogo infantil 121
Problemas da psicologia do jogo na ciência psicológica
soviética 188
Capítulo 4
Origem do jogo na ontogenia 207
1. Desenvolvimento dos movimentos, das ações e da
comunicação com os adultos no primeiro ano de vida 20 7
2. Peculiaridades do relacionamento da criança com os
adultos durante o desenvolvimento das ações com
os objetos e aparecimento das premissas do jogo
protagonizado 216
Capítulo 5
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 233
1. Caracterização múltipla do desenvolvimento do jogo 233
2. O pape! e a situação imaginária: sua importância na
motivação da atividade lúdica 241
3. Formação experimental das premissas do jogo
protagonizado 251
4. Evolução do papel no jogo 2 70
5. O objeto - a ação - a palavra (contribuição para o
problema do simbolismo no jogo protagonizado) 325
6. Desenvolvimento das atitudes da criança em jáce das
regras do jogo 356
Capítulo 6
O jogo e o desenvolvimento psíquico 397
1. O jogo e a evolução da esfera das motivações e
necessidades 401
2. O jogo e a superação do “egocentrismo cognitivo " 406
3. O jogo e a evolução dos atos mentais 413
4. O jogo e a evolução da conduta arbitrada 417
A MEXO
Fragmento das anotações de Vigotskipara conferências
sobre psicologia infantil 423
Bibliografia 435
Notas 445
Prólogo da edição espanhola

Com freqüência a apresentação de um livro é feita por


uma autoridade na matéria de que trata a obra prefaciada, exal­
tando os esforços de quem começa a oferecer os primeiros fru­
tos de seu trabalho nessa disciplina. Neste caso, porém, inver­
teram-se os papéis, e é o discípulo quem apresenta o mestre.
Sublinho a mudança de papéis porque disto trata, fundamen­
talmente, a obra de D. B. Elkonin: de como os membros mais
jovens da sociedade entendem e reconstroem as atividades e
interações dos adultos. Há, sem dúvida, muitos fenômenos dis­
tintos a que nos referimos com o termo “jogo”, desde as mani­
pulações de um objeto qualquer por um bebê até os jogos
“adultos” como o xadrez ou o futebol. Entre uns e outros en­
contramos, na literatura psicológica, muitas categorias e subdi­
visões. Fala-se de jogo imaginativo, imaginativo individual ou
social, jogo “turbulento e desordenado” (rough-and-tumble), ) 0g 0
simbólico, jogo cooperativo, jogo de ficção, jogo sociodramá-
tico, jogo criativo, jogo de representação de papéis etc. Alguns
desses termos assinalam diferenças teóricas entre os autores
que os utilizam. Por exemplo, a denominação “jogo simbólico”
em Piaget englobaria todos os anteriores, quer a criança os rea­
lize sozinha quer na companhia de outras crianças, porquanto
se postula que a estrutura psicológica que permite todos eles é
X Psicologia dojogo

substancialmente a mesma. Hm outros casos, é possível que a


preferência por um ou outro termo dependa mais da língua em
que se expressa originalmente o autor e da escolha de termos a
critério de seus tradutores. A obra de Elkonin trata do jogo “pro­
tagonizado”, que poderia equivaler, segundo cremos, ao jogo
sociodramático de Smilanski (1968) ou Feitelson (1978), ao jogo
social de Eiflferman (1971), ao jogo de ficção de Garvey (1977)
ou ao jogo simbólico mais desenvolvido de Piaget (1946).
Esse problema da terminologia reflete um outro mais pro­
fundo, o da própria possibilidade do estudo científico do jogo.
A partir de tradições muito diversas, autores como Schlosberg
(1947), Kollarits (1940) e Blonski (1934) propuseram que se
prescindisse de tal termo e se estudassem de forma indepen­
dente os distintos comportamentos por ele englobados.
A resposta parece ter sido um incremento do número de
trabalhos dedicados a descrever, classificar e explicar esse fe­
nômeno nas mais diversas espécies, inclusive a humana. Li­
mitando-nos a esta última, durante a década de 70, destacaría­
mos os trabalhos de Blurton-Jones, Smith e Connolly, sobre a
aplicação do enfoque etológico aos jogos agressivos e de lutas;
os de Bruner sobre os jogos de interação social nos primeiros
meses de vida; e o já mencionado de Garvey sobre o jogo de
ficção entre 2 e 4 anos.
Para avançar na compreensão científica do jogo é impor­
tante aumentar a quantidade e a qualidade dos nossos dados
sobre os seus diversos aspectos, mas também necessitamos de
teorias que nos guiem na obtenção e análise desses mesmos
dados.
Há menos de um ano, nas Primeiras Jornadas Internacio­
nais sobre Psicologia e Educação, organizadas em Madri por
Pablo dei Rio, aludíamos à importância do recém-traduzido
artigo de Vigotski (1979) sobre “O papel do jogo no desenvol­
vimento cognitivo”. Esse artigo tardou mais de 30 anos para
ser publicado em russo c mais de 40 até a sua versão em espa­
nhol, período de tempo suficiente para nos fazer pensar que o
Prólogo da edição espanhola XI

seu valor seria meramente histórico. A obra de Elkonin é a


melhor prova contrária a tal suposição. A vitalidade da teoria
do grande psicólogo russo pode ser avaliada pela grande quan­
tidade de trabalhos experimentais que inspirou. Boa parte des­
se material era de impossível acesso ao leitor desconhecedor
do idioma russo. Elkonin apresenta-nos a teoria de Vigotski
tal como veio sendo desenvolvida pela escola soviética ao
longo de mais de meio século. Desde os engenhosos experi­
mentos dc Lúkov (1937), Frádkina (1946) e Slávina (1948), até
os trabalhos mais recentes de Vigotskaia (1966) com crianças
surdas, Sokolianski ( 1962) com surdas e cegas, Sokolova (1973)
com retardadas mentais, ou os de Mikhailenko (1975) sobre o
desenvolvimento do jogo protagonizado em crianças de 1 ano
e meio a 3 anos de idade.
A todos esses trabalhos há que acrescentar a grande quanti­
dade de dados do próprio Elkonin e a engenhosidade das situa­
ções experimentais em que soube apoiar-se - ordem na suces­
são das ações, conflito entre ação e papel, ou entre papel e uma
ação espontânea que colide com ele - a fim de demonstrar a exis­
tência de regras implícitas no jogo protagonizado. Para nós. resul­
tam extraordinariamente familiares suas observações sobre os jo­
gos tradicionais, ou seu procedimento de invenção de um jogo.
Autores como Fagen (1974), Bruner (1972) ou Reynolds
(1976) fizeram interessantes sugestões sobre o papel que o
jogo pode ter desempenhado no transcurso da evolução e, mais es­
pecificamente, no aparecimento e desenvolvimento dos antro-
póides. Elkonin, fazendo uso dos dados fornecidos por etnó-
grafos e antropólogos, indaga sobre a origem histórica do jogo
protagonizado e relaciona o seu surgimento com o momento
em que a divisão social do trabalho afasta a criança do proces­
so de produção. A importância que os dados sócio-históricos
têm no pensamento marxista contribui para que eles nos pro­
porcionem uma teoria da origem do jogo mais ampla do que a
dos autores citados - os quais se baseiam fundamentalmente
no jogo motor - e provavelmente complementar desta. Como
XII ____Psicologia dojogo

assinalou Brown (1979), as diferenças entre alguns desses enfo­


ques são mais de ênfase do que de conteúdo, e, se existe adapta­
ção de indivíduos concretos, é uma adaptação a um meio sócio-
histórico muito determinado.
A obra de Elkonin é, além de tudo o que já foi dito antes,
uma tentativa de formulação de uma teoria geral sobre o jogo
capaz de superar as limitações daquelas que foram examinadas
pelo próprio autor. Caberia rebatizá-la como a teoria de Vi-
gotski-Elkonin, em reconhecimento à contribuição de cada um
desses autores.
A teoria considera como unidade fundamental do jogo o
“jogo protagonizado”, característico das crianças do final da
idade pré-escolar, jogo social, cooperativo, de reconstituição
dos papéis e das interações dos adultos. Anterior a ele haveria
um jogo simbólico centrado nos próprios objetos, que se apre­
senta, em certa medida, como continuação do jogo sensório-
motor piagetiano. A teoria não reconhece como propriamente
jogo esta última categoria, pois a condição essencial para o re­
conhecimento do lúdico baseia-se na situação dc ficção. No extre­
mo oposto, o jogo de regras, a teoria propõe uma mudança na
ênfase das regras como tais, que só estavam implícitas no caso
do jogo protagonizado, em detrimento do argumento ou “aspecto
exterior” do jogo.
A outra teoria fundamental do jogo é a de Piaget, com a
qual esta de Vigotski-Elkonin rivalizaria. E cumpre reconhecer
que nela o jogo protagonizado é concebido como estrutural­
mente idêntico ao jogo simbólico dos primeiros anos. Há uma
diferença considerável de tempo e metodologia entre os estu­
dos de Piaget (1932) sobre o jogo de regras e os mais tardios
sobre o jogo simbólico (1946), sendo mais detalhados a respei­
to da primeira fase deste último tipo do que da segunda (jogo
protagonizado). E, no entanto, Elkonin mostra-nos como nele
se dá a interação de papéis, portanto a cooperação, como con­
siste num exercício contínuo de descentramento, de colocar-se
no ponto de vista de outra pessoa (o adulto), e isso justamente
Prólogo da edição espanhola XII!

nos anos que precedem de imediato o aparecimento do pensa­


mento operativo, que vai permitir a superação do egocentrismo
infantil. Mais do que isso: a evolução da consciência da crian­
ça a respeito da possível violação das regras implícitas em tais
jogos leva-a a um convencionalismo que recorda as caracterís­
ticas descritas pelo próprio Piaget, em relação com os jogos de
regras, na consciência democrática dos 11 ou 12 anos.
As implicações teóricas de tudo isso parecem-nos impor­
tantes, mostrando que o desenvolvimento não é um processo
linear, mas em ciclos completos que se reconstrocm em dife­
rentes momentos da vida. Ocorre-nos que é grande o paralelis­
mo com o que Bower e outros mostraram a respeito do desen­
volvimento cognitivo da criança pequena.
Isso explicaria um comportamento típico de muitas crian­
ças, mas sobretudo na faixa dos 6 aos 10 anos, diante da possí­
vel modificação das regras dos jogos. O convencionalismo
conseguido no jogo protagonizado convive durante anos com
uma atitude muito mais rígida em face da realidade das pró­
prias regras. E ambas as realidades são, para a criança, jogo -
por mais que tenham conotações distintas, inclusive para ela.
Daí resulta a importância do contexto em que a criança inter­
preta a pergunta formulada pelo adulto, para que uma ou outra
atitude se manifeste.
Ambas as teorias, a de Vigotski-Elkonin e a de Piaget,
destacam a importância do estudo de um fenômeno tão trans­
cendental na vida infantil como é o do jogo, em relação com o
próprio desenvolvimento intelectual da criança. Em qualquer
caso, toda teoria geral há de poder explicar os dados que hoje
conhecemos acerca dos diversos tipos de jogos, sem exceção,
quer se trate do jogo protagonizado quer do sensório-motor e
de construção.
Nestes últimos anos está havendo um interesse crescente
pelo desenvolvimento da teoria piagetiana no tocante ao conhe­
cimento social da criança (Furth, 1978; Del Vai, 1971,1980) e ao
desenvolvimento de suas interações sociais (Youniss, 1978).
XIV Psicologia do jogo

Nessa perspectiva, o trabalho de Elkonin constitui um


delicioso material sobre o qual refletir.
Agradecemos muito à Editorial Pablo dei Rio ter-nos pro­
porcionado a obra em castelhano apenas um ano depois de sua
publicação original em russo.
Josetxu Linaza
Oxford, julho de 1980

Referências
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Blurton-Jones, N. (org.), Ethological Studies o f Child Behavior.
Cambridge, Cambridge University Press.
BOWER. T. G. Infant Development. Sào Francisco, Freeman, 1974.
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BRUNER, J. S. e SHERWOOD, V. “Peekaboo and the learning of
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DELVAL, J. e SOTO, P. “Epistemologia Genetica: Las nociones
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FEITELSON, D. “Cross-cultural studies”, em Tizard, B. e Harvey,
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Prólogo da edição espanhola

FURTH, H. “Young children's understanding of society’', em McGurk,


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GARVEY, C. “Play”, em Bruner, J. S., Cole, M. e Lloyd, B. (orgs.).
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PIAGET, J. LeJugement morale chez 1*enfant. Alcan, Paris, 1932.
REYNOLDS, P. “Play, Language and Human Evolution”, em Bru­
ner, J. S. e outros. Play (1976).
SMILANSK1, S. The Effects ofSociodramatic Plav in Disadvantaged
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SMITH, P. e CONNOLLY, K. “Patterns of Play and Social Interac­
tions in Preschool Children", em Blurton-Jones, N. (org.),
Ethological Studies of Child Behaviour (1972).
VIGOTSKI, L. S. El desarrollo de los procesos psicológicos supe­
riores, Cole, M. e Scribner, S. (orgs.). Grijalbo, Barcelona, 1979.
Nota do autor
Biografia das pesquisas

O meu interesse pela psicologia do jogo infantil foi des­


pertado já no começo da década de 30, quando contemplava
minhas filhinhas brincando, e em função das conferências
sobre psicologia infantil que proferia na época. No cerco de
Leningrado, perdi os apontamentos dessas minhas observa­
ções e apenas conservo na memória alguns episódios. Eis
dois deles.
Num certo domingo, tive de ficar sozinho com as minhas
duas filhas em casa. Ambas estavam em idade pré-escolar e
freqüentavam um jardim-de-infancia. Passarmos juntos o do­
mingo era para nós uma festa. Liamos, desenhávamos, fa­
zíamos travessuras. Divertíamo-nos muito e aprontávamos até
a hora do almoço. Preparei-lhes o tradicional mingau de sémo­
la, que elas já não suportavam. Negaram-se redondamente a
comê-lo e nem quiseram sentar-se à mesa.
Como eu não desejava estragar-lhes o humor, obrigando-as
a comer, propus brincarmos de “jardim-de-infancia”. Acei­
taram a idéia com gosto. Vesti um guarda-pó branco e transfor-
mei-mc em educadora; elas puseram seus pequenos aventais para
se converterem em educandas. Começamos a brincar, repetindo o
que se faz nos jardins-de-infancia: desenhamos; depois, fingin-
o que punham seus agasalhos, passeamos, dando duas voltas
2 Psicologia dojogo

ao redor da sala; lemos; e, por fim, chegou a hora do almoço.


Uma das meninas assumiu as funções de empregada e pôs a
mesa. Eu, no meu papel de educadora, ofereci-lhes o mesmo
mingau. Sem o menor protesto, mostrando-se até satisfeitas,
comeram até ver o fundo dos pratos e ainda pediram mais.
Toda a sua conduta denotava um esforço para parecer educan­
das exemplares, sublinhando com sua atitude que me tinham
por "educadora”, aceitando sem reclamar cada palavra minha e
tratando-me com grande respeito. As relações entre filhas e pai
transformaram-se em relações entre educandas e educadora, e
as relações das irmàs, em relações entre educandas. As ações
lúdicas eram sumamente abreviadas c sintetizadas: o jogo du­
rou meia hora no total.
Lembro-me também do jogo de esconde-esconde. As
minhas filhas escondiam-se e eu as procurava. No quarto havia
um cabide com peças de vestuário. Era o lugar ideal para se
esconder. Eu via perfeitamente onde elas se metiam, mas dissi­
mulava; ficava andando pelo quarto e repetia: “Onde estarão as
minhas meninas?” Quando me aproximava do esconderijo,
ouvia o “drama” que se desenrolava atrás das roupas. A menor
esforçava-se por sair: a maior tapava-lhe a boca, sussurrava
“Não faça barulho!” e a segurava. Por fim, a menor, sem poder
suportar a tensão, soltava-se e corria para mim, gritando: “Estou
aqui!” A mais velha saía descontente e declarava que não brin­
caria mais com a irmà, pois esta nâo sabia brincar. Estas obser­
vações ensinaram-me que, enquanto a mais velha via o senti­
do do jogo em cumprir o papel adotado e as regras a ele rela­
cionadas, para a caçula o principal era estar em comunicação
comigo.
As observações fizeram-me supor que no jogo das crianças
em idade pré-escolar o principal é o papel que assumem. No
processo de interpretação do seu papel, a criança transforma
suas ações e a atitude diante da realidade. Nasceu assim a hipó­
tese de que a situação fictícia, em que a criança adota o papel
de outras pessoas, executa suas ações e estabelece suas rela­
Nota do autor. 3

ções típicas nas condições lúdicas peculiares, é o que constitui


a unidade fundamental do jogo. Um aspecto essencial para
criar essa situação lúdica é a transferência do significado de
um objeto para outro. A idéia não é nova. Escreveu J. Sully: “A
essência do jogo infantil consiste na interpretação de algum
papel” e “descobrimos aqui o que talvez constitua a caracterís­
tica mais interessante do jogo infantil: a transformação dos
objetos mais insignificantes e pouco prováveis em verdadeiros
seres vivos” (1901, pp. 47 e 51).
De minhas leituras sobre o tema extraí a conclusão de que
o jogo é entendido, por um lado, como a manifestação de uma
imaginação já desenvolvida e, por outro, de maneira naturalis­
ta (ver K. Groos, W. Stern, K. Bühler e outros). Pareceu-me
que essas opiniões não correspondiam à natureza real do jogo.
Também estranhei que aparecesse tão prematuramente a fun­
ção imaginativa, que é uma das qualidades mais complexas, e
pensei que, pelo contrário, o jogo talvez fosse a atividade em
que surge pela primeira vez a imaginação. Presumi ser igual­
mente errôneo considerar o jogo uma atividade instintiva tanto
nos filhotes de animais quanto nas crianças.
Em fins de 1932, expus as minhas conjeturas aos estudan­
tes e numa conferência no Instituto Pedagógico Herzen de
Leningrado. Os meus critérios foram alvo de uma crítica bas­
tante dura; o único que apoiou as teses fundamentais foi Liev
Semiónovitch Vigotski (que naquela época vinha a Leningrado
realizar conferências e dirigir os cursos de pós-graduação),
com quem eu trabalhava como auxiliar.
Os problemas do jogo infantil interessavam a Vigotski por
se relacionarem com seus trabalhos em psicologia da arte e
seus estudos do desenvolvimento da função significativa.
No início de 1933, Vigotski realizou no Instituto Pedagó­
gico Herzen de Leningrado uma série de conferências sobre
psico ogia do pré-escolar; algumas trataram do jogo. Vigotski
oproblema com a amplitude e a profundidade que lhe eram
nas, apresentando-o como o problema central para enten­
4 Psicologia do jogo

der o desenvolvimento psíquico na idade pré-escolar1. Foi nas


idéias expressas por Vigotski nessas conferências que apoiei
minhas pesquisas posteriores sobre a psicologia do jogo.
Em abril de 1933, em razão de eu ter iniciado as pesquisas,
Vigotski escreveu-me: "... ainda que sucintamente, quero expor-
lhe o que penso sobre todo o assunto. Quanto ao jogo: (a) Cum­
pre planejar novos experimentos, do tipo que mencionei na con­
ferência, em relação à regra do jogo; estude o que expus na con­
ferência e minhas notas, para que, em Leningrado, com poucas
palavras, estabeleçamos clareza entre nós2, (b) Na sua conferên­
cia, prestei atenção ao parágrafo sobre Groos3. Há que criticá-lo
por seu naturalismo: a sua teoria é extremamente naturalista;
mas nesse novo caminho encontramos renovada e enriquecida a
sua idéia de que o jogo é um papel em desenvolvimento, a parte
do papel orientada para o futuro, o que dele resulta; as regras são
escola de vontade (o trabalho do escolar); e a situação fictícia é o
caminho da abstração. A unidade da situação fictícia e da regra
é, de novo, um,problema de Spinoza4. Pelo visto, as etapas do
pensamento são também etapas da vontade (desde o ponto de
vista sistemático sobre a consciência, é compreensível e espera­
do). (c) Que a imaginação nasce no jogo é algo que você expõe
como absolutamente certo, convincente e central por seu signifi­
cado: antes do jogo não há imaginação. Mas acrescente outra
regra mais, a imitação (que, segundo me parece, é tão central e
está igualmente ligada à situação fictícia), e obteremos os prin­
cipais aspectos do jogo; se os esclarecermos adequadamente,
teremos criado uma nova teoria do jogo”.
Os primeiros trabalhos realizados nessa nova direção, ini­
ciados quando Vigotski ainda era vivo, desenrolaram-se a cargo
de Vartchavskaia, que estudou experimentalmente as relações
entre as palavras, o objeto e a ação na atividade lúdica e pré-
lúdica das crianças, e de Guertchenon, que estudou as relações
entre a situação fictícia e a regra do jogo.
Nota do autor. 5

Lamentavelmente, a maior parte dos dados obtidos per­


deu-se durante o cerco a Leningrado; os conservados foram
incluídos nos capítulos respectivos do presente livro.
Depois da morte de L. S. Vigotski, em 1934, conheci de
muito perto o trabalho de pesquisa de um grupo de seus colabo­
radores e discípulos dirigidos por Leóntiev, em Kharkov5. No
começo de 1936, expus a esse grupo, na cátedra de Psicologia do
Instituto Pedagógico de Kharkov, os primeiros dados experi­
mentais e os critérios teóricos sobre o jogo de um grupo de psicó­
logos de Leningrado que trabalhavam sob a minha direção. Dos
integrantes desse grupo mencionarei, sobretudo, Vartchavskaia,
Guerchenon. Konnokova e Frádkina.
Em abril de 1936 escrevia-me Leóntiev: "... as perguntas
que depois do seu informe ficaram sem resposta continuam de
pé, ainda são lembradas e gostaria de, embora com atraso, rei-
terá-las para o futuro.
Dizia você que uma condição para que o jogo se desenvolva
é que suijam tendências irrealizáveis. E isso? Creio que não. As
tendências irrealizáveis também existiram antes, talvez no pri­
meiro momento da vida. A questão é que com os avanços no de­
senvolvimento da fala surge um plano de 'atividade ideal’ (= cons­
ciência). E isso significa o aparecimento da terceira possibilida­
de em relação à alternativa anterior: rcalizável-irrealizávcl, ou
seja, a tendência pode realizar-se no plano do ideal. Em princí­
pio, esse plano requer o apoio no objeto, a ação (real) da situa-
çao. E isso o que confere um caráter peculiar à atividade que de­
pois pode desligar-se da situação e adotar uma forma nova, a
forma de ilusão autística (Nikolenka, em Infância, de Tolstói).
Segundo: por conseguinte, o fundamental no jogo é a 'si­
tuação fictícia'. Por isso, cumpre investigar a relação interna:
situação fictícia-assimilação das relações sociais. Seria possí-
ve supor e mostrar que as relações sociais criam um plano ideal
que, uma vez criado, por meio dele as relações sociais se in­
corporam à ação?
6 Psicologia do jogo

Por último: é claro que nào se pode afirmar que forças pro­
pulsoras originam o jogo sem ter compreendido a sua pré-histó-
ria. Neste caso, se aceitamos o primeiro, também fica claro que
a pré-história é o fcjogo’ até os três anos de idade. Realiza igual­
mente uma tendência: mas, à semelhança de ktudo o que nào é
jogo’, unicamente na alternativa mais ou menos; quer dizer, aos
três anos de idade aparece uma nova forma de realização dessas
tendências no jogo propriamente dito, ou seja, no jogo humano
(no jogo que só é possível nas condições da psique = consciên­
cia de tipo humano). Mas aí está a questão.
Isso talvez seja o principal do que me ficou na cabeça
depois do seu ‘jogo\ as perguntas que com o tempo ficaram
como uma cadeia dc indagações”.
As idéias de Leóntiev sobre a necessidade de estudar os
nexos internos entre a assimilação das relações sociais e a
situação fictícia e, segundo, sobre a importância de se investi­
gar a pré-história do jogo para compreender a sua natureza
influíram muito nos estudos subseqüentes.
Desde então, a partir de 1936, o meu trabalho de pesquisa
esteve vinculado muito estreitamente, no aspecto ideológico,
ao dc Leóntiev e seus colaboradores, e desde 1938, no aspecto
de organização, também à cátcdra dc psicologia do Instituto
Pedagógico Krúpskaia. de Leningrado, dirigido por Leóntiev, e
onde trabalhamos juntos. Nesse período relativamente curto
(1937-1941), Lúkov realizou em Kharkov uma importante pes­
quisa experimental, “Sobre a compreensão da fala pela criança
no processo de jogo” (1937); e em Leningrado, Frádkina pes­
quisou a “Psicologia do jogo na primeira infancia: raízes gené­
ticas do jogo de papéis” (1946). Nos anos imediatamente ante­
riores à guerra, as pesquisas na nova direção não passaram daí.
A primeira vez que se fez menção na imprensa sobre todas
essas pesquisas foi no artigo de Leóntiev, “Fundamentos psico­
lógicos do jogo pré-escolar” (1944), o qual consiste num breve
esboço de nosso enfoque do problema e numa síntese dos fatos
reunidos desde então.
Nota do autor 7

A Grande Guerra Pátria interrompeu nossas pesquisas so­


bre a psicologia do jogo infantil. Depois da guerra, os estudos
foram retomados em Moscou, principalmente no Instituto de
Psicologia.
Sob a direção de Leóntiev e Zaporozhets, uma série de im­
portantes pesquisas experimentais, que ampliaram a nossa vi­
são de mundo, foi realizada por Slávina (1948), Manuilenko
(1948), Nevérovitch (1948), Tcherkov (1949) e Boguslávskaia
(1955). A minha colaboração para as pesquisas anteriores a
1953 limitou-se a conferências e publicações (1948, 1949) e
somente em 1953 pude retomar o trabalho experimental e teó­
rico sobre esse problema. O meu principal propósito era, em
primeiro lugar, elucidar a origem histórica do jogo infantil; em
segundo, descobrir o fundo social do jogo como principal tipo
de atividade das crianças pequenas; em terceiro, o problema do
simbolismo e a relação entre o objeto, a palavra e a ação no
jogo; e, por último, expor questões teóricas gerais e realizar
uma análise crítica das teorias do jogo existentes.
Considerei conveniente oferecer este breve esboço do
desenvolvimento das nossas pesquisas sobre a psicologia do jogo
infantil para mostrar que um numeroso grupo de pesquisa­
dores contribuiu para o estudo desse problema e para uma nova
teoria psicológica do jogo infantil. A nossa participação direta
está unicamente relacionada com as etapas iniciais e finais
desse caminho.
É claro que a teoria psicológica do jogo infantil, desde os
trabalhos de Vigotski até os nossos dias, foi elaborada em ínti­
ma relação com as pesquisas sobre problemas de psicologia
geral e sobre a teoria do desenvolvimento psicológico da crian­
ça. As pesquisas teóricas e experimentais de Leóntiev, sobretu­
do, e de Zaporozhets e Galperin passaram a constituir parte
orgamea das pesquisas sobre a psicologia do jogo.
Cada novo progresso na teoria geral obriga-nos a rever as
nossas opiniões sobre o jogo, a procurar novos fatos e a ofere­
cer novas hipóteses.
8 Psicologia do jogo

Uma peculiaridade muito importante das pesquisas da psi­


cologia do jogo infantil realizadas pelos seguidores de Vigotski
foi que não estiveram dirigidas por uma só vontade e uma úni­
ca mente, nem por um único centro organizador, e, por isso,
nâo tiveram uma continuidade lógica que permitisse a resolu­
ção dos problemas um após outro no campo inexplorado do jo­
go infantil. Apesar dc tudo, foi um trabalho coletivo, que tinha
como norte os princípios teóricos traçados por Vigotski e para
o qual cada um de nós deu sua contribuição. E claro que, em
virtude de uma certa dispersão nas pesquisas teóricas e experi­
mentais, estas não englobam todos os problemas e ainda res­
tam muitas “lacunas”.
O que esse trabalho coletivo proporcionou de novo para a
psicologia do jogo infantil pode resumir-se em várias teses: (1)
avançou a hipótese sobre a origem histórica da forma de jogo
típica do pré-escolar contemporâneo e demonstrou em teoria
que o jogo de papéis é de origem social e, por conseqüência, o
seu fundo também é social; (2) explicou as condições em que
apareceu essa forma de jogo na ontogenia e demonstrou que, no
final da idade pré-escolar, o jogo não surge de maneira espon­
tânea, mas devido à educação; (3) sublinhou a unidade funda­
mental do jogo, explicou a sua estrutura psicológica interna e
analisou o seu desenvolvimento e divisão; (4) esclareceu que
no jogo da idade pré-escolar influem, sobretudo, o âmbito das
atividades humanas e as relações entre as pessoas, e que o seu
conteúdo fundamental é o homem - a atividade do homem e as
relações entre os adultos -, em virtude do que o jogo é uma
forma de orientar nas missões e motivações da atividade huma­
na; (5) demonstrou que a técnica do jogo, a transposição das
significações, a abreviação e a síntese das ações lúdicas consti­
tuem a condição mais importante para que a criança penetre no
âmbito das relações sociais e as modele de forma peculiar na
atividade lúdica às relações reais que as crianças estabelecem
no jogo e praticam em suas ações coletivas; (6) revelou as fun­
ções do jogo no desenvolvimento psíquico dos pré-escolares.
Nota do autor. 9

Esta enumeração tem presentes tanto os novos fatos expe­


rimentais quanto as sínteses teóricas e as hipóteses que acom­
panham toda pesquisa.
Consciente da natureza limitada dos trabalhos sobre psi­
cologia do jogo infantil e, além disso, ocupado nestes últimos
anos com outros problemas da psicologia infantil, tardei muito
em decidir escrever este livro. Só pela insistência de meus cole­
gas, em primeiro lugar, de Galperin, Zaporozhets e Leóntiev,
empreendi este trabalho.
Nunca há uma correspondência completa entre a pesquisa
e a exposição de seus resultados. Este livro nào reflete em sua
estrutura nem a história nem a lógica de nossas investigações.
Está escrito em ordem inversa à seguida pela pesquisa. Co­
meça pelos capítulos em que expomos a nossa interpretação da
forma evidenciada de atividade lúdica das crianças, o fundo
social e a natureza psicológica dessa atividade, interpretação
que fomos aperfeiçoando ao longo de todo o trabalho e só no
final sintetizamos.
Depois de explicar de maneira muito geral a nossa visão
do jogo como forma peculiar da atividade infantil, cujo objeto
é o adulto - sua atividade e o sistema de suas relações com as
outras pessoas acreditamos ser necessário proceder a uma
análise crítica e histórica das teorias fundamentais do jogo. A
isto se dedica o terceiro capítulo do livro, cujo objetivo princi­
pal é revelar a inconsistência do enfoque naturalista do jogo,
predominante nas principais teorias propostas em outros paí­
ses, contrapondo-lhe o enfoque sócio-histórico da origem e
desenvolvimento do jogo humano, sem o qual tampouco se
pode compreender a sua natureza psicológica. A análise crítica
das teorias do jogo forma parte orgânica do nosso trabalho de
psicologia do jogo. A necessidade desse esboço crítico e histó-
nco impunha-se também porque, em tudo o que se escreveu na
niao Soviética a respeito, nunca se expôs com certa extensão
a istória do desenvolvimento das opiniões sobre o jogo e sua
analise. Como este livro é dirigido não só a especialistas da
10 Psicologia dojogo
psicologia do jogo, mas a um círculo mais vasto de leitores,
ampliei a exposição das diversas teorias.
Os três capítulos iniciais constituem a primeira parte do
livro (que, convencionalmente, poderia denominar-se teórica).
A segunda parte contém dados experimentais, que revelam
como surge o jogo durante a evolução individual da criança
(capítulo 4); o desenvolvimento das componentes estruturais
básicas da atividade lúdica e a mudança dc suas correlações no
processo de desenvolvimento (capítulo 5) e, por último, a im­
portância do jogo para o desenvolvimento psíquico (capítulo 6).
Nesses capítulos utilizaram-se dados das pesquisas experimen­
tais realizadas com base nas idéias formuladas há mais de 40
anos pelo notável psicólogo soviético Vigotski. Os dados expe­
rimentais desses capítulos foram sendo reunidos antes de nossa
concepção de jogo tomar corpo definitivamente. Eles constituí­
ram a base sobre a qual se formaram os nossos critérios teóricos.
Estamos muito longe de crer que chegamos ao fundo da
natureza psicológica do jogo. Com este livro gostaríamos de
dar a nossa modesta contribuição para o estudo dos problemas
da psicologia do jogo, que despertam cada dia mais interesse.
Não se trata de um livro de texto nem de um manual. Por isso
não nos ativemos a uma lógica demasiado rígida na exposição
de nossas idéias. Permitimo-nos expor algumas hipóteses, su­
posições e até mesmo conjeturas cuja verificação é matéria de
futuros trabalhos.
Moscou, janeiro de 1977
Capítula 1
O objeto das pesquisas é a forma
da atividade lúdica das crianças

1. A palavra “jogo”. O jogo e as formas iniciais de arte


Os vocábulos “jogo” e “jogar” possuem muitas acepções.
A palavra “jogo” emprega-se com o significado de entreteni­
mento ou diversão. “Jogar" significa divertir-se; também se
emprega no sentido figurado de manejar com habilidade:
“jogar com os sentimentos de alguém”; ou de conduzir-se com
lisura e honestidade: “jogar limpo”; correr um risco: “jogar
com a própria vida"; tratar um assunto sério com leviandade:
“jogar com o fogo”; arremessar em alguma direção: “jogar
pedras”; combinar: “jogo de luzes”, “jogo de sofás” ctc. Os
dicionários fazem distinção entre o sentido direto (fundamen­
tal) e o figurado de tais expressões, embora a diferença não
apareça com suficiente clareza. Por que razão, por exemplo, na
expressão “jogar na Bolsa” (dedicar-se a especulações bolsis­
tas) a palavra “jogar” tem sentido figurado e na expressão
jogar bridge” tem sentido direto?
E difícil saber que espécie de atividades e suas caracterís­
ticas o significado inicial dessas locuções abrangia e como
foram adquirindo novos sentidos.
A primeira descrição sistemática dos jogos infantis na
ússia pertence a Petróvski. O seu livro dedicado aos jogos
12 Psicologia do jogo

infantis começa assim: “O conceito de 'jogo’ apresenta algu­


mas diferenças entre os diversos povos. Assim, para os antigos
gregos, a locução ‘jogo1 significava as ações próprias das
crianças e expressava o que entre nós se denomina hoje ‘fazer
traquinices\ Entre os judeus, a palavra ‘jogo’ correspondia ao
conceito de gracejo e riso. Para os romanos, Mudo’ significava
alegria, regozijo, festa buliçosa. Em sânscrito, ‘kliada’ era
brincadeira, alegria. Entre os germanos, a palavra arcaica 'spi-
lan’ definia um movimento ligeiro e suave como o do pêndulo
que produzia um grande prazer. Posteriormente, a palavra
kjogo’ começou a significar em todas essas línguas um grupo
numeroso de ações humanas que não requerem trabalho árduo
e proporcionam alegria e satisfação. Assim, nesse amplo círcu­
lo, adequado aos conceitos modernos, começou a entrar tudo,
desde o jogo pueril com soldadinhos de chumbo até a represen­
tação trágica no palco dos teatros, desde o jogo infantil com
bolas de gude até o jogo de Bolsa para ganhar dinheiro etc.”
(1887, p. 1.)
Cinqüenta anos depois, o ilustre biólogo e psicólogo ho­
landês Buytendijk (1933) ofereceu também uma análise etimo­
lógica da palavra “jogo” e procurou deduzir os traços caracte­
rísticos dos processos por ela definidos. Entre esses traços en­
controu o movimento “de vaivém” (hind und her bewegung), a
espontaneidade e a liberdade, a alegria e o espairecimento.
Não satisfeito com isso, Buytendijk exortou os investigadores
do fenômeno do jogo a fixarem-se no emprego que as próprias
crianças dão à palavra, opinando que elas distinguem muito
bem o que é jogo e o que não merece essa designação.
Claro que não existe nenhuma investigação etimológica
que permita compreender as características do jogo simples­
mente porque a história da metonímia transcorre segundo leis
específicas, entre as quais a transposição dos significados
ocupa um lugar importante. O jogo tampouco pode ser explica­
do analisando o uso que as crianças fazem dessa palavra, por­
quanto a tomam simplesmente da linguagem dos adultos.
0 objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

A palavra “jogo” não é um conceito científico stricto


sensu. É possível que por isso mesmo alguns pesquisadores pro­
curassem encontrar algo de comum entre as ações mais diver­
sas e de diferente aspecto denominadas com a palavra “jogo”;
não temos, até hoje, uma delimitação satisfatória dessas ativida­
des e uma explicação, também satisfatória, das diferentes for­
mas de jogo. J. Kollarits (1940) chegou à dedução pessimista
de que não são possíveis uma definição e uma delimitação exa­
tas do jogo na vasta esfera de atividades do homem e dos ani­
mais, e de que toda busca dessas definições deve ser qualificada
de “jogos científicos” (jeux scientifiques) dos próprios autores.
A renúncia à possibilidade dc criar uma teoria geral do jogo e,
por conseguinte, de conhecer sua natureza geral estendia-se ao
jogo infantil. Essa é uma das causas pelas quais, em muitos
manuais norte-americanos de psicologia, não se trata em geral
da psicologia do jogo. Nem mesmo no compêndio de psicolo­
gia infantil editado sob a direção de Mussen (Manual o f Child
Psychology, 1972 ), no qual consta uma relação dos estudos pu­
blicados em diversos países em todas as áreas da psicologia
infantil, existe uma síntese das pesquisas sobre o jogo infantil,
de que só se fala quatro vezes.
Gallusser oferece uma relação das pesquisas sobre o jogo
na primeira metade do nosso século1. Referindo-se à relação
entre as teorias biológicas e psicológicas do jogo infantil, esse
autor assinala que as dificuldades para encontrar uma defini­
ção e, inclusive, uma descrição do jogo, aplicável a todos os fe­
nômenos tidos por lúdicos, assim como as dificuldades para
desenvolver com êxito as teorias escolhidas, talvez expliquem
por que a maioria dos livros de psicologia e dos trabalhos expe­
rimentais está mais orientada para as observações empíricas do
qi,e para um trabalho teórico.
Os dados etnográficos dos jogos contêm alguns pontos de
partida que podem ajudar a compreender a essência psicológi-
ca 0 jogo. É óbvio que, como elemento da cultura, o jogo des­
pertou o interesse de etnógrafos e filósofos dedicados ao estu­
do de problemas de estética.
14 Psicologia do jogo

O começo do estudo da teoria do jogo costuma estar asso­


ciado aos nomes de Schiller, Spencer e Wundt. Na exposição
de suas concepções filosóficas, psicológicas e, principalmen­
te, estéticas, esses pensadores do século XIX trataram de pas­
sagem o jogo como um dos fenômenos mais difundidos da vi­
da, ligando sua origem à da arte.
Eis algumas dessas manifestações.
Schiller, em suas cartas sobre a educação estética do
homem, escreveu: “É certo que a natureza também dotou os
seres irracionais de certas qualidades acima de suas necessida­
des e projetou sobre a obscura vida animal uma centelha de
liberdade. Quando o leão não está atormentado pela fome, nem
sente necessidade de lutar, ele faz de sua energia ociosa um
objetivo em si; enche com seu potente rugido o ressonante de­
serto e deleita-se em consumir tolamente sua pletora de ener­
gia. O inseto revoluteia à luz do sol, desfrutando da vida, e no
melodioso canto dos pássaros nào distinguimos as notas de
paixão. É indubitável que nessas ações vemos liberdade, mas
nào a de sentirem-se livres da necessidade em geral, senão de
uma necessidade determinada, a necessidade externa. O ani­
mal trabalha quando precisa de algo, e brinca quando transbor­
da de energia” (1935, p. 287).
Essa é a teoria que, em resumo, costuma denominar-se do
excesso de energias. Na realidade, como se depreende da cita­
ção, essa denominação não coincide totalmente com as opi­
niões de Schiller. Para ele, o jogo é sobretudo um prazer rela­
cionado com a manifestação do excesso de energia: “Esque­
matizado, o objeto que instiga a jogar pode ser denominado
imagem viva, conceito que serve para significar todas as pro­
priedades estéticas do fenômeno; em suma, tudo o que no sen­
tido mais alto da palavra se chama beleza” (ibid., p. 242).
Para Schiller, o jogo é atividade estética. O excesso de
energia é apenas uma condição da existência do prazer estético
que, segundo ele, o jogo proporciona.
0 objeto das pesquisas é a forma da atividade lúdica das crianças 15

A noçào de prazer, introduzida por Schiller como traço


constitutivo tanto da atividade estética quanto do jogo, influiu
no estudo ulterior dos problemas do jogo.
Spencer também não concedeu demasiado espaço ao jogo
nem se dedicou especialmente a criar uma teoria do jogo. A
sua atenção a esse fenômeno, tal como no caso de Schiller, é
determinada por seu interesse pela natureza do prazer estético.
Mas Spencer situa o problema do excesso de energia de que
fala Schiller num contexto evolutivo biológico mais amplo.
Spencer expõe suas opiniões sobre o jogo nos seguintes ter­
mos: “Há um traço comum que vincula as chamadas atividades
lúdicas às atividades estéticas, e é que nem umas nem outras
intervêm diretamente nos processos vitais” (1897, p. 413).
Ao indagar a procedência do impulso para o jogo, Spencer
expõe a sua chamada teoria do excesso de energia. E escreve:
“As espécies animais inferiores possuem a característica geral
de que consomem todas as suas energias em funções de impor­
tância vital. Andam sempre buscando comida, fugindo de seus
inimigos, construindo ninhos e proporcionando teto e sustento
à sua prole. Mas à medida que subimos na escala animal para
tipos superiores, que possuem qualidades mais eficientes ou
virtuais, e mais variadas também, vemos que não empregam o
tempo todo nem toda a sua energia em satisfazer suas necessi­
dades diretas. Uma alimentação melhor, conseqüência de uma
organização superior, proporciona-lhes por vezes um excesso
de energia... Dessa maneira, o problema que se apresenta entre
os animais mais desenvolvidos é que a energia requerida em
alguns casos excede com freqüência as necessidades imedia­
tas; e o excesso de energia resultante permite freqüentemente,
de uma ou outra forma, recuperar durante o repouso o seu con­
sumo e adequá-la à alta eficiência ou virtualidade” (1897, pp.
13-14). E mais adiante: “O jogo é uma inversão artificial da
nergia que, por não ter aplicação natural, fica tão disponível
Para a ação que procura saída em atividades supérfluas, na falta
de autênticas” (ibid., p. 4 15).
16 Psicologia dojogo

Para Spencer, a única diferença entre jogo e atividade esté­


tica está em que no primeiro manifestam-se as aptidões infe­
riores e na segunda as superiores.
Nenhuma das declarações acima citadas era uma exposi­
ção sistematizada da teoria do jogo nem ia além de estabelecer
a tradição de ver a natureza do jogo no contexto do surgimento
da atividade estética.
Quem esteve mais perto de chegar à origem do jogo foi
Wundt, se bem que também ele optasse por considerá-lo um
prazer. Suas idéias são igualmente fragmentárias. “O jogo
nasce do trabalho - escreveu. Não há um só jogo que não tenha
o seu protótipo numa forma de trabalho sério que sempre o
precedeu no tempo e na própria existência. A necessidade de
subsistir obriga o homem a trabalhar. E no trabalho vai apren­
dendo a considerar a aplicação de sua própria energia como
fonte de gozo.” Prossegue Wundt: “O jogo suprime, além disso,
a finalidade útil do trabalho e, por conseguinte, faz com que a
meta seja esse agradabilíssimo resultado que acompanha o tra­
balho” (1887, p. 181).
Wundt também assinala a possibilidade de separar os
métodos de ação do objeto de trabalho e as condições materiais
e objetivas concretas cm que transcorre o trabalho. Essas idéias
de Wundt são de cardeal importância. Ao estudar o jogo do
homem, Wundt incluía-o na esfera sócio-histórica, e Spencer
incluía nessa esfera tanto o do homem quanto o dos animais.
As bases da concepção materialista da arte originada no tra­
balho, estabelecidas por Karl Marx, foram desenvolvidas por
Plekhánov, que, ao criticar as teorias de que a arte é anterior à
produção de objetos úteis, e o jogo anterior ao trabalho, escreveu
em suas Cartas sem destinatário: “Pois assim é, caro senhor,
estou firmemente convencido de que não entenderemos nada da
história da arte primitiva se não nos compenetrarmos da idéia de
que o trabalho é anterior à arte e de que o homem, em geral, olha
primeiro para os objetos e fenômenos do ponto de vista utilitário
e só depois estético” (1958, p. 354).
0 objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças 17

Estas proposições são importantes para compreender não


só a origem da arte, mas também a do jogo, como tipos de ati­
vidade com uma base genética comum. Na história da humani­
dade, o jogo não pode aparecer antes do trabalho nem da arte,
mesmo em suas formas mais primitivas. A história da civiliza­
ção registra em que etapa do seu desenvolvimento aparece a
arte. Entretanto, ainda hoje não se distingue claramente como
se produziu a passagem das formas de trabalho concreto para
as da arte. Em que condições surgiu a necessidade de reprodu­
zir o processo da caça, a guerra ou outra atividade séria? Ca­
bem aqui duas suposições. Ilustrá-las-ei tomando como exem­
plo a reprodução do processo da caça.
Podemos imaginar que um grupo de caçadores regressou
de uma caçada infrutífera. O fracasso foi devido à discordância
nas ações coletivas. Para garantir o êxito, faz-se necessário um
ensaio prévio, uma orientação sobre as condições e a organiza­
ção da próxima expedição. O homem ainda não está capacitado
para realizar um ensaio mental e esquemático: os participantes
da projetada caçada reconstituem de modo prático e concreto a
situação e a organização da futura expedição. Um dos caçado­
res representa o astuto animal e imita-lhe os gestos; os demais,
o processo de organização da caça. Trata-se de uma espécie de
“manobra” em que se reconstroem as missões fundamentais de
cada um dos participantes das ações conjuntas. Esse ensaio
geral da próxima caçada não possui determinadas característi­
cas da caçada propriamente dita, sobretudo no aspecto técnico-
operativo do processo autêntico.
Também é possível outra situação. Os caçadores regres­
sam com a presa. A tribo recebe-os com júbilo e os caçadores
escrevem como transcorreu a caça, reproduzindo seu anda­
mento e o comportamento de cada caçador. A narração teatra-
culmina em festança geral. Com uma reconstituição tão
os membros da tribo abstracm-se do mero aspecto
°rganiz'°'era^VO C tra(*arn um escluema geral das ações, da
d in iu ^ ^ 0*e^ ° s*stema relaÇÕes que levaram o empreen-
18 Psicologia do jogo

Do ponto de vista psicológico, o essencial é que do con­


junto da atividade de trabalho (utilitária) se separa uma parte que
pode ser denominada orientadora, distinta da executiva, direta­
mente relacionada com o resultado material. Em ambos os ca­
sos, ao separar-se do processo geral, essa parte da atividade de
trabalho converte-se em objeto de reconstrução e logo se con­
sagra e se transforma num rito mágico. Esses “ensaios mágicos”
adquirem autonomia própria.
Essas atividades especiais, uma vez separadas, relacio­
nam-se com outras formas de vida e adquirem uma lógica de
desenvolvimento própria e, com freqüência, novas formas,
cuja origem exigiria estudos especiais.
Os etnógrafos descrevem e analisam essas formas de ati­
vidade, de caráter lúdico. Assim, o livro Os jogos dos povos
da URSS descreve numerosos jogos populares que na época
czarista praticavam os russos e outras etnias. Os autores divi­
dem os jogos em três grupos: dramáticos, ornamentais c espor­
tivos. Os jogos dramáticos subdividem-se em laborais (caça,
pesca, pecuária, avicultura e agricultura) e cotidianos (sociais e
familiares); os esportivos subdividem-se em competições sim­
ples c competições com objetos.
Analisando os dados desse livro, V. Vsevolodski-Guern-
gross chega à conclusão, no prefácio, de que os fenómenos
lúdicos de diferentes tipos conservam certa semelhança. As­
sim, descreve: “Tomemos o primeiro exemplo que nos ocorre,
o jogo de marra. Nos primeiros lances, um jogador tem de pegar
o adversário. Em outro jogo. o perseguido tem seu ‘pique’, onde
pode refugiar-se da perseguição, ou o jogo da cabra-cega, no qual
o perseguidor captura de olhos vendados. Depois estão o s jogos
de esconde-esconde, em que os aprisionados se convertem em
auxiliares daquele que os aprisionou. Em seguida, vêm as captu­
ras por turmas, com duas ‘cidades’ delimitadas, em que é ven­
cedora a turma que ocupar a cidade ‘inimiga’, o jogo de polícia-c-
ladrão ou de mocinho-e-bandido etc. E, por último, o jogo da
guerra, que, com freqüênciá, se baseia nas táticas usadas pelos
0 objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

contendores no jogo de marra. Trata-se, sem dúvida, de uma sé­


rie de jogos afins; nos extremos estão: de uma parte, a marra; de
outra, o jogo da guerra; e no meio, um jogo que vai pouco a pouco
ficando cada vez mais complicado ou, pelo contrário, se partir­
mos do jogo da guerra para o esconde-esconde, uma série sim­
plificada'(1933, p. XVI).
“Resumindo - prossegue o autor dir-se-ia que ou os
jogos esportivos e ornamentais são produto da degeneração
dos jogos dramáticos, ou os jogos dramáticos são conseqüên­
cia do desenvolvimento dos jogos esportivos e ornamentais.
Dai, já por necessidade, chegamos à conclusão de que os três
tipos de fenômenos, apesar de suas diferenças específicas,
podem e devem catalogar-se no âmbito de uma mesma prática
social, embora com indubitável tendência para converter-se em
fenômenos de outra prática social: o teatro, o esporte e a dança,
que procedem dos fenômenos lúdicos e os substituem nos
graus superiores de cultura.” (1933, p. XVII.)
Parece-nos que o verdadeiro curso evolutivo vai dos jogos
dramáticos para os esportivos e não o inverso. Ao serem repeti­
das uma infinidade de vezes na atividade coletiva real, foram
se destacando paulatinamente as regras das relações humanas
que levavam ao êxito. A sua reconstituição sem fins utilitários
reais forma o conteúdo do jogo esportivo. Mas o jogo de papéis
também tem esse mesmo conteúdo. Aí está a sua semelhança.
A diterença reside unicamente em que essas regras ou normas
das relações entre as pessoas aparecem de maneira mais ampla
e concreta no jogo de papéis.
Assim, chegamos à conclusão de que o jogo é uma ativi-
a, e em que se reconstroem, sem fins utilitários diretos, as
s sociais. A nossa definição prévia e geral aproxima-se,
‘‘Chanv na° . se-*a *dêntica, da de Vsevolodski-Guerngross:
te *m^mosj°8° a uma variedade dc prática social que consis-
quer , ^ r dUZÍrem a^ 0, Cm ^artC ° U na SUa tota*‘^ac^e' °lua*"
Spnomeno da vida à margem do seu propósito prático real:
Psicologia do jogo

a importância social do jogo deve-se à sua função de treina­


mento do homem nas fases iniciais do seu desenvolvimento,
assim como ao seu papel coletivizador” (ibid., p. XXIII).
Tornemos mais precisa essa definição. Em primeiro lugar,
em vez de “reproduzir”, é preferível empregar “reconstruir”;
em segundo, nem toda reconstrução, nem a reconstrução de
qualquer fenômeno da vida é jogo. No homem, é jogo a recons­
trução de uma atividade que destaque o seu conteúdo social,
humano: as suas tarefas e as normas das relações sociais.
Vista assim a forma desenvolvida do jogo, fica possível
compreender a sua afinidade com a arte, cujo conteúdo abrange,
além disso, o sentido e as motivações da vida. A arte é julga­
mento nosso, a interpretação com meios estéticos peculiares des­
ses aspectos da vida e atividade humana, a apresentação desses
aspectos às pessoas para fazê-las viver esses problemas, aceitar
ou rechaçar a interpretação que o artista dá do sentido da vida.
Deve-se precisamente a essa afinidade do jogo e da arte
que as diversas formas de arte desalojem pouco a pouco da
vida adulta as formas evoluídas de atividade lúdica. Escreve
Vsevolodski-Guerngross: “O significado de treinador e de
educador dos jogos dramáticos só está claro nos graus mais
recuados do desenvolvimento do indivíduo. Os jogos dramáti­
cos não podem competir com o drama, ideologicamente satu­
rado, e quando existe o teatro, extinguem-se ineludivclmente”
(1933, p. XXVII). Na opinião desse autor, os jogos esportivos
têm sorte análoga: “Num certo nível cultural, os jogos esporti­
vos têm imenso valor educacional e só com a passagem para os
níveis superiores da cultura eles degeneram, esquematizam- se,
racionalizam-se e convertem-se em esporte" (ibid., p. XLIX). J
Com base em dados etnográficos, chegamos à c o n c lu s ã o
de que na sociedade moderna dos adultos não existem formas
evoluídas de jogo: elas foram desalojadas e substituídas pe»aS
diferentes formas de arte, por um lado: e pelo esporte, por outro.
O jogo na forma evoluída de jogo de papéis, que é u m a da?
formas fundamentais da vida da criança contemporânea, P®*f
0 objeto das pesquisas è aforma da atividade lúdica das crianças 21

siste na infância. Neste ponto, não podemos admitir a idéia de


Vsevolodski-Guemgross de que “nas culturas superiores, em
que a pedagogia como tal constitui-se num tipo especial da práti­
ca social, o indivíduo - adulto ou criança - recebe os hábitos
necessários ao seu ulterior desenvolvimento por meio do ensino
escolar de maneira muito mais racional, em prazo muito mais
breve e num grau muito mais elevado. A importância pedagógi­
ca e didática do jogo decai” (1933, p. X VIII).
Se a funçào estritamente didática do jogo diminui, isso
nào significa, em absoluto, uma diminuição da sua importân­
cia na formação da personalidade da criança, sobretudo nos
primeiros anos de vida, antes de ingressar na escola. Na verda­
de, é o contrário que ocorre: à medida que as crianças de idade
menor vão se afastando da atividade conjunta com os adultos,
aumenta a importância para o desenvolvimento da criança das
formas mais evoluídas do jogo de papéis.
A diminuição, ao longo da história, da importância das
formas evoluídas de atividade lúdica na vida dos adultos e seu
aumento na vida das crianças sugeriu-nos a idéia de pesquisar
primeiro essas formas de jogo, ainda mais porque todos os auto­
res concordam que essa forma de atividade infantil é o jogo
propriamente dito.
O objeto de nossa pesquisa é a natureza c o conteúdo do
jogo de papéis, a psicologia dessa forma evoluída da atividade
lúdica, sua origem, seu desenvolvimento e decadência, sua impor­
tância para a vida e o desenvolvimento da criança como futura
personalidade.

•Unidadefundamental da forma evoluída de atividade lúdica.


Natureza lúdica. Natureza social do jogo de papéis
fa , ° Ucos são os especialistas em psicologia infantil que não
/•, Jl,am Pro^ ema do jogo nem opinaram sobre sua nature-
l^scendencia. Nào obstante, as pesquisas específicas desse
22 Psicologia do jogo

problema sào muito escassas, apesar de a atividade lúdica


empregar-se muito com fins práticos. Está muito divulgada a
“ludoterapia”, na qual se utilizam formas evoluídas de ativida­
de lúdica para corrigir diversas anomalias da conduta infantil
(inadaptabilidade, agressividade, acanhamento etc.) e tratar
patologias psíquicas.
Piaget (1945), em sua obra, fundamentada na formação do
símbolo na criança, nào estuda a forma evoluída do jogo de
papéis. Piaget detém-se na entrada, investiga algumas premis­
sas de sua manifestação, mas não segue adiante. Isso se deve
provavelmente ao fato de que, mais do que o jogo em si, inte-
ressava-lhe como nasce na criança a idéia simbólica. Piaget
levou sua análise até os 4 anos, a idade em que o jogo de papéis
atinge o seu auge, e passa em seguida aos jogos com regras,
que aparecem depois dos 7 anos.
Em 1972, Bruner e seus colaboradores publicaram uma
grande antologia sobre o jogo. Muitos artigos do livro tratam
da atividade lúdica manipuladora dos símios superiores e infe­
riores; bem menos são os que investigam o jogo infantil com
manipulação de objetos e pouquíssimos os que se ocupam dos
jogos com regras e da forma evoluída do jogo de papéis. Um
dos artigos (Vigotski, “O jogo e sua função no desenvolvimen­
to psíquico da criança”) estava dedicado especialmente ao jogo
protagonizado. Parece-nos que a proporção das pesquisas no
referido compêndio reflete a situação geral das pesquisas sobre
o jogo, que talvez se deva às dificuldades para o estudo experi­
mental do jogo dc papéis.
A psicologia empírica estuda o jogo e outros tipos de ativi­
dade e a consciência em sua totalidade, preferentemente do
ponto de vista analítico-fiincional, e conceitua o jogo como ma­
nifestação de uma psique madura. Alguns (Utchinski na R ú ssia ,
Sully, Ch. Bíihler e Stern em outros países) viam no jogo uma
manifestação da imaginação ou da fantasia posta em m ovi­
mento por diversas tendências afetivas; outros (Sikórski na
O objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças 23

Rússia e Dewey nos Estados Unidos) relacionavam o jogo com


o desenvolvimento do pensamento.
Claro que toda atividade, e o jogo nào é exceção, pode
decompor-se numa soma de faculdades: percepção + memória
-f* pensamento + imaginação; talvez seja possível, inclusive,
determinar com certo grau de precisão o peso de cada um des­
ses processos nas diversas etapas de desenvolvimento de um
ou outro jogo. Nào obstante, decomposto em elementos, o jogo
perde totalmente a sua originalidade qualitativa como ativida­
de peculiar da criança, como forma especial de sua vida e de
sua vinculação à realidade circundante.
Mesmo que se encontrassem os meios para determinar
com suficiente exatidão o peso de cada processo psíquico em
cada tipo de atividade e demonstrar assim que nos diversos
tipos de atividade a proporção desses processos é diferente,
tampouco teríamos conseguido compreender a natureza e a
originalidade qualitativa de cada um desses tipos de atividade
e, em particular, da natureza do jogo.
O conceito do jogo como expressão da capacidade relati­
vamente madura da imaginação deu lugar a uma identificação
do jogo com a imaginação, a considerá-lo uma forma de a crian­
ça distanciar-se da realidade, um mundo fechado e particular
da ilusào autística infantil relacionado com suas inclinações
profundas.
Em oposição a essa análise desintegradora do todo em
seus elementos, Karl Marx, ao estudar o modo de produção
capitalista, oferece-nos uma análise que poderíamos qualificar
de desagregadora das unidades. Marx inicia O capital com o
capítulo ‘A mercadoria”2. A mercadoria era para Marx a uni-
a L em cuja forma desenvolvida aparecem todas as peculiari-
3 C?.e contradições internas do modo capitalista de produção,
to fo' I^°tS.*C*’30 invest*gar os problemas da fala e do pensamen-
dor d* °?!*lme*ro a aP'*car cm psicologia o método desagrega­
do prod° ° 1 nten(*emos Por unidade" - escreveu Vigotski -
jí . O da análise que, diferente dos elementos, possui todas
24 Psicologia do jogo

as propriedades fundamentais do todo, propriedades que são,


inclusive, partes vivas e indivisíveis dessa unidade.
A psicologia, que se dispõe a estudar as unidades comple­
xas, deve compreendê-lo. Deve substituir o método desintegra-
dor em elementos pelo analítico, que divide em unidades. Deve
encontrar essas propriedades indivisíveis e conservadoras, ine­
rentes ao todo, como a unidade e o singular, em que as ditas
propriedades aparecem invertidas e, mediante essa análise,
tentar resolver... os problemas concretos” (1956, p. 48). Acre­
ditamos ser esse o único método a aplicar no estudo do jogo.
Só ele permite estudar o surgimento, desenvolvimento e declí­
nio dojogo.
Como encontrar essa unidade do jogo, que já nào se divide
mais, que conserva as propriedades do todo? Unicamente exa­
minando a forma evoluída do jogo de papéis, tal como se nos
apresenta na metade da idade pré-escolar. Para analisar o surgi­
mento, desenvolvimento e declínio do jogo apoiamo-nos na
tese metodológica de Marx, segundo a qual as manifestações
de um nível superior de desenvolvimento de um fenômeno em
seus níveis inferiores só poderão compreender-se se esse nível
superior já for conhecido.
“A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”,
escreveu Karl Marx. “E, pelo contrário, os indícios de algo
mais elevado nas espécies animais inferiores podem com­
preender-se unicamente quando esse mais elevado já se conhe­
ce. Dessa forma, a economia burguesa oferece-nos a chave da
economia antiga etc.”3
Essa trajetória de cima para baixo, da análise da forma
desenvolvida para a história de seu aparecimento e decadência,
é oposta ao evolucionismo trivial e constitui o segundo grande
princípio metodológico de nossa investigação.
Como já dissemos antes, ao descrever o jogo infantil, os
psicólogos dedicaram muita atenção ao trabalho da imagina­
ção ou da fantasia e deram-lhe grande destaque. O jogo foi
conceituado como manifestação de uma singular vivacidade,M
O objeto das pesquisas è aforma da atividade lúdica das crianças 25

de despreocupação e alto nível de desenvolvimento da imagi­


nação ou da fantasia. E isso nada tem de estranho. Salta inclu­
sive à vista do nào especialista, sobretudo ao observar os jogos
de crianças de tenra idade, como transformam os objetos que
utilizam no jogo. Eis algumas opiniões para ilustrar essa obser­
vação.
Preyer escreve: “Um pedaço de madeira com barbantes,
uma casca de noz, uma coisa sem nenhum valor, como pedri-
nhas, folhas de árvores e o conteúdo de uma cesta de papéis
adquirem grande significado em virtude da viva fantasia infan­
til, que transforma os pedaços de papel em xícaras, barcos, ani­
mais e pessoas” (1894, p. 51). Gabriel Comperé concentra-se
no mesmo: “A criança toma por ponto de partida qualquer
objeto, e a ‘alquimia de sua fantasia' transforma-o instantanea­
mente. Tudo lhe serve. Cavalga num pau de vassoura; um
banco virado é um barco ou um carro; o mesmo banco, em sua
posição normal, é um cavalo ou uma mesa. Uma caixa conver-
te-se em casa, em armário, em carro, enfim, em tudo o que se
queira, em tudo o que a imaginação infantil queira transformá-
la a cada momento” (1912, pp. 190-191). Esses autores con­
centraram-se na transformação infantil do objeto mediante a
“alquimia de sua fantasia”. É precisamente nisso que eles
vêem a peculiaridade específica do jogo infantil.
Mas Sully acredita que a transformação dos objetos é um
aspecto secundário. “O interesse que o jogo da criança oferece”
- escreve Sully - “consiste em que nele se revela claramente o
produto de sua fantasia íntima. A fantasia pode originar-se, em
sua criação, na realidade circundante: a criança vê, por exem­
plo, areia, pedrinhas e conchas, e diz: ‘Vamos brincar de loja.’
Mas essa é apenas uma condição secundária. A origem do jogo
esta no anseio de pôr em prática uma idéia atraente: daí, como
Se verá mais adiante, a similaridade entre o jogo e a arte em
geral. Uma noção qualquer é a força dominante, a verdadeira
éicifixa, e tudo deve amoldar-se a ela. Como a representação
CVe e$tar expressa de alguma maneira externa, ela colide com
26 Psicologia dojogo

a realidade circundante. Aí se encontra a criança em seu ele­


mento. O assoalho divide-se em dois bandos rivais, o braço do
sofá converte-se num cavalo, num carro ou em algo mais de
que se necessite para o jogo.
Essa atividade, mais intensa e ampla, da fantasia nos
entretenimentos infantis explica-se pelo desejo muito recôndi­
to que a criança sente de, por meio do jogo, ser algo, represen­
tar algum papel. Ao protagonizar Robinson Crusoé ou algum
outro personagem, a criança que busca aventuras foge do seu
Eu verdadeiro e do seu mundo cotidiano. Ao representar um
papel, transmuda em sua imaginação tudo quanto a rodeia, e isso
adquire o aspecto e o sentido de que, no momento dado. essa
representação necessita” (1901, p. 45). “O fundo do jogo infan­
til” - prossegue Sully - “apóia-se na interpretação de algum
papel e na criação de alguma situação nova” (ibid., p. 47).
Quase todos os pesquisadores que se dedicam a descrever
os jogos de crianças pequenas repetem, de diferentes modos, a
idéia de Sully de que o fundo do jogo infantil consiste em
representar algum papel. Ora, a análise do jogo nào conduz a
uma explicação da estrutura do próprio papel, de sua gênese,
mas à descrição das peculiaridades da fantasia infantil, da qual
o jogo parece ser uma manifestação.
Assim, é lícito supor que a unidade do jogo está constituí­
da precisamente pelo papel e pelas ações pertinentes para in­
terpretá-lo. Para ilustrar e, ao mesmo tempo, esclarecer essa
tese, eis algumas observações feitas de um jogo4.
Um grupo de crianças brinca de “estrada de ferro” num
quarto amplo, depois de ter conhecido uma estação ferroviária
durante uma viagem ao campo. Antes de começar, a responsá­
vel pelo grupo prepara com as crianças alguns atributos do
jogo: um gorro vermelho para o chefe da estação, um pau com
um aro de madeira (sinal ferroviário de partida para o trem),
biscoitos de verdade para a cantina, a inscrição “Venda de pas­
sagens” etc.
O objeto das pesquisas è a forma da atividade lúdica das crianças 27

Boris é o chefe da estação, põe o gorro vermelho e empu­


nha o pau com o aro. Delimitou um canto e explica: - Isto aqui
é a estação onde vive o chcfe. - Anatóli, Luísa e Elena são os
passageiros. Colocaram uma cadeira atrás de outra e sentaram-
se. As meninas levam bonecas. São suas filhas.
Leonid: - Como vamos viajar sem maquinista? Eu serei o
maquinista. - Senta-sc na cadcira da frente e faz Gália
é a dona da cantina; montou-a colocando uma barreira de
cadeiras pequenas diante de uma mesa. Em cima da mesa tem
uma caixa com pedacinhos de papel, que fazem de dinheiro.
Ao lado, sobre uma folha de papel, filas de biscoitos cortados
em pedaços (para que haja mais). - Tenho uma cantina muito
bem abastecida - diz ela.
Bárbara: - Eu vou vender as passagens... Como se chama a
que vende passagens, que nào me lembro? - A educadora infor­
ma-a: - Bilheteira. - Bárbara: - Sim, sim, bilheteira. Dê-me pa­
pel. - Quando lho dão, rasga-o em pedaços grandes e pequenos.
Coloca os grandes de um lado. - Estes são os bilhetes das pas­
sagens, e estes aqui são o dinheiro miúdo para o troco. - Coloca
sobre a mesa o guichê, que a educadora lhe fez de cartão, escre­
vendo logo nele: “Venda de passagens”. Senta-se à mesa, mos­
trando-se atarefada. Bóris aproxima-se de Leonid e diz-lhe: -
Quando lhe fizer sinal com este aro, ponha-se em marcha. -
Leonid resfolega como uma locomotiva e mexe as mãos como
se fosse o maquinista. As passageiras estão sentadas com as
filhas em seus lugares. De repente, Bóris diz, caindo em si: -
Os passageiros não estão com as passagens e está na hora de o
trem sair! - Os passageiros correm para o guichê, entregam
papeizinhos a Bárbara e adquirem passagens. Nesse instante,
Bóris anuncia: - O trem parte em cinco minutos. - Os passagei­
ros ocupam rapidamente seus lugares. Bóris acerca-se de Leonid
c íaz“1he sinal com o “bastão” (o pau com o aro), autorizando a
partida. Leonid resfolega, apita e o trem parte.
Gália (dando mostras de aborrecimento): - Quando virá
gente comprar?
28 Psicologia do jogo

Boris: - Eu já posso ir. O trem partiu e agora estou livre. -


( Encaminha-se para a cantina e pede biscoitos.) Gália dá-lhe
um pedaço e pergunta-lhe: - Onde está o dinheiro? - Bóris corre
para a educadora, esta entrega-lhe papeizinhos, ele retorna e
paga a sua “compra”. Come o biscoito com cara de satisfação.
Bárbara remexe-se na cadeira, olha para a cantina, mas nào sai
do lugar. Depois volta a olhar na direção da cantina, observa a
educadora e pergunta: - E eu, quando posso comprar comida?
Agora nào tenho ninguém - diz, a título de justificativa.
Leonid responde-lhe: - E por que não vai? Vá e pronto.
Bárbara olha para os lados, na eventualidade de aparecer al­
gum passageiro que deseje comprar passagem, e corre até a
cantina. Compra rapidamente e regressa voando ao guichê.
Gália está sozinha na cantina e passa os biscoitos de um prato
para outro. - Eu também quero comer; o que devo fazer, comprar
ou nào? - Bóris (rindo): - Compre para si mesma c pague-se a si
mesma. - Gália ri, mas toma dois copeques, compra de si mesma
dois pedacinhos de biscoito e diz, como que explicando-se à edu­
cadora: - Eles já compraram uma vez. - E a educadora responde-
lhe: - Por que você comprou tão poucos? - Gália: - O trem está
para chegar, e o que vou vender aos passageiros?
Leonid resfolega e grita: - Parada! - Os passageiros e ele
encaminham-se para a cantina. Compram biscoitos. Gália (a
uma das passageiras): - Compre mais para a sua filha. Os bis­
coitos estão muito bons. - Uma das passageiras oferece à bo­
neca (sua filha): - Coma, está muito bom. - Depois, ela mesma
come o biscoito. Bóris volta a alçar o bastão (pau com o aro),
os passageiros retomam seus lugares, Leonid silva e o trem par­
te de novo.
A anotação deste jogo permite destacar os seguintes as­
pectos concatenados de sua estrutura. Em primeiro lugar, os
papéis assumidos pelas crianças: chefe de estação, maquinista,
bilheteira, dona da cantina e passageiros; em segundo, as ações
lúdicas de caráter sintético e abreviado mediante as quais as
crianças interpretam os papéis adotados e estabelecem rela­
O objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

ções recíprocas; em terceiro, o emprego lúdico dos objetos (as


cadeiras, que são o trem; as bonecas, que são as filhas; os
papéis recortados, que fazem as vezes de dinheiro, passagens
etc.); e, por último, as relações autênticas entre as crianças,
exteriorizadas nos diálogos, perguntas e réplicas com que se
orienta o transcurso do jogo.
O aspecto ccntral que agrupa todos os demais é o papel
assumido pela criança. Não se pode representar sem as ações
respectivas. A criança é bilheteira precisamente porque vende
passagens; é chefe de estação porque anuncia a saída do trem e
permite que o maquinista o ponha em marcha; é dona de canti­
na porque vende biscoitos etc.
Os outros aspectos estão determinados pelo papel da
criança e relacionados com as suas ações. Os papeizinhos con-
vertem-se cm dinheiro e em passagens para protagonizar os
passageiros e a bilheteira. As relações entabuladas durante o
jogo também estão determinadas pelos papéis que as crianças
desempenham. O principal para elas, a ajuizar por sua conduta,
é representar o papel adotado. Isso se vê pelo empenho e rigor
com que executam as ações decorrentes de cada papel assumi­
do pelas crianças.
Assim, pode-se afirmar que são justamente o papel e as
ações dele decorrentes o que constitui a unidade fundamental e
indivisível da evolução da forma de jogo. Nele estão represen­
tadas em união indissolúvel a motivação afetiva e o aspecto
técnico-operacional da atividade. Como evidenciam as pesqui­
sas experimentais que serão descritas e analisadas adiante, entre
0 papel e o caráter das ações respectivas há uma estreita liga-
Çao funcional e uma unidade contraditória. Quanto mais abre­
viadas e sintetizadas são as ações lúdicas, tanto maior é a pro­
fundidade com que se refletem no jogo o sentido, a missão e o
sistema de relações entabuladas na atividade reconstruída dos
adultos; quanto mais completas e desenvolvidas são as ações
iças, tanto maior é a clareza com que se manifesta o conteú-
° °bjetivo e concreto da atividade reconstruída.
30 Psicologia dojogo

Qual é a base em que se apóiam os papéis adotados e inter­


pretados por crianças mediante ações lúdicas?
Quase todos os autores que descreveram ou pesquisaram o
jogo protagonizado são unânimes em assinalar que em seus
temas influi de maneira decisiva a realidade que circunda a
criança.
Quem melhor caracterizou essa peculiaridade do jogo foi
Utchinski: “A única coisa que os adultos podem fazer no jogo,
sem destruir o seu caráter lúdico, é influir, fornecendo material
para as construções que a própria criança já fará por sua conta.
Mas não se pense que todo esse material pode ser comprado
numa loja de brinquedos. O leitor comprará à criança uma casa
clara e bonita, e ela fará dela um cárcere; comprará figuras de
camponeses e ela as porá em formação como soldados; com-
prar-lhe-á um boneco bonito e ela lhe aplicará tremendas sur­
ras; nào empregará os brinquedos que se lhe compre segundo o
seu significado, mas os refará segundo a incidência que nela
tenham os elementos da vida circundante; é com esse material
que mais terão dc prcocupar-se os pais e os educadores" (1950,
p p . 440-441).
Uma das questões principais é averiguar que fator concre­
to da realidade que circunda a criança excrcc uma influência
determinante no jogo protagonizado. A sua solução pode
esclarecer-nos a verdadeira natureza dessa forma de jogo e o
conteúdo dos papéis que as crianças assumem.
Em alguns estudos de pedagogia, mesmo nos dedicados a
outros temas, encontramos dados que nos permitem responder
hipoteticamente à questão que nos interessa.
Zhukóvskaia (1963) estudou durante aulas especiais a in­
fluência dos jogos didáticos sobre os jogos independentes das
crianças. Assim, uma excursão a uma loja interessou às crian­
ças; mas, em suma, não influiu em seus jogos. Propôs-se-lhes
depois, em uma aula especial, o jogo didático “na loja”, com a
finalidade de ensinar-lhes a variedade de ações do balconista,
precisar e consolidar nelas as regras de conduta do balconista e
0 objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

do freguês, e a devida amabilidade no trato mútuo. Durante esse


jogo, as crianças demonstraram grande interesse pelos papéis
do balconista e da caixa: todos queriam ser uma coisa ou outra.
Zhukóvskaia indica que, sob a influência da excursão e, principal­
mente, do jogo didático “na loja”, houve múltiplas variantes de
jogos protagonizados com a compra e venda de diversos objetos.
Dessa maneira resultou que, quando as crianças observa­
ram as relações entre o balconista e a caixa, por uma parte, e os
fregueses, por outra, os papéis agradaram-lhes. Essa mudança
foi obtida no experimento de Zhukóvskaia com os recursos de
um jogo didático especial; é provável que se possa conseguir
também com outros meios pedagógicos.
Márkova (1951) pesquisou a influência da literatura infan­
til nos jogos das crianças. Esclareceu que nem toda obra literá­
ria as induz a brincar. Unicamente as que descrevem de forma
compreensível a atividade, o comportamento e as relações mú­
tuas das pessoas despertam nas crianças o desejo de reconsti­
tuir em jogos o conteúdo fundamental dessas obras.
Os resultados das citadas pesquisas evidenciam que no
jogo protagonizado influi, sobretudo, a esfera da atividade
humana, do trabalho e das relações entre as pessoas e que, por
conseguinte, o conteúdo fundamental do papel assumido pela
criança é, precisamente, a reconstituição desse aspecto da rea­
lidade.
A via possível de comprovação experimental dessa tese
foi sugerida pelo trabalho de uma educadora. Durante a excur­
são ao Jardim Zoológico de um grupo de idade mediana de um
jardim de infância, as crianças observaram o comportamento
dos diversos animais, o que comem etc.; a educadora, certa de
que as crianças começariam a brincar de “jardim zoológico",
levou para a sala do grupo brinquedos com figuras dos animais
ciue tinham visto durante a excursão. Mas o jogo nào se produ-
z,u 110 °utro dia, nem nos dias seguintes.
Entâo a educadora repetiu a excursão e orientou a atenção
s cr,anças, além disso, para os visitantes e o pessoal que cui-
32 Psicologia dojogo

dava dos animais, concentrando-se no trabalho do bilheteiro,


dos porteiros que fiscalizavam a entrada, dos varredores das
alamedas e das jaulas, do pessoal da cozinha que preparava a
comida para os animais e a repartia, do guia que dava explica­
ções ao público, do veterinário e seus auxiliares de enfermaria.
Fez com que as crianças se fixassem na solicitude do pessoal
com os animais, na amabilidade e no respeito do público às
normas de conduta com os animais, nas relações entre os tra­
balhadores do jardim zoológico.
Algum tempo depois da segunda excursão, as crianças
começaram a brincar por sua própria conta de “jardim zoológi­
co”, no qual nào faltava nada: bilheteira, porteiro, mamães e
papais com filhos, guia, varredores, uma “cozinha de feras”
com cozinheiro, ajudantes e pessoal que dava de comer aos
animais, uma enfermaria com veterinário, um diretor etc. To­
dos esses personagens iam introduzindo-se pouco a pouco no
jogo, que durou vários dias, complicando-se e enriquecendo-se
cada vez mais.
Essa experiência de trabalho com as crianças fez-nos pen­
sar que as distintas esferas da realidade influem de modo dife­
rente no surgimento do jogo protagonizado.
A realidade que circunda a criança pode ser convencional­
mente dividida em duas esferas interdependentes mas, ao mes­
mo tempo, distintas. A primeira é a esfera dos objetos, tanto
naturais quanto produzidos pela mão do homem; a segunda é a
esfera de atividade das pessoas, de seu trabalho e das relações
que estabelecem. Dessas duas esferas, qual influiu mais no jo­
go protagonizado?
Para elucidar em definitivo o dilema, foi necessário dar a
conhecer a realidade às crianças de duas maneiras específicas:
a primeira, que o conteúdo fundamental fosse a esfera objetiva
da realidade (os objetos e coisas); e a outra, que o conteúdo
fundamental fosse o homem, sua atividade e suas relações com
outras pessoas.
Esse trabalho foi realizado por Koroliova (1957)\
0 objeto das pesquisas é a forma da atividade lúdica das crianças 33

Durante a viagem a uma casa de campo, a estrada de ferro


produziu muitas impressões fortes nas crianças, que estiveram
numa estação, viram o trem e as pessoas subirem nos vagões;
elas mesmas subiram num deles; ouviram anunciar por alto-
falantes a saída dos trens, compraram com seus pais as passa­
gens no guichê etc. A educadora supôs que essas impressões
seriam suficientes para que as crianças brincassem de “estrada
de ferro”. Mas não foi assim, apesar da profunda impressão
que lhes causou a viagem, dc falarem muito sobre ela e dese­
nharem estações e trens.
A educadora tentou então promover o jogo. Ofereceu às
crianças brinquedos atraentes: uma locomotiva, carros, um
guichê e, com a ajuda de outro educador, fez entre as crianças a
distribuição dos papéis. Apesar da grande carga emocional da
viagem de trem e das profundas impressões diretas que as
crianças obtiveram, esse jogo protagonizado não prosperou.
Fez-se então uma nova visita à estação: as crianças viram
outra vez a parte material do funcionamento da estrada dc
ferro. Mas também nào bastou esse trabalho adicional para dar
impulso ao jogo, se bem que, a julgar pelos desenhos que as
crianças fizeram desses objetos, já eram mais exatas as suas
idéias do trem, da locomotiva, da estação, do guichê, dos carri­
nhos para transporte de bagagens etc.
Passado algum tempo, quando, depois do veraneio no
campo, as crianças regressaram à cidade, repetiu-se com o
mesmo grupo infantil a excursão à estação ferroviária. As
crianças viram como o chefe da estação recebia cada trem,
c°mo os passageiros desciam, como se desembarcavam as ba-
kagcns, como o maquinista e o seu ajudante cuidavam da loco-
°tiva e como os cabineiros cuidavam dos carros e atendiam
‘ Passageiros. Ao entrar na sala de espera, viram como os
^ jan tes compravam as passagens, os moços iam ao encontro
redor - Sa^ r0S ^3ra *evar" ^ es as t>agagens a*é o trem, os var-
sun V* cu'^avam da limpeza da sala etc. Depois dessa excur-
| °tardou muito em organizar-se o jogo. H brincou-se com
34 Psicologia do jogo

inegável entusiasmo; a “estrada de ferro” perdurou entre os


jogos infantis, conjugando-se num todo com outros temas: “a
família”, “o jardim-de-infancia”, “o correio” etc.
De maneira análoga, deu-se a conhecer às crianças (duas
vezes) o trabalho de uma oficina de costura, as obras de uma
casa, o trabalho de uma fábrica de jogos de salão e o funciona­
mento dos Correios. Em todos esses casos, as crianças só co­
meçaram a brincar depois de saber o que as pessoas faziam,
como trabalhavam e que relações se estabeleciam entre elas no
processo de produção. É perfeitamente natural que as crianças
nào formassem de imediato idéias bastante exatas, e que o edu­
cador tivesse de ampliar e pormenorizar, durante o jogo e em
conversas subseqüentes, durante jogos didáticos e ao ler para
elas obras literárias, o que elas pensam das pessoas mais ve­
lhas, do trabalho e das relações dos adultos.
A pesquisa de Koroliova convence de que no jogo prota­
gonizado influem, sobretudo, a esfera de atividade e as rela­
ções das pessoas, de que seu fundamento é precisamente essa
esfera da realidade.
Assim, a base do jogo protagonizado em forma evoluída
não é o objeto, nem o seu uso, nem a mudança de objeto que o
homem possa fazer, mas as relações que as pessoas estabele­
cem mediante as suas ações com os objetos; não é a relação ho-
mem-objeto, mas a relação homcm-homem. E como a recons- j
tituiçào e, por essa razão, a assimilação dessas relações trans­
correm mediante o papel de adulto assumido pela criança, sào
precisamente o papel e as ações organicamente ligadas a ele
que constituem a unidade do jogo.
Uma vez que a atividade concreta das pessoas e suas rela­
ções sào variadíssimas na realidade, também os temas dos jo­
gos são muito diversificados e cambiáveis. Nas diferentes épo­
cas da história, segundo as condições sócio-históricas, geográ­
ficas e domésticas concretas da vida, as crianças praticaram
gos de temática diversa. Sào diferentes os temas d o s jogos
crianças de diferentes classes sociais, dos povos livres e dos p °|
0 objeto das pesquisas é a forma da atividade lúdica das crianças 35

vos oprimidos, dos povos nórdicos e dos povos meridionais, dos


que habitam em regiões arborizadas ou desérticas, dos filhos de
operários industriais, de pescadores, de criadores de gado ou
de agricultores. Inclusive uma mesma criança muda os temas de
seus jogos segundo as condições concretas em que se encontra
temporariamente.
O singular impacto que a esfera dc atividade humana e das
relações entre as pessoas produz no jogo evidencia que, apesar
da variedade de temas, todos eles contcm, por princípio, o mes­
mo conteúdo, ou seja, a atividade do homem e as relações so­
ciais entre as pessoas.
A nossa análise impõe que se distingam no jogo o tema e
o conteúdo. O tema do jogo é o campo da realidade reconstituí­
do pelas crianças. Como já indicamos, os temas dos jogos sào
extremamente variados e refletem as condições concretas da vi­
da da criança, as quais mudam conforme as condições de vida
em geral e à medida que a criança vai ingressando num meio
mais vasto a cada novo dia de sua vida, com o que se ampliam
seus horizontes.
O conteúdo do jogo é o aspecto característico central,
reconstituído pela criança a partir da atividade dos adultos e
das relações que estabelecem em sua vida social e de trabalho.
O conteúdo do jogo revela a penetração mais ou menos profun­
da da criança na atividade dos adultos; pode revelar somente o
aspecto externo da atividade humana, ou o objeto com o qual o
homem opera ou a atitude que adota diante de sua atividade e a
das outras pessoas ou. por último, o sentido social do trabalho
humano.
Claro que o caráter concreto das relações entre as pessoas
rePresentadas no jogo é muito diferente. Essas relações podem
e c°operaçào, de ajuda mútua, de divisão de trabalho e de
j ® e atenção de uns com outros; mas também podem
rud v autoritarismo, até de despotismo, hostilidade,
áüw . etc- íu^o depende das condições sociais concretas em
qUev've a criança.
36 Psicologia dojogo

A dependência que os temas dos jogos infantis mantêm


das condições sociais de vida é um fato indubitável e reconhe­
cido por muitos. Entretanto, alguns psicólogos, sem deixar de
reconhecê-lo, consideram que o jogo é um fenômeno de natu­
reza e origem biológicas. Exprcssou-o de forma brilhante, por
exemplo. Stern, quando escreveu sobre o jogo: “As leis inter­
nas do desenvolvimento atuam com tanto vigor que, apesar das
contradições existentes no meio circundante, em determinada
idade despertam sempre nas crianças dos mais diferentes paí­
ses e épocas instintos lúdicos iguais. Assim, os exercícios de
lançamento (hurstspiele) e os jogos com bonecas ou de guerra
eliminam indiscutivelmente as fronteiras de tempo e de espa­
ço, os limites sociais, nacionais e culturais. O material especí­
fico com que se exercitam os instintos de movimento, proteção
e luta pode mudar com o meio; mas as formas gerais do jogo
não mudam” (1922, pp. 172-173).
Na opinião de Stern, a mutabilidade dos temas dos jogos,
ocasionada pelo impacto das condições de vida, é apenas uma
manifestação da natureza biológica imutável e instintiva do
jogo. Esse é o ponto de vista nào só de Stem. Muitos pesquisa­
dores compartilham do critério da origem biológica do jogo. A
diferença reside unicamente nos instintos ou pulsões profun­
das que se manifestam no jogo: instintos de poder, luta e prote­
ção (Stern e Adler); impulsos sexuais (Freud); impulsos con­
gênitos de libertação, agrupamento e compulsão (Buytendijk).
As teorias biológicas do jogo, que partem dos instintos e
impulsos primários da criança, nào podem explicar de maneira
satisfatória seu conteúdo social.
Em nossa opinião, o singular impacto que a atividade
humana e as relações sociais produzem no jogo evidencia que os
temas dos jogos nào se extraem unicamente da vida das crian­
ças, porquanto possuem um fundo social, e nào podem ser um
fenômeno biológico. A base do jogo é social devido precisa-
mente a que também o são Sua natureza c sua origem, ou seja»
que o jogo nasce das condições de vida da criança em socitf*
0 objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

de. As teorias do jogo que o deduzem dos instintos e dos impul­


sos internos marginalizam, de fato, a questão de sua origem his­
tórica. Ao mesmo tempo, a história do surgimento do jogo pro­
tagonizado é justamente aquela que pode revelar-nos a sua na­
tureza.
Capítulo 2
Acerca da origem histórica
do jogo protagonizado

1. Da história dos brinquedos


O problema central da teoria do jogo protagonizado é o de
sua origem histórica e de sua natureza.
Referindo-se à concepção materialista da origem da arte,
Plekhánov menciona brevemente o problema do jogo: "É de suma
importância para explicar a gênese da arte esclarecer a atitude
do trabalho em face do jogo ou, se se preferir, do jogo em fa­
ce do trabalho” (1958, p. 336). Plekhánov expòe ao mesmo
tempo uma série de teses que são fundamentais para esclarecer
também a incógnita da origem do jogo.
A tese mais importante de Plekhánov é a de que, em toda a
história da sociedade, o trabalho antecede o jogo. “Em primei-
!*0 *uSar, a guerra verdadeira e a necessidade, por ela criada, dc
as êllerras; e logo depois, os jogos de guerra para satisfazer
p^sf necessidade” (ibid., p. 342). Essa tese, como indica
balh an0V *)erm*le comPreender por que o jogo precede o tra-
Ponto nU V*^a *n^*vl(^uo- "••• rá*° fôssemos mais além do
prc ' 0 V*Sta escreve, “não teríamos com-
qllc o . 0 nem Por que o jogo é anterior ao trabalho nem por
nào IIU^u ,^uo se entretém precisamente com esses jogos e
outros (ibid., p. 343). Â luz dessas proposições dc
40 Psicologia do jogo

Plekhánov, o jogo aprcsenta-se como uma atividade que res­


ponde à demanda da sociedade em que vivem as crianças e da
qual devem chegar a ser membros ativos.
Para elucidar em que condições e devido a que necessida­
des da sociedade surge o jogo protagonizado torna-se impres­
cindível uma investigação histórica.
O primeiro que expôs na psicologia soviética a necessida­
de de se proceder a uma investigação histórica para elaborar
uma teoria congruente do jogo foi Arkin: “Somente com fatos
extraídos do passado e cotejados com o presente é possível for­
mar uma teoria científica correta do jogo e do brinquedo, e so­
mente uma teoria como essa pode produzir uma prática peda­
gógica sã, fecunda e estável.” “A história do jogo infantil e do
brinquedo”, prossegue E. A. Arkin, “deve servir de base para
construir suas teorias” (1935, p. 10).
Em sua investigação, Arkin apenas fala da origem históri­
ca do jogo e, mais do que ao jogo protagonizado, referc-se aos
brinquedos e sua história. Ao comparar com os brinquedos
modernos os encontrados em escavações arqueológicas, escre­
ve Arkin: “Nas coleções reunidas por arqueólogos e conserva­
das nos museus não há um brinquedo que nào tenha sua réplica
num quarto de criança dos dias de hoje” (ibid., p. 21). Arkin
não se limita ao brinquedo arqueológico e investiga também os
brinquedos infantis de povos em fases inferiores de desenvol­
vimento, e chega a conclusões análogas: “Com efeito, o fato de
que, apesar da heterogeneidade das fontes que nos proporcio­
naram os dados, o quadro conserve unidade, mesmo com a mu­
dança de forma e com as diferenças de detalhe, o fato de que os
povos, separados uns dos outros por distâncias enormes, conti­
nuem tendo o brinquedo tão gracioso e sempre jovem, e seu
conteúdo e funções continuem sendo os mesmos tanto para os
esquimós quanto para os polinésios, os cafres ou os índios, o j
bosquímanos ou os bororos, evidencia a assombrosa estab^1"
dade do brinquedo e, por conseguinte, das necessidades qu
satisfaz e das forças que o criam” (ibid., p. 31).
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 41

Ao descrever depois fatos da semelhança nào só dos brin­


quedos e jogos de crianças contemporâneas e dos filhos de po­
vos que se encontram em níveis mais baixos de desenvolvimen­
to social, Arkin conclui a sua comparação: a estabilidade do
brinquedo infantil, sua universalidade, a imutabilidade de suas
formas fundamentais de estrutura e das funções que preenche
são um fato evidente, e talvez a evidência desse fato seja a causa
de os pesquisadores nào julgarem necessário deter-se nele ou
enfatizá-lo. Contudo, se a assombrosa estabilidade do brinque­
do infantil é um fato indiscutível, nào se compreende por que os
psicólogos, os antropólogos e os naturalistas não extraíram dis­
so nenhuma conclusão, por que não procuraram para isso uma
explicação. Ou esse fato indiscutível é tão simples e claro que
não requer nenhuma interpretação? Não creio que seja assim.
Muito pelo contrário: o que deve parecer insólito é que a crian­
ça nascida e criada no ambiente cultural do século XX utilize, a
cada passo, como fonte de alegria ou instrumento de seu desen­
volvimento e auto-educação, o mesmo brinquedo que possui a
criança procriada por pessoas de um desenvolvimento mental
vizinho do dos habitantes das cavernas e palafitas, e que cresce
nas mais primitivas condições de existência. E esses filhos de
épocas tão remotas manifestam sua profunda afinidade com os
do tempo atual já que obtêm ou fazem não só brinquedos pa­
recidos mas, e isso é ainda muito mais estranho, dão-lhes a
mesma aplicação” (ibid., p. 32).
Citamos extensamente o trabalho de Arkin para mostrar
que uma pesquisa, na aparência de caráter somente histórico,
levou o autor a deduções anti-históricas. Depois de comparar
os brinquedos infantis das sociedades primitivas e os testemu-
nhos arqueológicos de um passado relativamente nào distante
°m os brinquedos das crianças contemporâneas, esse autor
nada encontrou neles de específico. Tanto em uns casos como
outros, vêem-se os mesmos brinquedos e a criança utiliza-
mane*ra igual. Por conseguinte, nào existe nenhuma his-
0 brinquedo, nào há desenvolvimento do brinquedo. O
42 Psicologia do jogo

brinquedo continua sendo o mesmo que nos alvores da cultura


da humanidade.
Arkin vê a causa dessa aparente imutabilidade dos brin­
quedos em que a criatura humana, tal como os seus brinque­
dos, manifesta a sua unidade na unidade das características
humanas do desenvolvimento (ibid., p. 49).
Arkin precisou afirmar a imutabilidade histórica do brin­
quedo para demonstrar a tese de que, com o aparecimento do
homo sapiens, as crianças vieram ao mundo em todas as épo­
cas - desde as mais remotas até o presente - com as mesmas
possibilidades. Sim, isso assim é, sem dúvida. Mas um dos
paradoxos do desenvolvimento infantil assenta precisamente
em que, vindo a este mundo com igual desamparo e as mesmas
possibilidades, percorrem nas sociedades, que se encontram
em níveis distintos de produção e cultura, um caminho evoluti­
vo totalmente diverso, alcançando por diferentes vias e em
tempos diferentes sua maturidade social e psicológica.
A tese de Arkin sobre a imutabilidade do brinquedo ao
longo do desenvolvimento da sociedade leva-nos logicamente
à conclusão de que o brinquedo responde a certas peculiarida­
des inatas e imutáveis da criança e nào apresenta vinculaçào algu­
ma com a tradição, como afirma a acertada tese de Plekhánov
de que o jogo, por seu conteúdo, tem suas origens no trabalho
dos adultos. É perfeitamente natural que o brinquedo tampou­
co possa ser outra coisa senão uma reprodução simplificada,
sintetizada e de alguma maneira esquematizada dos objetos da
vida e da atividade da sociedade, adaptados às peculiaridades
das crianças de uma ou outra idade.
Arkin abandona o ponto de vista histórico e adota, expres­
sando-se com palavras de Plekhánov, o do indivíduo. Mas este
ponto de vista não nos pode explicar por que as crianças se
absorvem em determinados jogos e utilizam neles determina­
dos brinquedos. Hoje em dia, todos reconhecem que o conteúdo
do jogo infantil está relacionado com a vida, o trabalho e a ativi­
dade dos membros adultos da sociedade. Como se explica que o
fcerca da origem histórica dojogo protagonizado 43

co n te ú d o d o jogo seja determinado pela vida da sociedade, e o


b r i n q u e d o , acompanhante imprescindível dc todo jogo, não te­

nha relação nenhuma com a vida da sociedade e responda a cer­


tas peculiaridades naturais e imutáveis da criança?
As deduções que E. A. Arkin extrai de sua pesquisa, no
que se relaciona com a história, estão em contradição, antes de
mais nada, com os fatos. O quarto da criança contemporânea
está cheio de brinquedos que não puderam existir na sociedade
primitiva, e o uso lúdico dos mesmos é incompreensível para a
criança daquela sociedade. Pode alguém imaginar entre os
brinquedos da sociedade primitiva os automóveis, trens,
aviões, satélites artificiais, materiais de construção, pistolas,
mecanos etc.? Apesar dos fatos, Arkin procura unidade onde
salta à vista uma diferença evidente. Nessa mudança do caráter
dos jogos infantis no decorrer dos tempos reflete-se de maneira
clara a verdadeira história do brinquedo e sua dependência
causal do desenvolvimento da sociedade, da história da criança
na sociedade.
É bem verdade que Arkin nào escreve acerca de todos os
brinquedos, mas só dos que ele qualifica de primários, entre os
quais inclui:
a) os brinquedos sônicos: cega-regas, matracas, guizos,
campainhas, rocas etc.;
b) os brinquedos dinâmicos: pião, bola, pipa;
c) as armas: o arco, a flecha, os bumerangues, a atiradeira
etc.;
d) brinquedos figurativos: figuras de animais e bonecos;
e) a corda, com a qual se fazem diversas figuras, por ve­
zes, do padrão mais sofisticado.
Cumpre assinalar, antes de mais nada, que até mesmo os
chamados brinquedos originários têm sua origem histórica. E
por demais evidente que o arco e as flechas puderam chegar a
ser brinquedos somente depois de aparecerem na sociedade
como armas de caça autênticas. Antes do aparecimento dos
utensílios de trabalho que requeriam movimentos rotativos.
44 Psicologia do jogo

nào pôde haver nenhum brinquedo que fosse movido dessa ma­
neira, como os piões.
Para analisar o processo de surgimento dos “brinquedos
primários” teria de levar-se a cabo uma pesquisa histórica espe­
cífica e ficaria então bem claro que eles nada têm de “primá­
rios”, mas, pelo contrário, apareceram em determinados graus
de desenvolvimento da sociedade, e que seu surgimento foi
precedido da invenção dos respectivos utensílios de trabalho.
A história da origem de alguns brinquedos seria apresentada
em tal pesquisa como reflexo da história das ferramentas de tra­
balho dos homens e dos utensílios sagrados.
Todos os brinquedos que Arkin qualifica de “primários”
são realmente produto do devir da história. Nào obstante, em­
bora tenham aparecido em determinada etapa histórica do de­
senvolvimento da sociedade, nào desapareceram com a extin­
ção dos utensílios de que sào cópia. O arco e a flecha caíram há
muito em desuso como armas de caça e foram substituídos
pelas armas de fogo, mas perduram no mundo dos brinquedos
infantis. Os brinquedos têm vida mais longa do que os utensí­
lios de trabalho de que sào imagem, c isso produz a impressão
de que nào mudam. Dir-se-ia que foram realmente detidos em
seu desenvolvimento, conservando seu aspecto originário. Mas,
só se vistos de fora carecem de história, submetidos apenas a
um exame fenomenológico como objetos tísicos.
No entanto, se examinarmos o brinquedo em suas funções,
pode-se afirmar, sem receio de cometer equívocos, que os cha­
mados primários mudaram radicalmente de função no trans­
curso da história, sendo outra a sua relação com o processo de
desenvolvimento da criança.
E muito difícil pesquisar a mudança histórica dos brinque­
dos: em primeiro lugar, o brinquedo arqueológico nada nos diz
quanto ao uso que a criança fazia dele; em segundo, alguns
brinquedos de hoje, inclusive entre os povos que se encontram
em níveis mais baixos de evolução social, perderam sua rela­
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 45

ção direta com as ferramentas de trabalho e os utensílios do­


mésticos, assim como a funçào que inicialmente possuíam.
Apresentaremos vários exemplos. Nos períodos iniciais dc
desenvolvimento da humanidade, o homem, para obter fogo,
friccionava um pedaço de madeira com outro. O atrito ininter­
rupto fazia-se melhor mediante a rotação com dispositivos em
forma de furadores de diversos tipos. Os povos do Extremo
Norte, para reforçar seus trenós, tinham de fazer numerosos
orifícios. Essa perfuração também requeria a rotação ininter­
rupta. Segundo o testemunho de Reinson-Pravdin (1949), os
pequenos furadores de madeira na forma primitiva de arco
feito de um pau e um cordão -, que podem ser postos em movi­
mento por crianças, existem até hoje entre os brinquedos
infantis dos povos do Extremo Norte. A aprendizagem da rota­
ção ininterrupta era imprescindível, pois a criança que adquiria
esse hábito aprendia facilmente o manejo de ferramentas cujo
funcionamento era basicamente similar.
Essa aprendizagem podia fazer-se nào só com um modelo
reduzido de furador, mas também com suas variantes modifica­
das. Variantes modificadas de furadores são as piorras, ou seja,
fusos impelidos com os dedos e nào com arco, como nos piões
de chicote. Assim, tirando-se o arco do eixo do fuso, estaremos
diante de uma simples piorra cujo impulso é algo prolongado.
Além do pião de chicote e da piorra, outra variante do
furador eram as cigarras, nas quais o movimento ininterrupto
de rotação era obtido mediante uma habilidade especial para
retesar e afrouxar uma corda enrolada em torno do fuso.
Assim, os diversos tipos de fuso eram modificações do furador
que. utilizados pelas crianças, proporcionavam-lhes a habilida­
de de produzir os movimentos rotativos imprescindíveis para
fazer furos. O brinquedo e a atividade da criança com o brin­
quedo foram, nessa etapa, uma ferramenta de trabalho modifi­
cada e uma modificação da atividade dos adultos com essa fer­
ramenta, e encontravam-se em relação direta com a futura ati­
vidade da criança.
46 Psicologia dojogo

Transcorreram os séculos, modificaram-se substancial­


mente as ferramentas e os modos de fazer fogo e de fazer furos.
Os fusos já não se encontram em relação direta com o trabalho
dos adultos nem com a futura atividade laborai da criança. E
para a efiança já nào se trata de fusos reduzidos nem mesmo de
representações deles. Os fusos converteram-se em “brinquedos”
figurativos, sônicos ou dinâmicos, segundo a terminologia de
Arkin. Mas os adultos continuam fomentando as ações com
esses brinquedos, que exercitam certos hábitos quase profissio­
nais, e sc convertem em ações formativas de certos sistemas
funcionais, dinâmicos ou dinâmico-visuais.
E interessante assinalar que para promover ou apoiar a
manipulação de tais brinquedos há que recorrer a artimanhas
especiais, idéias de piões de chicote sônicos ou musicais etc.,
ou seja, dar-lhes propriedades adicionais. Pode-se supor que o
mecanismo promotor e impulsionador das ações com esses
brinquedos, iguais só no aspecto, mudou por completo. São
sempre os adultos que introduzem os brinquedos na vida das
crianças e as ensinam a manejá-los. Mas se antes, quando os
brinquedos eram modelos reduzidos de ferramentas dos adul­
tos, o seu manejo mantinha-se graças à relação “brinquedo-
instrumento”, agora, quando já não existe essa relação, man-
tém-se estimulado pela novidade. O exercício continuado é
substituído pelo uso esporádico.
De igual modo transcorre o processo de desenvolvimento
dos jogos com corda. Na fase de desenvolvimento da socieda­
de, quando trançar e fazer nós eram elementos essenciais da
atividade laborai dos adultos, esses exercícios, praticados tanto
entre as crianças como entre os adultos, eram fomentados
pelas necessidades da sociedade e estavam diretamente rela­
cionados com a produção de redes etc. Atualmente, degenera­
ram em exercícios puramente funcionais para desenvolver os
movimentos sutis dos dedos e em exercícios de entretenimen­
to; sào raramente encontrados c nào mantêm nenhuma relação
direta coin a atividade laborai dos adultos.
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 47

Vê-se o processo de mudança e desenvolvimento com


especial clareza em brinquedos tão “primários” quanto o arco e
as flechas. Entre as tribos e os povos de caçadores que se
encontravam em níveis relativamente baixos de desenvolvi­
mento, o arco e as flechas eram uma das armas fundamentais
de caça. O arco e as flechas foram patrimônio da criança desde
a mais tenra idade. Tornando-se gradualmente mais complica­
dos, chegaram a ser nas mãos da criança a mais autêntica das
armas, um auxiliar para a sua atividade independente com que
podia capturar pequenos animais e pássaros, conta Reinson-
Pravdin (1948). O rapazinho que disparava as flechas contra
animais e aves tinha-se na conta de um futuro caçador, igual ao
seu pai; os adultos o consideravam como tal. Aprendia o mane­
jo do arco, e os adultos estavam interessadíssimos em que o
aprendesse à perfeição.
Mas chegou o dia da arma de fogo. O arco continua nas
mãos das crianças, mas agora o manejo do arco já nào está
relacionado diretamente com a caça; o tiro com arco e flecha é
utilizado para desenvolver algumas qualidades, por exemplo, a
pontaria, necessária também para o caçador com arma de fogo.
No transcorrer do desenvolvimento da sociedade, a caça cede o
predomínio a outras formas de atividade laborai. As crianças
vão utilizando cada vez menos o arco como brinquedo. Claro
que em nossa sociedade contemporânea pode-se encontrar o
arco, e algumas crianças podem até dedicar-se ao tiro com ele
como modalidade esportiva. Mas esses exercícios do jovem
contemporâneo não ocupam em sua vida o lugar que ocuparam
nos tempos dos caçadores primitivos.
O chamado brinquedo primário só é imutável, portanto, no
aspecto geral. Na realidade, à semelhança de todos os demais
brinquedos, surge e muda com o tempo: a sua história está
organicamente vinculada à da mudança de lugar da criança na
sociedade e não pode compreender-se fora dessa história. O
erro de Arkin consiste precisamente no fato de que isolou a
história do brinquedo da história do seu possuidor, da história
48 Psicologia do jogo

das funções do brinquedo no desenvolvimento da criança, da


história do lugar da criança na sociedade. Tendo incorrido
nesse erro, chegou a conclusões anti-históricas não confirma­
das pela história do brinquedo.

2. Origem histórica da forma desenvolvida de atividade lúdica


O aparecimento do jogo protagonizado na história é um
dos problemas difíceis de investigar. Para levar a cabo uma
pesquisa dessa índole necessita-se, por uma parte, de dados
sobre o lugar que a criança ocupa na sociedade, nas diversas
fases do desenvolvimento histórico; e, por outra, de dados
sobre o caráter e o conteúdo dos jogos infantis nesses mesmos
períodos. A natureza dos jogos infantis só pode compreender-
se pela correlação existente entre eles e a vida da criança na
sociedade.
Os dados do desenvolvimento da criança e de seus jogos
ou suas fases iniciais no desenvolvimento da sociedade sào
paupérrimos. De um modo geral, nenhum etnógrafo se propôs
levar a efeito essa investigação. Somente na década de 1930
apareceram as pesquisas de Margaret Mead dedicadas às crian­
ças das tribos da Nova Guiné, que contêm dados do modo de
vida e dos jogos infantis. Mas esses trabalhos foram direciona­
dos a algumas questões específicas (o animismo infantil, o
amadurecimento sexual numa sociedade de baixo grau de
desenvolvimento etc.), o que, como é natural, determinou a
seleção dos dados.
Os dados disseminados pelas inúmeras descrições etno­
gráficas, antropológicas e geográficas sào fragmentários e de
um extremo esquematismo. Alguns oferecem noções do modo
de vida das crianças, mas nada de seus jogos; outros, ao contrá­
rio, tratam só de jogos. Em algumas pesquisas o critério colo­
nizador, a favor do qual os pesquisadores procuraram baixar
por todos os meios o nível do desenvolvimento mental das crian­
ças dos povos oprimidos, está tão evidente que os dados nào
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 49

inerecem a menor confiança. Também é difícil comparar os


dados obtidos das crianças com a vida da sociedade, já que,
com freqüência, é uma tarefa árdua determinar em que grau de
desenvolvimento social se encontrava tal ou tal tribo, clã ou
comunidade no período da descrição. As dificuldades ainda
são maiores porque os povos podem viver em condições com­
pletamente distintas das que o seu nível de desenvolvimento
social impõe, e essas condições, sem a menor dúvida, repercu­
tem na vida das crianças na sociedade, no lugar que ocupam
entre os adultos e, por essa razão, no caráter de seus jogos.
Acerca dos períodos iniciais do desenvolvimento da so­
ciedade, Kosven escreve: “Não se pode falar de uma aproxima­
ção real do ponto de partida do desenvolvimento da humanida­
de ou, como se costuma dizer, do ponto zero da cultura da
humanidade. Nesse caso, só sào possíveis hipóteses mais ou
menos admissíveis, aproximações mais ou menos acertadas do
enigma do nosso passado, eternamente oculto para nós” (1927,
p. 5). Isso se refere, num grau ainda maior, ao estudo da crian­
ça e de sua vida na sociedade primitiva.
A nossa missão é responder, mesmo que seja com hipóte­
ses, a pelo menos duas interrogações. A primeira é: Existiu
sempre o jogo protagonizado ou houve um período da vida da
sociedade em que nào se conheceu essa forma de jogo infantil?
A segunda: A que mudanças na vida da sociedade e na situação
da criança na sociedade se deve o nascimento do jogo protago­
nizado?
E impossível observar diretamente como surgiu o jogo
protagonizado. Os poucos dados de que dispomos permitem
formular, em linhas gerais, a hipótese do nascimento do jogo
protagonizado; esclarecer, e só aproximadamente, as condi­
ções históricas em que se fez necessária essa forma original da
vida da criança na sociedade. Nessa pesquisa não pretendemos
esgotar os dados existentes e só apresentamos os imprescindí­
veis para formular a nossa suposição, deixando de lado todos
os demais.
50 Psicologia dojogo

A origem histórica do jogo está intimamente relacionada


com o tipo de educação das jovens gerações nas sociedades
que se encontram em níveis baixos de desenvolvimento da pro­
dução e-da cultura. Baseando-se em numerosos e extensos da­
dos, Alt (1956) alega a existência de uma unidade inicial com­
posta da atividade laborai e da educação, ou seja, a educação
não é um processo isolado como função social especial. Em
sua opinião, os traços típicos da educação infantil nos primeiros
períodos do desenvolvimento da sociedade são os seguintes:
primeiro, a educação de todas as crianças por igual e a partici­
pação de todos os membros da sociedade na educação de cada
criança; segundo, a universalidade da educação: cada criança
deve saber fazer tudo o que fazem os adultos e participar em
todos os aspectos da vida da sociedade a que pertence; terceiro,
a brevidade do período educativo: as crianças já conhecem des­
de cedo todas as tarefas que a vida apresenta, logo se tornam
independentes dos mais velhos, e seu desenvolvimento termi­
na mais cedo do que em fases posteriores do desenvolvimento
social.
O principal fator formativo no desenvolvimento das crian­
ças é, para R. Alt, a sua participação direta na vida dos adultos:
a incorporação desde cedo ao trabalho útil, relacionado com o
baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas; a parti­
cipação ao lado dos mais velhos nos bailes, festejos, alguns
rituais, festas solenes e no lazer.
Referindo-se ao jogo como meio de educação, Alt indica
que a criança participa onde pode, sem ter preparação especial
nem aprendizagem prévia, no trabalho dos adultos. Onde nào
pode participar, “integra-se” no mundo dos adultos mediante a
atividade lúdica que reflete a vida da sociedade. (Aí já temos
um indício da origem histórica do jogo e dc seu nexo com a
mudança da situação da criança na sociedade.)
Assim, a situação da criança na sociedade, nas fases de
desenvolvimento mais recuadas, caracteriza-se sobretudo por
sua incorporação precoce ao trabalho produtivo dos adultos.
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 51

Quanto mais incipiente for o desenvolvimento da sociedade,


tanto mais cedo as crianças se incorporarão ao trabalho produ­
tivo e se converterão em produtores independentes. Nos alvo­
res da vida da sociedade, as crianças levaram uma vida comum
com os mais velhos. A ftinçào educativa ainda nào se separara
como função social peculiar, e todos os membros da sociedade
educavam as crianças, propondo-se a tarefa fundamental de fa­
zê-las partícipes do trabalho produtivo social e de transmitir-
lhes sua experiência laborai; e o meio fundamental empregado
era incluí-las gradualmente nas formas de trabalho dos adultos
que estavam ao seu alcance.
Segundo o testemunho de Volz (1925), os povos que cole­
tavam em comum - homens, mulheres e crianças - frutos e raí­
zes comestíveis iam de lugar em lugar buscando alimentos.
Aos 10 anos, as meninas já eram mães e os rapazes pais, com
uma vida independente.
Referindo-se aos kubu (Sumatra), um dos grupos huma­
nos mais primitivos da Terra, Kosven mostra que o núcleo
fundamental desse povo é a família restrita; sua ocupação pri­
mordial, coletar frutos e raízes comestíveis; sua principal fer­
ramenta, o pau, um caule de bambu aberto com a extremidade
afiada de maneira que sirva para desenterrar raízes e tubércu­
los; a sua única arma, a lança de madeira com ponta de lasca
de bambu afiada; servem-lhes de utensílios as cascas de coco
e os talos ocos de bambu. Escreve M. Kosven: “As crianças
permanecem com os pais e acompanham-nos até os 10 ou 12
anos na busca de alimentos. Nessa idade, tanto os rapazes
como as meninas já se consideram independentes e capazes de
decidir sua sorte e seu futuro. A partir desse momento come­
çam a usar tangas. Quando acampam, constrocm uma choça à
parte, ao la-do da paterna. Mas já procuram os alimentos e
comem por sua conta. Pouco a pouco, vai-se enfraquecendo o
nexo entre pais e filhos, e é freqüente que, pouco depois, estes
se separem daqueles e comecem a viver à parte na floresta”
(1927, p. 37).
52 Psicologia do jogo

Nas descrições etnográficas e geográficas mais antigas dos


exploradores russos já existem indicações de que é ensinado às
crianças pequenas o cumprimento de obrigações laborais e de
que já participam do trabalho produtivo dos adultos. Assim,
Novitski escreveu em sua descrição de 1715 do povo ostíaco:
“Eles têm em comum os trabalhos manuais, a caça (matam ani­
mais), a captura de aves e a pesca, e podem alimentar-se com o
produto dessas atividades. Ensinam seus estratagemas aos fi­
lhos, acostumando-os desde tenra idade a atirar com arco, a ma­
tar animais, capturar aves e pescar” (1941, p. 43). Kratche-
nínnikov, ao descrever sua viagem pela península de Kamchatka
(1737-1741), fez as seguintes observações a respeito dos koria-
kos: “O mais digno de encómio deste povo é que, embora quei­
ram muito a seus filhos, ensinam-nos a trabalhar desde peque­
nos; para tanto, os mantêm como aos servos, mandam-nos em
busca dc lenha e de água, apascentar os rebanhos de renas,
encarregam-nos e obrigam-nos a cumprir tarefas desse gênero”
(1949, p. 457).
Zúev, que visitou em 1771-1772 os povos do Ob, escreveu
sobre os filhos dos ostíacos e dos samoiedos: “Há muito que os
filhos se acostumaram desde pouca idade a enfrentar qualquer
dificuldade, como se vê, pela rudeza de sua vida, que nào os
leva a lamentá-lo nem pouco nem muito, nem de modo algum.
Pode-se afirmar com toda a segurança que esse povo nasceu
para realizar ingentes trabalhos, e se nào se acostumassem à
rudeza desde pequenos, os pais teriam poucas esperanças de
ver seus filhos convertidos em grandes auxiliares seus e en­
frentando as tarefas que cabem a tais auxiliares. Assim que a
criança começa a compreender, sua màe ou sua ama só a con­
sola tangendo a corda do arco, e quando começa a andar, o pai
já lhe prepara um arco. Passando pelas cabanas dos ostíacos ao
entardecer, vi alguns garotos brincando sem o arco; costumam
disparar flechas contra as árvores ou contra alguma coisa cra­
vada no chào. Conseguem erguer paliçadas perto de suas caba­
nas; dir-se-ia que seus jogos vaticinam já sua vida futura. E,
com efeito, ao observar a paliçada posta através de algum rio.
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 53

nunca se verão anciãos sentados com jovens; só com crianças


pequenas, pois os mais velhos já navegam pelos rios ou com
redes ou com botirões e covos; aos pequenos, não se pode
mandá-los onde não entendem ou fazer alguma coisa superior
às suas forças” (1947, pp. 32-33).
Miklukho-Maklai fala da participação das crianças não só
no trabalho doméstico, mas também em formas coletivas mais
complexas de trabalho adulto. Por exemplo, referindo-se ao
cultivo da terra, escreve: “Trabalham da seguinte maneira:
dois, três ou mais homens colocam-se em fila, cravam estacas
pontiagudas, compridas e sólidas, e levantam de uma só vez
uma boa porção de terra. Se o solo está duro, cravam a estaca
no mesmo lugar duas vezes, e logo revolvem a terra. Atrás dos
homens vão mulheres de joelhos, segurando com vigor entre as
mãos suas enxadas para esterroar. Seguem-nas crianças de
diferentes idades que esboroam a terra, esfregando-a entre as
mãos. Nessa ordem trabalham todo o plantio, entre homens,
mulheres e crianças” (1951, p. 231). Essa descrição revela-nos
que na sociedade dos papuas existia a divisão natural do traba­
lho por idade e sexo, com a participação de todos, incluindo as
crianças, exceto as de tenra idade.
Assinalando o gosto, muito comum entre os aborígenes,
de ensinar a outros, gosto que se observa até entre as crianças,
Miklukho-Maklai explica assim a sua origem: “Isso se vê até
nas crianças; as de seis e sete anos ensinaram-me muitas vezes
como fazem esta ou aquela coisa. E isso é porque os pais ades­
tram desde muito cedo seus filhos para a vida prática; de
maneira que, sendo ainda muito pequenos, já percebem e apren­
dem mais ou menos todas as artes e ações dos adultos, mesmo
as nào adequadas à sua idade. As crianças brincam pouco; e
sua brincadeira consiste em arremessar paus como se fossem
lanças e em atirar com arco, e assim que conseguem fazê-lo
com certa destreza e êxito, passam a aplicá-lo na vida prática.
Vi crianças pequenas que passam horas a fio à beira-mar, ten­
tando acertar com uma flecha um peixe. O mesmo se observa
Psicologia Jo jogo

com as meninas, e até em grau ainda maior, porque começam


antes as tarefas da casa c tornam-se ajudantes de suas mães”
(1951,p. 136).
Detivemo-nos tanto nos dados de Miklukho-Maklai porque
seus testemunhos, por sua indubitável e completa objetividade,
revestem-se de singular valor.
Outros autores falam também da participação precoce das
crianças no trabalho dos adultos. Assim, Vaillant escreve em
sua Historia de los aztecas: “A educação começava depois do
desmame, ou seja, aos dois anos e pouco de idade. O objetivo
da educação era introduzir a criança o antes possível no am­
biente dos costumes e obrigações que constituíam a vida dos
mais velhos. Como tudo se fazia à mão, as crianças tinham a
possibilidade de familiarizar-se muito cedo com a atividade dos
adultos. Os pais encarregavam-se da aprendizagem dos filhos;
as mães ensinavam as filhas. Até os seis anos, a educação dos
filhos limitava-se a fábulas e conselhos, ensinava-se-lhes o uso
dos utensílios domésticos e eles realizavam pequenas tarefas
cm casa.” “Essa educação”, prossegue o autor, “incorporava
diretamente a nova geração à vida do lar” (1949, p. 87).
Bryant, que viveu cerca de meio século entre os zulus, fala
também da incorporação prccoce das crianças ao trabalho pro­
dutivo dos adultos: “Aquele que saiu da idade infantil, ou seja,
que cumpriu seis anos, menino ou menina, está igualmente obri­
gado a trabalhar e a realizar sem queixas as tarefas que lhe sejam
designadas; os rapazes, sob a orientação dos pais; as meninas,
observadas pelas mães” (1953, p. 123). Bryant enumera uma
série de tarefas que sào função dos filhos. “Os rapazinhos de
seis ou sete anos são enviados pela manhã ao prado para apas­
centar as vitelas e as cabras, e os de alguns anos mais encarrega­
m-se de levar as vacas ao pasto” (ibid., p. 157). Quando chega a
primavera, “as mulheres e os filhos percorrem os prados em
busca de ervas silvestres comestíveis” (ibid., p. 184). Quando
os cereais já estavam sazonados e as terras semeadas corriam
4cerca da origem histórica do jogo protagonizado 55

o perigo de ser devastadas pelos pássaros, “as mulheres e as


crianças passavam todo o dia no campo, espantando os pássa­
ros de sol a sol” (ibid., p. 191).
Muitos pesquisadores soviéticos das etnias do Extremo
Norte falam também da incorporação precoce das crianças ao
trabalho dos adultos e que estes lhes ensinavam especialmente
a trabalhar. A. G. Bazánov e H. G. Kazânski escrevem: “As
crianças do povo mansi saem desde tenra idade a pescar. Mal
aprenderam a andar, os pais já levam os garotinhos no barco. E
assim que começam a crescer, fazem-lhes pequenos remos,
ensinam-lhes a guiar o barco e os acostumam à vida no rio”
(1939, p. 173). Numa outra obra, Bazánov diz: “Mal cumpriu
cinco ou seis anos, o menino vogul anda perto da cabana com
arco e flechas, caçando pássaros e treinando a pontaria. Quer
ser caçador. Levam-no pouco a pouco aos bosques desde os
sete ou oito anos. Aí lhe ensinam a procurar o esquilo e a gali-
nha-do-mato, a cuidar do cão, onde e como colocar armadi­
lhas. Se o adulto corta galhos para fazer uma armadilha, o filho
coloca a mola que a acionará quando o animal entrar nela, es­
tende a terra, espalha pedrinhas, areia, folhas, prepara a isca...”
(1934, p. 93). Até as crianças menores sào caçadoras apaixo­
nadas e, quando vào à escola, já levam capturadas dezenas de
esquilos e chinchilas.
Bazánov assinalou muito bem, ao descrever a pesca, o prin­
cípio fundamental da educação nessas condições: “Éramos qua­
tro adultos e outras tantas crianças pequenas... Chegamos a um
cabo arenoso que adentrava a água como uma língua afiada e,
postando-nos em duas filas, começamos a içar a rede para o
barco. Entre nós havia também garotinhos que se agarravam
com suas pequenas e rosadas mãos à extremidade da rede e nos
ajudavam a içá-la.” Prossegue Bazánov: “O meu guia, um zi-
nano, gritou para um dos garotos: ‘Nào estorves, nào te metas
°o meio/ Um velho vogul olhou-o zangado e sacudiu a cabeça,
recriminando-o: ‘Isso nào está certo. nào. Deves deixá-los fa­
zer tudo o que nós fazemos’ ” (ibid., p. 94).
56 Psicologia dojogo

Stártsev escreve que “aos seis ou sete anos, já ensinam as


crianças a conduzir as renas e a capturá-las com o laço” (1930,
p. 96). Stebnítski assim descreveu a vida das crianças koriakos:
“E nos afazeres que se manifesta especialmente a independên­
cia das crianças. Algumas tarefas caseiras são executadas ape­
nas pelas crianças.” E prossegue: “Os rapazes encarregam-se
também de partir lenha. Mesmo que o dia esteja frio ou desa­
gradável, o rapaz atrela os cães que tiverem ficado em casa e vai
buscar lenha a mais de 10 quilômetros. [...] As meninas ini-
ciam-se, entre brincadeiras, em todas as suas tarefas. Primeiro
dão-lhes um retalho de pano, uma faca cega, uma agulha que­
brada, e costuram com pouca arte, e assim vão adquirindo hábi­
tos de trabalho até verem-se imersas, sem se dar conta, no secu­
lar e cansativo trabalho feminino” (1930, pp. 44-45).
Nào vamos multiplicar os exemplos. Esses já sào suficien­
tes para demonstrar que numa sociedade subdesenvolvida com
uma organização comunitária primitiva do trabalho, as crian­
ças incorporam-se muito cedo ao labor produtivo dos adultos,
participando nele na medida de suas forças. O mesmo acontece
na família camponesa patriarcal, na qual, segundo palavras de
Marx, “as diferenças de sexo e idade, assim como as condições
naturais do trabalho, que mudam com as estações do ano, regu­
lam a distribuição dessas funções dentro da família c o tempo
que hão de trabalhar os indivíduos que a integram. Mas aqui o
consumo de forças individuais de trabalho, graduado por sua
duração no tempo, adota a forma lógica e natural de um traba­
lho socialmente determinado, uma vez que nesse regime as
forças individuais de trabalho somente atuam como órgàos da
força coletiva de trabalho da família”1.
A ocupação das mães e a inclusão dos filhos desde muito
cedo no trabalho dos adultos dão lugar a que, primeiro, na
sociedade primitiva nào exista uma fronteira muito delimitada
entre adultos e crianças, e, segundo, as crianças adquiram inde­
pendência, na verdade, precocemente. Nesse ponto concordam
quase todos os pesquisadores. .
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 57

Stebnítski, por exemplo, escreve: “De um modo geral,


cumpre dizer que nào há entre os koriakos uma divisào marca­
da entre crianças e adultos. As crianças sào membros da socie­
dade iguais em direitos e iguais no respeito que se lhes tem. Na
conversaçào geral, são escutadas com a mesma atenção que os
adultos.
O célebre etnógrafo russo Tchternberg também assinala a
igualdade existente entre crianças e adultos nos povos do
Nordeste asiático: “Ao homem civilizado fica difícil imaginar
a igualdade e o respeito de que gozam aqui os jovens. Os ado­
lescentes de 10a 12 anos sentem-se membros completamente
iguais da sociedade. Os anciãos mais idosos e mais respeitados
escutam com a maior atenção e seriedade o que eles dizem e
respondem-lhes com a mesma seriedade e cortesia que aos
outros velhos. Ninguém percebe a diferença de idade nem de
posição” (1933, p. 52).
Outros autores falam, em particular, da independência
precoce das crianças que vivem na sociedade primitiva. Os tra­
ços característicos da criança que vive no ambiente dessa
sociedade, sua autonomia precoce e a ausência de uma frontei­
ra nítida entre as crianças e os adultos são uma conseqüência
natural das condições de vida dessas crianças e de seu lugar
real na sociedade.
Existiu o jogo protagonizado entre as crianças numa so­
ciedade com um grau de desenvolvimento em que os instru­
mentos de trabalho ainda eram muito primitivos? A divisào des­
se jogo baseava-se nas diferenças naturais de idade? E de sexo?
As crianças eram consideradas membros iguais na sociedade
em cujo trabalho comum participavam conforme suas possibili­
dades? Não existem dados exatos sobre os jogos infantis numa
sociedade com esse nível de desenvolvimento. Os etnógrafos e
exploradores que se ocuparam de povos num nível dc desen­
volvimento próximo do acima mencionado indicam que as crian­
ças brincam pouco, sempre do mesmo jeito, dos afazeres dos
adultos, e seus jogos não são protagonizados.
58 Psicologia dojogo

Assim, Livingston, ao descrever a vida de uma tribo ne­


gra, a dos bakalahari, diz: “Nunca vi seus filhos brincarem”
(1947, p. 35). Miklukho-Maklai também afirma, sobre os filhos
dos papiias, que “brincam pouco” (1951, p. 136). Bryant, que
viveu cerca de 50 anos entre os zulus, descreve em sua já citada
obra vários jogos das crianças dessa raça, mas entre eles não há
nenhum jogo protagonizado.
Mead (1931), que descreveu a vida das crianças na socie­
dade de pescadores primitivos da Melanésia, numa ilha do
arquipélago do Almirantado, conta que aos filhos do povo
manus é permitido brincarem o dia inteiro, mas seus jogos
lembram os de cães e gatos pequenos. Na opinião de Mead,
essas crianças não encontram na vida dos adultos modelos que
as entusiasmem e as incentivem a imitá-los. A autora sublinha
que as crianças não encontram na organização social dos adul­
tos modelos interessantes para seus jogos. Somente de maneira
casual e esporádica, uma vez por mês, conseguia observar um
jogo imitativo, no qual as crianças representavam cenas da vida
dos adultos, por exemplo, o pagamento do dote ao se celebrar o
matrimônio ou a repartição do fumo nos ritos fúnebres. A
autora observou desses jogos três ou quatro ocorrências, nada
mais. E deles assinala também a falta de imaginação. Embora,
na opinião de Mead, as crianças tenham todas as possibilidades
para desenvolver jogos protagonizados (gozam de muito
tempo livre, podem observar a vida dos adultos e dispõem de
uma exuberante vegetação que lhes proporciona muitíssimo
material de toda a espécie para brincar etc.), nunca representam
cenas da vida dos adultos, nem imitam cm seus jogos o regres­
so dos adultos de uma caçada bem-sucedida, suas cerimônias,
suas danças etc.
Assim, como evidenciam os autores citados, as crianças
que vivem numa sociedade de nível relativamente baixo de
desenvolvimento nào têm jogos protagonizados. Essa tese não
deve levar à dedução de que se trata de crianças de baixo nível de
desenvolvimento mental, ou carentes de imaginação etc., como
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 59

a firm a m alguns pesquisadores. A ausência de jogos protagoni­


zados deve-se à situação especial das crianças na sociedade.
As crianças que vivem no ambiente da sociedade primiti­
va encontram-se tão atrasadas em comparação com suas coetâ­
neas da sociedade contemporânea no desenvolvimento dos jo­
gos protagonizados quanto adiantadas no sentido da indepen­
dência, participação na atividade laborai dos adultos e aptidão
para tanto. “As condições gerais da educação primitiva c da
a u to n o m ia , sob cujo signo transcorre principalmente a infân­
cia'*, escreve Kosven, “devem ser consideradas a base da mag­
nífica aptidão para o rápido desenvolvimento e a singular ca­
pacidade das crianças das tribos e povos atrasados nas escolas
das colônias. Resulta facílimo para elas dar o salto da socieda­
de primitiva para a civilização” (1953, p. 140).
As ferramentas e as formas primitivas de trabalho ao alcan­
ce da criança permitem-lhe tornar-se independente mais depres­
sa por necessidades da própria sociedade, mediante a partici­
pação direta no trabalho dos adultos. Não se trata de explora­
ção da criança: o trabalho infantil tem caráter de tarefa social
espontânea. É certo que as crianças, quando desempenham suas
obrigações laborais, nelas introduzem características infantis
específicas, talvez desfrutem, inclusive, do próprio processo e,
em todo o caso, sentem-se satisfeitas por ter atuado com os adul­
tos e como adultos.
Isso é tanto mais provável porquanto, segundo o testemu­
nho da maioria dos pesquisadores, a educação na sociedade pri­
mitiva é severa no conteúdo, mas sua forma é de extraordinária
suavidade. Não se castigam as crianças e procura-se por todos
os meios que estejam alegres, animadas e contentes. Não obs­
tante, o entusiasmo pelo próprio processo do trabalho, a ale­
gria, a satisfação e o prazer não convertem em jogo essas for­
mas de trabalho infantil, por mais primitivas e rudimentares
que sejam.
Nas condições da sociedade primitiva, com seus meios e
formas de trabalho relativamente elementares, até as crianças
60 Psicologia dojogo

de três ou quatro anos podiam participar nas formas simples de


trabalho doméstico, na coleta de plantas, raízes, larvas, caracóis
e outros comestíveis, na pesca primitiva com simples cestos ou
até à mão’ na caça de animais pequenos e pássaros, e nas for­
mas rudimentares de agricultura. A independência que a socie­
dade exigia das crianças encontrava sua expressão natural no
trabalho comum com os adultos. A vinculação direta das crian­
ças a toda a sociedade, mediante o trabalho em comum, excluía
qualquer outro vínculo entre a criança e a sociedade. Nesse grau
de desenvolvimento da sociedade, e com esse status dentro dela,
a criança não tinha nenhuma necessidade de reproduzir o tra­
balho nem de entabular relações especiais com os adultos, não
necessitava do jogo protagonizado.
Com a passagem para formas de produção mais elevadas -
a agricultura e a pecuária com a maior complexidade das for­
mas de pesca e de caça, tomaram-se desnecessárias a coleta de
alimentos naturais e as formas primitivas de caça e pesca. Com
a mudança do caráter da produção na sociedade, operou-se uma
nova divisão do trabalho. “O desenvolvimento da produção”,
escreve Kosven, “manifestado na passagem para a agricultura
de arado, e o início da pecuária tiveram o importantíssimo re­
sultado socioeconômico que Engels denominou a primeira
grande divisão social do trabalho, ou seja, a divisão entre agri­
cultores e criadores de gado com todas as suas conseqüências,
concretamente, com o desenvolvimento da indústria doméstica
e do intercâmbio regular. Essas profundíssimas mudanças tive­
ram o resultado socioeconômico que se expressou na nova di­
visão de trabalho segundo o sexo, na mudança do lugar do ho­
mem e da mulher na produção social. A divisão sexual do traba­
lho existiu, como disse Engels, com kuma origem puramente na­
tural’, já no matriarcado. Agora adquiria um caráter incompa­
ravelmente mais profundo e uma transcendência econômica e
social muito maior. A criação de gado tomou-se um afazer mas­
culino. As mudanças operadas na economia geral deram lugar a
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 61

que a economia doméstica, ‘que foi esfera principal do traba­


lho da mulher’, se separasse como ramo peculiar da produção”
(1951, pp. 84-85).
Com a mudança do caráter da produção ocorreu, portanto,
na sociedade, outra divisão do trabalho. Ao se complicarem e
redistribuírem os meios e os modos de trabalho, deu-se uma
mudança natural na participação das crianças nos diversos as­
pectos do trabalho: deixaram de participar diretamente em ati­
vidades laborais a elas superiores. As crianças pequenas foram
confiados apenas alguns aspectos do trabalho doméstico e os
afazeres mais simples. Embora nesse grau de desenvolvimento
as crianças ainda sejam membros iguais na sociedade e partici­
pantes da atividade laborai dos adultos em algumas esferas,
novas características se apresentam em sua situação. Algumas
pesquisas já por nós citadas a respeito dos povos do Extremo
Norte incidem precisamente sobre essa etapa do desenvolvi­
mento da sociedade.
No tocante às esferas de trabalho mais importantes, ainda
inacessíveis a ela, apresenta-se à criança a missão de dominar
o mais cedo possível as complicadas ferramentas desse traba­
lho. Surgem equipamentos em tamanho reduzido, adaptados
especialmente às possibilidades das crianças; esses equipa­
mentos são utilizados em condições aproximadas às reais, ou
seja, não idênticas às do adulto. O tipo de ferramentas para a
criança está em consonância com o ramo de trabalho funda­
mental que predomine na sociedade em questão.
Eis algumas citações de estudos relacionados com o nosso
tema. Para os povos do Extremo Norte, o facão é um utensílio
imprescindível. O manejo do facão é ensinado desde a primei­
ra infância. Bogoraz-Tan escreveu: “A infância do tchuktcha é
muito feliz. Nào se priva de nada nem se assusta. Assim que é
capaz de agarrar as coisas com firmeza, o pequeno recebe um
facão e, a partir desse momento, levá-lo-á sempre consigo. Vi
um menino talhando madeira com o facão, um facão quase tão
grande quanto ele” (1934, p. 101).
62 Psicologia dojogo

“Cada menino leva, como o caçador adulto”, escreve


Reinson-Pravdin, “um cinturão no qual pendura um facão com
uma corrente ou uma correia; nào é de brinquedo, é de verda­
de, às v&zes de tamanho impressionante. Se a criança se corta
por acaso, aprenderá a manejar melhor e da maneira mais ade­
quada a mais útil arma da vida. A criança necessita do facào
também para comer, cortar um pedaço de carne, fazer um brin­
quedo, afiar a ponta de uma flecha, esfolar um animal sacrifi­
cado etc. Para ela é igualmente imprescindível o machado. [...]
Uma pequena faca, geralmente a primeira na vida do menino,
costuma ser dada pela mãe; o pai entrega-lhe um facão com o
cabo primorosamente lavrado. Nessas condições, entende-se
por que é muito difícil encontrar entre os brinquedos das crian­
ças da bacia do Ob uma faca ou um machado de madeira, como
se vê com freqüência entre as crianças de muitos povos de outra
cultura não familiarizados desde muito cedo com esse tipo de
arma” (1948, p. 196). “O mesmo ocorre com os esquis. Raras
vezes poder-se-ão ver entre os brinquedos esquis diminutos, de
‘mentirinha’. Necessitam deles, já que recebem os adequados
à sua estatura desde que aprendem literalmente a andar.” Mais
adiante escreve: “Os adultos consideram nào existir, para a
criança, melhor brinquedo: com os esquis, elas promovem com­
petições, realizam muitos jogos de caçadores. As mães orna­
mentam os esquis com desenhos diminutos e, sob as correias de
sujeição, colocam um pano colorido; às vezes, pintam os esquis
de vermelho. Com isso ressaltam as funções lúdicas dos esquis de
brinquedo. Os rapazes, quando crescem, aprendem a fazer os
seus próprios esquis, e quando se iniciam na caça, revestem-
nos de pele na frente e patas de rena na parte deslizante, como
fazem os mais velhos, para percorrer grandes distâncias nas
caçadas. A partir desse momento, os esquis deixam de ser um
brinquedo” (1948, p. 198).
Nào entendemos, em absoluto, por que Reinson-Pravdin
inclui os esquis e o facào infantis entre os brinquedos. O fato
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 63

dc o facão e os esquis serem adaptados (serem menores, terem


mais adornos) às possibilidades das crianças não é motivo para
considerá-los brinquedos. O fato de os jovens produzirem brin­
quedos com o facão e participarem em competições de esquis
tampouco é motivo para catalogar esses objetos entre os brin­
quedos. Não são, portanto, brinquedos, mas equipamentos que
a criança deve saber manejar o mais cedo possível e cujo ma­
nejo aprende ao empregá-los praticamente nas mesmas tarefas
que os adultos.
A esses equipamentos comuns a todos os povos do Extre­
mo Norte, que os jovens devem saber manejar o mais cedo pos­
sível. somam-se, nos povos caçadores, o arco e as flechas; nos
pescadores, o caniço; nos pastores de renas, o laço. “Os arcos,
as flechas e as lanças do tipo das antigas armas russas estão o
ano todo nas mãos de crianças. Se quebram, os garotinhos fa­
zem outros”, escreve Stcbnítski. “Adquiriram grande perfeição
em fazê-los. Deve-se incluir entre essas armas a chamada fun­
da ou atiradeira. isto é, uma laçada de couro para arremessar
pedras a distância. Pode-se apostar que não se encontrará um
só garoto koriako de 5 a 15 anos que nào leve pendurada ao
pescoço essa funda e não a utilize venha ou não a propósito. Os
corvos, as corujas, as perdizes, os arganazes, as lebres, os armi­
nhos, oferecem oportunidades inesgotáveis para a caça; os ga­
rotos são, sem dúvida, inimigos muito perigosos de todos esses
animais. Vi um garoto disparar seu arco e abater em vôo um cor­
vo, e um outro dar uma pedrada com a funda num ganso que se
meneava nas ondas a uns 20 ou 30 metros da beira-mar” (1930,
p. 45). “Mal completou cinco ou seis anos”, escreve Bazánov,
“o menino vogul já fica correndo perto de sua cabana com o
arco e as flechas, caça pássaros e treina a pontaria” (1943, p. 93).
“De um modo geral, faz-se o arco dos rapazes de madeira in­
teiriça. Mas à medida que ele cresce, o arco vai sendo refeito
várias vezes, levando em conta as possibilidades infantis”, re­
lata Reinson-Pravdin. “Ao se tornar pouco a pouco mais com­
plicado, chega a ser nas mãos do rapaz uma verdadeira arma ade-
64 Psicologia do jogo

quada à sua atividade independente, e pode abater pequenos


animais e pássaros” (1949, p. 113).
"Os filhos dos nômades”, diz Stebnítski, “dispõem de outra
arma, além das três mencionadas: é o laço, um acompanhante
tão permanente quanto a funda. O rapaz não pode passar por
um pau cravado no solo e que sobressaia um pouco, ou por um
arbusto que emerja um pouco da neve, sem provar neles a des­
treza do seu braço. [...] Assim se exercita essa assombrosa pon­
taria com que os pastores koriakos capturam certeiramente
alguma rês do rebanho sempre inquieto, a rena de que preci­
sam para o trenó ou para lhe comer a carne” (1931, p. 36). “A
arte de manejar o laço com rapidez e habilidade não se adquire
de um dia para o outro”, escreve Reinson-Pravdin. “Vai-se apren­
dendo aos poucos, desde a mais tenra infancia. Por isso, entre
os brinquedos artesanais que são dados a conhecer aos rapazes
na criação de renas, o laço ocupa um lugar importante. As di­
mensões dos laços infantis são as mais variadas: 0,5 m, 1 m, 2
m e mais. O laço, à semelhança do arco, aumenta de tamanho à
medida que o jovem cresce e vai acumulando destreza e hábito.
Os laços infantis são feitos de esparto, para as crianças peque­
nas; e de couro, como os utilizados pelos adultos, para os rapa­
zes acima de sete anos. Os jogos com laço são, para as crian­
ças, não menos interessantes e proveitosos do que os jogos com
arco e flecha. As crianças menores tratam de laçar, primeiro,
tocos altos e delgados, e só mais tarde passam a exercitar-se
com alvos móveis: procuram capturar no laço algum cão ou
cria de rena” (1948, p. 209).
As crianças das tribos que têm por atividade principal a
pesca recebem também desde muito cedo o caniço e capturam
peixes pequenos, passando gradualmente à pesca industrial
com outras artes mais complicadas, ao lado dos adultos.
Assim, o facão, o machado, os esquis, o arco e as flechas, os
laços e os caniços sào ferramentas de tamanho reduzido, adapta­
das ao crescimento dos jovens, e lhes são entregues para que se
exercitem e aprendam seu manejo, orientados pelos adultos.
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 65

Rcveste-se de especial interesse, para elucidar o problema


que nos importa, a análise das funções da boneca que as meni­
nas de quase todos os povos possuem nesta fase de desenvolvi­
mento da sociedade. Os trabalhos dos exploradores soviéticos
do Extremo Norte contêm dados reveladores a respeito.
Ao descrever as bonecas das meninas tchuktchis, Bogoraz-
Tan diz: “As bonecas tchuktchis representam homens e mulhe­
res, mas. com maior freqüência, crianças de peito. Seu tama­
nho é tão variável quanto o das bonecas das meninas cultas.
Parecem-se bastante com as pessoas e estão recheadas de ser­
ragem, que se espalha em todas as eventualidades aziagas. Essas
bonecas são consideradas não só brinquedos, mas também, em
parte, agentes protetores da fertilidade feminina. Quando uma
jovem se casa, leva consigo suas bonecas e esconde-as num sa­
co que guarda num canto próximo à cabeceira de seu leito para,
com o seu influxo, ter filhos o quanto antes. Essas bonecas nào
podem ser presenteadas, pois com elas se entrega a garantia da
fecundidade familiar. Mas quando uma màe tem filhas, entre-
ga-lhes suas bonecas para que brinquem, procurando reparti-
las entre todas elas. Se há apenas uma boneca, é entregue à filha
mais velha; para as outras fazem-se bonecas novas. Dessa ma­
neira, há bonecas que, consertadas e renovadas, sào transmiti­
das de màes a filhas durante várias gerações” (1934, p. 49).
Portanto, Bogoraz-Tan destaca uma função especial da bo­
neca, a função protetora da maternidade: a boneca deve asse­
gurar à moça a fecundidade e o bom parto no futuro. Por isso, a
fabricação de bonecas adquiriu o caráter de ocupação especial.
“O processo de fabricação das bonecas é peculiar. O comum é
cada mulher e, a partir de certa idade, cada menina, ter na fa­
mília uma bolsa de pele lindamente ornamentada ou uma caixa
de casca de bétula na qual se guardam retalhos de pele ou de
pano, contas, miçangas, lantejoulas etc. Todo esse material ser­
ve para fazer bonecas. A sua confecção é uma tarefa agradável,
que se realiza principalmente no verão e pela tarde, após o tér­
mino dos afazeres domésticos. Se a família é grande, as filhas
66 Psicologia dojogo

ajudam a mãe e depois dedicam-se a costurar bonecas. Por ve­


zes, às meninas de uma família somam-se as de outra e o trabalho
é feito em comum” (1935, p. 46). Segundo dados de Obertaller,
as bonecas são produzidas por meninas de diferentes idades,
começando pelas de idade pré-escolar e terminando pelas ado­
lescentes.
Referindo-se à importância das bonecas entre os brinque­
dos das meninas, Reinson-Pravdin menciona, além das fun­
ções de proteção da maternidade, a função laborai. Costurando
vestidos para uma boneca, a menina adquire hábitos, impor­
tantíssimos para as mulheres dos povos do Extremo Norte, de
costurar roupas adequadas às condições climáticas da região.
Stebnítski diz que a aprendizagem da costura entre as meninas
koriakas inicia-se muito cedo. “Não se deve esquecer que as
meninas dos povos do Ob”. escreve A. N. Reinson-Pravdin,
“tinham uma infância curta que acabava aos 12 ou 13 anos, ou
seja, a idade em que se casavam, e que nesse breve período in­
fantil deviam aprender toda uma série de coisas: fazer calçados,
leitos de peles de rena e utensílios de casca de bétula, curtir
camurças e peles finas de animais pequenos, preparar as tiras
de pele de pata de rena, o pulmão das aves e a pele dos peixes,
costurar vestidos, trançar persianas de ervas e, em muitas zo­
nas, tcccr” (1948, p. 281).
E perfeitamente natural que o aprendizado de todas essas
habilidades comece muito cedo e transcorra dc dois modos.
Por uma parte, como indicam alguns autores, as meninas junta­
vam-se desde cedo ao trabalho de suas mães; ajudavam-nas a
preparar as refeições, a cuidar dos irmàos pequenos, e partici­
pavam nas ocupações puramente femininas: coleta de bagos,
avelãs, pinhões e raízes; por outra parte, a confecção de peças
do vestuário das bonecas, sobretudo o seu guarda-roupa (por
cuja riqueza e qualidade o futuro marido julga como sua noiva
aprendeu todos os trabalhos do seu sexo e se preparou para a
vida conjugal), servia de escola de aprendizagem de costura.
As bonecas das meninas dos povos-do Extremo Norte, reuni­
Acerco da origem histórica do jogo protagonizado 67

das nos museus, são testemunho evidente do grau de perfeição


alcançado na costura e, por conseguinte, na confecção de rou­
pas e calçados em geral, assim como do hábil manejo da agu­
lha e da faca. Desse modo, sendo a boneca, protetora das fun­
ções maternais da futura mulher, objeto de cuidado permanen­
te das meninas, serviu desde a primeira infância para ensiná-
las a governar a casa e a costurar.
Assim, o desenvolvimento da produção e a maior comple­
xidade das ferramentas deram lugar a que as crianças apren­
dessem a utilizá-las ainda antes de participar com os adultos nas
atividades laborais de maior responsabilidade. É muito natural
que a idade de incorporação das crianças ao trabalho produtivo
social dos adultos fosse aumentando paulatinamente. E o mo­
mento de inserção das crianças nas formas de trabalho produti­
vo dos mais velhos dependia, antes de mais nada, de sua com­
plexidade. “Os filhos dos tchuktchis ribeirinhos começam a
realizar diversos trabalhos muito mais tarde do que os filhos
dos pastores de renas. Nas tarefas pesqueiras de rotina, são mais
um estorvo do que uma ajuda. O jovem nào participa na caça
séria antes dos 16 ou 17 anos. Até essa idade pode atirar com
escopeta nas focas, mas só da margem ou ajudar a colocar re­
des para as focas nos campos de gelo que se estendem ao longo
das margens”, escreve Bogoraz-Tan (1934, p. 103).
A incorporação dos rapazes das tribos criadoras de gado
ao trabalho dos adultos transcorre bem mais cedo. G. Stártsev
testemunha que “os rapazes sào ensinados desde os seis ou sete
anos a conduzir e capturar as renas a laço. A partir dos 10 anos,
eles podem cuidar de grandes manadas e caçar perdizes e outros
animais de pequeno porte com armadilhas. Dos 13 aos 15 anos,
já passam a ser considerados trabalhadores de verdade” (1930,
P. 98).
O facão e o machado, o arco e as flechas, os caniços de
pesca, as agulhas, as rasouras c outros equipamentos seme­
lhantes sào ferramentas cujo manejo as crianças devem apren­
der para poder participar no trabalho dos adultos. É claro que
68 Psicologia do jogo

elas nào podem descobrir por si mesmas os modos de emprego


desses equipamentos, e os adultos têm de lhes ensinar seu ma­
nejo com eficácia, indicando-lhes o que devem fazer, contro­
lando e estimulando nelas a assimilação desses instrumentos,
necessários onde c quando existam.
Não é uma escola com aulas, organização e programa pró­
prios. Os adultos incentivam as crianças a assimilar o manejo
desses instrumentos muito necessários. As crianças aspiram a
aprender a disparar o arco, jogar o laço, manejar o facão, o
machado, a agulha, a rasoura etc., tal como é feito por seus
pais, suas mães, seus irmãos e irmãs mais velhos. A aprendiza­
gem assemelha-se ao ensino sistemático das matérias de um
curso, mas é uma aprendizagem adequada às necessidades da
sociedade. É possível que as crianças tenham introduzido no
processo de assimilação desses instrumentos dos adultos
alguns elementos de jogo: a emulação, a alegria por seus acer­
tos e êxitos etc., mas isso de maneira nenhuma convertia em
jogo uma atividade dirigida no sentido da assimilação dos
modos de manejar os instrumentos de trabalho; nem transfor­
mava em brinquedos, como acredita Reinson-Pravdin, as ferra­
mentas de tamanho reduzido.
Em contraste com o processo de assimilação desses equi­
pamentos, que transcorre com a participação direta da criança
no trabalho produtivo dos adultos, esse outro processo chega a
constituir uma atividade singular que se leva a efeito em condi­
ções distintas das que caracterizam o trabalho produtivo. O
garoto nenets, que vai ser pastor de renas, aprende a manejar o
laço, mas sem participar diretamente na custódia do rebanho.
O rapaz evenko, que vai ser caçador, aprende a disparar flechas
com o arco, mas não participa de uma caçada verdadeira com
os adultos num bosque. Aprende a laçar e a atirar com arco pri­
meiro contra um objeto imóvel, depois vai passando aos pou­
cos a atirar contra alvos móveis, e só então começa a caçar aves
e animais pequenos, ou a laçar cães e vitelos. Os equipamentos
vão mudando paulatinamente,-passando do tamanho reduzido,
Acercada origem histórica dojogo protagonizado 69

adaptado às màos infantis, para o tamanho natural que os adul­


tos utilizam, e as condições dos exercícios vão se aproximando
cada vez mais do trabalho produtivo. Ao aprender o manejo
das ferramentas e adquirir a destreza necessária para participar
no trabalho dos adultos, as crianças vão se incorporando pouco
a pouco ao trabalho produtivo.
Cabe supor que nesses exercícios com ferramentas em
tamanho reduzido existem alguns elementos de situação lúdi­
ca. Em primeiro lugar, há um certo convencionalismo da situa­
ção em que transcorre o exercício. O pequeno toco que assoma
entre as ervas nào é uma rena de verdade; nem o alvo contra o
qual o rapazinho dispara uma flecha é uma raposa ou um
milhafre. Esses convencionalismos vào sendo paulatinamente
substituídos por objetos verdadeiros de caça ou pesca. Em
segundo lugar, ao manejar um instrumento de trabalho de
tamanho reduzido, o rapaz executa uma ação parecida à do
adulto e, por conseguinte, permite supor que se compare ou
talvez se identifique com o caçador ou o pastor adultos, com
seu pai ou seu irmào mais velho. Assim, pode haver implícitos
nesses exercícios elementos de jogo protagonizado.
A propósito do acima exposto, gostaria de assinalar que, de
um modo geral, toda ação com um objeto que a criança assimila
como sendo o modelo que os adultos lhe oferecem apresenta
dupla natureza. Por uma parte, tem seu aspecto técnico operan­
te, que requer uma orientação para as propriedades do objeto e
para as condições de execução do ato; por outra parte, é um
tnodo social de executar a ação, da qual o adulto é veículo e, por
isso mesmo, dá lugar a que a criança se lhe equipare.
A sociedade apresenta às crianças a necessidade de apren­
der o manejo dos instrumentos de trabalho mais utilizados com
a destreza que se requer para o futuro caçador, pastor, criador
de gado ou agricultor, e isso dá lugar a todo um sistema de
exercícios. Sobre essa base surge, precisamente, o espírito que
«tinia as competições de diversos tipos. O conteúdo de tais com­
petições entre os adultos e entre crianças não apresenta nenhu­
70 Psicologia dojogo

ma diferença de princípio. Vários autores assinalam a seme­


lhança entre os jogos dos adultos e das crianças, referindo-se
precisamente aos jogos competitivos com regras. Assim, por
exemplo, Tcharuzin diz: “As crianças fazem os mesmos jogos
que os adultos” (1890, p. 33). Stártsev, ao descrever a vida dos
samoiedos, cita exemplos de jogos comuns como estes: “Seu
jogo predileto sào as corridas. Homens e mulheres colocam-se
em linha e correm uma determinada distância, com freqüência
superior a 500 metros, até um ponto convencionado. Ganha o
primeiro que chega, e dele se diz que é um bom corredor. Este
é para as crianças o tema preferido dc conversação, e elas pró­
prias, imitando os adultos, organizam corridas semelhantes” E
Stártsev prossegue: “As competições de tiro de rifle também
são um jogo em que participam homens e mulheres. O atirador
que demonstra melhor pontaria goza de grande prestígio. As
crianças imitam os mais velhos, mas exercitam-se com arco e
flechas.” Stártsev afirma estar muito divulgado o jogo da rena,
em que participam crianças e adultos. Um dos participantes
deve capturar com laço os demais competidores (cf. 1930, pp.
141 e outras).
Rubtsova conta que esses jogos de exercício são muito
populares: “A inóspita natureza de Tchukotsk e as duras condi­
ções de caça de inverno sobre o gelo com equipamentos muito
primitivos exigem dos esquimós uma resistência extraordiná­
ria. A velha geração exige aos jovens que se adestrem para
desenvolver suas forças, agilizar suas pernas, aumentar sua
resistência e sua habilidade. Alguns exercícios físicos, que
desenvolvem a força e a astúcia, começam a ser executados já
pelos jovens em idade pré-escolar. É muito comum que o pai
ou o educador (pai adotivo) ensine às crianças algum tipo de
treinamento. Quando elas aprenderam bem alguma coisa, ensi­
nam-lhes a seguinte. Em alguns tipos de treinamento partici­
pam também as meninas. Nas longas tardes de inverno, os trei­
namentos transcorrem em recintos fechados.
71

Para desenvolver a agilidade das pernas nos dias em que


não saem ao mar para pescar, os esquimós organizam corridas
(em circuito) com a participação de adultos e crianças. Estas
costumam exercitar-se em separado. No inverno, correm em
linha reta entre limites combinados, e não em circuito. Vence o
último que abandona a pista.
Tive ocasião de ver rapazes trcinando-se para desenvolver
músculos. Descreveremos aqui um caso. Um grupo de rapazes
reuniu-se diante de uma cabana, onde havia uma pedra grande e
muito pesada. Formaram uma fila e puseram-se a levá-la, um
por um, de uma parede à outra, até ficarem extenuados. Quando
todos terminaram essa operação, levaram a pedra ao redor da
cabana e depois em linha reta até um local determinado.
Como a ocupação principal dos esquimós é a caça, os
adultos começam desde muito cedo ensinando os rapazinhos a
manejar o rifle. Sào freqüentes os casos de garotos de oito anos
que atiram com muita pontaria” (1954, p. 251). “Quem esteve
no Extremo Norte c observou os costumes e a vida dos povos
que habitam essa região não pôde deixar de ver o grande inte­
resse que tanto os adultos quanto os jovens manifestam por
diversos exercícios esportivos e jogos populares”, escreve
Bazánov. Ao discorrer sobre “O dia da rena”, esse autor des­
creve: “Na festa, os caçadores e os criadores de renas, tanto
adultos quanto crianças, competem em corridas, lutas, provas
de laço, lançamento do machado a distância, enfiar um disco
nos galhos de uma rena e capturar renas a laço” (1934, p. 12).
Destacar do conjunto de atividades laborais alguns aspec­
tos e qualidades (a força, a astúcia, a resistência, a sensatez
etc.) que asseguram o êxito na execução de toda uma série de
processos de produção, e não de um só tipo, foi um importante
avanço na educação das jovens gerações. Pode-se supor que,
baseando-se nisso, destacaram-se exercícios singulares, espe­
cialmente orientados para a formação dessas qualidades.
Nào é missão nossa estudar a origem histórica dos jogos e
competições esportivas; assim como tampouco tratamos do nexo
72 Psicologia do jogo

existente entre o conteúdo desses jogos e a atividade industrial


típica deste ou daquele povo ou tribo. Importa-nos apenas assi­
nalar que vínculo existe entre a aprendizagem das crianças no
manejo de algumas ferramentas e as competições de habilida­
de em seu emprego. Essas competições sobrepõem-se a essa
aprendizagem como um exame original e reiterativo, na medi­
da em que os êxitos obtidos na aprendizagem e na formação de
habilidades físicas e técnicas, relacionadas com ela, subme-
tem-se à avaliação e à comprovação sociais.
Como já assinalamos, a incorporação precoce das crian­
ças ao trabalho dos adultos leva, nos primeiros períodos de
evolução social, a impulsionar a independência das crianças e
satisfaz diretamente a demanda social de independência.
Na etapa seguinte de desenvolvimento e devido à crescen­
te complexidade dos meios de trabalho e das relações de pro­
dução, desenrola-se uma atividade singular encaminhada no
sentido de propiciar a aprendizagem infantil no manejo dos
instrumentos de trabalho dos adultos.
No decorrer do desenvolvimento do regime do comunismo
primitivo, os adultos não puderam dedicar muito tempo a dar a
seus filhos uma educação ou uma instrução especiais. A exigên­
cia fundamental mais precoce possível que a sociedade conti­
nuou apresentando às crianças era a de independência. Assim,
Bryant escreve: “As mães tinham de cumprir suas obrigações
mais pesadas e nào lhes sobrava tempo para cuidar dos filhos.
As meninas e os rapazes, sobretudo estes últimos, estavam en­
tregues a si mesmos desde os quatro anos e às vezes antes. Os
pequenos traquinavam e retouçavam-se livres no pátio e na
horta contígua, e só queriam saber de si mesmos” (1953, p. 127).
Indicações como essa sobre a concessão de completa indepen­
dência às crianças no recreio e inclusive no próprio sustento
desde a mais tenra idade são abundantes nos livros de etnografia.
Apetrechados com instrumentos de trabalho como os que
os adultos empregam, mas de tamanho reduzido, as crianças,
abandonadas a si mesmas, passam todo o tempo livre exercitan­
Acercada origem histórica dojogo protagonizado 73

do-se com esses equipamentos, passando paulatinamente a ma­


nejá-los em condições próximas das do trabalho dos adultos.
Margaret Mead conta que os rapazes por ela observados
ficavam dias inteiros entregues a si mesmos. Tinham suas pró­
prias canoas, seus remos, seus arcos e suas flechas. Deambu­
lavam juntos pela margem da lagoa em grupos, pequenos e
grandes, e competiam no lançamento de dardos e no tiro com
arco, na natação e no remo, engalfinhavam-se em lutas corpo­
rais etc. Os rapazes mais velhos eram mandados freqüente­
mente a pescar entre os juncais e canaviais, ensinando de pas­
sagem os menores que os acompanhavam (cf. M. Mead. 1931,
pp. 77-78).
Miller relata as observações que fez nas Ilhas Marquesas:
“Assim que o rapaz pode se virar sem ajuda de ninguém, aban­
dona seus pais e constrói uma choupana em local escolhido a
seu gosto” (cf. N. Miller, 1928, pp. 123-124).
Arkin menciona a informação relatada por Displaine de
que “às margens do Níger viu com freqüência crianças de seis
a oito anos que, depois de abandonarem o lar paterno, viviam
por conta própria, construíam elas mesmas suas palhoças,
caçavam e pescavam, e até praticavam algumas formas toscas
de culto” (1935, p. 59).
Sintetizando os dados etnográficos existentes nessa esfe­
ra, Kosven escreve: “Os jovens, sobretudo os mais novos, tor­
nam-se, em grande medida, independentes desde muito cedo.
Passam a maior parte do tempo, a partir dos trcs ou quatro
anos, com os de sua idade e começam a caçar à sua maneira,
põem armadilhas para as aves, já sabem dirigir seu bote etc.
Entre os seis e os oito anos vivem independentes quase por
completo, amiúde em choupanas separadas, praticam uma
caça mais complicada, pescam etc. Mostram na caça resistên­
cia e argúcia magníficas. Eis os exemplos de caça de dois
Pequenos negros do Congo. Estendidos de costas, um braço
esticado, têm alguns gràos na palma da mão e esperam pacien­
temente que algum pássaro acuda a debicar e, nesse instante.
74 Psicologia dojogo

capturam-no fechando a mão de repente. Outro exemplo: ata-se


uma corda num galho que costuma ser freqüentado por maca­
cos, em suas constantes correrias de árvore em árvore; a outra
ponta da corda está segura nas mãos de um dos garotos, escon­
dido embaixo. Eles aguardam em silêncio o momento em que
um macaco se dispõe a saltar para o galho atado e, quando isso
ocorre, o garoto estica rapidamente a corda, o animal erra o
salto e cai no chão, onde é capturado pelos pequenos caçado­
res” (1953, p. 139).
A independência que a sociedade exige às crianças nesse
grau de desenvolvimento é alcançada vivendo elas por sua
conta, separadas dos adultos, mas igual em essência, e não par­
ticipando no trabalho produtivo ao lado dos adultos e com os
adultos: essa vida independente das crianças consiste, primei­
ro, em que se exercitem por conta própria com ferramentas de
tamanho reduzido e, depois, em que as empreguem diretamen­
te em condições o mais parecidas possível com aquelas em que
os adultos as utilizam.
A maioria dos autores afirma que essa vida independente
está difundida principalmente entre os rapazes, o que eviden­
cia, de modo indireto, que se trata de sociedades que, ao que
tudo leva a crer, passaram ao patriarcado, quando se atribuiu à
mulher todo o trabalho doméstico, no qual as meninas podem
ter uma participação e aprender assim todos os afazeres femi­
ninos. A independência das meninas educava-se, pois, fazendo-
as participar diretamente no trabalho de suas màes, que é mais
primitivo no emprego de ferramentas e, por isso, mais acessível.
Os rapazes, por sua parte, não podiam participar diretamente
no trabalho de seus pais; por isso lhes correspondia, em primei­
ro lugar, a exigência de independência, devendo exercitar-se no
manejo das mesmas ferramentas que seus pais utilizavam.
A vida independente dos rapazes nesse período baseia-se
no fato de que só aprendiam a utilizar os meios de trabalho. Os
adultos faziam para os pequenos ferramentas de tamanho redu­
zido e os ensinavam a usá-las. As çrianças exercitavam-se por
Acercü da origem histórica do jogo protagonizado 75

sua conta e aprendiam à perfeição o seu manejo. Pode-se supor


que justamente desse período da vida da sociedade datam as
iniciações, existentes até hoje em muitos povos que se encon­
tram em níveis evolutivos relativamente baixos, iniciações que
sào a um só tempo escola primária, exame de independência e
habilidade no manejo das ferramentas e familiarização com os
membros adultos da sociedade.
Os dados apresentados da carência de jogos protagoniza­
dos entre as crianças que crescem em sociedades menos desen­
volvidas também são desse período. Tampouco se encontra aí,
entre as crianças, ou só se encontra muito raramente, o jogo
protagonizado em forma evoluída. Não há necessidade alguma
de praticá-lo. As crianças entram na vida da sociedade sob a
direção dos adultos ou por sua conta: os exercícios no manejo
dos instrumentos de trabalho dos adultos, no caso de adquiri­
rem o caráter de jogos, serão de jogos esportivos ou de compe­
tição, mas não protagonizados. A reconstituição da atividade
dos adultos em condições lúdicas especiais carece de todo o
sentido em virtude da identidade das ferramentas que utilizam
as crianças e os mais velhos, bem como da gradual aproxima­
ção das condições de seu emprego às situações concretas de
trabalho. E embora as crianças nào participem nele, levam o
mesmo gênero de vida que os adultos, cm condições algo mais
brandas, porém totalmente reais.
Apesar de tudo, nessa etapa de desenvolvimento da socie­
dade já se encontram, se bem que raras vezes, os jogos propria­
mente protagonizados. Assim, por exemplo, Tcharuzin diz, ao
escrever sobre a vida dos lopários, que as crianças praticam os
mesmos jogos que os adultos; além disso, têm outros dois
jogos, e ambos sào imitativos. Um desses jogos baseia-se na
imitação da cerimônia de noivado: um rapaz toma uma menina
pela mão e dá com ela uma volta ao redor da mesa ou de algum
poste (se o jogo transcorre ao ar livre), e os restantes permane­
cem de pé ao lado, com a particularidade de que quem tem
boa voz canta uma letra como esta: “Tu a puseste, tu a colocas-
76 Psicologia do jogo

te.” Em seguida, cobrem-lhes a cabeça com dois pauzinhos em


forma de cruz, no lugar de coroas; quando deram três voltas,
retiram-lhes os pauzinhos e cobrem a noiva com um lenço. O
rapaz leva a menina para um lado e dá-lhe um beijo. Depois,
ambos sào conduzidos à mesa e sentam-se nos lugares de hon­
ra; a recém-casada continua coberta com o lenço, a cabeça
inclinada; o jovem abraça-a; após permanecerem sentados por
alguns momentos à mesa, ou passa-se a casar outro par ou os
recém-casados deitam-se para dormir juntos. Este é um jogo
de crianças dc cinco a seis anos, principalmente antes da boda
de alguém e sempre às escondidas dos pais, visto que estes o
proibem a seus filhos (cf. N. N. Tcharuzin, 1890, p. 339).
Mead apresenta no já mencionado trabalho a descrição de
vários jogos que podem ser catalogados entre os protagonizados.
Assim, as crianças de seis anos constroem às vezes casinhas
com troncos e brincam como se se dedicassem aos afazeres do­
mésticos. Eventualmente, juntam-se para brincar de noivos,
escolhendo casais, construindo casas, pagando de mentirinha o
dote da noiva e até, imitando os pais, deitando-se juntos, rosto
com rosto. A autora indica que as meninas pequenas nào têm bo­
necas nem costumam brincar de “bebês”. Os bonecos de madeira
oferecidos às crianças foram aceitos somente pelos rapazes, que
se puseram a jogar com eles, balançando-os e cantando-lhes can­
tigas de ninar como seus pais, que sào muito carinhosos com os
filhos2. Ao descrever esses jogos, M. Mead sublinha em repetidas
ocasiões que se vêem pouquíssimas vezes, e ela pôde contar nos
dedos aqueles a que teve a oportunidade de assistir.
É importante assinalar que entre os jogos descritos não há
nenhum que represente a vida laborai dos adultos; predomi­
nam os que reproduzem aspectos inacessíveis ou proibidos
para crianças das relações e da vida entre adultos.
É lícito supor que os jogos protagonizados que surgem
nesse grau de desenvolvimento são um modo peculiar de pene­
tração na esfera da vida e relações adultas interditada para as
crianças.
Acerca da origem histórica do jogo protagonizado 77

Nas fases tardias do regime de comunismo primitivo, as


forças produtivas continuaram evoluindo, tornando-se mais
complicadas as ferramentas e aprofundando-se a divisão do
trabalho. A complicação das ferramentas e das relações de pro­
dução, a elas vinculadas, teve de repercutir na situação que as
crianças ocupavam na sociedade. Dir-se-ia que se deslocavam
paulatinamente das esferas complicadas e de maior responsa­
bilidade da atividade dos adultos. Restava um grupo cada vez
menor de esferas de atividade laborai, nas quais elas podiam
participar com os adultos e cm igualdade.
Ao mesmo tempo, a complicação dos instrumentos de tra­
balho dava lugar a que as crianças não pudessem aprender o
manejo das ferramentas com modelos reduzidos. Ao ser dimi­
nuída, a ferramenta perdia suas funções fundamentais, conser­
vando apenas a aparência exterior das ferramentas de traba­
lho empregadas pelos adultos. Assim, por exemplo, enquanto o
arco reduzido nào perdia sua função principal, podendo dispa-
rar-se com ele uma flecha e acertar num objeto visado, um rifle
reduzido não passava de uma figura de rifle, com a qual não se
podia fazer um disparo, mas apenas simulá-lo3. Na agricultura
de enxada, um modelo reduzido era. apesar de tudo, uma ferra­
menta com que a criança podia desfazer torrões de terra; essa
enxada reduzida era parecida com a dc seu pai ou sua mãe, não
só pela forma, mas também por sua função. Ao passar para a
agricultura de arado, o arado reduzido, por muito que se pare­
cesse com o verdadeiro em todos os detalhes, perdia as funções
fundamentais de ferramenta: não se podia jungir a ele um boi
nem lavrar.
É possível que justamente nessa fase do desenvolvimento
da sociedade aparecesse o brinquedo no sentido próprio da
palavra, como objeto que só representava a ferramenta de traba­
lho e os equipamentos ou utensílios da vida dos adultos.
Nos livros de etnografia há muitas alusões ao caráter dos
jogos protagonizados nesse período. Vamos citar apenas as
descrições de alguns deles, usando os dados do trabalho de
Miller (1928).
78 Psicologia do jogo

As crianças da África Ocidental, escreve Miller, fazem na


areia algo parecido com campos de batatas. Cavam buracos no
solo e simulam plantar uma batata em cada um deles. Na
África do Sul'constroem casas pequenas, nas quais permane­
cem o dia inteiro. As meninas colocam pedras pequeninas e le­
ves entre dois pedregulhos duros e as trituram como se estives­
sem moendo farinha. Os meninos, armados com arcos peque­
nos e flechas, brincam de guerra, tocaiando e atacando.
Os rapazes de outra aldeia constroem todo um povoado
com casas de 40 a 50 centímetros de altura, acendem fogueiras
diante delas, nas quais assam os peixes que pescaram. De re­
pente, um deles grita: “Já é noite!”, e todos se deitam pronta­
mente. Depois, alguns imitam o canto do galo, todos voltam a
acordar, e o jogo prossegue.
As meninas das aldeias da Nova Guiné constroem refú­
gios temporários com folhas velhas. Põem ao lado fogões com
minúsculas panelas de barro. Uma pedra representa um bebê.
Deitam-no à beira-mar, banham-no e depois colocam-no dian­
te do lume para que seque e embalam-no no seio materno para
que adormeça.
Não vamos multiplicar os exemplos. Os apresentados evi­
denciam tratar-se já dc jogos protagonizados nos quais as
crianças reconstituem não só uma esfera do trabalho dos adul­
tos inacessível para elas, mas também os afazeres domésticos
em que participam diretamente.
Nào é possível determinar com exatidão o momento histó­
rico em que apareceu o jogo protagonizado. Pode ser diferente
entre os diversos povos, segundo as condições de sua existência
e as formas de passagem de uma fase inferior a outra superior.
O que nos importa é deixar estabelecido que nas etapas
iniciais da humanidade, quando as forças produtivas ainda se
encontravam num nível primitivo, no qual a sociedade não
podia enfrentar o sustento de seus filhos e as ferramentas per­
mitiam incluir diretamente as crianças, sem preparação espe­
cial alguma, no trabalho dos adultos,* nào existiam nem exerci-
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 79

cios especiais para aprender a manejar as ferramentas nem,


ainda menos, o jogo protagonizado. As crianças entravam na
vida dos mais velhos, aprendiam o manejo das ferramentas e
todas as relações, participando diretamente no trabalho deles.
Em outro grau superior de desenvolvimento, a inclusào das
crianças nas esferas mais importantes da atividade laborai exi­
gia uma preparação especial sob a forma de aprendizagem do
nianejo das ferramentas mais simples. Essa aprendizagem
do manejo das ferramentas começava em idade muito precoce
e fazia-se com exemplares reduzidos.
Começaram a ser praticados exercícios peculiares com
esses equipamentos reduzidos. Os adultos ensinavam as crian­
ças a manejá-los e acompanhavam de perto o progresso do
aprendizado. Esses exercícios tinham a participação, com toda
a seriedade, tanto de crianças quanto de adultos, pois viam uma
relação direta entre as práticas e o trabalho verdadeiro. Passado
o período de aprendizagem, que variava de acordo com o grau
de dificuldade, as crianças eram integradas no trabalho produ­
tivo dos adultos. Esses exercícios, portanto, só podem ser
denominados jogos de maneira muito convencional.
O sucessivo desenvolvimento da produção, a complicação
dos equipamentos de trabalho, o aparecimento de elementos de
indústria doméstica e, com ela, de formas mais complexas de
divisão do trabalho e de novas relações de produção deram
lugar a que se complicassem ainda mais as possibilidades de
incluir as crianças no trabalho produtivo. Os exercícios com
ferramentas reduzidas perdem a razão de ser e a aprendizagem
do manejo de equipamentos complicados é adiada para idades
subseqüentes.
Nessa etapa do desenvolvimento, operam-se simultanea­
mente duas mudanças no caráter da educação e no processo de
formação da criança como membro da sociedade. A primeira
delas baseia-se na preponderância conferida a algumas facul­
dades gerais e necessárias para dominar qualquer instrumento
(desenvolvimento das coordenações visomotoras, movimentos
80 Psicologia dojogo

leves e precisos, destreza etc.), e a sociedade cria objetos espe­


ciais para exercitar essas faculdades, ou, então, os instrumentos
reduzidos, em vários graus, simplificados e desprovidos das
funções iniciais, instrumentos que serviram na etapa anterior
para o treinamento direto, ou inclusive objetos especiais prepa­
rados pelos adultos para as crianças. O exercício com esses
objetos, que já podem ser denominados brinquedos, é anteci­
pado para idades mais precoces. Claro que os adultos ensinam
as crianças a manusear esses brinquedos.
A segunda mudança baseia-se no aparecimento do brin­
quedo simbólico. As crianças reconstituem com ele as esferas
da vida e da produção a que aspiram.
Assim, pode-se formular a tese mais importante para a
teoria do jogo protagonizado: esse jogo nasce no decorrer do
desenvolvimento histórico da sociedade como resultado da
mudança de lugar da criança no sistema dc relações sociais.
Por conseguinte, c de origem e natureza sociais. O seu nasci­
mento está relacionado com condições sociais muito concretas
da vida da criança na sociedade e não com a ação de energia
instintiva inata, interna, de nenhuma espécie.
Com o jogo protagonizado, começa também um novo pe­
ríodo no desenvolvimento da criança, o qual pode ser justifica-
damente denominado de período dos jogos protagonizados e
recebeu na moderna psicologia infantil e na pedagogia o nome
de período de desenvolvimento pré-escolar.
Já apresentamos fatos deveras convincentes dc que a gra­
dual complexidade das ferramentas dá inevitavelmente lugar a
que decline a inserção das crianças no trabalho produtivo dos
adultos. A infância prolonga-se. Importa sublinhar, além disso,
que esse prolongamento nào se deve à soma de um novo perío­
do de desenvolvimento ao já existente, mas a uma singular
incrustação do novo período evolutivo que origina um progres­
sivo aumento do período de aprendizagem do manejo das fer­
ramentas.
Acerca da origem histórica dojogo protagonizado 81

Apresenta-se uma situação em que nào se pode ensinar à


criança o manejo das ferramentas em virtude da complexidade
destas, assim como do fato dc que a divisão dc trabalho que sur­
giu permite agora escolher a atividade futura, nào determinada
de modo univalente pela atividade dos pais. Inicia-se um perío­
do original em que as crianças estão entregues a si mesmas. Fun­
dam-se comunidades infantis onde vivem, embora sem preo­
cupações quanto ao seu próprio sustento, uma vez que estão
organicamente vinculadas à vida da sociedade. É nessas comu­
nidades infantis que começa a dominar o jogo.
A análise do processo de formação do jogo protagonizado
apresenta-nos um dos problemas centrais da moderna psicolo­
gia infantil: o da origem histórica dos períodos da infância e do
conteúdo do desenvolvimento psíquico em cada um desses
períodos. Esse problema excede em muito o tema do presente
livro. Podemos apenas exteriorizar, em termos muito gerais, a
conjectura de que os períodos do desenvolvimento infantil
têm, ao que tudo indica, sua história: os processos do desenvol­
vimento psíquico que se operam em certos períodos da infan­
da aparecerão e mudarão na história4.
Como já dissemos, o jogo protagonizado possui uma téc­
nica lúdica original: a substituição de um objeto por outro e
com ações por eles condicionadas. Não conhecemos com sufi­
ciente exatidão como as crianças aprendiam essa técnica nas
fases de desenvolvimento da sociedade em que o jogo se apre­
sentava como forma peculiar da vida das crianças.
E evidente que essa original técnica lúdica não podia ser
fruto da inventiva criadora independente das crianças. O mais
provável é que as crianças se inspirassem na arte dramática dos
adultos, a qual tinha alcançado um nível bastante elevado nes­
sa fase de desenvolvimento da sociedade. As danças rituais
dramatizadas, nas quais a ação representativa convencional
estava muito em voga, existiam nessas sociedades, e as crian­
ças participavam diretamente nelas ou presenciavam-nas. Por
82 Psicologia dojogo

isso, pode-se supor com pleno fundamento que as crianças her­


daram a técnica lúdica das formas primitivas de arte dramática.
Diz-se nos livros de etnografia que os adultos dirigiam a
prática desses jogos. Ora, isso se refere apenas aos jogos mar­
ciais; mas é lícito supor que os modelos (e outros tipos tam­
bém) de atividade coletiva fossem propostos pelos adultos.
A hipótese que expusemos da origem histórica do jogo
protagonizado e da assimilação de suas formas tem uma im­
portância fundamental para a crítica das concepções biologi-
zantes do jogo infantil. Os fatos apresentados mostram com su­
ficiente clareza que o jogo é de origem social.
Por outra parte, essa hipótese tem para nós uma transcen­
dência heurística, porquanto indica a direção em que devem
ser procuradas as fontes do jogo protagonizado no transcurso
do desenvolvimento individual das crianças contemporâneas.
Capítulo 3
Teoria do jogo

1. Teorias gerais do jogo: Groos e Buytendijk


Há tempos o jogo dos animais e do homem despertou o
interesse de filósofos, pedagogos e psicólogos, mas só em fins
do século XIX foi objeto de uma investigação psicológica es­
pecífica por Groos. Antes dele, o erudito italiano Colozza pro­
curou sistematizar os dados sobre os jogos infantis. O seu li­
vro Os jogos infantis, sua importância psicológica e pedagó­
gica (1909) é uma tentativa de dar a conhecer o alcance psicoló­
gico e pedagógico do jogo infantil. Isso explica justamente que o
resultado da parte psicológica do livro seja a classificação dos
jogos segundo os processos psíquicos mais bem representados
e exercitados, no entender do autor, em uns ou outros.
Colozza tem idéias anteriores à futura teoria de Groos,
como diz acertadamente A. Grombatch no prefácio da edição
russa do citado livro de Colozza. “Os animais superiores, in­
cluindo o homem”, escreve Colozza, “nào desenvolvem num pri­
meiro momento uma luta muito dura nem cruenta pela vida. Os
recém-nascidos encontram na màe ou, como costuma ocorrer
quase sempre, no pai e na màe, ajuda, defesa e solicitude. Em grau
considerável, sào o trabalho e a atividade de seus progenitores que
sustentam a vida do bebê, cuja energia, que nào precisa ser
84 Psicologia dojogo

empregada em obter o sustento, é livremente consumida de mo­


do que esse consumo não pode ser considerado trabalho.
Em maior grau ainda, vemos isso na vida dos seres huma­
nos, sobretudo nas sociedades civilizadas em que a família
alcança seu máximo desenvolvimento. Os pais sentem-se obri­
gados a dedicar a maior parte de seus trabalhos a proporcionar-
lhes o sustento, e os filhos necessitam de vários anos, não para
poder viver por conta própria, mas tão-somente para preparar-
se para trabalhar: o trabalho não lhes exige ao princípio um
direcionamento completo de suas energias. Mesmo quando a
criança começa a trabalhar, a sua existência ainda é sustentada
em grande medida por seus familiares. Por isso sempre sobra
um excesso de energia que consome em jogos ou então graças
ao qual, como diz Spencer em sua Sociologia, se entrega ao
agradável exercício de suas faculdades ociosas a que se con­
vencionou chamar jogo” (1909, p. 31).
Numa outra passagem, ao descrever o jogo dos gatinhos
domésticos, Colozza escreve: “Os gatinhos não tardam muito
em mostrar interesse por tudo o que roda, corre, desliza e voa.
É a fase preparatória para a futura caça de ratos e pássaros”
(ibid., p. 27). Foi precisamente nessa idéia do jogo como ante­
cipação da futura atividade séria, exteriorizada por Colozza e
ainda antes por H. Spencer, que Groos fundamentou a sua teo­
ria dojogo.
A teoria do jogo de Groos é bastante conhecida e foi muito
difundida no primeiro quartel do século XX. Caracterizando-a
da maneira mais geral, seu autor denomina-a teoria do exercí­
cio ou da auto-educação. As idéias básicas da “teoria do exer­
cício” são definidas por Groos nas seguintes teses:
1. Todo ser vivo possui predisposições hereditárias que in­
cutem finalidade ao seu comportamento; entre as peculiarida­
des inatas da natureza orgânica dos animais superiores deve-se
incluir também a ânsia impulsiva dc atividade que se manifesta
com singular força no período de crescimento.
Teoria dojogo 85

2. As reações inatas dos seres vivos superiores, sobretudo


do homem, por mais necessárias que sejam não bastam para
cumprir missões vitais complexas.
3. Todo ser superior tem infância, ou seja, um período de
desenvolvimento e crescimento durante o qual não pode sus-
tentar-se por conta própria; concede-lhe essa possibilidade a
solicitude de seus pais, baseada, por sua vez, em predisposi­
ções congênitas.
4. Esse período da infância tem por finalidade possibilitar
a aquisição das adaptações necessárias à vida, mas estas não se
desenvolvem diretamente a partir das reações inatas; por isso
se concede ao homem uma infância prolongada, dado que quan­
to maior o grau de perfeição alcançado no trabalho, tanto mais
longa é a preparação para o mesmo.
5. A aquisição de adaptações, possível graças à infância,
pode ser de um gênero diferente. Uma maneira de singular
importância e, ao mesmo tempo, a mais natural para adquiri-
las consiste em as reações herdadas tratarem de manifestar-se
por si sós, em virtude da mencionada ânsia impulsiva de ativi­
dade e, desse modo, elas próprias dão vazão a novas adapta­
ções; assim, sobre a base congênita formam-se hábitos adqui­
ridos e, sobretudo, novas reações habituais.
6. Esse gênero de aquisição de adaptações ocorre mediante
o afa, também inato no homem, de imitar, intimamente relacio­
nado com os costumes e aptidões da velha geração.
7. Onde o indivíduo em desenvolvimento manifesta, con­
solida e amplia da forma indicada, por seu próprio impulso
interno e sem nenhum fim exterior, as suas inclinações, encon­
tramo-nos diante das mais primárias manifestações do jogo
(1916, pp. 70-71).
Resumindo suas considerações sobre a transcendência do
J°go, Groos escreve: "‘Se é certo que o desenvolvimento das
adaptações às sucessivas tarefas vitais constitui o objetivo
principal da nossa infância, não o é menos que cabe ao jogo
*ugar preponderante nessa relação de conveniência, de modo
86 Psicologia Jo jogo

que podemos dizer perfeitamente, empregando uma forma um


tanto paradoxal, que nào brincamos porque somos crianças,
mas que nos é dada a infância justamente para que possamos
brincar” (ibid., p. 72).
Embora tenham sido introduzidas emendas c adições as
mais variadas à teoria do jogo de Groos, esta foi admitida em
sua totalidade por Ed. Claparède (em seus primeiros trabalhos),
Haupp, Stern, K. Bühler e, entre os psicólogos russos, por Vi-
nográdov, Vakhtiórov e outros.
Não houve quase nenhum autor que escrevesse sobre o
jogo que nào tivesse feito emendas ou adições à teoria de
Groos. A história do trabalho criador da teoria geral do jogo
antes da publicação do livro de Buytendijk (1933) (sem contar
a teoria de S. Freud) foi uma história de emendas, aditamentos
e observações críticas dispersas à teoria de Groos, todas rela­
cionadas com as opiniões gerais do processo de desenvolvi­
mento psíquico da criança.
Detenhamo-nos nas observações críticas que se fizeram à
teoria do jogo de Groos.
Claparède escreveu num artigo (1934) dedicado ao livro
de Buytendijk: “Nos começos do século XX, os psicólogos
acreditaram ter a chave do enigma do jogo, chave dada por
Groos que nada mais fez do que adverti-los acerca do enigma
per se. A partir de então, a questão do jogo apresentou-se ainda
mais complicada do que antes ”
Nào se pode deixar de concordar com essa apreciação do
papel desempenhado pelos trabalhos de Groos sobre o jogo. É
claro que Groos nào decifrou o enigma do jogo, enigma que
ainda hoje continua por averiguar até o fim. Mas o enorme
mérito de Groos reside no fato de ter exposto o problema do
jogo e, com a sua teoria do exercício prévio, elevou-o à catego­
ria das atividades mais essenciais em todo o desenvolvimento
na infância. Qualquer que seja a nossa opinião sobre a teoria de
Groos, por muito discutível que ela hoje nos pareça, contém
uma formulação da grande transcendência do jogo no desen-
feoria dojo go --------------------------------------------------------------------------------------

volvimento psíquico, formulação que devemos conservar, em­


bora muito renovada. Nào se pode dizer que K. Groos tenha
propriamente criado a teoria do jogo como atividade típica do
período da infância; limitou-se a dizer que essa atividade tem
determinada e importante função biológica. A teoria de Groos
fala da transcendência, mas não da natureza do jogo.
Zenkóvski escreveu no prefácio da edição russa do livro
de Groos A vida espiritual da criança : “Tão profunda e valiosa
é a concepção biológica dos jogos infantis exposta por Groos
quanto, devemos confessar, débil e superficial a análise psico­
lógica a que Groos os submete. Com efeito, o significado cen­
tral dos jogos na vida da criança somente pode ser captado 110
caso de que, além dos argumentos gerais, se dê a conhecer a
dependência de todo 0desenvolvimento espiritual da criança
em relação aos jogos. A teoria biológica do jogo só pode per­
durar caso se consiga mostrar o nexo psicológico do jogo com
todos os processos que transcorrem na alma infantil, caso se
consiga fazer da psicologia do jogo o ponto de partida para
explicar a psique da criança. Ao ler o livro de Groos, em vez
de se encontrar isso, tem-se a impressão de que ele nem sequer
suspeita da dificuldade dos problemas apresentados’' (1916, p.
VI). “Após formular uma série de valiosas observações sobre a
psicologia do jogo, Groos nào o coloca no centro do desenvol­
vimento psicológico, como o exige a sua própria teoria”
(ibid.).
Groos faz a simples constatação de que o jogo possui o
caráter de exercício prévio, e nisso vê o seu sentido biológico;
as suas demonstrações dessa tese fundamental reduzem-se a
analogias entre as formas lúdicas de conduta dos cães e as res­
pectivas formas de atividade séria dos animais adultos. Quan­
do Groos vê um gatinho brincando com um novelo de lã, clas­
sifica esse jogo entre os “de caça”, que considera exercícios
prévios somente porque os movimentos do gatinho recordam
°s do gato adulto quando caça um rato. Nào se pergunta que
forma de conduta é essa nem qual é o seu mecanismo psicoló-


88 Psicologia dojogo

gico mas, pelo contrário, que sentido biológico tem essa condu­
ta tão “pouco séria”. A resposta a essa pergunta prova alguma
coisa? Creio que nào. Neste caso, a crítica põe a perder a
demonstração’ por analogia. Passemos, entretanto, a analisar a
essência das teses fundamentais de Groos.
Pode-se considerar acertada a premissa fundamental de
partida. Com efeito, em certa fase do desenvolvimento filoge-
nético dos animais, a experimentação genérica, fixada rigida­
mente em formas hereditárias de diferentes tipos de comporta­
mento, resulta insuficiente para a adaptação às condições com­
plicadas da existência e, o principal, em permanente mudança.
Faz-se necessária a experimentação individual que se vai for­
mando ao longo da vida do indivíduo. Groos também tem razão
quando afirma que essa experimentação individual e essas novas
adaptações não podem surgir diretamente das reações inatas.
Do ponto de vista de Groos, o jogo é precisamente a atividade
em que ocorre a formação da superestrutura necessária sobre a
base das reações congênitas, em que “se formam os hábitos
adquiridos e, antes de tudo, as novas reações habituais”.
Contudo, há nessas teses de Groos pelo menos dois aspec­
tos discutíveis. Em primeiro lugar, embora considere que a
experimentação individual provém da genérica, fixada por
herança, ele contrapõe essas duas formas de adaptação. A opo­
sição nào reflete a sua relação real. “A formação do experimen­
to individual”, diz com razão Leóntiev, “apóia-se na adaptação
da conduta genérica aos elementos mutáveis do meio ambien­
te" (1965, p. 296). Portanto, nào se ergue nenhuma superestru­
tura sobre a conduta genérica, mas, simplesmente, a própria con­
duta genérica muda, tomando-se mais flexível.
Em segundo lugar, é difícil imaginar que no jogo dos ani­
mais, atividade nào relacionada com a luta pela existência e,
por conseguinte, desenvolvida cm condições especiais em
nada parecidas com as condições em que há de transcorrer, por
exemplo, a caça autêntica do animal, haja adaptações reais. No
jogo falta o principal, o respaldo genuíno sem o qual, como já
Teoria dojogo 89

se sabia ao tempo de Groos, nào pode haver nem podem fixar-


se novas formas concretas de experimentação genérica. Como
pode operar-se, em geral, a menor mudança no experimento
genérico se os adultos satisfazem as necessidades fundamen­
tais dos filhotes, e estes nem sequer estabelecem relações reais
com as condições de sua vida no futuro? Claro que não podem
surgir formas novas de experimento genérico no jogo.
Voltemos, porém, a Groos. O errôneo na lógica dos argu­
mentos de Groos estriba-se em que, ao enfocar o jogo de ma­
neira teleológica e atribuir-lhe certo sentido biológico, come­
çou a procurá-lo nos jogos dos animais, sem descobrir a sua
verdadeira natureza, sem comparar sequer a conduta lúdica
com a utilitária e sem, no flindo, analisar o jogo.
Groos incorre num grande erro ao estender diretamente ao
homem, sem fazer nenhuma ressalva, o sentido biológico do
jogo dos animais. Polemiza muito com Spencer. Argumenta
contra a teoria spenceriana do “excesso de energia”, embora
acabe aceitando-a, em última instância, com algumas emen­
das: rechaça o papel da imitação, assinalado por Spencer, e
considera que não se pode falar de imitação no caso dos ani­
mais. Ora, ao polemizar com Spencer sobre algumas questões
particulares, não abandona o terreno spenceriano no enfoque
de princípio dos problemas de psicologia do homem em geral e
do jogo infantil em particular. O núcleo dessa abordagem, que
pode ser denominada evolucionismo positivista, consiste em
que, ao ser transferida para o homem, apesar da extraordinária
diferença de condições de vida existente entre o homem e os
animais, e do surgimento das condições sociais, somadas às
naturais, o aparecimento do trabalho, das leis e dos mecanismos
da adaptação, concretamente o mecanismo de aquisição da expe­
riência individual, apesar de todas estas diferenças o enfoque nào
muda por razão de princípio. É errônea uma abordagem tão na­
turalista do jogo do homem (da criança). Groos, bem como, diga-
se de passagem, toda uma série de psicólogos que compartilham
dos critérios do positivismo spenceriano, nào enxerga o fato, que
90 Psicologia dojogo

se tornou evidente depois dos trabalhos de Karl Marx, de que a


transferência para o homem muda radicalmente o processo de
desenvolvimento individual.
K. Groos, em sua teoria do jogo, adivinhou (não é que ti­
vesse compreendido, mas adivinhou precisamente) que o jogo
reveste-se de suma importância para o desenvolvimento. Como
já dissemos, essa conjetura de Groos deve ser conservada em
toda e qualquer teoria nova do jogo, ainda que se pretenda que o
conceito de função do jogo no desenvolvimento seja revisto.
A pergunta de Groos pode ser reformulada nos seguintes
termos: O que é que o jogo introduz dc novo na conduta gené­
rica dos animais ou que aspecto novo da conduta genérica o
jogo ofcrece? Em que se baseia o conteúdo psicológico dos
exercícios prévios? Esta é precisamente a questão que é objeto
de todas as nossas pesquisas sucessivas do jogo dos animais.
Quando Groos publicou seus trabalhos sobre o jogo, sua
teoria foi a que predominou e a que todos ou quase todos os
psicólogos admitiram. Nela se viram plasmadas as posições
gerais de princípio que os psicólogos daquele tempo ocupavam e
que caracterizamos antes como posições de positivismo spen-
ceriano. Ora, ao adotar a teoria de Groos em sua totalidade,
alguns psicólogos introduziram nela emendas e aditamentos,
acomodando-a aos seus critérios pessoais.
Assim, Stern põe nas nuvens os trabalhos de Groos c inclui
no seu sistema personalista de idéias a concepção que aquele
tem do jogo: “Desde o ponto de vista do estudo biológico ou,
melhor dito, teleológico, o jogo é um membro inevitável do sis­
tema de objetivos do indivíduo [o grifo é nosso]. A sua defini­
ção diz que o jogo é a autoformação instintiva das aptidões em
desenvolvimento, o exercício prévio e inconsciente das funções
sérias de amanhã” (1922, p. 167). Numa outra passagem, W.
Stern escreve que o jogo é para a vida o que as manobras são
para a guerra. Deduz a necessidade do jogo, como exercício pré­
vio, do surgimento prematuro das predisposições internas.
Teoria dojogo 91

Na opinião de Stern, “é preciso pôr em jogo” as diversas


aptidões e faculdades humanas, ou seja, estas sào uma neces­
sidade vital nos diferentes tempos. Mas resulta que as pre­
disposições internas que originam essas faculdades não con­
cordam em absoluto em seu despertar psíquico com esse
prazo de necessidade real, uma vez que já se fazem sentir
muito antes. Tal precocidade parece ser uma lei geral; nào há
uma única funçào psíquica que esteja livre de sua ação.
Estabelecem-se repentinamente, com pressuposição instintiva,
as direções de atividade que ainda nào foram predetermina­
das para a vida autêntica do homem, mas que, com freqüên­
cia, já mostram sua energia verdadeiramente espontânea na di­
reção do objetivo final para que tende o homem. E a atividade
do jogo. No espernear, no balbuciar da criança dc peito já se
manifestam o jogo e os instintos de caminhar e falar que só vi­
rá a praticar após o primeiro ano de vida: nos jogos turbulen­
tos do rapaz e no jogo da menina com bonecas já se eviden­
ciam os instintos de luta e cuidado cuja aplicação só se con­
cretizará decênios depois etc. Toda tendência para o jogo é o
alvorecer do instinto sério.
Em vista da universalidade dessas manifestações precoces
do instinto, temos o direito de ver nelas uma predisposição
interna e unilateral do homem, ou seja, podemos falar do “des­
pertar para o jogo” ou. segundo Schiller, do “instinto de jogo”
(Spieltrieb). Como ocorre com os outros instintos, o indivíduo
sente nesse caso um invencível impulso interno, ao qual se
entrega sem perguntar “por quê” nem “para quê” (cf. W. Stern,
1922, pp. 168-169).
Como se depreende do acima exposto, Stern, que compar­
tilha das idéias de Groos, procede a alguns aditamentos. Sào
tres: o primeiro consiste na idéia da precocidade do amadureci­
mento das aptidões; o segundo é o reconhecimento de que o
J°go é um instinto especial; e o terceiro, a necessidade de pre­
parar as aptidões em amadurecimento para o seu contato ínti­
mo com as impressões do mundo exterior.
92 Psicologia Jo jogo

O primeiro aditamento não está em contradição com a teo­


ria de Groos e limita-se a introduzir nela um princípio explica­
tivo novo. O segundo, porém, está em flagrante contradição
com as idéias do autor da teoria do exercício prévio. Groos
sublinha especialmente no livro A vida espiritual da criança:
"‘Não falei em nenhuma parte da minha exposição do "impulso
lúdico’ ou do ‘instinto de jogo'. Com efeito, não creio ser possí­
vel admitir a sua existência. Por isso enfatizei expressamente
em meu Spiele der Tiere (p. 86) [Jogos dos animais] que não
existe nenhum ‘impulso lúdico' e que este, pelo contrário, nào
é mais do que um modo original de manifestação dos diversos
instintos e impulsos. Apesar disso, e em virtude da compreen­
são errônea desse ponto no meu primeiro trabalho, propagou-
se muito a opinião de que a teoria do exercício baseia-se no
reconhecimento do instinto do jogo” (1916, p. 73).
O aditamento mais substancial é o terceiro, ao indicar que
a criança nào repete passivamente o que o modelo faz, nem
mesmo quando imita, de modo que o jogo está determinado
exclusivamente por ela. Escreve Stern: “Pelo contrário, esta­
mos aqui diante de um exemplo típico de convergência do
inato e do adquirido: o fator externo do meio circundante pro­
porciona materiais e modelos de excepcional possibilidade
para o jogo, o que serve para imitar ( imitabilia ), mas só o fator
interno do instinto do jogo determina quando e como sairão
deles as imitações (imitatio) reais. A escolha inconsciente
entre os materiais para imitar e o modo de sua assimilação e
transformação dependem totalmente das predisposições con­
gênitas: das condições internas de desenvolvimento e das con­
dições, também internas, de diferenciação” (1922, p. 172).
Ao contrário de Stern, Groos nào leva geralmente em con­
sideração o papel que desempenham as condições externas no
jogo, já que se opõe diametralmente à tese de Spencer sobre a
imitação como base do jogo. Referindo-se principalmente ao
ser humano, Stern assinala o papel que a imitação desempe­
nha. Pensar-se-ia que, com isso, estaria sendo concedido um
r 93
feorio dojogo -------------------------------------------------------------------------------------
papel determinante às condições exteriores, que são a fonte dos
modelos para imitar. Nào obstante, Stem reduz ao mínimo o
significado das condições de vida. Dir-se-ia que a imitação
deve estar a serviço da vinculação da criança às condições de
vida que a rodeiam, concretamente às formas em maturação
de atividade dos adultos, em meio das quais a criança cresce e
se desenvolve. Stem, com a sua teoria da convergência, retira es­
se papel progressivo da imitação e coloca-o a serviço das ten­
dências interiores, dos instintos. Essa idéia aproxima as postu­
ras dc Stem das dos biogeneticistas (Hall e outros), para quem o
conteúdo dos jogos infantis vem automaticamente determinado
pelas fases iniciais e repete as do desenvolvimento histórico da
humanidade.
Portanto, em vez de significar um avanço em relação à
teoria do jogo de Groos, essa emenda de Stern aprofunda ainda
mais os aspectos errôneos no que se refere à incompreensão da
diferença cardeal existente entre o desenvolvimento das crian­
ças e o dos filhotes de animais.
As emendas e adições feitas à teoria do jogo de Groos pelo
psicólogo vienense K. Bühler apontam para uma direção algo
diferente.
Bühler admite a teoria do exercício prévio, de Groos.
Assim, escreve: “A natureza previu para os animais suscetíveis
de serem domados em ótima medida, para os animais de apti­
dões ‘plásticas’, um período de desenvolvimento durante o
qual se submetem mais ou menos à proteção e ao exemplo dos
pais e coetâneos, com vistas a preparar-se para a vida real, para
a vida séria. A esse período chama-se juventude e com ela está
intimamente relacionado o jogo juvenil. Jogam os cães e gatos
jovens, à semelhança do ser humano na mocidade, mas nào
jogam nem os coleópteros nem os insetos, nem mesmo as abe­
lhas e as formigas, altamente desenvolvidas. Isso nào pode ser
casual; baseia-se, antes, numa concatenaçào interna: o jogo é
complemento das aptidões plásticas e, somando-se aquele a
94 Psicologia dojogo

estas, constituem o equivalente do instinto. O jogo proporciona


um exercício continuado e ainda necessário para as aptidões
imaturas e instáveis ou, melhor dizendo, constitui de per si
esses exercícios” (1924, p. 23).
Bühler emite uma opinião muito ponderada sobre a teoria
de Groos e classifica o surgimento filogenético do jogo como
exercícios prévios na fase de domação. Considera, enpassant, que
essa teoria, apesar de assinalar o aspecto objetivo do jogo, não o
explica, já que não desvenda seu aspecto subjetivo. Para descobrir
este importantíssimo aspecto, segundo ele, toma por ponto de par­
tida a sua teoria da prioridade das reações hedonísticas1.
Admite em sua totalidade a teoria de Freud e o princípio
freudiano do prazer como princípio fundamental da vida mas,
em outros momentos, polemiza com ele2. Censura-lhe privile­
giar somente a satisfação e o prazer, que nào podem ser a força
propulsora do desenvolvimento nem das novas aquisições.
Considera que a explicação do jogo oferecida por Freud não
concorda com os fatos e recrimina-o porque, com tal explica­
ção, retroage o jogo à vida passada da criança, sem projetá-lo
no amanhã. Nesse particular, contrapõe Groos, que vê a grande
perspectiva vital do jogo infantil, a Freud, o teórico da reprodu-
tividade (ver K. Bühler, 1933, p. 206).
Para explicar o jogo, Bühler introduz o conceito de prazer
funcional. Este conceito adquire determinação ao ser separa­
do, por um lado, da satisfação ou prazer e, por outro, da alegria
devida à antecipação do resultado da atividade.
Ao avaliar com critério crítico a teoria spenceriana do
excesso de energia, Bühler escreve: “Não, a natureza avançou
em linha reta, necessitou, para o mecanismo de domação dos
excedentes, de uma riqueza de atividade transbordante, movi­
mentos corporais, sobretudo dos animais jovens, que devem
preparar-se e exercitar-se para a vida séria; e, com esse fim,
dotou de prazer a própria atividade, criou o mecanismo do pra­
zer obtido pelo funcionamento. A atividade, como tal, é ade-
Teoria dojogo 95

quada, sem altos e baixos e sem atritos devidos ao funciona­


mento dos órgãos corporais; e converteu-se, independente­
mente de todo o resultado conseguido, em fonte de alegria.
Adquire-se, ao mesmo tempo, um motor de ensaios e erros
incessantes” (1924, pp. 504-505).
Considera Bühler que o prazer funcional pode aparecer
pela primeira vez nas fases de formação dos hábitos e, como
mecanismo biológico de jogo, tornou-se um fator vital de pri­
meira categoria. Partindo daí, oferece a sua definição do jogo:
“Chamamos jogo a uma atividade dotada de prazer funcional,
mantida por ele ou em prol dele independentemente do que
faça além disso, e da relação de finalidade que tenha” (ibid.,
p. 508).
Dado que o momento central do jogo na concepção de
Bühler é o prazer funcional, cumpre avaliar sobretudo a sua
importância real. Admitamos que Bühler tenha razão e que
exista, na realidade, o prazer que a atividade proporciona como
tal. Esse prazer funcional apresenta-se como um motivo, ou
seja, como o objetivo sob cuja égide se desenvolve a atividade
e, simultaneamente, como o mecanismo interno que sustenta a
sua reiteração. A domaçào pressupõe a reiteração com o fim de
consolidar formas novas de comportamento (hábitos) necessá­
rias a uma melhor adaptação às condições cambiáveis da vida.
O prazer funcional é precisamente o objetivo em que se
baseiam a motivação e a repetição de certos movimentos. Essa
reiteração é a que, em definitivo, dá lugar a que se consolidem
essas formas reiteradas de comportamento.
Poderá, entretanto, o prazer funcional ser a base da sele­
ção das formas comportamentais? Admitamos também a
segunda tese de K. Bühler de que, para selecionar as formas de
comportamento, precisa-se de seu excesso e dc uma transbor-
dante riqueza de atividade, de movimentos corporais, sobretu­
do nos animais jovens. O que se deve selecionar dessa riqueza
e em seguida consolidar?
96 Psicologia do jogo

Se examinarmos a aquisição de formas novas de compor­


tamento segundo o mecanismo de aprendizagem por tentativas-
e-erros, a própria denominação já contém em si a possibilidade
de seleção: as ações corretas selecionam-se, repetem-se e con­
solidam-se, ao passo que as errôneas são freadas, não se repe­
tem nem se consolidam. Mas a satisfação funcional é o motor
de todas as tentativas, incluindo as erradas. Por conseguinte, o
prazer funcional, no melhor dos casos, deve dar lugar à reitera­
ção e, daí, à consolidação dc quaisquer atividades, de quais­
quer movimentos. As pesquisas experimentais de aprendiza­
gem, realizadas pelos psicólogos norte-americanos, os dados
da formação dos reflexos condicionados da escola de I. P.
Pávlov e, por último, a experiência da domação, evidenciam
que na formação de novas adaptações tem uma importância
decisiva a seleção, que está relacionada com o bem-estar, quer
dizer, com a satisfação das necessidades. Portanto, a satisfação
das necessidades é decisiva para selecionar as atividades que
podem dar lugar ao seu aprazimento. O prazer funcional, por
seu lado, origina c conforta o movimento de per si, indepen­
dentemente da sua função adaptadora. Bühler censurava a
Freud que fosse o teórico da reprodutiv idade; mas o mesmo
Bühler, que introduzia o prazer proporcionado pelo funciona­
mento, não transpunha os limites da reprodutividade e, mais do
que isso, reafirmava-a.
KofTka apontou os defeitos da teoria de Bühler: “Bühler
oferece-nos um ponto de vista novo. Afirma que toda ativida­
de proporciona prazer por si só, independentemente do seu
resultado. Devo acrescentar que a atividade certa, ou seja,
aquela que transcorre corretamente, de acordo com o meu de­
sejo, suscita prazer, independentemente de que o fim alcança­
do seja alegre ou não. Já vimos exemplos desse tipo: recordarei
o animal do experimento da vara dupla e a alegria dele quando
levou a cabo as primeiras ações conscientes'. Bühler conceitua
essa ‘alegria' proporcionada pelas funções como estímulo para
Teoria dojogo 97

entregar-se totalmente à atividade lúdica. Eu vejo nisso uma


importante passagem que se deve, obviamente, regulamentar
na teoria, porque a passagem do prazer para a atividade está
longe de ser suscetível de fácil compreensão. Mas o que está
completamente claro é que o prazer proporcionado pela pró­
pria ação serve de estímulo para novas ações” (1934. p. 235).
As observações críticas de Koffka são justas, mas insufi­
cientes. Primeiro, ele entende de maneira subjetiva o acerto da
atividade; segundo, o prazer resultante da própria ação pode
servir de estímulo para repetir ações anteriores e não para rea­
lizar novas.
Portanto, não se justifica a concepção de K. Bühler de que
o prazer funcional seja uma força originadora de novas adapta­
ções na fase de domação. Tampouco há razões para admitir
que o jogo seja uma forma universal de domação. Esta distin-
gue-se precisamente do exercício porque pressupõe a seleção e
formação de novas adaptações, enquanto o exercício pressupõe
a reiteração e o aperfeiçoamento do já selecionado. Uma vez
que o jogo, segundo a definição de K. Bühler, nào depende de
nenhum resultado e, portanto, não está relacionado com a
adaptação real, nào pode conter seleção de adaptações que
tenham de submctcr-sc a um cxcrcício subseqüente.
O nosso exame da teoria de K. Bühler seria incompleto se
nào mencionássemos o segundo aspecto do jogo por ele assi­
nalado. Além do prazer funcional, indica o princípio que rege a
forma do jogo ou a aspiração a uma forma perfeita. Ao formu­
lar esse segundo princípio, K. Bühler recorre aos trabalhos de
Ch. Bühler, Hetzer c outros psicólogos da escola vienense.
Esse princípio está representado de maneira mais completa nas
obras de Ch. Bühler.
Ch. Bühler, ao dizer que K. Bühler completava a tese de
Groos com duas teses (a do prazer funcional específico e a da
substancial idade do êxito formal), sublinha a sua idéia e afirma
9Uc a formação, a qual nada mais é senão possessão e apertei-
9H Psicologia do jogo

çoamento, produz prazer, e deve-se compreender o prazer fun­


cional relacionado com a formação e o aperfeiçoamento do mo­
vimento, que progridem com cada reiteração, e não com a reite­
ração como’ tal. Daí, deduz Ch. Bühler, a definição do jogo como
atividade orientada para o gozo produzido pelo aperfeiçoamen­
to (Ch. Bühler, 1931, p. 56). E lógico que, com essa compreen­
são do jogo, Ch. Bühler considere jogos puros os funcionais,
manipuladores, das crianças menores.
Qual a contribuição nova desta tese sobre a primitiva aspira­
ção ao aperfeiçoamento com que, segundo parece, o prazer
funcional está relacionado? Não elucida mas, pelo contrário,
complica ainda mais a questão. Ao separar o êxito material da
atividade dos êxitos formais dos exercícios, K. Bühler e, na sua
esteira, Ch. Bühler, que introduziu o conceito de aspiração pri­
mária à forma perfeita, não disseram quais são os critérios de
aperfeiçoamento de que se vale o animal ou a criança ao passar
de uma reiteração para outra. É claro que esses critérios não
existem nem podem existir onde não há modelo nem atitude pe­
rante ele como modelo. Groos dava uma explicação teleológica
do jogo em sua totalidade. Os dois Bühler levam esse teleologis-
mo até seu fim lógico, vendo uma meta interna em cada reitera­
ção. Procurando completar e corrigir a teoria de Groos com uma
análise dos aspectos subjetivos do jogo, 1C. Bühler nada mais fez,
na realidade, senão aprofundar o teleologismo de Groos.
A teoria de K. Bühler não deixa lugar à explicação natura­
lista do jogo nem à sua compreensão como atividade do animal
que o liga com a realidade. Tentativas desse tipo, embora em
menor medida, já foram feitas por H. Spencer e, em parte, por
K. Groos. A teleologia desloca definitivamente a biologia da
explicação do jogo.
Antes da publicação do trabalho de Buytendijk (1933), pre­
dominava a teoria de Groos. Buytendijk fez uma nova e origi­
nal tentativa de criação de uma teoria geral do jogo.
Caracterizando a atitude da teoria dc Buytendijk em face
da teoria de Groos, Claparède escreveu (1934) que a concep­
Teoria dojogo 99

ção da importância preparatória do jogo foi superada por Buy-


te n d ijk em seu trabalho dedicado à natureza e transcendência
do jogo, trabalho rico em idéias (mais do que em observações)
e ilustrado com excelentes fotografias dc crianças c animais
brincando.
Indiquemos, em primeiro lugar, as duas principais obje-
ções que Buytendijk faz à teoria do exercício prévio de Groos.
Para começar, Buytendijk afirma nào existir nenhuma de­
monstração de que um animal que nunca brincou possua em
menor grau instintos de perfeição. Na opinião de Buytendijk, o
exercício nào tem para o desenvolvimento da atividade instinti­
va a importância que se lhe atribui. A atividade psicomotora
não necessita, em seu parcccr, de ensaios prévios para que
possa funcionar, como tampouco a flor necessita de atividade
lúdica para crescer. Assim, a primeira objeção baseia-se em
que as formas instintivas de ativ idade, tal como os mecanismos
nervosos em que se estribam, amadurecem independentemente
do exercício. Nessa objeção, Buytendijk fala como partidário
da teoria do amadurecimento que transcorre pelo influxo dc
forças potenciais internas.
Depois, Buytendijk separa do jogo o exercício propriamen­
te dito, assinalando que esses exercícios preparatórios existem,
mas quando sào preparatórios não constituem jogo. Para
demonstrar tal asserção, Buytendijk fornece vários exemplos.
Quando a criança aprende a correr ou a andar, seus passos
sào reais, ainda que imperfeitos. Outra coisa muito diferente é
quando a criança que sabe caminhar brinca de andar. Quando
um filhote dc raposa ou outro animal pequeno sai à caça com
seus pais para exercitar-se, a sua atividade nào apresenta cará­
ter lúdico e é totalmente distinta do jogo de caçar, de perseguir
etc desses mesmos animais. No primeiro caso, o animal mata
a sua presa; no outro, comporta-se da maneira mais inofensiva.
A tentativa de Buytendijk de distinguir o jogo do exercício na
futura atividade séria merece atenção.
10 0 Psicologia do jogo

Buytendijk construiu sua teoria do jogo partindo de prin­


cípios opostos às teses de Groos. Se para este o jogo explica a
importância da infância, para aquele, ao contrário, a infancia
explica o jogo: o ser vivo brinca porque ainda é muito jovem.
Buytendijk deduz as peculiaridades do jogo: primeiro, das
peculiaridades da mudança de conduta na infancia; segundo,
das peculiaridades da atitude da espécie dada de animais em
face das condições de sua vida; e, terceiro, das principais incli­
nações na vida. Também as liga com elas.
Ao analisar as peculiaridades da dinâmica comportamen-
tal, típicas do período da infancia, Buytendijk reduziu-as a
quatro características fundamentais:
a) ambigüidade ( Unberichtheit) dos movimentos;
b) caráter impulsivo dos movimentos (Bewgungstrang ),
que consiste em que a criança, assim como o animal jovem,
nunca está quieta por causa da impulsividade espontânea, a
qual tem fontes internas. Dessa impulsividade nasce a incons­
tância típica da conduta infantil;
c) atitude “patética” perante a realidade (pathetische Eins-
tellung). Buytendijk entende por “patética” a atitude oposta à
gnóstica e que poderia caracterizar-se como relação diretamente
passional em face do mundo circundante, devida à reação diante
da novidade do quadro do mundo que se oferece ao animal jovem
ou à criança. Buytendijk relaciona com a atitude “patética” a faci­
lidade com que as crianças pequenas se distraem ou se deixam
levar, a tendência que têm para imitar e a candura que as distingue;
d) por último, a dinâmica comportamental da infancia ca­
racteriza-se pela brevidade, a timidez e a presteza em envergo­
nhar-se (Schüíemheit). Não é produto do medo, pois as crianças,
pelo contrário, são afoitas; o que impregna os movimentos para
o objeto e desde o objeto, o avanço e o retrocesso, é uma peculiar
atitude ambivalente. Essa ambivalência dura até que se estabele­
ça a unidade entre o organismo e o meio circundante.
Todos esses traços - ambigüidade, caráter impulsivo, ati­
tude patética em face da realidade e timidez - levam o animal
jovem e a criança, em determinadas condições, a jogar.
10 1
feoriü dojogo
Não obstante, por si mesmos e fora de condições determi­
nadas, esses traços nào caracterizam a conduta lúdica. Para
a n a lis a r as condições em que surge o jogo, Buytendijk analisa
os j0gos entre os animais. Com a particularidade de que se fun­
d am enta na análise do meio em que o animal vive e ao qual
deve adaptar-se.
Na opinião de Buytendijk, os mamíferos podem dividir-se
em dois grandes grupos, segundo as condições em que vivem:
herbívoros e carnívoros. Os segundos são caçadores natos e
entre eles está muito difundido o jogo. Os primeiros jogam
niuiio pouco ou nada. A característica que distingue a inter-
relação dos animais caçadores e o seu meio ambiente é a pro­
pensão deles para objetos físicos configurados e claramente
diferenciáveis no campo da caça. A exceção dos herbívoros
são os símios, os quais, ao contrário dos outros herbívoros,
vivem num meio diferenciado e variado. Têm em comum com
os animais caçadores o modo de conseguir o sustento: a captu­
ra dos objetos previamente escolhidos. Buytendijk chama aos
símios e aos carnívoros caçadores “animais que se aproximam
das coisas” (Ding-Annãhenmgstieré ).
A análise da difusão do jogo entre os mamíferos leva
Buytendijk à conclusão de que os animais que jogam são preci­
samente aqueles que “se aproximam das coisas”. Os resultados
de tal análise fazem com que Buytendijk estabeleça a primeira
delimitação entre o jogo e outras atividades: “O jogo é sempre
jogo com alguma coisa.” Deduz daí que, na maioria dos casos,
os chamados jogos dinâmicos dos animais (Groos) nào sào
jogos. Ao examinar o problema da relação do prazer e do jogo.
Por um lado, e da impulsividade e do jogo, por outro. Buyten-
dijk enfatiza, primeiro, que nào existe fundamento nenhum
Para denominar jogo todas as ações acompanhadas de prazer e,
Segundo. que o movimento ainda não é jogo. O jogo é sempre
c°ni algo, e não só movimento acompanhado de prazer. Não
obstante, declara Buytendijk, somente as coisas que também
10 2 Psicologia do jogo

“jogam” com os jogadores podem ser denominadas objetos de


jogo. E justamente por isso que a bola é um dos objetos preferi­
dos para jogar.
Buytendijk critica a idéia do jogo como manifestação de
instintos e considera que a base do jogo nào está constituída
por instintos soltos, mas por impulsos mais gerais. Nessa ques­
tão, influiu muito em Buytendijk a teoria geral de Freud sobre
os impulsos. Seguindo Freud, ele assinala três impulsos pri­
mordiais que conduzem ao jogo:
a) o impulso de liberdade (Befreiungstrieb), no qual se
expressa a aspiração do ser vivente a afastar os obstáculos pro­
cedentes do meio e que lhe restringem a liberdade. O jogo
satisfaz esse anelo de autonomia individual que, no entender
de Buytendijk, o recém-nascido já sente;
b) o desejo de fusão, de comunidade com o meio circundan­
te ( Vereinigungstrieb). Este desejo é oposto ao anelo anterior.
Essas duas tendências, juntas, expressam a profunda am­
bivalência dojogo;
c) por último, a tendência para a reiteração {Wiederholungs-
trieb ), que Buytendijk examina em relação com o movimento
da tensào, da solução, tão essencial para o jogo.
O jogo surge, na opinião de Buytendijk, quando os men­
cionados impulsos primários colidem com as coisas, que são
parcialmente conhecidas graças às peculiaridades do movi­
mento do animal jovem.
A medida que desenvolve suas idéias, Buytendijk faz
diversas observações de particular interesse que devem ser
tomadas em consideração ao examinarmos suas concepções
teóricas. A sua idéia mais interessante é a de que só se joga
com objetos que “jogam” eles próprios com os jogadores. Diz
Buytendijk que os objetos sobejamente conhecidos valem tão
pouco para jogar quanto os desconhecidos por completo. O
objeto de jogo deve ser conhecido em parte e possuir, simulta­
neamente, certas possibilidades. No mundo animal, essas pos­
sibilidades são, sobretudo, de caráter motor. Descobrcm-se
feoria dojogo 103

graças aos movimentos de prova e, quando esses têm algum


êxito, criam-se as condições para jogar.
A relação original existente entre conhecer e desconhecer
o o b je to de jogo cria o que Buytendijk denomina a imagem ou
configuração do objeto. Sublinha que tanto o animal quanto o
homem só jogam com imagens. O objeto só pode ser de jogo
q u a n d o contém a possibilidade de configurar-se. A esfera do
jogo é uma esfera de imagens e, por conseguinte, de possibili­
dades e fantasia. Por isso, formulando a sua definição do obje­
to de jogo em termos mais precisos, Buytendijk diz que se joga
somente com imagens que jogam elas próprias com os jogado­
res. A esfera do jogo de imagens, dc possibilidades, é uma
esfera diretamente patética (pathetisch ), “gnosticamente natu­
ral” e parcialmente desconhecida da fantasia vital. Ao passar
do jogo para a realidade, o objeto perde sua imagem e sua sig­
nificação simbólica.
Claro que a noção de que entre os animais ocorre a fanta­
sia imaginativa é um tributo ao antropomorfismo.
O livro e a teoria do jogo de Buytendijk nào passaram des­
percebidos. Limitar-nos-emos a duas das repercussões que
esse livro teve.
Groos, contra cuja teoria é dirigido, em certo sentido, o
trabalho de Buytendijk, dedicou-lhe um artigo (1934). Viu-se
obrigado a assinalar, antes de tudo, a riqueza de idéias nele con­
tida. Entretanto, Groos não concorda com a asserção de que os
sintomas fundamentais do jogo são a ambigüidade e a tendên­
cia para o movimento. O conceito de ambigüidade tem, na opi­
nião de Groos, muitos significados e só pode pretender uma
significação universal para que se compreenda o sentido do
jogo no caso de que se complete com a possível tendência para
0 objetivo situado fora da esfera do próprio jogo. A tendência
Para o movimento também pode tomar-se como sintoma uni­
versal se a ela se juntar a intenção de movimento, e nào apenas
os movimentos executados na realidade.
10 4 Psicologia do jogo

Tampouco está Groos de acordo com que Buytendijk re­


duza todas as formas concretas de jogo dos animais, nas quais
se descobrem diversos instintos, a duas motivações fundamen­
tais (o impulso de liberdade e o impulso de fusão). É natural
que Groos discorde das objeções levantadas contra a teoria do
exercício prévio e mostre com exemplos de jogos motores,
carentes, segundo Buytendijk, de sentido de exercício, que os
argumentos deste último não persuadem.
Groos admite, por questão de princípio, que o “poder fi­
gurativo” do objeto é um sintoma essencial do jogo, e que o
jogo é uma esfera de possibilidades e fantasia, apesar de sua
discordância com a excessiva oposição entre a imagem e o
objeto.
Claparède publicou (1934) um artigo bastante extenso no
qual não só faz uma crítica da concepção de Buytendijk, mas
também desenvolve opiniões próprias.
As objeções de Claparède reduzem-se ao seguinte:
a) as peculiaridades dinâmicas do organismo jovem não
podem ser o fundamento do jogo pelas seguintes circunstân­
cias: primeiro, porque são próprias não só dos filhotes que jo­
gam, mas também dos que nào jogam; segundo, porque a mo­
bilidade se manifesta nào só nos jogos, mas também nas for­
mas de comportamento que Buytendijk não classifica de jogos
(por exemplo, nos saltos, nas danças, no esporte); terceiro, os
adultos também têm jogos, embora pela própria definição não
lhes seja próprio esse dinamismo; por último, as mencionadas
peculiaridades manifestam-se da maneira mais autêntica e
mais idônea em atividades tais como os entretenimentos, a
ociosidade, a conduta jocosa e nos jogos das crianças muito
pequenas que, segundo a definição de Buytendijk, nào são
jogos stricto sensu\
b) Buytendijk limita excessivamente o conceito de jogo.
As corridas, as rodas e as cambalhotas realizadas pelas crian­
ças no campo nào sào, para ele, jogos: embora sejam típicas
dessa atividade precisamente as características do dinamismo
10 5
-feoria dojogo _
in fa n til q u e ele assinala (desordem, ausência de finalidade, rit-
m ic id a d e , reiteração). E nào são jogos, segundo ele, porque
não há manipulação de nenhum objeto;
c) o termo “imagem” é infeliz para dar o sentido fictício
ou simbólico que o jogador atribui ao objeto do seu jogo.
Claparède considera a parte crítica do trabalho de Buy­
te n d ijk mais valiosa que a parte construtiva, portanto fica claro
que a in d a não possuímos uma teoria acabada do jogo.
B u y t e n d ijk não dá uma resposta satisfatória para a pergunta
sob re qual é a natureza do fenômeno “jogo”, porque escolheu
um c a m in h o errado, o de tipificar a forma exterior do compor­
tamento.
Opina Claparède que o fundamento do jogo não está na
forma exterior do comportamento, que pode ser completamen­
te igual tanto se se joga, quanto se não se joga; está, isso sim,
na atitude interna do sujeito diante da realidade. Claparède
considera que o sintoma mais essencial do jogo é a ficção. A
conduta real transforma-se em lúdica por causa da ficção.
Examinemos agora mais profundamente a concepção pro­
posta por Buytendijk e procuremos separar nela o importante
do discutível.
Ao analisar as opiniões de Buytendijk, percebe-se clara­
mente a influência que nele exerceu a teoria freudiana dos
impulsos. No entender de Buytendijk, o jogo é a expressão da
vida dos impulsos nas condições específicas que caracterizam
o período da infância. Buytendijk enfatiza-o no subtítulo de seu
livro Os jogos do homem e dos animais como jorma de mani-
Jestação dos impulsos vitais. (Nada tem de estranho que Cla­
parède não se fixasse nisso, que é a medula da teoria do jogo dc
Buytendijk. E assim ocorreu porque Claparède tampouco é
alheio às concepções de S. Freud.)
Buytendijk aproveita das obras de Freud a caracterização
dos impulsos fundamentais que se manifestam por meio do jo­
go e traslada-os para os animais. Sobram razões para isso, uma
Vez que, segundo Freud, os impulsos primários sào inerentes
106 Psicologia dojogo

inclusive aos organismos unicelulares. Entretanto, essa propo­


sição não convence, posto que os impulsos sào próprios não só
do organismo jovem, mas também do adulto. Por isso não po­
dem determinar o jogo nem levar à atividade lúdica, tal como as
peculiaridades dinâmicas do organismo jovem.
Traduzindo a linguagem um tanto nebulosa e equívoca de
Buytendijk para uma outra mais simples, resultará que o jogo,
em sua forma primária, é apenas manifestação da atividade
orientadora. A tese de Buytendijk de que só se joga com os
objetos que “jogam” com o próprio jogador pode ser assim
entendida: joga-se unicamente com objetos que não só provo­
cam uma reação orientadora, mas que contêm, além disso, sufi­
cientes elementos dc possível novidade para estimular a ativi­
dade orientadora. A esse respeito é essencial a idéia de Buy­
tendijk de que o jogo está mais difundido entre os animais que
têm na conta de modo fundamental de conseguir os alimentos a
captura de objetos diferenciados. Mas esse é precisamente o
grupo de animais de atividade orientadora, muito desenvolvida
em virtude da complexidade das condições de vida.
Assim, se queremos ser conseqüentes, devemos admitir
que os principais impulsos vitais em que, segundo Buytendijk,
se baseiam os jogos, são próprios nào só dos animais carnívo­
ros e dos símios, mas também de outros animais.
Também não cabe a menor dúvida de que as peculiarida­
des dinâmicas do organismo jovem são próprias nào só dos
animais que jogam, mas de todos os demais (na mesma medida
em pintos e vitelos que em filhotes de gato, cão ou tigre). Daí
decorre inevitavelmente a dedução de que não são os principais
impulsos vitais nem as características peculiares do movimen­
to dos organismos jovens o fator determinante para o jogo. Uns
e outras podem coexistir e atuar simultaneamente sem que exis-
tajogo.
Nesse caso, fica somente por admitir que os jogos se ba­
seiam numa singular reação de “prova” em face do objeto ou,
como diríamos, numa reação orientadora diante do novo nas
Teoria dojogo 107

condições que cercam o animal jovem; e como, no começo,


tudo é novo para o animal jovem, é simplesmente um reflexo
orientador.
Tem-se pleno fundamento para considerar que entre o grau
de funcionalidade, a estereotipia das formas instintivas de com­
portamento e o nível do desenvolvimento das reações orienta­
doras há uma dependência inversamente proporcional: quanto
mais fixas estiverem, no momento de nascer, as formas instinti­
vas estereotipadas de comportamento, relacionadas com a satis­
fação das necessidades básicas do animal, menos se manifes­
tam as reações orientadoras; e, ao contrário, quanto menos
fixas estiverem, com maior força se manifestarão as reações
orientadoras. Essa correlação surgiu logicamente no transcurso
do desenvolvimento filogenético dos animais, determinado
pelo grau de complexidade e mutabilidade das condições a que
o animal deve adaptar-se. Pelo contrário, entre o grau de com­
plexidade e de mutabilidade das condições, por uma parte, e o
grau de desenvolvimento das reações orientadoras, por outra,
há uma dependência direta. Por isso os animais “caçadores” e
os símios têm reações orientadoras claramente manifestas e
desenvolvidas; e na infância sào animais “jogadores”.
Seria mais acertado falar, como disse com razào Galperin,
de “atividade orientadora”. “O reflexo orientador”, escreve
Galperin, “é um sistema de componentes fisiológicos de orien­
tação”: a mudança na direção de um estímulo novo e a sintoni­
zação dos órgãos sensoriais para a sua melhor percepção; po-
dem-se acrescentar a isso diversas mudanças vegetativas do
organismo que coadjuvam ou acompanham o reflexo. Em su-
nia, o reflexo orientador é um processo puramente fisiológico.
“Outra coisa é a atividade orientadora e investigadora, o
estudo da situação, denominado por Pavlov ‘o que é reflexo'.
Esse trabalho investigador no meio exterior já se encontra mais
além da fisiologia. No fundo, a atividade orientadora e investi­
gadora coincide com o que denominamos simplesmente traba­
lho de orientação. Mas acrescentar ‘investigadora' a ‘orientadora'
10 8 Psicologia do jog0

(o que nào é nenhum estorvo nos experimentos de Pávlov) já é


um freio para nós, porquanto a orientação não se limita à inves­
tigação nem à atividade cognoscitiva, mas o trabalho investiga­
dor pode chegar a ser um labor independente, necessitando ele
próprio de orientação.
Nem sequer entre os animais a orientação se limita a um
estudo da situação; acompanha-a a avaliação de seus diversos
objetivos (pelo que significam para as atividades atuais do ani­
mal), o esclarecimento mediante o possível movimento, a
prova de seus atos em face dos objetivos propostos e, por últi­
mo, o controle da execução desses atos. Tudo isso entra na ati­
vidade orientadora, mas excede os limites da investigação no
sentido próprio da palavra” (1976, pp. 90-91).
Assim, a teoria do jogo fundada por Buytendijk tem con­
tradições implícitas. Como é evidenciado pela análise, c sufi­
ciente que apareça a atividade orientadora numa determinada
fase do desenvolvimento dos animais para explicar o surgimen­
to do jogo e todos os seus fenômenos, descritos com tantos deta­
lhes por Buytendijk. O que para este era apenas uma das condi­
ções dc manifestação dos impulsos vitais, na realidade constitui
a base para construir a teoria geral do jogo dos animais.
Também nào se pode estar de acordo com Buytendijk em
que o jogo com um objeto baseia-se sempre na imagem ou na
plasticidade do objeto. Na realidade, pelo menos nas formas pri­
márias de jogo, o objeto com o qual o animal joga não pode re­
presentar nenhum outro objeto pela simples razão de que o ani­
mal ainda não entrou em contato com os objetos que lhe serv irão
para satisfazer suas necessidades fundamentais na idade madura.
Nem um novelo de lã, nem a bola ou o papel rumorejante e resva-
ladiço podem servir ao gato de imagem do rato pela simples
razão de que o jovem felino ainda nào viu nenhum roedor. Para o
animal que está começando a vida, tudo é novo. O novo só vem a
scr conhecido como resultado da experiência individual.
São corretas as idéias de Buytendijk sobre a limitação do
jogo: a exclusão dos simples movimentos reiterativos do círcu-
Teoria dojogo
109

|o de fenômenos lúdicos, movimentos próprios dos períodos


mais precoces do desenvolvimento da criança e de alguns ani­
mais. Por isso, uma série de movimentos reiterativos que Ch.
B i i h l e r conceitua como jogo pela concomitância de prazer fun­
cional não o sào em realidade. A asserção de Buytendijk de
que se joga somente com objetos deve ser compreendida no
sentido de que o jogo é comportamento e, portanto, uma atitu­
de determinada em face do meio e das condições objetivas da
existência.
Buytendijk é contrário à fúnçào de exercício prévio atri­
buída ao jogo, tal como apresentada por Groos. Com efeito, o
exercício só é possível em relação a algo que já surgiu na con­
duta. Ao mesmo tempo, pondera muito sobre a crescente
importância do jogo, e isso é verdade. O jogo nào é um exercí­
cio; é desenvolvimento. Nele aparece o novo, ele é o caminho
para o estabelecimento de novas formas de organização da
conduta, formas necessárias em virtude da complexidade cres­
cente das condições de vida. Renova-se e aprofunda-se neste
ponto a idéia de Groos sobre a importância do jogo.
Por último, é necessário assinalar que, depois de Freud, a
tendência para a "psicologia” profunda, ou seja, a psicologia
que tenta deduzir todas as peculiaridades de comportamento e
todas as manifestações superiores da dinâmica dos impulsos
biológicos, primários, começou a se manifestar de maneira mais
acentuada. K. Bühler e, depois dele, Buytendijk, são represen­
tantes típicos dessa “psicologia profunda”.
E paradoxal que, admitindo a necessidade do desenvolvi­
mento em tudo, os psicólogos da “profundidade” tenham aber­
to uma exceção para os impulsos, que não têm história e são
sempre os mesmos. Com essa lógica, como quer que seja a mu­
dança de comportamento, ao passar dos animais para o homem,
das formas primitivas para as manifestações superiores do gê­
nio criador do homem, o comportamento continua sendo sem-
pre a mesma manifestação dos impulsos primários, imutáveis e,
em definitivo, incognoscíveis.
Psicologia do jogo

Nào se pode deixar de admitir, a esse respeito, a observa­


ção de Leóntiev, que escreve: “A abordagem naturalista não só
torna impossível explicar cientificamente a especificidade da
atividade do homem e de sua consciência, mas consolida
retrospectivamente as idéias errôneas que se tenham também
da biologia. O retorno da conduta humana, cujas peculiarida­
des se apresentam com essa abordagem como inexplicáveis
por princípio, ao mundo dos animais consolida inevitavelmen­
te também na biologia a idéia de que existe um princípio incog-
noscível. Tal abordagem sustenta na teoria da evolução - dir-se-ia
agora ‘de cima para baixo’ - concepções metafísicas e idealis­
tas que postulam algumas vezes o enigmático movimento ‘ins­
tintivo' dos apêndices dos neurônios para a existência da ente-
léquia e, outras vezes, a tendência universal para a ‘boa forma’
ou os impulsos abissais sempre operantes etc.” (1965, p. 341).
Detivemo-nos tanto na teoria do jogo de Buytendijk por
duas causas fundamentais: a primeira, porque no trabalho des­
se psicólogo entrelaçam-se de forma caprichosa idéias metafí­
sicas e idealistas errôneas com observações e asserções corre­
tas, e é importante destacar estas últimas; a segunda, porque a
teoria geral do jogo de Buytendijk é a mais importante, o ápice
do pensamento euro-ocidental nessa questão.
Creio que essa teoria nào foi apreciada em todo o seu
valor. A opinião de Buytendijk de que só se joga com objetos, e
só com os parcialmente conhecidos, não foi submetida a uma
investigação e dela não se inferiram as deduções precisas. Cla­
ro que a culpa é também do próprio Buytendijk, ao colocar em
primeiro plano os impulsos primários e as peculiaridades do mo­
vimento do organismo jovem; mas a missão da crítica científi­
ca consiste em esclarecer aquilo a que se deve prestar atenção,
em continuar resolvendo o problema, e não só em dar uma apre­
ciação negativa.
Depois de Buytendijk houve uma crise na criação da teo­
ria geral do jogo que levou, em definitivo, a negar a própria
possibi 1idade de criação dessa teoria.
111
Teoria dojogo

Kollarits (1940) assinalou em seu artigo crítico que. ape­


sar dos trabalhos dc Claparède, Groos, Buytendijk e outros
autores, continua não havendo unidade na interpretação da
natureza do jogo, e isso ocorre, sobretudo, porque os psicólo­
gos inserem diferentes conteúdos num mesmo termo. O autor
examina os mais diversos critérios do jogo (exercício, prazer,
repouso, libertação, comunidade com o espaço, reiteração, dina­
mismo juvenil, ficção, ou seja, os sintomas fundamentais ex­
postos por Groos. Buytendijk e Claparède) e mostra que, pri­
meiro, eles não se encontram em todos os jogos e, segundo,
também podem ser encontrados em atividades não-lúdicas. Em
definitivo, Kollarits chega à conclusão de que não é possível,
por razão de princípio, destacar com exatidão o jogo. Não há.
simplesmente, um labor especial com essas características, e
isso a que se dá o nome de jogo nada mais é do que a mesma
atividade do ser adulto, da espécie e sexo dados, mas limitada
por certa etapa do desenvolvimento dos instintos, da estrutura
psíquica, da anatomia do sistema nervoso, dos músculos, dos
órgãos internos e, sobretudo, das glândulas de secreção inter­
na. (O autor nào se dá conta de que está propondo uma deter­
minada teoria do jogo. Outra coisa é o seu grau de certeza. Ela
parece-nos próxima das idéias de Stem, que considerava ser o
jogo “o alvorecer do instinto sério”.)
Mais acentuada ainda é a postura negativa em face do
jogo como atividade especial, tal como foi expressa no artigo
de H. Schlosber (1947). O autor, ilustre representante do be-
haviorismo norte-americano, chega em sua crítica das diver­
sas teorias do jogo à conclusão de que a categoria de atividade
lúdica é tão difusa que apenas tem utilidade na psicologia con­
temporânea.
Tais são, em suma, os resultados, bastante desconsolado-
res, do meio século dc tentativas para criar uma teoria geral do
jogo. O que está longe de subentender que o jogo não exista
como forma peculiar de conduta típica na infancia; isso impli­
ca unicamente que tal teoria nào podia ser criada sem ultrapas-
112 Psicologia do jogo

sar os limites das concepções biológicas e psicológicas em que


se baseavam os autores.
Se analisarmos os sintomas que destacaram o jogo de
outros tipos de comportamento, a abordagem geral para que
sobressaiam poderia denominar-se fenomenológica, quer dizer,
fixam-se nos fenômenos externos que, por vezes, também
acompanham esse tipo de conduta, mas não dâo a conhecer a
sua essência objetiva. Vemos nisso o defeito fundamental do
enfoque da investigação do jogo que redundou em conclusões
errôneas.
Além disso, o típico dessas teorias foi a identificação do
desenvolvimento psíquico da criança e, por conseguinte, do
seu jogo, com o desenvolvimento dos filhotes de animais e res­
pectivos jogos. Uma teoria do jogo tão geral que abranja o jogo
dos filhotes e o jogo da criança não pode formular-se, em
suma, devido à profunda diferença qualitativa do seu desenvol­
vimento psíquico. Ora, isso não significa que não possam ser
criadas duas teorias em separado: a teoria do jogo dos animais
e a teoria do jogo da criança. Cabe exteriorizar aqui algumas
idéias sobre a natureza psicológica do jogo dos animais jovens,
idéias que nos ocorreram durante a análise dos dados que estão
em nosso poder; talvez estas conjecturas sejam levadas em
conta pelos criadores de tal teoria. Além disso, também são im­
portantes para os nossos propósitos, uma vez que podem aju-
dar-nos a esclarecer as peculiaridades específicas do jogo das
crianças.
O jogo pode ser e é, de fato, objeto de estudo de diversas
ciências, por exemplo, da biologia, da fisiologia etc. Também é
objeto de estudo da psicologia, mormente da parte que investi­
ga os problemas do desenvolvimento psíquico. O psicólogo
que estuda esses problemas interessa-se pelo jogo, sobretudo
como atividade em que se exerce um tipo singular de regulação
psíquica e direção da conduta.
Também não cabe a menor dúvida de que o jogo, como
forma singular de comportamento, -aparece unicamente numa
Teoria Jo jogo 113

ce rta etapa da evolução do reino animal, e seu aparecimento


está relacionado com a infância como período especial do
desenvolvimento individual de um exemplar. Groos e, sobretu­
do, Buytendijk, destacam accrtadamente esse aspecto evolu-
cionista da origem do jogo.
Tomemos alguns enunciados de Buytendijk como tese de
partida. Admitamos que somente jogam os filhotes de mamí­
feros carnívoros e de símios; admitamos também que o jogo
não é uma função do organismo, mas uma forma de conduta,
ou seja, uma atividade com coisas, coisas que, além do mais,
possuem elementos de novidade. Para averiguar que sentido
biológico pode ter uma atividade com tais objetos nos filhotes
dessas espécies de animais, tratemos de esclarecer em que
nível se encontra a regulação psíquica da conduta dos exem­
plares adultos.
Segundo Leóntiev (1965), os animais dessas espécies
encontram-se em diferentes estágios dc desenvolvimento da
psique perceptiva; e as espécies superiores, na fase de intelec­
to. A direção psíquica da conduta no estágio de psique percep­
tiva baseia-se em que o animal separa da realidade circundante
as condições em que se dá de maneira objetiva a coisa que esti­
mula diretamente a sua atividade e que pode satisfazer uma
necessidade biológica, ao passo que na fase de intelecto separa
também as relações entre as coisas constitutivas das condições
de exercício da atividade. O que caracteriza a organização do
comportamento do último tipo é o aparecimento de fases pre­
paratórias.
Elementos de atividade como contornar os obstáculos,
tocaiar a presa e persegui-la, saltando ou rodeando os obstácu­
los interpostos, não estão orientados para o próprio objeto da
necessidade, mas para as condições em que este se apresenta.
Esses elementos de conduta estão dirigidos pelo reflexo psí­
quico das condições, por suas imagens. Neste caso, o principal
nào é que o animal percebe o obstáculo interposto no caminho
Para atingir o objetivo, mas que aparece a orientação para a rela-
114 Psicologia do jogo

ção existente entre o objeto e as outras condições. A orientação


dá lugar a que no movimento, dirigido para essas condições,
pareça já entrever-se o caminho para o objetivo final.
Como diz acértadamcnte Galperin, “a importância dos expe­
rimentos de Kõhler (e de todos os desse tipo) assenta, aliás, em
que apresentam situações muito simples que, entretanto, não se
resolvem com 4ensaios-e-erros casuais’, sem orientação do ani­
mal para as relações essenciais da tarefa. O processo de orienta­
ção mostra-se nelas como condição obrigatória de comporta­
mento acertado. Depois dessas situações fica ainda mais claro
que também nos problemas que se resolvem com provas casuais
se faz necessária a orientação, ainda que mínima, para a relação
entre a ação e o resultado bem-sucedido”. “A orientação da con­
duta baseada na imagem do meio e da própria ação (ou, pelo
menos, o seu caminho para o objetivo final)”, prossegue Gal­
perin, “constitui a condição indispensável (permanente, e nào
eventual nem casual) do acerto da ação” (1966, p. 245).
É essa a caracterização psicológica típica da atividade dos
animais que se encontram nessa fase evolutiva.
Há que insistir especialmente em que, para assegurar o
êxito da ação, não se requer simples orientação, mas uma
orientação rápida e exata, levada até a perfeição e treinada até
adquirir quase automatismo. Na luta pela existência, toda de­
mora ou imprecisão “equivale à morte”.
Seria possível imaginar que essa organização das ações surge
durante a adaptação individual, ao realizar atividades direta­
mente relacionadas com a luta pela vida? Não, o desenvolvi­
mento dessa organização nào poderia ir por esse caminho. Isso
teria levado rapidamente a que os animais morressem de fome
ou perecessem devorados por seus inimigos.
Portanto, deve ter existido um período singular na vida
individual dos animais e uma atividade peculiar nesse período
em que se desenvolveu e aperfeiçoou a imprescindível organi­
zação de toda a atividade subseqüente que estivesse orientada
diretamente para a luta pela vida e a conservação da espécie.
Teoria dojogo 115

Bruner (1972) sublinhou que a natureza da infancia e os


modos e procedimentos de educação evoluem e ficam subme­
tidos à mesma seleção natural que qualquer outro tipo morfo­
lógico ou behaviorista. Uma das hipóteses evolucionistas dos
primatas, escreve Bruner, é que a evolução baseia-se na sele­
ção progressiva de uma estrutura totalmente determinada da
infancia. Tal conjectura nào anda longe da verdade e refere-se
não só à evolução dos primatas, mas à de todas as espécies ani­
mais que habitam num meio objetai fracionado que requer
adaptação da conduta individual às condições singulares nas
quais o objeto necessário pode apresentar-se. Precisamente em
virtude da singularidade dessas condições sente-se, como
demonstrou Galperin, a necessidade objetiva de regulação psí­
quica das ações, ou seja, de regulação baseada na forma da
situação, nas condições da ação. Neste caso é impossível o cli­
chê, requer-se a máxima variedade de ações.
A inserção da infancia, como período peculiar da vida, na
cadeia geral do processo evolutivo constitui um passo impor­
tante no caminho da compreensão de sua natureza.
Já faz tempo que os embriologistas deram esse passo. Na
ciência russa, ele foi dado por Severtsev. Desenvolvendo as
idéias desse cientista, Tchemalkausen escreveu: “A progressi­
va complexidade da organização do animal adulto é também
acompanhada de uma complicação dos processos de desenvol­
vimento individual, dos quais essa organização é o resultado”
(1969, p. 353). Sintetizando os materiais existentes na embrio­
logia, Tchemalkausen insiste: “A ontogenia nào é só resultado
da filogenia: é também a sua base. Não só se prolonga, acres­
centando estágios, mas reestrutura-se no processo da evolução;
tem sua própria história, ligada logicamente à história do orga­
nismo adulto, e determina em parte essa história.
A filogenia nào pode conceituar-se como mera história do
organismo adulto nem opor-se à ontogenia. A filogenia é justa­
mente uma série histórica de certas ontogenias (selecionadas)”
Vbid.9pp. 351-352).
116 Psicologia do jogo

Essas importantes teses referem-se nào só ao desenvolvi­


mento embrionário dos tipos morfológicos, mas também ao
desenvolvimento pós-embrionário das formas de conduta. Ao
caracterizar a organização do comportamento dos animais que
se encontram, segundo a terminologia de Leóntiev, na fase de
desenvolvimento da psique perceptiva, apontamos a existência
obrigatória de atividade orientadora nesse comportamento, ati­
vidade que pode transcorrer de maneira diferente: precedendo
o comportamento ou acompanhando-o concomitantemente.
O aparecimento da atividade orientadora não leva por si só
a novas formas de conduta.
P. Y. Galperin, a quem devemos a elaboração da teoria da
atividade orientadora, escreve em seu já citado livro: “A parti­
cipação da atividade orientadora na adaptação do animal às
peculiaridades individuais da situação não significa necessa­
riamente que apareçam formas novas de comportamento. Ao
contrário, oferece sobretudo a possibilidade de um emprego
maior e, portanto, mais flexível, do repertório motor já existen­
te. Essa circunstância é de um extraordinário alcance: a orien­
tação no plano da imagem permite não criar novas formas de
conduta para situações individuais de mutabilidade extrema,
mas aproveitar os esquemas gerais de comportamento, adap­
tando-os de cada vez às variantes individuais de situações. Isso
também significa que o testemunho de que há regulação psí­
quica do comportamento é a singular flexibilidade, a mutabili­
dade e a variedade do seu emprego, e nào o aparecimento de
formas novas e peculiares de comportamento” (1976, p. 117).
Já dissemos que a atividade orientadora e a regulação com­
pleta de sua conduta, baseada na mesma atividade, devem for-
mar-se antes que o animal comece sua luta independente pela
vida, ou seja, na infancia. O jogo é a atividade em que se forma
e se aperfeiçoa a direção do comportamento baseada na atuação
orientadora. Sublinhamos que nào se trata de uma forma con­
creta de conduta - trófica, defensiva, sexual - mas da direção
psíquica rápida e exata de qualquer delas. E por isso mesmo que
117
Teoria do jogo

pare ce m estar entrelaçadas no jogo todas as possíveis formas de


co n d u ta s num único feixe, e é precisamente por esse motivo que
as ações lúdicas se revestem de um caráter de inacabado4.
As pesquisas, amplamente desenvolvidas nestes últimos
decênios, sobre a conduta dos animais em condições naturais,
bem como outras pesquisas experimentais, permitiram desco­
brir novos tipos de conduta. Interessa-nos destacar uma pes­
quisa especial de comportamento. Hinde, sintetizando dados
existentes, considera conveniente distinguir a reaçào orienta­
dora, relacionada com a imobilidade, da investigação ativa, na
qual o animal se movimenta com relação ao objeto ou setor
estudado. Descreve esse autor a conduta de investigação como
uma conduta que dá a conhecer ao animal o meio circundante
ou a fonte dos estímulos. Ao mesmo tempo, assinala a necessi­
dade de distinguir entre a conduta de estudo e o jogo: “Embora
alguns tipos de comportamento lúdico estejam também asso­
ciados ao conhecimento do objeto, nào há por que identificar a
investigação e o jogo. Se se desconhece o objeto, a atividade
investigadora pode preceder a lúdica e atenuar-se à medida que
se torna conhecida” (1975, p. 377).
E importante distinguir entre a conduta investigadora e a
lúdica, já que a primeira freqüentemente se converte na segun­
da. Logo, não faltam fundamentos para destacar a reaçào
orientadora, o comportamento lúdico e o jogo. E lícito supor
que essas formas surgissem, por essa ordem, durante a evolu­
ção e se apresentassem na ontogenia do comportamento dos
animais jovens.
Confirmam essa conjectura os dados ontogenéticos das
formas comportamentais dos mamíferos superiores. Fabri
(1976), baseando-se na síntese de múltiplos dados, remete o
jogo, como forma especial de comportamento dos animais jo­
vens, para o período que precede de imediato a maturidade
sexual.
Num primeiro momento, poderíamos descrever o jogo dos
animais jovens como atividade em que o animal, ao manipular
118 Psicologia dojogo

o objeto (coisa), com seus movimentos cria variações inimitá­


veis e imprevisíveis de sua situação e opera de forma incessan­
te com o objeto, orientando-se para as peculiaridades dessas si­
tuações, que mudam com rapidez. Diante dessa conjectura, as
características fundamentais do jogo são: as situações em rápi­
da mudança em que o objeto se encontra depois de cada ação
com ele, a adequação, igualmente rápida, das ações e, por fim,
a orientação dessas ações para as peculiaridades da situação,
constantemente renovada.
O núcleo central dessa atividade é a orientação na situa­
ção, que muda com celeridade e sem cessar, e a direção, basea­
da nisso, dos atos motores. A peculiaridade específica dos
movimentos no jogo é o seu caráter inconcluso e a ausência do
elo executor. O gatinho arranha, mas nào destroça o objeto, e o
cão morde, mas não a fundo. Isso gerou em alguns psicólogos
a ilusào de que no jogo de animais existe ficção ou fantasia.
As observações fragmentárias dos jogos dos animais dão
certa margem para fazer conjecturas sobre o caminho evoluti­
vo do jogo ao longo da vida individual dos animais, desde a
máxima atividade da parte orientadora e atividade inconclusa
e freada da parte executora, até a atividade mínima, instantânea
e exata da parte orientadora. Essa gradual atenuação, essa
fugacidade e essa exatidão de orientação, ao inserir-se nas ati­
vidades “sérias” que levam a efeito a luta pela vida, é o que
nela cria a ilusão dc completa ausência de regulação psíquica.
Por isso o jogo dos animais jovens é um exercício, mas não de
um sistema motor independente, nem de um instinto ou tipo
comportamental à parte, mas um exercício de direção rápida e
exata da conduta motriz em quaisquer de suas formas baseadas
nos modelos das condições individuais em que o objeto se
encontra, ou seja, um exercício na atividade orientadora.
A separação da fase orientadora no comportamento dos
animais superiores tinha de repercutir na estrutura do seu siste­
ma nervoso e na sucessão do amadurecimento dc suas diversas
partes. Nào analisamos especialmente as diferenças da suces-
Teoria dojogo 119

sâo do amadurecimento de partes separadas do sistema nervo­


so, ao passar dos animais que “não jogam” para os que “jo­
gam"’. Há indicações diretas para a reestruturação da ordem de
amadurecimento de partes soltas do sistema nervoso, ao passar
dos animais para o homem. Tchelovánov estabeleceu, ao reali­
zar um estudo comparativo da ontogenia precoce, que “no pró­
prio curso do desenvolvimento dos movimentos do bebê, desde
que nasce, observam-se peculiaridades que o distinguem radi­
calmente dos filhotes dos animais e têm grande importância
para a educação. Assim, por exemplo, descobrimos que a rela­
ção do tempo de desenvolvimento dos órgãos perceptores e
dos movimentos é distinta da dos animais. O córtex dos hemis­
férios cerebrais do recém-nascido começa a funcionar já no
segundo mês, como comprovam os exemplos de formação de
reflexos condicionados com todos os órgãos da percepção sen­
sorial, incluídos o visual e o auditivo. Ao mesmo tempo, os
movimentos do bebê de dois meses sâo muito imperfeitos. A
evolução consecutiva dos movimentos e dos órgãos receptores da
maioria dos animais é outra. Os primeiros ou já estão organizados
quando o indivíduo nasce, ou se formam antes de que possam
constituir-se reflexos condicionados de qualquer espécie nos
órgãos superiores de recepção e análise, ou seja, o olho ou o
ouvido. Dessa maneira, formam-se na criança primeiro os
órgãos superiores de análise, o visual e o auditivo, incluindo as
suas seções corticais, e só depois começam a desenvolver-se os
movimentos. Na maioria dos animais observa-se a ordem
inversa” (1935, p. 64).
Assim, todo o sistema motor dos filhotes dos animais
superiores está quase preparado para o momento de nascer,
enquanto o sistema dos analisadores superiores ainda não o
está. Esse sistema é precisamente o que permite desenvolver a
atividade orientadora, formar as imagens dos objetos e criar as
condições reguladoras da conduta. Há, por conseguinte, bas­
tante fundamento para pressupor que esses filhotes ainda não
12 0 Psicologia do jogo

têm preparada, quando nascem, a regulação psíquica, ou seja, a


orientação comportamental. A coordenação no desenvolvimen­
to dos sistemas motores e de sua direção psíquica formou-se
durante a evolução biológica.
A infancia dos filhotes desses tipos de animais transcorre
em condições que permitem aos exemplares adultos satisfazer
suas necessidades fundamentais, e os filhotes, devido à sua
maturidade física e a nào terem formada ainda a regulação psí­
quica do comportamento, não desenvolvem a atividade de con­
seguir alimentos.
Nisso se fundamenta precisamente a atividade impulsora
do desenvolvimento dos processos constitutivos da base para a
regulação psíquica do comportamento. Essa atividade é pre­
cisamente o jogo dos animais. Os elementos de novidade nos
objetos, destacados por Buytendijk, são necessários já que, por
um lado, apóiam a atividade orientadora e, por outro, mudam
incessantemente durante as manipulações, exigindo a regulação
psíquica do comportamento. A separação dos processos orien­
tadores, baseados nas mudanças respectivas do meio, desenvol­
vendo-se numa atividade singular, nào vinculada diretamente
à satisfação das demandas fundamentais, é um fato importan­
tíssimo na evolução das formas de comportamento. Desse pon­
to de vista, a infancia dos animais superiores é o período de
formação da regulação psíquica do comportamento e, sobre essa
base, de superação da desconformidade entre a formação dos
sistemas motores fundamentais e a involuçào dos sistemas ana­
lisadores superiores. A atividade em cujo seio transcorre o de­
senvolvimento e aperfeiçoamento da regulação psíquica é jus­
tamente o jogo como atividade orientadora que se forma à parte
em seu conteúdo substancial.
Todos esses enunciados por nós expostos, que sintetizam a
experiência acumulada, mas nào sistematizada, devem ser com­
provados em pesquisas comparativas especiais de psicologia.
12 1
Teoria dojogo

Como já dissemos, remetendo-nos aos dados das investi­


gações de Tchelovánov, a ordem do desenvolvimento dos siste­
mas motores e analisadores superiores da criança é totalmente
distinta da dos animais. Isso dá margem para supor que as cau­
sas e os mecanismos da aparição do jogo infantil também serão
muito distintas.
Cumpre sublinhar que, em nossa exposição, partimos da
idéia teórica de que a psique tem uma função reguladora do
comportamento e de que essa função dos animais superiores
forma-se em vida.
O problema do desenvolvimento psíquico, ou seja, do
desenvolvimento da função orientadora da psique, nem sequer
se apresentava nas teorias do jogo que expusemos e analisa­
mos. Talvez seja por isso que não se pôde criar uma teoria psi­
cológica geral do jogo.
Nada está mais longe de nós do que pensar que logramos
construir uma teoria acabada do jogo dos animais. Mas confia­
mos em que os conceitos e argumentos expostos induzirão os
psicólogos estudiosos do jogo dos animais a abordar o proble­
ma de uma nova maneira. Estamos de acordo com a idéia de R.
Hinde de que “a descoberta das bases do comportamento lúdi­
co premiará, sem dúvida, por si só, todos os trabalhos dos
pesquisadores, isso sem falar que projetará luz sobre a nature­
za da regulação de muitos outros tipos de atividade” (1975, p.
386).

2. Teorias e problemas da pesquisa do jogo infantil


Os representantes de quase todas as tendências da psicolo­
gia no Ocidente, com exceção do behaviorismo, tentaram de
uma ou outra maneira explicar o jogo das crianças, pondo em
prática, de passagem, como é natural, suas concepções teóricas
gerais (a psicanálise de Freud; a teoria gestaltista de Koffka; a
teoria dinâmica da personalidade de Lewin; a teoria do egocen­
122 Psicologia do jogo

trismo de Piaget). Se é certo que nem todos os representantes


dessas diversas tendências pretenderam criar uma teoria coe­
rente do jogo infantil, nào é menos certo que todos procuraram,
de uma maneira ou outra, interpretar suas características fun­
damentais.
Já em fins do século XIX, ainda antes de serem publicados
os trabalhos de Groos, os psicólogos dedicaram sua atenção fun­
damental ao funcionamento da imaginação e fantasia infantis.
Sully (1901) ressalta duas peculiaridades básicas da forma
de jogo que se denomina protagonizado e que é o principal na
idade pré-escolar. Trata-se, primeiro, da transformação da
criança por si mesma e dos objetos circundantes pela criança,
além da transição para um mundo imaginário; segundo, uma
absorção profunda na criação dessa ficção e da vida da crian­
ça nela.
Sully, entretanto, limita-se a colocar pontos de interroga­
ção no tocante à natureza das “idéias atraentes” que a criança
plasma no jogo e a todas as transformações a que ela submete a
realidade, nào dando nenhuma resposta exaustiva. Assim
escreve: “Eu, pelo menos, acredito que o jogo infantil, sobre o
qual tanto se escreveu e com seriedade, é compreendido de
maneira muito imperfeita. Trata-se de uma ocupação séria ou
será teatro semi-inconsciente em vez de ação semiconsciente,
ou não será uma coisa nem outra, ou uma e outra alternada­
mente? F.m minha opinião, seria um atrevido quem respondes­
se de chofre a estas interrogações” (1901, p. 19).
Esses dois fenômenos do jogo infantil - a atividade da
fantasia e a absorção profunda na ficção - foram sublinhados e
realçados por numerosos psicólogos e em torno de suas expli­
cações concentrou-se a atenção dos teóricos do jogo. Assim,
Stern escreveu: “A faixa etária de que tratamos denomina-se
precisamente a kidade do jogo’, e a imaginação fantástica já
atingiu aí um desenvolvimento que supera em muito o das res­
tantes funções da imaginação e do pensamento” (1922, p.
148). E Stem prossegue: “Quando se observa a criança total­
Teoria dojogo 123

mente embebida no conteúdo do conto que lhe narram ou da


história fantástica que ela própria conta, a seriedade com que
age em seus jogos e como fica desesperada quando a incomo­
dam, é impossível deixar de reconhecer que ainda existe aí
uma ilusão completa ou quase completa da realidade” [o grifo
émeu] (ibid., p. 151).
Stern vê a explicação desse trânsito para um mundo ima­
ginário e para a ilusão, com ele relacionada, da realidade no
fato de que a “criança pequena, que se defronta a cada passo,
em sua impotência, com obstáculos e cuja atividade real
depende em muito dos adultos, pode, naturalmente, sofrer a
incômoda sensação resultante dessa pressão e livrar-se dela
evadindo-se para o mundo da fantasia, cujo dono e senhor,
inclusive o criador e artífice, é ela própria. E quanto maior é a
sua ilusão com essa existência fantasmagórica, criada por ela
mesma, tanto maior é a sensação de liberdade e alegria.
Além disso, a realidade que circunda a criança é exígua. O
seu mundo sào os cômodos do lar. os familiares, a babá, os
passeios diários e os brinquedos. A grande vida restante ape­
nas projeta de longe o seu reflexo na vida infantil. Mas, ao
receber esse reflexo no mundo fantasmagórico de sua fantasia
e de seus jogos, a criança amplia a sua esfera vital. Com a par­
ticularidade de que introduz em seu reino de brinquedo nào só
os artigos do mundo exterior - o cavalo e o automóvel, o trem e
os barcos etc. -, mas também, e isso é muito mais importante,
as pessoas que ela protagoniza. Essa substituição de sua pró­
pria personalidade pela do outro, embora apresente fortes exi­
gências à consciência das ilusões, pode alcançar às vezes uma
intensidade assombrosa’’ (1922, pp. 152-153).
Essas declarações de Stern contêm uma concepção origi­
nal das causas do jogo e dos mecanismos que o acionam. A
estreiteza do mundo infantil e a sensação opressora da criança
originam a tendência a afastar-se desse mundo e a jogar; a fan­
tasia e a ilusão da criança constituem o mecanismo que põe
em prática o jogo. W. Stem deixa de lado a idcia, expressada por
124 Psicologia do jogo

ele próprio, de que a criança introduz em seu jogo a atividade


dos adultos e os objetos relacionados com essa atividade. No
entanto, é precisamente esse mundo dos adultos o atrativo para
a criança.
Assim, apresenta-se uma disjuntiva na explicação do jogo:
o que atrai a criança é o jogo, ou a reação à estreiteza do mundo
em que ela vive, ou a reprodução da atividade dos adultos.
Alguns autores, como K. Bühler, por exemplo, não quise­
ram atribuir um caráter demasiado ilusório ao jogo.
A idéia de que o jogo é uma manifestação de vivacidade e
despreocupação da fantasia, que atinge muito cedo um nível
bastante alto de desenvolvimento, é típica da psicologia fun­
cional ou da psicologia das aptidões. Da aceitação dessas opi­
niões resulta que uma aptidão tão complexa quanto a imagina­
ção, que esses mesmos autores consideraram especificamente
humana, aparece e se desenvolve bem antes do que outras, re­
lativamente mais elementares. Eles nào se apercebiam, sim­
plesmente, das contradições em que caíam com os seus pró­
prios critérios, em virtude de que o fenômeno do jogo deveria
explicar-se de alguma maneira, porém nào viam outra explica­
ção. E o fato é que a psicologia das aptidões nào podia dar
outra explicação. A fantasia ou a imaginação eram, evidente­
mente, as aptidões mais idôneas entre as que eram conhecidas
pela psicologia de fins do século XIX e começo do XX.
As opiniões segundo as quais a imaginação das crianças
alcança um alto grau de desenvolvimento foram criticadas por
L. S. Vigotski: “Tem-se até hoje a opinião de que a imagina­
ção da criança é mais rica do que a do adulto. A infancia é con­
siderada a idade de maior desenvolvimento da fantasia e,
segundo essa opinião, à medida que a criança vai crescendo,
diminuem a sua imaginação e a força de sua fantasia. Essa opi­
nião formou-sc porque toda uma série de observações da ativi­
dade da fantasia dá margem para extrair-se essa conseqüência.
Goethe dizia que as crianças podem fazer tudo de tudo, e
essa falta de pretensões e exigências da‘fantasia infantil, que já
Teoria do jogo 125

não está livre na pessoa adulta, foi interpretada freqüentemente


como liberdade ou riqueza da imaginação infantil...
Tudo isso junto serviu de base para afirmar que a fantasia
funciona na infancia com maior riqueza e variedade do que na
idade madura. Mas essa opinião não é confirmada pelo estudo
cientifico do problema.
... A imaginação da criança [...] nào é mais rica, é mais po­
bre do que a do adulto; durante o desenvolvimento da criança,
a imaginação também evolui e só alcança a sua maturidade
quando o homem é adulto” (1967, pp. 27-28).
Embora seja verdade que nas teorias gerais do jogo exami­
nadas no capítulo anterior tentou-se compreender o jogo a par­
tir das peculiaridades do organismo jovem dos animais, tam­
bém o é que nas teorias do jogo infantil explicaram-se os fenô­
menos fundamentais da conduta lúdica e, por conseguinte, do
jogo como forma de conduta da criança em função de um de­
senvolvimento intenso, no período da infancia, da imaginação
e de suas peculiaridades: vivacidade, despreocupação, ilusões.
Não se submeteu a exame, em absoluto, a situação da criança
na sociedade, no sistema de intcr-relaçõcs da criança com os
adultos que a rodeiam. W. Stern foi um dos primeiros a dizer
que a “estreiteza do universo” em que vive a criança é a causa
originária do jogo e que o jogo é uma forma de evasão desse
universo limitado.
A teoria psicanalítica de Freud influiu muito na com­
preensão da natureza do jogo infantil. Já aludimos à influência
exercida em K. Bühler, que adotou o critério econômico do
princípio de prazer, proclamado por Freud e em Buytendijk,
que baseou suas considerações teóricas nas idéias de Freud so­
bre os impulsos primários. A teoria psicanalítica influiu em
maior ou menor grau em numerosos psicólogos (Piaget, KofTfka,
Lewin) e atualmente obteve uma difusão muito ampla, incluin­
do a utilização do jogo como método diagnóstico e terapêutico
(a play therapy ou ludoterapia).
126 Psicologia dojogo

O próprio Freud nào expôs em lugar nenhum a sua teoria


do jogo nem se propôs a tarefa de criar tal teoria. Trata os pro­
blemas do jogo apenas de passagem, em relação com a sua ten­
tativa de penetrarrnais além do “princípio de prazer” (1925).
Como é sobejamente conhecido, Freud sentiu a necessida­
de de ir “mais além do princípio de prazer” motivado por sua
análise da neurose traumática. Depois de averiguar que, nos
casos de neurose traumática, a natureza do sono e dos sonhos,
nos quais costuma plasmar-se a tendência para a satisfação dos
desejos, está alterada e desligada de seus fins, Freud escreve:
“[...] Proponho que deixemos o obscuro e sombrio tema da
neurose traumática e passemos a examinar o método de fun­
cionamento empregado pelo aparelho psíquico em uma de suas
mais precoces atividades normais. Refiro-me ao jogo das
crianças” (ibid., p. 43).
Emitindo juízos críticos sobre as diversas teorias do jogo
infantil “que tentam descobrir os motivos pelos quais as crian­
ças são levadas a jogar, mas sem colocar em primeiro plano o
motivo econômico, ou seja, a tendência para o prazer”. Freud
procurou explicar o primeiro jogo independente imaginado por
uma criança de um ano e meio que ele teve a oportunidade de
observar durante um período de algumas semanas.
Escreve Freud: “Esse simpático menino tinha, porém, o
perturbador costume de apanhar quaisquer objetos pequenos
que estivessem ao seu alcance e arremessá-los longe, para um
canto do quarto, para debaixo da cama etc., de modo que a bus­
ca e reunião dos seus brinquedos nào era uma tarefa fácil. Ao
lançar um objeto, soltava um estrepitoso e prolongado ‘ooooh!’
acompanhado de uma expressão de interesse e satisfação. Sua
mãe e o autor do presente relato concordavam em pensar que
não se tratava de mera interjeição, mas significava a palavra
alemã *forf [fora]. Dei-me conta, por fim, de que aquilo era
um jogo e de que o único uso que ele dava aos seus brinquedos era
brincar de lançá-los para longe de si. Certo dia, fiz uma observa­
ção que veio corroborar a minha conjectura. O menino tinha um
Teoria do jogo 127

carretel de madeira com um cordel enrolado. Nunca lhe ocor­


reu, por exemplo, levá-lo a reboque pelo chão e brincar com
ele como se fosse um carrinho. O que ele fazia era segurar o
carretel pelo cordel e arremessá-lo com grande perícia por
cima da borda do seu berço com cortinado, dc modo que o car­
retel desaparecia nele, ao mesmo tempo que era articulado o
expressivo ‘ooooh!’ Então, puxava o carretel para fora do
berço com o cordel e saudava a sua reaparição com um alegre
fcda ’ [aqui]. Aí estava, pois, o jogo completo desaparecimen­
to e regresso. Por via de regra, só se presenciava o primeiro ato,
que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo,
embora nào se duvide de que o segundo ato lhe proporcionava
maior prazer.
A interpretação do jogo tornou-se, portanto, óbvia. Ele
estava relacionado com a grande proeza cultural da criança - a
renúncia instintiva (ou seja, a renúncia à satisfação instintiva)
que ele tinha feito ao permitir que sua màe se ausentasse sem
protestar. Ressarciu-se dessa renúncia, por assim dizer, ence­
nando o desaparecimento e regresso dos objetos ao seu alcan­
ce. Para julgar o valor afetivo desse jogo é indiferente, está
claro, que tenha sido a própria criança quem o inventou ou se
aproveitou alguma sugestão dada por outrem. O nosso interes­
se está direcionado para um outro ponto. Era impossível que a
criança sentisse a saída da màe como algo agradável ou mesmo
indiferente. Como harmonizar, entào, com o princípio de pra­
zer a sua repetição dessa penosa experiência na forma de jogo?
Talvez se possa responder que a saída da màe tinha de ser
representada como preliminar necessária de seu jovial regres­
so, e que era neste último que residia o verdadeiro objetivo do
jogo. Mas contra esta conjectura deve ser levado em conta o
fato observado de que o primeiro ato, o da saída, era encenado
como um jogo em si mesmo e muito mais freqüentemente do
que o episódio na íntegra, com seu agradável final.
Nenhuma solução definitiva pode ser proposta com base
num único caso como este. Numa consideração imparcial do
12 H Psicologia do jogo

caso, fica-se com a impressão de que a criança converteu a sua


experiência num jogo por um outro motivo. No início, ela esta­
va numa situação passiva - dominada e angustiada pela expe­
riência; mas, ao repeti-la como jogo, ainda que fosse desagra­
dável, assumiu um papel ativo. Esses esforços poderiam ser
atribuídos a um instinto de domínio que estava agindo inde­
pendentemente de ser a lembrança em si mesma agradável ou
não. Mas também cabe ensaiar outra interpretação. Arremes­
sar o objeto para que ele ‘saia' poderia satisfazer um impulso
da criança, que era suprimido em sua vida real, para vingar-se da
mãe por ter-se afastado dela. Nesse caso, isso teria um signifi­
cado desafiador: ‘Está bem, vai embora! Não preciso de ti. Eu
mesmo estou te mandando embora’” (1925, pp. 44-46).
Prossegue Freud: “Tampouco seremos socorridos em
nossa hesitação entre essas duas interpretações possíveis por
uma análise mais minuciosa do jogo infantil. E evidente que,
em seus jogos, as crianças repetem tudo o que lhes causou uma
grande impressão na vida real e que, assim fazendo, reagem à
força da impressão e, por assim dizer, tomam-se senhoras da
situação. Mas, por outro lado, é óbvio que todo o seu jogo é
influenciado por um desejo que as domina o tempo todo - o
desejo de serem ‘pessoas crescidas’ e de poderem fazer o que
os adultos fazem. Também pode ser observado que a natureza
desagradável de uma experiência nem sempre a toma inade­
quada para o jogo. Se um médico examina a garganta de uma
criança ou executa nela uma pequena cirurgia, podemos estar
absolutamente certos de que essas assustadoras experiências
serão o tema do próximo jogo; mas, a tal respeito, nào devemos
esquecer o fato de que existe prazer gerado por uma outra
fonte. Quando a criança transita da passividade da experiência
para a atividade do jogo, transfere essa sensação desagradável pa­
ra um de seus companheiros de jogo e vinga-se desse modo num
substituto.
Não obstante, ressalta deste exame nào haver necessidade
de supor a existência de um instinto imitativo especial a fim
Teoria do jogo 129

de fornecer um motivo para jogar. Em última instância, pode


ser acrescentado o seguinte lembrete: a representação e a imi­
tação artísticas levadas a efeito por adultos, as quais, ao con­
trário das infantis, são dirigidas a um público, nào poupam aos
espectadores (por exemplo, na tragédia) as mais penosas expe­
riências e podem ainda assim ser sentidas por eles como suma­
mente agradáveis. Isso é prova convincente de que, mesmo sob
o domínio do princípio de prazer, existem meios e formas sufi­
cientes para transformar o que é em si desagradável num as­
sunto para ser recordado e mentalmente elaborado” (1925, pp.
46-47).
Analisando em seguida a correlação existente entre “o
reprimido” e o prazer, Freud escreve: “Mas deparamos agora
com um novo e extraordinário fato, a saber, que a compulsão
para repetir também faz voltar do passado experiências que não
incluem a mais remota possibilidade de prazer e que nunca pu­
deram propiciar satisfação nem mesmo àquelas pulsões que já
foram há muito reprimidas.
A eflorescência precoce da vida sexual infantil está con­
denada à extinção porque os seus desejos são incompatíveis
com a realidade e com o estágio inadequado de desenvolvi­
mento a que a criança chegou. Essa eflorescência chega ao
fim nas mais penosas circunstâncias e em meio aos mais dolo­
rosos sentimentos. A perda de amor e a frustração deixam em
sua esteira um dano permanente no respeito a si próprio, na
forma de uma cicatriz narcisista que, em minha opinião, assim
como na de Marcinóvski (1918), contribui mais do que qual­
quer outra coisa para o ‘sentimento de inferioridade' que é tão
comum nos neuróticos. As investigações sexuais da criança,
às quais sào impostos limites por seu desenvolvimento físico,
nào conduzem a nenhuma conclusão satisfatória; daí tais quei­
xumes como fcnão posso fazer nada; nào consigo ser bem-suce­
dido em nada do que faça’, que serão ouvidos mais tarde. O
vínculo de afeição que liga a criança, por via de regra, ao geni­
tor do sexo oposto sucumbe ao desapontamento, a uma vã expec­
130 Psicologia do jogo

tativa de satisfação ou ao ciúme em torno do nascimento de um


novo bebê - prova incontestável da infidelidade do objeto das
afeições da criança. A sua própria tentativa de fazer um bebê,
empreendida com trágica seriedade, fracassa vergonhosamen­
te. A soma decrescente de afeição que recebe, as crescentes
exigências de educação, as palavras ríspidas e as ocasionais
punições - tudo isso lhe mostra, enfim, até que ponto foi des­
prezada. Esses sào apenas alguns casos típicos, que se repetem
constantemente, do modo como o amor característico da época
da infancia chega ao fim” (1925, pp. 52-53).
Freud chega a uma conclusão: “Se considerarmos obser­
vações como essas, baseadas no comportamento durante a trans­
ferência e nas biografias de homens e mulheres, ousaremos su­
por que realmente existe na psique uma compulsão de repetição
que se instaura mais além do princípio de prazer. Também es­
taremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os
sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que
leva as crianças a jogar” (1925, p. 55).
Freud necessitou da análise do jogo do menino pequeno
para mostrar a existência primária da tendência para a reconsti­
tuição compulsiva da situação traumática, evidenciada nos
sonhos de adultos neuróticos e, com isso, adicionar ao princí­
pio de prazer, no qual se baseia a dinâmica de toda a vida psí­
quica, um princípio mais: o da aspiração ao estado de partida
anterior, a aspiração à morte.
Assim, dois impulsos primários, fundamentais, o desejo
de morrer e a tendência com ele relacionada, a "compulsão pa­
ra repetir”, e o impulso de viver, de conservação, de poder, de
autoconfiança, são, no entender de Freud, as forças dinâmicas
fundamentais da vida psíquica, imutáveis no homem desde a
infancia até a velhice.
Detenhamo-nos apenas em dois aspectos desta teoria ge­
ral de Freud importantes para compreender suas concepções
do jogo infantil. A teoria freudiana é uma das concepções mais
acabadas do primarismo e, portanto, da predeterminação bio-
Teoria dojogo 131

lógica dos principais impulsos em que se baseia a existência de


todo ser vivo, do organismo mais simples ao homem. No reino
animal, esses impulsos primários manifestam-se de maneira di­
reta. Na sociedade nào ocorre o mesmo. A sociedade impõe
“proibições” a esses impulsos primários que clamam por exte-
riorizar-se diretamente. Aparecem “subterfúgios” de todo o tipo
na forma de substituições diversas que dào vazão aos impulsos
primários. Como as proibições de satisfação imediata dos im­
pulsos começam muito cedo, pouco depois do momento de nas­
cer, todos os mecanismos psicológicos que servem para eludir
“as barreiras” estão presentes desde o começo. Desse modo, o
dinamismo da vida psíquica nào se desenvolve, muda unica­
mente a forma de eludir as “barreiras”. O jogo infantil primiti­
vo e as manifestações supremas do espírito humano - a cultu­
ra, a arte, a ciência - nada mais são do que formas de eludir as
“barreiras” interpostas pela sociedade aos impulsos primários
que buscam saída. Sào um produto secundário da luta desses
impulsos com a sociedade. Assim, a sociedade e o homem, na
concepção de Freud, sào antagônicos desde suas origens.
Nào é missão nossa realizar uma detalhada análise crítica
da teoria geral de Freud. Ela tem sido analisada e criticada em
reiteradas ocasiões tanto em publicações soviéticas quanto nas
de outros países. Deter-nos-emos apenas na teoria do jogo, que
é a que nos interessa de imediato.
Examinemos, sobretudo, o jogo do menino pequeno que,
analisado por Freud, lhe deu subsídios para realizar importan­
tes e vastas sínteses acerca da natureza do jogo em geral.
Ao analisar o jogo do garotinho que arremessa objetos e
manipula um carretel que “desaparece e reaparece”, controla­
do por um cordel, Freud pressupõe nesse jogo a simbolizaçào
da situação traumatizante para o menino, a da saída da mãe: a
constante repetição simbólica dessa situação. Assim, mesmo
formas tão precoces de jogo como a descrita sào, do seu ponto
de vista, simbólicas. A base dessa simbolizaçào nào está cm
132 Psicologia do jogo

que um objeto substitui um outro, mas em que se simboliza o


sentido de toda a situação traumatizante. Aqui, o objeto me­
diante o qual se executa um ato é indiferente, o que importa
não é o objeto utilizado, mas que o objeto assim como desapa­
rece logo reaparece. Tudo o que pode ser arremessado, o que
pode desaparecer, é o que pode simbolizar a situação inicial.
Claro que essa simbolizaçào é inconsciente.
Se continuarmos acompanhando o pensamento de Freud
implícito na análise desse jogo primitivo, pode-se afirmar que
os objetos, por si mesmos, à semelhança dos papéis que a crian­
ça adota mais adiante, são indiferentes, contanto que permitam
reproduzir a extraordinária simbolizaçào subjetiva do sentido
da situaçào. Desse ponto de vista, não importa que o menino
brinque de médico ou de bombeiro, de policial ou de balconis­
ta; a única coisa que importa é a situação traumatizante que os
objetos ou papéis reproduzem. Dos mais diferentes gêneros
quanto ao seu conteúdo objetivo e ao argumento do jogo, po­
dem simbolizar os mesmos sofrimentos insuportáveis, desejos
ou impulsos reprimidos da criança.
Os fatos, não obstante, evidenciam outra coisa. Antes de
mais nada, é duvidoso o próprio fato de uma simbolizaçào tão
precoce. A simbolizaçào pressupõe a síntese da situação que,
embora puramente afetiva, sem dúvida é simbolizaçào. As
observações mostram que em idade tão precoce acontecem
reações afetivas soltas, por exemplo, o choro quando a mãe sai.
As sensações afetivas sintetizadas aparecem muito depois.
A interpretação que Freud dá ao jogo infantil por ele des­
crito deve considerar-se carente de toda prova. Manipulações
semelhantes observam-se nessa idade e até em idade mais pre­
coce em quase todas as crianças, independentemente de que
vivam em família e sintam profundo carinho por suas mães ou
sejam educadas desde que nasceram em instituições infantis
onde, como é natural, nào pode haver tanto apego às educado­
ras: também se encontram nas famílias cujas mães nunca aban­
donam os seus rebentos, nem por breves instantes, e naquelas
Teoria dojogo 133

em que as màes trabalham fora e os cuidados com os filhos pe­


quenos ficam por conta de algum outro adulto.
Ao descrever esse jogo, Freud nào diz se ele era praticado
somente quando a mãe não estava em casa ou também na pre­
sença dela; se durante o jogo estava presente algum outro fami­
liar adulto do menino; se este chorava toda vez que a màe saía e
se mostrava alegre quando ela voltava etc. Por último, desco­
nhece-se o quanto esse jogo tardou em entediar a criança. E
tudo isso é importante para analisar a conduta da criança e ex­
plicá-la.
Os jogos como o analisado podem explicar-se de maneira
mais adequada, sem necessidade de aduzir uma argumentação
tão “pesada”. Conforme sejam as condições concretas em que
transcorrem, esses jogos são realizados ou para motivar o trato
com o adulto (o menino que arremessa coisas induz o adulto a
que as procure e se relacione com ele) ou, em outros casos,
como no do carretei com o cordel enrolado, trata-se de um jogo
típico de “novidade", ou seja, sustentado por uma reaçào orien­
tadora; esse jogo está estruturado, por razão de princípio, se­
gundo o mesmo mecanismo de todas as outras manipulações
repetidas: desancar, examinar etc. O fato de a aparição do car­
retel, ao puxar o cordel, ser recebida, como escreve Freud, com
uma exclamação de júbilo, evidencia que a emoção positiva do
menino está relacionada precisamente com a “novidade”. Por
último, isso pode ser um exercício para aprender o ato de arre­
messar. Em todo o caso, segundo os dados da pesquisa de Abra-
móvitch (1946), tais manipulações aparecem logicamente numa
etapa determinada do desenvolvimento das ações com objetos.
Nada demonstra que exista alguma analogia com a ida e a volta
da màe e, por meio disso, com a neurose traumática.
Claro que nào se trata da descrição desse jogo concreto
que Freud viu. Pode-se supor que, se tivesse presenciado qual­
quer outro jogo, tê-lo-ia interpretado de maneira completa­
mente análoga. Semelhante interpretação está organicamente
vinculada à original compreensão freudiana de toda a vida da
134 Psicologia do jogo

criança durante a infancia. Não nos parece casual que, segundo


Freud, tanto a neurose traumática como os jogos infantis te­
nham a mesma base na tendência para a compulsão de repeti­
ção. E isso nào é uma simples analogia. Freud enxerga aí uma
semelhança fundamental que se estriba no fato de a criança ser
submetida desde o momento em que nasce a ações traumati-
zantes de todo o gênero (trauma de nascimento, trauma do des­
mame, trauma da “infidelidade” do amado pai ou mãe, trauma
do nascimento de outro bebê na família, trauma da diminuição
dos carinhos, trauma da severidade e dos castigos etc.).
Nem todos esses traumas estão relacionados com as for­
mas concretas das relações sociais da criança com os adultos e
as outras crianças que a rodeiam. Nesse caso, a base primária
sào os obstáculos que os adultos interpõem nas vias de acesso
à satisfação das formas precoces de sexualidade infantil. Desta
maneira, todos os traumas são, na opinião de Freud e em últi­
ma instância, traumas infligidos à sexualidade infantil.
O período da infancia é justamente o dessa traumatização
da criança. E se as condições em que a criança foi traumatizada
se reproduzem de maneira obsessiva nos sonhos, essa mesma
tendência para a repetição obsessiva é a que compele a criança
a jogar. Dando prosseguimento a essa idéia de Freud, poder-se-
ia afirmar que a infancia é o tempo dos jogos porque o é tam­
bém dos traumas incessantes, e o jogo é o único procedimento
de aprender repetindo os sofrimentos insuportáveis que esses
traumas denunciam. Do ponto de vista de Freud, cada pessoa é
em maior ou menor medida, já desde a infancia, um neurótico
potencial. À luz dessas asserções, o jogo é um meio terapêutico
natural contra as possíveis neuroses que aparecem na infancia.
Ao reproduzir no jogo os sofrimentos insuportáveis, a criança
aprende-os, quer dizer, assimila-os: graças à repetição, no jogo,
essas sensações deixam de ser insuportáveis. Levando a idéia
de Freud até o seu fim lógico, poder-se-ia afirmar que, quanto
mais a criança joga, tanto menos oportunidades tem de conver­
ter-se, ao longo de sua infancia, num neurótico traumático.
Teoria do jogo 135

A teoria do jogo de Freud carece dc fundamento, antes de


tudo, porque parte da idéia de que a infancia é um período dc
incessantes situações traumáticas, de contínuos conflitos, de
pressão permanente da sociedade, dos adultos, sobre a criança.
No fundo, uma compreensão tão falsa do período da infancia
como período de contínuos conflitos está bastante difundida.
Há elementos dessa compreensão nas manifestações já apresen­
tadas de Stem. Também nos deparamos com ela na teoria do
autismo primário e do egocentrismo da criança como fase de
transição do pensamento autístico para o realista, em que se
baseia a idéia de que o mundo dos adultos desloca e reprime o
pensamento autístico primário da criança. Essa idéia foi desen­
volvida nos trabalhos iniciais de Piaget5. Encontramos ainda
essa mesma concepção na teoria dos “dois mundos” de Koffka
e em várias outras concepções da infancia e do jogo.
Baseando-se precisamente nessas idéias, Freud e seus se­
guidores imediatos opinavam que os impulsos sexuais frustra­
dos e, por conseguinte, deslocados e reprimidos, são os primá­
rios, aqueles que constituem o substrato da vida psíquica das
crianças e dos seus jogos. Assim, por exemplo, H. Hut-Helmut,
na esteira da idéia de Freud, escreve: “A força e a constância
com que se debate o impulso sexual na presença de todos os seus
componentes e formas, contra a educação que se propõe repri­
mi-lo, também nos faz esperar a sua manifestação em jogos
claramente jogos. Com efeito, em quase nenhum jogo falta o im­
pulso sexual claramente manifesto de forma direta ou em for­
ma sublimada” (1926, p. 181).
Os seguidores do freudismo tornaram essas interpretações
extensivas a quase todos os tipos de ocupação das crianças.
Como, do seu ponto de vista, está presente no jogo um simbo­
lismo inconsciente, por trás do qual há diversas formas de impul­
sos sexuais, quase todos os objetos utilizados pela criança nos
jogos ou em quaisquer outras ocupações começaram a ser tidos
na conta de símbolos a serviço da modelagem desses impulsos.
Mélanie Klein (1932), provavelmente por analogia com o sim­
136 Psicologia dojogo

bolismo dos sonhos, considera que, no jogo, alguns objetos


(máquinas, motores, o fogo, a luz etc.) possuem profundo sen­
tido simbólico. Susan Isaacs (1930, 1932) interpreta os jogos
com máquinas e motores, a construção de torres altas e a mani­
pulação de materiais plásticos como uma manifestação da fan­
tasia da criança sobre a união sexual dos pais, e a construção de
“casinhas pequenas” e “cômodos recantos” como a modela­
gem dos desejos latentes de voltar às entranhas maternas, onde
a criança pode estar a sós com sua mãe e tem a possibilidade de
nào deixar entrar o pai, seu rival.
Lowenfeld (1935) admite nào só a tese do simbolismo do
jogo, mas também “a tendência para a compulsão de repeti­
ção” como instrumentos para interpretar os jogos e as ocupa­
ções de crianças pequenas. Os entretenimentos com materiais
como a água, a areia, a argila e o gosto em andar carregando
barro de um lado para o outro sâo interpretados como simbóli­
cas reproduções compulsivas do interesse obsessivo pelas fun­
ções corporais, sobretudo as sexuais; alisar, perfurar e cortar
materiais macios e facilmente deformáveis são interpretados
como fantasias inconscientes relacionadas com a nutrição e os
orifícios do corpo.
Nessas interpretações, portanto, edificar diversas coisas
com peças de quebra-cabeça, modelar com argila e gesso,
desenhar, manipular diversos motores e máquinas, alisar com
uma navalha, cravar pregos com um martelo etc., são consi­
deradas outras tantas expressões simbólicas de diversas for­
mas de impulsos sexuais e da “tendência para a compulsão de
repetição”.
Com essas interpretações psicanalíticas, o jogo perde a
sua especificidade. Por que são jogos, propriamente falando,
os entretenimentos infantis com areia ou água? Com efeito,
agrada muito às crianças ficar mexendo em areia ou água, e
isso se entende. A areia e a água são materiais de inesgotáveis
possibilidades de ação. Mas basta oferecer à criança a possibi­
lidade de ocupar-se com esses materiais,* sem ensinar-lhe os
Teoria do jogo 137

procedimentos apropriados para tratá-los e sem dar-lhe os


utensílios ou brinquedos respectivos, e essas manipulações nào
tardam muito em cessar. Entretanto, reiniciam-se com novo
vigor se se entregar à criança uma pá e moldes, nos quais des­
pejará areia e fará bolos. A criança nào demorará em cansar-se
e ter-se-á de lhe oferecer uma camioneta, com a qual transpor­
tará areia de um lugar para outro.
A mesma coisa ocorre com as ações de alisar, cortar e pre­
gar com martelo. E claro que a navalha, o martelo e os pregos
atraem a criança, e todo garoto normal deseja obtê-los em usu­
fruto independente. Utiliza-os de acordo com os modelos que
lhe oferecem os adultos. Acreditar que a criança os deseja por­
que são veículos ideais para realizar suas fantasias inconscien­
tes significa não enxergar a vida real da criança no mundo que
a rodeia.
Mas se, como crêem os psicanalistas, todas as ocupações
da criança são fantasias inconscientes, válidas para satisfazer
os desejos recônditos de natureza, em definitivo, sexual, então
isso significa que imaginam a criança como um ser introverti­
do no mundo de seus obsessivos impulsos biológicos primá­
rios. É tão evidente a falsidade de tal concepção que é ocioso
criticá-la.
São muitos os trabalhos como o que acabamos de descre­
ver. Nào é possível enumerá-los todos. Fica-se com a impres­
são, ao lê-los e analisá-los, de que o conteúdo fundamental da
vida da criança não é o mundo exterior, mas os impulsos bioló­
gicos primários, de natureza sexual. As demonstrações que se
fornecem apresentam, na grande maioria dos casos, o caráter de
analogias e associações livres e totalmente distintas nos dife­
rentes autores.
O pansexualismo de Freud e seus seguidores foi submeti­
do a crítica em repetidas ocasiões. Stern já escreveu: “Os psi­
canalistas afirmam que as idéias latentes - os desejos da esfera
do inconsciente - manifestam-se tanto nos sonhos quanto na
escolha dc protagonismo. Em Freud concretamente, os desejos
138 Psicologia dojogo

da criança, de matiz totalmente erótico, utilizam a 'protagoni-


zaçào’ apenas como capa. Assim, por exemplo, os ciúmes do
menino em relação ao pai, a quem sente como rival no amor da
mãe, forçam-no a assumir o papel de seu pai: como desalojar o
rival na imaginação etc. Os fundamentos apresentados pelos psi­
canalistas a favor dessa asserção não podem convencer o críti­
co imparcial; em todo o caso, a tranqüila psicologia infantil, que
nào obscurece as suas observações com interpretações arbitrá­
rias, nào encontra na primeira infancia dados confirmativos des­
sas asserções” (1922, p. 179).
O fundo das interpretações psicanalíticas do jogo está não
só em que se tomam os impulsos sexuais como primários, lu­
tando por ganhar forma concreta por meio de alguma ação; tam­
bém é primário o próprio mecanismo de modelagem simbólica
desses impulsos.
Os representantes da psicanálise clássica opinam que a
própria forma do jogo brota no terreno dos mecanismos consti­
tutivos do substrato das bases dos sonhos e da neurose dos adul­
tos. Assim, Hut-Helmut escreve: “O recalque, o deslocamento,
o prolongamento, a condensação, a formação de símbolos e a
identificação comunicam ao jogo suas formas” (1926, p. 177).
Os psicanalistas trasladaram diretamente e quase sem
limitações de espécie alguma a dinâmica da vida psíquica dos
adultos enfermos (histéricos, neuróticos etc.) para crianças
saudáveis das mais diferentes idades, desde as lactantes até as
de idade juvenil. Inclusive, se se admite a dinâmica das rela­
ções entre as diferentes “instâncias” - “id”, “ego” e “superego”
- e os mecanismos de recalcamento, censura, condensação
etc., é natural supor que essas mesmas “instâncias” e os meca­
nismos de suas inter-relações nào sejam dados originariamente
e devam passar por um processo de desenvolvimento. É difícil
supor que as crianças possuam desde sempre o “id”, o “ego” e
o “superego". Em último caso, poder-se-ia pressupor a existên­
cia originária dos impulsos de partida que constituem o conteúdo
do que Freud denomina o “id”. Segundo Freud, "instâncias” co­
Teoria dojogo 139

mo o “ego” e o “superego” aparecem no experimento indivi­


dual6. Por conseguinte, se sào resultado da vida, resultado do
choque com a realidade, nào podem existir desde sempre e
cumprirá ainda demonstrar quando e como atingem o nível de
desenvolvimento em que podem representar na vida psíquica o
papel de “instâncias” determinantes da sua dinâmica. Mas se
admitirmos que essas “instâncias” não têm existência originá­
ria e surgiram, portanto, durante o desenvolvimento da criança,
ter-se-á de mudar radicalmente a interpretação das diversas
formas de jogo infantil e toda a teoria da sexualidade infantil,
uma vez que nào apareceram ainda as “instâncias” nem as co­
nexões entre elas.
Assim, na teoria da sexualidade infantil e do jogo há uma
contradição implícita entre o reconhecimento de que as “ins­
tâncias” fundamentais na vida psíquica e as relações entre elas
existem desde sempre, por uma parte, e a definição de algumas
dessas “instâncias” como algo que apareceu em conseqüência
do choque com a realidade, por outra parte. Formalmente, a
teoria dinâmica de Freud resulta, em essência, profundamente
metafísica e exime-se ao princípio do desenvolvimento da vida
psíquica.
Nas asserções de Freud anteriormente citadas sobre o jogo
há uma ideia mcrcccdora dc cspccial atcnçào, a dc que o jo ­
go das crianças encontra-se sob a influência do desejo domi­
nante em sua idade: ser adulto e fazer o mesmo que os adultos
(cf. 1925, p. 48). A primeira vista, pode parecer que essa idéia
está em contradição com o conceito geral que Freud e seus se­
guidores têm do jogo das crianças. Mas não é assim.
No contexto geral das idéias de Freud, o desejo de “ser
adulto” nada mais é do que a manifestação exterior dessa mes­
ma tendência a plasmar os impulsos sexuais primários. No sis­
tema de opiniões dos psicanalistas, “ser adulto” significa plas­
mar livremente, sem nenhuma limitação, os impulsos sexuais
próprios, e possuir sem obstáculos o objeto do impulso sexual.
A tendência a “ser adulto” está representada com maior clareza
140 Psicologia dojogo

no chamado complexo de Édipo, em que a identificação com o


pai é o caminho para desalojá-lo a fim de possuir a mãe como
objeto fundamental do impulso sexual.
A idéia de que há no jogo a tendência para “ser adulto”
não é nova. Encontra-se em muitos psicólogos. Dissemos que
Sully já a esboçara. Mas em Sully, como em muitos outros psi­
cólogos, essa tendência não se relaciona com a modelagem dos
impulsos sexuais primários.
O desejo de “ser adulto” foi mencionado até por Hegel.
Mas Hegel considerava que seu aparecimento se dava em idade
mais adiantada. Assim escreveu: “Quando a criança passa do
jogo para o sério, para os estudos, torna-se um moço. A partir
dessa idade, é despertado nos rapazes o desejo de saber, sobre­
tudo, histórias; já adquirem importância para eles noções que
nào possuem diretamente. Mas o principal aqui é a sensação
nascente de que ainda não são o que devem ser e o desejo vivo
de ser iguais aos adultos, em cujo meio vivem” (1956, p. 91).
Se existe ou não esse desejo entre as crianças é algo que
deve submeter-se a investigação e análise. Pode-se afirmar
com toda a segurança que, se existe, nào é desde sempre mas
desde que começam a desenvolver-se as relações da criança
com os adultos que a cercam.
Hoje em dia, já se acumularam na psicologia infantil fatos
suficientes que evidenciam o desenvolvimento das relações da
criança e do adulto. Durante esse processo, sob a direção dos
adultos, produz-se uma emancipação da criança. Cada passo no
sentido dessa emancipação é, simultaneamente, uma forma
nova de vinculação da criança ao adulto. A tendência para ser
igual aos mais velhos só ganha nitidez total em fins da primeira
infancia e manifesta-se na forma de desejo de atuar com inde­
pendência. É o conhecidíssimo “deixa que eu faço” da criança
na divisória entre a primeira infância c a idade pré-escolar. No
final da idade pré-escolar, acentua-se a consciência que a crian­
ça tem do seu lugar de pequeno entre os grandes e a tendência
manifesta para desenvolver uma atividade séria, de transcen­
Teoria do jogo 141

dência e de valorização sociais. Por último, durante o período


da transição da idade escolar para a adolescência, predomina o
“sentir-se adulto” e as tentativas de contrapor-se aos adultos.
Tal é o esquema geral do desenvolvimento dessa tendência.
A tese anteriormente citada de Freud contém, da mais
genérica e abrangente forma possível, é certo, uma apresenta­
ção do alcance de que se reveste a evolução das relações em
face das crianças e dos adultos para compreender o jogo.
E precisamente esse aspecto da teoria de Freud o que se de­
senvolve na teoria de A. Adler, nascida da psicanálise. Segundo
a teoria de Adler, a criança procura reprimir em si a mal tolera­
da sensação de debilidade e dependência com uma ficção de po­
der e domínio, e, devido a isso brinca de mágico ou de fada. O
garotinho que cavalga um pau de vassoura e a menininha que,
no papel de mãe, é muito severa com a boneca ou com o irmào-
zinho pequeno, vingam-se inconscientemente de todas as repres­
sões e obstáculos que sentem continuamente na vida real.
Assim, a ficção nào é outra coisa senão o protesto interno
contra a sensação real de deficiência ou de impotência.
Stern compartilha dessa idéia de Adler e procura, inclusi­
ve, discutir-lhe a prioridade. Informa a seguinte anotação do
seu diário: “Hilda brinca com seu irmàozinho de màe e filho.
A limpeza da casa está feita e o ‘filho’ foi posto na cama para
dormir. Mas Hilda nào pára de resmungar, contrariada; cada
movimento que o ‘filho' faz em sonhos é intolerado e punido
com alguns açoites. Em geral, o castigo é uma parte direta do
jogo. Todo indivíduo leva em seu íntimo uma certa carga de
autoritarismo; e a pobre criança, que na vida diária deve so­
mente submeter-se, tenta empunhar o cetro, ainda que brincan­
do'’ (1922, p. 180). Stem adiciona o seguinte comentário a essa
anotação: “Este apontamento data de 1906, ou seja, está escrito
antes de Adler ter publicado a sua teoria.” Com o que Stern
parece aderir a essa teoria, mas nào no todo, e volta à teoria dos
instintos. “Dir-se-ia que nenhuma dessas teorias”, escreve Stern,
“indica os motivos mais importantes da escolha de papéis;
142 Psicologia do jogo

devem ser procurados, mais exatamente, nos principais estí­


mulos do jogo infantil de que se tratou antes: a imitação e o
exercício. A criança assume os papéis que conhece da vida cir­
cundante ou dos contos etc., e prefere os relativos aos instintos
existentes em embrião e que prontamente se desenvolverão”
(ibid., p. 181).
Embora na teoria de Adler não haja o pansexualismo pró­
prio da psicanálise de Freud, a compreensão social do jogo
continua sendo a mesma, com a única diferença de que se em
Freud a criança submete-se continuamente a traumas e sofre
reveses, dada a impossibilidade de alcançar suas aspirações
sexuais infantis, Adler as substitui pela vontade de auto-afir-
maçào. (Os impulsos sexuais freudianos existem igualmente em
forma de auto-afirmação, à qual se atribui na teoria de Adler
caráter universal.) Em Adler, tal como em Freud, a criança so­
fre uma contínua influência traumatizante e começa a sentir
desejos recalcados: os impulsos de poder e auto-afirmação, im­
pulsos inconscientes que sào os que a criança plasma no jogo,
esforçando-se por superá-los à força de reproduzi-los infinita­
mente. Assim, a base da compreensão das relações entre a
criança e os adultos, e entre a criança e a realidade circundante,
é a noção que se tem de seu antagonismo primordial.
A interpretação freudiana do jogo estimulou a propagação
da psicanálise às crianças. A utilização prática do jogo ia em
duas direções: como método diagnóstico projetivo e como re­
curso terapêutico (play therapy).
A possibilidade de utilização do jogo como método diag­
nóstico projetivo a partir das posições do freudismo provém de
que no jogo estão representados os desejos recalcados. O sim­
bolismo que os recobre apresenta, como é natural, um caráter
inconsciente e por isso deve ser interpretado.
A utilização do jogo como recurso terapêutico procede de
dois fundamentos. Primeiro, o jogo pode ser utilizado como
instrumento substitutivo, nas mãos de psicoterapeutas, da téc­
nica psicanalítica clássica: o experimeato das associações e a
Teoria dojogo 143

interpretação dos sonhos. Os desejos recalcados esclarecem-se


e passam pela consciência, como no tratamento psicanalítico
ordinário. Segundo, a reconstituição livre e reiterada da situa­
ção traumática, correspondente à “reconstituição obsessiva”
como tendência fundamental do jogo, deve pôr gradualmente
fim ao sofrimento insuportável. Essas duas tendências na utili­
zação do jogo já estavam implícitas na interpretação freudiana
e foram prontamente estudadas pelos psiconeurologistas, os
pedagogos e os psicanalistas que tratavam principalmente de
crianças com conduta alterada.
Detenhamo-nos em algumas questões da utilização prática
do jogo, baseando-nos em suas interpretações psicanalíticas.
Dado que os impulsos sexuais das crianças e as emoções
associadas se concentram em tomo dos membros da família e
das relações familiares, utilizam-se para os jogos diversos con­
juntos projetivos de brinquedos, basicamente bonecos e objetos
imprescindíveis para representar uma série de situações vitais,
principalmente familiares. Esses bonecos representam concreta-
mente o pai, a mãe, os irmãos mais velhos ou mais novos, além
dc situações eseolares (o professor c as outras crianças) etc.
Nessas condições lúdicas, a criança tem a possibilidade de pôr
em prática um jogo relativamente livre e motivado apenas pelo
material lúdico que se lhe oferece, assumindo um papel qual­
quer, atribuindo aos bonecos papéis determinados, reconsti­
tuindo situações da vida e efetuando o trabalho de encenador,
ou seja, ensaiando determinadas situações, distribuindo os pa­
péis, funções e qualidades aos bonecos, e atuando somente co­
mo encenador.
De acordo com as funções que a criança atribui a certos
personagens introduzidos no jogo, as relações recíprocas em
que os coloque, o lugar que ela própria ocupa nas relações
reconstituídas, os brinquedos que utiliza e as ações com eles
em que ponha emoções positivas ou negativas, fazem-se por
vezes deduções muito ousadas sobre o caráter dos sofrimentos
insuportáveis e sobre os impulsos da criança.
144 Psicologia dojogo

Não faltam as interpretações livres, típicas dos psicanalis­


tas, do emprego simbólico dos objetos.
Os métodos diagnósticos projetivos que utilizam o jogo e
as diversas ocupações a fim de indagar sobre a vida interior da
criança (os impulsos sexuais dominantes, os complexos afetivos
etc.) sào os mais discutíveis. Os seus defeitos estão relaciona­
dos, sobretudo, com as premissas freudianas ou outras premis­
sas psicanalíticas que lhes servem de base.
Ao mesmo tempo, se excluirmos a fantástica interpretação
sexual, a análise dos procedimentos lúdicos propostos eviden­
cia que todos eles implicam tentativas mais ou menos manifes­
tas de criar situações que descubram as relações sociais que
monopolizam o afeto e, por essa razão, têm implícita a noção de
que o sentido central do jogo protagonizado sào as relações
sociais entre os adultos ou entre a criança e os adultos. A maio­
ria dessas situações estimula a criança a reconstituir as relações
e a destacar as que mais lhe importam no momento dado.
E sabido que já numa idade relativamente precoce as
crianças distinguem com bastante precisão a atitude dos adul­
tos para com elas. Inclusive os simples atos relacionados com
o cuidar da criança (dar-lhe de comer, deitá-la, vesti-la etc.)
transcorrem de maneira completamente diferente com a mãe, o
pai, a avó ou o avô etc. A criança parece antecipar-se emotiva­
mente em sua consciência aos resultados do seu comportamen­
to e, pouco a pouco, no início de maneira puramente emocio­
nal, sintetiza as relações com os adultos. Tivemos ocasião de
observar um menino que, pouco depois de completar um ano,
sintetizou essas relações inclusive no plano verbal. Disse: “A
vovó disse que nào, portanto nào.” Neste caso, como numa
família poliglota, na qual cada adulto fala numa língua com a
criança, o menino fala com cada familiar na língua utilizada
com ele. E mantém com cada um deles relações diferenciadas.
Sào precisamente essas relações, desde o momento em que
aparece o jogo protagonizado, que a criança reconstitui para
jogar e destaca ao reconstituí-las.
Teoria dojogo 145

Neste ponto, é oportuno recordar a observação de E.


Claparède, no artigo já mencionado, de que o jogo pode permi­
tir à criança desempenhar o papel de protagonista que a reali­
dade lhe nega e é um bom exemplo de compensação afetiva.
Mas isso se refere mais ao conteúdo do jogo do que ao próprio
jogo. Prosseguindo com a idéia de Claparède, porque o jogo é
jogo é que a criança pode auto-afirmar-se, ou encontrar com­
pensação etc., e não, ao contrário, porque nele a criança possa
encontrar compensação ou auto-afirmação.
Partindo da opinião de que o jogo é a expressão da vida
interna da criança. Hartley (1952) e seus colaboradores propu-
seram-se observar diversos tipos de atividade das crianças
(jogos dramatizados, jogos de construção, jogos com água,
entretenimento com materiais gráficos etc.) nas condições
habituais dc estabelecimento para crianças normais, com o
propósito de esclarecer tanto o curso geral do seu desenvolvi­
mento quanto as dificuldades de conduta de algumas delas.
Nessa questão não pode haver alternativa. Muitos pedago­
gos com experiência observam, para fins de estudo, tanto
jogos coletivos quanto individuais.
Podem-se mencionar vários planos dc utilização dos da­
dos obtidos nas observações dos jogos. Em primeiro lugar, o
jogo protagonizado, que é uma reprodução das relações e da
atividade dos adultos, pode explicar como a criança se imagina
aos olhos dos adultos, o sentido de sua atividade e de suas rela­
ções com outras pessoas, inclusive as crianças. Por este lado, o
jogo pode servir para esclarecer as relações objetivas em que a
criança realmente vive. Ao mesmo tempo, nào serve para elu­
cidar as qualidades pessoais ou as sensações inerentes à pró­
pria criança. Assim, por exemplo, se a criança reconstitui em
seu papel o pai agressivo ou a màe solícita (ou, pelo contrário,
a màe severa ou o pai condescendente), isso nào significa, em
absoluto, que ela própria seja agressiva ou solícita, ou que a
atitude agressiva de um dos pais lhe suscite essa atitude.
146 Psicologia dojogo

Em segundo lugar, como a criança, no jogo protagoniza­


do, entra em relações reais com as outras que jogam com ela,
com os seus companheiros de jogo, é nessas relações reais que
manifesta as qualidades e algumas emoções que lhe sào pró­
prias. Assim, pode aspirar a desempenhar somente papéis dire­
tivos, a mandar nos outros, a mostrar-se agressivo ou solícito
com um companheiro, a ser envergonhado e tímido, a ajudar
ou atrapalhar os companheiros de jogo, a repartir os brinque­
dos ou a ficar com todos os melhores, a procurar representar o
seu papel da melhor maneira possível ou com displicência etc.
As observações sistemáticas da criança tanto no jogo quanto
em ocupações de outros tipos sào propriamente o único meio
de que o pedagogo dispõe para estudá-la. Mas, além disso, as
interpretações psicanalíticas nào têm importância nenhuma.
Outra forma de utilização do jogo é a chamada ludoterapia
(play therapy).
A partir dos anos 30 deste século fazem-se tentativas mais
ou menos sistemáticas de elaboração da técnica de tratamento
pelo jogo. Sobre esse problema começou-se a escrever tanto e
com tanta rapidez que na revista bibliográfica Psychological
Abstracts abriu-se, desde 1948, uma seção especial. Os traba­
lhos desse âmbito foram postos em segundo plano pelas pes­
quisas dedicadas ao jogo como tal. Existem atualmente várias
direções diferentes no estudo da ludoterapia.
Axline (1947) distingue na técnica da ludoterapia dois
grandes grupos: (a) a técnica orientada, na qual o terapeuta
assume a interpretação e as funções corretoras, e (b) a técnica
espontânea, na qual se concede à criança completa liberdade
nojogo.
A ludoterapia orientada nasceu das tentativas de aplicação
da técnica psicanalítica às crianças. Anna Freud7 foi uma das
primeiras a elaborar esse tratamento como substitutivo parcial
dos métodos verbais da psicanálise. Do seu ponto de vista, o
jogo não pode ser considerado equivalente das associações li­
vres e. para compreender as dificuldades que a criança tem, deve
Teoria dojogo 147

ser utilizado em combinação com outros meios: a interpretação


dos sonhos, o desenho livre etc. Na opinião de Anna Freud, o
terapeuta deve desempenhar na situação lúdica um papel ativo
de educador, orientando os impulsos da criança para um novo
canal e regulando a sua vida instintiva. A principal tarefa do te­
rapeuta consiste em fortalecer e consolidar o “ego” da criança
mediante o jogo e outros recursos.
Mais radical é o método de Mélanie Klein, que considera
o jogo e a ludoterapia como substitutos da técnica das associa­
ções livres em que se baseia a psicanálise do adulto. No siste­
ma kleiniano acredita-se que todos os atos da criança na situa­
ção lúdica e todos os brinquedos por ela utilizados no jogo pos­
suem um profundo sentido simbólico. A missão do tratamento
lúdico assenta em tornar conscientes essas tendências incons­
cientes. O terapeuta participa nas invenções lúdicas da criança,
orientando o jogo e oferecendo objetos e materiais para averi­
guar, pelo caráter da simbolizaçào, as emoções latentes.
Durante o jogo, o terapeuta explica e tenta inculcar na criança
o sentido dos símbolos. Klein considera que quase todos os
jogos infantis se baseiam nas fantasias da masturbação e, por
isso, a interpretação deve propiciar a sensação de culpabilida­
de que a criança sente ao fazê-lo. A tarefa consiste em desco­
brir primeiro as angústias latentes c a culpabilidade da criança,
e depois aliviá-las.
As duas modificações da ludoterapia apresentam um pro­
fundo caráter psicanalítico. Partem da tese freudiana de que o
jogo infantil é simbólico e interpretado no espírito da sexuali­
dade infantil. O grau de arbitrariedade dessas interpretações
varia do mais completo até a adivinhação das diferenças reais
da criança. A essas duas modificações se referem as observa­
ções críticas que fizemos antes à teoria do jogo de Freud.
Quanto à eficiência do emprego desses dois tipos de psicotera-
pia, as opiniões divergem de forma extraordinária. De modo
geral, essa psicoterapia é bastante prolongada e, em todo o caso,
dura meses. Que mecanismos psicológicos surtem o efeito
148 Psicologia do jogo

final desejado? Será devido às peculiaridades específicas do


processo lúdico ou ao trato com o terapeuta? Nào há como ave­
riguá-lo.
A chamada técnica da ludoterapia assenta em princípios
algo distintos. Como escreve Axline, a sua base é a idéia de
que o jogo constitui para a criança um meio natural de auto-
expressào e oferece-lhe a possibilidade de “exercitar” seus
sentimentos e problemas. Com essa técnica, a criança pode
fazer ou dizer quanto quiser no recinto onde joga. Durante toda
a sessão, o terapeuta mantém uma atitude amistosa e nào for­
nece nenhuma indicação direta. A criança é, na sala de ludote­
rapia, a personagem mais importante, a que manda na situação
e em si mesma, ninguém lhe diz o que deve fazer, ninguém cri­
tica o que ela faz nem se intromete em seu mundo.
Nessa situação, a criança sente imediatamente que pode
soltar-se e mostrar por inteiro o que é e o que pode. Nào deve
opor-se a outras forças como a autoridade dos adultos ou a
rivalidade de outras crianças da sua idade; tampouco é vítima
dos caprichos ou da agressividade de ninguém. Ali ela é uma
personalidade possuidora de suas próprias regras. Pode dizer o
que lhe apetecer, pode jogar com quem e como lhe agrade,
pode amar e odiar, também pode ser impassível como uma
pedra, veloz como um furacão ou tào lenta quanto um caracol;
ninguém a deterá nem a apressará.
Na opinião de Axline, nessa situação permite-se à criança
ensaiar suas sensações acumuladas de tensão, aversão, insegu­
rança, agressividade, medo, confusão e perplexidade. Ao
ensaiá-las, exterioriza-as, as vê e aprende a dominá-las ou
reprimi-las. Graças a isso, a criança adquire estabilidade emo­
cional e maturidade psicológica.
A ludoterapia espontânea nào é, no fundo, psicanalítica.
Nela nào há redução das dificuldades comportamentais a
impulsos sexuais recalcados, tampouco interpretação do simbo­
lismo lúdico. Pode ser chamada lúdica de maneira muito con­
vencional, uma vez que o jogo não se manifesta nela com suas
Teoria do jogo 149

características específicas. Essa terapêutica reduz-se, essen­


cialmente, a conceder à criança a possibilidade de dedicar-se a
qualquer atividade que ela escolha livremente (desenho, mode­
lagem com materiais plásticos, construção ou montagem de
casas e artefatos, jogos etc.) em ambiente de relacionamento
com os adultos, em certo sentido oposto ao que deu lugar às
perturbações comportamentais. Tais perturbações, submetidas
a esse tipo de tratamento, devem-se na maioria dos casos a
relações conflitantes entre os adultos e as crianças; justamente
por esse fato, um relacionamento de novo tipo com os adultos
pode corrigi-las.
Apesar de a ludoterapia estar muito difundida, ainda nào
tinha sido objeto de pesquisas psicológicas especiais até entào,
e a experiência de sua utilização apresenta um caráter empíri­
co. A análise da evolução da ludoterapia leva a crer que cada
dia se a emprega menos como método psicanalítico puramen­
te freudiano. E tarefa de pesquisas psicológicas especiais es­
clarecer os mecanismos reais de seu efeito corretor e separar o
racional do místico. Parece-nos que esse problema só pode ser
resolvido aprofundando-se o estudo da teoria do jogo e expli­
cando-se o papel deste no desenvolvimento da personalidade
da criança.
Detivemo-nos tanto nas interpretações freudianas do jogo
porque são as mais difundidas na psicologia ocidental.
Como já dissemos, nào aceitamos a interpretação freudia­
na do jogo porque nào explicita a sua verdadeira natureza e
importância para o desenvolvimento psíquico. Os defeitos fun­
damentais dessa teoria sào os seguintes: primeiro , trata-se de
uma das teorias mais biologizantes, a qual nào leva em conta,
em absoluto, a história do desenvolvimento ontogenético do
homem, identifica os impulsos fundamentais do homem com
os dos animais e os reduz aos sexuais; segundo, essa teoria
traslada sem fundamento os mecanismos hipotéticos do movi­
mento da vida psíquica, presumivelmente existentes nos adul­
tos enfermos, para as crianças, pressupondo que eles existiram
ISO Psicologia dojogo

desde sempre, privando assim de todo e qualquer desenvolvi­


mento a vida psíquica das crianças; terceiro, nessa teoria há
uma noção errônea do sistema das relações da criança e da so­
ciedade, conceituando-as de antagônicas e conduzentes a trau­
mas que os adultos infligem continuamente às crianças; a esse
respeito, o jogo é conceituado como forma de evasão da crian­
ça da realidade para o peculiar mundo simbólico das fantasias;
quarto, deixa-se totalmente de lado a origem do jogo na histó­
ria da sociedade e no desenvolvimento do indivíduo, e não se
examina em momento algum o seu significado para o desen­
volvimento psíquico.
Fizemos uma pausa para analisar detidamente a teoria
freudiana do jogo porque ela influiu, ademais, na noção que
alguns psicólogos nutrem a respeito dos processos de desen­
volvimento psíquico da criança. Assim, a influência de Freud
deixou-se sentir nas primeiras investigações de Piaget relacio­
nadas com os problemas gerais do desenvolvimento psíquico
da criança e. em particular, com a natureza do jogo infantil.
Essa concepção teórica entrou na psicologia infantil com o no­
me de teoria dos dois mundos.
Escreve Piaget: “Um dos méritos da psicanálise está em
ter demonstrado que o autismo não conhece a adaptação à rea­
lidade, visto que o único recurso para o ‘ego' é o prazer. A
única função do pensamento autista é empenhar-se em satisfa­
zer imediatamente (sem controle) as necessidades e os interes­
ses, assim como deformar a realidade para acomodá-la ao ‘ego’”
(1932, p. 401). Caracterizando o pensamento autista, afirma que
esse "pensamento é subconsciente, ou seja, que os fins perse­
guidos por ele, ou as missões que se propõe, não se apresentam
à consciência. Este pensamento não se amolda à realidade ex­
terior: em vez disso, cria para si mesmo uma realidade imaginá­
ria ou uma realidade onírica. Não aspira a estabelecer a verda­
de, mas a satisfazer os desejos e é puramente individual. Como
tal, nào pode expressar-se diretamente na linguagem; manifes­
ta-se sobretudo em imagens; e, para ser Gomunicado, deve re­
Teoria do jogo 151

correr a procedimentos indiretos, despertando com símbolos e


mitos os sentimentos que o dirigem” (ibid., p. 95).
A idéia fundamental de Piaget nesses primeiros trabalhos
consiste em que a criança assimila a realidade circundante de
acordo com as leis de seu pensamento, primeiro autista e
depois egocêntrico. Tal assimilação cria um mundo peculiar no
qual a criança vive e satisfaz seus desejos.
Essa idéia foi claramente expressa por E. Claparède em
seu prefácio para o livro de Piaget: “Ele [Piaget] mostra que a
mente infantil tece, por assim dizer, simultaneamente em dois
planos distintos e como que sobrepostos. O trabalho executado
no plano inferior durante os primeiros anos de vida é muito
mais importante. É obra da própria criança, que atrai desorde­
nadamente e cristaliza em torno de suas necessidades tudo o que
possa satisfazê-la. É o plano do subjetivismo, dos desejos, do
jogo, dos caprichos, do lustprínzip [princípio de prazer], como
teria dito Freud.
O plano superior, ao contrário, é erguido pouco a pouco
pelo meio social, cuja pressão é cada vez mais sentida pela
criança. É o plano da objetividade, da linguagem, das concep­
ções lógicas; em suma, é a realidade. Esse plano superior é
muito frágil no começo. Quando o sobrecarregam, dobra-se,
racha, desmorona, e os elementos que o compõem caem no
plano inferior; misturando-se com os elementos pertencentes
a esse segundo plano, alguns fragmentos ficam a meio cami­
nho entre o céu e a terra. Compreende-se que o observador
que nào viu esses dois planos e acreditava que o jogo se reali­
zava num só tenha tido a impressão de uma enorme trapalha­
da, já que cada um dos dois planos possui sua lógica própria e
prorrompe em alarido quando o unem à lógica do outro pla­
no” (1932, pp. 59-60).
Vigotski diz com razão que “mesmo se os próprios Piaget
e Claparède nào tivessem mencionado Freud nem o seu prin­
cípio de prazer, a ninguém teriam restado dúvidas de que está­
vamos diante de uma concepção puramente biológica que pro-
152 Psicologia do jogo

curava deduzir a originalidade do pensamento infantil das peculia­


ridades biológicas de sua natureza” (1932, p. 99).
Dos postulados de que, primeiro, o pensamento autista
cria para si uma realidade imaginária ou uma realidade onirica,
e de que, segundo, o pensamento infantil funciona em dois pla­
nos, decorre inevitavelmente que a criança deve viver num
mundo cindido, no mundo próprio e no dos adultos. Esses dois
mundos, essas duas realidades, nào podem unir-se por princí­
pio, já que cada um deles assenta em princípios distintos. Um é
o mundo do “princípio de prazer”; o outro, do “princípio de rea­
lidade”.
O jogo, do ponto de vista de Piaget, pertence ao mundo
dos sonhos autistas, dos desejos insatisfeitos na realidade, das
inesgotáveis possibilidades. Esse mundo é o mais importante,
é uma verdadeira realidade para a criança; em todo o caso, esse
mundo nào é, para a criança, menos real do que o outro - o
mundo da coerção, das propriedades permanentes dos objetos,
da causalidade - o mundo dos adultos. Examinando o desen­
volvimento das noções de realidade, Piaget indica que até dois
ou três anos de idade “o real é simplesmente o desejável”. Na
segunda fase assinala-se o aparecimento de duas realidades
heterogêneas e igualmente reais: o mundo do jogo e o das
observações. Piaget assim resume a sua idéia: “Cumpre reco­
nhecer, pois, que o jogo da criança tem realidade autônoma,
entendendo-se por isso que a realidade verdadeira a que aquela
se contrapõe é menos verdadeira para a criança do que para
nós” (1932, pp. 402-403).
Em suma, o caminho do desenvolvimento pode ser apre­
sentado, a partir das posições de Piaget, da seguinte maneira:
existe primeiramente para a criança um mundo unido, o mundo
subjetivo do autismo e dos desejos; e depois, devido à pressão
do mundo dos adultos, do mundo da realidade, surgem dois
mundos: o do jogo e o da realidade, com a particularidade de
que o primeiro é o mais importante para a criança. Esse mundo
do jogo é algo como os restos do mundo puramente autista. Por
Teoria dojogo 153

último, sob a pressão do mundo da realidade, esses restos tam­


bém são desalojados, surgindo então como que um mundo indi­
viso, com os desejos recalcados que adquirem agora o caráter de
sonhos ou ilusões.
A diferença existente, até certo ponto, entre essa concep­
ção de Piaget e a dos psicanalistas está em que, para estes últi­
mos, o jogo é a manifestação dos desejos e tendências para a
repetição compulsiva, enquanto para Piaget constitui os dese­
jos residuais, ou seja, ainda nào recalcados mas que, tal como
para os psicanalistas, são impossíveis de satisfazer. Esse
mundo imaginário especial no jogo cria-se de acordo com uma
lógica singular, a lógica do sincretismo. Diz Piaget: “O sincre-
tismo é, por seu próprio mecanismo, um elo intermediário
entre o pensamento autista e o pensamento lógico, à semelhan­
ça, por outra parte, de todas as demais manifestações do pensa­
mento egocêntrico” (1932, p. 173)*. É natural que essa idéia
subentenda as funções fundamentais que regem o aparecimen­
to das imagens dos sonhos: a condensação, que faz fundir-se
em uma várias imagens distintas, e o deslocamento, que traslada
de um objeto para outro as características pertencentes ao primei­
ro. Isso é o que leva ao simbolismo no jogo. Portanto, o jogo é
simbólico, e o seu simbolismo está determinado por uma lógi­
ca sincrética especial de construção do mundo imaginário do
jogo. Esse mundo imaginário, o mundo lúdico, está frente a
frente com o mundo da realidade e, para a criança, é mais real
do que este último.
Se para os psicanalistas puros a criança foge dos dissabo­
res do mundo da realidade para o mundo do jogo, para Piaget o
mundo do jogo está constituído pelos restos do mundo primá­
rio dos desejos ainda não recalcados pela realidade, pelo mundo
dos adultos. Apesar dessa diferença, para Piaget, assim como
para os psicanalistas, o mundo do adulto e o mundo da criança
contrapõem-se como duas forças hostis. O primeiro recalca o
segundo; o segundo resiste quanto pode ao primeiro. Erguidos
na base de princípios diferentes e estranhos um ao outro, sào
154 Psicologia do jogo

inconciliáveis. Só sào possíveis entre eles as relações de deslo­


camento mecânico.
Posição análoga ocupa também K. Koffka. Embora faça
várias observações críticas parciais à teoria do egocentrismo,
aceita, em resumo, a concepção dos dois mundos, aos quais
correspondem duas estruturas de comportamento completa­
mente distintas. Analisando o jogo infantil como algo típico do
mundo das crianças, Koffka começa pelo fato muito conhecido
e difundido de utilizar no jogo um objeto no lugar de outro.
Escreveu Koffka: “Tomarei como ponto de partida o se­
guinte exemplo: a criança pode brincar com um pedaço de
madeira e tratá-lo como se fosse um ‘brinquedo vivo’, e ao ca­
bo de certo tempo, se se distrair dessa ocupação, pode quebrar
ou jogar no fogo esse mesmo pedaço de madeira. Como coe­
xistem esses dois tipos de conduta com um simples pedaço de
madeira?” (1934, p. 221). Koffka prossegue: “Creio que com­
preenderemos melhor o jogo no aspecto psicológico se exami­
narmos as ações da criança do ponto de vista da duração das
estruturas de conduta em que elas se integram para a criança”
(ibid., p. 229). Ao examinar o processo de desenvolvimento
como um processo no qual se criam gradualmente estruturas
cada vez mais prolongadas e interdependentes de conduta,
Koffka considera que nas primeiras etapas só existiram com­
plexos equivalentes de ações relativamente breves e indepen­
dentes uns dos outros. Nessas etapas ainda não existia, em ge­
ral, ojogo.
“Mas pouco a pouco”, escreve Koffka, “a criança começa
a criar também as estruturas comportamentais de grande dura­
ção, e agora o característico é que existam simultaneamente
diversas estruturas comportamentais, lado a lado umas com
outras sem que se observe apreciável influência mútua. Creio
ser possível mencionar, com o caráter de dois sistemas de estru­
turas desse tipo, formados pela primeira vez, as ações, proces­
sos e objetos relacionados de algum modo com os adultos e, ao
mesmo tempo, independentes deles. Num princípio, a criança
Teoria do jogo 155

começa a distinguir lenta e confusamente o mundo do adulto


do seu próprio mundo” (1934, p. 229). Assim, no entender de
Koftka, formam-se dois mundos: o mundo das crianças e o
mundo dos adultos.
“Mas temos de continuar avançando”, prossegue Koffka
expondo seu pensamento. “A relativa independência das diver­
sas estruturas estende-se não só a esses dois grandes grupos: o
mundo das crianças e o mundo dos adultos; é válida também
para algumas dependências no interior de cada uma delas.
Enquanto o mundo do adulto aspira abarcar o todo pelo mesmo
princípio que o distingue do mundo infantil, de maneira que a
dependência entre ações separadas vai desaparecendo cada vez
mais, no mundo da criança, porém, as coisas passam-se de
outra maneira. A criança pode ser leiteiro hoje e amanhã solda­
do, pode entreter-se com um pedaço de madeira e daí a pouco
jogá-lo ao fogo; as diversas ações não se entrechocam porque
entre elas não há nenhuma dependência, do mesmo modo que
os nossos jogos não estão relacionados entre si” (ibid., p. 230).
“É suficiente que algum objeto satisfaça o desejo existen­
te num momento dado, e que esse objeto possua já todas as
qualidades necessárias para poder cumprir o desejo. Um peda­
ço de madeira pode ser acariciado; nesse momento, é um bebê
querido e mimado, e o fato de que careça de outras qualidades
dos bebês queridos e mimados nào tem a menor importância,
porque não é obrigatória a semelhança completa com o que
possui na sua experiência. Para a criança ainda nào existe um
mundo indiviso” (1934, p. 230).
Os trechos acima transcritos mostram com evidências de
sobra a identidade quase completa das opiniões de Koffka e
Piaget no tocante à existência de dois mundos: o da criança,
que é o mundo do jogo e dos desejos, e o dos adultos, o mundo
das regras rígidas e da coerção. A diferença está apenas nos
termos que caracterizam esses dois mundos. Koffka caracteri-
za-os nos termos de estruturas de diferente grau de duração,
interdependência e rigor; Piaget fá-lo em termos da lógica do
156 Psicologia do jogo

egocentrismo e do autismo, assim como da lógica da realidade.


As estruturas do mundo dos adultos recalcam em Koffka as
estruturas primárias infantis; em Piaget, a lógica dos adultos
recalca a lógica autista primária da criança.
Vigotski (1934) forneceu uma concepção geral dos dois
mundos. “É difícil imaginar”, escreveu ele, “maior distorção
dos fatos do que uma teoria do jogo infantil desse gênero. A
essência do jogo infantil consiste em criar uma situação fictí­
cia, ou seja, um certo campo semasiológico que altera todo o
comportamento da criança, forçando-a a definir-se em suas
ações e atos em situação só fictícia, só imaginária, e nào na­
quela em que se vê. No que se refere ao conteúdo dessas
situações fictícias, indica sempre terem saído do mundo dos
adultos.
Já tivemos ocasião de tratar detidamente dessa teoria dos
dois mundos - o mundo infantil e o mundo dos adultos - e das
teorias derivadas das duas almas que existem simultaneamente
na consciência da criança. Agora, diremos apenas o que signi­
fica essa teoria, exposta por Koffka, para a concepção geral do
desenvolvimento.
Cremos que, graças a essa concepção, Koffka imagina o
desenvolvimento da criança como um deslocamento mecânico
do mundo infantil pelo mundo dos adultos. Essa compreensão
leva infalivelmente a deduzir que a criança incrusta-se no
mundo hostil dos adultos; que a criança forma-se a si mesma
em seu mundo, que as estruturas do mundo dos adultos deslo­
cam simplesmente as estruturas infantis e as suplantam. O
desenvolvimento converte-se num processo de deslocamento e
substituição que conhecemos tão bem pela teoria de Piaget”
(1934, p. LIII).
O problema fundamental é saber se existe um mundo in­
fantil peculiar c, cm caso afirmativo, o que representa e em que
relação se encontra com o mundo dos adultos.
Piaget, tal como Koffka, responde assim a essa questão.
Sim. o mundo peculiar da criança existe. Está constituído pelo
Teoria do jogo 157

mundo subjetivo e imaginário, que é forjado pela própria


criança para satisfação de seus desejos e está sob o domínio do
princípio de prazer. A criança vive nesse mundo criado por ela
própria e nele satisfaz seus desejos.
O mundo dos adultos é um mundo de objetividade, um
mundo que a criança encontra pronto. E o mundo dos objetos
com suas qualidades permanentes e modos de uso, o mundo da
linguagem, das concepções e idéias lógicas, o mundo dos adul­
tos e suas relações. Esse mundo é alheio e hostil à criança
desde o princípio. O mundo subjetivo da criança e o mundo da
objetividade opõem-se mutuamente desde o começo. No
mundo dos adultos está a força; essa força pesa sobre a criança,
desaloja-a do mundo da subjetividade e realça outra realidade,
a objetiva, no lugar da subjetiva. Essa é a postura de Piaget e
Koffka. Mas não podemos admiti-la.
Claro que a criança nào entra de forma abrupta em todas
as esferas da vida dos adultos que a rodeiam. É um processo
prolongado e paulatino. E são os adultos precisamente que
introduzem a criança pouco a pouco nesse mundo.
Os adeptos da concepção dos dois mundos cometem o
erro de imaginar o “peculiar” mundo infantil como de desejos
inatos e, além disso, insatisfeitos. É precisamente da insatisfa­
ção dos desejos primários que procede esse mundo subjetivo,
autista e imaginário. Erróneas já são aqui as premissas.
Primeiro, a noção de que as necessidades são dadas à criança
desde o começo em forma de configurações psíquicas, de de­
sejos ou necessidades; segundo, a noção de que as necessida­
des da criança não se satisfazem.
A criança tem, desde que nasce, certas necessidades. Sào
as de nutrição, oxigênio, uma temperatura determinada etc., as
quais são sentidas pelo organismo. São satisfeitas pelos adul­
tos que cuidam dela. A criança morreria de fome e de frio se os
adultos nào sustentassem sua vida. A satisfação das necessida­
des primárias é a condição fundamental e imprescindível da
vida da criança durante a infancia.
158 Psicologia do jogo

Essas necessidades não existem desde o começo como


formações psíquicas, como exigências, que adquirem configu­
ração psíquica à força de satisfazê-las. Os dados das observa­
ções evidenciam que as necessidades primárias de nutrição,
sono etc., formam-se bastante tarde nas crianças. Sabe-se que a
criança pode ter caprichos pela necessidade de dormir ou de
comer; mas cabe ao adulto adivinhar sua necessidade e satisfa­
zê-la. Pode-se pressupor que, subjetivamente, esses estados
sào sofridos como certa tensão sem conteúdo objetivo concre­
to, como necessidades nào materializadas.
Como mostram numerosas pesquisas (N. L. Figurin, M. P.
Denisova, Ch. Bühler, A. Vallon etc.), as primeiras necessida­
des que a criança sente já sào sociais. São, sobretudo, a de con­
tar com um adulto e a de comunicar-se com ele. As meticulo­
sas pesquisas do desenvolvimento da comunicação em crian­
ças pequenas, realizadas por M. I. Lísina (1974, a, b), mostra­
ram de maneira convincente que a primeira necessidade da
criança é comunicar-se com os adultos. Isso é evidenciado
pelas observações da transformação das reações puramente
fisiológicas do choro e do sorriso em atos comportamentais
cujo objeto é a pessoa adulta. Lísina assinala a esse respeito:
“A criança sente muito cedo, já desde os primeiros meses de
vida, a necessidade de ter ao lado outra pessoa, a aspiração a
ganhar sua simpatia, a estabelecer um contato emocional mais
estreito com ela” (ibid., p. 12).
Expressando-nos de maneira um tanto metafórica, pode­
mos afirmar que todas as necessidades da criança pequena estão
objetivadas no adulto que dela cuida; para a criança, o leite que
mama nào está separado da màe.
O mundo da criança é, sobretudo, a pessoa adulta como
parte importante da realidade que a cerca, parte do mundo dos
adultos. Somente no sistema em desenvolvimento das relações
“criança-adulto” a primeira ingressa em todo o mundo restante.
Suponhamos, porém, que existam certos desejos iniciais,
que esses desejos nào se satisfazem e que a criança construa
Teoria do jogo 159

certo mundo subjetivo, uma miragem. Podem ser satisfeitas


nesse mundo as necessidades insatisfeitas? A resposta há de
ser negativa, porquanto é impossível qualquer satisfação das
necessidades no mundo da imaginação. Isso se refere não só
aos desejos e necessidades orgânicos, mas também às deman­
das sociais. Como diz com toda a razão Vigotski, “também na
série ontogenética, admitir a satisfação alucinatória das neces­
sidades como forma primária do pensamento infantil significa
omitir o fato indiscutível de que, usando as palavras de Bleiler,
ka satisfação só chega depois de ter realmente ingerido o ali­
mento', omitir que uma criança de mais idade tampouco prefe­
re a maçã imaginária à maçà real” (1932, p. 70).
Suponhamos que os representantes da concepção dos dois
mundos contraponham que para eles não é obrigatória a tese de
que existem desejos primários insatisfeitos. Pois que suijam
necessidades; que, tendo surgido e uma vez satisfeitas pelos
adultos, deixam de satisfazer-se, mas continuam persistindo e
criam o mundo imaginário que é, para a criança, o seu verda­
deiro mundo interior. Em princípio isso é possível, já que tam­
bém as possibilidades se desenvolvem, desaparecendo umas e
surgindo outras, e a extinção de umas necessidades e desejos e
o nascimento de outras não é um ato simples.
Entretanto, com tal conceito do mundo infantil, a imagina­
ção, o sonho e o jogo também são expressões da ânsia de re­
produzir os estados anteriores e a forma de satisfazer as neces­
sidades. Tal postura leva de novo a Freud e aos psicanalistas.
Além do que já dissemos dessas teorias, a respeito da concep­
ção dos dois mundos, deve-se acrescentar ainda que, concei­
tuando dessa maneira a vida das exigências, também fica por
esclarecer por que razão o chamado mundo infantil, que pode
ser, à luz do que se disse antes, o mundo de quase-satisfaçào
imaginária, ilusória, de necessidades caducas, seria para a crian­
ça mais verdadeiro do que o mundo das necessidades novas e
satisfeitas pelos adultos. Imaginemos o simples fato diário de
160 Psicologia do jogo

substituir um tipo de alimento da criança por outro. Essa é uma


substituição real das formas de satisfação das necessidades. Se­
gundo o esquema da teoria dos dois mundos, a pseudo-satisfa-
ção ilusória com os alimentos de antes é o mundo da criança, e
a satisfação real com alimentos novos é o mundo dos adultos.
O primeiro mundo é para a criança muito mais verdadeiro do
que o segundo, e é nesse mundo do passado que ela vive. E di­
fícil imaginar que a sucção alucinatória do peito seja para a
criança mais verdadeira do que a satisfação real da necessidade
de beber suco de frutas ou leite numa xícara. Tal conceito das
relações entre o mundo real, com sua satisfação verdadeira das
necessidades, e o mundo imaginário, com sua satisfação ilusó­
ria, fica abaixo de toda a crítica.
Ao mesmo tempo, é preciso insistir em que as proposições
relativas à vinculação do jogo e das necessidades, assim como
as que se referem à originalidade do mundo em que vive a
criança, são corretas. A criança vive, em realidade, objetiva­
mente, desde os primeiros dias de nascimento, num mundo que
ela percebe e sente de maneira distinta dos adultos. Não obs­
tante, para caracterizar adequadamente o mundo da criança,
cumpre tipificar o seu mundo objetivo, ou seja, as condições
objetivas com as quais se encontra em interação real. Também
ficará clara então a atitude desse mundo em face do mundo dos
adultos. Os que apóiam a concepção dos dois mundos caracte­
rizam o mundo subjetivo da criança em sua relação com o
mundo objetivo dos adultos sem descobrir os nexos e as rela­
ções que a criança estabelece com o mundo objetivo. A única
relação objetiva que eles enxergam é a do deslocamento do
mundo subjetivo da criança pelo mundo objetivo dos adultos.
Tal conceito é, pelo menos, limitado.
Para aproximar-se ao menos em certa medida da com­
preensão do mundo objetivo da criança, de suas contradições e
conflitos, é preciso, antes de tudo, examinar o quadro objetivo
de sua vida e explicar em que relação se encontra o mundo
objetivo da criança com o mundo objetivo dos adultos.
Teoria do jogo 161

Essa análise poderia nos convencer dc que o mundo da


criança é sempre uma certa parte do mundo dos adultos; é
parte do mundo objetivo originalmente projetado. Os que sus­
tentam a concepção examinada nào fazem essa análise porque
consideram o mundo subjetivo da criança independente do seu
mundo objetivo. A superação de tais idéias somente é possível
no sistema de idéias materialistas sobre a psique mantidas con­
seqüentemente.
Lewin (1935) e sua discípula S. Sliosberg (1934), que rea­
lizaram uma pesquisa experimental com o objetivo especial de
estabelecer as diferenças entre a situação séria e a lúdica, man­
têm uma postura algo distinta nessa questão. Sliosberg distin­
gue, na esteira de Lewin, no “espaço vital” de cada indivíduo
estratos de diversos graus de realidade. Nos estratos irreais
insere-se o mundo da fantasia e dos sonhos, e superam-se as
dificuldades com muito maior facilidade do que nos estratos
reais, em que os fatos sào rígidos. O problema fundamental da
pesquisa é a relação existente entre a realidade (no “espaço vi­
tal” da criança) e a satisfação das necessidades. Sliosberg opõe
seu método ao de Piaget: a atitude real diante das coisas e dian­
te das conversações com as crianças sobre a realidade.
Ao cabo de uma grande série dc interessantes experimen­
tos, de substituição de diversos objetos numa situação real e em
outra lúdica, Sliosberg chega a várias conclusões importantes.
Assim, analisando as relações entre o jogo e os estratos da
realidade, Sliosberg conclui que embora a substituição de um
objeto por outro na situação lúdica transcorra com muito maior
facilidade do que na situação séria c que, por conseguinte, a
situação lúdica apresenta alguns indícios próprios dos estratos
irreais, nào se infere daí que pertença a esses estratos. Resu­
mindo os dados experimentais relativos a essa questão, Slios­
berg extrai a conseqüência de que a situação lúdica deve ser
apresentada como setor especial (Sondergebiet) do estrato real,
setor que se distingue dos outros desse mesmo estrato por ter
162 Psicologia dojogo

as propriedades de maior dinamismo e mobilidade típicas dos


estratos irreais e uma estreita relação de reciprocidade com
alguns estratos estruturais irreais do “espaço vital” de um indi­
víduo determinado.
Sliosberg enfatiza que a relação dos pares de conceitos -
situação séria e lúdica, estratos irreais e reais - não deve ser
tomada como simples, e, embora os processos na situação lúdi­
ca sejam, no aspecto dinâmico, do mesmo gênero que os proces­
sos dos estratos irreais, o jogo e a irrealidade não sào idênticos.
Em relação ao problema que examinamos sobre a existên­
cia de dois mundos, nos quais a criança vive, revestem-se de
interesse os dados de Sliosberg sobre a dependência entre a
satisfação das necessidades e a substituição dos objetos, ou
seja, a passagem para a situação lúdica.
Os dados experimentais da pesquisa e as deduções extraí­
das por Sliosberg têm um grande interesse, acreditamos,
sobretudo porque expõem claramente duas questões: primeiro,
que nào se deve identificar o jogo com o irreal (com o mundo
dos sonhos e das ilusões); segundo, a relação entre a satisfação
das necessidades e o jogo.
Lewin (1935) não se propunha esclarecer a natureza do
jogo. O jogo interessava-lhe unicamente na medida em que nele
se representava com destaque e de maneira fidedigna a dinâmi­
ca da substituição que investigou experimentalmente. E disse
sem rodeios que é o imenso campo do jogo que tem a relação
mais próxima com a dinâmica da substituição, quer se trate
indistintamente do objeto ou da ação.
Um tanto esquematizadas, as idéias de K. Lewin podem
ser assim resumidas:
1. O meio psíquico do adulto dissocia-se em camadas de
diferentes graus de realidade. O plano da realidade pode carac­
terizar-se como plano de fatos cuja existência não depende dos
desejos pessoais do homem. Essa é a esfera do comportamento
realista, das grandes dificuldades etc. Os planos mais irreais de
conduta sào os das esperanças e ilusões. Esse estrato de maior
Teoria do jogo 163

irrealidade distingue-se também por um maior dinamismo. As


limitações e as barreiras em seu seio sào as menos estáveis. O
nexo entre a personalidade e o meio nesse plano é também flui­
do e débil. No plano do irreal “pode-se fazer tudo aquilo de
que se gosta”.
2. Sào possíveis os trânsitos de um plano ao outro. Se as
condições do plano da realidade se fazem por alguma causa
demasiado desagradáveis, por exemplo, como resultado de uma
tensào excessivamente grande, surge a aspiração de sair do
plano da realidade para entrar no da irrealidade (nas ilusões,
fantasias e, inclusive, doença).
3. As teses 1 e 2 encontram-se igualmente e por princípio
tanto no comportamento dos adultos quanto no das crianças.
Não obstante, é típico do meio psicológico da criança, primei­
ro, que a diferenciação dos distintos graus de realidade nas
crianças não se exteriorize com tanta clareza e, segundo, que
os trânsitos do nível do real para o do irreal sejam mais sim­
ples.
4. O mecanismo fundamental da transição dos estratos de
diversos graus de realidade para os irreais é a permutação.
(Freud emprega o conceito de permutação ou substituição, mas
evita defini-lo.)
5. Ficaram estabelecidas algumas peculiaridades da per­
mutação: (a) quanto maior é a necessidade, tanto mais vigoro­
sa é a tendência para a substituição; (b) as ações substitutivas
surgem freqüentemente em situações nas quais resulta impos­
sível atingir um certo objetivo e existe uma tensão psicobioló-
gica; (c) a ação substitutiva procede do sistema de tensões cor­
respondentes à açào primária; (d) em muitos casos, a ação
substitutiva nào leva à satisfação completa, e o indivíduo fica
mais insatisfeito; (e) o valor substitutivo da ação é tanto maior
quanto mais real é a própria açào substitutiva (por conseguinte,
o valor substitutivo da ação no estrato irreal é mínimo); (f) na
permutação que se opera de maneira orientada, o valor substi­
tutivo é tanto maior quanto menos corresponde a açào substitu­
164 Psicologia do jogo

tiva ao objetivo novo e mais a outro modo de consecução do


objetivo primário; (g) quanto maior é a necessidade, tanto
menor é o valor substitutivo da permutação; mas, por outro
lado, a tendência para a ação substitutiva aumenta com a inten­
sificação da própria necessidade.
Tais são, expostas de maneira esquemática, algumas
idéias de Lewin sobre os estratos de diversos graus de realidade
que há na estrutura psicológica do indivíduo e sobre a dinâmi­
ca da permutação como mecanismo fundamental de transição
de uns estratos a outros. Apresentamos essas idéias unicamen­
te porque têm relação direta com a interpretação de algumas
questões do jogo.
Caracterizando o jogo, K. Lewin assinala a sua proprieda­
de dinâmica fundamental, a qual consiste em que, por uma
parte, trata com fenômenos relativos ao nível de realidade, no
sentido de que são acessíveis à observação de indivíduos nào
interessados (diferentemente, por exemplo, das ilusões) e, por
outra, em que está muito menos relacionada com as leis da rea­
lidade do que o comportamento em qualquer outra esfera que
não seja a lúdica. O objetivo proposto no jogo e sua realização
produzem no indivíduo um prazer especial. Essa fluidez dinâ­
mica, devido à qual o jogo se aproxima do dinamismo da irrea­
lidade, observa-se com especial clareza na mutabilidade das
coisas e da personalidade (os papéis lúdicos) que leva a criança
muito além do limite da realidade. No entender de K. Lewin,
os jogos podem distinguir-se segundo o princípio de sua flui­
dez dinâmica. As regras do jogo podem ser tão rígidas que o
jogo em questão pode aproximar-se, no sentido dinâmico, do
nível da realidade.
Elucidando as diferenças existentes entre o jogo e a situa­
ção séria, K. Lewin considera que o problema da permutação
irreal está intimamente relacionado com o do jogo. Segundo
Piaget, as concepções infantis apresentam um caráter místico.
O objeto e sua denominação, a fantasia e a realidade, a mentira
e a verdade, são para a criança conceitos que nào estào separa­
Teoria do jogo 165

dos com a suficiente precisào. E cabe perguntar: Pode um


fenômeno ou um objeto irreal satisfazer as necessidades da
criança?
Numa pesquisa comparativa, Sliosberg descobriu que a
satisfação mediante o substituto do objeto real (uma tesoura de
papel, por exemplo) é muito possível e depende, em cada caso,
do caráter da situação em seu conjunto. A situação lúdica não
tem limitações rigorosas. Poderia denominar-se livre. Determi­
nadas formas de substituição só são possíveis na situação lúdi­
ca, em que os objetos não têm significação fixa, como lhes é
próprio nas situações reais. Numa situação séria, a criança cos­
tuma renunciar à permutação no jogo. É interessante saber que
no jogo, ou seja, na situação lúdica, rejeita com freqüência as
coisas reais ou as ações reais que lhe sào oferecidas em substi­
tuição das lúdicas. Também se demonstrou por meio de experi­
mentos que para os adultos a possibilidade da permutação de­
pende igualmente da situação. Um fator muito importante para
adotar a substituição é o grau de intensidade da própria neces­
sidade. Os experimentos evidenciam que a criança admite com
mais facilidade uma tesoura de barro depois de ter brincado à
saciedade com uma de verdade. Em geral, quanto mais forte a
necessidade, tanto menor o valor da açào substitutiva. Por outra
parte, a tendência para a açào substitutiva acentua-se conforme
aumenta a intensidade da própria necessidade.
Os critérios de Lewin e Sliosberg revestem-se de interesse
para nós em vários sentidos. Entrelaçam engenhosamente as in­
terpretações freudianas e anti freudianas. Tomaram de Freud duas
coisas importantes: primeiro, a tese de que o trânsito para esferas
irreais transcorre como resultado da insatisfação dc uma necessi­
dade na camada real e da tensão excessivamente grande relaciona­
da com ela; segundo, o conceito de substituir certos objetos ou
ações, ligados à satisfação de necessidades, por outros.
Ao mesmo tempo, é completamente diferente o conceito
de estratos de distinto grau de realidade. Cada um caracteriza-
166 Psicologia do jogo

se, sobretudo, nào pelo que está nele representado (e sempre


está representado o mesmo, a realidade), mas pela maneira
como está representado e, concomitantemente, pelo grau de
rigidez do conteúdo apresentado, pela fluidez e pelo dinamis­
mo dos processos que transcorrem nesse estrato. Os diferentes
estratos da vida psíquica do indivíduo, desde o real até as for­
mas supremas do irreal, tal qual as apresenta K. Lewin, podem
compreender-se como formas distintas da existência do real.
Com efeito, Lewin formula justamente o problema das rela­
ções entre as diferentes formas de existência das exigências e
os níveis em que elas podem ser satisfeitas.
As pesquisas realizadas pelos colaboradores de Lewin mos­
tram que o valor substitutivo das ações é tanto maior quanto
mais real for a ação substitutiva. Isso significa que as ações na
esfera irreal, no sentido de satisfazerem as necessidades, pos­
suem um valor substitutivo mínimo. Seria mais acertado dizer
que a satisfação das necessidades no estrato irreal é impossí­
vel*. Ao mesmo tempo, quanto maior é a necessidade, tanto
mais se acentua a tendência para a substituição.
O simples adiamento da satisfação de qualquer necessida­
de pressupõe a transição para uma nova forma de existência.
Lewin caracteriza o dinamismo das ações nesse estrato menos
rígido, mais fluido e dinâmico. Entretanto, seja qual for esse
dinamismo, as ações no estrato irreal nào podem dar lugar a
que se satisfaçam as necessidades.
Como é natural, cabe perguntar: O que sucede à necessi­
dade na transição para os estratos irreais e para as ações que neles
se dão? Lewin nào dá nenhuma resposta. Por agora, só se pode
responder com hipóteses. O aparecimento e o desaparecimento
das necessidades é possível unicamente por sua satisfação ou
insatisfação reais, ou seja, só no estrato real, para nos expressar­
mos na linguagem lewiniana. Nem uma única necessidade pode
aparecer de chofre na forma ideal nem desaparecer, obtendo
satisfação em virtude da transição para essa forma. Contudo, é
muito possível e existe realmente a atividade baseada nas ne­
Teoria do jogo 167

cessidades no plano ideal. Pode-se mencionar, por exemplo, a


antecipação da satisfação ou insatisfação das necessidades, a
prorrogação na medição dos modos e meios de satisfação etc.
Os sonhos e as ilusões são uma forma de atividade psíquica ba­
seada nas necessidades. Nenhuma açào interna relacionada com
elas permanece impassível em seu conteúdo e nível de intensi­
dade. Tal atividade psíquica interna precisa e dá forma ao con­
teúdo das necessidades, acentua ou atenua a sua intensidade.
Mas só a vida real decide em definitivo se elas persistem ou
são suprimidas.
Lewin e Sliosberg captaram, segundo nos parece, uma das
peculiaridades mais importantes do jogo infantil. Disseram
que o jogo é, por um lado, um estrato singular da realidade e,
por outro, que as ações lúdicas se parecem, por seu dinamismo,
com as dos “estratos irreais”. Essa dualidade é efetivamente
um dos traços típicos do jogo, em que a criança, transforman-
do-se a si mesma, transforma os objetos envolvidos no jogo e
opera com eles, apoiando-se nos sentidos que ela própria lhes
atribuiu.
E importante saber que o jogo está, apesar de tudo, na
esfera da realidade. E isso c realmente assim. O jogo nào é
irrealidade. Por isso, como explicaremos na parte experimental
da nossa pesquisa, tem a rigidez própria da realidade. A criança
atua no jogo com objetos da vida real. Ao mesmo tempo, estão
bem representados no jogo os objetos substitutivos e as ações
substituidoras. Como fica a esfera da realidade no jogo real?
Sliosberg e Lewin não respondem a isso. E é muito possível
uma situação em que a transição para o plano ideal a respeito
de alguns elementos da realidade ofereça a possibilidade de
penetrar mais profundamente em outros elementos seus, em
outras esferas da realidade. Como se sabe, costuma acontecer
que certo afastamento de realidade seja, ao mesmo tempo, uma
penetração mais profunda nela. Estas questões ficam penden­
tes de solução.
168 Psicologia do jogo

A dinâmica do intercâmbio está bem representada no jogo


e expõe em toda a sua amplitude se é possível ou não satisfazer
as necessidades no jogo. Nele se satisfazem realmente algumas
necessidades? E se assim é, quais são elas?
A essas perguntas nào se pode responder mais do que
com hipóteses. No jogo podem satisfazer-se algumas necessi­
dades na medida em que as ações têm caráter real e nào imagi­
nário. Assim, por exemplo, se a criança estabelece no jogo
relações reais com seus companheiros, essas relações reais
podem satisfazer determinadas necessidades, por exemplo, as
de comunicação com os colegas. Entretanto, quando a criança
atua num plano imaginário, as necessidades não podem ser sa­
tisfeitas.
Suponhamos que Freud tenha razão ao afirmar que todo
jogo infantil se encontra sob a influência do desejo dominante
das crianças: o de chegarem a ser adultas e fazer o mesmo que
as pessoas grandes.
Pode o jogo satisfazer esse desejo? Claro que nào. As ações
lúdicas são precisamente as que a criança executa no plano
imaginário. A criança assume o papel do adulto, manipula os
objetos que substituem os objetos reais e as próprias ações
apresentam um caráter representativo, não real. Por conseguin­
te, atuando nesse plano, a criança nào pode ver cumpridos os
seus desejos. O que ocorre nesse caso com os desejos (necessi­
dades) no jogo? Pode-se supor que só nele adquirem forma, e
adquirem-na como tais necessidades.
Como procuraremos demonstrar na parte experimental da
pesquisa, a criança nem sequer sabe ainda o que significa ser
adulto quando o jogo aparece. Aproveita a possibilidade de
pôr-se um nome de adulto, de trocar os objetos verdadeiros da
atividade do adulto por outros substitutivos (brinquedos) e age
“como adulto” nesse mundo que ainda não se separou total­
mente do real (visível, material). Essa atividade, com tão varia­
da temática (a mamãe, o doutor, o bombeiro, o motorista, o
policial etc.), constitui sempre, com amplitude e profundidade
Teoria dojogo 169

diversas, os diferentes aspectos da atividade dos adultos com


objetos, e o que é mais importante, suas relações, o sentido e os
motivos da atividade. Opera-se um processo dc cristalização e
formação da tendência, confusa e turva no começo, para a ne­
cessidade, a qual se forma num trabalho sério, importante e so­
cialmente apreciado10. E isso significa que surge a necessidade
de ser como um adulto e viver como os adultos. A criança nào
pode satisfazer no jogo essa necessidade, cujo surgimento e
formação envolvem, pelo contrário, o menoscabo do jogo pro­
tagonizado. A nova necessidade, de natureza social, que se for­
ma no jogo, cristaliza-se e é satisfeita nas diversas condições
históricas de diferentes maneiras: ou no trabalho real, em con­
junto com os adultos, ou no labor didático.
Assim, pois, se examinarmos o jogo pelo lado das necessi­
dades da criança, nào é uma forma de modelagem dos desejos
recalcados, nem de reconstituição obsessiva das condições em
que surgiu o recalque, nem uma forma dc satisfação dos dese­
jos primários e residuais da criança. Tampouco é um mundo
especial da criança isolada, e oposto ao dos adultos. É uma das
vias fundamentais de constituição das formas supremas das
exigências especificamente humanas. Está orientado para o
flituro e não para o passado.
O jogo interessou a Lewin e seus colaboradores sobretudo
como modelo no qual podem investigar-se alguns problemas
do movimento na esfera das exigências efetivas. Por isso Lewin
não faz nenhuma tentativa de elucidação da natureza psicanalí­
tica do jogo ou de determinação de sua importância para o
desenvolvimento psíquico.
Nos trabalhos de Piaget, os problemas da psicologia do
jogo infantil são examinados num plano completamente dife­
rente. Entram como parte orgânica em sua teoria do desenvol­
vimento da inteligência. Antes de publicar o seu trabalho fun­
damental, no qual expôs sua concepção do jogo e da transcen­
dência deste no desenvolvimento da inteligência (1945). Piaget
realizou, em primeiro lugar, uma pesquisa, já clássica, das fases
170 Psicologia do jogo

mais precoces da formação da inteligência (nascimento e de­


senvolvimento da inteligência sensório-motora) e, em segun­
do, uma pesquisa das peculiaridades das formas operatórias do
pensamento que já pressupõem a presença de noções.
Na introdução ao livro, dedicado ã formação do símbolo
na criança (ibid.), Piaget escreve que o importante para ele era
estabelecer uma ponte entre a atividade sensório-motora e as
formas operatórias do pensamento. A tarefa consistia em ave­
riguar a própria fonte do surgimento das noções. E ele a cum­
priu, baseando-se na análise do desenvolvimento, por uma
parte, da imitação que, ao aprazar-se a reconstituição do mode­
lo, pressupõe a presença de noções sobre ela, e, por outra, na
análise de função simbólica que está representada com grande
clareza no jogo simbólico da criança e requer a diferenciação
entre o “significante” e o “significado”, ou seja, entre o símbo­
lo e o objeto de ação.
Precisamente a propósito desta última tarefa. Piaget dedi­
ca suma atenção ao chamado jogo simbólico, à sua natureza e
importância no desenvolvimento da inteligência.
Já falamos das opiniões de Piaget sobre o jogo, opiniões
que expôs em seus primeiros trabalhos. Neles, o problema do
jogo relaciona-se com o do egocentrismo. Considerava Piaget
que o jogo era uma das manifestações mais brilhantes dessa
peculiaridade do pensamento infantil situado entre o autista do
período mais precoce e a lógica desenvolvida nos choques com
a realidade e o pensamento maduro dos adultos que rodeiam a
criança. A opinião concernente à teoria dos dois mundos já foi
aqui exposta.
Piaget (1945), em livro dedicado especialmente à forma­
ção do símbolo, fixa, detalha e aprofunda de modo acurado
essas idéias anteriores sobre o jogo. E uma investigação que se
baseia, assim como a dedicada ao nascimento da inteligência e
à descrição das fases do desenvolvimento da inteligência sen­
sório-motora, em fatos obtidos durante as observações do desen­
volvimento das crianças. E um livro saturado de copiosas e inte­
Teoria do jogo 171

ressantíssimas observações. Devemos estar gratos a Piaget,


sobretudo, por ter reabilitado esse método e demonstrado que a
observação por um psicólogo do curso do desenvolvimento, em
especial nos primeiros anos de vida da criança, pode oferecer
ao investigador fatos que nào teria sido possível obter de nenhu­
ma outra maneira.
O caráter das observações, tal como são apresentadas nos
exemplos aduzidos, certamente dá lugar a algumas dúvidas. É,
sobretudo, a ausência quase absoluta dc fatos evidenciadores
do sistema de relações mútuas entre as crianças e os adultos
que as educam. Nos exemplos só estão presentes Piaget (como
experimentador contemplativo) e a criança. Desconhece-se
totalmente o que sucedeu, entre as sessões observadas, com os
elementos da experimentação. Como é natural, isso limita as
possibilidades de interpretação adequada dos fatos obtidos e,
por essa razão, da gênese da função simbólica. Ao mesmo tem­
po, tanto a imitação quanto o emprego inicial de um objeto em
lugar de outro, ou seja, o surgimento do símbolo, nascem no
âmbito da atividade conjunta da criança com o adulto: a imita­
ção, dentro da atividade da criança e do adulto; e o emprego de
um objeto como “significante” para o outro, dentro da ativida­
de conjunta para assimilar as ações com os objetos.
Piaget sublinha especialmente que seus próprios filhos,
observados por ele próprio, estavam livres de influências de
adultos (de jogos sugeridos etc.) e da “mania" pedagógica das
babás, cm virtude do que mostraram, no desenvolvimento da
imitação, um progresso mais lento, se bem que, na opinião de
Piaget, mais correto do que nas crianças submetidas à atenção
constante dos adultos.
Como se conseguiu criar essa situação é algo que não se
compreende em absoluto. Podem-se privar crianças de tenra
idade do cuidado dos mais velhos e da comunicação com os
adultos? Acreditamos que isso seja impossível. Além disso, os
exemplos fornecidos pelo próprio Piaget evidenciam que essa
interação se produziu. Eis um exemplo: “Jacqueline inventa
172 Psicologia do jogo

um novo som, inserindo a língua entre os lábios: qualquer


coisa como pfs. Sua mãe reproduz então o som: Jacqueline,
encantada, repete-o por sua vez, rindo. Segue-se uma prolon­
gada imitação recíproca: 1?) Jacqueline faz pfs ; 2?) sua mãe
imita e Jacqueline olha-a sem mexer os lábios; 3?) quando sua
mãe pára, Jacqueline recomeça etc. Em seguida, após uma
longa pausa silenciosa, eu próprio faço pfs ; Jacqueline ri e
imita imediatamente. A mesma reaçào na manhã do dia seguin­
te (antes de ter emitido espontaneamente o som em questão) e
durante o dia todo” (1945, observação 9).
Estamos diante de um exemplo vivo de comunicação dos
adultos com a criança e da evidente e completa corroboraçào
desse modo de comunicação, por parte dos adultos. Na pes­
quisa há um grande número de exemplos similares que mos­
tram claramente não ser possível isolar dos adultos, da comu­
nicação e atividade conjunta com eles, o desenvolvimento da
criança. Outra coisa é que atitude adotar. Uma consiste, como
faz Piaget, em inibir-se do sistema de relações do adulto e da
criança, e considerar que elas não têm importância para o
desenvolvimento. Tal inibição ou tentativa de exclusão da
influência dos adultos contém uma concepção determinada do
desenvolvimento. Essa concepção foi denominada com razão
por H. Wallon “robinsonada”, quer dizer, a noção do desenvol­
vimento psíquico como processo natural que transcorre entre
choques diretos e espontâneos da criança com o mundo circun­
dante dos objetos.
Mas se pode imaginar o processo do desenvolvimento psí­
quico de outra maneira, como processo que transcorre em
forma de relações em desenvolvimento, de comunicação, inte­
ração e atividade conjunta da criança com os adultos, e o pró­
prio estudo do processo de desenvolvimento como fator que
leva rigorosamente em conta o caráter dessa interação; e em
caso ideal, como ordenação consciente do sistema de relações
entre a criança e os adultos e, com sua mediação, da intera­
ção entre a criança e o mundo das coisas.
Teoria do jogo 173

Durante o estudo da imitação, Piaget descobriu uma série


de fases desse tipo de comportamento. O caminho fundamen­
tal do desenvolvimento da imitação, segundo a interpretação
de Piaget, assenta na separação paulatina desse tipo de conduta
como acomodação tendente a modificar os esquemas que a
criança já possui, segundo o modelo. Além disso, Piaget dis­
tingue claramente a acomodação imitativa das acomodações
inerentes ao intelecto, nas quais os esquemas se agregam ao
objeto material durante a aplicação dos diversos procedimen­
tos. Precisamente em virtude dessa distinção, ao estudar a
gênese da imitação não se estudam, em absoluto, as ações com
objetos, uma vez que a assimilação dos modos de atuar com
eles transcorre como se nào se baseassem nos modelos dessas
ações sugeridas à criança pelos adultos.
As metas fixadas para as fases de imitação eram a imitação
dos sons da fala, os diferentes movimentos das mãos, dedos e
rosto, ou os movimentos coordenadores das mãos com diversas
partes do corpo; são gestos e maneiras, mais do que propriamen­
te ações com objetos. Essa parte dos processos de aprendizagem
dos movimentos com objetos, partindo dos sons lingüísticos e
dos gestos “sem objetivo”, tem suas vantagens e inconvenientes
para a investigação. A vantagem está em que a imitação dos mo­
delos de gestos ou “movimentos puros" nào está contaminada
por provas empíricas diretas de ações com objetos nem pela
orientação para as propriedades externas dos objetos. O incon­
veniente é que impede captar o próprio mecanismo da orienta­
ção no modelo, uma vez que este é puramente sensorial (viso-
motor ou audioarticular). Por conseguinte, a gênese da imitação
descreve-se externamente, mais do que se explica. Fica por es­
clarecer o que a criança faz com o modelo dos “movimentos pu­
ros”, quando os imita, e como transcorre a transição de uma fase
a outra; sobretudo para as últimas fases miméticas, quando, por
uma parte, a criança logra de imediato, desde o começo, imitar
novos modelos e, por outra, passar às imitações diferidas, ou se­
ja, às imitações baseadas em noções.
174 Psicologia do jogo

Cabe apenas lamentar que Piaget nào examine as possíveis


influências da imitação no desenvolvimento das ações da crian­
ça com objetos em relação aos quais existem modos determinados
de emprego que os adultos praticam. Deve-se confessar, ao mes­
mo tempo, que a análise da imitação como acomodação pura é
possível justamente porque, na qualidade de objeto, escolheram-
se como modelos os “movimentos puros”, já que nesses casos a
assimilação está excluída, em geral, por princípio.
À medida que vão sendo expostas as peculiaridades da imi­
tação, Piaget apresenta na última fase, que é a sexta, uma série
de observações de extraordinário interesse, que superam os limi­
tes da estrita imitação. Daremos um único exemplo: “Com 1; 6;
23", Jacqueline olha para um jornal ilustrado e fixa sua aten­
ção na fotografia (muito reduzida) de um menino pequeno com
a boca bem aberta (mímica de estupefação ou de assombro, algo
como ‘Oh!’). Jacqueline aplica-se então a reproduzir esse ges­
to e consegue-o de forma admirável. A observação é interes­
sante porque a situação em nada implicava um contexto de imi­
tação: Jacqueline limitava-se a ver as figuras. Portanto, tudo se
passa como se, para compreender o que via, Jacqueline tivesse
necessidade de imitá-lo plasticamente” (1945, observação 53).
Essa observação mostra que a criança utiliza todo o corpo
e alguns movimentos para “modelar” de maneira original as
posições, os movimentos e as propriedades de alguns objetos.
Dessa modelação como procedimento para conhecer mediante
uma singular imitação falou também A. V Zaporozhets.
A pesquisa da imitação sugere a Piaget a idéia de que o
modo de pensar nascente é a imitação interiorizada. A própria
idéia de que as figuras-noções nascem da ação tem afinidades
com os pesquisadores soviéticos. Não obstante, a imitação que,
como acredita Piaget, é uma acomodação pura e simples do
modelo do “movimento puro” pode ser unicamente a base da
figura-noçào desse movimento e não mais do que isso. A figu-
ra-noção do objeto surge numa outra base e precede a interiori-
zaçào da imitação.
Teoria do jogo 175

Assim, segundo Piaget, a imitação é a acomodação pura


aos modelos visuais ou auditivos, desligada dos movimentos
sensório-motores inarticulados.
A segunda parte do livro de Piaget sobre a formação do
símbolo é integralmente dedicada ao jogo. Na introdução a
essa parte, Piaget dá uma definição do jogo que, em seu enten­
der, é sobretudo uma assimilação simples, funcional ou repro­
dutora. Se a inteligência, enfatiza Piaget a sua idéia, leva ao equi­
líbrio entre a assimilação e a acomodação, e a imitação segue-
se à acomodação, o jogo é, no fundo, assimilação ou uma assi­
milação preponderante sobre a acomodação. O conteúdo res­
tante dessa parte do livro propõe demonstrar essa idéia.
As dificuldades de compreensão do conceito de jogo, e
mesmo de toda a concepção do desenvolvimento oferecida
por Piaget, estão relacionadas, sobretudo, com a extraordinária
indeterminação dos processos que ele designa com a palavra
“assimilação”. No livro Psicologia da inteligência, publicado já
depois do da formação do símbolo na criança, livro que resume
os trabalhos realizados por Piaget e seus colaboradores até
1946, o autor escreve: “A ação do organismo nos objetivos que
o circundam pode ser denominada assimilação (empregando
este termo no sentido mais amplo), uma vez que essa ação
depende da conduta anterior orientada para esses mesmos
objetivos ou outros análogos. Na realidade, qualquer conexão
do ser vivo com o meio ambiente possui a peculiaridade carac­
terística de que esse ser, em vez de se submeter passivamente
ao meio, transforma-o ativamente, imprimindo-lhe uma estru­
tura determinada. No aspecto fisiológico, isso implica que o
organismo, ao absorver substâncias do meio, transforma-as em
correspondência com a sua estrutura. No aspecto psicológico
ocorre o mesmo, no fundo, mas neste caso, em vez de mudan­
ças de ordem substancial, produzem-se mudanças de ordem
exclusivamente fiincional devidas à atividade motora, à per­
cepção e ao efeito recíproco das ações reais ou potenciais (ope­
rações conceptuais etc.). Assim, a assimilação psíquica é a
176 Psicologia do jogo

inserção de objetos nos esquemas comportamentais, que nào


são outra coisa senão a trama de ações que podem reconstituir-
se ativamente” (1969, p. 66).12
Na introdução à segunda parte do livro que. como já disse­
mos, dá uma definição prévia dos jogos, Piaget expõe dados
fatuais. Esses dados devem evidenciar que, no transcurso da
dissociação dos processos de assimilação e acomodação, que
no início estão juntos, surgem ações nas quais começa a predo­
minar a assimilação. É precisamente esse o começo do jogo.
Até ocorrer essa dissociação, apesar da visível preponderância
da assimilação, típica dos períodos mais precoces do desenvol­
vimento sensório-motor, o jogo ainda não existe. Assim, Pia­
get exclui dele os chamados jogos funcionais dos primeiros
meses de vida com o próprio corpo.
Depois de examinar todos os critérios do jogo expostos
por diferentes autores (presença do jogo na própria atividade,
contraposição do jogo ao trabalho, liberação dos conflitos,
supermotivaçào), Piaget conclui que se baseiam na preponde­
rância da assimilação sobre a acomodação, e que todos esses
fenômenos constituem apenas a manifestação dessa preponde­
rância assimilativa. É interessante assinalar que um dos crité­
rios do jogo mais indiscutível e exato, em linhas gerais, é a
liberação de conflitos, segundo Piaget. Esses conflitos são ori­
ginados pelo choque entre a liberdade individual e a submissão,
e na vida real só podem resolver-se mediante a submissão, a
rebelião ou a colaboração. No jogo, o “eu” desforra-se ou li­
quidando o problema ou tornando aceitável a solução. E isso
sucede como resultado dessa mesma assimilação, graças a cuja
preponderância o “eu” submete todo o mundo e dessa forma se
liberta dos conflitos.
Depois de examinar criticamente algumas das teorias do
jogo (a teoria de Groos, a teoria da recapitulação, a teoria de
Buytendijk), Piaget fornece a sua interpretação do jogo, a par­
tir da estrutura do pensamento da criança.
Teoria dojogo 177

Piaget destaca três estruturas fundamentais do jogo liga­


das numa série: o jogo-exercício, os jogos simbólicos e os
jogos com regras. Todos eles se parecem na medida em que sào
formas de comportamento nas quais predomina a assimilação:
a sua diferença reside em que a realidade, em cada etapa do
desenvolvimento, é assimilada segundo distintos esquemas.
Piaget afirma sem rodeios que o exercício, o símbolo e a regra
são as três etapas essenciais que caracterizam as grandes clas­
ses de jogo do ponto de vista de suas estruturas mentais. Con­
forme seja a estrutura do pensamento da criança em tal ou tal
etapa do desenvolvimento, assim será o jogo, dado que este
não é senão a assimilação da realidade em conformidade com a
estrutura do pensamento. Por esse motivo, Piaget resume todas
as suas considerações relacionadas com a forma simbólica de
maior interesse para nós na fórmula: o jogo simbólico é o pen­
samento egocêntrico puro. Segundo ele, o jogo tem a função
fundamental de defender o “eu” da criança das acomodações
vinculadas à realidade. O símbolo, como é o idioma afetivo
pessoal, individual, da criança, constitui justamente o meio
fundamental dessa assimilação egocêntrica.
Ao resumirem suas opiniões sobre o jogo simbólico num
dos trabalhos sintetizadores da psicologia infantil, Piaget e B.
Inhelder (1966) afirmam que o jogo simbólico implica, sem
dúvida, o ponto supremo do desenvolvimento do jogo infantil.
O jogo simbólico cumpre uma função essencial na vida da
criança. Esta, coagida a adaptar-se continuamente ao mundo
social dos adultos, cujas regras e interesses continuam sendo
exteriores para ela. coagida a adaptar-se também ao mundo
físico, que ainda entende mal, não pode satisfazer as exigên­
cias afetivas e mesmo intelectuais do seu “eu” mediante essa
adaptação, que é para os adultos mais ou menos completa, mas
continua sendo para a criança tanto mais incompleta quanto
menor for. Por conseguinte, para o seu equilíbrio afetivo e inte­
lectual, para que possa dispor do setor de atividade cuja motiva­
ção nào se baseia na adaptação à realidade mas, pelo contrário,
178 Psicologia dojogo

na assimilação, a criança, integrada em seu “eu”, livremente e


sem licença, necessita do jogo. O jogo transforma a realidade
por meio da assimilação mais ou menos pura, de acordo com
as exigências do “eu”, enquanto a imitação é uma acomodação
mais ou menos pura aos modelos exteriores, e a inteligência, o
equilíbrio entre a assimilação e a acomodação.
Um instrumento essencial da adaptação social é a lingua­
gem, não inventada pela criança, mas recebida em forma aca­
bada, obrigatória e de natureza social. Essa linguagem não
pode expressar as necessidades da criança nem a experiência
da vida do seu “eu”. Por isso, na opinião de Piaget e Inhelder, a
criança necessita de um signo especial que seja veículo de sua
própria expressão individual, ou seja, um sistema de signifi-
cantes construído por ela própria e utilizado segundo o seu
desejo; essa linguagem é o sistema de símbolos próprios do
jogo simbólico. O jogo simbólico nào é simples e unicamente a
assimilação do “eu” como jogo em geral, mas uma assimilação
acentuada pela linguagem simbólica construída pela própria
criança e transformada ao sabor de suas necessidades.
Os autores emitem uma opinião positiva da teoria de
Buytendijk e consideram-na muito mais profunda do que a de
Groos. Ao mesmo tempo, crêem que as peculiaridades do “di­
namismo infantil”, que é para Buytendijk o que constitui o
jogo, são insuficientes para explicar as peculiaridades especí­
ficas do jogo. Por isso mesmo foi necessário invocar o pólo da
assimilação no “eu”. Piaget e Inhelder insistem várias vezes
em que a assimilação sobrevêm no jogo simbólico graças ao
original emprego da função semiótica, consistindo na forma­
ção arbitrária de símbolos para expressar tudo o que a criança
possui de experiência da vida e nào pode exteriorizar nem assi­
milar com os recursos lingüísticos.
Esse simbolismo, “centrado” no “eu”, não se baseia so­
mente na formação e expressão dos diversos interesses cons­
cientes do sujeito. Piaget sublinha que o jogo simbólico tem
por base freqüentemente conflitos inconscientes: os interesses
Teoria dojogo 179

sexuais, a proteção contra a angústia, a fobia, a agressividade


ou a identificação com o agressor, o afastamento do perigo, do
risco ou da rivalidade etc. Nesses casos, o simbolismo do jogo
é parecido com o dos sonhos. Nisso se baseiam precisamente
os métodos da psicanálise infantil que utilizam os dados obti­
dos por intermédio de jogos infantis.
As opiniões que Piaget nutre a respeito do jogo como
expressão dos conflitos inconscientes e aproximação do sim­
bolismo onírico demonstram a semelhança existente entre a
compreensão piagetiana e a psicanalítica do jogo.
A análise da evolução das opiniões de Piaget leva-nos a
deduzir que suas primeiras noções do jogo como manifestação
do pensamento puramente egocêntrico nào mudaram e foram
aprofundadas com a análise do jogo simbólico. Nos últimos
trabalhos de Piaget, o jogo nào se apresenta como simples assi­
milação egocêntrica, mas como uma assimilação egocêntrica
na qual se utiliza a linguagem peculiar dos símbolos que per­
mite realizá-la ao máximo.
Ao ler o livro de Piaget sobre a formação do símbolo na
criança e analisar os dados fatuais nele inseridos, salta à vista
que a interpretação do jogo simbólico como assimilação pre­
ponderante é levada a efeito em detrimento dos fatos, com os
quais está freqüentemente em contradição, e o seu caráter é
mais de interpretações do que de demonstrações.
Na teoria de Piaget há contradições internas. Mencionare­
mos apenas algumas. Assim, Flavell escreve que. do ponto de
vista do próprio Piaget, “a assimilação é, por natureza, um pro­
cesso conservador no sentido de que a sua função fundamental
consiste em transformar o desconhecido em conhecido e em
reduzir o novo ao velho. O novo sistema assimilativo deve ser
sempre e tão-somente uma variante do adquirido antes, e isso
assegura o caráter gradual e ininterrupto do desenvolvimento
intelectual” (1967, p. 75).
Mas o jogo nào é uma força conservadora; muito pelo con­
trário, é uma atividade que opera uma verdadeira revolução na
180 Psicologia dojogo

atitude da criança diante do mundo, incluída a transição do pen­


samento "centrado” para o “descentrado” Desempenha um
papel progressivo no desenvolvimento de toda a personalidade
da criança, incluindo o trânsito do seu pensamento para um
novo e mais elevado grau. O jogo simbólico nào é precisamente
um pensamento egocêntrico puro, como crê Piaget, mas, ao
contrário, a superação do mesmo. No jogo, o incompreensível
chega a ser parcialmente compreensível mediante ações singu­
lares que orientam a criança para esse incompreensível. O jogo,
muito mais do que uma manifestação da velha idéia egocêntri­
ca, caduca e incapaz de cumprir as novas tarefas, é, com efeito,
a expressão de uma idéia nova, ainda débil e sem forças, que
necessita de apoio nas ações com os objetos. Sim, à criança pro­
duz impressão todo e qualquer fenômeno que lhe chame a aten­
ção, e quase todos os pesquisadores do jogo assinalam que a
concentração da criança nessas impressões é uma característica
importante. Mas essa é uma forma especial de sentir, mediante
a extroversão, a materialização e a reconstituição eficiente. A
criança atua no jogo com suas emoções, exterioriza-as, recons­
truindo as condições materiais originárias e as faz tomar nova
forma, que poderia denominar-se gnóstica.
Piaget tem muitos exemplos convincentes e evidenciado-
res dessa asserção. Por exemplo, menciona amiúde a simboliza-
ção, feita por sua filha, do campanário e do pato morto.
Descreve exemplos semelhantes no trabalho já citado. A meni­
na, que fazia diversas perguntas sobre o mecanismo dos sinos
observados no velho campanário da aldeia, durante as férias,
fica parada diante da escrivaninha de seu pai e faz um ruído
ensurdecedor: “Nào perturbe, nào vê que estou trabalhando?”
“Não fale comigo”, responde-lhe a menina. “Eu sou a igreja.”
Profundamente impressionada por ter visto um pato depenado
em cima da mesa da cozinha, a menina estende-se à noite no
sofá, de maneira que a julgam doente, assediam-na de pergun­
tas, que primeiro ficam sem resposta, até que por fim articula,
com voz sumida: “Sou um pato morto.” -
Teoria do jogo 181

Considera Piaget que ha nesses exemplos uma “assimila­


ção no eu”. Nós não o vemos assim. Isso é mais uma modela­
ção dos atos materiais do próprio corpo, de sua postura, pelos
fenômenos que assombram a menina e, com isso, suas proprie­
dades se reforçam e orientam; o objeto vertical e imóvel que
faz ruído, num caso, e o horizontal, imóvel e silencioso, sem
sintomas de vida, no outro.
Cumpre decidir, pois: ou o jogo é o predomínio da assimi­
lação, a sujeição da realidade à idéia egocêntrica, e nesse caso
carece de sentido generativo para o desenvolvimento psicoló­
gico, ou é uma forma nova, nascente, de pensamento, embora
ainda débil e que necessita, para funcionar, de “muletas”, de
suportes materiais, e reveste-se então de extrema importância
para o nascimento dessas formas novas de pensar. (Neste caso,
examinamos a importância do jogo nos estritos limites que
Piaget fixou para o dito exame.)
Também desperta dúvidas a maneira como Piaget com­
preende o símbolo ao imaginar a criança no jogo. Piaget subli­
nha por várias vezes a diferença existente entre o símbolo c o
signo, c isso c verdade. Considera que o símbolo lúdico é a lin­
guagem individual da criança e insiste em sua importância pes­
soal. Ao mesmo tempo, passa-se por alto a diferença de princí­
pio existente entre o símbolo lúdico e todas as demais signifi­
cações simbólicas. Como o símbolo é um meio de projeção dos
“esquemas simbólicos” sobre outros objetos, no jogo, pondera
Piaget, ficam abertos os caminhos para assimilar o que se quei­
ra e com o que se queira, entendendo-se destarte que qualquer
coisa pode servir de substituto fictício de qualquer outra coisa.
Na realidade, isso não é bem assim.
Escreveu Vigotski em seu livro Pré-história da linguagem
escrita : “Como se sabe, no jogo, certos objetos significam para
a criança, com muita facilidade, outros objetos, são substituí­
dos e convertem-se em signos seus. Também se sabe que não
importa aí a semelhança existente entre o brinquedo e o objeto
que ele significa, e o mais importante é o seu uso funcional, a
18 2 Psicologia do jogo

possibilidade de se fazer com ele um gesto representativo. Só


nisso consiste, em nosso entender, a chave para explicar toda a
função simbólica do jogo infantil: um punhado dc trapos enro­
dilhados ou um pedaço de madeira são, num jogo, um bebê,
porquanto as crianças fazem os mesmos gestos representativos
de levar um bebê no colo ou dar-lhe de comer. O próprio movi­
mento da criança, os próprios gestos, é o que comunica a fun­
ção do signo ao respectivo objeto, o que lhe confere sentido”
(1935, pp. 77-78). Por isso não se pode estar de acordo com
Piaget na semelhança que vê entre o simbolismo do jogo e o
simbolismo dos sonhos. Trata-se de duas funções e de duas di­
nâmicas totalmente distintas.
É interessante que Piaget analise em detalhe o processo de
aparecimento do símbolo e se detenha no limiar do floresci­
mento do jogo simbólico, aí onde o jogo adquire a forma desen­
volvida de jogo protagonizado. Isso nào é casual. Piaget consi­
dera que, com a passagem para essa forma de jogo, o simbolis­
mo perde sua fiinção puramente assimilativa. Diz até que o sim­
bolismo individual “puro” diminui, na passagem, uma vez que
começam agora a intervir os vínculos coletivos e as relações so­
ciais. Parece-nos que a análise da forma desenvolvida é justa­
mente o que permite compreender a função dos símbolos e o
fundamento do jogo como tipo especial da atividade da criança.
A concepção que tem Piaget do jogo infantil é uma das
mais completas, embora limitada pelo padrão do desenvolvi­
mento exclusivamente intelectual. Merece uma análise muito
mais pormenorizada do que a nossa no presente ensaio; mas
fazê-lo exigiria todo um livro. Realizar essa análise seria im­
portante, além disso, porque as contradições internas de todo o
sistema de opiniões de Piaget sobre a inteligência e seu desenvol­
vimento estão amplamente representadas, em nosso entender,
na concepção do jogo. O mérito indubitável dc Piaget reside
em ter apresentado o problema do jogo em conexão com a pas­
sagem da inteligência sensório-motora para o pensamento em
noções; c o bom equacionamento é, por vezes, na ciência, mais
Teoria dojogo 183

importante do que a solução. Em todo o caso, depois desses


trabalhos, não se pode, ao examinar o problema do desenvolvi­
mento da inteligência, passar por alto o jogo e seu papel nesse
desenvolvimento.
Parece-nos que Piaget examina o papel do jogo no desen­
volvimento do pensamento da criança com excessiva estreiteza
e que a sua importância é mais profunda.
Tampouco podemos aceitar a explicação de que o jogo é
uma atividade puramente egocêntrica, com o que os critérios
dos psicanalistas se aproximariam das posições de Piaget. As
observações críticas que expressamos ao analisar a concepção
freudiana do jogo referem-se, em grande medida, às opiniões
gerais de Piaget sobre o jogo como assimilação puramente
egocêntrica.
Por último, é necessário que nos detenhamos brevemente
nas opiniões desenvolvidas pelo psicólogo francês J. Châteaux
(1955, 1956). Ao criticar as teorias de Groos e de todos os
autores que conceituam o jogo como expressão das múltiplas e
diversas tendências manifestadas pela criança por meio dele,
Châteaux, assinalando a especificidade de alguns tipos de
jogo, indica que tais teorias nào descobrem a essência da ativi­
dade lúdica. Os psicanalistas, na opinião de Châteaux, segui­
ram na mesma direção, mas por vias mais estreitas, tentando
interpretar o jogo para descobrir complexos ocultos. Os fins
puramente práticos que perseguiam, diga-se de passagem, le­
varam a que todos os jogos começassem a ser considerados,
sob a influência dos psicanalistas, a expressão simbólica de
tendências mais ou menos latentes.
Châteaux não nega a existência de prazer no jogo, mas
opina que o prazer obtido pela criança é de natureza moral.
Esse prazer moral está relacionado com que em cada jogo há
um plano determinado e regras mais ou menos severas. O cum­
primento desse plano e dessas regras propicia uma singular sa­
tisfação moral. Por isso se compreende, na opinião de Châ­
teaux, que o jogo seja um assunto sério para a criança. O jogo é
18 4 Psicologia dojogo

auto-afirmação; o seu resultado é uma certa realização, a aqui­


sição de outro modelo comportamental do adulto. A criança
nào possui nenhum outro modo de auto-afirmação além do
jogo. Mesmo nos jogos funcionais existem elementos de auto-
afirmação que se manifestam em todas as variantes possíveis
de conduta e na propagação desta a novas esferas.
Os jogos funcionais típicos da primeira infancia encon-
tram-se igualmente na idade pré-escolar, e então manifestam-se
neles em maior quantidade os elementos de aspiração a deter­
minadas conquistas, à auto-afirmaçào. Os jogos imitativos que
surgem ao completar-se o primeiro ano de vida e se desenvol­
vem tumultuadamente na idade pré-escolar incluem a identifi­
cação com o modelo e, por conseguinte, podem ser um meio de
auto-exercício no conhecimento e compreensão de outros e, por
essa razào, arma contra o egocentrismo. Contribuem para escla­
recer as diferenças existentes na realidade entre a situação da
criança e os adultos. Os jogos imitativos passam, em definitivo,
a ser jogos em que a própria imitação se converte em objetivo.
A evolução dos jogos imitativos mostra, na opinião de
Châteaux, que sào, como tantos outros, mero pretexto para de­
monstrar qualidades ou conquistas determinadas.
À semelhança de outros jogos, os imitativos dão testemu­
nho, principalmente, da auto-afirmaçào da personalidade. Essa
tendência para a auto-afirmação manifesta-se com especial cla­
reza nos jogos com regras. Na maioria dos casos, esses jogos
são sociais c, por isso, a auto-afirmação adquire neles caráter de
auto-afirmação social no grupo e por intermédio do grupo.
Por isso é perfeitamente natural que Châteaux chegue à
conclusão de que todo jogo é um teste da vontade e, por essa
razão, escola de comportamento voluntarioso, conseqüente­
mente, escola dc personalidade.
Cumpre assinalar, antes de qualquer coisa, que embora
Châteaux utilize o termo “auto-afirmaçào”, não o entende como
compensação de uma deficiência, devida à pressão dos adul­
tos, e tampouco como tendência para dominar, coisa típica das
Teoria dojogo 185

concepções adlerianas. Para Chateaux, a auto-afirmação é


expressão do anseio de aperfeiçoamento e de superação das
dificuldades, do veemente desejo de conquista de cada vez
mais progressos. Essa ânsia de aperfeiçoamento próprio é, na
concepção de Châteaux, uma peculiaridade humana típica que
distingue a criança dos filhotes de animais.
Châteaux dedica muita atenção à análise dos jogos com
regras, nos quais estão representados com grande destaque os
elementos de comportamento voluntarioso, a superação das
dificuldades e a afirmação social mediante o acatamento das
regras. Não obstante, depois de investigar esse tipo de jogos,
Châteaux propaga a compreensão desses a todos os demais
tipos de jogos, inclusive os jogos com interpretação de papéis
ou, como ele os denomina, os jogos imitativos. É bem verdade
que isso tem certo fundamento, já que em todo jogo represen­
tativo existem, sem dúvida, regras latentes e implícitas no
papel, às quais a criança se submete ao protagonizar uma ou
outra parte. Nos jogos imitativos há elementos de conduta
voluntariosa, consistentes na superação dos desejos que sur­
gem subitamente e na ação, como se expressou Vigotski, “pela
linha da máxima resistência”. Ora, não é aí que vamos encon­
trar o fundamento do jogo protagonizado.
A auto-afirmação - o “auto-aperfeiçoamento” descrito
por Châteaux como conteúdo fundamental de todo jogo - tam­
pouco é própria da criança. Supor que a tendência para a auto-
afirmação está na criança desde que nasce também seria errô­
neo na óptica do próprio Châteaux, já que aproximaria suas
idéias das de quem, na esteira de Groos, via no jogo apenas
uma manifestação de certas tendências, dadas de antemão. O
jogo pode ser forma de auto-afirmação e auto-aperfeiçoamen-
to quando essas tendências são o conteúdo fundamental da
vida da personalidade. As pesquisas psicológicas mostram que
a tendência para o auto-aperfeiçoamento aparece bastante tar­
de, em todo o caso, quando a idade pré-escolar já foi ultrapas­
186 Psicologia dojogo

sada. Por conseguinte, essa tendência não pode ser a base dos
jogos na primeira infancia. Claro que algo se desenvolve e
aperfeiçoa tanto no processo dos jogos funcionais quanto no
dos imitativos. Mas a criança não joga em conseqüência da
tendência imanente para o auto-aperfeiçoamento; ela aperfei­
çoa-se porque joga.
As opiniões voluntaristas expostas por Châteaux, apesar
de serem um bom antídoto contra a excessiva intelectual ização
do jogo, própria de psicólogos como Dewey, também são uni­
laterais e não explicam nem a origem nem a natureza do jogo,
concretamente, do protagonizado.
Nos trabalhos de Châteaux há muitas observações e idéias
valiosas. Achamos importante a idéia de que os jogos imitati­
vos ajudam a elucidar as diferenças que se observam entre a
posição da criança e a dos adultos na vida real.
Em nosso ensaio crítico procuramos ver como se desenro­
laram as teorias do jogo desde fins do século XIX até hoje.
Cada um dos pesquisadores de cujas opiniões falamos -
Groos, Buytendijk, Freud, Bühler, Koffka, Lewin, Piagct e
Châteaux - deu sua contribuição para a solução do problema
da psicologia do jogo. Procuramos esclarecer essa contribui­
ção ao longo da exposição dos critérios de cada um desses pes­
quisadores. Também estudamos, ao mesmo tempo, os impas­
ses criados por várias hipóteses. O seu esclarecimento tem suma
importância para a ciência, às vezes tanta quanto as contribui­
ções positivas, dado que descarta os caminhos equivocados.
Cumpre assinalar, sobretudo, que o enfoque geral do es­
clarecimento da natureza do jogo a que se recorreu para anali­
sar o dos animais fazia-se extensivo quase de maneira mecani-
cista ao esclarecimento do jogo infantil, e foi um fracasso.
A história do estudo dos problemas da psicologia do jogo
evidencia também que as teorias da profundidade, ou seja, as que
partem da noção de que o jogo infantil é uma manifestação dos
instintos ou de profundos impulsos herdados, não podem ofe­
Teoria do jogo 187

recer uma solução para o problema. Essas tendências baseiam-


se na noção de que os processos do desenvolvimento dos filho­
tes de animais e das crianças são idênticos.
Tampouco podem ter êxito as teorias naturalistas que,
embora neguem a base hereditária do jogo da criança, supõem
um processo de seu desenvolvimento psíquico segundo o tipo
de adaptação ao meio ambiente, e a sociedade é, nessas teorias,
o meio ambiente onde a criança habita.
Todos os autores mencionados examinam a criança isola­
da da sociedade em que vive e da qual é parte. A criança e os
adultos, o desenvolvimento de suas relações e a mudança de
lugar da criança na sociedade escaparam totalmente ao estudo
dos pesquisadores. E ainda mais: essas relações são examina­
das sem conexão direta com o desenvolvimento psíquico. Até
mesmo quando se examina a imitação, que é indubitavelmente
um fato da vinculação da criança ao adulto, apresenta-se como
imitação de um modelo físico e nào se a inclui no contexto do
relacionamento de uma com o outro, ou seja, é apresentada de
maneira puramente naturalista. Por isso se esquece totalmente
que a criança vive numa sociedade humana e entre objetos
humanos, a cada um dos quais se vincula um modo de agir
determinado e elaborado pela sociedade, cujo agente é o adul­
to. Nào veem que os objetos não levam escrito o modo de agir
com eles, nem o sentido humano de suas ações. Por último,
tampouco se apercebem de que o modo de atuar com um obje­
to pode ser assimilado pela criança somente em funçào dc um
modelo, e o sentido das ações só pode ser alcançado se elas se
incluem no sistema das relações inter-humanas.
Esse caminho, diametralmente oposto ao que levou a um
impasse o conceito naturalista de jogo, o caminho da investiga­
ção do jogo como forma de vida e atividade especial da criança
para orientar-se no mundo das ações humanas, das relações
entre pessoas, dos problemas e motivos das açòes dos indiví­
duos, ainda nào foi bloqueado. E é esse o caminho que esco­
lhemos.
18 8 Psicologia dojogo

3. Problemas da psicologia do jogo


na ciência psicológica soviética
As declarações mais importantes sobre o jogo, formula­
das na psicologia russa antes da Revolução, pertencem a K.
D. Utchinski e A. 1. Sikórski. De acordo com a tradição da épo­
ca, Utchinski examinava o jogo em relação com o funciona­
mento da imaginação, embora considerasse errôneas as opi­
niões de que a imaginação infantil é forte, rica e poderosa.
“São muitos os que têm essa opinião da imaginação infantil e
opinam que ela vai se debilitando, vai perdendo brilho, vivaci­
dade, opulência e variedade com os anos. Mas isso é um grande
erro que está em contradição com todo o curso do desenvolvi­
mento da alma infantil”, escreveu Utchinski. E prossegue: “A
imaginação da criança é mais pobre, mais débil e mais monó­
tona do que a do adulto, e nada contém de poético, uma vez
que o sentido estético só se desenvolve depois dos outros; mas
a questão é que a débil imaginação infantil também tem uma
tal autoridade sobre a alma ainda débil e inorganizada da crian­
ça, que nào pode possuir a imaginação desenvolvida do homem
sobre sua alma desenvolvida” (1950, p. 434).
É interessante observar que Utchinski já assinalava em
meados do século passado a peculiaridade do jogo infantil que
posteriormente foi a base do aproveitamento do jogo como
método projetivo: “Teríamos conhecido bem a alma do homem
adulto”, escreveu Utchinski, “se nos fosse possível sondá-la
livremente; mas na atividade e nas palavras do adulto podemos
tâo-só adivinhar sua alma, e freqüentemente nos equivocamos;
ao passo que a criança mostra sem dissimulação em seus jogos
toda a sua vida” (1950, p. 438). Apreciando o grande valor do
jogo para o desenvolvimento, assinalou que “a criança vive no
jogo, e os vestígios desse jogo calam mais fundo nela do que os
da vida real, na qual nào pôde ainda penetrar pela complexida­
de de seus fenômenos e interesses. Na vida real, a criança nào é
mais do que uma criança, um ser que ainda nào tem indepen­
Teoria dojogo ____________________________________________________

dência e é arrastado, cega e despreocupadamcnte, pela corren­


te da vida; no jogo, porém, a criança já é uma pessoa que vai
amadurecendo, que prova as suas forças e dispõe à vontade de
suas próprias criações” ( ibid ., p. 439).
Nào encontramos em Utchínski uma teoria do jogo pro­
priamente dita, pois limitou-se a assinalar a sua grande impor­
tância no desenvolvimento e educação da criança.
Sikórski estudou o jogo principalmente no aspecto do de­
senvolvimento mental. “Com exceção do sono e do tempo em­
pregado em sensações desagradáveis, a criança saudável costu­
ma empregar o resto do tempo no trabalho mental que, nela,
consta dc observações, jogos e entretenimentos” (1884, p. 87).
“A atividade manual é o instrumento mais importante do desen­
volvimento mental nos primeiros anos da infancia”, opina Si­
kórski, “e serve de infatigável atividade mental que, de um mo­
do geral, é denominada jogos e entretenimentos” (ibid., p. 97).
Depois de assinalar que os jogos infantis nào foram objeto
de sua pesquisa científica, Sikórski escreve: “O conhecimento
dos jogos e entretenimentos infantis pertence, sem dúvida, ao
número de objetos merecedores da completa atenção do psicó­
logo. Na realidade, a experiência diária mostra que os jogos
constituem o aspecto mais importante da vida infantil, que as
crianças entregam-se aos jogos com assombrosa constância. É
fácil convencer-se também de que a complexidade e a varieda­
de dos jogos e o interesse mostrado pelas crianças crescem e
aumentam em consonância com o seu desenvolvimento men­
tal; paralelamente a isso, a fantasia e a criaçào infantis repercu­
tem cada vez mais na organização e na criatividade da criança.
Em geral, pode-se afirmar que os jogos satisfazem certa neces­
sidade mental inexorável que impele a criança a desenvolver
uma atividade infatigável” (1884, p. 99).
Se é certo que Utchínski insistiu na importância do jogo
para o desenvolvimento geral da alma - ou, como diríamos
hoje. para potencializar a personalidade e seu aspecto moral -
não é menos verdade que Sikórski enfatizou o papel do jogo no
desenvolvimento e educação mentais.
190 Psicologia dojogo

A divulgação dos trabalhos de K. Groos também influiu


nos psicólogos russos. No período imediatamente anterior à
Grande Revolução Socialista de Outubro, essa teoria foi a pre­
dominante e, às vezes;entrelaçou-se com a teoria da recapitula­
ção, popular nessa época. Assim, por exemplo, V. P. Vakhtiórov
escreveu: "... A teoria de que estamos mais perto é a de Groos,
que conceitua o jogo como meio de auto-educação natural das
crianças; mas, ao mesmo tempo, também discordamos dele em
algumas teses e, sobretudo, em que os jogos parecem ter a fina­
lidade de preparar as crianças para um iminente labor prático.
Por intermédio do jogo, as crianças aspiram a desenvolver
todos os seus órgãos, seus reflexos, seus instintos, seu sistema
nervoso e, em geral, todas as faculdades, numa ordem determi­
nada que recorda, salvo algumas experiências, a história do
clã” (1913, p. 448).
Outro representante da psicologia pedagógica russa, N. D.
Vinográdov (1916), embora aceitasse no fundamental a teoria
de Groos e a tivesse em grande apreço, fez-lhe alguns adita­
mentos relativos aos jogos infantis. Vinográdov opina que Groos
nào leva suficientemente em conta os “fatores puramente hu­
manos”: (a) a imaginação, (b) a imitação e (c) os aspectos emo­
cionais.
Não é tarefa nossa expor de maneira sistemática a história
do desenvolvimento das opiniões dos psicólogos soviéticos
sobre o jogo. Todos os psicólogos soviéticos que trataram de
uma ou outra maneira os problemas da psicologia do jogo (M.
Y. Básov, P. P. Blonski, L. S. Vigotski, S. L. Rubinstein e D. N.
Uxnadze) trabalharam quase ao mesmo tempo. Todos foram,
em primeiro lugar, psicólogos que estudavam problemas gerais
da psicologia: e a psicologia infantil, assim como a do jogo
infantil, foram para a maioria deles problemas particulares
associados às suas concepções gerais. Embora suas opiniões
discrepassem em muito, nào encontramos, com exceção de
algumas observações feitas por Rubinstein a propósito dos cri­
térios de Vigotski, dados sobre as discussões travadas entre
Teoria dojogo 191

eles. Os psicólogos soviéticos centravam seu interesse nos pro­


blemas do jogo infantil e pouco trataram da psicologia do jogo
dos animais.
Na psicologia soviética, M. Y. Básov foi quem equacionou
pela primeira vez, a partir de posições totalmente novas, o pro­
blema da psicologia do jogo; ao tipificar da maneira mais geral
a sua apresentação do problema, escreveu: "... a originalidade
do processo lúdico baseia-se nas peculiaridades das relações
mútuas do indivíduo com o meio sobre cuja base surge. Este
postulado reveste-se de suma importância como princípio, já
que transfere o centro de gravidade do problema do indivíduo
para as condições objetivas de sua existência. De um modo
geral, raciocina-se de outra maneira, reduzindo todo o proble­
ma a tais ou tais relações existentes na própria personalidade;
os primeiros apresentam como tais o ‘excesso de energia’ (teo­
ria de Schiller-Spencer); os segundos, pelo contrário, a insufi­
ciência da mesma (teoria do jogo como descanso, de Lazarus);
os terceiros fixaram-se na conveniência biológica do jogo como
meio para exercitar os órgãos e as funções e prepará-los para a
futura atividade nâo-lúdica (teoria de Groos); os quartos, por
último, colocam em primeiro plano o fator emocional, reduzin­
do tudo ao prazer produzido pela atividade (Bühler) etc.
Pode-se compreender o jogo intrinsecamente, por parte do
próprio indivíduo, unicamente por meio de sua análise estrutu­
ral como tipo geral de comportamento, tendo presente o con­
junto de seus traços típicos e de sua concatenação. Mas essa
visão obtida intrinsecamente é insuficiente de per si, uma vez
que as peculiaridades estruturais do tipo de conduta vêm deter­
minadas pelo caráter das inter-relações do organismo com o
meio, e essas inter-relações, por sua parte, dependem do con­
junto das condições de existência do organismo dado” (1931,
p. 650).
Ao analisar as condições objetivas de existência inerentes
à infancia e propícias ao jogo com suas peculiaridades estru­
turais, Básov indica que o mais típico delas é a carência de
192 Psicologia do jogo

qualquer espécie de obrigações na criança, dado que seus pais


lhe asseguram a existência e ela ainda não tem nenhum dever
social.
Essa liberdade nas inter-relações com o meio é o que con­
duz, na opinião de Básov, a um tipo singular de comportamen­
to cuja força motriz principal e cuja singularidade são o processo.
Ao indicar que no jogo existe certo conteúdo social, Básov
sublinha: “Haja ou não algum conteúdo e alguma finalidade no
jogo, o principal fator no desenvolvimento da atividade dada é
o processo, e não o conteúdo nem a finalidade; o conteúdo e a
finalidade constituem unicamente a forma externa do processo
lúdico, mas não a sua essência interna” (1931, p. 344).
Zeilinger e Levina, colaboradoras de Básov, fizeram uma
análise estrutural da atividade lúdica de crianças pequenas.
Essa análise mostrou que, ao longo do período pré-escolar do
desenvolvimento, há avanços essenciais tanto no caráter da
estimulação dos processos lúdicos quanto no da organização
ou nas formas estruturais desses processos. Os dados são inte­
ressantes. Segundo eles, primeiro diminui a importância relati­
va dos estímulos internos e cresce a importância relativa da
estimulação social externa; e, segundo, a estrutura do processo
lúdico evolui da simples cadeia temporal de atos para a estrutu­
ra da apcrcepção determinante, passando pela estrutura asso­
ciativa determinante, o que é testemunho da crescente organi­
zação interna do processo lúdico.
Esses dados encontram-se em certa contradição com as no­
ções do jogo como processo puro. Se assim fosse, o jogo carac-
terizar-se-ia por uma estrutura associativa determinante. Mas
nas crianças menores já existe uma estrutura superior. Claro
que não podemos estar de acordo com a tipificação do jogo
como processo puro. Tal interpretação reintegra Básov nas opi­
niões que ele mesmo critica, ou seja, nas de K. Bühler com sua
concepção do jogo como fonte de prazer funcional.
Tampouco hoje podemos concordar com a análise estrutu­
ral da atividade apresentada por Básov e seus colaboradores.
Teoria dojogo 193

análise que leva a marca dos critérios voluntaristas, nào inteira­


mente superados, a respeito do comportamento. Entretanto, isso
não nos deve impedir de ver o positivo que esse pesquisador
introduziu na noção de jogo e no desenvolvimento da criança
em geral.
Básov foi o primeiro a introduzir em psicologia o conceito
de tipos gerais de atividade caracterizadores das relações do ho­
mem como fator ativo de seu meio circundante; c a propor, em
segundo lugar, a renúncia às teorias puramente naturalistas do
jogo que viam suas fontes no interior da personalidade e não no
sistema de inter-relações da criança com a realidade circundan­
te. Essa visão levava implícita a idéia de que o jogo é um produ­
to da situação especial ocupada pela criança na sociedade e da
sua atitude singular em face da realidade que a circunda.
Básov ainda identificou, no entanto, atividade e dinamis­
mo, sofreu a influência da psicologia do comportamento, ana­
lisou a conduta segundo o esquema “estímulo-resposta” e não
se apercebeu do fundamento objetivo da atividade humana.
Mas, ao mesmo tempo, vemos nele prenúncios, se bem que
não suficientemente claros, da doutrina dos tipos de atividade.
O insigne psicólogo soviético Blonski expôs uma opinião
singular do jogo.
Em sua análise crítica de diversas teorias do jogo (Schiller,
Spencer, Groos, Biihler, Dewey e outros), Blonski assinalava
que o jogo é examinado pela psicologia soviética exclusivamen­
te a partir dos pontos de vista fisiológico, biológico ou psicoló­
gico individual. A superação do estreito biologismo na doutri­
na do jogo que ocorreu com êxito na psicologia soviética ainda
não deu lugar, porém, a que sc adote um outro ponto de vista
completamente satisfatório. Escreve Blonski: “O exame das teo­
rias existentes do jogo mostra que as perguntas sobre o que é o
jogo e por que é que a criança joga ainda estão muito longe de
poder ser respondidas. A própria formulação da pergunta kO
que é o jogo?’, sem prévios estudos especiais dos tipos distin­
tos de jogos infantis, é testemunho de que o problema se encon­
194 Psicologia do jogo

tra na fase inicial da investigação. Necessita-se de uma série de


estudos especiais pormenorizados; somente como resultado de­
les pode-se obter a solução definitiva do problema do jogo.
Mas, sem ter no momento uma teoria completamente sa­
tisfatória do jogo, imaginamos, entretanto, com clareza, a impor­
tância do jogo na vida da criança pequena: esse é o tipo funda­
mental de atividade da criança graças ao qual exercita suas forças,
amplia sua orientação, assimila a experiência social, reprodu­
zindo e combinando com criatividade os fenômenos da vida cir­
cundante” (1934. pp. 109-110).
Na opinião de Blonski não há nem pode haver por agora
uma teoria satisfatória, porque o termo “jogo” aplica-se aos ti­
pos mais variados de atividades.
Blonski indica os tipos de atividade das crianças que costu­
mam agrupar-se sob o termo “jogo” e analisa-os. São eles: “(1)
os jogos fictícios, (2) os jogos construtivos, (3) os jogos imitati­
vos, (4) os jogos dramáticos, (5) os jogos dinâmicos e (6) os
jogos intelectuais. Os jogos fictícios, denominados erronea­
mente jogos cm geral, são manipulações de origem impulsiva
do bebê, do idiota, do neurótico etc.; a explicação dessas mani­
pulações impulsivas nos é dada pela neurologia. Por outra parte,
é também errôneo chamar jogos às explorações experimentais
da criança. No que se refere aos jogos construtivos, constituem
a arte da construção infantil. Os jogos imitativos e os dramáti­
cos sào, por sua vez, a arte dramática da criança. Os jogos dinâ­
micos também não são outra coisa senão dramatizações, nas
quais desempenham imenso papel as correrias desordenadas.
Inclusive os jogos intelectuais (xadrez, damas, jogos de cartas)
são, em sua origem, dramatizações (batalhas entre exércitos
etc.). Assim, o que denominamos jogo é, no fundo, a arte cons­
trutiva ou dramática da criança. Com essa teoria entende-se
como o jogo passa a ser arte. Por outro lado, resolve-se com
mais facilidade o problema das relações entre o jogo e o trabalho:
nos jogos construtivos, essa relação passa a ser quase coinci-
Teoria do jogo 195

dcncia; mais complicada, mas existente, sem dúvida alguma, é


a conexão entre o trabalho e os jogos de tipo dramatizado, a
qual se assemelha, em geral, à relação entre o trabalho e a arte
dramática. Assim, no problema demasiado sumário do jogo
ocultam-se dois problemas muito importantes: o do trabalho e o
da arte na idade pré-escolar” (1934, p. 109).
Desse modo, reduzindo tudo o que costuma chamar-se
jogo á arte construtiva e dramática da criança, Blonski chega à
conclusão de que, em geral, não existe uma atividade especial
que se denomine jogo.
Segundo parece, Blonski tem razão quando exclui dos
jogos as manipulações das crianças de tenra idade e a experi­
mentação como forma de exploração infantil de alguns obje­
tos. Em nosso entender, devem excluir-se também os chama­
dos jogos construtivos, porquanto as ocupações com material
de construção têm muito mais afinidades com a modelagem e
o desenho do que com os jogos imitativos ou dramáticos. Sào
as atividades produtivas, cujo resultado consiste num produto
determinado, na forma de um desenho, de um objeto modelado
ou de uma construção. Entretanto, Blonski propõe, em geral,
não se empregar o termo “jogo” e, em segundo lugar, falar da
arte construtiva e dramática da criança. Mas com essa metoní-
mia não muda em nada o fundo do problema. Claro que é ver­
dade que o jogo está em certa relação com o trabalho e a arte:
essa relação não é simples, nem ficará mais clara porque se
chame ao jogo um tipo de arte infantil.
Apesar dessa atitude bastante negativa, em geral, diante da
possibilidade de criar a teoria do jogo infantil, Blonski assinala
uma série de peculiaridades importantes do jogo e de sua gêne­
se. Assim, ao examinar o jogo em idade pré-escolar, escreve:
‘vOs jogos típicos da criança pequena são os imitativos e cons­
trutivos, ao passo que os dinâmicos (se não se levarem em conta
as simples correrias) ocupam no seu repertório um lugar muito
modesto. A esse respeito, a criança pequena é a antípoda da
escolar que, pelo contrário, concede o primeiro lugar aos jogos
196 Psicologia do jogo

dinâmicos e relega para segundo plano os construtivos, sobre­


tudo os imitativos.
Os jogos imitativos infantis são, em princípio, tão simples
que fica difícil estabelecer uma diferença entre eles e as opera­
ções laborais da criança. Quando a criança, imitando os adultos,
dá marteladas ou tenta fincar um prego, temos, naturalmente,
um trabalho, mais do que um jogo. O jogo imitativo vai sepa­
rando-se muito lentamente de semelhantes ocupações pueris...
Assim, os jogos imitativos da criança desenrolam-se a partir
de suas ocupações imitativas de tipo laborai. Só mais adiante,
por volta dos dois anos e meio, é possível distinguir com bas­
tante segurança dessas ocupações o jogo imitativo da criança”
(1934, p. 118).
Claro que as ações da criança de que fala Blonski não são
operações laborais. Mas quando Blonski escrevia isso, ainda
não se apresentava o problema de que a criança conhecesse
modos elaborados pela sociedade de atuar com os objetos. Se
nessa expressão de Blonski se substituem as palavras “ocupa­
ções de tipo laborai” pela tese de que os jogos imitativos evo­
luem quando a criança conhece as ações com objetos, baseadas
em modelos elaborados pela sociedade e propagados pelos
adultos, encontraremos nele o caminho para averiguar a ori­
gem do jogo. Blonski tinha razão quando dizia que o jogo pro­
cedia das ocupações de “tipo laborai”, entendendo-se bem es­
sas ocupações.
Também contém idéias interessantes a análise das idéias
imitativas, feita por Blonski, de jogos de crianças pequenas.
Escreve Blonski: “Nos jogos imitativos da criança pequena
pode-se encontrar já desde o próprio começo, ainda em forma
muito confusa, por certo, um aspecto de dramatização. Apóia-
se em que a criança desempenha por si só um certo papel e
obriga outros (adultos, crianças, até mesmo objetos inanima­
dos) a desempenhar também um papel: as cadeiras colocadas
em fila fazem de trem e, quando as dispõe assim, ela resfolega
como uma locomotiva. Atores similares, nas primeiras drama-
Teoria dojogo 197

tizações infantis, podem ser inclusive pessoas e objetos inexis­


tentes, embora a criança empregue com maior agrado brinque­
dos representativos de seres vivos e objetos reais (bonecos,
brinquedos com figura de animais, baixelas miniaturais etc.).
A psicologia de semelhantes dramatizações ainda nâo está
explicada de modo satisfatório. Por isso as explicações ofereci­
das apresentam um caráter muito hipotético. Alguns psicólo­
gos sublinham o papel da identificação no jogo infantil (Schil­
ler). Conceituam que a identificação é um fenômeno mais com­
plexo do que a simples imitação, pois dir-se-ia que esta última
desempenha o papel de um grau prévio daquela. A identifica­
ção expressa-se em que desejamos atuar no lugar de outro:
desempenha importante papel numa série de fenômenos, por
exemplo, no hipnotismo, nos sonhos, nos jogos infantis, na
arte dramática etc. Conduz à ‘representação de um papel’. Não
é difícil ver que, ao designar como identificação a representa­
ção de papéis, ainda não obtivemos explicação nenhuma. A
vantagem oferecida pela introdução do conceito de identifica­
ção é, não obstante, a de que podemos ver com maior amplitu­
de a interpretação infantil de papéis nos jogos imitativos e, sin­
tetizando o problema tratado, procurar mais a fundo a sua ex­
plicação psicológica. Cumpre advertir, porém, que nos faltam
explicações satisfatórias da identificação” (1934, p. 118).
É interessante a atitude positiva de Blonski diante da iden­
tificação como mecanismo que permite compreender com
maior profundidade o sentido psicológico dos jogos imitativos.
Em suma, embora repudiando as interpretações freudianas da
sexualidade infantil, Blonski aproveita da psicanálise o meca­
nismo da identificação, com o qual estão relacionadas no freu-
dismo as pulsões sexuais profundas que se manifestam no cha­
mado complexo de Édipo, expresso na identificação com o
pai. Essa adoção de um mecanismo que tem um conteúdo
determinado, relacionado com uma teoria concreta, pode levar
a uma interpretação do jogo à maneira de Freud.
198 Psicologia dojogo

Além disso, sobra razào a Blonski quando apresenta como


um dos problemas centrais o do mecanismo psicanalítico da
adoçào do papel de adulto pela criança. Com toda a inadmissi­
bilidade da teoria de Blonski, que identifica o jogo e a arte, a
sua asserção de que o jogo nasce das “ocupações de tipo labo­
rai" da criança, que não podem transcorrer de outra maneira
senão como atividade conjunta com adultos ou em função do
modelo que estes ofereçam, é de extraordinária importância
para se compreender a origem da protagonização e, por conse­
guinte, dojogo.
Vigotski deu uma contribuição substancial para a teoria
do jogo. Seu interesse pela psicologia do jogo deve-se, por um
lado, às pesquisas da psicologia da arte e, por outro, ao estudo
do problema do desenvolvimento das funções psíquicas supe­
riores. Como se sabe, Vigotski, sobretudo em seus primeiros
trabalhos, relacionava o desenvolvimento das funções psíqui­
cas superiores com a utilização dos signos. Daí seu interesse
pela história do surgimento dos signos durante a evolução indi­
vidual, durante o desenvolvimento psíquico da criança. No ar­
tigo “Pré-história da linguagem escrita”, que já mencionamos,
Vigotski fala do jogo apenas no tocante ao emprego lúdico de
objetos como símbolos para designar outros objetos. A esse
respeito foi proposta a tese de que a tiinçào de signo ou símbo­
lo (Vigotski emprega às vezes esses termos como equivalen­
tes) é comunicada ao objeto pela ação executada pela criança.
“O próprio movimento da criança, seus gestos, é o que comu­
nica a função de signo ao objeto respectivo, o que lhe confere
sentido” (1935, p. 78).
Nisso se situa a diferença existente entre Vigotski e Piaget
quanto à compreensão do símbolo no jogo. Piaget acentua que
há semelhança entre o símbolo e o significado. Isso é verdade
com símbolos de outros tipos, à exceção do jogo. Quanto ao
jogo, o fundo do problema consiste menos na função represen­
tativa do que na possibilidade, como escreve Vigotski, de reali­
zar uma ação determinada com o objeto substitutivo.
Teoria dojogo 199

Vigotski ofereceu um esboço muito conciso e preliminar


do que pensava acerca da transcendência do jogo num trabalho
sobre a psicologia do adolescente. “Se nos referirmos ao ho­
mem primitivo”, escreveu Vigotski, “veremos que nos jogos
das crianças sobreleva a sua preparação profissional para a ati­
vidade futura: a caça, seguir o rasto das feras e a guerra. O jogo
da criatura humana também está orientado para a atividade
futura mas, principalmente, a de caráter social. A criança vê a
atividade dos adultos que a rodeiam, imita-a e transforma-a em
jogo, e no jogo adquire as relações sociais fundamentais e fre­
qüenta a escola do seu futuro desenvolvimento social” (1931,
p. 459).
Devido ao seu trabalho orientado para a criação de um sis­
tema de psicologia infantil, Vigotski retoma o jogo como tipo
principal de atividade das crianças pequenas e constrói a hipó­
tese do fundo psicológico da forma evoluída do jogo protago­
nizado. Como já dissemos no Prefácio, Vigotski a expôs numa
conferência detalhada em 1933 e ela foi publicada pela primei­
ra vez em 1966.
Os enunciados principais dessa hipótese são os seguintes:
1. O jogo surge quando aparecem tendências que nào se
cristalizam no ato e, ao mesmo tempo, conserva-se a tendência
típica da primeira infancia para ver satisfeitos imediatamente
os desejos. O fundamento do jogo consiste em dar satisfação
aos desejos de natureza generalizada, mas nào aos de apetência
singular. Essas apetências generalizadas podem não ser com­
preendidas pela criança. Seu conteúdo básico é o sistema de
relações com os adultos.
2. O central e típico da atividade lúdica é a criação de uma
situação “fictícia” que consiste na adoção do papel de adulto
pela criança e, em circunstâncias lúdicas criadas por ela pró­
pria. representá-lo. O típico da situação “fictícia" é a transfe­
rencia das significações de um objeto a outro e as ações
reconstitutivas em forma sintética e abreviada das ações reais
no papel de adulto adotado pela criança. Isso chega a ser possí­
200 Psicologia do jogo

vel quando se baseia na disparidade, que aparece na idade pré-


escolar, entre o que se vê e o sentido que se lhe dá.
3. Todo jogo na situação “fictícia” é, ao mesmo tempo,
jogo com regras, e todo jogo com regras é um jogo com a situa­
ção “fictícia”. As regras do jogo são as que a criança se impõe,
as de autolimitação c autodeterminação interiores.
4. No jogo, a criança opera com significados separados
das coisas, mas respaldados com ações reais. A principal con­
tradição genética do jogo está em que dá origem ao movimento
no interior do campo semasiológico, mas se manifesta como
ação exterior. Nele afloram todos os processos internos.
5. No jogo criam-se continuamente situações que fazem a
criança recuperar-se pela linha de maior resistência, e que nào
sào devidas a um impulso imediato. O prazer específico do
jogo está relacionado com a superação dos impulsos imedia­
tos, com a subordinação à regra implícita no papel.
6. O jogo é o tipo de atividade, senão predominante, pelo
menos principal da idade pré-escolar. Contém todas as tendên­
cias do desenvolvimento; é fonte de desenvolvimento e cria
zonas evolutivas do mais imediato; na esteira do jogo ocorrem as
mudanças de necessidades e as de consciência de caráter geral.
A hipótese de Vigotski é muito mais ampla do que os
enunciados fundamentais que acabamos de destacar. Podem-se
conhecer todas as suas proposições unicamente pelo seu artigo
e pelas notas anexadas ao final do presente livro. Essa hipótese
foi a máxima conquista da psicologia infantil soviética de então.
Mas nào deixou de ser uma hipótese; estava e continua estando
insuficientemente clara até hoje.
Rubinstein publicou algumas notas criticas da hipótese de
Vigotski. Apresentaremos na íntegra as suas objeções: “Vi­
gotski e seus discípulos têm por primário e determinante no jo­
go o fato dc que a criança, ao jogar, cria para si uma situação
‘fictícia’ no lugar da real e atua nela representando um papel
determinado, conforme os significados que ela atribui, no mo­
mento, aos objetos circundantes.”
Teoria do jogo 201

“A transferência da ação para a situação imaginária é real­


mente típica do desenvolvimento das formas específicas do
jogo. Ora, a criação de uma situação ‘fictícia’ e o traslado dos
significados não podem ser a base da compreensão do jogo.
Os defeitos fundamentais dessa interpretação do jogo são
os seguintes: (1) concentra-se na estrutura da situação lúdica
sem descobrir as fontes do jogo. O traslado dos significados e
as passagens para uma situação fictícia não são fonte de jogo.
A tentativa de interpretar a transição dc uma situação real para
outra ‘fictícia’ como fonte do jogo poderia ser compreendida
unicamente como repercussão da teoria psicanalítica do jogo.
(2) A interpretação da situação lúdica como nascida do ‘trasla­
do’ dos significados e, mais ainda, da tentativa dc inferir o jogo
da necessidade dc ‘brincar com os significados’ é estritamente
intelectualista. (3) Ao transformar o fato essencial para as formas
superiores de jogo, mas secundário, em geral, de que se atua
numa situação ‘fictícia’, ou seja, imaginária, num fato primor­
dial e, portanto, imprescindível em todo e qualquer jogo, essa
teoria, deveras restritiva do conceito de jogo, exclui arbitraria­
mente as formas precoces em que a criança, sem criar nenhu­
ma situação fictícia, representa alguma ação extraída direta­
mente da situação real (abrir e fechar uma porta, deitar para
dormir ctc.). Ao excluir tais formas precoces de jogo, essa teo­
ria se priva da possibilidade de compreendê-lo em seu desen­
volvimento” (1946, pp. 593-594).
Embora nos pareça que essas observações críticas não são
totalmente corretas, elas devem ser levadas em conta ao elabo­
rar os problemas de psicologia do jogo infantil.
Rubinstein examina os problemas da psicologia do jogo
no capítulo dedicado à análise da atividade em seu livro Fun­
damentos de psicologia geral. As teses fundamentais dos critc-
nos de Rubinstein estão relacionadas com a elaboração dos
problemas da psicologia do jogo como tipo especial de ativida­
de. Prossegue Rubinstein: “O jogo, posto que se trata dos jogos
do homem e da criança, é, sobretudo, uma atividade conscien­
202 Psicologia dojogo

te, ou seja, um conjunto de atos conscientes agrupados pela


unidade do motivo”. “O jogo é atividade; o que significa que o
jogo é expressão de uma atitude determinada do indivíduo em
face da realidade cifcundante” (ibid., p. 588).
Como peculiaridade primordial, determinante da base do
jogo, Rubinstein destaca a de suas motivações. “A primeira as­
serção que determina o fundamento do jogo estriba-se em que
suas motivações não estão no efeito utilitário nem no resultado
material que a ação estudada costuma ter no plano prático, fora
do jogo, e tampouco na própria ação, independentemente do
seu resultado, mas nas múltiplas e variadas sensações, impor­
tantes para a criança, em geral para a que joga, dos aspectos da
realidade.”
“As motivações da atividade lúdica”, continua Rubinstein,
“refletem mais a atitude direta do indivíduo em face do meio
circundante; o valor de uns ou outros aspectos sente-se na ati­
vidade lúdica baseada numa atitude mais direta diante do seu
próprio conteúdo interno. Na atividade lúdica desaparece a
possível divergência entre a motivação e o fim direto da ação
do sujeito na prática. O jogo desconhece a casuística das
mediações, em virtude das quais a ação é motivada por algum
resultado secundário do jogo, sem relação direta com o objeto
a que se dirige. No jogo, realizam-se unicamente ações cujos
fins têm valor para o indivíduo segundo o seu próprio conteú­
do intrínseco. Nisso se baseia a peculiaridade fundamental da
atividade lúdica e nisso está também o seu encanto essencial,
comparável unicamente à beleza das formas supremas da cria­
ção” (1946, p. 590).
No entender de Rubinstein, as motivações do jogo estão
relacionadas com as peculiaridades dos atos lúdicos. “As ações
na atividade lúdica são mais exatamente atos expressivos e
semânticos do que procedimentos operacionais. Devem expres­
sar o sentido das ações implícito no estímulo, no motivo, em
sua atitude em vistas do fim, muito mais.do que alcançar esse
Teoria do jogo 203

fim em forma de resultado exterior. Tal é a função, o destino da


ação lúdica” (ibid., p. 591).
Prossegue Rubinstein: “Daí a característica seguinte, que
salta à vista, do jogo, característica inferida, na realidade, das
já citadas peculiaridades internas da atividade lúdica: a possi­
bilidade, que para a criança é necessidade, de substituir, dentro
dos limites determinados pelo sentido do jogo, os objetos que
funcionam, fora do jogo, na ação prática respectiva, por outros
que podem servir para executar uma ação lúdica. No processo
dessa ação, tais objetos adquirem um significado determinado
pela função que desempenham na ação lúdica. Por conseqüên­
cia, essas peculiaridades do jogo condicionam a possibilidade
de seu trânsito para a situação imaginária" (1946, p. 591).
Ao indagar se o trânsito para a situação imaginária será
um distanciamento da realidade, Rubinstein assim responde:
“No jogo há desprendimento da realidade, mas também há
penetração nela. Por isso não há distanciamento nem evasão
para um mundo supostamente irreal, fictício, singular. O jogo
toma da realidade quanto necessita e plasma-o na ação.
Transpõe os limites de uma situação única e abstrai certos as­
pectos da realidade a fim de realçar outros mais profundos no
plano da eficiência” (ibid., p. 593).
Rubinstein deixa pendente o problema do papel central do
jogo no desenvolvimento psíquico da criança pequena. “Apesar
de tudo, parece que o problema, já resolvido por todos, de que o
jogo na idade pré-escolar é a principal forma de atividade, ainda
tem de ficar pendente. O jogo tem, indubitavelmente, uma
importância essencialíssima para formar as funções psíquicas e
os processos fundamentais da criança pequena. Mas será a ati­
vidade lúdica, que entra sem dúvida como componente subs­
tancial na imagem da vida da criança, a própria base do seu
modo de vida e determinará, cm última instância, o próprio
núcleo da personalidade da criança como ser social? A despeito
do ponto de vista adotado por todos, somos partidários, claro
está que sem negar o valor do jogo, de procurar também nas
204 Psicologia do jogo

cotidianas idas e vindas domésticas da criança, propensa a


aprender as normas de conduta e a inserir-se na vida da coletivi­
dade, os componentes determinantes do seu modo de vida para
formar-se uma personalidade como ser social. Tal como no
período pré-escolar, o fundamental no desenvolvimento da
criança é aprender a manejar os objetos, tanto quanto a lingua­
gem, já que na idade pré-escolar o principal é a evolução do ato
regulado por normas sociais” (1946, p. 595).
Tais são, brevemente expostas, as opiniões de Rubinstein
sobre o jogo. Claro que o correto é o postulado, geral para
todos os tipos de atividade, segundo o qual. para definir o jogo,
é de fundamental importância definir as suas motivações. Mas
em que é que se baseia a especificidade das motivações da
açào lúdica? Rubinstein não nos oferece nenhuma resposta. E
não é casual. Não o é porque examina a situação do jogo prin­
cipalmente do ponto de vista das ações lúdicas. Mas o centro
da situação lúdica é o papel assumido pela criança. O papel
determina o conjunto das ações realizadas pela criança na
situação imaginária. Também é o adulto, cuja atividade a crian­
ça reproduz. Assim, o objeto da atividade da criança no jogo é
o adulto, o que o adulto faz, com que finalidade o faz e as rela­
ções que estabelece, ao mesmo tempo, com outras pessoas.
Daí podem inferir-se também hipoteticamente as motivações
principais do jogo: agir como um adulto. Não ser adulto, mas
agir como um adulto. Entretanto, para que essas motivações
apareçam, é preciso separar a criança do adulto na mesma
medida em que o adulto é para a criança um modelo, um exem­
plo perfeito, “a medida de todas as coisas”, se me permitem a
expressão.
A peculiaridade mais importante dos trabalhos dos psicó­
logos soviéticos no campo da psicologia infantil é, antes de
tudo, a superação das teorias naturalistas e “profundas” do
jogo. Passo a passo, foi se cristalizando na psicologia soviética
a abordagem do jogo como tipo especial de atividade da crian­
ça que dá forma, em si mesma, à atitude do adulto em face da
Teoria do jogo 205

realidade circundante, sobretudo, em face da realidade social, e


que possui seu conteúdo específico e sua estrutura: um objeto,
motivos peculiares de atividade e um sistema peculiar de ações.
Estamos convencidos de que quem esteve mais perto de
descobrir a natureza psicológica do jogo foi Vigotski. E eviden­
te que nào conseguiu resolver todas as questões, nem mesmo
formulá-las. Os capítulos seguintes deste livro estão dedicados
a aprofundar e a continuar desenvolvendo as suas hipóteses.
Capitulo 4
Origem do jogo na ontogenia

/. Desenvolvimento dos movimentos♦


das ações e da
comunicação com os adultos no primeiro ano de vida
A evolução da atividade lúdica está intimamente relacio­
nada com todo o desenvolvimento da criança. Da evolução do
jogo só se pode falar depois de se terem formado as coordena­
ções sensório-motoras fundamentais que oferecem a possibili­
dade de manipular e atuar com os objetos. Sem saber sustentar
um objeto na mão é impossível qualquer ação com ele, incluin­
do a lúdica.
A primeira metade do primeiro ano de vida transcorre in­
tegralmente com uma formação adiantada dos sistemas senso-
riais. Já expusemos a tese proposta por Tchelovánov de que a
diferença principal entre o desenvolvimento da criança e dos
filhotes de animais baseia-se na imaturidade de toda a esfera
motora da criança no momento de nascer, esfera cujo desen­
volvimento transcorre sob o controle dos sistemas sensoriais,
com destaque para a visão. Não obstante, esses mesmos siste­
mas sensoriais devem alcançar um certo nível de desenvolvi­
mento antes de se inserir num ato sensório-motor único. A
concentração no objeto, a atenção dirigida para o objeto em
movimento em diferentes direções e a distâncias diferentes, a
Psicologia do jogo

convergência dos olhos e a contemplação desenvolvem-se antes


de que suijam os primeiros movimentos na direção do objeto e
constituem a premissa para que esses movimentos apareçam.
O desenvolvimento dos aparelhos sensoriais está implícito
desde o começo na interação da criança com os adultos que
dela cuidam e transcorre em função de um processo de apren­
dizagem. O adulto inclina-se sobre a criança, aproxima e afasta
seu rosto, acerca-se e distancia-se, estende para ela um objeto
de cor viva e, com isso, dá motivo para que a criança fixe a
vista no rosto do adulto ou no brinquedo, para que se produza a
convergência dos olhos e a contemplação.
O desenvolvimento dos sistemas sensoriais antecipa-se ao
da esfera dos movimentos das mãos. Os movimentos da crian­
ça ainda sào caóticos, ao passo que os sistemas sensoriais já se
tornam relativamente dirigíveis.
Têm suma importância para o desenvolvimento subse­
qüente do ato de preensão as apalpaçòes com as mãos. Pode-se
pressupor que no processo desses movimentos para apalpar
forma-se a sensibilidade tátil específica e a transformação da
palma da mão da criança num aparelho receptor que funciona
de maneira ordenada. Segundo as observações que Figurin e
Denisova (1929) realizaram do curso do desenvolvimento da
criança, a evolução das coordenações visomotoras (olho-mào)
culmina no ato de preensão e subseqüente sujeição de objetos.
A evolução das coordenações visomotoras em que se baseia o
ato de agarrar tem seu começo no complexo mímico-somático
positivo, ou “complexo de animação”, como o denominaram
os autores que o descreveram pela primeira vez. Ao se animarem,
como conseqüência de ter centrado a vista num objeto e dos
movimentos caóticos, primeiro as mãos tocam casualmente no
objeto; essa é a base para que se forme a tendência subseqüen­
te das mãos para o objeto, quando este se encontra a certa dis­
tância dos olhos. Soma-se a isso a colocação da mào e dos
dedos em determinada postura, ao ver o objeto a partir de um
certo ângulo. Dessa maneira, segundo os dados dos citados au-
Origem do jogo na ontogenia 209

tores, o ato de agarrar é um movimento que responde à excita­


ção visual difusa dos olhos da criança a partir de uma certa dis­
tância e com determinado ângulo, e que consiste em dirigir as
mãos para o objeto e adotar com as palmas e os dedos certa
postura.
Durante a formação do ato de agarrar, a vinculação entre a
percepção visual e o movimento estabelece-se instantaneamen­
te. Abramóvitch (1946) observou que, no período compreendi­
do entre quatro e sete meses, o bebê, ao ver um objeto a curta
distância, estende imediatamente a mão e procura alcançá-lo.
Com a particularidade de que os movimentos de agarrar conhe­
cem uma evolução relativamente rápida, por vezes de dinâmica
pouco perceptível para os leigos, mas bem captada pelo obser­
vador experiente, desde a preensão indiferenciada do objeto
com todos os dedos e a compressão do mesmo contra a palma
da mão até a preensão opondo o polegar aos dedos restantes.
Pode-se pressupor que a formação do ato de agarrar ba-
seia-se na concentração da vista no objeto. O problema da
parte aferente do ato de agarrar tampouco está bastante claro.
Não se deve crer que a influência do objeto no período da for­
mação da preensão se reflete na forma de sua imagem, já que
entre a figura reticular do objeto e sua verdadeira dimensão e
forma ainda não se estabeleceu uma relação em virtude da ine­
xistência de contato direto com o objeto. A importância funda­
mental do ato de apreender diversos objetos a distância com a
subseqüente sujeição, apalpação e contemplação simultânea
dos mesmos radica-se no fato de que, durante esse processo, se
constituem as ligações entre a imagem reticular do objeto e
suas verdadeiras dimensões, forma e distância. Desse modo se
estabelecem as bases da percepção tridimensional dos objetos.
A formação primária da preensão e seu ulterior aperfei­
çoamento transcorrem na atividade conjunta com os adultos. É
precisamente o adulto quem cria as diferentes situações em
que se aperfeiçoa a direção psíquica dos movimentos das mãos
baseados na percepção visual do objeto e em sua distância. Os
210 Psicologia do jogo

adultos que se ocupam de uma criança freqüentemente nào se


dão conta de que lhe oferecem, no completo sentido da pala­
vra, exercícios conjiintos para formar o movimento preênsil: o
adulto suscita a concentração no objeto, coloca-o a uma distân­
cia na qual a criança começa dirigindo a mão para ele, e afasta-
o, obrigando a criança a estirar-se na direção dele; se a criança
estende as mãos para o objeto, o adulto desloca-o até que entre
em contato com as mãos da criança etc. Transcorre precisamen­
te desse modo o desenvolvimento da orientação da criança no
espaço e a direção independente dos movimentos baseados nes­
sa orientação. Em todas essas situações o centro é o adulto.
Depois de formado o ato de preensão, a evolução dos mo­
vimentos passa para outra fase. Segundo os dados de Figurin e
Denisova, o essencial desta fase deriva do surgimento e intenso
desenvolvimento de diversos movimentos reiterativos. O de­
senvolvimento dos movimentos reiterativos começa com as
palmadas no objeto. À medida que a criança faz novos movi­
mentos com os objetos, os movimentos reiterativos tornam-se
cada vez mais variados. A criança nào se limita a dar palmadas
no objeto, mas agita-o, passa-o de uma mão para a outra, fá-lo
oscilar repetidamente quando está pendurado acima dele, gol­
peia um objeto com um outro etc. Figurin e Denisova dizem
que simultaneamente com o aparecimento dos movimentos rei­
terativos aparecem os concatenados ou série de movimentos
soltos e diferençados que se sucedem estritamente uns aos
outros. Esses autores sublinham em especial que os movimen­
tos reiterativos e concatenados nào se distinguem fundamen­
talmente em nada, e que tanto em uns quanto em outros casos
existe uma conexão de movimentos em ordem consecutiva,
sob o controle dos órgãos da percepção. Na cadeia dos movi­
mentos inserem-se todos aqueles que a criança aprende separa­
damente.
Rosengart-Pupkó (1948) diz que. nesse mesmo período
aparece, por parte da criança, a contemplação ativa do objeto-
Origem dojogo na ontogenia 211

brinquedo que tem nas mãos. O exame do objeto é por nature­


za também um movimento reiterativo dos olhos análogo à sua
apalpaçào. Assim, tanto os movimentos reiterativos quanto os
encadeados transcorrem, de um modo geral, no momento de
examinar o objeto.
As reações reiterativas e encadeadas, que acompanham o
exame do objeto que se manipula, são justamente as ações fun­
damentais que a criança dessa idade faz com os objetos.
O nível de desenvolvimento dessa manipulação em crian­
ças no primeiro ano de vida depende da atenção pedagógica
que se lhes tenha prestado. Abramóvitch (1946) e uma série de
outros autores assinalam que, se não se realiza um trabalho pe­
dagógico com as crianças, o desenvolvimento dos movimentos
se detém. As crianças permanecem horas a fio sem atividade,
satisfazendo-se com a sucção dos dedos e a oscilação monóto­
na do corpo.
Reveste-se de essencial importância o problema do meca­
nismo das reações reiterativas e encadeadas. Alguns autores
optam por ver o mecanismo das ações reiterativas e encadea­
das da criança pequena na motivação deliberada do “resultado
imaginado”. Tal compreensão padece de certo subjetivismo. A
“idéia do resultado” pode ser a força impulsora dos movimen­
tos reiterativos e encadeados unicamente se se repete a mani­
pulação com o objeto; se o objeto é conhecido pela primeira
vez, é natural que não possa haver idéia nenhuma do resulta­
do. Se a causa propulsora dos movimentos reiterativos e enca­
deados fosse a idéia do resultado, a criança preferiria agir com
objetos velhos que já conhece. Mas se sabe de sobra que as
crianças dessa idade preferem manipular objetos novos, que
ainda não conhecem. Por último, é completamente inexplicá­
vel, desse ponto de vista, o exame prolongado do objeto antes
de começarem as manipulações com ele. Rosengart-Pupkó dei­
xou claro que as crianças examinam demoradamente o objeto,
dando-lhe voltas de um lado e de outro, antes de começar a
Manipulá-lo. As observações evidenciam que a criança mani­
212 Psicologia dojogo

pula o objeto tanto mais quanto maiores possibilidades oferece


para a atividade orientadora e investigadora.
Todos esses fatos fazem supor que na motivação e susten­
tação de tais ações reiterativas e encadeadas com os objetos um
importante papel cabe ao trabalho orientador e investigador
relacionado com a novidade dos objetos e a diversidade das
qualidades que lhes são inerentes.
Como é natural, não cabe dúvida de que a criança, durante
as ações reiterativas e concatenadas e durante o exame do obje­
to, forja certas idéias sobre as propriedades do objeto e sobre o
possível resultado das manipulações com ele; bem entendido,
o resultado não é mais do que uma premissa e não o mecanis­
mo dessas manipulações.
Denisova e Figurin (1929) pesquisaram especialmente a
influência do novo para estimular as ações da criança com os
objetos. Ao oferecer simultaneamente à criança um objeto ve­
lho que já foi manipulado antes durante 15 ou 20 minutos, e
outros objetos que ainda não tinha visto, esses autores desco­
briram que a criança concentra-se principalmente no objeto
novo e o agarra, enquanto só olha para o velho e não o toca. Se
no experimento se mostrava à criança apenas o objeto velho,
tampouco se concentrava nele e o pegava. Os autores dessa
pesquisa indicam acertadamente que o típico da criança é o seu
interesse preferente pelo novo e isso se pode ver já no quinto
mês de vida.
Abramóvitch (1946) pesquisou algumas condições adicio­
nais do aparecimento da concentração preferente no novo. Nos
seus experimentos, apresentou a uma criança: (1) objetos de
forma simples, mas vistosos e novos para ela; (2) objetos
iguais, mas muito conhecidos da criança por terem estado sem­
pre à mão; (3) objetos complicados, de forma não muito preci­
sa, vistosos e novos; (4) objetos idênticos, mas conhecidos
pelos jogos conjuntos com adultos. Averiguou que: (1) os obje­
tos sobejamente conhecidos, apesar de serem atraentes e terem
formas precisas, são rejeitados; (2) os objetos de forma conv
Origem do jogo na ontogenia 213

plicada que a criança desconhece totalmente nào a fazem con­


centrar-se nem lhe chamam a atenção; (3) os objetos desconhe­
cidos podem atrair a criança somente no caso de os ver mani­
pulados por um adulto a quem ela aprecia e que acompanha suas
ações com palavras; (4) o objeto de maior atrativo para a crian­
ça é aquele que ela conhece pouco, ao passo que o mais conhe­
cido não a atrai; o objeto desconhecido e de forma imprecisa
não lhe chama a atenção.
O estímulo da novidade para as manipulações da criança
pequena, mostrado nas pesquisas, permite aprofundar mais a
compreensão do mecanismo das ações reiterativas e concate­
nadas que incluem o exame ativo do objeto ou qualquer outra
atividade sensorial (por exemplo, a atenção ao som emitido).
O exame do objeto relacionado com a manipulação ba­
seia-se precisamente em que a criança (claro que à parte de
todo o desejo intencionado) coloca o objeto em novas posições
e permanece atento até que se esgotem todas as possibilidades
de novidade. Logo que essas possibilidades sào esgotadas,
extingue-se a atividade orientadora e investigadora e, com ela,
a contemplação. O mesmo ocorre com os movimentos rcitera-
tivos, quer sejam palmadas no objeto que sejam golpes desferi­
dos com o chocalho. Neste caso, a diferença reside somente
em que o novo está não só na posição distinta do objeto, mas
também, por exemplo, no som que emite. De cada vez, a nova
posição do objeto e o novo som, mais forte ou mais fraco,
constituem a novidade que leva a criança a agir e sustenta a
manipulação relativamente prolongada.
Os dados fáticos das ações reiterativas e concatenada s da
criança durante o primeiro ano de vida permitem caracterizá-
las da seguinte maneira:
1. As manipulações do primeiro ano aparecem quando se
dão todas as premissas necessárias, e sào as faculdades de con­
centrar-se, examinar, apalpar, ouvir etc., que se manifestam a
Partir dos seis meses, assim como os movimentos coordenados
cuja regulação obedece à vista.
214 Psicologia do jogo

2. Devido à formação do ato de agarrar, a atividade orien­


tadora e exploradora da criança adquire uma forma nova. A
orientação para o nóvo, que evolui no transcurso do segundo
semestre, já é uma forma comportamental e não uma simples
reação.
3. O novo não só estimula a atividade da criança a respeito
do objeto, mas também lhe proporciona apoio. As ações da
criança de um ano são estimuladas pela novidade dos objetos e
sustentadas pelas novas qualidades dos objetos que vão sendo
descobertas durante a sua manipulação. O esgotamento das pos­
sibilidades de novidade implica a cessação das ações com o
objeto.
O surgimento e desenvolvimento dessas manipulações
infantis distinguem-se notoriamente da atividade sensório-
motora dos animais jovens, sobretudo, porque nos objetos ou
brinquedos oferecidos pelos adultos à criança já estão pro­
gramadas as operações sensório-motoras que nela devem for­
mar-se e os elementos de novidade que os estimulam e os
sustentam. Dessa maneira, os adultos parecem dirigir, como
sem ser vistos, as manipulações em formação das crianças.
Assim, por exemplo, o chocalho, que faz barulho ao ser agi­
tado, está planejado especialmente para que se formem essas
mesmas operações; um brinquedo idêntico, mas que não faz
barulho e está pintado em cores diferentes, deve estimular, e
estimula, a sua contemplação, pondo-o ora de um lado ora do
outro. Pelo visto, os adultos aperceberam-se há muito tempo
das peculiaridades da atividade orientadora e exploradora da
criança, e da possibilidade de formar assim determinadas
manipulações com os objetos, e aproveitam-nas a fim de pro­
jetar e criar brinquedos para as crianças menores. Tal dese­
nho de brinquedos faz com que as manifestações motoras das
crianças comecem a submeter as propriedades do objeto,
dadas de antemão. Lamentavelmente, a ordem pela qual esses
brinquedos devem ser entregues às crianças ainda não é sufi­
cientemente estudada.
Origem do jogo na ontogenia 215

Deve-se chamar jogo às manipulações primárias com os


objetos? Não cremos que seja conveniente. Denominamo-las
exercícios elementares para operar com as coisas, nas quais o
caráter das operações é dado pela construção especial do obje­
to. Durante essa manipulação exercita-se uma série de proces­
sos essenciais para o desenvolvimento ulterior, sobretudo das
coordenações sensório-motoras. Dessas manipulações primá­
rias surgem, diferenciando-se, outros tipos diversos de ativi­
dade.
Essa é, primordialmente, uma atividade com os objetos
cm que se aprendem ações planejadas pela sociedade, e uma
“exploração”, na qual a criança busca o novo nos objetos.
(Colocamos a palavra “exploração” entre aspas para sublinhar
que se trata de uma atividade singular, puramente infantil.)
E de suma importância, para passar à formação de ações
com objetos, modificar o tipo de relacionamento da criança
com o adulto, que começa no transcorrer do primeiro ano de
vida e da primeira infancia.
Lísina (1974a, 1974b) foi quem submeteu a estudo mais
pormenorizado o desenvolvimento da comunicação. Segundo
os dados dessas pesquisas, quando se vai cumprir o primeiro
ano de vida, a comunicação emocional direta da criança com
os adultos é substituída por uma forma especial, de nova quali­
dade, que se desenvolve na atividade conjunta com os adultos
mediante as manipulações com os objetos. A comunicação emo­
cional direta “criança-adulto” cede lugar à indireta “criança-
ações com objetos-adulto”.
Escreve Lísina: “A criança aspira também a ter contatos
pessoais diretos com os adultos e reclama a sua atenção e apro­
vação. As crianças buscam o elogio dos adultos para as ações
lúdicas e manipulações a que se entregam, e rechaçam o elogio
desligado do que fazem por parte de adultos desconhecidos. Se
o adulto manifesta, de passagem, a sua boa disposição para
com a criança, a sua avaliação causa a esta última uma alegria
profunda.”
216 Psicologia do jogo

4fcPor conseguinte”, prossegue Lisina, “a comunicação pes­


soal da criança de tenra idade intercala-se na interação prática
com os adultos, mas’ não se funde com ela; é uma forma nova
de contato pessoal com outra pessoa” (1974b, p. 152).
Essa nova forma de comunicação com os adultos é uma
condição importantíssima do intenso desenvolvimento das
ações com os objetos na primeira infância. Já traz implícita a
atitude com o adulto como depositário de modelos de ações
com os objetos e uma carga antecipada de simpatia do adulto
pela criança.

2. Peculiaridades do relacionamento da criança com os


adultos durante o desenvolvimento das
ações com os objetos e aparecimento das premissas
do jogo protagonizado
A origem do jogo protagonizado possui uma relação gené­
tica com a formação, orientada pelos adultos, das ações com os
objetos na primeira intância. Denominamos ações com os
objetos os modos sociais de utilizá-los que se formaram ao
longo da história e agregados a objetos determinados. Os auto­
res dessas ações são os adultos. Nos objetos não se indicam
diretamente os modos de emprego, os quais não podem desco­
brir-se por si sós à criança durante a simples manipulação, sem
a ajuda nem a direção dos adultos, sem um modelo de ação. O
desenvolvimento das ações com os objetos é o processo de sua
aprendizagem sob a direção imediata dos adultos. Ao exami­
nar esse desenvolvimento, têm-se em conta todas as ações com
objetos, ou seja, tanto a assimilação das habituais (com a xíca­
ra, a colher etc.) quanto das lúdicas (com brinquedos que, nas
primeiras fases de desenvolvimento, se manifestam tal qual os
objetos).
Lamentamos constatar que ainda são muito poucas as pes­
quisas descobridoras do processo de aprendizagem infantil das
ações com objetos. Grande número das realizadas, assim como
Origem dojogo na ontogenia 217

das que estão se realizando atualmente, têm o cunho da tradi­


ção iniciada pelas conhecidíssimas investigações de Kõhler so­
bre o intelecto dos símios superiores.
Sem negar que a criança possa descobrir as funções de
objetos soltos, ao cumprir por sua própria conta tarefas que
exigem o emprego de instrumentos, consideramos não ser
essa, no entanto, a forma fundamental. A forma fundamental é
a de atuarem em conjunto crianças e adultos a fim de, paulatina­
mente, estes transmitirem àquelas os modos planejados pela
sociedade para utilizar os objetos. Nesse trabalho conjunto, os
adultos organizam em conformidade com um modelo as ações
da criança, e em seguida estimulam e controlam a evolução de
sua formação e execução.
Antes de passar a descrever e analisar os fatos reunidos
em pesquisas especiais, dedicadas à formação das premissas
do jogo protagonizado durante a aprendizagem das ações com
os objetos, cremos necessário fazer várias observações sobre o
curso geral desse processo. Os argumentos devem-se às obser­
vações feitas do desenvolvimento das ações de um menino de
um ano e pouco a dois anos e alguns meses com os objetos. O
sujeito é Andrei, neto do autor.
Aduziremos várias observações.
1. Andrei não sabe descer do sofá. Tenta fazê-lo dc cabcça
ou de lado. Sua avó ensina-o a descer. Dá-lhe a volta, colocan­
do-o de frente para o encosto, com os pés para fora. Andrei
desce então um pé e depois o outro. A avó não deixa de lhe ir
dizendo, ao mesmo tempo: “Assim, assim!” Nas tentativas
seguintes, a avó já se limita a ampará-lo, ajudando-o a fazer os
movimentos respectivos e estimulando-o: “Assim, assim! Você
éum craque!”
Passado algum tempo, Andrei está de novo no sofá e tem
de descer. Volta-se sozinho de frente para o encosto e depois
começa descendo com cuidado, primeiro um pé, depois o outro.
Acompanha cada movimento com as palavras “Vovó, assim!
Vovó, assim!” Uma vez no chão, exclama: “Andrei é craque!”
218 Psicologia dojogo

2. Alguns dias antes dessa observação, a mãe de Andrei


colocou-lhe na mão uma colher e ajudou-o a fazer vários movi­
mentos. Dirigia-lhe a mão com a colher até o prato, apanhava
um pouco de comida e levava-lhe a mão com a colher até a
boca. Depois, durante a refeição, Andrei empunhava sempre
uma colher. Sua mãe dava-lhe de comer com outra. Entre
colherada e colherada, Andrei dirigia a dele ao prato, tentava
apanhar comida e, independentemente de que o conseguisse ou
nào, levava a colher à boca e lambia o que houvesse nela. Fez
essa manobra, no aspecto operacional, várias vezes. Eram
ainda muito imperfeitas. Embora Andrei segurasse a colher
pelo cabo, usava o punho todo, enchia-a, arrastando a colher, e
levava-a de lado à boca.
3. Andrei brinca com uma bola, que vai parar debaixo de um
armário. Estende-se no chão e procura alcançá-la com a mão.
Após uma série de tentativas infrutíferas, pede-me ajuda. Vou
com ele ao quarto contíguo e apanhamos um pau comprido.
Estendemo-nos os dois no chão, procuramos alcançar juntos a
bola e conseguimos. Depois, toda vez que a bola ou outro obje­
to qualquer se encontra fora do alcance de sua mão, Andrei
corre para mim e diz: “Vovô, o pau.” Quando lho dou, estende-
se no chão e procura alcançar sozinho o objeto. Suas tentativas
ainda sào muito imperfeitas do ponto de vista operacional, e
fracassam com freqüência, empurrando o objeto ainda mais
para o fiindo. Após várias tentativas, implora-me: “Vovô, você!”
Isso significa que lhe recupere eu a bola. Juntos os dois, agar­
rando ambos o pau, alcançamos o objeto.
4. A màe penteia Andrei com uma escova que depois colo­
ca na mão dele, dirige-lhe os movimentos e executam juntos a
açào de pentear. Agora, quando Andrei se aproxima do espelho
e vê a escova para o cabelo, empunha-a deliberadamente pelo
cabo, leva-a à cabeça e passa-a várias vezes pelo cabelo. Ao
fazê-lo, toca freqüentemente no cabelo com as costas da esco­
va, com o que, obviamente, nào consegue pentear-se.
Origem do jogo na ontogenia 219

5. Compraram a Andrei um automóvel de brinquedo. Pri­


meiro, um dos adultos dá-lhe corda. Em seguida, tento ensinar a
criança a segurar o automóvel com uma das mãos e a chave com
a outra. Aproximo a mão de Andrei com a chave do orifício e,
como tem dificuldade em dar-lhe corda, eu faço isso. Agora
Andrei procura fazê-lo sozinho. Segura o automóvel numa das
mãos, na outra a chave e a introduz no orifício da corda sem dei­
xar de olhar para mim. Quando já inseriu a chave, não consegue
fazê-la girar e diz-me: “Vovô, você!” O que significa que eu devo
dar-lhe corda. Dou voltas à mola e Andrei coloca o automóvel
no chão e solta-o. Fazemos isso durante muito tempo, de manei­
ra que Andrei executa todas as operações que precedem girar a
chave da corda, mas depois acode a algum dos adultos, entrega-
lhe o automóvel com a chave posta e pede-lhe que dê corda. Só
depois de transcorridos dois ou três meses é que Andrei apren­
de a dar voltas à chave, e agora faz todas as operações por sua
conta, limitando-se a olhar o adulto como que em busca de estí­
mulo e apreciação.
6. Andrei procurou desde muito cedo, depois de cumprir
um ano de idade, ajudar os adultos. Assim que eu me levanta­
va, ele abria o baú da roupa de cama e levava-me ao sofá, insis­
tindo para que eu recolhesse os lençóis e os cobertores. Quan­
do eu os dobrava, procurava ajudar-me. Eu dava-lhe uma almo­
fada pequena, ele abraçava-a com ambas as mãos e levava-a
para o baú, sem deixar de olhar para mim, e ao guardá-la dizia:
“Assim!” Ficava atento à ordem como se recolhia a roupa da
cama e, quando tudo ficava arrumado, fechava ele mesmo o
baú, com os olhos postos em mim, e articulava um “Assim!”
Pouco antes de completar os três anos e cerca de um mês
depois, Andrei ajudava prazerosamente os adultos nos diversos
afazeres do lar. Gostava de pôr a mesa e depois recolhê-la.
Quando levava um prato ou uma xícara, voltava incessante­
mente a cabeça e olhava para o adulto que o seguia. Isso dava
lugar a freqüentes percalços de todos os tipos. A sua conduta
220 Psicologia dojogo

produzia uma impressão de duplicidade: por uma parte, estava


ocupado em manipular o objeto; por outra, desejava ganhar o
elogio do adulto. •
Exemplos deste tipo podiam multiplicar-se.
Por que têm tanta importância? O processo dc aprendiza­
gem das ações com objetos, ou seja, com coisas que têm ccrta
importância social, estritamente determinada, transcorre na
criança somente na atividade conjunta com os adultos. Estes
vão transmitindo pouco a pouco ã criança o processo de execu­
ção do ato, que começa a realizar-se com autonomia. Durante a
atividade conjunta produz-se, além de uma interação “prática'’
entre o adulto e a criança, um trato pessoal, no qual a criança
busca o estímulo e o elogio do adulto. Toda açào de uma crian­
ça com um objeto, realizada sobretudo no transcurso da sua
formação, não só está orientada para obter um determinado
resultado material mas, além disso, o que nào é menos impor­
tante, para assegurar o seu êxito mediante as relações que
podem estabelecer-se entre o adulto e a criança durante a ação
ou no final desta. Ao realizá-la, a criança antecipa emocional­
mente as conseqüências sociais do seu cumprimento, ou seja,
da avaliação positiva ou negativa por parte do adulto.
Durante a formação das ações com os objetos, a criança
aprende primeiro o esquema geral de manipulação destes com
a sua designação social, e só depois se ajustam as operações
soltas à forma física do objeto e às condições de execução das
mesmas.
O modelo dc ação que os adultos oferecem à criança,
inclusive quando é parte da atividade comum com os adultos e
contém, por essa razão, como que toda a técnica da ação, nào
pode ser aprendido de chofre, dado que a criança ainda não
destaca a forma física dos objetos que determina toda a parte
operacional; o processo que realça e orienta essa forma é bas­
tante prolongado.
A criança toma do esquema de ação apenas o esquema
geral que está relacionado com a significação social do objeto.
Origem dojogo na ontogenia 221

A natureza da açào com os objetos, pelo menos no próprio


começo de sua formação em idade precoce, é ambivalente. Por
uma parte, contém o esquema geral relacionado com a signifi­
cação social do objeto e, por outra, o lado operacional que deve
ter presentes as propriedades físicas do objeto. Dessa ambiva­
lência da ação com os objetos e da divergência na aprendiza­
gem dessas duas partes (a designação da açào e seu esquema
geral aprendem-se antes; o lado operacional da ação, mais tar­
de e durante muito mais tempo) originam-se duas atividades
distintas. Uma é a utilitária prática, na qual, com a significação
dada ao objeto, são de superlativa importância as operações
executantes. A outra é o trabalho com os significados das coi­
sas, com os esquemas gerais de sua utilização aplicados a si­
tuações cada vez mais diversas. A atividade com os objetos,
tomados apenas quanto ao seu significado, é precisamente o
jogo objetivado das crianças de tenra idade. Por sua origem, é
um pequeno ramo desprendido do tronco geral da assimilação
infantil da atividade com os objetos, atividade que adquiriu sua
própria lógica de desenvolvimento.
Feitas essas observações, passemos a descrever e analisar
o desenvolvimento das ações com objetos entre as crianças de
tenra idade do ponto de vista do aparecimento das premissas
do jogo protagonizado. Com a particularidade de que iremos nos
apoiar na pesquisa de Frádkina (1946), dedicada especialmen­
te a esse problema. A diferença básica existente entre essa pes­
quisa e o exame da gênese do jogo proposto por Piaget reside,
sobretudo, em que se estuda o desenvolvimento das ações lúdi­
cas da criança com os objetos vinculado de forma indissolúvel
às suas inter-relações com os adultos. Frádkina realizou a sua
pesquisa com os dados de observações de crianças de um a três
anos educadas em regime de internato, e de observações do
desenvolvimento de sua própria filha1.
No começo da infância, sublinha Frádkina, as ações da
criança com objetos formam-se num trabalho comum com os
adultos que dela cuidam. A criança só atua por sua conta com
222 Psicologia do jogo

os objetos usados na atividade conjunta com o adulto, e só da


maneira como foram utilizados antes. Por exemplo, Tânia (1;
0; 20)* deita e dá dôcomer sempre e somente àqueles animais
que a educadora lhe apresentou. Para a criança nesse grau de
desenvolvimento ainda nâo tem importância que o brinquedo
se pareça ou não com um ou outro objeto, do qual é modelo ou
cópia o próprio brinquedo utilizado pelo adulto para jogar com
a criança.
Paulatinamente, vão-se ampliando as ações assimiladas na
atividade conjunta com os adultos, abrangendo uma série de
objetos diferentes. As fronteiras dessa transferência ampliam-
se ainda mais. Aparece uma série de ações com os objetos que
são reflexo de aspectos soltos da vida da criança e dos adultos
que a rodeiam. Assim, por exemplo, Volódia (1; 4), contra a
vontade da educadora, usa para escrever um palito de madeira,
como se fosse um lápis, vira de cabeça para baixo a cesta dos
brinquedos e “escreve’' no fundo plano da mesma.
Neste caso, deparamos com um modo novo de assimilar a
ação, com uma assimilação mediante a observação das ações dos
adultos. Essa forma de assimilação é insuficiente sob todos os as­
pectos; mas sua presença impulsiona intensamente as ações.
Nos casos em que as ações da criança começam a acumular
cada vez mais objetos diferentes, que freqüentemente não re­
cordam em absoluto os objetos em que surgiu a ação inicial,
tem-se a impressão de que se substitui um objeto por outro, tal
como fazem as crianças muito pequenas. Mas é só na aparência.
Não há nenhuma substituição de um objeto por outro. Por exem­
plo, uma criança coloca sobre a almofada todos os objetos que
encontra: um carretei, um telefone, um pino, uma peça de quebra-
cabeça, uma bola etc. Em princípio, a ação de deitar para dormir
era dedicada a uma boneca e a figuras de animais de borracha.
Não há nenhum fundamento para pensar que, ao deitar o carre-

* F.sta notaçào indica, respectivamente, anos, meses e dias de vida.


(N.doR.)
Origem dojogo na ontogenia 223

tel, a criança substitui a boneca por ele. As relações de seme­


lhança e de diferença entre a boneca e o carretel ainda não exis­
tem na mente da criança. Esta não “deita para dormir”, em abso­
luto; coloca simplesmente esses objetos sobre a almofada, o
mesmo que fez com outros objetos, realizando de passagem um
trabalho com a almofada, sobre a qual coloca os objetos, e não
um trabalho com eles.
Frádkina descreve que sua filha Irina (1; 4) punha sapatos
na bola. Poderia parecer que, nesse caso, a bola substitui a
boneca ou o ursinho de pelúcia, em que ela calçou os sapatos
em outras ocasiões. Uma análise detalhada mostra que aí teve
lugar uma ação com os sapatos novos, que agradam à menina,
e não uma ação lúdica com a bola. Assim que os sapatos vão
parar nas mãos da menina, esta começa a pô-los ao lado de
seus pés, metendo-os em seguida nas patas do ursinho e, por
último, na bola.
Em todos os casos similares, quando na atividade da
criança pequena manifesta-se uma substituição aparente de um
objeto por outro, é de extraordinária importância saber qual foi
o objeto da ação aprendida pela criança e quais as condições
para realizá-la. Nos exemplos aduzidos, o objeto manipulado
foi, num caso, a almofada, e no outro, os sapatos. Os demais
objetos desempenharam o papel de condições para realizar
com eles uma ação específica. De substituição de um objeto
por outro pode-se falar unicamente no caso de a bola apresen­
tar-se como objeto substitutivo da boneca, de se executarem
com ela ações relativas à boneca e de os sapatos servirem uni­
camente como condição para realizar o ato de calçar a bola. As
ações começam mais tarde.
Durante a evolução das ações com objetos observam-se
dois tipos de transferências. Em alguns casos, transferencia da
ação com o objeto, aprendida numas condições, para outras
condições. Por exemplo, a criança aprendeu a pentear com um
pente de verdade a própria cabeça, e passa em seguida a pen­
tear a boneca, o cavalo de papelão, o urso de pelúcia...
224 Psicologia dojogo

Em outros casos, faz-se o mesmo, mas com um objeto


substitutivo, por exemplo, pentear, não com um pente, mas com
uma régua de madeira, a boneca, o cavalinho, e pentear-se a si
mesma. No primeiro caso, o objeto manipulado era um pente;
no segundo, bonecas e cavalinhos. Num tipo de transferência
generalizam-se as ações; no outro separa-se o objeto do esque­
ma de atuação.
Um objeto substitui-se pela primeira vez por outro quando
há necessidade de completar a situação habitual da ação com o
objeto ausente no momento dado. Nas etapas primárias, essa
substituição faz-se com os próprios e pequenos punhos.
Assim, por exemplo, Lida (2; 1) dá de comer à boncca com um
púcaro, depois corre até ao piano e diz “camelo’' (caramelo) e
afasta-se correndo dali com os punhos à frente, aproxima um
da boca da boneca e diz “camelo”. As crianças nos jogos deste
período mencionam de maneira análoga a alimentação imagi­
nária. Por exemplo, Edia (2; 5) dá de comer à boneca num púca­
ro vazio, dizendo: “Isto é marmelada, come.” A menção de
estados imaginários da boneca (“ela está doente”), dc proprie­
dades dos objetos (“a sopa está quente”, “a marmelada está
boa”), não é outra coisa senão o primeiro indício de criação de
uma situação lúdica.
Simultaneamente, e, por vezes, um pouco depois, aparece
a utilização de alguns objetos como substitutivos de outros.
Na maioria dos casos, as crianças utilizam objetos desprovi­
dos de importância lúdica específica (palitos, seixos, peças de
quebra-cabeças), como adicionais dos brinquedos temáticos
(bonecas, figuras de animais) ou objetos de uso doméstico
(cadeiras, tachos, colheres). Nas observações de Frádkina, a
peça de quebra-cabeça, o pedacinho de madeira, o carretel, a
pedra, a chapa de metal, substituíam o sabão para lavar as bo­
necas; a pedra, o anel de osso e a ficha de loteria eram utiliza­
dos para dar dc comer; o pau, o fósforo, e a caneta, para medir a
temperatura da boneca; o grampo de cabelo, o pino de boliche,
Origem dojogo na ontogenia 225

o pau, o palito de fósforo, serviam para cortar o cabelo da bo­


neca etc.
Na denominação desses brinquedos substitutivos, comple­
mentares para os fundamentais, podem-se ver duas etapas:
(a) as crianças mencionam esses objetos só depois que os
adultos fizeram alguma coisa com eles;
(b) as crianças denominam os objetos depois de se ter feito
algo com algum deles.
Nesse período ainda nào há denominação dos objetos
substitutivos antes de incluí-los no jogo, antes de atuar com
eles. A criança nunca pôs a um objeto uma denominação lúdi­
ca, antes de ter realizado com ele a respectiva açào, sublinha
Frádkina.
A utilização de objetos como substitutivos na idade pré-
escolar apresenta algumas peculiaridades típicas. Cumpre
primeiro assinalar as exigências mínimas de semelhança do
objeto substitutivo com o representado. Um mesmo objeto
substitui, nos jogos de crianças pequenas, os objetos mais dís­
pares. Assim, de acordo com os dados de Frádkina, o palito
substitui no primeiro caso uma pipeta; no segundo, um termô­
metro; no terceiro, uma tesoura; no quarto, uma espátula; no
quinto, uma colher; no sexto, um pente; no sétimo, uma faca;
no oitavo, um lápis; no nono, uma seringa. O pino de boliche
tão depressa representa uma tesoura quanto uma colher, uma
garrafa ou um martelo. O palito de fósforo serve de termôme­
tro, de pente e de tesoura. Com a particularidade de que o obje­
to muda às vezes de significado lúdico no transcurso de um
mesmo jogo. O pau, momentos depois de se ter “penteado”
com ele e de ter sido denominado “pente”, serve para cortar o
cabelo e passa a chamar-se tesoura. O carretel tão depressa é
sabão como jarro, pente, caramelo ou maçã.
Por outro lado, para representar uma mesma coisa a crian­
ça utiliza objetos diferentes, em nada parecidos ou muito
pouco parecidos. O termômetro vê-se tão depressa representa­
do pela caneta como por um pedaço de pau; a tesoura ora é um
226 Psicologia dojogo

grampo de cabelo, ora um pino de boliche ou um palito de fós­


foro. Tudo o que puder servir para esfregar a boneca é utilizado
como sabão; tudo o que possa ser colocado sob a axila será
empregado como termômetro; o que possa ser agarrado e leva­
do à boca, emprega-se como alimento etc. Para a criança é
suficiente executar com o objeto substitutivo as ações que cos­
tumam ser feitas com os objetos autênticos. Ainda não é preci­
so que exista semelhança de cor, tamanho, forma e outras
características. O típico para utilizar os objetos substitutivos no
jogo é que os informes (ou seja, os objetos que careccm de uso
específico determinado, como os palitos, as lascas e as peças
de quebra-cabeças) se insiram no jogo como material comple­
mentar dos brinquedos temáticos (bonecas, figuras dc animais
etc.) e atuem como meios de execução de tal ou tal ato com os
brinquedos temáticos fundamentais. Assim, por exemplo, Lida
(2; 4) brinca durante muito tempo com uma boncca: primeiro,
faz-lhe um curativo, depois dança com ela etc. Ao ver um pali­
to de fósforo sobre a mesa, apanha-o, passa-o pela cabeça da
boneca e diz: “penteia nenê”, mostra o palito de fósforo à edu­
cadora e diz: “nenê chique” (cortar o cabelo da boneca), volta a
mostrar o palito e diz: “tesoura”, passando o palito pela cabeça
da boneca, como se lhe cortasse o cabelo.
Assim ocorrem, pois, os começos da açào lúdica. A sua
evolução ulterior depende de que apareça e se desenvolva o
papel que assumiria a criança, ao executar tal ou tal açào. Nos
jogos parecidos com o descrito dc Lida produz-se, na realida­
de, a execução de uma série de ações realizadas pelos adultos,
mas as crianças não se põem os nomes dos adultos cujas ações
executam realmente no jogo. Pôr-se a si mesma o nome de
outra pessoa está relacionado geneticamente com a autono-
meação com seu próprio nome. Volódia (2; 3) leva à boca do
cavalinho uma xícara de madeira e diz: “Volódia dá dc comer.”
Tânia (2; 1), ao despejar uma jarra numa outra, durante a ali­
mentação da boneca, diz: “Joga água, Tata.”
Origem dojogo na oniogenia 227

Esse denominar-se com o seu próprio nome é sintoma de


que a criança, além de realizar verdadeiramente uma determi­
nada ação, compreende ser ela , precisamente, quem a realiza.
Nos momentos mais variados da vida, as crianças come­
çam, a pedido da educadora, a chamar-se com os nomes dos
adultos cujas ações reproduzem. Assim, por exemplo, Tânia (2;
5) ajuda durante a refeição a dar de comer a crianças sem apeti­
te. A educadora diz-lhe: “Tânia, você é a tia Básia” (o nome de
outra educadora). Tânia repete: “Tânia é a tia Básia, a tia Básia”
e, apontando para si mesma, articula: “Sou a tia Básia." Lida (2;
3), durante a contemplação de umas grandes estampas que a
educadora segura em suas mãos, pede-lhe que lhas entregue. A
educadora entrega-as, dizendo: “Você será a tia Ânia ” Lida pro­
fere em seguida: “Lida é Ânia, Lida é Ânia ” Sente-se no lugar
da educadora e copia detidamente suas palavras e gestos.
Quando uma criança se atribui o nome de um adulto, nào
assume ainda o papel deste. O que então se observa é apenas
uma comparação dos seus atos com os do adulto e a busca de
semelhança entre eles, se é que a educadora indica haver. Ao
dizer “Tânia é a tia Básia”, a educadora sugere à criança que há
semelhança entre as ações de uma e de outra, e a menina capta
essa semelhança e atua como o adulto, repetindo “Tânia é a tia
Básia”.
Ao adjudicar-se um nome próprio e ressaltar as suas pró­
prias ações, por um lado, e ao encontrar semelhança entre seus
atos e os atos dos adultos, o que se manifesta pela adoçào de
um nome próprio sugerido, por outro lado, prepara-se o apareci­
mento do papel no jogo. Só no final dos primeiros anos da infân­
cia, entre os dois anos e meio e os três anos, surgem os primeiros
indícios de papel, que se expressam em duas séries de fatores.
Em primeiro lugar, põe-se à boneca o nome de uma persona­
gem. Com isso, a criança a destaca dos outros brinquedos co­
mo suplente de pessoa. Assim, Volódia (2; 6). quando deitou a
boneca perto de outra boneca, grande, na cama. onde a primei­
228 Psicologia dojogo

ra dorme, senta a segunda numa cadeira à beira da dormente e


diz, com um sorriso nos lábios, à educadora: “Esta é a babá.”
Em segundo lugar, a criança começa a falar em nome da
boneca. Por exemplo, Volódia (2; 11) coloca duas bonecas cara
a cara e fala com elas: “Bom dia, Kólia, já estou aqui." Nestas
manifestações vemos indícios da futura fala protagonizada,
que nào se articula em nome do personagem interpretado pela
criança, mas por intermédio do boneco.
Paralelamente ao desenvolvimento da situação lúdica e do
papel complica-se a estrutura das ações lúdicas. No começo,
são de um ato. A criança ou dá de comer, ou lava, ou penteia o
boneco.
Dc um modo geral, essas ações repetem-se muitas vezes
com um mesmo objeto, que pode ser um brinquedo, sem mudar
de conteúdo. Nessa fase, a criança pode realizar por vários mi­
nutos seguidos, e, às vezes, sem interrupções, um mesmo ato
estereotipado com o objeto. Na fase seguinte, o jogo consiste já
em duas ou várias ações elementares sem vinculação nenhuma.
Assim, por exemplo, Tânia (1; 5), ao ver nas mãos da educadora
uma boneca, estende as suas para ela. Quando a educadora lha
entrega, Tânia segura-a amparada no braço esquerdo, enquanto
com a mão direita lhe dá palmadinhas e entoa em voz baixa: “a-
a-a” (embala-a), depois toma-a nas màos e entoa “trá-lá-lá”, ro­
dopiando com ela (dança). Em seguida, imita o andar e aproxi-
ma-se com ela de uma caixa e, inclinando o rosto da boneca pa­
ra a caixa, dá estalidos com a língua (dá de comer), após o que
se aproxima do carrinho de bebê e deita a boneca nele. Apesar
de terem sido feitas sucessivamente, todas as ações acima enu­
meradas não formam uma concatenaçào lógica transcorrida
num só ato complexo. O típico dessas ações é justamente cons­
tituírem uma série de ações soltas sem relação alguma entre si.
Não há nenhuma lógica em seu acontecer: primeiro a menina
embala, depois caminha, logo dá de comer à boneca e, por últi­
mo, leva-a a passear no carrinho.
Origem dojogo na ontogenia 229

Frádkina assinala que as crianças dessa idade fazem várias


coisas distintas, fundamentalmente com brinquedos temáticos
(bonecos ou figuras de animais), já que foi precisamente com
esses brinquedos que a criança executou várias ações em dife­
rentes momentos e agora, ao jogar com um brinquedo assim,
reproduz todas as ações aprendidas antes, independentemente
da conexão lógica que conservem.
Em oposição aos brinquedos temáticos, os destinados a
uma função determinada (com a xícara se bebe, com a bacia se
lava, com a colher se come) impelem a criança a executar a ação
concreta. Nos casos em que a criança, ao brincar com um obje­
to, apanha outro, executa também uma ação nova e, desse mo­
do, o jogo já consta de duas ações ligadas. Assim, por exemplo,
Tânia bebe de uma xícara vazia; depois dá de beber à educado­
ra. que está sentada ao seu lado, à boneca, a Volódia e a Lena.
Ao ver um jarro de água nas mãos de Lena, volta-se para ela e
diz: “bote chá”, inclina o jarro para a xícara, retorna ao lado da
boneca e dá-lhe de beber, dizendo: “bebe”.
Conforme a criança vai conhecendo as novas funções do
objeto, também as suas funções lúdicas se complicam. A crian­
ça executa com um mesmo objeto três ações, e não uma nem
duas: dá de beber à boneca com a pequena xícara, em seguida
despeja sobre a cabeça dela o conteúdo da mesma xícara, como
se a borrifasse. O típico desta etapa dos jogos é que lhes falta
ainda essa continuidade lógica que se registra na vida, assim
como o fato de que também podem repetir-se várias vezes. Por
exemplo, Olga (2; 3) toma a temperatura da boneca: coloca-lhe
um palito sob a axila, retira-o, olha e diz: “está com febre”; de­
pois, volta a pôr, a retirar e a olhar de novo a temperatura, já sabi­
da. Em outros casos, as crianças, depois de dar banho e secar a
boneca, começam a banhá-la de novo, e assim sucessivamente.
Somente com o fim do primeiro período da infancia, entre
os dois e três anos, começam a aparecer jogos que constituem
uma concatenação vital dc ações. Por via de regra, no centro
dessas ações está a boneca, suplente da pessoa. Volódia (2; 11)
230 Psicologia do jogo

coloca a boneca numa gaveta que faz de banheira, dá-lhe


banho, toma-a nos braços e fala assim: “Kátia tomou banho,
agora vai dormir”; e deita-a em seguida na caminha. Aqui, ao
ato de dar banho segue-se o de pôr na cama, com a mesma con­
tinuidade com que essas ações se realizam na vida. A lógica
das ações lúdicas começa a refletir a lógica da vida da pessoa.
Assim, poderíamos caracterizar o desenvolvimento da
estrutura da açào lúdica na primeira infância, tal como foi feito
por Frádkina, como o trânsito da ação univocamente determi­
nada pelo objeto, passando pela utilização variada deste, para
as ações ligadas entre si por uma lógica que reflete a lógica das
ações reais na vida das pessoas. Isso já é “o papel em ação”.
Claro que durante o desenvolvimento do jogo lúdico a
criança não aprende a manejar melhor os objetos, o pente, a
colher, a calçar os sapatos etc. A aprendizagem dessas habili­
dades transcorre durante o uso desses objetos e na atividade
prática. Há fundamento para supor que nas ações lúdicas a
criança não aprende a conhecer as novas propriedades físicas
dos objetos. Conhecem-se os objetos do mundo exterior e as
noções a respeito deles formam-se com uma atividade orienta­
dora e de busca especialmente produtiva ou cognoscitiva. No
tocante ao jogo temático, a criança aprende nele, principal­
mente, o significado dos objetos, a orientar-se quanto à sua
função social e a utilizá-los com proveito social.
Assim, no final do primeiro período da infância, prepa­
ram-se as premissas fundamentais para a transição para o jogo
protagonizado:
• inserem-se no jogo objetos substitutivos de objetos reais
que recebem um nome adequado à sua significação lúdica;
• complica-se a organização das ações, a qual adquire o
caráter de concatenaçào reflexiva da lógica das conexões vitais;
• produz-se uma síntese das ações e sua separação dos
objetos;
• aparece a comparação de suas ações com as ações dos
adultos e, de acordo com isso, a criança atribui-se o nome de
um adulto;
Origem do jogo na ontogenia 23/

• opera-se a emancipação a respeito do adulto, apresentan­


do-se este à criança como modelo de ação e, simultaneamente,
surge a tendência para atuar com independência, mas como
adulto.
Como foi evidenciado pela investigação de Frádkina,
todas as premissas fundamentais do jogo se apresentam duran­
te o desenvolvimento da atividade da criança com os objetos
sob os auspícios de adultos e em atividade conjunta com estes.
A criança reproduz as ações com os objetos, primeiro,
somente com aqueles que lhe serviram para formá-las com a
ajuda de adultos;
• transfere essas ações para outros objetos, oferecidos no
começo por adultos;
• põe nos objetos os nomes de outros substitutivos somen­
te depois de os ter manejado e de os adultos lhes terem dado
denominações lúdicas;
• adjudica-se o nome das pessoas cujas ações reproduz por
proposta dos adultos que a cducam.
Esses dados foram confirmados em pesquisas especiais de
experimentação psicopedagógica. Tudo isso mostra de manei­
ra persuasiva que o jogo aparece com a ajuda dos adultos e nào
de maneira espontânea.
Capítulo 5
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar

1. Caracterização múltipla do desenvolvimento do jogo


Tendo surgido no transcurso da primeira infância e na
idade pré-escolar, o jogo protagonizado desenvolve-se intensa­
mente e alcança o nível máximo na segunda metade da idade
pré-escolar. O estudo do desenvolvimento do jogo protagoni­
zado é interessante em dois sentidos: primeiro, porque assim se
descobre com maior profundidade a essência do jogo; segun­
do, porque, ao descobrir a conexão mútua dos diferentes com­
ponentes estruturais do jogo em seu desenvolvimento, pode-se
facilitar a direção pedagógica e a formação dessa importantís­
sima atividade da criança.
A pedagogia pré-escolar soviética acumulou grande expe­
riência de organização e direção dos jogos infantis de todos os
grupos de idade pré-escolar. O resultado das observações de
pesquisas pedagógicas especiais e do estudo da experiência de
direção levados a efeito durante muitos anos foi um acúmulo
de dados sobre jogos especiais das crianças de distintos grupos
etários. Essas peculiaridades têm caráter múltiplo e podem ser­
vir de pontos de partida e referência na investigação do desen­
volvimento do jogo protagonizado. Não exporemos nem anali­
saremos detidamente os dados das observações pedagógicas.
Psicologia dojogo

Apresentaremos apenas vários exemplos da síntese desses dados.


Assim, Arkin, que trabalhou muito e com bons resultados nos
campos da pedagogia, fisiologia e higiene da idade pré-escolar e
dedicou suma atenção ao estudo do jogo, ao qual atribuía grande
importância, caracteriza o desenvolvimento dos jogos protagoni­
zados da seguinte maneira: “Durante a idade pré-escolar produz-
se uma evolução dos grupos pouco numerosos e instáveis para
outros mais numerosos e estáveis. A própria estrutura dos jogos
sofre também grandes mudanças: vai dos jogos sem enredo, com­
postos por uma série de episódios freqüentemente desconexos,
sem ligação entre si, até converterem-se, entre as crianças de três
ou quatro anos, em jogos com um argumento determinado, o qual
vai se complicando e desenvolvendo de maneira cada vez mais
metódica. Muda a própria temática dos jogos que. entre as crian­
ças pequenas (três a quatro anos), extrai seu conteúdo na forma de
breves episódios fragmentários da vida pessoal ou do seu meio
imediato, ao passo que nos jogos dos gmpos de mais idade vemos
com freqüência um reflexo dc um relato lido, de estampas que
lhes foram mostradas ou de acontecimentos de transcendência so-
ciopolítica” (1948, pp. 256-257).
Essa caracterização breve e sintética, apoiada em copiosos
dados reunidos pelo autor e seus colaboradores, contém uma indi­
cação para cinco trajetórias fundamentais de desenvolvimento dos
jogos: (a) de pequenos grupos pouco numerosos para outros cada
vez mais numerosos; (b) dos grupos instáveis para outros cada vez
mais estáveis; (c) dos jogos sem enredo para os jogos com argu­
mento; (d) da série de episódios soltos para o argumento que se
desenvolve metodicamente; (e) do reflexo da vida pessoal e do
meio imediato para os acontecimentos da vida social.
Embora essa caracterização seja muito genérica, contém
uma descrição fundamental mente correta do desenvolvimento.
Mas é só uma descrição, inclusive sem indicação das ligações
existentes entre as diversas linhas ou sintomas de desenvolvi­
mento. Com efeito, de que dependem a exigüidade e a instabi­
lidade dos grupos de crianças pequenas, assim como a desco­
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 235

nexão dos episódios soltos do jogo? Nào será a exigüidade dos


grupos o resultado direto do reflexo da vida pessoal e do meio
imediato nos jogos? Pois os pequenos grupos reais e fundamentais
dessa vida pessoal e desse meio imediato sào pouco numerosos: o
pai, a màe, o filho e os outros membros da família.
É possível que nào se trate, em geral, do número de inte­
grantes do grupo? Num grupo de duas pessoas, o jogo pode
alcançar um alto grau de desenvolvimento e num grupo mais
numeroso encontrar-se em nível inferior. Há pleno fundamento
para supor que no jogo entre dois, existindo protagonizações
reconstitutivas de um sistema determinado de relações sociais,
já se processa uma mudança qualitativa durante a evolução do
jogo, e o sucessivo aumento do número dos que jogam juntos
não se reveste de especial importância.
Assim, pois, a caracterização do jogo proposta por Arkin
pode chamar-se descrição sintomática. Claro que tal descrição
nào pode satisfazer nem oferece indicações especiais para diri­
gir o jogo.
Rudik (1947) menciona, além das peculiaridades enumera­
das do desenvolvimento, vários novos indícios. São eles: (1) a mu­
dança do caráter dos conflitos dos mais velhos em comparação
com os pequenos; (2) a passagem do jogo em que cada criança age
à sua maneira para outro, no qual as ações das crianças estão coor­
denadas c a interação dessas ações apresenta-se organizada segun­
do os papéis assumidos pelas crianças; (3) a mudança do caráter
do aliciante do jogo que, nos primeiros anos da infancia, surge sob
o impacto dos brinquedos, e mais tarde, sob o impacto da idéia, in­
dependentemente dos brinquedos: (4) a mudança de caráter do
papel que no início é sintético e, depois, vai adquirindo um núme­
ro cada vez maior de traços individuais c tipificando-se.
Rudik também indica uma série de peculiaridades psico­
lógicas do jogo, deixando a descoberto, por assim dizer, um
segundo estrato, mais profundo, do desenvolvimento.
A esse respeito, destacaremos o que Rudik diz sobre o
desenvolvimento dos motivos do jogo, que, na primeira infan­
cia, sào correlativos, no entender desse autor; o sentido que esses
236 Psicologia dojogo

jogos, de conteúdo simples, têm para as crianças está justamente


no próprio processo da ação, e não no resultado a que essa ação
deve levar. Na idade pré-escolar média, os papéis revestem-se de
primordial importância nesses jogos, e o interesse das crianças
apóia-se na interpretação de tal ou tal papel; às crianças mais
velhas nào interessa simplesmente este ou aquele papel, mas
também a perfeição com que está representado e aumenta a
exigência de interpretá-lo com veracidade e força de convicção.
Essas peculiaridades são, no entender do autor, essenciais e de­
terminam todas as demais. Nas descrições de Rudik há uma
tentativa de ligar o aparecimento das novas características com o
desenvolvimento dos motivos e, em particular, com o trânsito do
caráter de processo para o caráter temático, para a protagoniza-
çào; mas esse nexo nào está explicado de maneira nenhuma.
Mendzerístskaia (1946) amplia a enumeração das peculia­
ridades do jogo infantil, assinalando várias novas: primeiro, o
desenvolvimento do emprego pelas crianças de diversos obje­
tos no jogo que, na substituição do objeto real por um brinque­
do, vai da mais remota semelhança a uma exigência a cada dia
maior de parecença; segundo, a atenuação, com a idade, das
contradições entre a invenção do argumento e a possibilidade
de sua representação; terceiro, o desenvolvimento do tema, que
vai da representação do aspecto exterior dos fenômenos à trans­
missão do seu sentido; quarto, o aparecimento, nas crianças
mais velhas, dc um plano que, embora seja esquemático e ine­
xato, oferece uma perspectiva e uma ação especificadora de
cada participante no jogo; quinto, a acentuação e, simultanea­
mente, a mudança de papel dos organizadores do jogo à medi­
da que a criança cresce.
A observação de maior substância nesta enumeração é o
caráter do desenvolvimento do argumento, quer dizer, do con­
teúdo dojogo.
Ainda falta determo-nos nas investigações de Usova, que
realizou um imenso trabalho analítico dos jogos criativos de
protagonização.
O desenvolvimento dojogo na idade prè-escolar 237

Resumindo suas pesquisas, Usova escreve: “Como resul­


tado de nossos estudos, podemos fazer a seguinte constatação:
a temática, como traço típico dos jogos criativos, quer dizer,
imaginados pelas próprias crianças, já é inerente aos jogos in­
fantis do grupo menor do jardim-de-intancia na idade de três
anos e dois a quatro meses. Esses temas são fragmentários, iló­
gicos e instáveis. Com mais idade, o argumento do jogo é um
desenvolvimento lógico de um tema qualquer em imagens, ações
e atitudes: é provável que o surgimento da temática nos jogos
ocorra na idade pré-escolar.
O desenvolvimento do tema vai da execução das ações lú­
dicas aos modelos de papéis em que a criança utiliza numero­
sos meios representativos: a fala, a açào, a mímica, o gesto ou
os trejeitos, e a respectiva atitude em face do papel” (1947, pp.
35-36).
“A atividade da criança no jogo tende a representar diver­
sas ações (nadar, lavar a roupa, cozinhar etc.). Representa-se a
própria ação. Assim começam os jogos-açõcs. A atividade das
crianças adquire caráter construtivo: aparecem os jogos de
alvenaria c construção, nos quais tampouco costuma haver
papéis. Por último, destacam-se os jogos protagonizados, nos
quais a criança produz uma ou outra imagem. Esses jogos têm
dois rumos visíveis: jogos de encenação, quando a criança diri­
ge o brinquedo (ou seja, ela atua por intermédio do brinquedo)
e jogos em que o papel é interpretado pessoalmente pela pró­
pria criança (faz de mamãe, de aviador etc.)” (1947, p. 36).
O desenvolvimento do argumento depende de várias cir­
cunstâncias. A primeira é a afinidade do tema lúdico com a
experiência da criança. A falta de experiência e das noções daí
decorrentes constitui um obstáculo para que se desenvolva o
tema do jogo.
Observou-se que as crianças do grupo menor de um jar-
dim-de-infancia atuam, nos jogos, com noções e atitudes refe­
rentes à vida cotidiana; as com mais idade recorrem com mais
agrado aos eventos sociais e também desenvolvem alguns temas
literários.
238 Psicologia dojogo

Usova assinala que o desenvolvimento do argumento é


determinado também pelo grau de concordância dos papéis no
jogo. Essa concordância necessita em todo o jogo de um tema
determinado. Quanto melhor as crianças começam a entender
as outras concretamente, quanto melhor começam a entender-se
as motivações do comportamento de cada uma das que jogam,
com tanto maior concordância transcorrerá o jogo.
Observa-se uma mudança gradual do papel do material (e
dos brinquedos) nos jogos. Entre as crianças de três e quatro
anos, o material dirige em considerável grau o tema do jogo.
Mais tarde, as crianças atribuem ao material as propriedades
que desejam.
“As crianças mais velhas buscam no material e nos brin­
quedos correspondência entre o desejado e a realidade. O que
caracteriza as novas etapas do desenvolvimento do jogo é a mu­
dança operada nas exigências que a criança apresenta ao mate­
rial lúdico. As crianças com mais idade agrada muito mais jo­
garem elas próprias em substituição de um brinquedo (jogos
protagonizados) do que com um brinquedo como tal, e prescin­
dem facilmente dos brinquedos...” (1947, pp. 36-37).
Ao examinar algumas questões da direção dos jogos infan­
tis, Usova assinala uma série de peculiaridades do desenvolvi­
mento dos jogos, das quais se deve partir para organizá-los.
Diz a autora que “os jogos das crianças já apresentam aos
três anos de idade um caráter temático e desenvolvem-se com
intensidade nessa direção até os sete anos”; estabelece ela que
“os princípios motores determinantes do jogo... baseiam-se na
aprendizagem gradual do papel que a criança desempenha nu­
ma coletividade infantil”. “O tema do jogo e seus papéis deter­
minam a atitude das crianças em face do jogo... A medida que
se aproximam dos seis ou sete anos, vão se formando novos
elementos no jogo. No começo, o jogo consta de ações domés­
ticas executadas por crianças: cozinhar, lavar, carregar de um la­
do para o outro (três a quatro). Aparecem depois as significações
histriónicas relacionadas com estas ou aquelas ações: eu sou a
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 239

mamãe, eu sou a cozinheira, eu sou o motorista. Ao lado das


ações protagonizadas, aparecem nessas significações as rela­
ções entre os personagens e, por último, o jogo culmina com o
aparecimento do papel, com a particularidade de que a criança
o interpreta num plano duplo: pelo brinquedo e por si mes­
ma... A experiência dos jogos demonstra como neles vão sur­
gindo as perspectivas e os planos no lugar das ações casuais e
informes... O agrupamento das crianças nos jogos e o de­
senvolvimento dos vínculos sociais entre elas são totalmente
determinados pelo próprio desenvolvimento do jogo” (ibid.,
pp. 38-39).
Usova descobre acertadamente a presença de argumento
já nos jogos das crianças mais novas e data o surgimento dos
jogos temáticos da idade pré-escolar. Parece-nos importante a
tentativa de Usova de compreender as transições recíprocas de
uma fase do jogo a outra. A autora já vê nos jogos das crianças
pequenas elementos conducentes à evolução consecutiva do
jogo: nas ações lúdicas, elementos de protagonização; e nas
ações histriónicas, o futuro papel.
Embora Usova nào se detenha em pormenores da relação
existente entre peculiaridades soltas do jogo infantil e o desen­
volvimento do argumento, a exposição completa dos dados evi­
dencia que, em definitivo, a autora acredita dependerem essas
peculiaridades do desenvolvimento do tema, da essência de
todo o jogo protagonizado.
Nos 30 anos transcorridos desde que se publicaram esses
trabalhos, levou-se a efeito uma grande quantidade de investi­
gações pedagógicas do jogo infantil das mais variadas modali­
dades, principalmente orientadas para o esclarecimento das
possibilidades de utilização do jogo com fins educativos. Estu­
dou-se a importância do jogo para desenvolver a independên­
cia, a comunicabilidade e o coletivismo das crianças, para
impulsionar a sua assimilação das normas morais, para enri­
quecer suas noções acerca da vida circundante etc. Tem havido
poucas pesquisas acerca do curso geral do jogo. Nesse sen­
240 Psicologia do jogo

tido, o trabalho mais acabado ainda é, apesar de tudo, o de Uso­


va, que pode ser considerado, além de acabado, perfeito.
Apesar do copioso número de dados fatuais reunidos pelos
pedagogos soviéticos dedicados à pesquisa do jogo protagoni­
zado nos diferentes níveis do seu desenvolvimento, a evolução
do jogo durante a idade pré-escolar não foi estudada até o fim
nem de maneira sistemática. Já mencionamos o defeito funda­
mental dessas pesquisas. É a preponderância da descrição se­
miótica. Tal descrição do quadro puramente exterior do pro­
cesso lúdico, inclusive com o estudo comparativo dos diversos
grupos de idades, mostra, no melhor dos casos, a existência ou
a ausência de tais ou tais indícios, o enfraquecimento ou o re­
forço de sua manifestação (o aumento do número de crianças
nos grupos de jogo, a duração desses grupos, sua composição
quantitativa e a duração do processo lúdico com diversos brin­
quedos, a presença ou ausência de papéis e o grau de sua expres­
são etc.). Nesse nível, com o método da simples observação
registradora passiva do fato, realizaram-se também várias pes­
quisas psicológicas. Um exemplo dessas pesquisas são os estu­
dos já mencionados dos colaboradores de Básov.
Ainda em vida de Vigotski ficou claro que era necessário
passar ao estudo experimental do jogo. A experimentação do
jogo, em sua totalidade, e dos seus elementos estruturais, em
separado, é muito complexa. Requer intervenção ativa no an­
damento do jogo e, com tal intervenção, o jogo destrói-se com
facilidade.
Do nosso ponto de vista, a pesquisa experimental do jogo
só é possível no processo de formação prolongada da atividade
lúdica de uma mesma coletividade infantil com o objetivo es­
pecial de dirigir dessa maneira o seu desenvolvimento, cuja ta­
refa fundamental consistiria em esclarecer as possibilidades e
condições de transição de um nível de atuação no jogo para
outro. Tal estratégia de formação de um processo qualquer ate
o nível dado de antemão emprega-se muito nos trabalhos de nu­
merosos psicólogos pertencentes à escola de Vigotski. Essa estra­
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 241

tégia, que recebeu a denominação de método genético-experi-


mental, distingue-se basicamente do experimento simples, o qual
inclui a formação ativa do trânsito do processo ou da atividade
de níveis mais baixos para níveis cada vez mais altos. Tal estra­
tégia é de singular importância para pesquisar os processos do
desenvolvimento, já que permite criar um modelo experimen­
tal próprio. Também serviu na pesquisa do desenvolvimento de
vários processos psíquicos (a percepção, a memória), no estudo
da transição de formas de pensamento elementares para outras
mais elevadas, da formação de conceitos científicos etc. Exem­
plos dessas pesquisas ocorrcm nos trabalhos de Galperin, Da-
vido, Zaporozhets e em diversos trabalhos nossos.
Entretanto, essa estratégia apenas está começando a ser apli­
cada à pesquisa do jogo. Quando iniciamos nossas pesquisas
experimentais do jogo, este só era estudado, de um modo geral,
associado à pesquisa de diversos processos psíquicos, nos tra­
balhos de Vigotski e Leóntiev.
As primeiras tentativas de utilização de tal estratégia apli­
cada ao problema da transição do jogo temático para o propria­
mente protagonizado, tanto em crianças normais (Mikhailenko)
como em surdas-mudas (Vigotskaia) e retardadas mentais (So­
kolova), serão expostas a seguir.
O conteúdo das pesquisas que serão expostas neste capítu­
lo destina-se a estudar componentes estruturais soltas do jogo
protagonizado. Algumas dessas pesquisas têm o caráter de es­
tudos experimentais originais.

2. O papel e a situação imaginária: sua importância


na motivação da atividade lúdica
O problema das motivações da atividade lúdica é um dos
centrais. Não é casual que as discrepâncias fundamentais nas
opiniões sobre o jogo se concentrem em torno dos motivos in­
dutores do jogo. As teorias do prazer, da satisfação, dos impul­
sos primários internos e da auto-afirmação, todas as “teorias
242 Psicologia dojogo

profundas” sào, em sua essência, teorias das forças motoras


que dào origem ao jogo. O defeito fundamental dessas concep­
ções teóricas reside, na maneira de conceituar-se nelas os moti­
vos que induzem ao jogo: segundo essas concepções, baseiam-
se no sujeito, na criança e suas emoções. Nessas teorias, deixa-
se de lado o fato de que essas emoções sào apenas os sintomas
secundários que acompanham a atividade e dão testemunho de
como ela transcorre, mas em nada evidenciadoras dos verdadei­
ros motivos objetivos da atividade. Em relação ao desenvolvimen­
to da criança, chegou-se até a adotar o ponto de vista de que quan­
to menos anos tem a criança, tanto mais o seu comportamento
é determinado pelos impulsos e necessidades biológicas inter­
nos c, em definitivo, congênitos. Na realidade, parece-nos que
a coisa se apresenta de maneira completamente diferente. Di­
remos entre parênteses que o caráter compulsivo da novidade,
descoberto nas pesquisas de Figurin e Denisova (1929), e o dos
objetos, descoberto nas pesquisas de Lewin, não foram sufi­
cientemente apreciados ao discutir-se o problema dos motivos
subjacentes na atividade da criança pequena. Não é tarefa
nossa resolver agora o problema das motivações da atividade
do homem. A nossa missão é focalizar a análise dos motivos
dojogo.
Uma das primeiras pesquisas em que se procurou abordar
por via experimental a solução desse problema é a de Slávina
(1948). Ela começou a sua pesquisa observando os jogos si­
milares de crianças de diferentes faixas etárias. Apesar da iden­
tidade do argumento, o caráter desses jogos é essencialmente
distinto nas crianças dos diferentes grupos de idade. Efetua­
ram-se observações de jogo elementar com argumento domés­
tico: em “família” ou no “jardim-de-infancia”, num quarto ex­
perimental separado, no qual havia brinquedos especialmente
selecionados: bonecas, móveis, baixela de mesa e de chá, um
fogão com utensílios de cozinha, também vários baldes e tra­
vessas de tamanho maior ao de toda a baixela e grande número
de peças de quebra-cabeça e pastilhas de cerâmica ou madeira
O desenvolvimento dojogo na idade prè-escolar 243

que cabiam naqueles baldes e travessas. As crianças foram obser­


vadas simultaneamente durante várias sessões de uma hora a uma
hora e meia cada.
Detenhamo-nos brevemente nos aspectos típicos do jogo
das crianças mais velhas, tal como se anotaram nessas obser­
vações.
As crianças costumam pôr-se de acordo no tocante aos pa­
péis, e em seguida desenvolvem o argumento do jogo em obe­
diência a um plano determinado, reconstituindo a lógica objetiva
dos acontecimentos numa ordem determinada e bastante rigoro­
sa. Cada ação realizada pela criança tem sua continuação lógica
em outra ação que substitui a primeira. As coisas, os brinquedos
e o ambiente recebem significados lúdicos concretos que se con­
servam durante todo o jogo. As criançasjogam juntas e as ações
de uma criança estão ligadas às das outras.
A representação do argumento e do papel enche o jogo. O
importante para as crianças é o cumprimento dos requisitos do
papel c subordinam a estes todas as suas ações lúdicas.
Surgem regras internas nào escritas, mas obrigatórias para
os que jogam, provenientes do papel e da situação lúdica.
Quanto mais desenvolvido está o jogo, tanto maior é o número
de regras internas e os aspectos lúdicos multiplicam-se e am­
pliam-se cada vez mais, envolvendo as inter-relações histrióni­
cas das crianças, os sentidos atribuídos aos brinquedos e a con­
tinuidade do desenvolvimento do argumento.
No jogo, as ações realizadas pelas crianças sujeitam-se ao
argumento e ao papel. A sua execução não é um fim em si;
possuem sempre um sentido auxiliar e limitam-se a representar
o papel com caráter sintético, abreviado e íntegro; quanto mais
velhas forem as crianças, tanto menores e mais convencionais
são essas ações.
O jogo das crianças pequenas, de argumento análogo e
realizado com os mesmos objetos e na mesma situação, apre­
senta um caráter completamente distinto. Tendo começado por
Psicologia do jogo

examinar os brinquedos e escolhido os que mais lhes agradam,


os pequeninos passam a manipulá-los individualmente, repe­
tindo uma e outra vez ações monótonas, sem mostrar nenhum
interesse pelos brinquedos nem pelo jogo de outra criança.
Apresentemos uma das anotações contidas na investiga­
ção de Slávina. No quarto experimental estão duas meninas,
Luisa e Olga, ambas de quatro anos.
“Luísa colocou os móveis e sentou as bonecas à mesa; em
seguida, vai até onde estão as peças de quebra-cabeça e retira-as
de um halde grande de brinquedo para metê-las em outro. Faz isso
até que acaba o jogo. Nesse meio tempo, Olga fica de costas para
Luísa, distribui em pratos as peças do quebra-cabeça. Os pratos
estão empilhados. Toma uma peça do balde que tem à sua frente,
coloca-a num prato, retira o prato da pilha e deixa-o em cima da
cadeira que está ao seu lado. Pega a peça seguinte e coloca-a em
outro prato, e assim sucessivamente, até espalhar desse modo
mais de 40 pratos, cada um com sua peça de quebra-cabeça. Pas­
sa depois a recolher por ordem, com a mesma metodicidade, as
peças de cada praio e a pô-las no balde, após o que volta a empi­
lhar os pratos. Quando termina, recomeça tudo de novo. Esse
jogo prolonga-se por 1 hora e 20 minutos. Tanto uma menina
quanto a outra não se dirigem a palavra nem uma única vez
enquanto dura o jogo, nem prestam a menor atenção às bonecas.
À pergunta da experimentadora: - De que é que estão brincando?
- Luísa responde, nào obstante: - De jardim-de-infancia.
Exper.: Você é quem?
Luísa: - Sou a diretora.
Exper.: - E você?
Olga: - Eu também.
Exper.: O que você está fazendo?
Luísa: - Estou preparando a comida.
Exper.: - E você, Olga, o que está fazendo?
Olga: - Estou distribuindo o mingau.” (1948, pp. 17-18.)
Slávina insiste em que, apesar desse caráter das ações, as
crianças dizem estar representando algum acontecimento deter­
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 245

minado e interpretando papéis concretos. Mencionam um cer­


to argumento e certos papéis, mas todo o conteúdo real dos jo­
gos consta apenas de uma série de ações com brinquedos a que,
entretanto, se atribui determinado sentido. Ralam cenouras, la­
vam a louça e cortam pão. As peculiaridades típicas das ações
são, primeiro, que não estão inseridas num sistema: por exem­
plo, se uma menina corta pão ou reparte comida, essa ação não
se propõe para as bonecas, quer dizer, não é utilizada para au­
mentar o argumento; segundo, as ações executam-se com brin­
quedos, ou seja, com objetos que significam convencional­
mente objetos de verdade (uma peça de quebra-cabeça faz de
cenoura e apresenta um caráter desenvolvido e duradouro).
Assim, os jogos das crianças muito pequenas têm implícita
uma certa contradição. No que se refere ao conteúdo real, é, por
um lado, uma ação simples e reiterativa com objetos; por outro,
parece haver no jogo protagonização e uma situação imaginária
que não influi nas ações realizadas pela criança nem chega a ser
o conteúdo fundamental que vemos nas crianças mais velhas. É
natural que o pesquisador pergunte que função desempenham
em tal jogo o papel e a situação lúdica.
Para obter uma resposta, Slávina realizou a primeira série
de experimentos. Decidiu fazer a tentativa de retirar do jogo
todos os brinquedos que pudessem sugerir às crianças deter­
minados temas e papéis relacionados com eles. Foram sele­
cionadas as crianças cujos jogos tinham por conteúdo as ações
descritas e que falavam, não obstante, do protagonismo e do
argumento lúdicos. Quando o jogo já estava desenvolvido, su-
primiam-se todos os brinquedos temáticos (bonecas, o fogão
da cozinha, a baixela etc.) e deixavam-se apenas os utilizados,
em realidade, para executar as ações. Eram peças de quebra-
cabeça e fichas muito numerosas e, ou dois pequenos baldes e
três pratos grandes ou então, para outras crianças, de seis a
oito pratos pequenos.
Como os resultados obtidos são muito instrutivos, transcre­
vemos o relato completo de um desses experimentos.
246 Psicologia do jogo

“ Lida (4; 1). No início do experimento deixam-se à dispo­


sição da menina todos os brinquedos. Sem prestar atenção aos
outros brinquedos,* Lida começa logo por retirar do balde as
peças de quebra-cabeça e a colocá-las num prato grande.
Exper.: - Quem é você?
Lida : - Eu sou a tia Nadejda.
Exper.: - O que está fazendo?
Lida : - Preparando a comida. (Brinca assim durante 20
minutos.)
Exper.: - As bonecas estão quebradas, o sofá delas tam­
bém, é preciso consertar tudo. (Leva para outro quarto todos
os brinquedos, menos o balde pequeno, as peças do quebra-
cabeça e os pratos grandes com os quais a menina está real­
mente ocupada. Lida continua brincando como antes.)
Exper. : - Está brincando de quê?
Lida: - De jardim-de-infancia.
Exper.: - E o que você está fazendo?
Lida : - Preparando a comida.
Exper.: - Para quem?
Lida: - Para as bonecas.
Exper.: - Mas se as bonecas já nào estão aqui!
Lida: - Estão, estão nesse quarto.
Exper.: - Nào estào, quebraram e é preciso consertá-las;
agora você não tem para quem preparar a comida. Não cozi­
nhe mais, não há quem coma. Agora você nào pode brincar de
jardim-de-infància. Olhe, não há bonecas; também nào há mó­
veis nem louças. Brinque simplesmente com as peças de que­
bra-cabeça. (Lida continua recolhendo as peças dos pratos pe­
quenos, metendo-as no balde e volta a retirá-las para as repor
nos pratinhos .)
Passados alguns minutos, a experimentadora volta a per­
guntar: - De que você está brincando?
Lida: - De jardim-de-infancia.
Exper.: - E o que está fazendo?
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 247

Lida : - Preparando a comida.


Exper.: - Para quem?
Lida : - Para as crianças (aponta para a janela). Elas estào
passeando.
Exper.\ - Vào passear por muito tempo. Seria melhor brincar
simplesmente com as peças de quebra-cabeça, e não de jardim-de-
infancia. Não vê que não tem para quem preparar a comida? As
crianças estào passeando, as bonecas quebraram e não há nenhum
brinquedo. (Lida continua brincando como antes.)
Momentos depois, à pergunta da experimentadora: - Do
que você está brincando? - Lida volta a responder: - De jar-
dim-de-infancia.
Exper.\ - E o que está fazendo?
Lida: - Preparando a comida.
Exper.: - Para quem?
Lida: - Vou comê-la eu mesma.” (1948, p. 20.)
Resultados análogos foram obtidos com quase todas as
crianças. Todas as tentativas da experimentadora para fazer
com que a menina abandonasse o seu papel e renunciasse ao
tema do jogo fracassaram. As crianças obstinavam-se tenaz­
mente num papel e num tema qualquer e, por vezes, acediam a
substituir o papel de educadora pelo de cozinheira ou pela con­
fecção de almôndegas mediante a distribuição de chocolates.
Ao resumir esta série de experimentos, Slávina escreve:
“Os resultados dessa série de experimentos convenceram-nos,
sobretudo, de que é de extraordinária importância que nos jogos
infantis haja protagonizaçào e situação imaginária. Apesar de
que as crianças quase não as aproveitam, torna-se impossível eli-
miná-las do jogo. Com efeito, esse desejo obstinado de conser­
var a todo o custo o papel e a situação imaginária no jogo é a me­
lhor demonstração de que também são imprescindíveis nessa fa­
se precoce do seu desenvolvimento” (ibid., p. 21).
Uma vez averiguada a necessidade do papel e da situação
imaginária para o jogo das crianças, já desde a idade pré-esco-
lar, Slávina pergunta-se que função exercem nesse jogo de mani­
248 Psicologia do jogo

pulação com objetos. Para responder a essa interrogação, reali­


zou a segunda série de experimentos, composta de duas etapas
coligadas.
Na primeira etapa, as crianças receberam unicamente os
brinquedos que costumavam ser utilizados para as manipula­
ções simples. Quando começaram a manipulá-los e quando,
“satisfeitas”, expressaram o desejo de parar de brincar e ir em­
bora, a experimentadora, concordando com que se devia aca­
bar já, introduziu na situação os restantes brinquedos temáticos
e propôs que se brincasse de “jardim-de-infancia” ou de “ma­
mães e filhas”.
Nessa primeira etapa, as crianças mostraram pouco inte­
resse pelo jogo. Na maioria dos casos, punham simplesmente as
peças dos quebra-cabeças em pequenos baldes ou as colocavam
em pratos. A duração do jogo era relativamente curta, de 10 a
20 minutos, nada mais; as crianças “satisfaziam-se" depressa e
manifestavam uma evidente tendência para esquivar-se ao ex­
perimento sob algum pretexto. Após várias manipulações, algu­
mas encontravam um sentido nessa atividade e convertiam-na
em um original trabalho criativo de diversos ornamentos com pe­
ças de quebra-cabeça e pedrinhas, ou as deixavam espalhadas
em desordem sobre a mesa, ou as repartiam do modo mais di­
verso pelos pratos. Eis a transcrição de dois exemplos de con­
duta de crianças nessa etapa.
A experimentadora entrega a Olga (4; 1) três pequenos
baldes com peças de quebra-cabeça e pedrinhas, e três pratos
pequenos.
“Exper .: - Aqui estão os brinquedos. Quer brincar?
Olga: - Sim. (Apanha uma peça e em seguida, uma atrás
da outra, mais quatro. Retêm-nas por um momento e volta a
largá-las. Fica quieta. Agarra várias peças de uma vez, deixa-as
de novo e volta a apanhá-las. Retém-nas, passando-as de uma
mão para a outra. Transcorreram cinco minutos desde que co­
meçou o experimento. Apanha um dos pratos. Começa a colocar
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 249

as peças pela borda do prato. Procura quefiquem bem colocadas.


Deixa o prato. Senta-se e não faz nada. Em seguida começa a pôr
num pequeno balde todas as peças vermelhas.)
Exper.: - De que está brincando?
Olga cala-se, perturbada, e depois diz: - Tenho em casa
um balde e uma pá.
Exper.: - E de que está brincando agora?
Olga: - Disto.
Exper.: - E você quem é?
Olga continua passando as peças vermelhas de um balde
para outro.
Exper.: - Quer brincar mais?
Olga. - Não, vou juntar-me ao grupo.
Exper.: - Já se cansou de brincar?
Olga: - Sim, me cansei e não quero brincar mais (reúne-se
ao grupo. Brincou um total de 15 minutos).” (1948, pp. 22-23.)
“Tânia (4; 3). Os seus brinquedos são os mesmos que nos
exemplos anteriores. Tânia começa a escolher em seguida pe-
drinhas de todos os pequenos baldes e a colocá-las ordenada­
mente uma atrás da outra. Dispõe dessa maneira todas as pedri-
nhas. Fica algum tempo sem fazer nada. Depois coloca-as em
fila sobre a mesa, procurando que fiquem bem juntinhas uma
ao lado da outra.
Exper.: - De que está brincando?
Tânia: - De pedrinhas, de quadradinhos e de baldezinhos.
Exper.: - E o que está fazendo?
Tânia: - Colocando as pedrinhas. (Continua a colocá-las
como antes. Quando as colocou todas, senta-se, de novo inati­
va, como se não soubesse mais o que fazer. Então, passa a co­
locar um quadradinho em cima de cada pedrinha . Ao cabo de
20 minutos, pòe-se de pé e reúne-se ao grupo, dizendo: ‘Já brin­
quei bastante.’)" (1948, p. 23.)
Ao resumir os dados obtidos nesta primeira fase do expe­
rimento, Slávina escreve: “Vimos, pois, que o jogo das crian­
250 Psicologia do jogo

ças na primeira parte do experimento estava determinado


pelas propriedades físicas do material lúdico que tinham à sua
disposição.
O importante é que, apesar do evidente desinteresse das
crianças pelo jogo a que se dedicavam, nenhum dos sujeitos pas­
sou nessa parte do experimento para outro tipo de jogo.” E
prossegue: “Muitas crianças mais velhas, a quem demos espe­
cialmente esse material com fins comprobatórios, realizaram
aí jogos de argumento mais variado, baseados nos costumes’'
(ibid., p. 25).
O experimento passava à segunda fase quando as crianças
tentavam esquivar-se a trabalhar com o material oferecido.
Nesse momento, a experimentadora oferecia às crianças os
brinquedos temáticos restantes e propunha-lhes fazer um jogo
de argumento determinado. Resumindo os resultados desta
segunda fase do seu experimento, Slávina escreve: “A coisa
mudava totalmente quando (na segunda parte do experimento)
introduzíamos no jogo das crianças brinquedos que lhes suge­
riam um argumento determinado e originavam uma situação
imaginária e uma protagonização. E embora esses brinquedos,
tal como nos jogos descritos antes, não fossem introduzidos
diretamente na açào das crianças, o jogo adquiria a forma
evoluída com ações reiteradas uma infinidade de vezes e exe­
cutadas com aquele entusiasmo que já descrevemos detalhada­
mente e que, por isso, nào precisamos voltar a descrever.
Com os dados desta série de experimentos convencemo-
nos, pois, de que o jogo das crianças que tem por fundo geral a
protagonização e a situação imaginária distingue-se inteira­
mente dos casos de jogo em que estas faltam. Com a particulari­
dade de que o mais admirável, como pudemos observar, é, em
nosso entender, que esses diversos tipos de jogo podem prati­
car-se com os mesmos brinquedos” ( 1948, p. 26).
Baseando-se nos dados obtidos, Slávina deduz haver algo
assim como dois planos de motivações no jogo das crianças da
primeira idade pré-escolar. Um deles é o impulso direto para
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 251

atuar com os brinquedos colocados à disposição da criança; o


outro, o fundo que parece se formar para as açòes realizadas com
os objetos e que consiste no papel concreto assumido pela crian­
ça, papel que dá sentido às ações executadas com os objetos.
Esta explicação não nos parece suficientemente demons­
trada. Pode-se concordar mais facilmente com Slávina quando
escreve: “A situação imaginária e o papel sào justamente o que
comunica um novo sentido às açòes das crianças com os brin­
quedos. Trasladam a manipulação com os objetos para outro
plano. A criança já nào manipula simplesmente os objetos,
como faz o pequenino da primeira idade pré-escolar e como
poderia parecer ao observador superficial. Agora joga com
objetos, executando com eles determinadas ações. Nisso con­
siste precisamente o sentido do jogo para ela.” “Somente quan­
do no jogo infantil se dào uma situação imaginária e um papel,
ele adquire para as crianças um novo sentido e chega a ser o
prolongado jogo emocional que costumamos ver entre as
crianças dessa idade" (1948, p. 28).
Parecem-nos de substancial importância três aspectos da
pesquisa de Slávina: primeiro, a demonstração experimental
de que o papel assumido pela criança refaz radicalmente as
suas ações e a significação dos objetos com que opera; segun­
do, que o papel é introduzido nas ações da criança como de
fora, mediante os brinquedos temáticos, que sugerem o sentido
humano das açòes realizadas com eles; terceiro, que o centro
significante do jogo é o papel e, para desempenhá-lo, servem a
situação e as ações lúdicas.

3. Formação experimental das premissas


do jogo protagonizado
Nas pesquisas de Frádkina e Slávina por nós já descritas
mostraram-se as premissas e condições da transição da ativida­
de manipulante e objetai para o jogo nas crianças da primeira
idade pré-escolar.
252 Psicologia dojogo

Entretanto, o problema das premissas da transição para o


jogo protagonizado e das funções do adulto na formação des­
sas premissas foi apenas equacionado, na verdade, e ficou sem
solução experimental. Fez-se necessário pesquisar de maneira
mais minuciosa essas premissas e as funções dos adultos em seu
aparecimento. Semelhante estudo só é possível como forma­
ção experimental especialmente organizada do jogo protagoni­
zado. Objetos dessa pesquisa genético-experimental podem ser
unicamente crianças ainda carentes dessas premissas. As pes­
quisas envolveram, primeiro, crianças normais situadas no li­
mite da transição das ações objetais para o jogo protagonizado;
segundo, crianças de insuficiente desenvolvimento intelectual,
em quem o jogo protagonizado não se dá sem a intervenção es­
pecial dos adultos; terceiro, crianças normais no aspecto inte­
lectual, mas com diversas deficiências de visão, audição e fala,
que não chegam a conhecer o jogo protagonizado se não se de­
dica uma atenção especial ao estabelecimento das premissas
imprescindíveis.
A criação das premissas e a passagem para o jogo real­
mente protagonizado tiveram nas pesquisas o caráter de expe­
rimento psicológico organizado no qual o pesquisador constrói
especialmente os processos requeridos com vistas à passagem
para o jogo protagonizado. O princípio de tal pesquisa assenta
em estabelecer consecutivamente as premissas do jogo prota­
gonizado e em passar em seguida, de maneira direta, para esse
tipo de jogo.
Ficou por sua vez clara tanto a função dos adultos na cria­
ção (ou seja, o caráter da atividade conjunta dos adultos com as
crianças) das premissas quanto quais premissas são precisa­
mente necessárias e suficientes a fim de passar para o jogo
protagonizado em sua forma mais inicial. Todas as pesquisas
que serão descritas a seguir estão baseadas em fatos e sínteses
obtidos por Frádkina e Slávina, e nas noções teóricas desenvol­
vidas nos trabalhos de Vigotski, Leónticv e nossos.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 253

Deter-nos-emos brevemente nos resultados de três pesqui­


sas: na de Mikhailenko (1975), realizada com crianças normais
pequenas e muito pequenas; na de Sokolova (1973), levada a
efeito com retardados mentais de idade pré-escolar; e na de
Obúkhova e Basílova, efetuada com crianças surdas-mudas e
cegas cujos dados nos foram cedidos amavelmente por seus
autores para publicação em nosso livro.
Mikhailenko1, baseando-se no realce dado aos elementos
fundamentais que integram a estrutura lúdica e às dependên­
cias em que esses elementos se encontram, propôs-se averiguar
o valor de tais elementos no processo de formação da atividade
lúdica c determinar as dificuldades relacionadas com a assimi­
lação deste ou daquele elemento pelas crianças.
Depois de analisar um considerável número de jogos com
diversos argumentos, Mikhailenko destacou os seguintes ele­
mentos lúdicos fundamentais: (a) o papel ou o personagem; (b)
a situação em que transcorre a representação do papel; (c) as
ações com que se interpreta o papel; (d) os objetos com que
atua quem joga; (e ) a relação com o outro personagem.
Conforme sejam os elementos integrantes do jogo e as
ligações existentes entre eles, assim se destacaram argumen­
tos dc três graus de complexidade: (1) argumentos com um
único personagem e objetos claramente determinados em uma
ou várias situações; (2) argumentos com vários personagens e
um conjunto de ações respectivas, nas quais a relação entre os
personagens é dada ora mediante a inclusão das crianças na
situação geral, ora mediante a sucessão das ações realizadas;
(3) argumentos nos quais, além do conjunto de ações e liga­
ções entre os personagens, também se apontam as relações
entre eles.
Nas séries antecedentes de experimentos esclareceu-se a
possibilidade de que as crianças realizem as formas elementa­
res de atividade lúdica segundo modelos sugeridos pelos adul­
tos. Nesses experimentos participaram crianças de um ano e
254 Psicologia do jogo

meio até três anos de idade. O argumento do jogo era-lhes dado


de distintos modos. Na primeira série, em forma oral. Depois
de despertar o interesse da criança pelos brinquedos que irá
manipular, a experimentadora contava-lhe um argumento sim­
ples que continha uma ou duas ações com um brinquedo ou
uma ação que deveria ser realizada com dois brinquedos. Por
exemplo: “Estão sentados à mesa a boneca e o ursinho, ambos
lindos e muito limpos. Perto deles há uns pratinhos. A menina
(ou o menino) apanha uma colher e dá de comer primeiro à
boneca e depois ao ursinho. Dá de comer aos dois, muito solí­
cita!” Depois de contar isso, a experimentadora assinala os
brinquedos e propõe à criança que brinque com eles. Nessas
condições, de 55 crianças somente duas de mais de dois anos
aceitam jogar com os brinquedos oferecidos; as crianças res­
tantes recusam a proposta de brincar segundo o argumento
referido.
Supôs-se que nào bastava a narração para que as crianças
dessa idade começassem a atuar com os brinquedos, sendo
preciso mostrar-lhes as ações mencionadas no relato. A série
seguinte de experimentos realizou-se de maneira que o experi­
mentador não se limitava a contar apenas o argumento, mas
representava-o à vista das crianças. Nessas condições, das 45
crianças que tinham recusado a proposta de brincar após a sim­
ples narração do jogo, 32 passaram a aceitá-la e a interpretar de
uma ou outra maneira o argumento. A menor parcela de crian­
ças (14) atuou com os brinquedos em conformidade com o
argumento. Com a particularidade de que as crianças mostra-
vam-se atraídas, ampliavam o enredo e adicionavam às ações
indicadas outras de seu próprio repertório. A atividade dessas
crianças tinha um caráter manifestamente emocional. Nela
refletiam-se nào só as ações, mas também a atitude emocional
em face dos objetivos, que eram os brinquedos temáticos (bo­
necas e diversas figuras de animais).
O segundo grupo, majoritário, de crianças (18) aceitou o
argumento proposto pelo experimentador e realizou as ações
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 255

contidas no argumento, mas seguindo com exatidão o modelo


indicado e permitindo-se unicamente pequenas abreviações.
Essas crianças não mostraram nenhuma atitude emocional
diante dos brinquedos temáticos, nem tendência para ampliar o
repertório das ações. Os jogos foram de pouca duração, e as
crianças, uma vez realizadas as ações, ou deixavam de manipu­
lar os brinquedos ou realizavam outras ações que nada tinham
a ver com o argumento. As ações que essas crianças realiza­
vam com os brinquedos apresentavam o caráter de obrigatorie­
dade diante dos adultos, eram executadas em fiinçào do cum­
primento de instruções e não se distinguiam em nada das práti­
cas correntes com objetos.
Ao supor que as peculiaridades das ações deste último
grupo de crianças dependem das relações da criança com o
adulto, Mikhailenko realizou mais uma série de experimentos
em que se excluía o caráter de obrigatoriedade nessas relações.
Com esse propósito, a experimentadora inseriu a criança no
jogo enquanto lhe contava o argumento e lhe mostrava o que
devia fazer, sublinhando a cada passo com a entoação, os ges­
tos e a mímica a alegria que lhe davam os brinquedos e o mane-
já-los. Com esse modo de incluir as crianças desse grupo no
jogo, a maioria delas já nào se conduziu segundo o tipo de
cumprimento das instruções do adulto, mas inseriu-se no jogo
com emoção, e todas as suas ações com os brinquedos tinham
um matiz emocional positivo. As crianças mostravam ativida­
de e iniciativa, e brincavam por bastante tempo (de 25 a 30
minutos) com evidente satisfação. Assim, resultou que para
conseguir que as crianças pequenas se pusessem a jogar, não
bastava saber reproduzir certas ações; era preciso que elas sen­
tissem certa emoção pelo personagem que o brinquedo temá­
tico representa. Esta conclusão é de singular importância, por­
quanto demonstra que o jogo já tem implícita nas etapas ini­
ciais do seu aparecimento a emoção causada pelo objetivo das
ações.
256 Psicologia do jogo

Não obstante, em todos os experimentos realizados mani­


festou-se um grupo reduzido de crianças (13 de um total de
55), de um ano e níeio a três anos de idade, que não pôde pas­
sar das manipulações simples com os brinquedos para o jogo
temático elementar. Esse grupo de crianças encontrava-se na
fase de desenvolvimento em que não se formaram ainda as
aptidões para as ações lúdicas que constituem a premissa im­
prescindível do jogo protagonizado. As ações lúdicas, embora
procedam de ações práticas com os objetos, são ações espe­
ciais em que a ação temática se transmite em forma sintética e
abreviada, na forma de esquema de ação. Apresentava-se a
tarefa de esclarecer em que condições podem formar-se ações
desse tipo nas crianças.
Com o grupo infantil que não pôde realizar ações lúdicas
desenvolveu-se um trabalho especial de formação. O experi­
mentador mostrou a uma parte das crianças (grupo “a”) uma
ação abreviada e esquematizada que incluía uma ou duas das
ações mais típicas; à outra parte (grupo “b”) foi mostrado um
modelo de ação que inclui todas as suas ações constitutivas, ou
seja, uma ação concreta realizada. Os resultados da aprendiza­
gem das ações lúdicas nesses grupos experimentais são com­
pletamente diferentes. No primeiro, bastou apenas a experi­
mentadora mostrar a ação para que uma parte das crianças a
executasse bem; a outra parte só a realizou depois de a ter ten­
tado uma vez com a pessoa adulta. No grupo “b”, não bastou
simplesmente mostrar a ação nem mesmo realizá-la juntos uma
vez; para que as crianças a aprendessem, a experimentadora
teve de repeti-la várias vezes.
Como disse Mikhailenko, as ações aprendidas pelas crian­
ças de ambos os grupos não podem ser qualificadas como lúdi­
cas no sentido próprio da palavra. Indícios disso são a tendên­
cia para executá-las somente com os brinquedos que lhes ser­
viram para aprendê-las, a imitação exata do modelo e a repeti­
ção reiterada de uma mesma ação. (Imaginamos que essas
ações ainda não se separaram dos objetos nem se sintetiza­
O desenvolvimento do jogo na idade prè-escolar 257

ram.) Por conseguinte, apresentou-se a tarefa de transformá-


las em ações propriamente lúdicas.
Essa série especial de experimentos estava dirigida preci­
samente no sentido de transformar as ações elementares apren­
didas com brinquedos temáticos em ações lúdicas. Para isso, a
experimentadora disse às crianças que não realizassem as
ações com o objeto que lhes servira para aprendê-las, mas com
outros substitutivos daquele. Uma parte das crianças aceitou as
ações com objetos substitutivos, ao ouvirem a proposta oral da
experimentadora; a outra parte, só depois de terem sido mos­
tradas pela experimentadora.
Ao analisar os dados assim obtidos, fica claro que as crian­
ças do grupo ifcb”, ou seja, as que aprenderam todo o sistema de
operações integrantes da ação, transferiam com mais dificulda­
de essas ações para os objetos substitutivos, necessitavam de
um grande número de exibições e ações conjuntas com a expe­
rimentadora. Mas essas crianças passavam também da execu­
ção completa e detalhada da ação para a sua execução sintética
e abreviada. No começo, o característico de todas as crianças
era a adesão aos objetos substitutivos que o adulto oferecia
na primeira exibição. Somente ao transferir a ação para diver­
sos objetos substitutivos e ao executarem elas próprias diversas
ações com eles se conseguia superar essa inércia.
Durante a síntese e redução da ação o sentido desta muda:
a açào com a colher transforma-se em alimentação da bone­
ca; a ação com o pente, em penteado, e assim por diante. Se é
certo que antes a colher e o pente eram objeto das ações infan­
tis, não é menos certo que, agora, o objeto das ações é a boneca
ou outro brinquedo temático, enquanto a colher ou o pente, tro­
cados por objetos substitutivos, converteram-se em meio de exe­
cução das ações de alimentar ou pentear, das quais chegaram a
ser objeto os brinquedos temáticos.
Não obstante, mesmo que essas ações tenham se tornado
lúdicas pela forma de realização, ainda nào eram histriónicas.
258 Psicologia dojogo

Segundo os dados da investigação descrita, isso se expressava,


concretamente, no fato de as crianças aceitarem a proposta do
tipo “dá de comer à boneca” ou “faz um curativo no ursinho”
que lhes era sugerida pela experimentadora, mas recusarem as
do tipo “brinca de médico”, “brinca de professora” etc.
Mikhailenko expõe a possibilidade de que a transição que se
pretende interpretar está relacionada principalmente com duas
condições: em primeiro lugar, com a atribuição de várias ações,
e não apenas de uma, a um mesmo personagem (a mamãe dá
de comer, passeia, põe na cama para dormir, lê, lava; o médico
ausculta, receita remédios, dá injeção etc.); e, em segundo lu­
gar, com a adoção do papel do personagem que figura no argu­
mento dojogo.
Para formar o jogo protagonizado, organizaram-se espe­
cialmente jogos conjuntos com a experimentadora, nos quais
as crianças executavam diversas ações correspondentes a um
ou outro personagem (o médico, o motorista, a mamãe) e, du­
rante a execução, a experimentadora atribuía-lhes um ou outro
papel: “Vocês faz como a mamãe, dá de comer à filhinha”,
“Você faz como o médico, cura o menino” etc. Uma vez termi­
nada a série de ações, a experimentadora fixou todas as ações
realizadas pela criança: “Você brincou de médico”, “Vocc brin­
cou de motorista”. Após um certo número de jogos conjuntos
como esses, as crianças já brincavam ativamente e de bom gra­
do só com propor-lhes e indicar-lhes o tema.
Esses experimentos foram realizados com um grupo bas­
tante numeroso de crianças (46), de 2 a 4 anos de idade, que
tinham aprendido a executar ações lúdicas, mas carentes ainda
de comportamento histriónico.
A pesquisa de Mikhailenko no experimento de formação
especialmente organizado confirmou e precisou as teses expos­
tas nos trabalhos anteriores de Frádkina, Slávina e meus. Os fa­
tos obtidos em todas essas pesquisas evidenciam que o cami­
nho de desenvolvimento do jogo vai da ação concreta com os
objetos à ação lúdica sintetizada e, desta, à ação lúdica prota­
0 desenvolvimento do jogo na idade prè-escolar 259

gonizada: há colher, dar de comer com a colher; dar de comer


com a colher à boneca; dar de comer à boneca como a mamãe;
tal é, de maneira esquemática, o caminho para o jogo protago­
nizado.
A deduçào mais importante que se pode inferir do experi­
mento de formação descrito é a prova de que todas as transi­
ções anteriormente enumeradas requerem a direção dos adul­
tos, e cada uma delas requer modos especiais de direção. A idéia
da espontaneidade do desenvolvimento do jogo protagonizado
pelas crianças é devida a que os adultos não se apercebem da
direção que excrcem realmente e de maneira espontânea.
Sokolova (1973)2 efetuou uma formação experimental de
jogo protagonizado em retardados mentais de idade pré-esco-
lar (de 4 a 6 anos) que estavam sendo educados em escolas
especiais. Serviram de objeto crianças retardadas em grau de
debilidade mental.
Nas pesquisas previamente realizadas com as crianças dos
três grupos de um jardim-de-infancia especial (grupos do pri­
meiro, segundo e terceiro ano de educação), Sokolova averi­
guou que a atividade independente das crianças dos três gru­
pos com os objetos distingue-se por seu primitivismo e sua
monotonia. Embora quase todas as crianças com atraso mental
mostrem interesse pelos brinquedos, o que as estimula, por via
de regra, é o seu aspecto exterior e não a possibilidade de reali­
zar com eles ações materiais e levar a cabo algum desígnio.
Esse interesse é muito efêmero. Com freqüência (em 46,4%
dos casos), empreendem-se ações inadequadas. Mesmo quan­
do as crianças realizam com os objetos ações adequadas, estas
sào pobres e estereotipadas. O nível mais elevado que se obser­
va, já no final da idade pré-escolar, é o das ações sucessivas,
que se repetem por várias vezes sem mudança alguma.
Em nenhuma das observações se registrou um único caso
de utilização de um objeto substitutivo ou de uma açào com
objetivo imaginário. É claro que os retardados mentais de
idade pré-escolar desconhecem o jogo temático protagonizado
260 Psicologia do jogo

e só em casos muito raros se registram ações temáticas em nú­


mero singular. Também é paupérrima a fala das crianças no
transcurso dessas ações elementares.
Ao observar o desenvolvimento do jogo durante a perma­
nência das crianças em estabelecimentos pré-escolares espe­
ciais, Sokolova constata a existência de certa dinâmica: aumen­
ta o número de ações adequadas e desaparecem as manipula­
ções não específicas com os objetos. Entretanto, até entre as
crianças do terceiro ano de educação, distingue-se por sua total
ausência a ação com objetos substitutivos e as ações temáticas.
Sokolova relaciona a falta de avanços substanciais no de­
senvolvimento das premissas favoráveis ao surgimento do jogo
protagonizado com as peculiaridades da direção pedagógica,
limitada principalmente a indicações orais por parte dos peda­
gogos. Ao mesmo tempo, sabe-se que os retardados mentais
têm ainda muita dificuldade, inclusive na idade escolar, para a
compreensão das instruções orais.
Na pesquisa especial de Sokolova, propunha-se às crian­
ças que realizassem ações lúdicas, seguindo uma instrução oral
inarticulada que previa a execução de uma série de ações com
um objeto relacionadas entre si. Essa instrução nào dava lugar
a avanços entre as crianças de todas as idades. O desmembra­
mento das instruções em indicações separadas, relativas a cada
ação em particular, deu lugar a alguns progressos. As crianças
começaram a atuar, mas nào se conseguiu obter, nem mesmo
com a instrução articulada, nenhuma série de ações relaciona­
das entre si. Tem a autora razões de sobra para deduzir que a
direção puramente oral das açòes lúdicas com os objetos entre
as crianças mentalmente retardadas não leva a resultado algum.
Mesmo quando as crianças executam uma ação após outra, das
contidas nas indicações, não as relacionam entre si. Com base
nesses dados, Sokolova chega à conclusão de que a direção pu­
ramente oral nào pode levar a progressos no desenvolvimento
do jogo das crianças mentalmente retardadas.
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 261

Sokolova abordou o ensino especial de alguns elementos de


jogo para essas crianças, a saber, a realização de ações lúdicas e a
adoção de um papel. Na primeira série, a experimentadora mos­
trou uma série de ações com brinquedo temático, uma boneca,
após o que propôs a uma menina que reproduzisse essas mesmas
ações com o seu brinquedo, uma boneca. Os resultados dessa exi­
bição de ações lúdicas foram superiores aos obtidos com a expli­
cação puramente oral. As crianças abordaram a tarefa com mais
emoção, e a maioria delas pôde reproduzir uma série de ações. As
ações de algumas crianças começaram a parecer lúdicas, repre­
sentativas, e na atividade das crianças de seis a sete anos a série de
ações mostradas encheu-se também dc outras que refletiam a pró­
pria experiência vivida. Entre as meninas mais velhas apareceu
uma ação nova, não observada antes, com a boneca, como se esta
fosse um ser vivo. Sokolova sublinha que o aparecimento dessa
atitude nova com o brinquedo temático é uma condição indispen­
sável para a passagem subseqüente à protagonização.
Apesar de tudo, a maior parte das crianças ainda se limitou a
reproduzir com exatidão as ações mostradas sem criar uma situa­
ção lúdica nem adotar o papel de adulto proveniente dessas ações.
Os resultados obtidos colocaram a autora diante da necessidade de
realizar com as mesmas crianças um trabalho especial com a fina­
lidade de introduzi-las no papel de adulto. A experimentadora
apresentou à menina a boneca-filha, chamou ao menino ou meni­
na papai ou mamãe, pôs nome à “filha" e procurou despertar por
todos os meios no menino ou na menina a atitude paternal ou
maternal para com a boneca. Depois, propôs à menina que brin­
casse com a boneca. O natural era esperar que a menina executas­
se com a boneca-filha as mesmas ações que lhe acabavam de mos­
trar. Mas a introdução das crianças pequenas no papel, empreendi­
da pela experimentadora, não exerceu nenhuma influência em
suas ações com os brinquedos. Agiram com estes mais ou menos
da mesma maneira que antes da tentativa de identificá-las com
um papel. Na maioria dos casos, as crianças nâo relacionaram
262 Psicologia dojogo

de maneira nenhuma o papel com as ações que lhes tinham


mostrado antes.
As crianças do grupo médio tentaram atuar em conformi­
dade com o papel, mas isso se reduzia, por via de regra, apenas
à comunicação oral com a boneca, por meio da qual as crianças
procuravam assegurar o seu “domínio” sobre ela; as ações
lúdicas dessas crianças não provinham do papel e apresenta­
vam o caráter de ações soltas e separadas do papel.
Somente as crianças mais velhas assumiam de bom grado
o papel e começavam a educar em seguida sua “filha”. Con­
tudo, as ações dessas crianças eram parcas e pouco representa­
tivas, e algumas substituíam a série de ações por uma única,
reiterativa e estereotipada.
Assim, a criação de uma situação lúdica pelos adultos e a
compenetração da criança com o papel do adulto, inclusive
bem conhecido e próximo da criança pelo caráter de sua ativi­
dade, não asseguram por si sós a possibilidade de atuar em
conformidade com o papel. Para as crianças permanece oculta
a ligação entre o papel e as ações em que pode plasmar-se o seu
sentido histriónico.
Esse nexo entre o papel e as ações com ele relacionadas
não surge de maneira espontânea, e cabe aos adultos descobri-
lo para a criança. Foi isso o que Sokolova tentou levar a efeito
na última série de seus experimentos. Ao unir a introdução da
criança no papel e a situação lúdica com a reprodução das
ações lúdicas, criou um método “sintético” original de forma­
ção do jogo que, ao ser utilizado pelo adulto, parece atrair a
criança para a atividade conjunta a fim de criar uma situação
propícia à execução de ações lúdicas. A formação experimen­
tal foi levada a cabo individualmente com cada criança (45 no
total, à razão de 15 de cada ano de assistência na escola espe­
cial), durante quatro sessões consecutivas com a adição subse­
qüente de um tema de cuidados com o “bebê” (dar banho na bo­
neca, preparar-lhe o mingau e dar-lhe de comer, e pô-la na ca­
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 263

ma para dormir). Concluídas, dias depois, essas quatro sessões


de ações conjuntas, fizeram-se medições de controle do nível
das ações lúdicas. Concedeu-se à criança a oportunidade de
agir por sua conta nas condições da sala de jogos, onde havia
todo o necessário ao desenvolvimento do jogo temático prota­
gonizado.
O cotcjo dos resultados obtidos nos experimentos de con­
trole com o nível inicial mostrou que as crianças progrediram
muito em sua conduta lúdica. Aumentou consideravelmente a
duração do entretenimento das crianças com os brinquedos; no
grupo das de mais idade, duplicou. Por trás desse aumento da
duração está a mudança do caráter das ações com os brinque­
dos. Em vez de executar atos reiterativos estereotipados, as
crianças faziam com cada brinquedo uma série de ações inter­
ligadas. Manifestou-se a atitude seletiva com os brinquedos;
até para as crianças menores a boneca destacava-se de todos os
demais brinquedos e adquiria um atrativo especial. Muitas
meninas escolhiam já antecipadamente os brinquedos (uma
boneca, um móvel, um fogão etc.) ncccssários para levar a
efeito o propósito elementar que lhes ocorria do jogo, se bem
que não sem ajuda, mas como reflexo do argumento protagoni­
zado com um adulto no período de formação. Aparecem ele­
mentos de conduta histriónica propriamente dita. Algumas
crianças do grupo mediano assumem o papel de educadoras.
Os elementos de conduta histriónica entre outras meninas
manifestam-se em ternura, solicitude e atenção para com a
boneca.
No grupo das mais velhas observou-se um progresso de sin­
gular importância. A maior parte das crianças (9 de 15) come­
çou a interpretar o seu papel e a subordinar a este suas ações. Por
certo, a estabilidade da conduta histriónica era ainda insignifi­
cante, as crianças cometiam “erros”, abandonando o papel e
executando outras ações. Apareceram as ações representativas
sintéticas e abreviadas propriamente ditas. Acentuou-se consi­
deravelmente o papel da fala em todos os grupos e enriquece­
264 Psicologia dojogo

ram-se as suas funções; nas crianças medianas e mais velhas


apareceu a fala planejada e a oração, por intermédio da qual
expressam sua atitude em face dos brinquedos temáticos. Mas
isso já não é um jogo temático-histriônico independente. Está
limitado pelos temas, as ações e a ordem de execução delas, que
foram propostos nas ações conjuntas com os adultos.
Sokolova assinala que durante o comportamento lúdico
manifestado, embora ainda fosse elementar, as crianças apren­
diam com maior facilidade as novas ações com os objetos,
falavam mais e sua linguagem adquiria funções mais variadas.
Não é missão nossa esclarecer a importância pedagógica
do jogo na correção de algumas peculiaridades das crianças
mentalmente retardadas. Mencionamos esses fatos só porque
neles se manifestaram com clareza as fases fundamentais do
desenvolvimento do jogo. Reveste-se de especial importância
a etapa, que costuma transcorrer de maneira imperceptível nas
crianças normais, de união das ações lúdicas objetais com o
papel e sua transformação em ações protagonizadas, ou seja,
em ações expressivas da atitude em face do personagem. A
totalidade desses dados confirma os do desenvolvimento das
premissas do jogo protagonizado e da transição das crianças
normais para esse jogo.
Falta ainda determo-nos nas peculiaridades do surgimento
do jogo nas crianças surdas-mudas e cegas. Estas crianças são
de uma categoria especial, c qualquer tipo de ação ou forma de
conduta que adotem requer uma direção pedagógica singular,
um trabalho conjunto e ininterrupto do adulto com a criança.
Não obstante, as crianças que perderam muito cedo a visão e a
audição, e que, além disso, como conseqüência da perda da
audição, tampouco falam, desenvolvem-se. por princípio, de
modo igual às crianças normais e podem alcançar os mais altos
níveis. A única diferença é que o curso de desenvolvimento se
prolonga consideravelmente e requer uma direção especial.
Os dados que apresentamos a seguir provêm de observa­
ções do desenvolvimento de crianças educadas numa escola-
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 265

clinica especial3. Não trataremos as questões da direção peda­


gógica do desenvolvimento das crianças nesse estabelecimen­
to nem os métodos de trabalho conjunto com os adultos me­
diante os quais se conseguem progressos no desenvolvimento
das crianças. Interessaram-nos unicamente as etapas funda­
mentais do desenvolvimento do comportamento lúdico e algu­
mas condições da passagem das ações objetais para as propria­
mente lúdicas.
A semelhança das crianças normais, a cega e a surda-muda
não começa a brincar sem a direção dos adultos. A esse respeito
Sokolianski afirmava que as crianças cegas e surdas-mudas
nunca aprendem a brincar sozinhas com bonecas nem podem,
em geral, idear por sua conta um jogo. Não obstante, a aprendi­
zagem direta não conduz por si só ao jogo nem contribui para
que essas crianças joguem. Nada existe de paradoxal nisso, se
recordarmos que o jogo aparece como resultado das ações com
os objetos. Sokolianski chegou até a supor que era impossível
ensinar essas crianças a jogar. Uma vez que todo jogo, sobretu­
do o jogo com bonccas, é reflexo da experiência social, e a ex­
periência social das crianças cegas e surdas-mudas forma-se
com extrema lentidão, o que as impede de refleti-la na primeira
infancia, o aparecimento do jogo atrasa-se e está relacionado
com todo o desenvolvimento precedente da criança.
Dir-se-ia que, exteriormente, tudo transcorre bem: ensina-
se a criança a jogar. Mas, ao executar com os brinquedos (um
ursinho, uma boneca) as ações que os adultos lhe ensinam, a
criança cega e surda-muda aprende-as a sério. Assim, Volódia,
que é surdo e vê mal, põe os óculos no ursinho. Exteriormente,
isso pode ser considerado um jogo, uma brincadeira; mas, ao
fazê-lo, olha com toda a seriedade e empenho através dos óculos
para certificar-se de que o ursinho enxerga precisamente. Outra
observação ilustra ainda com maior clareza essa peculiaridade.
Uma menina cega e surda-muda despe a roupa do ursinho e
senta-o numa papeleira de plástico previamente colocada, em
vez do urinol, ao lado da cama. A menina senta-se numa cadei-
266 Psicologia do jogo

ra a seu lado e assim permanece por muito tempo, inclinada


sobre o ursinho. Depois levanta-o, mete a mão no “urinol” e
volta a sentar o ursinho. Assim permanecem 10 minutos senta­
dos lado a lado, e úma vez por outra a menina comprova o con­
teúdo desse “urinol”, à espera do resultado. A mesma menina,
ao mostrar figurinhas coloridas ao ursinho, aproxima-as conti­
nuamente do olho esquerdo, pois é no olho esquerdo que ela
própria conserva resíduos insignificantes de visão.
Em todos os casos citados falta a situação imaginária, o
convencionalismo, e no lugar de uma açào lúdica reproduz-se,
no fundo, uma ação objetai típica. O mecanismo psicológico
desse fenômeno baseia-se no caráter prematuro do ensino, na
disparidade existente entre as exigências e as possibilidades
reais de desenvolvimento da criança cega e surda-muda.
O surgimento do jogo nas crianças cegas e surdas-mudas
deve-se ao desenvolvimento da atividade objetai e da fala. Esse
processo se rege pelas mesmas regras estabelecidas por Frádki­
na ao estudar o aparecimento do jogo nas crianças normais. Po­
dem destacar-se as seguintes etapas.
1. A etapa da manipulação específica com o objeto, dife­
rente da manipulação “não específica” mais prematura, quan­
do a criança faz movimentos monótonos com diversos objetos
(agita-os, bate com eles. puxa-os etc.).
2. A criança reproduz por si só elementos soltos de ações
ou de uma série de ações. O característico nas crianças é imitar
as ações de um adulto numa situação similar, mas não idêntica,
transferir a ação para outros objetos. Na conduta da criança
cega e surda-muda repetem-se com freqüência as ações, con­
sistentes em várias operações, de dar de comer a uma boneca.
Mas isso ainda não é jogo. Assim, deixando de um lado o ursi­
nho, a menina cega e surda-muda descalça os sapatos, deita-se
na caminha da boneca (uma caixa), cobre-se e aconchega-se,
repetindo muitas vezes essas ações.
A criança desprovida de fala não pode transpor os limites
dessa maneira de atuar. A fala, que aparece no processo de
desenvolvimento da atividade objetai, de início cumpre para a
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 267

criança cega e surda-muda unicamente a função de sinal para


atuar, mas ainda não a de significar o objeto. A função sinali­
zadora da fala não respalda o plano imaginário “convencionar’
de atividade, sem o qual também o jogo é impossível. O salto
qualitativo no jogo relacionado com o aparecimento da palavra
verdadeira como meio de significar o objeto prenuncia o surgi­
mento próximo do jogo autêntico.
3. O característico desta etapa é a criação de uma situação
lúdica especial, a reprodução das ações de outra pessoa, o
pedagogo, e a utilização de objetos substitutivos. A ação com o
objeto leva-se a efeito em conformidade com o sentido do jogo
e não em conformidade com o significado que é inerente sem­
pre ao objeto.
Nos jogos a criança reproduz por si só temas inteiros, e
não ações soltas, atuando ora na pele do pedagogo, ora na do
boneco. É precisamente nesta etapa que aparece “o papel em
ação” (Frádkina): a imitação objetiva das ações de pessoas
concretas, sem que a criança se aperceba do papel. O objeto é
utilizado muitas vezes, mas a ação apresenta um caráter protá-
tico, e não temático.
Por exemplo, Dina apanha no aparador um abridor de
latas, um garfo e uma escova de dentes. Deixa diante da boneca
o abridor de latas, diante do urso dc pelúcia a escova de dentes
e diante do ursinho pequeno o garfo. Depois senta-se, come do
prato com o pente, em seguida tira do ursinho a escova de den­
tes e come com ela como se fosse uma colher. Ao levar a escova
à boca, esfrega com ela os dentes. Em seguida volta a comer,
manipulando a escova de dentes como se fosse uma colher: li-
mita-se a aproximá-la dos lábios e a levá-la ao prato. Deixa
essa escova-colher no prato, diante do ursinho. Passa a mão pe­
lo cabelo. Bebe de uma caixinha de borda alta. Põe-se de pé,
aproxima-se do urso grande por detrás e dá-lhe de comer; de­
pois dá de comer ao outro urso menor. Apanha um pedaço de
papel, rasga-o em pedacinhos e coloca-os diante de cada brin­
quedo sentado à mesa. Senta-se no seu lugar e bebe da xícara.
268 Psicologia dojogo

Dá uma dentada de verdade num pedacinho de papel e faz


como se bebesse da xícara. Cospe o papel, volta a dar-lhe outra
dentada, mas agora de*mentirinha, e bebe.
4. A etapa seguinte é o aparecimento da metonímia na situa­
ção lúdica. No começo, a criança denomina com outro nome os
objetos substitutivos, segundo as funções que desempenham no
jogo; mas ainda nào se identifica com outra pessoa nem se adju­
dica seu nome. Por exemplo, trouxeram a Dina uma xícara nova
de brinquedo. Senta o ursinho à mesa. Põe-lhe diante, em cima
da mesa, a xícara nova e uma colherzinha; diante dc si mesma
põe um copo e uma colher. O pedagogo aponta para a xícara e
pergunta a Dina: - O que é isto? - Dina responde: - Uma xícara. -
Está sentada à mesa e dá de comer ao ursinho. Levanta-se e traz
a boneca, senta-a em seu lugar e dá-lhe de comer.
Exper:. - Quem é esta?
D ina:-A boneca.
Experr. - E este? (Apontapara o ursinho.)
Dina: - O ursinho.
Exper.: - Quem é esta? (Apontapara Dina.)
Dina: - Dina. (Traz as outras bonecas do armário dos
brinquedos e senta-as a uma mesa pequena. Diante de cada
boneca põe um prato. Junto ao prato deixa umas varetas de
plástico e uns pregos pequenos. Apanha três pregos da mesa e
coloca-os no prato que está no centro da mesa pequena.)
Exper.: O que é isso?
Dina: - Pão. (Põe em cima de cada prato outro prato, mas
um pouco de lado.)
Exper.: - O que é isto? (Aponta para a vareta de plástico
que está junto ao prato.)
D ina:- Acolher.
Exper.: - E o que é isto? (Aponta o prato que está por
baixo.)
Dina: - O prato. (Ela mesma aponta para o fundo dos pra­
tos.) Sopa, batatas, mingau. (Come do seu prato e indica com
um gesto que está bom; mordisca uma vareta de plástico, que
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 269

faz de pão. Agita zangada a mão na direção das outras bone­


cas, mostrando-lhes o pão. Levanta-se, traz as peças de um jo ­
go de montar de plástico e distribui-as entre as bonecas senta­
das a mesa.)
Exper. : - O que é isso? (Aponta para as peças do jogo de
montar.)
Dina:- Pào.
5. Última etapa. A menina atribui a si mesma e à sua com­
panheira de jogo (a boneca) o nome de outra pessoa. Vejamos
várias situações.
No descanso entre as sessões do experimento, Dina apa­
nha na mesa uma vareta e lcva-a aos lábios, fingindo que fuma.
Aponta para si mesma e diz: - Sou o papai. - Depois leva a
mesma vareta à boca do pedagogo e, apontando para ele,
chama-o de “papai”. Mete a vareta na boca de outra menina
cega e surda-muda e diz: - E o papai.
Passados alguns dias, Dina veste o avental branco da edu­
cadora. Senta-se no canto das bonecas, numa cadeira junto a
uma pequena cama onde há uma boneca. Cruza as pernas e
apóia o rosto numa das màos. Permanece alguns minutos sen­
tada nessa postura (precisamente a que adota o médico que
assiste o grupo quando alguma criança adoece). Apanha do
armário um estetoscópio de brinquedo, feito de madeira e duas
borrachas, aproxima a sua cadeira da caminha da boneca, tira-
lhe a manta, retira a boneca da cama, alisa a roupa da cama,
procura meter nos ouvidos as extremidades dos tubos de borra­
cha e nào o consegue. Repõe a boneca na cama. Vê a educado­
ra que acaba de entrar, volta-se para ela, aponta para si mesma
e diz: - Sou a médica. - Faz a educadora sentar-se numa cadei­
ra ao seu lado, ausculta-lhe o peito e as costas com o estetoscó­
pio e expressa com um gesto que a “paciente” está ótima. A pe­
dagoga indaga: - Quem é você? - Dina: - A doutora.
Tal é, em traços largos, o caminho da criança cega e surda-
muda desde a atividade objetai até os elementos de jogo temá­
tico protagonizado. As meninas cegas e surdas-mudas cujos
Psicologia do jogo

exemplos de comportamento relatamos têm de 8 a 9 anos. Com


uma idade mais avançada e num prazo de tempo mais prolon­
gado, elas percorrem, com a cooperação dos adultos que as
educam, o mesmo caminho que as crianças normais.
A formação experimental das premissas do jogo protago­
nizado nas crianças de tenra idade que se desenvolvem normal­
mente e nas crianças de idade pré-escolar que apresentam um
atraso mental em seu desenvolvimento, assim como as obser­
vações do desenvolvimento dos elementos do jogo em crianças
cegas e surdas-mudas, evidenciam a presença de regras gerais
de desenvolv imento do jogo relacionadas com a aprendizagem
lógica das ações objetais e com o destaque do adulto como
modelo e agente das formas humanas de atividade e de rela­
ções. Tudo isso acontece sob a direção de adultos e nào de ma­
neira espontânea.

4. Evolução do papel no jogo


Uma das tarefas essenciais, ao pesquisar o jogo protagoni­
zado, é esclarecer o problema das premissas psicológicas em
que se baseia a adoção de papel pela criança e o desenvolvi­
mento do conteúdo do papel interpretado no jogo pela crian­
ça. É importante, além disso, explicar a mudança de atitude da
criança com o papel que representa no jogo.
Essas questões foram o objeto da nossa pesquisa. Já disse­
mos que escolhemos para a nossa análise a forma experimen­
tal. Os experimentos realizados para elucidar esses problemas
foram montados segundo o tipo dos jogos ordinários nos quais
o experimentador se incluiu como um dos participantes no
jogo ou como dirigente do jogo. O papel do experimentador
apoiava-se ou em propor o argumento do jogo ou então em
modificar o seu curso, inserindo uma série de condições adi­
cionais.
0 desenvolvimento do jogo na idade prè-escolar 271

Para pesquisar os problemas mencionados fizeram-se três


séries de jogos experimentais^
Em cada um dos jogos participam duas crianças (em três
casos, uma criança). O experimento abrange crianças de todas
as faixas etárias do jardim-de-infancia.
Primeira série: jogos de “si mesmo”, de “adulto” e de
“companheiro”. Segunda série: jogos em que se altera a suces­
são das ações quando a criança interpreta o seu papel. Terceira
série: jogos em que se altera o sentido do papel.
Jogos de “si mesmo ",
jogos de “adulto ”
e de “companheiro ”.
O experimento consiste em três fases relacionadas entre si.
Na primeira fase, a experimentadora (educadora) organiza o jo­
go no jardim-de-infancia, mas de maneira que cada um dos par­
ticipantes continue sendo quem é: a educadora, educadora; e as
crianças, crianças. Se as crianças estào de acordo, a educadora
comunica-lhes o curso do jogo; em caso de necessidade, per-
gunta-lhes: “O que se deve fazer?”, e segue as indicações delas.
Na segunda fase, no caso de as crianças renunciarem a
brincar de “si mesmas”, ou quando o jogo termina, se este foi
efetivamente começado, a educadora propõe-lhes jogar de outra
maneira: uma das meninas será a dirigente (mencionando de
passagem o nome da dirigente do grupo) e ela será uma meni­
na junto com a outra menina. A educadora participa assim do
jogo desde o início no papel de uma das meninas.
Na terceira fase, a educadora propõe jogar de maneira que
seja ela própria a dirigente do grupo e as crianças representa­
rão o papel de alguns dos companheiros do seu próprio grupo.
Com a particularidade de que ou ela mesma indica os nomes
das crianças que vão representar os que jogam ou lhes propõe
que elas mesmas escolham quem querem ser.
Antes de passar a descrever e analisar os resultados obti­
dos, sublinharemos as diferenças existentes entre as três fases
do experimento.
272 Psicologia do jogo

Na primeira fase, a menina tem de se representar a si


mesma; na segunda, representa um adulto (a educadora) ou
outra menina (em geral); na terceira, uma menina determinada
de entre as suas companheiras. Como o ponto central no jogo
criativo das crianças de idade pré-escolar é que a criança assu­
ma um papel qualquer, parece-nos essencial explicar as pre­
missas necessárias para que o aceite.
O grau e o caráter do realce das ações do adulto e a orien­
tação para essas ações revestem-se, em nosso entender, de uma
importância essencial. O que é que a criança mais destaca e
qual é a gênese de sua orientação nas funções dos adultos?
Eram as respostas a essas perguntas o que se esperava do
experimento empreendido.
Descrevamos por fases os resultados obtidos.

Primeira fase do experimento: jogos de “si mesmo”


Ata n? /. Antes da refeição, a experimentadora propõe: -
Ásia (3; 0), vamos brincar. - Ásia acede com alegria.
Exper.: - Você vai ser Ásia e eu Maria Serguéievna, quer?
Ásia: - Não, você será Ásia e eu Maria Serguéievna.
Exper.: - Depois faremos como você está dizendo, mas
agora você será Ásia e eu Maria Serguéievna.
Ásia (rindo): - Não, não vamos fazer assim. Você é que
será Ásia. Eu serei Maria Serguéievna, e não você. (Correpela
sala e dá risadas.)
Ata n? 2. Depois de ouvir a proposta da experimentadora,
Várvara (5; 0) sorri, encabulada, e não se mexe.
Exper.: - Então, Várvara, vamos brincar.
Várvara compõe o vestido e diz, em voz baixa: —Preciso
de uma touquinha, vou buscá-la. (Sai e demora para voltar. A
experimentadora vai ao seu encontro. Várvara está olhando
pela porta para o grupo de mais idade.)
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 273

Exper.: - Vamos brincar, nena.


Várvara (baixando a cabeça): - Não, assim nào quero.
Exper.: - Vamos.
Várvara (com voz ainda mais baixa): - Não, nào quero.
Ata n° 3. A experimentadora propõe a Vália e Rita (6; 0)
um jogo.
Vália: - É melhor brincar de “mamãe e filhinha”.
Exper.: - Nào, isso faremos amanhã.
Vália: - Então eu serei a mamãe e Rita a filha.
Exper.: - Mas se já decidimos brincar amanhã de “mamãe
e filhinha”; agora vamos jogar assim: você será Vália, você Ri­
ta e eu Elena Andréievna. Bom, o que vamos fazer agora?
Rita: - Vamos à nossa sala. Veremos os desenhos, está
bem? (As meninas estão acostumadas a ver os desenhos com a
educadora uma vez a cada vários dias.)
Vália: - Eu tenho um desenho muito bonito.
As meninas vão ver os desenhos.
Ata n?4. Ao ouvir a proposta. Orlando e Iúri riem.
Orlando: - Então devemos subir.
Exper.: - Vamos. (As crianças vão a um dos quartos.)
Orlando (rindo): - Você pergunta e nós falaremos.
Exper.: - Pergunto-lhes o quê?
Orlando (rindo): - Sobre alguma estampa colorida ou até
quanto sabemos contar. (Os dois riem.)
A experimentadora apanha uma estampa colorida e come­
ça a perguntar o que é que está pintado nela.
Orlando (olha para Iúri): - No ano passado eu também
contei assim, mas a estampa era outra. Nesta uma garotinha
leva uma boneca às costas.
Iúri: - Pesa-lhe muito. Não é uma boneca, é uma menina.
Orlando: - E melhor irmos brincar.
Exper.: - E o que é que estamos fazendo?
Iúri: - Está dando uma aula para a gente.
274 Psicologia dojogo

Orlando, sem esperar autorização, encaminha-se para a


porta.
Exper.: - Mas combinamos brincar assim, nào foi, Orlando?
Orlando (contrariado): —Assim não se brinca. Isto não é
brincar. Eu gosto é de jogar damas com Tamara.
Ata n? 5. Nina e Dina (6; 8) escutam a proposta da experi­
mentadora.
Nina (sorrindo): - Assim não vale. Nina Serguéievna é
você. (Ri.) Como vou brincar de Nina, se Nina sou eu mesma?
Dina (depois de ouvir, muito séria): - Então temos de fa­
zer ginástica, depois tomar o café da manhã e depois estudar.
Ou você não quer assim? Eu não sei de outra maneira.
Reproduzimos cinco das descrições mais típicas de jogo
de “si mesmo”. As outras atas que estão em nosso poder apre­
sentam, em geral, o mesmo quadro. As crianças pequenas cos­
tumam negar-se a jogar de “si mesmas” sem dar os motivos da
negativa. Não lhes parece interessante jogar dc “si mesmo”.
Nào vêem sentido algum no jogo. Pode-se supor que tampouco
existam para elas como relações as iniciadas com a educadora.
As crianças de idade mediana oferecem, no fundamental, o mes­
mo quadro, com a única diferença de que a renúncia a jogar de
“si mesmo” é sempre substituída por uma proposta de brincar
de outra coisa, e em casos isolados algumas crianças já filtram
alguma ação típica das relações com o experimentador e pro­
põem-na como conteúdo de atividade. “Vamos para o seu quar­
to ver estampas.” Em substituição do jogo, empreendem algu­
mas das ocupações correntes.
Essa tendência a extrair ações típicas das relações das crian­
ças com a educadora nas condições comuns da vida apenas se
esboça nas crianças de idade mediana (de 5 a 6 anos), e encontra
continuidade e melhor expressão nas crianças de mais idade.
As crianças de mais idade propõem para conteúdo do jogo
alguma ocupação habitual ou a repetição da rotina do jardim-
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 275

de-infancia. Ao dar forma a esse conteúdo, as crianças nào per­


cebem como lúdicas as relações com o experimentador. Tam­
bém é característico das crianças mais velhas apresentarem com
relativa clareza os motivos por que se negam a aceitar o jogo
proposto: “Assim nào se brinca. Isso nào é brincar.” “Como
vou brincar de ser Nina, se eu sou Nina de verdade?”
Neste experimento manifesta-se claramente um traço típi­
co do jogo infantil. O jogo só é possível se houver ficção. A
evolução da atitude das próprias crianças em face do jogo fún-
damenta-se em que, no final da idade pré-escolar, elas come­
çam a compreender que jogar é representar o homem, e sem
essa representação nào existe jogo.
Baseando-nos nesses dados, podemos extrair duas conse­
qüências.
A primeira consiste em que o jogo é a interpretação de um
papel assumido pela criança. Esse é o motivo principal do
jogo. A segunda, em que durante o desenvolvimento muda a
maneira de a criança compreender o seu papel. Na primeira
infancia ainda nào existe como tal para as crianças a relação
“eu - o papel”; e, embora a criança jamais se identifique no
jogo com a pessoa cujas funções reproduz, ao jogar chega a
compreender essa relação somente ao final da idade pré-esco­
lar. em sua segunda metade, expressando-sc então numa série
de características que, de um modo geral, aparecem como uma
atitude crítica para com a interpretação do papel assumido por
ela ou para com a representação dos papéis de seus compa­
nheiros dejogo.
Ao passar à segunda fase do experimento (representação
do papel de um adulto), salta à vista, sobretudo, como as crian­
ças se animam e com que alegria começam a jogar quando se
lhes propõe o papel de educadora. Como já dissemos, na
segunda fase propôs-se a uma menina o papel de educadora e a
experimentadora participou no jogo com o papel de menina.
Citemos alguns exemplos mais típicos de como transcorre
o jogo.
276 Psicologia dojogo

Ata n? 6. A experimentadora propõe a Grigori e Volódia


(4: 0), depois de se terem negado a brincar de “si mesmos”, que
Volódia seja Faina Semiónovna, e a experimentadora e Grigori
sejam meninos.
Grigori (após ouvir a proposta): - Nào, eu é que serei
Faina Semiónovna, e você e Volódia serão os meninos.
Volódia: - Pois eu serei como os filhos de Maria Ser-
guéicvna, como Valentim5.
Grigori: - Sentem-se à mesa. Vou trazer-lhes café. (Colo­
ca sobre o tapete peças de quebra-cabeça.) E estas sào rosqui­
nhas. (Traz pequenas rodelas de madeira de uma torre de brin­
quedo.) Vamos, sentem-se aqui. (Apontapara o tapete. Volódia
e a experimentadora sentam-se.)
Volódia: - Ponha muitas rosquinhas para mim.
Grigori: - Repartirei entre todos. (Coloca uma rodela de
madeira diante de cada um.) Uma, outra, mais outra. Podem
comer.
Volódia (finge morder uma rosquinha, depois aproxima
dos lábios a peça de quebra-cabeça senida por Grigori e
simula beber): - Está muito boa.
Grigori: - Agora comam também o pão. (Deixa em cima
da mesa várias pastilhas de ladrilho. Os menino comem.) Pois
bem, agora eu também posso comer. (Finge que come.)
Volódia: - Agora eu quero brincar. (Vai até um canto do
quarto e começa a construir.)
Grigori: - Agora deixaremos a mesa e iremos passear.
(Recolhe e coloca em seus lugares as rodelas, as peças de que­
bra-cabeça e as pastilhas de ladrilho.)
Volódia: - Está bem, vamos passear. (Deixa as pastilhas
em seu lugar.) E onde vamos passear?
Grigori: - No jardinzinho, claro. Aí está ele. (Aponta para
o outro extremo do quarto. Volódia encaminha-se para lá e diz
a Grigori:) Hoje está fazendo muito frio.
Grigori: - Leve o trenó. (Estende-lhe uma tábua comprida.)
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 277

Volódia: - Isso sào esquis. (Esquia. procurando movimen­


tar as tábuas no assoalho.)
Nesse momento, chamam os meninos para que passeiem
com o resto do grupo.
Grigori: - Depois passearemos um pouco mais. (Os meni­
nos vão com o grupo .)
Ata n? 7. Gália e Bela (4; 0) recusam a proposta de brincar
de “si mesmas”. Gália olha fixamente para a experimentadora,
depois volta a cabeça e ruboriza-se. A experimentadora insiste,
Gália suspira e afasta-se. Bela segue-a.
Exper.\ - Gália, vamos jogar entào de maneira que você
seja Faina Semiónovna e Bela e eu seremos as meninas.
Gália (aproximando-se rapidamente): - Sim, eu serei Fai­
na Semiónovna e vocês as meninas.
Bela: - Está bem. (E, sem esperar resposta, Gália orde­
na:) Sentem-se à mesa. Nào, primeiro lavem as mãos; podem
lavá-las ali. (Aponta para a parede.)
Bela encaminha-se até a parede; a experimentadora segue-
a. Bela faz os movimentos de lavar as mãos.
Gália: - Agora sentem-se à mesa. Já preparei a empada e
as xícaras; agora lhes servirei o café. (Recolhe as folhas secas
caídas dos vasos de plantas e coloca-as em dois montículos de
duas ou trêsfolhas cada um.)
Bela e a experimentadora sentam-se à mesa e fingem que
comem; a experimentadora repete as ações dc Bela.
Gália (com expressão severa): - Bela, fique quieta. Nào
se conversa na hora de comer. (Põe-lhes duas folhas mais.)
Aproxima-se Valentina, que também se senta à mesa e
começa a comer.
Gália: - Bem, agora podem ir dormir a sesta.
Beta: - Primeiro vou lavar a boca. ( Vai até a parede e faz
como se bochechasse.)
Gália (aponta para umas cadeiras): - Dormirão aqui.
(Bela, Valentina e a experimentadora sentam-se.)
278 Psicologia do jogo

Gália: - Fechem os olhos e ponham as mãos debaixo da


cabeça. (Valentina mexe-se.) Valentina, não se mexa tanto nem
dê voltas na cama. (Valentinafica quieta .)
Gália: - Está bom, já dormiram o bastante. Levantem-se e
vistam-se.
Valentina, Bela e a experimentadora fazem como se cal­
çassem os sapatos e abotoassem os vestidos. Sentam-se à mesa.
Gália: - Vamos tomar o chá. (Coloca um cubo de madeira
diante de cada uma e com outro despeja o chá.) Isto é chá
(explica ela. Afasta-se, traz várias tampas de madeira e repar-
te-as.) São empadas. Uma para cada uma de vocês. (Valentina
come lentamente.) Valentina, não nos faça esperar. (Chama a
experimentadora. Diz que sua mãe veio buscá-la e sai. As ou­
tras meninas riem.)
Ata n? 8. Bóris e Alexei (6; 0) negam-se a brincar de “si
mesmos” e propõem outros jogos: Bóris, o de construir um
barco; Alexei, brincar de gato e rato.
Exper.: - Ei, joguemos de maneira que você, Bóris, seja
Faina Semiónovna, e Alexei e eu sejamos os meninos.
Bóris: - E eu os educarei e lhes darei comida. Faremos
ginástica e depois tomaremos o café da manhã.
Alexei: - Bóris, é melhor brincarmos dc gato c rato.
Bóris (sério): - Eu nào sou Bóris, sou Faina Semiónovna.
Alexei: Nào quero brincar disso, quero brincar de galo e
rato.
Exper.: - Depois brincaremos de gato e rato, agora vamos
brincar como foi combinado.
Bóris: - Ponham-se em fila, vamos, Alexei, fique aqui.
Alexei: - Vou chamar o Iúri. (Chama Júri.)
Bóris: - Ponham-se em fila. (Alexei e Iúri colocam-se um
atrás do outro.) Um, dois, três. (Alexei e Iúri marcam passo.)
Alto! Mãos em cima, mãos embaixo! (Alexei e Iúri obedecem
às ordens.) Bom, agora vamos tomar o café da manhà.
Alexei: - Era melhor fazermos construções de armar.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 279

Bóris: - Ninguém constrói nada antes do desjejum. (Os


meninos sentam-se no tapete e Bóris dá-lhes pastilhas de
ladrilho.) O que já tiver terminado pode construir.
Alexei (rápido): - Eu já comi. (Corre para junto dos mate­
riais de construção.)
Bóris: - Eu também. Vamos construir um barco. (Iúri
segue-os.)
Ata n? 9. Aliocha e Vásia (6; 0) aceitam com prazer brin­
car de “jardim-de-infancia”, proposta da experimentadora.
Aliocha: - Mas eu vou ser quem?
Exper.: - Você será Lídia Ivánovna.
Aliocha (ri): - Nào. é melhor que eu seja o tio Vásia.
Trarei o leite. Farei mais algumas coisas.
Vásia: - Pois eu serei o médico. Examinarei todos os me­
ninos.
Aliocha: - Sim. o médico. Você é menino e nào menina.
Vásia (em tom irritado): - Sim, eu vou sempre com minha
màe a um médico homem.
Exper.: - E eu, quem serei?
Aliocha: - Ah, pode ser Rosa Markovna ou Ekaterina
Konstantinovna.
Exper.: - E o que faço?
Vásia: - Faça alguma coisa com os mais pequenos.
Exper.: - Mas se não temos os pequeninos!
Aliocha: - Podemos chamar alguns.
Exper.: - Vamos fazer assim: Vásia e eu seremos as crian­
ças e você, Aliocha, será Lidia Ivánovna.
Aliocha : - Não, eu quero ser o tio Vásia. Já está na hora de
ir embora. (Ajasta-se correndo, carrega uma camioneta de
peças de quebra-cabeça e volta pouco depois.) Puxa, como
pesa, custou-me muito trazer isto.
Vásia (está sem fazer nada): - Será melhor chamar os
pequeninos. Eu serei o doutor e eles as crianças.
Exper.: - Bom, eu também serei criança.
280 Psicologia do jogo

Vásia (em tom animado)’. - Vamos, sentem-se, eu os cha­


marei. (Prepara. em cima da mesa, várias peças de quebra-
cabeça e uma lasca de madeira afiada.) Agora aproximem-se,
um de cada vez. Arregacem bem as mangas. Vou vaciná-los.
Exper..- Eu não quero. Isso vai doer.
Vásia (sorrindo): - Não, não vai doer. Farei assim e pron­
to. ( Vacina a experimentadora.)
Ao analisar o comportamento dos meninos nessa fase do
experimento, salta à vista, antes de qualquer coisa, sua anima­
ção, que já testemunhamos quando, depois de se negarem a
brincar de “si mesmos”, a experimentadora lhes propôs que
jogassem de maneira que um deles fosse o dirigente e o outro e
a experimentadora, as crianças. Quase todos aceitam com ale­
gria jogar assim, com a particularidade de que a reação à pro­
posta é diferente e depende do papel que tenham de represen­
tar, o de educadora ou o de menino.
O papel de educadora é assumido com gosto tanto pelos
meninos mais novos quanto pelos mais velhos. Em alguns casos,
é precisamente esse o papel mais desejado. Quem o pede antes
é quem faz o papel de educadora; ao outro nào lhe resta outra
saída senào fazer o de menino.
Somente em alguns meninos mais velhos provoca resis­
tência o papel de educadora, e eles procuram assumir outros
papéis, os de personagens masculinos. Aos menores essa in­
congruência não os preocupa, e desempenham bem o papel.
A atitude que observamos no que se refere aos papéis de
crianças é totalmente diferente. Algumas de menos idade acei-
tam-no sem reclamar. Na maioria dos casos, nào fazem mais
do que obedecer às indicações das crianças que representam
papéis de educadoras. Em alguns casos, tentam sintetizar o
papel o melhor possível. Por seu lado, os mais velhos procu­
ram nào interpretar papéis infantis. Nào lhes agradam. E pro­
põem ou outros jogos ou então outros papéis.
Essa conduta das crianças mais velhas parece estar em con­
tradição com os dados da primeira fase do experimento, na qual
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 281

as crianças mais velhas procuraram representar-se a si mesmas,


realizando os aspectos mais típicos de suas relações com a edu­
cadora e com os adultos em geral. A contradição parece-nos
evidente. A rejeição dos mais velhos a representar um papel
infantil deve-se, como é fácil supor, a duas circunstâncias.
Primeiro, a motivação central do jogo é, para as crianças, o
papel, e o papel de criança não pode servir, em geral, para dar
forma a essa motivação; segundo, essas crianças já ultrapassa­
ram a fase do desenvolvimento em que as relações com os edu­
cadores podem ser substanciais no conteúdo de suas vidas.
Os dados da segunda fase do experimento permitem vá­
rias deduções mais. Dão margem, sobretudo, para avaliar o
desenvolvimento do conteúdo do papel. No caso das crianças
menores, representar o papel de educadora significa dar de
comer às crianças, deitá-las para dormir e levá-las a passear. A
criança executa todas essas ações como se as outras crianças
que participam do jogo constituíssem a base da protagoniza-
ção. O educador atua, e as crianças subordinam-se. Entre o
educador e elas nào há relações, salvo as indicações sobre o
caráter dos atos e a utilização dos objetos inseridos no jogo.
Mas, à medida que as crianças vão crescendo, o papel de
educadora começa a incluir mais elementos da relação “edu-
cadora-crianças”. Aparecem observações e indicações acerca
de como se têm de executar tais ou tais ações, assim como
indicações sobre a lógica do desdobramento das ações e o
caráter das relações entre as próprias crianças: “Primeiro tem
de lavar a boca e depois deitar-se para dormir”, “Não fale
enquanto come”, “Levante da mesa” etc. A educadora não se
limita a operar com os objetos: coloca as xícaras na mesa, ser­
ve o café e as empadas às crianças mas, além disso, dirige-as e
orienta-as. A mudança do conteúdo do papel da educadora
baseia-se na passagem da representação das ações da educa­
dora, na qual as crianças servem somente de fundo à atividade
da educadora, para a representação das relações entre a educa­
dora e as crianças.
282 Psicologia dojogo

Outro tanto nào se pode afirmar a respeito das mudanças


do conteúdo do papel infantil que as crianças assumem. Assim,
na terceira fase do.experimento, propôs-se às crianças que ado­
tassem os papéis de outras crianças. A proposta de assumir os
papéis de suas companheiras encontra, por parte das crianças
menores, a mesma atitude que no jogo de “si mesmas”. Só em
idade um pouco mais avançada as crianças assumem seme­
lhantes papéis. Transcreveremos uma das atas típicas da con­
duta das crianças mais velhas na situação desse experimento.
Ata n? 10. A experimentadora propõe a Dina e Nina (6; 0)
que brinquem de maneira que Dina seja Tamara e Nina seja
Mila.
Dina: - Eu nào quero ser Tamara. Tamara sempre se com­
porta mal, nào faz as lições. Ontem procuramos os lápis por
toda a parte e ela os tinha escondido. Também vou ter de guar­
dar tudo na gaveta ou quê? (Ri.)
Exper.: - Bom, essas coisas nào lhe acontecem sempre...
Dina: - Quase todos os dias. Nào quero ser Tamara. Me­
lhor. (Pensa.) Bem, serei melhor Nina. (As duas soltam uma
gargalhada.)
Dina (agora como se fosse Nina): - Posso cuidar dos mais
pequenos? ( Volta-se para Nina e a experimentadora.) Ela gos­
ta dc estar sempre cuidando dos pequenos. No turno da noite
vestirei Irina e Vera. (As duas riem.)
Exper.: - Ei, meninas, sentemo-nos para estudar.
Mila (para Nina): - Tome este lápis. (As duas meninas
sentaram-se e escrevem tranqüilamente. De repente, Nina mos-
tra-se contrariada e volta as costas para a mesa.)
Exper.: - O que se passa?
Nina (sorridente): - O lápis é ruim.
Exper.: - Traga aqui para apontar.
Nina: - Nào, Mila fica de repente aborrecida, mesmo quan­
do nào tem motivo. (As meninas riem e escrevem.)
Exper.: - Nina, o que foi que você escreveu?
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 283

Dina (lê mais devagar do que de costume): - Uma bola.


Mamãe tem uma bola. (Nina continua de mau humor.)
Exper.: - Mila, vão terminar todas as lições e você ainda
nào escreveu nada no caderno. Nós já teremos acabado e você
estará com a liçâo por fazer. (Nina. a contragosto e de cenho
franzido, volta-se e escreve. De repente, as duas meninas sol­
tam um riso.)
Exper.: - Vocês são ótimas, trabalharam muito bem. (As
meninas riem e vão passear com as outras companheiras.)
Enquanto se veste, Dina diz: - Nina, de verdade, você ficou
mal-humorada igualzinho a Mila. Mila fica sempre assim.
Os dados que reunimos nesta fase do experimento eviden­
ciam de forma persuasiva que as crianças mais velhas, quando
assumem o papel de qualquer outra criança, captam ações e
ocupações típicas ou alguns traços característicos da conduta
dessa criança.
Pode-se supor que as crianças de idade menor ou mediana
ainda não sabem captar traços típicos soltos da conduta de suas
companheiras e por isso não assumem semelhantes papéis.
Simultaneamente, é lícito supor-se que na fase menciona­
da estamos diante dc uma evolução original, quer dizer, o que
sucede às crianças mais velhas quando representam os papéis
de seus companheiros acontece-lhes também em fases mais
precoces do desenvolvimento a respeito da representação de
papéis de adultos. Uma das premissas para que a criança adote
a representação do papel de qualquer adulto é que capte os tra­
ços típicos da atividade desenvolvida por esse adulto. Pode-se
supor que o conteúdo do papel se desenvolve precisamente em
relação com o caráter dessa captação e vai desde a escolha das
ações objetais exteriores características do adulto até as suas
relações com outras pessoas.
Que deduções se inferem dos dados aduzidos da nossa pri­
meira série experimental? Primeiro, esses experimentos mos­
tram que o aspecto constitutivo do jogo é que a criança assuma
28 4 Psicologia do jogo

um papel qualquer. Sem isso não se pode jogar. Assim que apa­
rece o papel, aparece o jogo. Não é obrigatório ser adulto no
jogo, porquanto se pode assumir o papel de outra criança
(conhecem-se jogos em que as crianças assumem os papéis de
animais). Não é forçoso que no jogo se crie uma situação lúdi­
ca especial com transferencia do significado de uns objetos
para outros. O jogo é possível, mantendo-se a realidade total
dos objetos, ações e situação geral (por exemplo, ao assumir os
papéis de companheiros, as crianças podem dispor-se a dar um
passeio de verdade, colocar um casaco, levar um brinquedo etc.;
podem brincar dc jardim-de-infancia, desenhar, resolver pro­
blemas, ler etc.), mas ainda fazendo tudo isso assumem forço­
samente um papel.
Em segundo lugar, os dados da primeira série dão margem
para julgar que o fundamental do jogo consiste cm reconstituir
as relações sociais existentes entre as pessoas. Por isso mesmo,
nos jogos de “companheiros” escolhem-se de preferência os
papéis dos mais travessos. Nas crianças desse tipo as relações
expressam-se com maior destaque.
Em terceiro lugar, esses dados evidenciam que o sentido
do jogo muda para as crianças dos diferentes grupos dc idade.
Para as mais novas, o sentido está nas ações da pessoa cujo
papel interpretam; para as de idade mediana, nas relações
dessa pessoa com os outros; e para as mais velhas, nas relações
típicas da pessoa cujo papel representam.
Assim, a essência interna do jogo consiste em reconstituir
precisamente as relações entre as pessoas. E claro que as crian­
ças nào se apercebem disso e, ao efetuarem o jogo das relações,
nào as notam. As relações estão encobertas pelas ações, pelos
traços típicos do comportamento de outra criança ctc.
Em quarto lugar, os dados da primeira série permitem su­
por que cada papel oculta determinadas regras de ação ou de
conduta social. Formulam-se como ações derivadas do papel.
Se nào há protagonização (entre as crianças mais velhas), essas
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 285

regras destacam-se com muita clareza e formulam-se antecipa­


damente, antes de se começar a atuar.
Em quinto lugar, os dados indicam que uma condição psi­
cológica essencial para que surja o jogo e, por conseguinte,
para que se adote um papel determinado, é a manifestação de
certas relações que sejam reais para a criança. Com base nos
dados obtidos, pode-se unicamente supor que existe certa lógi­
ca para realçar essas relações na consciência infantil. As rela­
ções que recebem maior destaque são, provavelmente, as do
adulto íntimo da criança, depois as existentes entre os adultos
e, no final do desenvolvimento, a atitude da criança para com
os adultos. A esse respeito, há fundamentos para supor que o
desenvolvimento da consciência pessoal da criança (ou seja, o
realce, para a consciência da criança, de suas relações com
outros e, por conseguinte, a sua postura pessoal e a sua propen­
são para ocupar uma outra postura) é resultado do jogo. Por
último, esses dados indicam que a atitude da criança em face
do papel interpretado por ela também se desenvolve. É um
pressuposto admissível que, no próprio começo do jogo, essa
atitude ainda não existe para a consciência da criança e vai des­
cobrindo-se pouco a pouco. Isso encontra expressão na com­
pleta ausência de discussões e crítica da interpretação de um
papel pelas crianças pequenas e no estabelecimento dessas dis­
cussões a partir dos seis ou sete anos de idade.
Todas as conjecturas expressas em virtude dessa série de
experimentos requerem demonstrações ulteriores. As duas
séries seguintes devem ou convencer-nos de que as conjecturas
são corretas ou então levar-nos a refutá-las.

Jogos nos quais se altera a sucessão das ações


A segunda série de experimentos consistiu em organizar
jogos com um conteúdo muito conhecido das crianças. No
decorrer do jogo, o experimentador fez tentativas para alterar a
286 Psicologia dojogo

sucessão das ações na interpretação dos papéis assumidos pe­


las crianças.
Apresentamos várias atas evidenciadoras tanto do caráter
do transcurso do experimento quanto do comportamento típico
das crianças nesses jogos.
Ata n? P. Brinca-se de "família**. A experimentadora
aproxima-se das crianças.
Liova (3; 5): - Você veio de visita? Pois eu tenho dois
filhinhos. Vamos dar-lhes dc comcr.
Exper. : - E você quem é?
Liova: - O papai.
Exper.: - Pode-se fazer dc conta que Zóia seja a mamãe?
Liova (com alegria): - Sim, sim, pode.
Zóia (3; 6) entra com gosto no jogo.
Exper.: - Ai, estou com tanta fome!
Zóia: - Já vou lhe dar de comer.
Exper.: - O que você vai me dar?
Zóia : - Sopa.
Liova: - E croquetes.
Zóia: - Sim, e croquetes. Depois um pastel.
Exper.: - Pois o pastel eu quero já.
Liova: - Já vou dar.
Zóia: - Nào, eu darei.
Exper.: - Ai, estou com muita fome!
Zóia: - Tome esta empada e um pastel. (Dá-lhe peças de
quebra-cabeça.)
Exper. (simula comer e depois pede): - Agora dê-me o
croquete.
Zóia traz peças de quebra-cabeça e coloca-se diante de Liova
c dc suas bonccas. Todos fazem como se estivessem comendo.
Exper.: - Dc que é a sopa?
Zóia: - Está boa. ( Traz a sopa e simula encher os pratos.)
Liova dá de comer a seus filhinhos.*
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 2H7

Exper/. - Eu nào quero, f iquei satisfeita com os pastéis.


Zóia abandona a mesa.
Ata n? 2. Brinca-se de “família**. Irina K. (3; 0) brinca
com duas bonecas, senta-as à mesa, dá-lhes de comer e vai di­
zendo: - Coma, coma, todas as crianças já comeram. - Dá de
comer a uma boneca.
Expetw - O que é que está comendo?
Irina : - Sopa. E um menino mau, come mal.
Exper.: - Ele quer primeiro um croquete.
Irina: - Nào. tem de acabar a sopa. ( Continua dando-lhe de
comer.)
Exper.: - Vê como chora! Quer o croquete.
Irina: - Aqui está. (Dá de comer de outro prato à boneca.)
Exper. : - Tomou a sopa toda?
Irina: - Sim, tomou-a toda. (Irina deita a boneca, depois
de fazer-lhe a cama com peças de quebra-cabeça. Cobre-a
com uma manta. Senta-se ao seu lado. Dois ou três minutos
mais tarde, pega a boneca e alisa-lhe o vestido.) Agora, é hora
de se lavar (esfrega uma na outra as mãos da boneca). Agora
vamos comer. Hoje temos compota e panquecas.
Exper.: - E em seguida batatas fritas com salada de pepino.
Irina: - Tome, coma. Aí estão as batatinhas. (Faz como se
lhe servisse no prato.)
Exper.: - Mas isto é a compota, as batatas ainda não estão
prontas.
Irina: - Sim, estão. Eu gosto mais das batatinhas.
Exper.: - E a compota?
Irina: - A compota depois.
Exper.: - Pois eu quero primeiro a compota.
Irina: - Tome, coma. (Faz como se lha servisse no prato.)
Ata n?5. Jogo de “jardim-de-infáncia *’. A experimentado­
ra propõe a Vália (3; 8) e Tamara (4; 0) que brinquem de "jar-
dim-de-infancia”.
Tamara: - Eu serei Maria Serguéievna.
28 8 Psicologia do jogo

Vália: - E eu darei comida às crianças. (Apanha duas bone­


cas e entrega uma à experimentadora.) Uma fica com você.
Exper.: - Preciso de mais uma menina. (Vália traz-lhe um
ursinho de pelúcia.)
Tamara: - Sentem-se todos à mesa. que vou serv ir a comida.
Exper.:- Ai,estou com uma fome!
Tamara: - Vou servir agora mesmo.
Exper.: - O que vai ter?
Tamara: - Sopa de couve e macarrão.
Exper. (Para Vália. Tamara foi para o outro extremo do
quarto): - O meu menino quer comer primeiro o macarrão.
Vália: - Já vou dar para ele. (Traz pequenas rodelas de
plástico coloridas.) Tome, coma rosquinhas. E aqui está o ma­
carrão. (Dá-lhe de um prato com peças redondas de uma torre
de madeira.) Está bom? Sim?
Exper.: - Sim, está bom. (Tamara traz a sopa. Põe pratos
para todos - são rodelas de madeira.)
Tamara: - Vá, comam.
Exper.: - O meu menino já está comendo o macarrão.
Tamara (zangada): - E quem foi que lhe deu? Aqui está a
sopa, depois trarei o macarrão. (Retira-lhe o prato.)
Exper.: - Por que lhe tirou o prato do macarrão?
Tamara: - Não se come assim. (Afasta-se. Traz o macar­
rão: duas pastilhas de ladrilho em cada prato, ou rodela de
madeira.) Agora vou fazer sorvete.
Exper. : - Eu quero o sorvete já.
Valentina (aproxima o prato): Aqui está o sorvete.
Tamara: - Isso nào é sorvete, é macarrão. Coma-o primei­
ro e então darei o sorvete. (A experimentadora finge comer.)
Vou trazê-lo agora. (Afasta-se da mesa e traz rodelas de plásti­
co epeças de quebra-cabeça.) Aqui estão as rosquinhas, estas
são as empadas e estes os caramelos.
Ata n? 6. Jogo de “jardim-de-infãncia ”. Gália (4; 0) brinca
de “ jardim-de-infancia” com Tamara (4; 0) e Xênia (3; 9).
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 289

Gália (para a experimentadora): - Brinque com a gente.


Temos uma comida muito saborosa.
Exper.: - Qual de vocês é Faina Semiónovna?
Xênia: - Sou eu e Gália é a avó (a cozinheira).
Gália vai para um canto e “cozinha” alguma coisa. A ex­
perimentadora senta-se com as crianças num tapete. Xênia põe
a mesa das bonecas e enquanto distribui os pratos diz: Estes
são para a sopa.
Exper.'. - Pois eu quero primeiro os croquetes.
Xênia: - Assim nào se come, os croquetes não vêm pri­
meiro. Vovó, você serve primeiro o segundo prato?
Gália (em tom severo): - Quem nào tomar a sopa nào
receberá o segundo prato. Aqui têm a sopa de espaguete.
(Deixa em cima da mesa uma caçarola.)
Xênia (apanha um pauzinho e finge repartir a sopa pelos
pratos): - Vamos, comam. (Depois, ao ver que não há colheres,
pede à educadora que as traga. São varetas de madeira.)
Gália: - Também faltam os garfos. (Recebe mais varetas e
coloca-as a um lado. Xênia reparte as varetas de madeira a
todos e senta-se, mete uma vareta no prato e leva-a à boca.)
Exper. : - Vovó, venha também comer com a gente.
Gália (séria): - A vovó nunca come com o grupo, comerei
depois.
Xênia: Todo o mundo já tomou a sopa ? Então pode servir
o segundo prato.
Gália serve à mesa com uma frigideira. Xênia recolhe os
pratos e põe outros.
Gália: - Aqui estão os garfos.
Xênia (retira os pauzinhos de antes e põe outros): - Estes
são os garfos. E este é o pão. (Deixa em cima da mesa várias
pastilhas de ladrilho. Finge repartir os croquetes. )
Exper.: - Pois eu quero primeiro o sorvete.
Gália: - De que sorvete você está falando, quando ainda
não acabou de comer o segundo prato?
Psicologia do jogo

Xênia : - Para vocês há croquetes com batatas. (Ela mesma


come.) Os croquetes estão muito bons. ( Todos comem.)
Gália: - O sorvete já está pronto.
Xênia : - E nós já acabamos o segundo prato.
Gália recolhe as varetas de madeira e, pondo-as na caçaro­
la, simula esfregá-las. Volta a reparti-las. As crianças apanham
as varetas e comcm, dando estalidos com a língua.
Ata n?8. Jogo de “jardim-de-infância A experimentado­
ra propõe a Alexei (4; 0) e Valentina (3; 8) brincar de “jardim-
de-infancia”.
Alexei: - Eu vou jogar e entreter as crianças.
Exper.: - Valentina, você cozinhará para nós, será a vovó.
Valentina: - Sim, sim. No sofá ainda há mais crianças.
(Apontapara as bonecas.) Bom, vou fazer a sopa.
Alexei: - Vamos para a mesa. Mas temos de lavar as mãos.
( Para a experimentadora.) Agora deixe o papel; quando se
come não se escreve. (A experimentadora coloca a folha de
papel em cima da cadeira a seu lado.)
Alexei: - Sirva o primeiro prato.
Exper.: - Eu não quero assim; quero que me tragam pri­
meiro a empada e depois a sopa.
Alexei: - Assim não se come. Depois da empada não se
toma sopa.
Exper.: - Pois eu prefiro assim.
Alexei: - Pois aqui não se come assim.
Valentina: - Aqui está a sopa.
Exper.: - Gosto mais da empada primeiro.
Valentina (desconcertada): - Alexei, dê a empada a Elena
Abrámovna.
Alexei (rindo): - Quem não toma sopa, não come empada.
(Senta-se, olha de soslaio para a experimentadora, sorri e si­
mula comer.)
Exper.: - Bem, vou comer um pouco.
Vália: - Vai comer tudo, e não um pouco.
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 291

E x p e r - Vovó, venha comer também conosco.


Valentina: - Ainda tenho de cozinhar. Estou acabando de
fazer a empada. (Afasta-se e volta. Põe na mesa pratos com
peças de quebra-cabeça epastilhas de ladrilho.) A empada de
hoje está com recheio doce.
Exper:. - Está boa, mas eu nào a como com a casca quei­
mada.
Alexei: - Aqui nào tem nada queimado. Tem de comer tu­
do. (Come.)
Exper.:- Eu já acabei, deixo só estas casquinhas.
Alexei (severo): - Enquanto nào comer, nào fará a sesta.
(Cala-se.) E nào lhe daremos mais empadas.
A experimentadora come tudo. Alexei sugere que se dei­
tem todos para dormir a sesta.
Ata n? 10. Jogo de “jardim-de-infância ”.
Exper.: - Quero brincar com vocês. De que é que estão
brincando?
Gália: - Nós? De jardim-de-infancia. Eu sou a cozinheira.
Valentina: - Eu sou Lídia Ivánovna (a educadora), e Kátia
e você serão as meninas. Agora leremos livrinhos e a vovó vai
preparar a comida.
Kátia vai até a mesa, onde coloca os pratos sobre peças de
quebra-cabeça.
Valentina: - Vamos ler O incêndio. (Olha as estampas e
declama o texto de memória.) Agora para a mesa. (Aproxima-se
da mesa, põe os pratos e as colheres. No centro coloca um vaso
com plantas.) Para que fique mais bonito. (Diz e, em seguida,
dando uma volta, acrescenta em voz alta:) Pode servir a comida.
Gália (traz uma panela e coloca-a sobre a mesa): - Aqui
têm sopa de almôndegas em farinha.
Valentina simula reparti-las com uma colher e põe dois ou
três pedacinhos de papel em cada prato, dizendo: - Estas são as
almôndegas.
292 Psicologia do jogo

Exper.: - Nào ponha para mim, eu quero antes o segundo


prato.
Valentina (rindo): - Isso é coisa nova; o segundo prato nào
vai antes do primeiro. (Serve-a.)
Exper.: - Mas eu quero antes o segundo.
Valentina: - Bem se vê que sua màe a mima demais. (As
duas crianças riem.)
Gália: - Assim não se come.
Exper.: - Está bem, tomarei um pouco de sopa. Vovó,
sente-se para comer aqui conosco.
Gália: - Tenho de preparar o segundo prato e depois o chá.
A vovó come depois. (Afasta-se.)
Para o segundo, Valentina traz um prato com pedacinhos de
papel e explica: - São croquetes de arroz.
Exper.: - Para mim, sem arroz.
Valentina: - Então nào comerá croquetes. Quem nào come
arroz, não pode provar os croquetes. (Ri.) Pode lavar a boca e
fazer a sesta. (Põe vários papeizinhos nos pratos das outras
meninas. Estas fingem comer.)
Já se disse antes que se organizou o jogo de “medico” para
as crianças mais velhas, durante o qual a experimentadora tam­
bém tentou alterar a lógica das ações facultativas. Apresen­
taremos várias atas típicas da conduta das crianças neste jogo.
Ata n!} 12. Jogo dc “médico”. Kátia K. (6; 0) finge de
médico, senta-se à mesa e prepara pedacinhos de algodão, dois
lápis (termômetros) e um pequeno cone (seringa) num copo.
Kátia: - Entrem. (As crianças entram e sentam-se.)
Gália: - Estou com muita dor de cabeça e de garganta
também.
Kátia: - Mostre-me a garganta. Diga “aaaaa”. (Examina-
lhe a garganta.) Escarlatina. Está com escarlatina. A ambulân­
cia vai levá-la ao hospital agora mesmo. (Simula falar pelo tele­
fone.) Sim, uma menina adoeceu. Sim, mande a ambulância.
Exper.: - Talvez seja melhor mantê-la aqui e deitá-la no
dormitório. Ficará de cama uns dias e logo estará boa.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 293

Kátia (com ironia): - Uns dias são muitos dias. Tem de


passá-los no hospital. Quando se tem escarlatina, deve-se ficar
no hospital. (Aponta para um canto do quarto.) O hospital
ficará ali. (Leva Gália, coloca várias cadeiras em fila e deita-
a. Volta e senta-se de novo à mesa.)
Volódia: - Doutor, ainda não lavou as mãos!
Kátia: - Ah, tinha-me esquecido! (Simula lavaras mãos.)
Volódia: - O doutor me mandou vir hoje; vai me vacinar?
Kátia: - Sim, sim, vou vacinar todo o mundo. (Senta-se à
mesa, apanha um pedaço de algodão, umedece-o e manda Vo­
lódia arregaçar a manga.)
Volódia: - Aonde vai aplicar?
Kátia: - Aqui. (Aponta-lhepara o braço.)
Volódia: - Tenha a bondade...
Kátia fricciona-lhe o braço com o algodão, aproxima o co­
ne e, manipulando com este, diz: - Como vê, correu tudo bem.
Não doeu nada, não foi?
Volódia (sorri episca o olho): - Claro que doeu, doeu sim.
Aproxima-se Kim.
Kátia: - Desabotoe a manga e suba-a. (Apanha um pedaço
de algodão.)
Exper.: - Quer que traga álcool de verdade para esfregar o
braço? Tenho um vidro.
Kátia (animada): - Sim, sim!
Exper.: - Vá vacinando-o enquanto vou buscar o vidro;
depois, fricciona-lhe o braço. (Kátia sacode a cabeça em anuên­
cia, pega no cone e aplica-o em Kim. A experimentadora tira de
seu bolso um vidro. Kátia umedece o algodão e dispõe-se a
esfregar o braço de Kim.)
Volódia (protestando): - Isso nào se faz assim! Vai tirar-
lhe toda a vacina. Ainda acaba por infeccionar-lhe o braço.
Deixe assim que é melhor.
Kátia (séria): - Tinha-me esquecido. Bem, podem ir em­
bora. Acabou-se.
294 Psicologia do jogo

Dimitri (aproximando-se): - Estou de novo com dor de


ouvido.
Kátia tapa-lhe o ouvido.
Ata n? 18. Jogo de “médico ”. Ivà (6; 6) é o médico; veste
uma bata branca e senta-se tranqüilo à mesa.
Ivan: - Quem tiver comparecido para que eu examine, não
faça barulho. Assim nào posso auscultar. (Esperam sentados
Ida, Váliae Volódia.)
Volódia: - Doutor, prcciso que me vacine contra a difteria.
Ivan: - Prepare o braço, arregace a manga. (Apanha um
pedacinho de algodão e umedece-o numa xícara com água.)
Primeiro fricciona-se c depois aplica-se a vacina. (Esfrega-lhe o
braço.)
Volódia (encolhendo-se e fazendo caretas): - Ai. como
dói, doutor!
Ivan: - Não dói nada. (Pega no cone. aplica-o no braço e
aperta.) Pronto, entrou toda. Agora esfrega-se com um algo­
dão seco para que não saia.
Volódia: - Não saiu nada.
Ivan: - Bem, então nào é necessário.
Acerca-se Valentina: - Doutor, estou com dor de cabeça e
garganta. Peguei gripe com certeza.
Ivan: - Ponha o termômetro. (Dá-lhe um lápis. Valentina
coloca-o na axila.)
Aproxima-se Dimitri: - Me chamou?
Ivan (sorridente): - Sim, falta-lhe a vacina para ir para a
casa de campo. Arregace a manga.
Dimitri: - Mas eu tomei todas as vacinas.
Ivan (sério): Nem todas. (Dimitri arregaça a manga. Ivã
pega um pedaço de algodão para esfregar-lhe o braço.)
Exper.: - Enquanto lhe dá a vacina eu trarei o álcool para
desinfetar, depois você desinfeta.
Ivan: - Você terá que esperar até que chegue o álcool.
Exper.: - Ele tem que viajar logo, é melhor que lhe dê já a
vacina c desinfete depois.
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 295

Ivan (sorrindo): - Então esfrego-lhe o braço com este


álcool e depois o de Vásia com o de verdade. (Esfrega o braço
de Dimitri com água e põe-lhe a vacina. O braço de Vásia, a
quem vacina em seguida, fricciona já com álcool.)
Terminado o jogo, a experimentadora interroga Ivan: - Por
que não queria vacinar primeiro e esfregar depois o braço com
álcool?
Ivan (confuso e em voz baixa): - Assim não se faz. Nào se
pode fazer assim.
As atas fornecidas sào mais do que suficientes para ilus­
trar o modo como se desenrolou o experimento e mostrar as
formas mais típicas de comportamento das crianças de diferen­
tes idades neste jogo. Os dados obtidos nesta série de experi­
mentos foram analisados por quatro lados:
a) o que é, para a criança, o conteúdo central;
b) presença do papel no jogo e o caráter da sua representação;
c) caráter da lógica das ações e o que a determina;
d) atitude da criança em face da alteração da lógica das
ações e motivos do protesto contra a alteração.
Os dados coletados mostram, sobretudo, que com um mesmo
tema ou argumento do jogo, quer dizer, ao ser reconstituída pelas
crianças uma mesma esfera de atividade, o lugar central no jogo
infantil é ocupado, de fato, por diversos aspectos da realidade. A
esfera de atividade que se reflete no jogo é o seu tema ou argumen­
to, e o que dessa esfera se reflete precisamente no jogo é aquilo a
que chamamos o seu conteúdo. Vemos que, com um mesmo argu­
mento, as crianças de diferentes idades refletem um conteúdo
diverso. Os nossos dados dão margem para destacar quatro níveis
de desenvolvimento do jogo. Descreveremos separadamente cada
um desses níveis.

Primeiro nível de desenvolvimento do jogo


1. O conteúdo central do jogo é constituído principalmen­
te pelas ações com determinados objetos dirigidas ao compa­
296 Psicologia do jogo

nheiro de jogo. São as ações da “mãe” ou da “educadora” diri­


gidas às “crianças” ou “filhos”. O mais importante na repre­
sentação desses papéis é dar de comer a alguém. É indiferente
a ordem pela qual as “mamães” c as “educadoras” dão. e o que
dão precisamente de comer a seus filhos ou crianças.
2. Os papéis existem em realidade, mas são determinados
pelo caráter das ações, e nào sào eles que as determinam. Em
geral, os papéis não são impostos às crianças, e estas nâo se
atribuem os nomes das pessoas cujos papéis assumem. Mesmo
no caso de haver no jogo distribuição de funções por papéis, e
estes serem denominados, por exemplo, uma criança represen­
ta a mamãe, outra o papai, ou uma criança, a educadora c outra,
a cozinheira do jardim-dc-infancia, as crianças nào se colocam,
em realidade, frente a frente nas relações típicas da vida.
3. As ações são monótonas e constam de uma série de ope­
rações que se repetem (por exemplo, a passagem de um prato
para outro ao dar de comer). No que se refere às ações, o jogo
limita-se aos atos de dar de comer e, logicamente, nào passam
a outros atos consecutivos, assim como tampouco sào precedi­
dos de outros como lavar as mãos etc. Se essa ação se executa,
a criança volta logo à anterior.
A lógica das ações infnnge-sc com facilidade sem que as
crianças protestem. A ordem da refeição não é o essencial.
Exemplos de jogos que se encontram no nível indicado
sào os descritos nas atas 1 e 2.

Segundo nível de desenvolvimento do jogo


1. O conteúdo fundamental do jogo. tal como no nível pre­
cedente, é a ação com o objeto. Mas coloca-se em primeiro
plano a correspondência da açào lúdica com a açào real.
2. Os papéis são denominados pelas crianças. Rcpartem-
se as funções. A representação do papel reduz-se a executar
ações relacionadas com o papel dado.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 297

3. A lógica das ações é determinada pela sucessão da vida,


quer dizer, pela sucessão observada na vida real. O número de
ações amplia-se e transpõe o limite de um só tipo, seja ele qual
for, açòes. A alimentação relaciona-se com a ação de cozinhar
a refeição e servi-la à mesa. E o final desta relaciona-se com as
ações que a seguem na lógica da vida.
4. A alteração da continuidade das ações não é de fato
aceita, mas tampouco se protesta nem se dá motivos a rejeição.
Exemplo desse nível de jogo é a ata 5 que apresentamos. Essa
ata também oferece interesse porque no jogo se trata de crian­
ças que se encontram em dois níveis distintos de desenvolvi­
mento do jogo. Enquanto Valentina se encontra no primeiro
nível e, para ela, o conteúdo fundamental do jogo é dar de
comer, sendo-lhe indiferente em que ordem, Tamara já subiu
para o segundo nível, e o que lhe importa não é simplesmente
dar de comer, mas fazê-lo com certa lógica correspondente à
lógica real das ações na vida. Em consonância com isso, Ta­
mara corrigc as ações de Valentina.

Terceiro nível de desenvolvimento do jogo


1. O conteúdo fundamental do jogo chega a ser a inter­
pretação do papel e a execução das ações dele provenientes,
entre as quais começam a destacar-se as ações especiais trans­
missoras do caráter das relações com os outros participantes
no jogo. Exemplo de ações desse tipo são as invocações aos
outros participantes no jogo, relacionadas com a interpretação
do papel: por exemplo, a exortação ao cozinheiro: “sirva o pri­
meiro prato” etc.
2. Os papéis estão bem delineados e destacados. As
crianças mencionam os seus papéis antes de o jogo começar.
Os papéis determinam e encaminham o comportamento da
criança.
298 Psicologia do jogo

3. A lógica e o caráter das ações determinam-se pelo papel


assumido. As ações adquirem variedade: não é só dar propria­
mente de comer, mas também ler histórias às crianças, deitá-
las para dormir etc.; não só vaciná-las, mas também auscultá-
las, fazer-lhes curativos, medir-lhes a temperatura etc. Aparece
a fala teatral especificamente dirigida ao companheiro de jogo
em congruência com o próprio papel e o papel interpretado
pelo companheiro; mas ocasionalmente abre-se caminho para
as relações ordinárias nào lúdicas.
4. A infração da lógica das ações é alvo de protestos, que
costumam reduzir-se à alegação de que “na vida nào é assim”.
Destaca-se a regra de conduta a que as crianças submetem suas
ações. A este respeito, merece assinalar-se o fato de que a
infração à regra ou à ordem das ações é mais bem percebida
por outra pessoa do que por quem a executa. A censura de ter
infringido uma regra desgosta a criança, que procura corrigir
seu erro e encontrar-lhe uma justificação. Exemplo disso pode
ser o comportamento de Kátia (ver a Ata 12).

Q uarto nível de desenvolvimento do jogo


1. O conteúdo fundamental do jogo é a execução de ações
relacionadas com a atitude adotada em face de outras pessoas
cujos papéis são interpretados por outras crianças. Essas ações
destacam-se com clareza do fundo de todas as ações ligadas à
representação do papel. Assim, por exemplo, ao interpretar o
papel de educadora, predominam as advertências sobre a con­
duta das crianças: “enquanto não comer tudo, não irá dormir e
nào darei mais pastel” ou “vão para a mesa, mas têm de lavar
antes as mãos”; ao interpretar o papel de médico, ressaltam as
instruções sobre o comportamento apropriado dos pacientes:
“ponha o braço assim”, “arregace a manga, isso. Calma, não
chore, isto nào vai doer nada”, “O quê, está doendo? Estou
fazendo bem, nào pode doer”, “Disse-lhe que ficasse na cama
e você se levanta” etc.
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 299

2. Os papéis estão claramente definidos. Durante todo o


jogo, a criança observa uma nítida linha de conduta. As fun­
ções histriónicas das crianças estào relacionadas. A fala tem
um caráter teatral manifesto, que é determinado tanto pelo
papel do interpelante quanto pelo do interpelado.
3. As ações desenvolvem-se em ordem estritamente re­
constituinte da lógica real. Sào múltiplas e refletem a variedade
das realizadas pela pessoa a quem a criança representa. Estào
claramente destacadas as regras que a criança observa, com
invocações da vida real e das regras nela existentes. Estão niti­
damente enfatizadas as ações dirigidas para os diversos perso­
nagens do jogo.
4. A infração da lógica das ações e regras é repelida; a
renúncia a infringi-la nào é motivada pela simples invocação
da realidade existente, mas também pela indicação da raciona­
lidade das regras.
Os níveis de desenvolvimento do jogo que destacamos ao
analisar os dados são. simultaneamente, fases de desenvolvi­
mento. Se se distribuem todos os dados obtidos por grupos de
idade dos participantes nos jogos, vê-se claramente que, à
medida que a idade aumenta, eleva-se o nível de desenvolvi­
mento dojogo.
Ora, esses níveis sào de idade, mas não no sentido de que
estejam determinados precisamente pela idade. Os dados evi­
denciam que as crianças de uma mesma faixa etária podem
encontrar-se em diferentes níveis c entre dois níveis concomi­
tantes. Nào tivemos ocasião de ver em nosso experimento uma
situação em que crianças de três e quatro anos de idade mos­
trassem o nível último e mais elevado, mas sim de três anos
que mostravam o segundo nível e de quatro anos que mostra­
vam o terceiro nível. Isso evidencia que os níveis marcados por
nós nào sào tanto fases etárias quanto graus de desenvolvimen­
to do próprio jogo protagonizado. Cabe logicamente pergun­
tar: Que ligaçào existe entre esses graus de desenvolvimento, e
como transcorre o processo de transição de um grau a outro, ou
300 Psicologia dojogo

seja, qual é a dinâmica do desenvolvimento do jogo? Os dados


da série apresentada nâo permitem oferecer uma resposta
exaustiva a essa pergunta essencial. Isso se pode averiguar uni­
camente por meio de uma pesquisa especial.
Ao analisar algumas atas, deparamo-nos com dificuldades
para referir um jogo a um nível determinado. Segundo o tipo ge­
ral, as crianças parecem encontrar-se no primeiro nível, mas já se
observam alguns sinais da passagem para o segundo ou de que
num mesmo jogo coexistem indícios dos níveis segundo e terceiro
ou dos níveis terceiro e quarto. Assinalamos essas peculiaridades.
Em que é que se manifestam com a maior freqüência?
Em alguns jogos incluídos no primeiro nível encontramos
indícios de transição a um nível mais elevado, os quais consistem
em que as crianças começam oferecendo resistência às infrações
da lógica operacional. Essa resistência ainda é muito débil, às
vezes uma simples perplexidade em face da mudança de trajetória
das ações, alegando-se às vezes que “na vida nào é assim”. O
fundo geral é uma evidente preponderância dc ações objetais diri­
gidas ao companheiro de jogo. O principal do jogo para tais cri­
anças é atuar com relação à boneca ou ao companheiro de jogo,
por exemplo, dar-lhe de comer mas, por meio dessa açào, já se vis­
lumbra um conteúdo novo, “como na realidade”. Essa correlação
mais profunda do modelo com suas ações reais é, nesta fase, o
princípio motor que traslada o jogo para um novo nível. Uma cor­
respondência maior da lógica das ações protagonizadas com a rea­
lidade da vida dá lugar a uma interpretação mais precisa do papel,
ou seja, à correlação das ações com o papel assumido, e está liga­
da à adoção do nome do papel: “eu sou a educadora”, “eu sou a
cozinheira”.
Nas crianças que se encontram no segundo nível também se
observam algumas contradições que consistem, sobretudo, em
que sobre o fundo geral do jogo inicia-se um processo de enri­
quecimento cada vez maior das ações executadas pela criança.
Os atos de dar de comer inserem-se na lógica da vida e ligam-se
a outros tipos de ocupações: lavar as mãos, deitar-se para dormir
a sesta, por uma parte, e por outra, a própria ação de dar de
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 301

comer divide-se em várias funções separadas: cozinhar, pôr a


mesa, repartir os alimentos nos pratos etc. O conteúdo que, na
fase anterior, entrava num só papel, agora divide-se entre dois
papéis. Assim começa o terceiro nível, cm cujo conteúdo lúdi­
co já se vào manifestando claramente as regras que refletem
um sistema de relações com os outros participantes no jogo
que assumem a protagonização deste ou daquele papel: a edu­
cadora e as crianças; a educadora, a cozinheira e as crianças; o
médico e o paciente; o médico, a enfermeira e o paciente.
O terceiro nível, em comparação com os dois primeiros, já
constitui uma fase de qualidade peculiar. A diferença manifes­
ta-se em que as ações objetais constitutivas do conteúdo do jo­
go passam para segundo plano, e as funções sociais das pes­
soas sobem ao primeiro.
A transição do terceiro para o quarto e último grau transcor­
re sob o signo de uma correspondência cada vez maior entre as
relações lúdicas e as relações reais. Exteriormente, o quarto nível
parece-se com o segundo, já que tanto em um quanto em outro
manifesta-se com clareza a tendência para que as ações histrióni­
cas de um correspondam à realidade da vida, ao modelo. A dife­
rença primordial baseia-se, nào obstante, em que enquanto no
segundo nível a correspondência com a realidade da vida diz res­
peito à lógica externa das ações, à sua continuidade exterior, no
quarto nível já é uma correspondência com a lógica das relações
sociais autênticas e seu sentido social. Nisso assenta a profunda
diferença existente entre esses dois níveis.
No tocante à análise do processo evolutivo do jogo, deve-
se assinalar que entre os níveis primeiro e segundo há muito
em comum, assim como entre os níveis terceiro e quarto. No fun­
do, temos duas fases fundamentais, ou dois estágios, do desen­
volvimento do jogo. Na primeira (de 3 a 5 anos), o conteúdo
fundamental do jogo são as ações objetais, de orientação so­
cial, correspondentes à lógica das ações reais; na segunda (de 5
a 7 anos), as relações sociais estabelecidas entre as pessoas e o
sentido social de sua atividade, correspondentes às relações
reais existentes entre as pessoas.
302 Psicologia dojogo

Como se enriquece o conteúdo do jogo? A fonte funda­


mental do enriquecimento do conteúdo dos jogos infantis sào
as idéias que as crianças têm da realidade circundante; e se nâo
as têm, não se pode levar o jogo a cabo. Simultaneamente, ao
adotar a postura de um personagem no jogo e ao assumir um
papel determinado, a criança vê-se forçada a destacar da reali­
dade as ações e relações dos adultos necessárias para cumprir a
tarefa lúdica. Assim, a criança pode saber ainda antes do jogo
que a cozinheira prepara a comida, e a educadora dá de comer
às crianças, mas só quando se coloca no lugar da educadora é
que se vê diante da necessidade dc encontrar e destacar as rela­
ções da educadora tanto com as crianças quanto com a cozi­
nheira, de estabelecer as funções das diversas pessoas e as liga­
ções entre elas.
Confirmaram-se as nossas conjecturas acerca de que a
essência do jogo estriba-se cm refletir as relações sociais entre
as pessoas, assim como a de que o conteúdo do jogo se desen­
volve, desenvolvimento este que possui determinadas fases.
Por último, confirmou-se que a conduta da criança no
jogo sujeita-se a certas regras ligadas ao papel cuja interpreta­
ção ela assume. Ao mesmo tempo, conseguiu-se esclarecer que
o essencial para o desenvolvimento do jogo é a atitude da crian­
ça em face do papel que representa. Nào obstante, baseando-
nos nos dados da segunda série, essa questão pode unicamente
ser formulada, uma vez que esses dados nào apontam para
nenhuma resposta.

Alteração do sentido do papel


Para elucidar a atitude da criança diante do papel, realiza­
mos uma terceira série de experimentos. Nesta, o papel foi
posto em contradição com as ações que a criança deveria reali­
zar. Consistia em duas variantes de experimentos.
0 desenvolvimento do jogo na idade prè-escolar 303

Na primeira variante, brincou-se com as crianças de “via­


gem de bonde”. Ofereceu-se-lhes uma bolsa de cobrador para
o dinheiro, bilhetes e um boné, e preparou-se um local para o
motomeiro.
Quando o jogo já se desenvolvera, propôs-se às crianças que
brincassem de maneira que o motomeiro vendesse as passagens e
o cobrador conduzisse o bonde. Iniciado o jogo modificado, a
experimentadora, que brincava com as crianças, desceu numa
parada c disse que o chefe do depósito chamava o motomeiro.
Na segunda variante desenvolveram-se jogos com regras:
“O lobo e as lebres”, “O lobo e os gansos”, “O gato e os ratos”,
“A raposa e as lebres”. Propôs-sc que os gansos capturassem o
lobo. as lebres a raposa ou o lobo, e os ratos o gato. Com o que
as ações entraram em contradição com os papéis interpretados
pelas crianças.
Apresentamos várias das atas mais típicas que caracteri­
zam tanto o experimento quanto as formas genuínas de condu­
ta das crianças dos diferentes grupos de idade.
Ata n!'6. Jogo do “bonde Participam: Tamara M., Tama­
ra T. e Valentina (3; 0). Valentina faz de mamãe e Tamara M.
de filha.
Tamara M.: - Mamãe, já vou para casa.
Exper.: - Pois acaba de chegar o bonde.
Tamara T.: - E justamente no bonde que quero ir. (Sobe,
sendo seguida por Valentina.)
Valentina: - Vou com a minha filha. (Leva Tamara M. pela
mão esobem.)
Exper.: - Aqui está a bolsa para o cobrador. Quem vai ser
o cobrador?
Tamara T.: - Eu, eu! (Toma a bolsa e reparte em seguida
as passagens. Acerca-se Victor e também sobe.)
Tamara M.: - Eu já cheguei. (Desce do bonde.)
Tamara T. : - Aonde vai, aonde vai?
Tamara M.: - É que eu já cheguei. (Ri.)
304 Psicologia Jo jogo

Valentina (com ironia): - Tem graça. A màe fica e a filha


desce. (Corre atrás dela e mete-a de novo no bonde. Tamara T.
volta a repartir passagens.)
Exper/. - Camaradas, onde está o motorneiro do seu bonde?
As crianças olham à sua volta.
Tamara T. \ - Eu serei o motorneiro. (Desvencilha-se rapi­
damente da bolsa dos bilhetes e dirige-se para a plataforma.)
Exper.\ - Mas você é a cobradora. Que Victor seja o pas­
sageiro e Valentina o motorneiro.
Tamara T. \ - Não, eu quero ser.
Exper.: - Bem, você manejará o motor, mas a chamare­
mos cobradora.
Valentina: - Não, a cobradora agora sou eu. Já tenho os
bilhetes.
Tamara T.: - Valentina já é a cobradora. Tilim, tilim, parti­
mos. (Faz girar a manivela e toca a campainha.)
Valentina volta, entrementes, a vender passagens. As crian­
ças vão lavar as mãos e em seguida retornam e voltam a subir no
bonde. A educadora aproxima-se e pergunta: - Aonde vão?
As crianças (em coro): - A casa de campo.
Exper.: - E como vão?
Tamara T. e Valentina: - De bonde.
Victor: - De trem.
Tamara M.: - Vamos de bonde.
Exper.: - Valentina, quem é você?
Valentina (séria): - A cobradora. Nao vê que estou ven­
dendo passagens? Tem dinheiro?
Exper.: - Sim. (Estende-lhe um papel.)
Valentina: - Muito bem, tome a sua passagem.
Exper.: - Falta muito para chegarmos?
Valentina: - Chegaremos bem depressa!
Tamara T.: - Tilim, tilim. ( Toca a campainha.)
Exper.: - Tamara, e você quem é?
Tamara T. (sorrindo): - A cobradora. (Ri.)
Neste experimento foi impossível tirar as crianças do papel.
A causa é que o papel estava fundido para*elas com os objetos
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 305

com que operavam. Por isso a mudança de objetos implica a mu­


dança de papel.
Ata n? 4. Jogo do “bonde ”. Participam Volódia e Valentin
(4; 0). Volódia pega a bolsa do dinheiro e os bilhetes. Valentin co­
loca diante dele uma manivela sobre um cilindro. Valentin
senta-se à frente; atrás dele há seis cadeiras. Volódia senta-se
na última. Valentin recebe um gorro com tapa-orelhas e luvas
(atributos de motomeiro).
Volódia (toca a campainha): - Tilim, tilim. Vai partir. ( Va­
lentin gira a manivela. Volódia está tranqüilo, tira um papel e
entrega-o à experimentadora, que se faz de passageira. Volta a
tocara campainha.)
Alexei entra no quarto. Volódia propõe-lhe: - Suba de­
pressa que o bonde vai partir. - Alexei sobe. Volódia dá-lhe
uma passagem. Valentin gira a manivela. Ao ouvir o sinal de
“tilim, tilim”, deixa de girá-la e, obedecendo ao mesmo sinal,
começa de novo.
Exper.: - Agora vamos fazer assim: Volódia será o cobra­
dor, mas que gire a manivela e conduza o bonde, e Valentin, que
é o cobrador, pode substituí-lo. (Os meninos trocam de lugar
Valentin toma a bolsa, mas continua com o gorro na cabeça e
Volódia senta-se diante da manivela.)
Valentin: - Tilim, tilim.
Volódia: - Partimos. ( Valentin vende passagens.)
Exper.: - Cidadãos, onde está o motomeiro? Tenho de di­
zer-lhe uma coisa.
Volódia: - Está aqui, eu sou o motomeiro.
Valentin: - O motomeiro é ele.
Exper.: - E você quem é?
Valentin: - O cobrador
Exper.: - Mas se já tínhamos combinado que seria o mo-
torneiro e o substituiria por alguns instantes.
Volódia (contrariado): - Sim, mas se eu estou aqui é por­
que sou o motomeiro. Agora o motomeiro sou eu, e não ele.
306 Psicologia dojogo

Exper.: - Valentin usa até o gorro, como os motomeiros.


Valentin: - Os cobradores também usam, que eu já vi.
Ata n? 10. Jogo do “bonde". Participam Ivan, Leonid e
Kátia (5; 0).
A experimentadora propõe que se brinque de “bonde”.
Mostra a bolsa, a campainha e a manivela do motor. As crian­
ças respondem alegremente: - Sim, sim, vamos brincar.
Leonid: - O motorneiro sou eu. (Apanha a manivela.)
Ivan: - E eu o cobrador.
A experimentadora e Kátia sentam-se. - Vocês sâo as pas­
sageiras - anuncia Leonid, que prepara o motor. Ivan toca a
campainha e diz a Leonid: - Partida. - Entrega passagens a
Kátia e à experimentadora. Esta escreve alguma coisa.
Ivan (com ironia): - Até no bonde escreve! No bonde nào
se escreve, lê-se. (Ri e volta a tocar a campainha.)
Exper.: - Quando chegarmos à rua Bauman me avise, por
favor.
Ivan: - Ainda nào chegamos. (Toca a campainha.)
Leonid vira a cabeça, ri e aciona a manivela.
- Esta é a rua Bauman. Pode descer informa Ivan.
A experimentadora desce. Ivan toca a campainha, Leonid
movimenta a manivela. A experimentadora aproxima-se nova­
mente das crianças e propõe: - Brinquemos agora de que o mo­
torneiro venda passagens e o cobrador conduza o bonde,
Ivan: - Eu serei o motorneiro e Leonid o cobrador. (A expe­
rimentadora volta a explicar.)
Leonid: - O que você diz é que ele estará aqui. (Aponta o
lugar do cobrador.)
Exper.: - Nào, ele vai vender passagens.
Leonid : - Dêem-me a bolsa e os bilhetes. Vou ser um co­
brador que não deixará passar um só carona. Quando vir um
carona, abordo-o e dou-lhe uma multa. ( Todos riem.)
Ivan: - Vamos partir. ( Toca a campainha.)
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 307

Depois de viajar passando por várias paradas, a experi­


mentadora desce e, ao se afastar, chama: - Camarada motor-
neiro, o chefe pede que se apresente a ele.
Ivan aproxima-se rapidamente. Leonid corre atrás dele.
Ata n? 11. Jogo cio “b o n d e Participam Grígori (6; 0) e
Kira (6; 5).
A experimentadora propõe às crianças que brinquem de
“bonde”.
Grígori: - Chamaremos outros meninos.
Exper.: - De que grupo?
Grígori: - Dos mais pequenos. (Sai correndo e traz com
ele Vera e Bóris. Senta-os nas competentes cadeiras.)
Exper. : - Qual de vocês vai ser o cobrador?
Grígori: - Eu serei o cobrador. Tem aí os bilhetes?
Exper.: - Sim, e a bolsa também. (Entrega-lhe a bolsa e os
bilhetes. Kira prepara o motor.) Já se pode subir?
Grígori: - Sim. pode. O bonde vai sair agora mesmo. Ah,
e como vou tocar a campainha?
Exper.: - Tome uma. (Entrega-lhe uma pequena sineta.)
Grígori (sorrindo): - A campainha do bonde não é assim,
puxa-se por um cordão. Bem, penduro-a em uma cadeira e
assim poderei tocar. (Ata a sineta em uma cadeira.) Vamos.
(Começa a distribuir as passagens.)
Vera nào consegue ficar quieta e põe-se de pé na cadeira.
Grígori (sério): - Não é permitido aos passageiros ficar de
pé em cima das cadeiras. ( Vera dança na cadeira e ri. Grígori
dá um leve sorriso.) De quem é esta menina tão travessa?
(Dirigindo-se à experimentadora.) É sua? Faça-a ficar sentada.
A experimentadora toma Vera nos braços e diz-lhe: - Vê,
já fomos admoestadas pelo cobrador.
Grígori (tocando a campainha): - Estamos chegando à
próxima parada. Quem vai descer?
A experimentadora e Vera descem. Grígori simula varrer o
bonde. Kira permanece impassível.
Grígori: - Passe para este lado enquanto varro.
308 Psicologia do jogo

Kira apanha a manivela do motor e passa para a outra pla­


taforma, mas aí nào tem motor.
Grigori (seguindo Kira): - Para onde mudou essa cadeira?
(Aquela onde está o motor Kira coloca-a no seu lugar e volta a
se sentar.)
Exper.: - Grigori, agora vamos brincar assim: o motornei-
ro também venderá as passagens.
Grigori (sério): - Isso quer dizer que já será cobrador.
Exper.: - Não, no nosso bonde, será precisamente o mo-
torneiro o que vai vender passagens.
Grigori (como se não entendesse): — E onde vai ficar?
Ali? (Aponta para a plataforma.)
Exper.: - Nào, ali estará o cobrador, que vai conduzir
agora o bonde.
Grigori: - O motomeiro?
Exper.: - O motomeiro vai vender passagens e o cobrador
conduzirá o bonde. Entendeu?
Grigori: - Sim. (Sorri.) Eu sou o cobrador. (Ri, sobe no
bonde e entrega a bolsa a Kira.)
Exper.: - E você, Kira, quem é?
Kira olha para um lado, olha para o outro, e cala-se.
Grigori (rindo): - Eu sou o cobrador. E você?
Kira: - A motomeira. (Olha para a bolsa, suspende-a do
ombro e tateia os bilhetes.) Não, eu sou a cobradora. (Todas as
crianças riem. Kira fica séria.) Tratem de pagar a viagem. (Ri
e entrega as passagens.)
Grígori dá voltas à manivela. Vera nào fica quieta um ins­
tante, ri e corre para a plataforma da frente.
Grígori: - Vai acabar caindo do bonde. Nào se desce com
o bonde em movimento.
Vera volta correndo. Kira toca a campainha. A experimen­
tadora abre a porta e chama: - Motomeiro, motomeiro, o chefe
pede que se apresente a ele.
Grígori e Kira entreolham-se, correm para diante, param e
ambos indagam: - Eu?
Exper.: - O motomeiro.
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 309

Grigori: - O motorneiro sou eu, mas você disse de outra


maneira, que eu era o cobrador. (Grigori e Kira entreolham-se
confusos.)
Kira: - A cobradora sou eu, porque o motorneiro nào
vende passagens.
Ata n? I. Jogo do "bonde *. Participam: Alexei, Vassíli e
Valentina (6; 0).
A experimentadora propõe brincarem de “viagem de bonde".
Alexei: - Nesse caso, vamos precisar de bilhetes. (A expe­
rimentadora entrega a bolsa e os bilhetes.) Eu sou o cobrador e
Vásia que seja o motorneiro.
Vassíii, depois de dispor as cadeiras de forma adequada,
bota o gorro na cabeça e diz: - Se o motorneiro atropelar
alguém, leva uma multa e, se infringir alguma regra, também é
multado.
Alexei: - E como se toca a campainha? É prcciso que a
campainha esteja ali. (Aponta para o alto.) Pode-se tocar sim­
plesmente assim. (Sai correndo e traz uma sineta. Coloca
atrás do carro uma plataforma , delimitada com cilindros.)
Vassíli: - Podemos partir?
Alexei'. - Agora mesmo. (Valentina sobe e senta-se, logo
seguida da experimentadora. Alexei toca a campainha e acerca-
se das passageiras.) Cidadã, tome a sua passagem. ( Valentina
entrega-lhe um pedaço de papel e Alexei dá-lhe um bilhete e um
pedacinho de papel.) Aqui tem cinco copeques de troco. (Repele
a operação com a experimentadora, dando-lhe uma passagem e
recebendo o respectivo montante. Depois senta-se, loca a cam­
painha e anuncia:) A parada seguinte é a praça Sverdlov.
A experimentadora desce do bonde na parada.
Alexei: - Eu nào quero mais, ou chamo outras crianças.
Exper.: - Nào, será melhor que brinquemos agora assim: o
cobrador nào venderá passagens, mas conduzirá o bonde, e o
motorneiro venderá as passagens.
Vassíli olha confiiso.
3 /0 Psicologia dojogo

Alexei (sorrindo): - Vamos ter um bonde em que os passa­


geiros nào vào saber a quem pagar. (Riem iodos.)
Exper.'. - Por que não hào de saber? O motorneiro levará
os bilhetes e será a d e que pagarão.
Alexei (sorrindo): - Está bem. (Tira a bolsa que levava a
tiracolo, entrega-a a Vassíli e senta-se diante do motor. Dá-se
conta de que quem tem o gorro é Vassíli.) Me dá o gorro. Na
plataforma faz muito frio.
Vassíli entrega o gorro a Alexei, pega na sineta e toca. A
experimentadora senta-se no seu lugar. Valentina senta-se tam­
bém. Vassíli vende-lhes bilhetes. Depois de um novo toque de
campainha, a experimentadora desce e, escondendo-se atrás da
porta, chama: - Motorneiro, motorneiro, o chefe chama-o.
Alexei corre, mas logo se detem e diz a Vásia: - Mas você
é que é o motorneiro! Lembra de que combinamos assim?
Vassíli: - Sim, o motorneiro sou eu e vendo as passagens,
e não o cobrador.
Exper.: - Camarada motorneiro, o chefe pede-lhe que o vá
ver o mais depressa possível.
Alexei acode ao chamado e, ao chegar, diz sorrindo: - Não
sei quem é o motorneiro. Eu digo que é Vásia e ele diz que sou eu.
Exper.: - E por que diz que nào é você?
Alexei: - Porque foi assim que combinamos, que eu seria o
cobrador e ele o motorneiro. (Ri.) Eu mesmo confundi tudo.
(As crianças riem.)
Vassíli: - Pois eu nào me confundi. Os bilhetes e a bolsa sou
eu quem os tenho, portanto, sou eu o cobrador. Eu toco a campai­
nha e Alexei é quem gira a manivela, ele é que é o motorneiro.
Ata n? 9. Jogo da (iviagem de bonde*'. Participam Iúri c
Tomás (7; 0).
Depois de começado o jogo.
Exper.: - Nào, rapazes, vamos brincar assim. Iúri será o
motorneiro e Tomás o cobrador, mas as passagens serào vendi­
das por Iúri e quem conduzirá é Tomás.
Iúri e Tomás esboçam sorrisos e logo.soltam risadas.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 311

lúri (com ironia): ü motomeiro vai vender passagens c o


cobrador (Tomás secunda-o) vai se fazer de motomeiro. (Riem
às gargalhadas.)
Tomás: - E quem são os passageiros?
Exper.: - Eu. Podem chamar também o Edik. (Chama-o.
Edik entra.)
lúri: - Suba, suba. Temos aqui um bonde muito esquisito.
O motomeiro vai sentado em um lugar e vende as passagens, e
o cobrador é quem conduz. (Todos riem.)
Edik sobe. Tomás senta-se diante da manivela e dá-lhe duas
ou três voltas.
lúri: - Cidadãos, quem não tem passagem?
Exper.: - Uma para mim. (lúri destaca um bilhete.)
Tomás dá voltas à manivela com muita rapidez: - Partimos!
Na parada, a experimentadora desce e diz: - Camaradas,
onde está o cobrador? O chefe o chama.
Tomás: - Eu sou o cobrador. Temos uns cobradores que
sabem conduzir um bonde.
lúri: - O motomeiro sou eu. (Mostra a bolsa e os bilhetes.
Todos riem.)
Apresentamos as atas mais típicas do jogo do “bonde”,
nas quais a experimentadora realizou, durante o jogo, tentati­
vas de alterar as relações entre as funções-atos, executadas na
realidade pelas crianças, e o papel.
Antes de passar a analisar os dados obtidos, apresentare­
mos atas típicas do comportamento das crianças nos jogos com
regras preparadas.
Ata n? 14. Jogo: “o lobo e as lebres ”. Participantes: Bóris,
Grigori e Alexei (4; 0). À pergunta sobre quem quer ser lebre,
respondem Grigori e Alexei.
Bóris: - Pois eu prefiro ser lobo e vou pegar os dois.
Bóris agacha-se num canto, Grigori e Alexei esperam o si­
nal. Ao ouvirem a voz de “corram!” (um, dois, três, lebres, cor­
ram!), os dois saem de supetão. Bóris põe-se de pé de um salto
e captura-os. As crianças gritam. Bóris agarra primeiro Grígori e
312 Psicologia do jogo

em seguida Alexei. O segundo a se fazer de lobo é Alexei; Bóris


e Grígori são as lebres. Depois de apanhar as lebres. Alexei diz:
- Olhem que belas lebres apanhei! - A experimentadora propõe
então às crianças que brinquem de maneira que Grígori e Bóris
-q u e se fazem de lebres - capturem Alexei, que se faz de lobo.
Bóris : - Isso não, as lebres não caçam o lobo.
Alexei: - Pois eu o caçarei, o caçarei de qualquer maneira.
As crianças vão para os seus lugares (o lobo para o que antes
era ocupado pelas lebres). Ao ouvir-se a voz de “correr!”, as crian­
ças fogem. Alexei caça Bóris, e Bóris e Grígori caçam Alexei.
Bóris e Alexei ficam frente a frente. Os dois gritam: - Peguei!
Exper.: - Quem foi que pegou?
Os dois: - Eu!
Exper.: - Alexei, e você quem é?
Alexei: - O lobo. Eu o peguei.
Bóris: - Nào, quem o pegou fui eu.
Exper.: - E você quem é?
Bóris (algo perturbado): - A lebre.
Grígori: - E eu também sou lebre.
Exper.: - Tínhamos combinado que agora as lebres caça­
vam o lobo.
Alexei: - Não, eu o cacei. Eu posso pegar duas lebres.
Exper.: - Agora escape outra vez, e eles o perseguirão,
lobo.
Alexei (rindo): - Nào vão poder pegar um lobo.
Todos ocupam os seus lugares.
Alexei (ainda antes que se dè o sinal, sai correndo e gri­
ta): - Não me pegarão, não me pegarão! (Chega correndo até
onde está um cabide de pé e proclama:) Esta é a casa, esta é a
casa! Não me apanharam!
Bóris: - Agora eu.
Exper.: - O que você faz?
Bóris: - Que cace ele.
Exper.: - E você vai ser o quê?
0 desenvolvimento dojogo na idade prè-escolar 313

Bóris (não responde de imediato): - Vou correr. Esqueci o


que sou. Lebre. Não. O lobo. Bom, eu serei lebre e ele que seja
o lobo. Vou escapar tão depressa que nào me pegará.
Exper.: - Não, já nos pusemos de acordo: você é o lobo e
eles as lebres que vão pegá-lo.
Bóris: - A mim nào me pegam.
Todos vão para os seus lugares. Bóris sai em disparada, ao
ouvir o sinal, e capturam-no num abrir e fechar de olhos.
Grígori: - Agora eu.
Exper.: - Quem você é?
Grígori: - Vou corrcr dali. (Aponta para onde vai ficar.)
Eu serei lebre. (Aponta o lugar onde deve colocar-se o lobo.)
Ata n? 15. Jogo: “a raposa e as lebres Participam: Ema,
Valentina S.; e Valentina P. (5; 0).
Depois de brincar de que a raposa captura as lebres, propòe-
se às crianças que joguem de maneira que a lebre cace as rapo­
sas. As crianças aceitam com facilidade essa proposta. Valentina
S. é lebre; Ema e Valentina P. são raposas. Valentina S. caça.
Exper.: - Quem você pegou?
Valentina S .:- A Ema.
Exper.: - E quem é Ema?
Valentina S.: - Fazemos assim: eu sou lebre e elas raposas.
A lebre sou eu.
No turno seguinte, a lebre é Valentina P. e as raposas sào
Ema e Valentina S.; Valentina P. captura Valentina S.
Exper.: - Quem você pegou?
Valentina P.: - A Vália.
À pergunta adicional de “Quem você pegou?”, Valentina
P. diz: - Esqueci. Ela é raposa.
Em seguida é Ema quem caça. Captura Valentina.
Exper.: - Quem você pegou?
Ema: - A Vália.
Exper.: - E quem é ela?
Ema nào responde.
Exper.: - E você quem é?
314 Psicologia do jogo

Ema : - A raposa; não, uma lebre.


Exper. (às duas Valentinas): - E vocês, quem sào?
Valentina S.: - Lebres. Ah, não, não, somos raposas.
Ata n? 20. Jogo: “o lobo e os gansos ”. Participam: Gânia,
Iúri e Tomás (7; 0).
Gânia e Iúri querem brincar de “gansos ou cisnes”. Junta-
se a eles Tomás. Depois de três rodadas, como de costume, a
experimentadora propõe que os gansos capturem o lobo. Os
três meninos riem.
Tomás: - Iúri e eu somos gansos.
Gânia: - Experimentem começar por mim.
Iúri: - Você será a dona dos gansos (à experimentadora,
que concorda).
Assim que ela pronuncia: - Gansos, gansos, para casa
correm em perseguição de Gânia. Gânia escapa rindo: - Dois
gansos, dois gansos, e acabou a contradança. - Todos dào boas
risadas. Tomás agarra Gânia e faz como se o estivesse depe­
nando. Novas risadas. Tomás abraça Gânia e diz: - Agora vou
dar conta do ganso.
Ata n? 12. Jogo: “o lobo e as lebres Participam: Dina,
Nina e Oleg (7; 0). À proposta de brincar de maneira que as
lebres capturem o lobo, Dina responde: - Assim não vale.
Nina: - Uma lebre e dois lobos? Não, nào é assim na vida.
Oleg (rindo): - E podem com um lobo.
Exper.: - Bem, está certo, um lobo e duas lebres.
Oleg: - Nào, de qualquer jeito, isso nào é de verdade.
Exper.: - Vamos brincar assim.
Dina e Oleg: - Está bem, pode-se brincar.
Nina: - Eu sou o lobo.
Dina e Oleg: - Eu sou uma lebre.
Exper.: - Que Dina e Oleg sejam lebres, e Nina o lobo.
Nina, o que você vai fazer?
Nina: - Que vamos fazer? As lebres caçam o lobo? Pois
fugir depressa.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 315

Todos riem e vão para os seus lugares. Brincam.


Oleg: - Mas que lebres! (Risos gerais.)
Dina: - É um jogo divertido.
Passemos agora a analisar os dados obtidos. Já dissemos que
o problema fundamental que se devia esclarecer neste experimen­
to era a atitude da criança em face do papel assumido no jogo.
Na própria natureza do jogo está presente, mas invisível,
o “como se”. A criança atua como se fosse motorista. Por­
tanto, o jogo protagonizado baseia-se num certo convenciona­
lismo admitido pela própria criança e por seus companheiros
de brincadeira. Deparamo-nos também com o mesmo fenôme­
no quando a criança muda os nomes reais dos objetos por no­
mes lúdicos necessários no transcorrer do jogo. A própria crian­
ça anda como se fosse um cavaleiro, e o pau de vassoura em
que monta, como se fosse um fogoso ginete.
A presença desse “como se” no jogo deu margem para que
alguns psicólogos considerassem o jogo um distanciamento da
realidade, um mundo especial regido por leis especiais. Como
contrapartida dessa postura, os psicólogos soviéticos chegaram
à conclusão de que o jogo não é o reino da pura invenção, mas
uma reconstituição original da realidade vivida, reconstituição
feita pela criança ao dar forma aos papéis dos adultos. Para
explicar a atitude da criança com o papel assumido empreen­
demos os experimentos descritos. No fundo, esses experimen­
tos implicavam uma tentativa de reduzir as ações realizadas
pela criança no jogo em nível de convencionalismo puro, quer
dizer, agir como motorneiro de bonde sendo cobrador ou,
sendo lobo, atuar como lebre.
Antes de analisar os dados, assinalaremos uma certa dife­
rença nas variantes dos nossos experimentos. A diferença fun­
damental reside em que, na primeira variante, a ação da criança
está relacionada com o seu papel mediante os objetos com que
se executam as ações; na segunda, as ações estão ligadas ao papel
de maneira direta ou mediante a regra, preparada de antemão,
do jogo. A venda de passagens pelo cobrador está simbolizada
316 Psicologia do jogo

pela bolsa e os bilhetes, e sua vinculação ao motorneiro, com a


campainha: a condução do bonde pelo motorneiro ó simboliza­
da pela manivela do motor e pelo próprio motor que ele mano­
bra; as ações do lobo e das lebres estão diretamente ligadas aos
papéis: o lobo caça e as lebres fogem.
No experimento manifestam-se claramente quatro níveis.
O primeiro é o jogo antes das metonímias; o segundo, a
proposta do experimentador dc atuar, mas nào em correspon­
dência com o papel-denominaçào, e a atitude das crianças dian­
te dessa proposta; o terceiro, o caráter do jogo depois de ter-se
adotado a proposta; e, por último, a atitude das crianças com
seus papéis no final do jogo com metonímias.
A esse respeito, o primeiro não nos oferece nenhum inte­
resse. É um jogo corrente, em que encontramos todos os indí­
cios e peculiaridades que já vimos.
No segundo nível, vemos diversos tipos de atitude das
crianças diante da proposta do experimentador e de realização
desta no jogo. As crianças menores aceitam a proposta como
uma substituição real dos papéis. Isso está nelas estreitamente
relacionado com a substituição dos atributos ou objetos com
que devem operar. “Agora eu sou cobrador, aqui tenho os bi­
lhetes.” Algumas delas objetam contra a metonímia: “o motor­
neiro nào vende passagens”. De fato, mudam de papel, uma
vez que, logo que se dào outros objetos, estes passam a deter­
minar o papel. Nao se admite a menção do convencionalismo
das ações. “Se eu estou aqui neste lugar, o motorneiro sou eu.”
Exteriormente, parece que as crianças aceitam com freqüência
a condição proposta pelo experimentador, mas resulta que, no
final do jogo, elas, na realidade, mudaram de papéis. Pode-se
inferir daí que, para a criança dessa idade, a sua atitude diante
do papel ainda nào existe como relação separada, porquanto
está unida à ação. A original contradição interna estriba-se em
que a atitude existente na realidade e expressa no caráter gene­
ralizado e convencional das ações (representação da campai­
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 317

nha do bonde, girar a manivela, destacar os bilhetes e obter os


papéis que fazem de dinheiro) ainda nâo é vivida pela criança
como generalizada e, por conseguinte, só é reconstitutiva da rea­
lidade. Tal situação parece, no mínimo, estranha. Será possível
que a criança nâo veja diferenças entre um pedacinho de papel e
uma cédula verdadeira, entre o “tilim, tilim” e a verdadeira cam­
painha do bonde, entre os giros da manivela de um mecanismo de
brinquedo e os movimentos da manivela de um bonde de verdade,
entre ela própria e o motomeiro de um bonde? É claro que na vi­
da isso não é assim. A criança conhece perfeitamente essa dife­
rença e a vê. Mas no jogo, o objeto substitutivo parece fundir-se
com o objeto real, converte-se num “cristal” através do qual trans­
parece o objeto real e o “cristal” não se nota. Em conseqüência
disso, a atitude da criança tanto com os objetos do jogo quanto
com os papéis que assume contém um caráter direto.
No nível seguinte, as crianças já se comportam de maneira
muito diferente. Aceitam a proposta do experimentador, por
vezes com ironia, e começam atuando em correspondência com
as novas denominações. No processo da atuação ocorre algo
como a compenetração com o papel em conformidade com as
ações que se executam. A criança adota as novas funções do
motomeiro, denominando-se cobrador; mas, ao começar a
atuar como motomeiro, compenetra-se com o papel e denomi­
n a te de acordo com o modo de suas ações. Isso se observa
com singular relevo nos jogos com regras. Sem deixar de se
fazer de lobo, a criança assume as funções de lebre; mas ao
executá-las, ou seja, ao fugir, converte-se em lebre ou não po­
de escapar e começa a perseguir. A contradição entre o nome e
o modo de atuar já existe para a criança e por isso algumas se
opõem à metonímia, alegando a realidade da vida. “Assim não
é de verdade”, costumam dizer. Riem ao adotar os novos mo­
dos de atuar, como se ironizassem às custas da proposta da
experimentadora; mas assim que começam atuando, confun-
dem-se e passam das relações convencionais às reais. Entre a
318 Psicologia Jo jogo

criança e o papel assumido por ela intervém uma atuação real.


É esta a que determina a atitude da criança com o papel, fazen­
do-se de intermediária..
Esse nível dc atitude da criança com o papel poderia deno-
minar-se atitude intermediária. Entre a criança e o papel está a
realidade com suas leis e apresenta-se na forma de ações e re­
lações que a refletem nos traços mais essenciais. Ao comparar
suas ações e relações com as reais, a criança considera a sua
atitude diante do papel que representa no jogo.
No último nível (as crianças mais velhas) surge uma rela­
ção nova. As crianças reccbem rindo a proposta do experimen­
tador. adotam uma atitude irônica e podem estar em desacordo
com o papel e escolher nomes discrepantes do conteúdo de
suas ações lúdicas. A ação deixou agora de determinar o nome
e tampouco leva ã identificação com o adulto cujo papel inter­
preta. Isso foi muito bem expresso por Tomás em sua frase:
“Temos uns cobradores que sabem conduzir um bonde.” Essa
mesma situação, proposta pelo experimentador, é acolhida pe­
las crianças como um jogo original, como condição do jogo.
Portanto, surge aqui a possibilidade de condições e regras des­
ligadas do conteúdo das ações executadas e que, além disso,
encontram-se em contradição com elas. Isso atesta o apareci­
mento de uma atitude nova da criança em face do papel repre­
sentado por ela, atitude que pode ser denominada consciente-
convencional.
Somente no final da idade pré-escolar e, por conseguinte,
na vertente do jogo criativo protagonizado, as crianças podem
aceitar uma condição que contradiga as verdadeiras relações
sociais. Parecem estar por cima do jogo, do papel assumido por
elas, compreendendo o fundo da contradição. Daí se depreen­
de, em nosso entender, que a regra convencional promana da
direta. Toda idéia de que a criança vive, quando joga ou brinca,
num mundo imaginário, e de que as leis desse mundo imaginá­
rio são contrárias às leis do mundo real não corresponde à rea­
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 319

lidade. fc‘0 mundo do jogo” tem suas leis rígidas, que são refle­
xo ou cópia das relações reais existentes entre as pessoas e os
objetos, ou entre os objetos. O jogo não é um mundo de fanta­
sia e convencionalismo, mas um mundo de realidade, um mun­
do sem convencionalismos, só que reconstituído por meios sin­
gulares. Pode-se supor que os níveis antes mencionados indi­
cam as fases de desenvolvimento da consciência da criança,
tal como se apresenta no jogo, cujo desenvolvimento vai
desde a identificação da pessoa com outra até a sua separação
da outra.
Analisamos as atitudes da criança diante do papel assumi­
do por ela no jogo. Durante a análise dos dados esclareceu-se
que, no âmbito do papel que a criança assume, há, em realida­
de, uma certa regra de conduta que reflete a lógica da ação real
e das relações reais. Precisamente pela existência dessas regras
é que se pode explicar a resistência da criança tanto a alterar a
lógica quanto o sentido das ações. Ao mesmo tempo, afirma­
mos em reiteradas ocasiões que, nas fases iniciais do desenvol­
vimento do jogo protagonizado, um objeto tem para a criança
um atrativo especial e determina freqüentemente a adoção des­
te ou daquele papel. Baseando-se precisamente nisso, muitos
autores conjecturaram que o jogo das crianças pequenas carece
de argumento e consta apenas de processo.
Em que relação está o papel assumido pela criança com o
desejo de manipular um determinado objeto atrativo? Será pos­
sível, de um modo geral, uma representação do papel que se
apóie na renúncia a manejar um objeto atrativo para a criança,
mas que no momento dado é objeto das manipulações de outra
criança ou de suas próprias manipulações? Em que medida a
criança é estável diante das regras implícitas no papel e no jo­
go? A existência de regras ocultas de comportamento no jogo
está fora de qualquer dúvida e fornecemos provas suficientes.
Dedicamos uma série especial de experimentos a esclare­
cer o problema da estabilidade no acatamento das regras e no
320 Psicologia dojogo

desenvolvimento dessa peculiaridade do jogo. A singularidade


desses experimentos assenta em que, no decorrer do jogo, colo­
camos a criança numa situação na qual. para representar o papel
assumido, teve de entregar a outra um objeto ou renunciar à exe­
cução da ação que lhe agradava. Portanto, criava-se uma situa­
ção de luta entre a necessidade de acatar a regra derivada do pa­
pel e o súbito desejo da criança motivado pela situação (por
exemplo, a necessidade de entregar o brinquedo, porque assim o
requer o desenvolvimento do jogo, e o desejo de ficar com ele;
ou a necessidade de permanecer num lugar, porque assim exige
o papel, contra o desejo de realizar outro ato mais prazeroso).
Esses jogos ou eram especialmente organizados, ou o expe­
rimentador juntava-se ao jogo organizado pelas próprias crianças
e, já dentro do jogo, criava-se a situação necessária. Segundo fos­
sem os enredos dos jogos, essas situações eram bastante variadas.
Assim, de acordo com o desenvolvimento do jogo de “mamães e
filhinhas”, propôs-se às meninas que levassem suas filhas (bone­
cas) ao jardim-de-infancia. Dessa maneira, a menina que inter­
pretava, durante o jogo, o papel de mãe tinha de entregar a sua
boneca, com a qual tinha brincado e vindo ao jardim-de-infancia.
Ao brincar de “loja” ou de “Correio” introduz-se no jogo, entre
outros objetos, um telefone colocado a certa distância. Na metade
do jogo, o balconista é chamado ao telefone e deve adiar a con­
versa até que feche a loja. Durante o jogo do “incêndio”, o moto­
rista do carro dos bombeiros deve manter-se no seu lugar, en­
quanto os demais meninos, que se fazem de bombeiros, correm a
debelar o fogo; no jogo da “estação”, no qual as crianças interpre­
tavam diferentes papéis, a dona da cantina vendia biscoitos de
verdade, em pedaços, e todos os participantes tinham de subme­
ter-se aos papéis assumidos e estar em seus lugares, contrariando
o desejo de ir à cantina comprar biscoitos.
Estes dados confirmam também, de maneira completa, a
tese de que em todo jogo protagonizado há regra. A subordina­
ção à regra manifesta-se nos mais variados fatos. Daremos dois
exemplos.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 321

Nina propõe brincar de “jardim-de-infancia”. Avizinham-


se dela Valentina, Lida e Maia (3; 0). Dá bonecas a todas e diz
a elas: - Vocês serão todas mamães e eu serei Maria Ser­
guéievna.
Valentina: - Pois eu sou a tia Tósia.
Pegam as bonecas e envolvem-nas em mantas.
Nina: - Já está na hora de levar as nossas filhinhas ao jar-
dim-de-infancia.
Nadejda: - A minha já se levantou. É muito madrugadora.
Maia: - Pois a minha ainda dorme.
Nina: - Tia Tósia ,já trouxeram uma menininha.
Valentina recolhe a boneca de Nadejda. Esta dá um beijo
na boneca e afasta-se. - Vou lavar-me - anuncia. Maia entrega
a sua boneca c olha para um lado e para o outro. Lida resmunga
e não quer entregar a boneca.
Valentina (zangada): - Então nào brinca.
Nina: - Lida, dê-me a sua filhinha. Nào vê que ela veio ao
jardim-dc-infancia?
Lida aperta a boneca contra o peito e afasta-se.
Neste caso, a observância às regras é uma condição para
participar no jogo. Lida nào as cumpre e sai.
Segundo exemplo. Alguns meninos (6; 0) brincam de “in­
cêndio”. Fizeram um carro de bombeiros com materiais de cons­
trução e distribuíram os papéis. Bóris é o chefe dos bombeiros.
Alexei, o motorista. Kóstia grita: - Um incêndio! Um incên­
dio! - Todos os meninos apanham os capacetes de bombeiro e
sobem no carro. Apitam e batem os pés.
Bóris: - Chegamos. Desçam.
Os garotos descem e correm, fazendo como se extinguis­
sem um incêndio. Alexei vai com eles.
Bóris (ao vê-lo): - Ei, e você aonde vai? Nao vê que alguém
pode levar o carro ?
Alexei dá meia volta correndo e sobe no carro. Ajusta o
volante, dá-lhe voltas e toca a buzina. Todos os bombeiros apa­
garam o incêndio. Neste jogo também há uma regra: “O moto­
322 Psicologia do jogo

rista nào pode ir ajudar a apagar o fogo; deve manter-se no seu


posto.” Alexei atua num primeiro momento sob o impacto da
motivação direta e corre com os outros garotos para apagar o
incêndio; mas quando se dá conta da infração da regra, volta
para o seu lugar e continua interpretando o seu papel de acordo
com as regras.
Em ambos os casos, tal como em todos os jogos protago­
nizados, a regra de comportamento está relacionada com o
papel, está implícita neste.
Os dados destes experimentos, embora pouco numerosos,
permitem definir três fases no acatamento das regras no jogo
protagonizado.
Primeira fase. Não há regras, uma vez que, de fato, tam­
bém não há papel. Nestes casos, é natural que triunfe o impulso
direto ou o desejo momentâneo. Exemplo disso pode ser o
comportamento de Lida na descrição feita anteriormente.
Segunda fase. A regra ainda nào se manifesta claramente,
mas nos casos de conflito vence o desejo direto de atuar com o
objeto. Exemplo desse nível é o comportamento de Ásia (3; 0).
Gália e Nadejda brincam com bonecas de “jardim-de-infan-
cia”. Ásia aproxima-se delas com uma boneca e observa como
brincam.
Nadejda: - Já está na hora de fazer ginástica. (Pega as
bonecas, coloca uma atrás da outra e escora-as.) A passo de
marcha.
Gália: - Vou tocar para elas. (Faz com as mãos um movi­
mento como se tocasse teclas e canta.)
Nadejda (para Ásia): - Dê-me também a sua.
Ásia afasta a sua boneca, com expressão contrariada.
Nadejda: - Ela também fará ginástica no jardim-de-infân-
cia. (Asia entrega-a, em seguida, e observa tranqüila como Na­
dejda faz ginástica com as bonecas. De súbito, exclama con­
tente: Olha como caminha bem a minha!)
Terceira fase. A regra entra claramente em função, mas
ainda nào determina de todo a conduta e é infringida ao surgir
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 323

o desejo súbito de realizar outra ação atrativa, desejo que apare­


ce durante o jogo ou devido à proposta do experimentador. De
fora, tais infrações costumam ser notadas de imediato por ou­
tros participantes do jogo. Ao assinalar-se a infração, corrige-
se imediatamente o erro na representação do papel. Exemplo
desse nível é a conduta de Alexei, que interpreta o papel de
motorista no jogo do “incêndio”.
Quarta fase. A conduta é determinada pelos papéis assu­
midos, no seio dos quais se manifesta claramente a regra de
conduta. Na luta entre a regra e o desejo de realizar uma nova
ação prazerosa vence a regra.
Eis um exemplo de tal comportamento.
Grígori (6; 0) dirige uma loja dos Correios, onde vende
selos, papel de carta, lápis e envelopes. Boris é carteiro e distri­
bui a correspondência com uma bolsa a tiracolo. As crianças
escrevem cartas e colocam-nas na caixa coletora. Niúra tam­
bém se faz dc carteiro, retira a correspondência da caixa cole­
tora e entrega-a a Boris. Grígori vende animadamente artigos
postais e recebe em troca dinheiro de papel. Diante do balcão
forma-se uma fila e Grígori mal tem tempo para satisfazer
todos os compradores.
Por solicitação do experimentador, Alexei corre até Grí­
gori e diz: - O gerente da loja está no telefone para falar com
você.
Grígori: - Agora nào posso. Olhe esta fila.
Alexei: - Eles esperam.
Grígori: - Sim, e nesse meio tempo todos irão embora.
Alexei: - É melhor que atenda.
Grígori não sai do lugar e continua trabalhando. Quando
termina (vendeu tudo), senta-se no seu tamborete e fecha o
guichê com uma peça de quebra-cabeça. Alexei volta a chamá-
lo para que atenda o telefone.
Grígori (animado): - Fecho o guichê e vou-me embora.
(Aproxima-se do telefone.) Quem está falando? Ah, sim, vendi
324 Psicologia do jogo

tudo. Necessito de mais papel e envelopes. Foi tudo vendido.


(Ri. Aproxima-se do experimentador.) Chamaram-me ao tele­
fone, mas não fui. Havia uma fila diante do guichê. Vendi tudo.
Foi o gerente quem me ligou. (Ri.)
Claro que as fases destacadas nào são por grupos de idade;
são precisamente fases de desenvolvimento da estabilidade su­
bordinadas a regras no jogo protagonizado. Tivemos ocasião
de observar crianças que apresentavam diversas fases depen­
dendo do caráter do papel representado por elas, do caráter das
relações estabelecidas entre elas no jogo; por último, vimos
crianças de cinco anos que tinham o mais alto nível e outras crian­
ças de cinco anos cujo nível era muito inferior. O nível de aca­
tamento da regra histriónica é função da experiência lúdica das
crianças. Por isso conceituamos essas fases precisamente co­
mo etapas concatenadas e dependentes do desenvolvimento
geral do jogo protagonizado, fases que apresentam um dos aspec­
tos desse desenvolvimento.
Numa breve síntese das três séries de nossa pesquisa, não
será difícil perceber que todas estiveram orientadas, no fundo,
para a resolução do problema da atitude da criança em face do
papel interpretado por ela e em face da regra relacionada com
o papel. A fim de esclarecer essa questão, o experimentador
criou uma situação que infringia diversos aspectos do processo
lúdico.
Na primeira série, essa infração era atinente à lógica da ação
no âmbito do papel assumido pela criança; na segunda, referia-se
ao próprio sentido do papel; por último, na terceira série, tratava-
se de tirar a criança do papel mediante uma ação colateral inseri­
da no jogo. Como era de se esperar, cada uma destas séries des-
vendou-nos um dos aspectos do processo lúdico.
Todas juntas confirmaram a nossa conjectura inicial de
que o papel está organicamente vinculado à regra de conduta, e
de que a regra vai, pouco a pouco, destacando-se como núcleo
central do papel representado pela criança.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 325

5. O objeto - a ação - a palavra (contribuição para o


problema do simbolismo no jogo protagonizado)
Em quase todas as descrições do jogo infantil menciona-se
o emprego lúdico dos objetos como seu traço típico. Com a par­
ticularidade de que pareceria que os objetos incorporados pela
criança ao jogo perdem a sua significação usual e adquirem
outra, uma significação lúdica, de acordo com a qual a criança
os denomina e com eles opera. São bem conhecidos os exem­
plos de tal metonímia lúdica dos objetos e de sua utilização para
brincar: um pau de vassoura representa, no jogo, um cavalo; e a
criança, longe de limitar-se a montar nele, dá-lhe de beber, ali-
menta-o, cuida-o; um palito pode representar um termômetro,
um garfo, um lápis e muitas coisas mais; uma peça de quebra-
cabeça em forma de cubo geométrico representa uma xícara e
talvez algum comestível, como um croquete, uma maçã, e pode
representar também um automóvel ou qualquer objeto, em
geral, que se desloque numa superfície.
O leque de emprego de uns objetos em substituição de
outros é bastante amplo, e isso deu margem às mais diversas
interpretações. Alguns autores acreditavam que no jogo tudo
pode representar tudo e viam nisso uma manifestação peculiar
e viva da imaginação infantil; outros opinavam que esse em­
prego lúdico dos objetos tem um limite e esse limite é a seme­
lhança exterior entre o objeto significado e o significante.
Como é sobejamente sabido, Piaget formulou e expôs em
toda a sua amplitude o problema do simbolismo no jogo, ligan­
do-o ao desenvolvimento da inteligência representativa cuja
premissa fundamental é, em seu entender, o surgimento do sím­
bolo, ou seja, a relação entre o significado e o significante. A ele
se deve ainda a distinção, inspirada na lingüística, entre símbolo
e signo. Por símbolo entende Piaget o objeto significado indi­
vidualmente e possuidor de elementos representativos. Na his­
tória da escrita estudou-se em grande detalhe o processo de tran­
sição da escrita simbólica para a de signos propriamente dita.
326 Psicologia dojogo

Antes de passar a descrever e analisar os dados sobre a subs­


tituição de uns objetos por outros, quer dizer, o problema do
“simbolismo” no jogo, é preciso fazer várias observações prévias
que devem aclarar a interrogação acerca de onde a criança extrai
a própria possibilidade de emprego “simbólico” dos objetos.
É difícil imaginar o desenvolvimento da criança contem­
porânea fora da vizinhança de brinquedos.
Em época muito precoce, em todo o caso antes de a criança
começar a fazer diversos movimentos manuais com os objetos,
penduram-lhe sobre o berço vários objetos que lhe servem para os
contemplar e exercitar os aparelhos sensoriais. Em breve já se
coloca na mão da criança, por exemplo, um guizo. O guizo é um
objeto, feito especialmente pelos adultos, mediante o qual a cri­
ança exercita os movimentos de agitar. Essa açào parece estar pro­
gramada pelos adultos no próprio desenho do guizo. Como, nessa
idade, ainda nào se pode inculcar na criança a ação, esta vai sendo
formada nela com objetos construídos especialmente para isso. A
criança assimila o guizo, em princípio, como qualquer objeto que
requeira determinados modos de ação ideados pela sociedade. O
guizo nào representa nem substitui nada. Portanto, entre os brin­
quedos que os adultos oferecem à criança há os que se destinam
simplesmente a desenvolver as coordenações visomotoras e estão
construídos de maneira que contenham a possibilidade de assegu­
rar por si mesmos o modo de ação com eles. Os movimentos típi­
cos de açào com esses objetos são os circulatórios reiterativos.
Mas também há entre os objetos oferecidos às crianças al­
guns que representam objetivamente coisas reais. São, por exem­
plo, as bonecas ou as figuras de animais, como cavalos, galos etc.
Tal como os guizos, que devem motivar na criança certas ações,
por exemplo, a de apertar, com o que se produz a emissão de um
som ou silvo. Claro que na etapa inicial ainda nào desempenham o
papel de imagens de objetos reais, mas hão de fazê-lo algum dia.
Em certas condições, é o galo o que representa primeiro a imagem
do animal verdadeiro: e, em outras, é o pequeno automóvel de
brinquedo. Há fundamento para suporquéo brinquedo universal
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 327

que adquire primeiro a funçào representativa é o boneco, de dife­


rentes tipos. Nào é difícil encontrar exemplos de que a criança
recebe desde muito cedo um boneco de borracha ou de plástico
que toma banho com ela, é envolto em fraldas, posto a dormir ao
seu lado ou alimentado simultaneamente com ela, aproximando-
lhe da boca uma colher com comida. Assim se transforma o brin­
quedo representativo na atividade conjunta com os adultos, de
objeto que era, em brinquedo propriamente dito. É de primordial
importância denominar com uma mesma palavra o objeto e suas
diversas representações (o cào verdadeiro, que corre pela casa
toda, o cão de brinquedo e o desenho de um cào num livro).
Cumpre ter em conta, além disso, que as crianças contem­
porâneas começam desde muito cedo a ver livros com figuras
dc objetos que elas conhecem, ou desconhecem totalmente, e
que os adultos denominam com seus nomes respectivos. Que­
remos sublinhar com todos estes exemplos que a criança con­
temporânea vive nào só num mundo de objetos, mediante os
quais suas necessidades sào satisfeitas (xícaras, colheres,
botas, sabão, esponja etc.), mas também num mundo de ima­
gens e, inclusive, de signos. O processo de transformação do
objeto em brinquedo é justamente o processo dc diferenciação
do significado c do significante e do nascimento do símbolo.
Parece-nos, por vezes, que esse processo é espontâneo, e a es­
pontaneidade resulta da naturalidade e desordem dos atos con­
juntos do adulto e da criança para assimilar os símbolos. Quan­
do se examinam os dados relacionados com a simbolizaçào, é
preciso ter isso sempre em conta.
Uma da primeiras pesquisas experimentais das funções
simbólicas que conhecemos é a dc l letzer (1926). Partia da hi­
pótese, inteiramente correta, de que a preparação para os estu­
dos escolares requer certa “maturidade” da função simbólica.
Com efeito, tanto para aprender a ler como para assimilar os
rudimentos da aritmética é preciso compreender que o signo
significa uma certa realidade. Depois de ter estudado diversas
formas de função simbólica - desenho, construção, jogo e em­
328 Psicologia do jogo

prego de signos Hetzer deduziu que as crianças já podem


assimilar na idade de três anos a união arbitrária do signo e do
significado. Baseando-se em sua pesquisa, opinou ser bem pos­
sível começar a aprender a ler muito antes do que é usual hoje
em dia.
A propósito do interesse pelo desenvolvimento da função
dos signos na linguagem escrita, Vigotski pesquisou a gênese
dessa linguagem. Nessa pesquisa há dados interessantes do
ponto de vista da formação da função simbólica.
Apresentamos na íntegra um fragmento de um artigo de
Vigotski sobre esse problema. Escreveu ele: “Temos procurado
averiguar experimentalmente essa fase singular da linguagem
objetiva da criança. Realizamos experimentos de jogo em que
objetos soltos e amplamente conhecidos das crianças começa­
ram a significar, de maneira convencional, objetos e pessoas
participantes no jogo. Por exemplo, um livro significa uma ca­
sa; um molho de chaves, crianças; um lápis, a babá; um reló­
gio, a farmácia; uma faca, o médico; a tampa de um tinteiro,
um táxi etc. Em seguida, conta-se às crianças, com gestos re­
presentativos e com esses objetos, alguma história simples que
elas entendem com extrema facilidade. Por exemplo, o médico
acode no táxi à casa, toca a campainha, a babá abre a porta, ele
ausculta as crianças, escreve uma receita e sai, a babá vai à far­
mácia, regressa e administra o remédio às crianças. A maioria,
inclusive as de três anos, entende com facilidade esse enredo
simbólico. As de quatro e cinco anos compreendem também
enredos mais complicados: uma pessoa passeia pelo bosque, é
atacada por um lobo que a morde; a pessoa salva-se fugindo; o
médico socorre-a e a pessoa vai à farmácia e depois para casa.
O curioso aí é que a aparência dos objetos nào desempenha ne­
nhum papel notável para a compreensão do sentido da trama.
Tudo consiste em que esses objetos permitam fazer os gestos
correspondentes e possam servir de ponto de aplicação dos
mesmos. Por isso as coisas que não têm relação evidente com
essa estrutura dos gestos sào prontamente repelidas pela crian­
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar_________________________^* 7

ça” (1935, p. 79). Em nossa opinião, já estava apresentado nes­


sa pesquisa o problema da função da ação (no caso dado, a fun­
ção dos gestos) no estabelecimento da relação entre a palavra e
o objeto.
Também são de interesse e importância para resolver este
problema os dados fornecidos pelo estudo de Lúkov (1937),
dedicado a investigar como a criança vai compreendendo a lin­
guagem no jogo. Lúkov empregou em sua pesquisa o método ori­
ginal da “metonímia dupla dos objetos no jogo”. Dirigidas pelo
experimentador, as crianças desenvolveram um jogo temático
que era mais de “direção cênica” do que de protagonização. As
próprias crianças não representavam papel algum durante o jo­
go: elas dirigiam as ações dos brinquedos, que executavam as
funções das pessoas e dos objetos requeridos no jogo. O núme­
ro de objetos que podiam interpretar os papéis de adultos ou
crianças e substituir outros objetos necessários ao jogo era es­
pecialmente restrito a fim de obrigar as crianças a utilizar nas
substituições os objetos escolhidos pelo experimentador.
Todos os objetos incluídos no jogo foram divididos em duas
categorias: a primeira compreendia os objetos de uso estrita­
mente determinado na prática pré-lúdica da criança; a segunda,
os objetos a que faltava esse modo determinado de uso. Como
durante o jogo não houve suficiente número de brinquedos
substitutivos, o experimentador instou com as crianças para
que escolhessem a seu critério objetos para fazer as substitui­
ções, procurando esclarecer, de passagem, como as crianças
acolhiam os objetos substitutivos propostos. Quando o jogo já
estava seguindo seu curso, e as crianças fizeram a primeira
substituição dos objetos necessários por objetos lúdicos, dan-
do-lhes as respectivas denominações lúdicas, o experimenta­
dor modificou o curso do jogo de maneira que fosse preciso
inserir novos personagens e objetos; e como a quantidade dc
brinquedos estava limitada, as crianças viram-se obrigadas a
utilizar com outra função objetos já “manipulados” e acrescen-
tar-lhes, em conformidade com isso, novas denominações.
330 Psicologia dojogo

Portanto, um objeto que tinha para a criança um uso e um


emprego lúdicos determinados substituía no começo do jogo
um outro objeto qualquer, e a criança atribuía-lhe, respectiva­
mente, outro nome; depois, esse mesmo objeto devia substituir
outro completamente distinto e receber outra denominação.
Assim, por exemplo, durante a primeira utilização e meto-
nímia, os cavalinhos e cachorrinhos de brinquedo representa­
vam crianças no jardim-de-infancia, e na segunda fase do expe­
rimento deviam cumprir, o cavalo, as funções de cozinheiro; e o
cachorrinho as de cavalo, que deve ser atrelado à carroça e ir
buscar leite para as crianças. Claro que o caráter desse experi­
mento é um tanto artificioso, se bem que, talvez, nào mais do
que muitos outros que se costumam realizar com crianças. O
caráter de artifício era apagado pela atitude das crianças em
face do jogo: embora seja certo que às crianças menores custa­
va-lhes assenhorear-se completamente do jogo, nào é menos
verdade que as de cinco anos c mais compenetravam-se facil­
mente, e o experimento adquiria o caráter de jogo corrente.
Assinalaremos apenas algumas peculiaridades de com­
portamento das crianças descobertas por Lúkov nessa situação
experimental. As do grupo de menos idade (3; 0 - 4; 0) não
escolhem por sua conta substitutivos para os objetos e persona­
gens necessários no jogo. São passivas e aceitam a iniciativa do
experimentador, admitem suas propostas e atuam de uma ou
outra maneira em conformidade com eles. A missão de modifi­
car ativamente a função do objeto por iniciativa da criança não
se leva a cabo. As coisas têm para ela o uso e o destino adquiri­
dos no processo das ações anteriores a que estiveram submeti­
das. “As figuras geométricas de cubo, cilindro e esfera são. para
a criança, objetos que ela pode arremessar, colocar uns sobre
outros, fazer girar etc., e o cavalinho serve para o jungir, dar-lhe
de comer etc. Por isso a criança adjudica facilmente uma deno­
minação nova a uma coisa, e esta perde para ela com a mesma
facilidade seu novo uso e recupera o que tinha antes de inseri-la
na situação lúdica dada” (1977, p. 50).
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 331

Resumindo os dados obtidos nos experimentos com as


crianças menores, Lúkov deduz que “nào é a palavra nem a
denominação do objeto o que determina o modo de seu empre­
go, mas o próprio objeto que, em nossa situação lúdica, se apre­
senta à criança, antes de tudo, com o aspecto do uso que se lhe
dá realmente, e não o de sua denominação” (ibid., p. 53). As
crianças dessa faixa etária, por uma parte, mudam com extrema
facilidade, na esteira do experimentador, o destino das coisas
no jogo e seus nomes; por outra, só em casos muito raros persis­
tem em prolongar um pouco os novos usos e denominação lúdi­
cos do objeto, retornando continuamente ao modo inicial, pré-
lúdico, de atuar com o objeto e à sua denominação anterior.
O quadro muda radicalmente quando se passa ao experi­
mento com crianças de idade média (5; 0). Elas acolhem muito
animadas a proposta do experimentador, brincam com interesse
e aperfeiçoam o jogo com iniciativas próprias. Compõem tam­
bém o seu próprio plano de jogo. Às vezes sugerem outro jogo,
se nào lhes agrada aquele que lhes foi proposto. Buscam ativa­
mente entre os brinquedos sugeridos aqueles de que necessitam
para substituir os personagens ou objetos, e se não os encon­
tram, aceitam, embora isso lhes custe um pouco, os que o expe­
rimentador propõe.
Isto sc refere, sobretudo, aos jogos temáticos. Assim, por
exemplo, os mesmos participantes no jogo acham possível que
as peças de quebra-cabeça representem crianças, mas como
são poucas, o experimentador sugere então que o cachorrinho
e o cavalinho também façam de crianças, o que encontra viva
oposição dos jogadores. E se estes acedem, fazem-no com um
sorriso de ironia: quanto menos corresponde o objeto substitu­
tivo ao personagem ausente do jogo, tanto maior é a hilaridade
das crianças. A segunda metonímia transcorre de modo idênti­
co à primeira. As crianças acedem umas vezes c resistem
outras à proposta do experimentador; mas, se a aceitam, man-
têm-na até que o jogo termine. Ora, ao substituir um objeto por
outro, expressa-se claramente até que ponto sào limitadas as
332 Psicologia dojogo

possibilidades de substituição. Escreve Lúkov: “Nem tudo


pode ser tudo. Um pau vertical e muito alto pode ser a profes­
sora, mas um pau çurto, não; o cavalinho de brinquedo pode
representar uma criança mas para isso nào serve, digamos,
uma bola de madeira etc. Em que se baseia essa seletividade
infantil para as coisas? Por que uma coisa pode ser o cavalinho,
e outra nào? É mais do que evidente que a condição para que
um brinquedo substitua outro é a possibilidade de atuar de
maneira determinada com o objeto dado, e nào a aparência
externa (o cavalinho não se parece nada com uma criança, nem
a peça do quebra-cabeça com um automóvel). Assim, por
exemplo, com o cavalinho pode-se atuar como se fosse uma
criança: pode-se sentá-lo, deitá-lo, fazer com que tropece e
caia etc.; mas isso c precisamente o que nào se pode fazer com
uma bola, na qual a ausência de coordenadas fixas limita as
possibilidades de operar com ela. Pelo exposto, vemos que as
propriedades físicas dos objetos (como podem ser colocados
ou postos de pé) limitam em certa medida a possibilidade de
atuar com eles” (1937, p. 65).
Ao fazer o resumo, Lúkov diz que as crianças de cinco a
seis anos conformam-se menos com as mudanças de uso dos
objetos na situação lúdica; não lhes são indiferentes as proprie­
dades objetivas do objeto e a sua utilidade, manifesta na atua­
ção anterior da criança. Por outra parte, uma vez mudados o
modo de atuar com o objeto e a sua denominação, a criança
persiste no prolongamento do novo uso lúdico do objeto, inclu­
sive no caso de que não corresponda diretamente ao inicial, ao
que se lhe dava antes do jogo. O fator determinante é a inclusão
do objeto dado na atividade lúdica da criança e, por essa razão,
no sistema de relações com os outros objetos da situação lúdica.
Esse sistema lúdico de relações determina também, evi­
dentemente, a denominação lúdica que perdura com bastante
estabilidade entre as crianças do grupo mediano, em vez das
do grupo de menos idade, que se limitam a aceitá-la. Portanto,
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 333

o emprego da denominação depende também, nesse caso, de


como a criança possa atuar com o objeto. Ora, essa possibilida­
de de atuar com o objeto, essa experiência sintetizada da crian­
ça e consubstanciada para ela na palavra, pode influir, por sua
vez, no emprego do objeto. A criança já pode atuar com o obje­
to, submetendo-se à tarefa lúdica.
O caráter do jogo das crianças mais velhas é, em seus aspec­
tos fundamentais, idêntico ao das de idade mediana, mas apre­
senta algumas peculiaridades. A maneira lúdica de atuar com o
objeto substitutivo é, para elas, muito estável, mais do que para
as crianças de idade inferior. Essa estabilidade de uso e denomi­
nação do objeto, em função do plano do jogo, é típica tanto para
os objetos que têm figura quanto para os que não a têm, embora
as crianças nào mudem com agrado, da primeira vez, o nome
dos objetos inadequados que dificilmente podem ser emprega­
dos de forma apropriada com a nova denominação. As crianças
quase nunca recorrem por iniciativa própria à segunda metoní-
mia e procuram manter durante todo o jogo o uso estritamente
admitido. Por isso a tentativa inicial do experimentador de anu­
lar o uso lúdico adotado das coisas e substituí-lo por outro de­
fronta-se, por via de regra, com certa resistência.
Mas depois de se proceder a várias mudanças desse tipo,
as crianças aceitam prazerosamente as segundas metonímias.
No final do jogo, ao captarem o princípio geral sugerido pelo
experimentador, elas modificam por iniciativa própria o uso
dos objetos no jogo, convertendo a metonímia dos objetos e a
modificação do seu emprego num jogo independente, ultrapas­
sando os limites da situação representada e até mesmo des-
truindo-a. Escreve Lúkov: “Este é um jogo novo que nào existe
ainda para as crianças de mais tenra idade. Toda substituição,
sobretudo a inusitada, provoca o riso nos participantes do jogo;
a atenção orienta-se agora inteiramente para a correlação exis­
tente entre os modos lúdicos de atuar com o objeto. Além dis­
so, parece como se as próprias peculiaridades reais do objeto
334 Psicologia dojogo

não fossem mais levadas em conta. Para as crianças apresenta-


se, pois, com absoluta clareza, o convencionalismo do uso lúdi­
co dc todos os objetos inseridos 110jogo” (1937, p. 73). Por con­
seguinte, também as suas denominações, acrescentamos nós.
O modelo experimental oferecido por Lúkov permite ima­
ginar as mudanças que se operam na estrutura das ligações en­
tre o objeto, o modo de atuar com ele e a palavra. Produz-se
diante de nós um distanciamento entre o objeto concreto e seu
modo de emprego inicial; e, segundo, um divórcio entre a pala­
vra e o objeto. Dir-se-ia que, sobre essa base, inverte-se a es­
trutura “açâo-objeto-palavra” para formar a estrutura “palavra-
objeto-açào”.
Dada a complexidade da situação oferecida no método de
Lúkov, é provável que se registre um singular passo temporal,
quer dizer, que esse processo de movimento da palavra ao
objeto e à ação com ele sobrevenha antes, verdadeiramente, na
vida real.
A pesquisa posterior das relações entre o objeto, a ação e a
palavra correu por nossa conta. As tarefas fundamentais dessa
pesquisa consistiram, primeiro, em efetuar uma avaliação com­
parativa das metonímias dentro e fora da situação lúdica; e, se­
gundo, em esclarecer a função da palavra nas ações da criança
com o objeto. Levaram-se a efeito três séries concatenadas de
experimentos em que participaram crianças de todos os grupos
de idade pré-escolar.
Na primeira série, que designamos como jogo das metoní­
mias, colocaram-se vários objetos sobre uma mesa, diante de
uma criança, e esta denominava-os com outro nome, proposto
pelo experimentador. Para assegurar-se de que percebia real­
mente o objeto e de que era precisamente o submetido à meto-
nímia, a criança segurava-o entre as mãos e contemplava-o en­
quanto se fazia a mudança de denominação.
Propuseram-se para metonímias os seguintes objetos e
brinquedos: um cubo geométrico, uma caixinha, uma bola, um
0 desenvolvimemo dojogo na idade pré-escolar 335

automóvel de corda, um cachorrinho e uma boneca. Estes


objetos possuem diversos graus de precisão funcional. Propu-
seram-se para novas denominações as dos mais diferentes
objetos, entre eles vários que de fato se encontram com fre­
qüência nos jogos (por exemplo, propôs-se chamar faca ou
colher a um lápis, casa a uma caixa, maçã a uma bola etc.) e
outros que estão em flagrante contradição com o denominado
(por exemplo, cavalo a uma caixa, boneca a uma bola ou a um
automóvel de brinquedo).
O experimento transcorreu da seguinte maneira: a criança
sentava-se à mesa, sobre a qual se encontravam os objetos. O
experimentador punha-lhe nas mãos um objeto e perguntava-
lhe: - O que é isto? - Quando a criança respondia, o experi­
mentador indicava-lhe: - Diz que é... (uma faca, um carro etc.)
- Quando a criança dava pela primeira vez ao objeto outra
denominação, insistia-se com ela para que repetisse várias ve­
zes o novo nome e depois oferecia-se-lhe outro objeto, com o
qual se repetia o mesmo. Portanto, a metonímia fez-se nesta sé­
rie sem ter presente o emprego lúdico dos objetos.
Na segunda série ofereceram-se à criança quatro objetos
com suas denominações lúdicas. Quando a criança as repetiu,
solicitou-se-lhe que realizasse algumas ações com eles. Os
objetos oferecidos eram: um lápis, que se chamou faca; uma
bola, denominada maçã; um carro, chamado casinha, e um cubo
geométrico que se denominou cachorrinho. Quando a criança
repetiu por várias vezes as denominações lúdicas dos objetos,
o experimentador sugeriu-lhe que realizasse várias ações com
eles: (1) - Dê a maçã ao cachorrinho -, (2) - Corte um pedaço da
maçã -, (3) - Coloque o cachorrinho na casinha -. Se, ao sugerir
à criança a ação, ela não atuava com os objetos de acordo com
a denominação lúdica, o experimentador recordava-lhe a impor­
tância lúdica dos objetos e insistia com ela para atuar de novo.
Escolhíamos os objetos e suas denominações lúdicas de
maneira que, ao atuar com eles, resultasse fácil realizar as
ações precisas com alguns: o lápis (faca) e a bola (maçã); e
336 Psicologia dojogo

com os outros: a peça de quebra-cabeça (cachorrinho) e o


carro de brinquedo (casa), fosse maior e mais discordante a
disparidade entre o objeto e seu emprego lúdico.
A terceira série era análoga à segunda, mas nela eram ain­
da mais discrepantes os empregos pre-lúdico e lúdico dos obje­
tos. Foram oferecidos para o jogo uma boneca e papel que con­
servaram seu significado real durante todo o experimento.
Além desses objetos, ofereceram-se um lápis como faca, uma
faca como lápis e um martelo como chouriço. Uma menina de­
via fazer várias coisas: cortar uma rodela de chouriço e entre-
gá-la à boneca; desenhar para a boneca um globo e uma casi­
nha; cortar um pedaço de papel e embrulhar o chouriço. Caso a
menina atuasse com o objeto sem se ater à metonímia lúdica, o
experimentador perguntava-lhe com que atuava e recordava-
lhe o significado lúdico dos objetos.
Neste caso, a complicação resultava de que o uso lúdico
do objeto transcorria numa situação conflitiva, estando presen­
te o objeto real (cortar com o lápis, existindo uma faca, e de­
senhar com a faca, havendo um lápis).
Como evidenciam os métodos descritos, as três séries
estão vinculadas entre si e complementam-se mutuamente: vão
da simples metonímia dos objetos, sem necessidade de utilizá-
los no jogo, até a metonímia que requer atuar em função da
mudança lúdica da denominação em situações correntes e com­
plicada por um conflito.
Apresentaremos alguns exemplos, os mais típicos, das três
séries do experimento.
Entre as crianças de três anos, a metonímia simples já não
apresenta grandes dificuldades. A maioria delas aceita facil­
mente as novas denominações oferecidas dos objetos. Seis em
10 crianças mencionaram todos os objetos com as novas deno­
minações sugeridas pelo experimentador.
Assim, Tânia (3; 5) admite todas as denominações novas e
menciona com elas os objetos. Quando se lhe pede que chame
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar

automóvel a um cão, diz: - Automóvel. - À pergunta do expe­


rimentador: - O que é isto? Tânia responde: - É um cachor­
rinho mas corrige imediatamente: - E um automóvel. - ígor
(3; 9) nomeia sem dificuldade todos os objetos com as novas
denominações e só ao chamar boneca a um cachorrinho arti­
cula: - Uma boneca mas acrescenta logo: - Vi um cachor­
rinho abanando o rabo. A pergunta do experimentador: - O
que temos aqui? -, ígor responde: - Um cão.
Apenas duas crianças se mostraram renitentes em chamar
de outra maneira os objetos.
Assim, Irina B. (3; 0) admite facilmente algumas metoní-
mias, mas protesta contra outras. Quando ao cachorrinho se
põe a denominação de boneca, ela diz: - E uma boneca. Au,
au,au!
Exper.: - O que é?
bina : - Um cachorrinho.
Exper.: - Diga que é uma boneca.
Irina : - Não! E um cachorrinho, pode-se acariciar. É um
cachorriiiinho! Au, au!
Exper.: - E uma boneca.
Irina: - Não, não, é um cachorrinho, au, au! ( Coloca o cão
em cima da mesa e agita-lhe o rabo.)
Ao denominar prato a uma caixa, Irina protesta: - Não,
nào é um prato. Não quero.
Exper.: - Diga que é um prato.
Irina: - Nào, nào é um prato.
Exper.: - Então diga: “onde está o prato?”
Irina: - Não há nenhum prato.
Irina comporta-se de maneira análoga ao denominar auto­
móvel ao cão e à caixa, e cavalo também à caixa.
Irina S. (3; 0) protesta ao dar à bola a denominação de
maçã: - As bolas podem ser maçãs? - interroga.
Exper.: - O que temos aqui?
Irina: - Uma maçã. Mas eu jogarei com a bola!
338 Psicologia do jogo

Ao pôr na bola a denominação de cão, Irina apanha na


mesa o cachorrinho de brinquedo e diz: - Sim, aqui está o ca­
chorrinho.
Irina comporta-se de maneira semelhante somente em al­
guns casos. Faz sem dificuldade as metonímias de colher, faca
e martelo por lápis, casinha, maçã; martelo por peça de quebra-
cabeça e bonde por automóvel.
Assim, entre as crianças menores, as de três anos (Irina B.
e Irina S. completaram exatamente três anos) defrontam-se
com dificuldades principalmente nas metonímias dos brinque­
dos temáticos. Pode-se supor que essas crianças ainda se en­
contram, no aspecto que nos interessa, numa fase característica
da menor idade, na qual, segundo os nossos dados, a metoní-
mia suscita algumas dificuldades, mais do que entre as crian­
ças da idade que elas têm.
Com as crianças de quatro anos nào tivemos dificuldades
ao fazer as metonímias. Unicamente Tamara (4; 4) se negou a
chamar automóvel a uma caixa. E só depois de ter sido instada
por três vezes é que disse, sublinhando as sílabas: - Au-to-mó-
vel. - Duas meninas, Natasha e Xênia (4; 3), tiveram uma rea­
çào singular, ao denominar cachorrinho a uma peça de quebra-
cabeça. Ao pôr à peça de quebra-cabeça a denominação suge­
rida pelo experimentador, as duas meninas ficaram olhando
com insistência para o objeto cujo nome se sugeria que fosse
posto à peça de quebra-cabeça.
Portanto, a simples metonímia nào encontra dificuldade
nenhuma entre as crianças dessa idade. Mencionam facilmen­
te, na esteira do experimentador, os objetos com a denomina­
ção lúdica que ele lhes propõe.
A metonímia tampouco suscita qualquer dificuldade entre
as crianças de cinco anos. No aspecto puramente exterior, estas
crianças fazem as metonímias, em seus aspectos fundamentais,
da mesma forma que as de quatro. Entretanto, algumas de cinco
já mostram claramente outra atitude. Começam a indagar sobre
os nomes dos objetos, interrompendo o experimentador com a
O desenvolvimento dojogo na idade prê-escolar 339

pergunta: - Quem é este? e procurando, por vezes, atuar com


os objetos em conformidade com o seu novo emprego. Nikolai
(5; 5), depois de chamar colher ao lápis, pergunta, apontando
para o automóvel de brinquedo: - E isso, o que é? -, depois
aponta para o cão e volta a perguntar: - E este quem é? -
Chamando cavalo ao lápis, ele mesmo aponta para o automóvel
e volta a indagar: - E que nome vamos pôr a este? - Ale-xandre
(5; 9), ao chamar casa a uma caixa, inverte-lhe a posição; ao cha­
mar-lhe prato, coloca-a também de cabeça para baixo. Em algu­
mas crianças de cinco anos dão-se, apesar de tudo, casos isola­
dos de “resistência passiva” à metonímia e à abstração de obje­
tos cujas denominações lhes sào sugeridas para mudá-las, no
caso de esses objetos estarem à vista.
As crianças de seis anos cumprem facilmente a missão da
metonímia, aceitam todas as denominações novas e põem-nas
em todos os objetos. Não houve nenhum caso de negativa. Ofe­
rece interesse o comportamento de um menino, Alexandre, que,
em vez de limitar-se a aceitar as novas metonímias, atua com
os objetos, aliás de modo congruente. Ao chamar colher ao
lápis, diz: - Claro, é uma colher. Vamos comer. (Le\>a-a à boca.)
Pode-se comer com esta colher. - Ao chamar-lhe cavalo: - É um
cavalo. Um cavalo. - (Faz movimentos representativos do galo­
pe. ) Ao denominá-lo faca: - É uma faca. Temos de cortar o pào
com ela. - ( Faz com o lápis movimentos de cortar.) Ao chamar-
lhe boneca: - E uma boneca. Dorme, neném. (Esboça movi­
mentos de embalar o lápis.) Ao denominá-lo martelo: - Um
martelo. Está bem. Pá, pá, pá! - (Martela a mesa.) Ao mudar o
nome da boneca e pôr-lhe o de cão, esse mesmo menino sorri,
dobra a boneca e ladra: - Au, au! Ei, não me morda.
Foi atropelado por um carro. Ei, cachorrinho, não se meta
debaixo das rodas. - Ao chamar-lhe bola: - Que bola ruim me
compraram. Nào quica. Nào sei se vou chutá-la para o teto. - Ao
chamar carro ao cào: - Claro que este é um carro. Mec, mec,
mec, mec! Parou o motor. Mec, mec... Isto é... Eu mesmo pos­
so dizer o que é. E uma lebre. Falta-lhe só levantar um pouco as
340 Psicologia do jogo

orelhas. - (Ergue as orelhas do cão e mostra-o ao experimenta­


dor.) Assim se porta Alexandre com todos os objetos, aos quais
muda o nome. Um comportamento parecido entre outros meni­
nos durante as metonímias achava-se em estado embrionário.
Embora Alexandre fosse o único que refletiu com tanta ênfase a
atitude lúdica em face das metonímias, parece-nos que é um
exemplo de expressão brilhante e desenvolvida do grau superlati­
vo alcançável pelas crianças que utilizam a palavra com plena
desenvoltura.
Esta série de experimentos dá margem para inferir uma
única dedução. Os dados fatuais evidenciam que a criança já
utiliza com relativa desenvoltura a palavra no começo da idade
pré-escolar e aprende, durante o decorrer de toda essa idade, a
utilizá-la com maior desenvoltura, dia após dia, como denomi­
nação dos objetos. Simultaneamente, a palavra vai implicando
cada vez mais o sistema de possíveis ações com o objeto signi­
ficado. Como Lúkov afirma com toda a razão, “cada palavra
parece conter para a criança um sistema possível de ações e,
por causa disso, a peculiaridade do objeto ou o fenômeno a que
se refere a própria palavra. O nexo da palavra com o objeto e
das possíveis ações com a palavra mostra que esta, pelo seu
conteúdo, é para o falante como uma imagem da ação com o
objeto ou fenômeno denominado” (1937, p. 110).
A segunda série teve, em comparação com a primeira, duas
complicações: primeiro, a criança deve mencionar sucessiva­
mente todos os objetos com as novas denominações depois que
o experimentador as sugere; e, segundo, realizar várias ações
com os objetos.
Como os fatos evidenciam, a denominação dos objetos
com novos nomes, sugeridos pelo experimentador antes da sua
utilização lúdica, apresenta algumas peculiaridades. As crian­
ças de diferentes idades conseguem-no em grau diverso.
Muitas se equivocam e dão ao objeto sua verdadeira denomi­
nação ou uma outra que nào é a sugerida pelo experimentador.
O maior número de erros é cometido pelas crianças de menos
idade (3 a 4 anos) e com a denominação de cào por peça de
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 341

quebra-cabeça. Quase todas as crianças dessa faixa etária equi­


vocam-se justamente nessa metonímia; entre as cnanças de
cinco anos, reduz-se à metade o número de equívocos, e entre
as de seis anos houve um único erro. E muito mais fácil aplicar
o vocábulo “faca” ao lápis e a palavra “maçã” à bola do que
atribuir a denominação “cão” à peça de quebra-cabeça. Esses
fatos refutam a afirmação de alguns psicólogos de que no jogo
tudo pode ser tudo e de que a criança, graças à vivacidade da
fantasia que se supõe inerente, pode aplicar qualquer denomi­
nação a qualquer objeto.
Os fatos obtidos permitem supor que as transnomeações
feitas pelas crianças limitam-se a objetos que, por suas proprie­
dades reais, propiciam a realização dos atos requeridos segundo
a nova denominação. Durante a idade pré-escolar opera-se uma
ampliação considerável das ações com o objeto atribuídas à
palavra e de suas propriedades, o que permite uma metonímia
lúdica mais livre mas, em última análise, restrita.
Depois de a criança pôr corretamente as denominações
sugeridas pelo experimentador, o experimento passava à se­
gunda fase.
Na segunda fase dos experimentos desta série, uma crian­
ça teve de executar uma série de ações objetais em congruên­
cia com as novas denominações dos objetos. A metade das
crianças de três anos, inclusive depois de adotadas as novas
denominações, tem dificuldade para executar atos como o dc
dar dc comer a maçã ao cachorrinho (a bola à peça de quebra-
cabeça).
Irina S. (3; 0) nào executa a açào sugerida pelo experimen­
tador de dar a maçã ao cachorrinho.
Irina : - A que cachorrinho se tem de dar a maçã? De que
cachorrinho se trata?
Exper.: - Onde está o cachorrinho?
Irina (volta-se de frente para o cão, que está em outra
mesa): - Ali (Aponta para a peça de quebra-cabeça.)
Exper.: - Dê a maçã a esse cachorrinho.
344 Psicologia dojogo

Exper.: - Pois cortc-a em pedaços.


Alexandre (pega num lápis, corta com ele a bola e aproxi­
ma-a da peça do quebra-cabeça. Faz tudo muito depressa):
- Come, come. Já nào há mais. Só ficaram as cascas e ele nào
gosta das cascas. Vá embora. O cachorrinho quer dormir, ali
está a sua casinha. Vá para o seu canil. Hora de dormir. Já está
dormindo. (Mete a peça do quebra-cabeça na casinha.) O
cachorrinho acordou. Eu nào estou. Quer que eu vá vê-lo. O
que você quer, cachorrinho? (Fala pelo cão.) “Quero comer!”
Ah, quer aqueles restos? “Sim, quero cortá-los em pedaços.”
Pois não tenho faca. Pediremos uma aos vizinhos. (Pega o
lápis.) Já temos uma. Mas nào corta. Terá de ser afiada na
casa do amolador. Agora sim, que está com fio. Cortaremos as
cascas em pedaços. (Simula cortar com o lápis as supostas
cascas.)
Portanto, as ações congruentes com as metonímias sào as
que suscitam as maiores dificuldades entre as crianças meno­
res que nào querem executá-las e recusam, diante da necessi­
dade de executá-las, a denominação lúdica adotada antes de
começar o jogo. Essa contradição, na qual vencem o objeto
dado diretamente e a ação com ele relacionada, atenua-se na
segunda metade da infancia pré-escolar e torna-se quase
imperceptível, manifestando-se às vezes somente no modo de
atuar com os objetos transnomeados.
Na segunda série de nossas provas utilizaram-se todos os
objetos integrantes da primeira série. Tem-se assim a possibili­
dade de contrastar os resultados da primeira série com os da
segunda. Se se analisa a transnomeaçào simples dos objetos
com os quais se fez o experimento na segunda série, resulta
que na primeira adotam a metonímia “faca-lápis” todas as
crianças de três anos; a da “peça de quebra-cabeça-cachorri-
nho” é recusada por uma única criança; a da “bola-maçã” é re­
pelida também por uma única criança; e a de “automóvel-casa” é
aceita por todas. Entre as crianças de quatro anos e mais não há
dificuldades na transnomeaçào desses objetos.
0 desenvolvimento dojogo na idade prè-escolar 345

Diante da necessidade de atuar de acordo com a transno-


meaçào da peça de quebra-cabeça em cão, a metade das crian­
ças menores resiste, e a outra metade, que executa a açào, não o
faz em correspondência com a transnomeaçào. Isso se vê com
particular destaque no ato de alimentar a peça de quebra-cabe-
ça (cachorrinho) com a bola (maçã). A outra açào - a de cortar
a bola (maçã) com o lápis (faca) - é aceita e bem executada por
quase todas as crianças, ou seja, as crianças atuam verdadeira­
mente com o lápis como se fosse uma faca, isto é, cortam a
maçà. Muito poucas apenas, ao cortar com o lápis, atuam com
ele como tal e nào como se fosse uma faca. Assim, Irina (3; 0)
nào corta a bola, mas espicaça-a com a ponta do lápis; Alexan­
dre (4; 0) traça na bola um risco com o lápis, segurando-o cm
posição perpendicular.
Estamos, pois, diante dos seguintes fatos: (1) a simples me­
tonímia da peça de quebra-cabeça em cachorrinho e do lápis em
faca é aceita pelas crianças e esta última, pela maneira de executá-
la, parece-se com a açào de cortar com a faca; sào muito poucas
as crianças que se excluem; (2) a açào com a peça de quebra-
cabeça como cachorrinho é repelida totalmente pela metade das
crianças, e a outra metade não a converte em açào de dar de co­
mer; as crianças mais velhas aceitam a açào que, pelo modo de
ser executada, começa a parecer a de dar de comer.
Esses fatos testemunham que a transnomeaçào nos casos
de emprego lúdico do objeto eleva bruscamente a resistência a
adotá-la, sobretudo quando as ações lúdicas discrepam dos mo­
dos de atuar estabelecidos no experimento anterior e carecem
de respaldo nas propriedades do objeto lúdico.
Para comprovar as relações estabelecidas entre o sistema
de nexos da denominação direta do objeto dado com as ações e
da nova denominação convencional do objeto com as ações,
empreendemos a terceira série de experimentos com a finali­
dade de mostrar que as crianças de três anos de idade nào se
recusam por casualidade a aceitar a peça de quebra-cabeça no
lugar do cachorrinho, e que toda a utilização lúdica do objeto
346 Psicologia do jogo

transcorre por intermédio dessas relações. O experimento con­


sistiu no seguinte. Ofereceram-se às crianças, como objetos
lúdicos, um lápis, uma faca e um martelo, todos com um siste­
ma bastante óbvio e determinado de ações. Esses objetos lúdi­
cos foram oferecidos para brincar com uma boneca e uma
folha de papel, cujos significados nào mudaram durante o
experimento. Propôs-se às crianças que utilizassem no jogo
um lápis em vez de faca. uma faca em vez de lápis e um marte­
lo em vez de salsichão, e executassem várias ações de acordo
com a nova designação lúdica dos objetos.
Segundo as nossas conjecturas, a existência simultânea
entre os objetos de um lápis e de uma faca, utilizados no jogo
como substitutivos um do outro, deve reforçar a conexão entre o
objeto e sua utilização pré-lúdica, descobrindo assim com maior
clareza as relações entre o sistema de nexos do objeto com as
ações e da palavra com as ações. Ocorreu como esperávamos.
Todos os casos de utilização dos objetos podem dividir-se
de três maneiras. À primeira pertencem os casos de utilização
do objeto conforme a sua transnomeação lúdica; à segunda, os
casos de utilização que se apresentam como resultado da opo­
sição entre os dois objetos; à terceira, os casos de recusa do
objeto segundo a transnomeação lúdica, ou seja, de emprego
do objeto de acordo com a sua designação direta.
O primeiro modo nâo necessita de ilustrações. Em todos
os casos nele incluídos, as crianças aceitam de imediato o obje­
to conforme a sua metonímia lúdica e executam com ele as
ações necessárias: cortam com o lápis e desenham com a faca.
O característico do segundo modo é o conflito entre o em­
prego pré-lúdico e o lúdico do objeto. Apresentaremos alguns
exemplos:
Irina S. (3; 0), em resposta à sugestão do experimentador
de desenhar uma bolinha e uma casinha para a boneca, estende
a mão para apanhar o lápis, dizendo: - O lápis é este. - Dese­
nha com a faca e diz: - Pronto. - Essa oposição manifesta-se
com maior nitidez em Natasha K. (4; 7). Depois de o experi-
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 347

mentador lhe ter proposto que desenhe, ela encara-o, sorri e


pega a faca, dizendo: - Eu nào sei desenhar uma casa.
Exper.: - Entào desenhe somente uma bolinha. (Natasha
apanha o lápis e desenha com ele.) Com que está desenhando?
Natasha demora em responder, pega a faca sem dizer uma
palavra, mas nào desenha e começa a cortar o martelo, que está
em cima da mesinha. Natasha B. (5; 5) apanha primeiro a faca
e em seguida o lápis. Pergunta: - De mentirinha ou de verdade?
Exper.: - Como acha que deve ser feito?
Natasha: - De verdade. (Desenha com o lápis no ar, em
cima do papel.) Pronto!
Exper.: - Mas onde está a bola?
Natasha: - Fiz de mentirinha.
Exper.: - E com que desenhou?
Natasha: - Com isto. (Mostra o lápis.)
Nos casos de recusa em aceitar o objeto em sua nova qua­
lidade, as crianças ou atuam de imediato com o objeto segundo
a sua designação direta ou, começando a atuar assim, negam-
se completamente ao seu emprego lúdico, só passando para
este depois de lhe ter sido recordado pelo experimentador.
Irina S. (3; 0), ao lhe ser proposto que corte uma rodela de
salsichão para a boneca, empunha a faca e corta o martelo.
Exper.: O que você está cortando?
Irina: - Isto é a faca. Uma faca! (Continua cortando.)
Exper. : - Onde está a faca?
Irina (pega no lápis): - Aqui está. (Apanha rapidamente a
faca.) Isto será a faca. (Corta o lápis com ela.)
O experimentador repete as condições do jogo.
Irina: - Não, esta será a faca (refere-se à faca) e este o
lápis. ( Volta a cortar o lápis com a faca.)
Exper.: - Corte com a outra faquinha.
Irina (apanha o lápis e corta com ele): - Tome! Um peda­
ço grande! (Dá-oá boneca.)
Irina B. (3; 0) nào aceita a transnomeaçào nem mesmo de­
pois de o experimentador lhe ter recordado por duas vezes a
348 Psicologia dojogo

designação lúdica dos objetos, e reage indignada: - É uma


faca! (Aponta para a fa ca .)- Serguéi, quando lhe sugerem que
corte uma fatia de salsichão, corta o martelo com a faca.
Exper.: - Com o que está cortando?
Serguéi: - Com a faquinha.
Exper.: - E onde está ela?
Serguéi: - Aqui. (Aponta para afaca.)
Enquanto o experimentador não lhe recordar as condições
estabelecidas para o jogo, Serguéi não aceita atuar de acordo
com a metonímia. Alexandre K. (6; 0) corta o martelo com a
faca, quando o experimentador lho sugere.
Exper.: - Com que está cortando?
Alexandre: - Com a faca. (E acrescenta por sua conta:) A
faca é esta. (Apanha o lápis e corta com ele.)
Se agruparmos todos os casos de aceitação da metonímia
lúdica tanto de imediato como depois de certa resistência, e os
compararmos com os casos de completa renúncia, obteremos
o seguinte quadro (o número dc crianças é dado em percenta­
gens):
aos 3 anos aceitam-na 28, rejeitam-na 72
aos 4 anos aceitam-na 55, rejeitam-na 45
aos 5 anos aceitam-na 45, rejeitam-na 55
aos 6 anos aceitam-na 50, rejeitam-na 50
Estes dados evidenciam com bastante clareza que nas con­
dições de uma situação complicada aumenta consideravelmen­
te o número de crianças que nào aceita o emprego lúdico dos
objetos. E embora seja verdade que na segunda série o lápis é
aceito como faca por todas as crianças, nào é menos que no ex­
perimento dado só a metade o aceita; a outra metade rejeita-o e
procura cortar com a faca real que têm ao lado. e nào com o lá­
pis. Quadro análogo observa-se também a respeito do emprego
da faca como lápis. Quase todas as criariças de três anos (salvo
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 349
uma) c a metade das de outras idades recusam a faca no lugar
do lápis e pretendem empregá-la como tal.
Neste experimento não há diferenças singulares entre as
crianças mais novas e mais velhas. Unicamente as de três anos
oferecem um número considerável de renúncias. Nas outras fai­
xas etárias é quase igual o número de crianças que aceitam o
emprego lúdico dos objetos. Mas essa ausência de diferenças é
apenas aparente. Se for analisada a resistência ao emprego lú­
dico do objeto (nos casos em que, apesar de tudo, se consegue
que as crianças que o rejeitam acabem aceitando-o), o resulta­
do mostrará que ela é muito maior entre as crianças pequenas do
que entre as mais velhas.
O experimentador teve de recordar por várias vezes as con­
dições do jogo às crianças pequenas que rejeitavam o uso lúdi­
co do objeto e mesmo assim o utilizaram só uma vez por outra
de acordo com a metonímia. Assim, por exemplo, Nádia (3; 0)
responde à proposta do experimentador para que corte uma
rodela de salsichão: - Isto (aponta para o martelo) com isto?
(Aponta para afaca. Apanha-a e corta o martelo com ela.)
Exper. : - Com que você está cortando?
Nádia : - Tem que cortar com isto?
Exper.: - E o que é isso?
Nádia: - Uma faquinha.
Exper.: - E isto? (Apontapara o lápis.)
Nádia : - Isso é o lápis. (Apanha o martelo e desfere
pequenos golpes com ele.) E isto é o martelo.
O experimentador repete todas as condições e volta a
sugerir que se corte uma rodela de salsichão para dar à boneca.
Nádia (corta prontamente o martelo com o lápis): - Toma.
(Dá o martelo á boneca.)
Para que as crianças mais velhas aceitem o emprego lúdi­
co do objeto basta uma só pergunta do experimentador. Kólia
(5: 5) corta o martelo com a faca.
Exper.:- Com que você está cortando?
350 Psicologia dojogo

Nikolai: - Com o lápis. (Apanha rapidamente o lápis e


corta o martelo com ele.)
Alha (5; 4) apanha a faca e corta com ela.
Exper.: Com o que você está cortando?
Alha: - Com a faquinha.
Exper.: - E onde está ela?
Alha: - Isto será a faca. (Pega no lápis e corta com ele.)
À proposta do experimentador de desenhar uma casinha e
uma bolinha para a boneca, apanha o lápis.
Exper.: - Com que você está desenhando? (Alha pega em
silêncio na faca e desenha na folha de papel.)
Vládik (6; 0) empunha a faca e o martelo. Corta.
Exper. : - Com que você cortou?
Vládik: - Com isto. (Indica o lápis, apanha-o e corta.)
Assim, as crianças mais velhas que antes não aceitavam o
uso lúdico dos objetos são mais dóceis para admiti-lo do que as
mais novas, que oferecem maior resistência; a estas é preciso
repetir insistentemente as denominações lúdicas e instigá-las
com energia a que executem atos.
Como se explica que na segunda série se admitisse com
facilidade o lápis em vez da faca, ao passo que na terceira
série isso não era admitido pela metade das crianças de todas
as idades? Por que as crianças que utilizaram com facilidade o
lápis no lugar da faca, assim que se introduziu uma faca de
verdade nas condições do jogo, renunciavam ao uso lúdico do
lápis, só o aceitando depois que o experimentador interveio?
Por que, para terminar, o uso do martelo como salsichão, nes­
ses mesmos experimentos, era aceito por todas as crianças
sem exceção?
Todos esses fatos evidenciam que o nexo entre a palavra
(denominação do objeto) e o sistema de ações nela implícitas
pode estabelecer diversas relações com o sistema de nexos do
objeto com o seu emprego lúdico. A introdução do objeto real
acentua os vínculos do objeto com as ações e enfraquece ou até
freia totalmente os da palavra com as ações.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 351

Há fundamento para supor que os nexos das ações com o


objeto e a palavra que o significa constituem uma estrutura
dinâmica unida. Isso assim é, indubitavelmente, pois caso con­
trário seria impossível o emprego lúdico do objeto. Mas os
nossos materiais experimentais mostram, primeiro, que para
inserir-se nessa estrutura dinâmica a palavra deve impregnar-
se de todas as possíveis ações com o objeto e ser agente do sis­
tema de ações com os objetos; segundo, que só tendo-se
impregnado de todo o sistema de ações a palavra pode substi­
tuir o objeto; terceiro, que em determinadas condições o siste­
ma de vínculos da palavra com as ações pode submeter-se ao
de vínculos do objeto com as ações; quarto, que as relações
desses dois sistemas de nexos sofrem uma profunda mudança
justamente na idade pré-escolar. Pode-se supor que o jogo
constitui precisamente uma prática original de operar com a
palavra, prática essa em que se produzem mudanças das rela­
ções entre o objeto, a palavra e a açào.
Os experimentos por nós realizados foram repetidos por
Vigotskaia (1966) com crianças surdas. O método experimental
foi exatamente igual ao utilizado nos experimentos descritos.
Vigotskaia supôs que, devido ao atraso no desenvolvimento da
fala das crianças surdas, diferentemente das dotadas de audi­
ção, a metonímia dos objetos estaria dificultada e, ao mesmo
tempo, a significação verbal não determinaria as ações lúdicas
que estariam ligadas de maneira mais direta à situação do jogo.
Essas conjecturas só se confirmaram em parte. Basean­
do-se nos dados obtidos, Vigotskaia chegou às seguintes con­
clusões:
1. Se a metade das crianças de três anos dotadas de audi­
ção recusou as denominações lúdicas dos objetos, as surdas
submetidas ao experimento aceitaram a metonímia, admitiram
os nomes lúdicos dos objetos e os mantiveram durante todo o
experimento.
2. Se uma criança dotada de audição aceita a denomina­
ção lúdica do objeto, atua de acordo com o novo nome, que
352 Psicologia do jogo

determina para ela a nova maneira de o manipular. Nos casos


em que a criança que ouve renuncia a executar a açào lúdica,
ela também rejeita a denominação lúdica desse objeto, voltan­
do à pré-lúdica. Por outras palavras, se aceitar chamar ferro de
engomar à peça de quebra-cabeça, começará a passar a ferro
com esse objeto, ou seja, a executar a ação específica da nova
denominação. Mas se se nega a passar a ferro com essa peça,
repudia em seguida a sua denominação lúdica de ferro de en­
gomar e começa a denominá-la pelo seu verdadeiro nome.
Nas crianças surdas observamos outra coisa. Admitem
facilmente chamar ferro de engomar à peça de quebra-cabeça,
mas na maioria dos casos nào passam a ferro com ela. Por con­
seguinte, depois de aceitar a nova denominação e expressar a
sua conformidade, as crianças surdas não executam com o
objeto, na maioria das vezes, a ação ditada pela nova denomi­
nação, ou a executam de maneira formalista. A denominação
lúdica admitida pelas crianças surdas determina em menor
grau o modo e o caráter de suas ações do que nas crianças que
ouvem. A aceitação quase incondicional das denominações
lúdicas pelas crianças surdas pode explicar-se, provavelmente,
pela atitude específica da criança surda diante da palavra do
pedagogo que, para ela, é a fonte fundamental da obtenção de
conhecimentos orais.
O fato de que, uma vez aceita a transnomeação lúdica, as
crianças do experimento não se regeram por ela cm vários
casos ao executar as ações, é testemunho de outro nível semân­
tico e funcional do desenvolvimento da palavra na criança sur­
da. Ao aceitar formalmente a transnomeação proposta, as crian­
ças surdas não atuam, em alguns casos, em congruência com a
nova denominação do objeto, optando por adaptar-se às suas
peculiaridades percebidas diretamente. A palavra ainda não se
impregnou na criança surda dos sistemas de todas as vincula-
ções, e tampouco implica uma suficiente síntese nem regula
totalmente a ação da criança surda.
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar

Escreve Vigotskaia: “O ensino especial da fala modifica


a atitude das crianças surdas com a palavra e permite-lhes
compreendê-la tanto que começa a determinar em si as suas
ações. A conseqüência do ensino é que a fala começa a regular
as ações das crianças surdas. O súbito aumento (em mais de 11
vezes) do número de ações lúdicas executadas mediante solici­
tações orais por crianças do terceiro ano de ensino cm compa­
ração com as do primeiro ano é uma demonstração persuasória
da asserção” (1966, pp. 183-184). Os dados obtidos nesse ex­
perimento foram também confirmados nos experimentos que
apresentavam caráter mais natural, ao se organizar o jogo no
qual se requeria a substituição dc um objeto por outro parecido
no aspecto funcional.
Os dados obtidos no experimento de Vigotskaia obri­
gam a rever com critério crítico as opiniões de alguns psicó­
logos que consideram, com Piaget, que o simbolismo lúdico
não depende, em considerável medida, do desenvolvimento
da fala.
O conceito de símbolo em Piagct pressupõe uma seme­
lhança entre o significado e o significante. Se os objetos forne­
cidos para o jogo são símbolos de outros ausentes, mas neces­
sários para desenvolver o seu tema, ou seja, que os representam
diretamente, que são imagens suas, em realidade não se neces­
sita de fala nenhuma. Nesse caso, a palavra repetiria unica­
mente o que já está implícito no símbolo como imagem do
objeto ausente. Tal como na pictografia, é uma indicação dire­
ta do significado sem passar pela palavra.
Segundo Piaget, a relação do símbolo com o objeto é, por
princípio, idêntica à relação da imagem com o objeto. O obje-
to-símbolo com que nos encontramos no jogo é a imagem do
objeto significado, mas dada sob outra forma material. E natu­
ral que nessa compreensão do símbolo-objeto que as crianças
utilizam no jogo e que indica diretamente à criança o objeto
significado a palavra não desempenhe nenhum papel ativo.
354 Psicologia dojogo

Entretanto, essa idéia do simbolismo no jogo nào corres­


ponde totalmente aos fatos. Como as nossas observações e
pesquisas evidenciaram, os objetos incorporados ao jogo como
substitutivos dos necessários, mas ausentes, sào de uma ex­
traordinária variedade funcional e, ao mesmo tempo, a sua se­
melhança com os objetos significados é muito relativa. Com
efeito, em que é que um cabo de vassoura se parece com um
cavalo? O cabo de vassoura nem é sequer a imagem esquemati­
zada de um cavalo. Mas o caso é que esse mesmo cabo de vas­
soura pode ser também uma escopeta, uma serpente e uma
árvore. Essa variedade funcional expressa-se ainda com maior
clareza nos brinquedos anódinos. Um pedaço de madeira pode
ser um prato em que se serve comida e também a própria comi­
da que se põe sobre uma folha de papel que se faz de prato. Isso
depende integralmente do significado que a criança atribua ao
objeto no momento concreto do jogo. A palavra com que a
criança denomina o objeto polifuncional no jogo restringe ime­
diatamente a sua designação, determina a sua funçào no jogo
dado, o que c que com esse objeto se pode e deve fazer no jogo,
que ações são exeqüíveis com ele. Se à peça de quebra-cabeça
se chamou ferro de engomar, isso significa que com ela devem
ser cxccutados os movimentos de passar a ferro. Se se lhe pôs o
nome de croquete, há que comê-lo; e se prato foi a denomina­
ção escolhida, tem-se de pôr comida nele e levá-la como se
fosse num prato. Isso é possível unicamente porque a própria
palavra leva implícita nesse período de desenvolvimento a
experiência das ações com os objetos.
À primeira vista, pode parecer que os brinquedos temáti­
cos sào símbolos. Claro que há neles muito mais plasticidade,
mas as crianças utilizam também esses brinquedos temáticos
que representam animais, pessoas etc., de maneira muito diver­
sa. Um cào pode executar a função de menino, e um boneco a
funçào de passageiro de táxi, e nào a dc menino. A gama de
empregos dos brinquedos temáticos é muito ampla.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 355

Foi precisamente por isso que Vigotski preferiu falar da


transferência dos significados de um objeto para outro, e nào
de simbolismo. Tal substituição de um objeto por outro sobre­
vêm no jogo e baseia-se nas possibilidades de executar com o
objeto lúdico a açào necessária ao desenvolvimento do papel.
E um componente de vital importância do jogo. Graças a essa
metonímia, a açào perde o seu caráter concreto e o seu aspecto
técnico operacional, tornando-se plástica e transmitindo unica­
mente o seu significado geral (dar de comer, pôr para dormir,
cuidar do doente, comprar e vender, passear, lavar-se etc.).
A evolução das ações no jogo é de suma importância para
compreender o papel da “simbolização”. Já dissemos várias
vezes que a açào vai ficando, pouco a pouco, cada vez mais
sintética e abreviada. Nevérovitch (1948) submeteu este pro­
blema a uma pesquisa especializada. Sugeriu às crianças que
executassem uma ação em diferentes condições: mostrar sim­
plesmente uma ação com um objeto imaginário; executá-la com
um objeto substitutivo que não possui um modo de ação rigo­
rosamente fixo; e executar uma ação com um objeto substituti­
vo que possui tal modo de emprego. Os dados obtidos nesse
trabalho demonstram que a criança passa justamente na idade
pré-escolar a mostrar o modo de ação e, por vezes, o esquema
geral do movimento.
No desenvolvimento do jogo vemos a “simbolização” pelo
menos duas vezes. A primeira, como passagem da açào de um
objeto para outro, ao transnomeá-lo. Aqui, a função da simbo­
lização baseia-se em destruir a rigidez da ação com o objeto. A
simbolização apresenta-se como condição para modelar a
importância geral da ação de que se trate.
Deparamo-nos com a simbolização uma segunda vez ao
assumir a criança o papel de um adulto, com a particularidade
de que a síntese e a abreviação das ações manifestam-se como
condição modeladora das relações sociais entre as pessoas
durante a sua atividade e, por isso, como revelação do seu sen­
356 Psicologia do jogo

tido humano. Graças, precisamente, a esse plano duplo de


“simbolizaçào”, a ação insere-se na atividade e obtém o seu
sentido no sistema de relações inter-humanas.

6.Desenvolvimento das atitudes da criança


em face das regras do jogo
Já vimos que o típico do jogo protagonizado é a sujeição à
regra relacionada com o protagonismo que a criança assume.
A ligação da regra com o papel na protagonização criadora é
orgânica; as regras são determinadas pelo conteúdo fundamen­
tal do papel e complicam-se à medida que se desenvolve e
complica esse conteúdo. É natural que se pergunte pela atitude
da criança em face da regra e pelos mecanismos psicológicos
de subordinação à regra lúdica. Para estudar essa questão re­
corremos ao segundo tipo de jogos, muito comuns também na
idade pré-escolar: os jogos dinâmicos com regras.
Diferentemente dos jogos protagonizados, estes outros
estào programados no sentido de que o programa do jardim-
de-infancia estipula certa continuidade dos jogos por grupos
de idades, apresentando-lhes tarefas didáticas concretas.
Não é missão nossa explicar a natureza dos jogos com
regras, sua origem e sua conexão com o modo de vida e a ativi­
dade da criança. Seria necessário para isso proceder a uma
grande pesquisa especial. A criança encontra esses jogos pre­
parados de antemão e aprende-os como elemento da cultura.
Quanto a nós. o que nos interessa é a aprendizagem infantil das
regras do jogo unicamente porque isso pode ajudar a elucidar a
natureza do jogo protagonizado, tanto mais que nas fases ini­
ciais do desenvolvimento não existe nenhuma fronteira clara
entre as regras e os jogos protagonizados.
Com esse fim se analisaram os jogos recomendados para
os jardins-de-infancia. Analisaram-se no total 137 jogos, sen­
do 15 para crianças de 3 a 4 anos, 46 para crianças de 5 a 6
anos, e 76 para crianças de 7 anos.7
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 357

Do ponto dc vista do problema que nos interessa, o da cor­


relação entre o conteúdo temático-representativo e as regras,
todos os jogos se dividiram em cinco grupos.
Primeiro grupo. Jogos imitativo-operacionais e jogos-exer-
cícios elementares.
Segundo grupo. Jogos dramatizados de argumento deter­
minado.
Terceiro grupo. Jogos de argumento com regras simples.
Quarto grupo. Jogos com regras sem argumento.
Quinto grupo . Jogos esportivos e jogos-exercícios orienta­
dos para determinadas conquistas.
Como evidencia o Quadro 1, o primeiro grupo de jogos está
representado na idade mais baixa e ainda assim de maneira insig­
nificante.

QUADRO 1
Distribuição dos grupos dejogos por idades
Idade em anos
Grupo dejogos 3-4 5-6 7
abs. % abs. % abs. %
Primeiro 3 20 1 2 — —

Segundo 8 53 5 11 2 3
Terceiro 3 20 18 39 22 29
Quarto 1 7 22 48 42 55
Quinto - - - - 10 13
Total 15 100 46 100 76 100
O segundo grupo ocupa o principal lugar entre as crianças
menores e cede a primazia a outros tipos de jogos nos grupos
de idade pré-escolar média e mais velhos.
O terceiro grupo está igualmente representado aproxima­
damente em todos os grupos de idade, sem ocupar em nenhum
deles uma posição predominante.
358 Psicologia do jogo

O quarto grupo de jogos ocupa uma posição predominante


no grupo dos mais velhos em idade pré-escolar. o primeiro
posto no grupo mediano e o último no dos mais novos em
idade pré-escolar.
O quinto grupo só está representado nos mais velhos da
idade pré-escolar, e mesmo assim de maneira insignificante.
Pode-se supor que esses jogos ocupam um lugar muito consi­
derável já na idade escolar.
Comparando os jogos dos grupos segundo e quarto, ou
seja, os jogos dramatizados com determinado argumento e os
jogos com regras sem argumento, vê-se a substituição de um
tipo de jogos por outro. A quantidade de jogos dramáticos com
determinado argumento diminui, enquanto a de jogos com
regras sem argumento aumenta e, no final da idade pré-escolar,
atinge os 55%; se se adicionarem os 13% relativos aos jogos
desportivos, que também são jogos com regras, mas de um tipo
mais elevado, obteremos um total de 68%.
O que são os jogos dramatizados de argumento determi­
nado?
Já vimos os jogos pertencentes a esse tipo em nossos expe­
rimentos com alteração das relações entre as regras e o papel, e
esclarecemos que, em tais jogos, uma certa regra está subenten­
dida no papel (o lobo captura; a lebre foge). Pode-se afirmar
que os jogos de argumento determinado contêm uma regra, mas
que está oculta e é como se se encontrasse no conteúdo das
ações do papel que a criança interpreta no jogo. Pode-se afir­
mar também que o desenvolvimento dos jogos na idade pré-
escolar vai desde os que têm argumento desenvolvido e papéis
com regras latentes até os jogos com regras patentes.
Nos jogos dinâmicos com regras e programas de educação
física, o acatamento das regras pelas crianças efetua-se me­
diante o argumento do jogo ou a protagonizaçào. Como a aná­
lise desses jogos demonstra, quanto mais jovens forem as
crianças, tanto maior conteúdo deve ter e mais direta deve ser a
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 359

conexão entre as regras às quais a criança deve submeter suas


ações e o papel que adota. Mas, pouco a pouco, o argumento ou
o papel vai se restringindo e fica só na denominação dos papéis
ou no esquema convencional e, por último, somente na denomi­
nação do jogo que adquire um puro caráter convencional como,
por exemplo, “agulha e linha” ou “corrida dos sorveteiros” Nes­
tes casos, entre as regras a que as crianças se subordinam e a de­
nominação do jogo existe um nexo muito remoto ou, inclusive,
puramente convencional. Como já vimos, a adoção de certa re­
gra como condição não vinculada ao papel, quanto ao conteúdo,
é exeqüível somente para as crianças em idade pré-escolar.
Efetuamos várias pesquisas para esclarecer a atitude da
criança em face da regra implícita no papel, por um lado, e da­
da de forma acabada, ou seja. desligada do argumento e do pa­
pel, por outro.
Ao fazê-lo, não nos interessava a gênese dos jogos com
regras acabadas, mas o que havia de comum entre esses jogos e
os protagonizados. Justamente com a finalidade de descobrir
melhor a natureza das regras contidas nos jogos protagoniza­
dos empreendemos uma pesquisa especial que consistiu em
várias séries de experimentos e observações de jogos com
regras.
A primeira série foi dedicada a esclarecer a importância
do argumento e do papel na subordinação à regra. Para esse
fim, com as crianças de todas as idades de um jardim infantil,
desenvolveram-se jogos paralelos com protagonismos com e
sem argumentos; as regras eram as mesmas para todas, a saber:
jogos de “revezamento”, de “trem” ou “locomotiva”, de “es­
conde-esconde” e de “gato e rato”.
No jogo dos “revezamentos”, as crianças, de pé ao longo
da parede, deviam sair correndo ao sinal de “um, dois, três”, na
direção da experimentadora. Este jogo complicava-se um pou­
co para as crianças de cinco anos e praticava-se como o de
“gorélki”, formando pares, uns atrás de outros, e ao sinal de
“um, dois, três, o último par a correr”, este saía correndo. Per­
360 Psicologia do jogo

dia o que corria primeiro, que se punha na frente quando seu


turno já era o último.
Ao brincar de “locomotivas”, a experimentadora dava às
crianças a seguinte instrução: - Querem brincar de locomoti­
vas? Eu serei locomotiva e apitarei piiiiií. Você será a segunda
locomotiva. Quando ouvir o apito da locomotiva grande, corra
para ela e se engate. Se não o fizer logo, isso significará que é
uma locomotiva avariada e não pode jogar.
No jogo do “trem”, as instruções eram um pouco diferen­
tes. A experimentadora dizia à criança: - Junto da cadeirinha
está a estação; quando ouvir dois toques de sineta, tem de se
pôr em marcha rápido. Se se distrair, isso significa que você é
um mau maquinista.
Em todos esses jogos, a regra é elementaríssima e, no fun­
do, resume-se a começar o movimento a um sinal dado. Apesar
da simplicidade da regra, manifestaram-se nesses jogos deter­
minadas diferenças de idade.
Fizeram-se no total 36 experimentos, dos quais 16 foram
jogos de “revezamento” (incluindo o de “gorélki”) e 20 de
“trem” ou de "locomotivas”.
Vejamos os resultados do jogo dos “revezamentos”.
A essência desse tipo de jogos reside na obediência ao im­
pulso direto de correr para a experimentadora, à regra de
começar a correr a um sinal dado.
Somente entre as crianças menores tivemos casos de deso­
bediência à regra. De 17 provas, apenas em quatro as crianças
obedeceram à de “um, dois, três, correr”, e em 13 não se acatou
a regra. Apresentaremos alguns fragmentos das atas que carac­
terizam a conduta das crianças pequenas nesse jogo.
Tamara (3; 0) ouve atentamente as instruções. Está tran­
qüila e olha sorridente para a experimentadora. Ao dar esta o
sinal, Tamara não se mexe do seu lugar. O sinal já foi dado e
Tamara continua sem se mover. Só depois que a experimenta­
dora lhe pergunta - Por que você nào correu? - é que Tamara o
faz na direção dela.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 361

O jogo começa pela segunda vez, depois de ter a experi­


mentadora repetido as instruções. De novo Tamara nào corre
quando é dado o sinal e só o faz quando a experimentadora lhe
pergunta: - Esqueceu outra vez?
Maia (3; 2) ouve as instruções; sorri e remexe-se o tempo
todo. Assim que a experimentadora começa a contar, Maia
arranca e corre para ela. Ao repetir o jogo, Maia não corre,
nem mesmo depois de ter ouvido o sinal. Experimentadora: -
Eu já disse três. - Maia ri e corre para ela.
Iúri (3; 5) escuta as instruções e corre até o final do corre­
dor. A experimentadora repete as instruções. Iúri está dc pé,
sem se mexer, sorridente. Assim que a experimentadora come­
ça a dar o sinal, Iúri corre ao seu encontro. A experimentadora
repete de novo: - Tem que se manter no lugar até que eu diga
“três” e só então saia correndo. - Iúri permanece tranqüilo. Ao
ouvir “três” ri e, instantes depois, corre para a experimentadora.
Ásia (3; 3) sorri ao ouvir as instruções. Depois de ouvir a
voz de comando, continua imóvel. Experimentadora: - Não
me entendeu? Quando eu digo “três”, saia logo correndo. Ásia
corre para a experimentadora e esta sugere-lhe que joguem
outra vez. Ásia aguarda o sinal e então corre com toda a pres­
sa, rindo, e abraça-se aos joelhos da experimentadora. Volta
para o seu lugar correndo e diz: - Quero correr outra vez até
você. - E, sem aguardar o sinal, sai correndo na direção da
experimentadora.
Os exemplos apresentados mostram a conduta típica das
crianças mais novas. Todos os casos de desobediência às regras
podem dividir-se em dois tipos: as crianças saem correndo
antes que se termine de dar o sinal ou nào se mexem do lugar
nem mesmo quando o sinal já foi dado: o impulso direto de
correr ou vence ou se freia, e entào a criança já nào corre. Entre
o impulso de correr c a regra ainda nào há, propriamente, ne­
nhum conflito.
Aos quatro anos já muda o quadro da conduta. Das 11 pro­
vas experimentais, registrou-se obediência às regras em nove
362 Psicologia dojogo

casos e desobediência só em dois. O quadro comportamental


em que se apresenta o conflito entre o impulso de correr e a
regra, vencendo esta última, torna-se muito diferente. Apresen­
tamos exemplos da conduta de crianças de quatro anos.
Bóris (4; 0) ouve as instruções. Assim que escuta o sinal, sai
correndo. Ao repetir-se o experimento, primeiro prepara-se, avan­
çando um pouco um pé. E sai cm disparada mal ouve o sinal.
Guilherme (4; 0) escuta tranqüilamente as instruções. Du­
rante a contagem regressiva para o sinal, está inquieto, a ponto
de correr, mas se contém e não o faz enquanto nào é dada a voz
de comando.
Tamara (4; 0) escuta as instruções e mantém-se tranqüila.
Quando ouve o sinal, sai correndo ao encontro da experimenta­
dora. Ao repetir-se o experimento, detém-se um pouco ao ouvir
a voz de comando; mas sai correndo em seguida na direção da
experimentadora, sem que se lhe lembre.
Como já dissemos, as crianças de quatro anos cumprem
corretamente, em seu aspecto fundamental, a regra simples
que lhes sugerem. Em alguns casos, manifesta-se em sua con­
duta um conflito entre o impulso de sair correndo e a regra,
com a particularidade de que triunfa esta última. A simplicida­
de da regra tornou necessário complicar um pouco o jogo e
suas regras para as crianças mais velhas, incutindo-lhe o cará­
ter de jogo de “gorélki”. As crianças colocaram-se aos pares. A
experimentadora mandava: - Um, dois, três, corre o último par
- e este obedecia. Caso as crianças saíssem correndo antes de
se dar ou pronunciar o sinal completo, isso era considerado uma
derrota e as crianças punham-se na frente, o que significava
um castigo. A diferença entre este jogo e o que nós praticamos
consiste em que a voz de comando é mais extensa, pelo que o
impulso de sair correndo recrudesce constantemente e fica
mais difícil contê-lo.
Quase todas as crianças de cinco anos ou mais cumprem
corretamente a missão. Apresentamos vários exemplos de con­
duta dessas crianças neste jogo.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar

O primeiro par é formado por Valentina e Zina (5; 0). O


sinal é pronunciado como de costume: depressa, “um, dois,
três”, mais lentamente, “o último par” e, de súbito, “correr!”
As duas meninas saem em disparada, mal ouvem essa última
palavra.
Zóia e Victoria (5; 0). A entoação das instruções modifi-
ca-se um pouco, a palavra “par” acelera-se e recai nela a ênfa­
se. As meninas fazem um esboço de correr, ao ouvir a palavra
“par”, mas se contêm, rindo, e correm depois de ter ouvido a
última locução: “correr”.
Valentina e Ema (5; 0) saem correndo assim que ouvem o
final da voz de comando na locução “correr”. São-lhes repeti­
das as instruções. A segunda vez saem correndo assim que
ouvem o sinal. Ao se mudar o acento, tentam sair correndo ao
ouvir a palavra “par”, mas se detêm. Depois de serem repetidas
as instruções, saem correndo quando ouvem a locução “cor­
rer”, embora o acento recaia sobre a palavra “três”.
Oleg e Tomás (7: 0) estão preparados para sair correndo.
Têm uma perna ligeiramente dobrada no joelho. Ao ouvir a
palavra “par” querem sair correndo, mas se contêm e só par­
tem depois que acaba o sinal. Ao se repetir a prova, a experi­
mentadora acentua a palavra “três”, as crianças inclinam-se
ligeiramente para diante, mas se contêm. Riem. Oleg diz: -
Estou louco por correr. - Tomás explica: - Assim que a senho­
ra começa, me dá uma vontade danada de correr. - Experi­
mentadora: - Agora ouçam-me bem. pois caso contrário in­
correm em falta.
O essencial na conduta das crianças de sete anos, em com­
paração com as de cinco, é que se dão conta de seu impulso e,
por conseguinte, já acatam conscientemente a regra.
Dessa maneira, a linha geral do desenvolvimento da obe­
diência à regra, tal como se apresentou neste experimento, vai
da transgressão como conseqüência do triunfo do impulso
direto de correr, relacionado nas crianças pequenas com o fato
364 Psicologia dojogo

de que o sentido do jogo para elas está em correr para a experi­


mentadora, até o acatamento real da regra e do conflito com o
impulso, do realce consciente da regra e do conflito, também
consciente, com o impulso, igualmente compreendido pela
criança.
Uma vez que as crianças mais velhas (de mais de 5 anos)
aceitaram de fato a regra do jogo e se submeteram a ela, nào
tinha nenhum sentido desenvolver um jogo de argumento que
contivesse a mesma regra. Por isso se brincou de “trem'’ e de
“locomotivas” somente com as crianças pequenas.
Supúnhamos que a introdução de um argumento ampliaria
entre os pequenos a possibilidade de acatamento da regra.
As nossas conjecturas confirmaram-se no fundamental.
Se ao jogar “revezamentos” com crianças de três anos tive­
mos. como já assinalamos, quatro casos de acatamento da re­
gra, das 17 provas feitas, com o jogo de argumento tivemos 11
casos em 15, dois casos de desobediência na primeira prova e
outros dois de conduta ambígua, de acatamento umas vezes, e
desobediência outras vezes. Estas comparações puramente
quantitativas demonstram que a introdução de argumento
parece facilitar à criança pequena o cumprimento das regras
dojogo.
Apresentaremos vários exemplos demonstrativos do que
muda na conduta das crianças ao se introduzir um argumento.
Comecemos analisando os casos em que a introdução dc
argumento nào dá lugar a que se acatem as regras. Contamos
somente com dois casos desses, mas também o sào, simulta­
neamente, de desacato relativo.
Maia (3; 2) ouve as explicações da experimentadora. Vai
ao lugar onde deve estar a locomotiva mas, sem aguardar o
sinal, corre para a experimentadora. Quando se lhe explica
pela segunda vez, espera o sinal e sai correndo, rindo alegre­
mente, assim que o ouve.
Iúri (3: 5) acena afirmativamente com a cabeça à pergunta
da experimentadora se quer brincar de “locomotivas”. Quando
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar

ouve a explicação, aguarda tranqüilamente o sinal, mas nào sai


correndo assim que o ouve, só o fazendo após longa pausa. A
experimentadora volta a explicar-lhe o jogo, sublinhando que,
caso contrário, será uma “locomotiva avariada”. Ao repetir-se
o jogo, assim que lúri escuta o sinal sai correndo em direção à
experimentadora. Chega onde ela está, apita forte, retorna ao
ponto de partida e corre de novo ao ouvir o sinal.
Vemos em ambos os casos a inobservância das regras só
na primeira prova; nas seguintes, as crianças cumprem a condi­
ção. E interessante assinalar que, ao jogar, as crianças procu­
ram quase em todos os casos imitar a locomotiva.
Assim, por exemplo, Tamara (3; 0) escuta com atenção as
explicações do jogo. - Ali apitarei - vai para o seu lugar e
aguarda o sinal. Quando o ouve, ela também apita e, agachan­
do-se levemente, como que arrastando os pés, dirige-se à expe­
rimentadora. - A locomotiva chegou diz sorridente, e abraça
os joelhos da experimentadora. Se se compara a conduta de
Tamara neste jogo com a exposta jogando “revezamentos”, fi­
ca claríssima a vantagem deste jogo.
Ásia (3; 3), após ouvir a proposta de ser locomotiva, decla­
ra satisfeita: - Sou uma boa locomotiva e apitarei assim: piiiíl
- Corre pela sala. Pára no lugar que lhe indicam c olha com
expressão de expectativa o sinal da experimentadora. Assim
que o ouve, sai correndo do seu lugar. Apita, chega sorridente e
detém-se diante da experimentadora. De novo - pede, voltan­
do a correr a fim de partir de novo ao ouvir o sinal.
Na análise dos dados deste experimento verifica-se a
ausência de conflito entre o impulso de correr e o acatamento
da regra. E natural que se pergunte se o acatamento da regra no
jogo da “locomotiva” é conseqüência de uma regra mais sim­
ples. Pois começar o movimento ao sinal de “piiií” é muito
mais fácil do que a “um, dois, três”, devido ao simples fato de
que o apito é só um e o movimento começa em seguida, ao
passo que uma voz de comando tem de ser ouvida até o final.
366 Psicologia do jogo

Pela análise dos dados do jogo dos “revezamentos” sabemos


que a dificuldade principal está em se conter quando já se co­
meçou a dar a voz dc comando.
Foi para excluir esse aspecto que se desenvolveu o jogo do
“trem”, no qual as crianças não devem começar de imediato o
movimento, mas só depois de ouvir dois ou três toques de sine­
ta, com o que se equilibra o caráter dos sinais. Das 12 provas,
só em três casos se registrou o começo prematuro do movi­
mento. Nos demais, as crianças aguardaram pacientemente o
número necessário de toques de sineta e só começaram o movi­
mento depois que as ouviram.
Assim, por exemplo, Tamara (3; 2) aguarda quieta, após
ouvir as explicações. Continua sem se mexer depois do segun­
do toque de sineta. Ao lado da experimentadora está Valentina
(3; 6), que se mostra contrariada: - Por que você nào vem? -
Tamara põe-se imediatamente em marcha, dobrando um pouco
os joelhos. Chega ao pé da experimentadora e retorna para o
seu lugar. Volta a se deter e a se pôr em movimento. A experi­
mentadora propõe-lhe que arranque outra vez, ao sinal da sine­
ta. Tamara coloca-se no seu lugar e, quando ouve dois toques
de sineta, sai caminhando.
Maia (3; 2) está de pé e aguarda os toques de sineta.
Depois do primeiro toque, põe-se em marcha e apita “piiií”. A
experimentadora repete-lhe as instruções, mostrando-lhe quan­
tas vezes vai tocar a sineta. Maia volta a preparar-se e apita,
quieta em seu lugar. Aguarda os toques de sineta. Depois do
segundo, começa a caminhar.
Iúri (3; 5) espera os toques de sineta com ar inquieto. Ao
ouvir o primeiro, toma posiçào, mas se contém e sai depois do
segundo, ri e pede repetiçào. Corre para o seu lugar e volta a
pôr-se em marcha assim que ouve dois toques de sineta.
Não vamos multiplicar os exemplos. Embora seja verdade
que é mais difícil começar o movimento ao sinal de “um, dois,
três” que ao de “piiií”, e o conflito entre o impulso para o mo­
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 367

vi mento e o acatamento da regra no primeiro caso está mais


acentuado, as crianças atêm-se com muito mais facilidade à
regra do jogo no das “locomotivas” e do “trem” do que no dos
simples “revezamentos”.
Em todas as variantes do jogo é o movimento e a correria o
que se reveste de um sentido fundamental para a criança. O jogo
é uma forma original de correr. Sendo idêntico o sentido de
todas essas variantes do jogo (correr a um sinal dado) para a
criança, fica por esclarecer por que, ao introduzir um argumen­
to, o nível de subordinação à regra se eleva. Por que o argumen­
to inclina a favor da regra o conflito com o impulso direto para
correr? Por que, quando se lhe deu o nome de locomotiva ou
trem, a criança vence com maior facilidade o impulso direto, o
desejo de correr? Pois, com efeito, foi só isso o que mudou.
Ao descrever a conduta das crianças nos jogos de “loco­
motiva” ou “trem”, vimos que o movimento das crianças
adquire outro caráter. Apitam, imitam o silvo da locomotiva,
por vezes fazem movimentos singulares com os pés e dobram
os joelhos. Dão o nome de marcha, e nào de corrida, ao seu
próprio movimento (“Por que você nào vem?”) e chamam-se
locomotivas a si mesmas. As crianças não querem simplesmen­
te correr: elas querem correr como locomotivas. Dizem-se: -
Sou uma boa locomotiva.
Acontece algo como um alheamento de suas ações, como
uma objetivaçào dessas ações, donde promana a possibilidade
de as comparar e avaliar e, como conseqüência, é maior a de as
dirigir. Assim, parece-nos que a introdução do argumento ace­
lera a objetivaçào das ações e ajuda a dirigi-las. Nisso se apóia
o mecanismo fundamental que faz com que a introdução do
argumento ou a dramatização eleve a capacidade de dirigir as
ações e, por conseguinte, o acatamento das regras.
Tal é a primeira dedução que se infere do nosso estudo.
Mas não se referirá isso unicamente a regras muito elemen­
tares? Não se determinará por outros mecanismos a subordina­
ção a regras mais complicadas, ao se introduzir o argumento?
368 Psicologia do jogo

Para comprovar as deduções inferidas e aclarar os meca­


nismos de acatamento das regras nos jogos de argumento, em­
preendemos uma outra série de experimentos, uma outra pes­
quisa, que é de controle do descrito. Essa pequena pesquisa foi
montada de acordo com o mesmo princípio e consistia em de­
senvolver jogos paralelos com regras e argumento e com regras
sem argumento. Foram, concrctamente, os jogos de “esconde-
esconde” e de “gato e rato”.
No jogo de “esconde-esconde”, uma criança esconde-se e
a outra (geralmente mais velha) procura-a. As instruções são
dadas pela criança mais velha. Antes de começar o jogo, diz: -
Fique quieto no seu esconderijo. Se aparecer ou falar, o encon­
trarei e pego você.
No jogo de “gato e rato”, uma criança também se esconde
e a outra a procura: uma é o gato e a outra o rato. Este se escon­
de em sua toca (feita com cadeiras), onde se senta ou se deita.
O gato anda buscando o rato e mia. Dá-se-lhe a seguinte instru­
ção: - Aqui vai viver o rato. Está muito caladinho. E o gato está
com fome. quer encontrar o rato. Faz “miau, miau” . E que pro­
cura o rato e, se este fica quietinho, o gato nào o encontrará e
nào o caçará. - Em alguns casos, o argumento reforça-se com
atributos tais como gorros para o gato e o rato, e um prato de
comida para o gato.
Os jogos desenvolvem-se com crianças de 3, 4 e 5 anos.
Realiza-se um total de 35 jogos: 19 de “esconde-esconde” e
16 de “gato e rato”. A base da regra é a mesma em ambos os
casos: permanecer quieto e sem falar para nào delatar sua pre­
sença.
Esclareçamos, antes de qualquer coisa, se a introdução do
argumento influi na observação das regras. A análise quantita­
tiva mostra que existiu essa influência, sem dúvida alguma (ver
o Quadro 2).
O desenvolvimento dojogo na idade prè-escolar 369

QUADRO2
Acatamento da regra nosjogos com e sem argumento
(número de crianças em %)
“Esconde-esconde " “Gato e rato ”
Idade em anos Não acatam Acatam a Não acatam Acatam a
a regra regra a regra regra
3 100 56- 44
4 50 50 - 100
5 - 100 - 100
A introdução do argumento influi no acatamento da regra
em 44% das crianças de 3 anos, ao passo que a maioria das
crianças, tanto no jogo dc “esconde-esconde” quanto no de
“gato e rato”, não se subordina à regra. 100% das crianças de 4
anos respeita a regra ao introduzir-se o argumento no jogo dc
“gato e rato”. Entre as de 5 anos, há subordinação completa à
regra em todos os experimentos realizados do jogo de “escon­
de-esconde”.
Para esclarecer por que a introdução de argumento não
motivou mudanças de conduta em nenhum caso entre algumas
crianças mais novas e o que foi que exerceu essa influência
positiva do argumento para outras, apresentaremos vários exem­
plos dos mais típicos.
O sentido fundamental do jogo de “esconde-esconde” para
as crianças mais novas está no esconder-se, sem importar-lhes
grande coisa que as encontrem ou nào.
Assim, por exemplo, Tamara esconde-se atrás do sofá e
permanece agachada. Entra Nina, começa a busca e diz em voz
alta: - Onde você está, Tamara? - Tamara põe-se imediatamen­
te de pé e, sorrindo, responde: - Aqui. - Volta a se esconder
debaixo da mesa. Nina busca-a. Tamara mostra-se e sorri.
Maia está atrás do sofá. Entra Nina e diz: - Já vi você. -
Maia continua agachada em seu esconderijo. Nina: - Agora volte
a se esconder, já descobri você. - Sai. Maia esconde-se. Nina
370 Psicologia dojogo

entra e busca-a. Chama: - Maia, onde você está? - Maia mos­


tra a cabeça, sorridente.
Após escutar as instruções, Olga esconde-se. Entra Nina.
Olga põe-se imediatamente de pé, olhando para Nina. Nina: -
Esconda a cabeça, porque assim vejo você. - Nina sai. Olga
volta a esconder-se no mesmo lugar. Nina entra de novo. Olga
põe-se sem demora em pé.
As crianças escondem-se, nào para esconder-se e ficar
caladas, mas para que as encontrem; procuram delatar-se, as­
somam a cabeça, remexem-se, riem e alegram-se quando quem
as busca as encontra.
A conduta das crianças para quem a introdução de argu­
mento nào muda nada continua sendo a mesma. Mas a de algu­
mas, inclusive a das mais novas, que são as de três anos, muda
mesmo no caso de que não se acate a regra de permanecerem
quietas e sem fazer barulho.
Damos um exemplo. Amaia e Vera colocam-se alegre­
mente gorros para brincar de “gato e rato”.
Vera: - Eu sou o gato, eu sou o gato!
Amaia : - E eu o ratinho. (Corre a se esconder.)
Vera (avança devagar): - Miau, miau. (Amaia permanece
calada. Vera aproxima-se mais e grita :) MIAU!
Amaia (assoma assustada a cabeça e sai correndo): - Não
me toque, não me toque!
Vera corre, alcançando-a. Amaia agacha-se num canto do
quarto e repete: - Não me toque! Não me toque! - Depois
corre para o experimentador e escondc-se atrás dele.
Como se vê por este exemplo, Amaia não acata a regra de
permanecer quieta e calada. Sai do esconderijo e foge diante do
gato. O sentido do jogo para ela está em nào deixar-se caçar pelo
gato. Esse novo sentido emana das relações entre o rato e o gato.
Amaia nào quer que o gato a apanhe e por isso foge. O novo senti­
do do jogo comunica um caráter inteiramente novo às ações da
menina. E embora esta infrinja a regra, encontra-se num nível
mais elevado do que no jogo de esconde-esconde, no sentido de
que se esclareceram as relações entre os que jogam. Nos casos
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 371

em que a introdução do argumento modifica o comportamento


no sentido do acatamento da regra, vemos um quadro diferente.
Valentina (3; 10) é o rato. Está quietinha, escondida num
canto. Nádia (3; 9) é o gato, que a procura. Valentina nào se mexe.
Nádia: - O ratinho adormeceu.
Valentina permanece imóvel.
Exper.: - Ei, continue buscando, que talvez a encontre.
Valentina está que nem uma estátua. Nádia passa muito
perto da casinha, olha para a experimentadora e diz: - Vou ali.
- (Aponta para a casinha.)
Valentina (pondo-se de pé): - Nâo, assim nào se joga. Eu
estou quieta aqui, portanto o gato não tem que me tocar.
lúri (3; 7) é o rato e Grígori (4; 6) o gato. lúri esconde-se
na casinha. Grígori caminha e mia. lúri fica quieto. Grígori
aproximou-se muito da casinha. lúri agacha-se ainda mais e ri
sem fazer ruído.
Exper.: - Que ratinho mais caladinho, o gato na certa nào
vai encontrá-lo. Quem sabe se nào terá escapado, eh?
lúri põe-se de pé e diz rindo: - Não escapou, nào.
Grígori corre para ele. Os dois soltam gargalhadas. lúri é
agora o gato, e Grígori o rato. Grígori está muito quieto. lúri
vai diretamente até ele, detém-se diante da casinha e, de repen­
te, mete-se nela e grita alegremente: Peguei!
Grígori (com ironia): - Me pegou, hein? Mas se eu estava
calado. E diz que me pegou. Pois se eu nem tentei escapar.
(Tem no semblante uma expressão de descontentamento.)
O sentido do jogo já está para estes dois meninos na inter­
pretação do papel. O que lhes importa é que “o gato nào os
pegue” mas, para isso, existe o recurso de “permanecer calado e
quieto”. Este último recurso é o resultado natural do desejo,
derivado do papel assumido, de nào se deixar capturar pelo gato.
Em resumo, podemos deduzir que o argumento muda no
jogo o sentido que ele tem para a criança. Se, no jogo, se perce­
be algum sentido oposto à regra, é que nào se a acata; e se o
sentido do papel interpretado pela criança inclui alguma regra,
isso leva a acatá-la. Em tal caso, a regra funde-se com o papel e
372 Psicologia dojogo

nào se sai dele. Nas etapas seguintes desmembram-se a regra e


o papel e o sentido do jogo para a criança reside precisamente
em interpretar o papel de acordo com as regras.
Portanto, há dois mecanismos fundamentais graças aos
quais o argumento e, por conseguinte, o papel influem na ob­
servância das regras do jogo. O primeiro é a mudança do sentido
do jogo para a criança, com o que se lhe descobrem as relações
entre os que jogam, e isso dá lugar a que se cumpram as fun­
ções histriónicas que também incluem certas regras de com­
portamento; o segundo é a objetivaçào das próprias ações que
contribuem para o seu maior controle.
Os experimentos realizados, assim como a análise dos jogos
dinâmicos, evidenciaram que já na primeira fase da idade pré-
escolar é possível o acatamento da regra lúdica, livre de conteúdo
histriónico; nas fases mais adiantadas da idade pré-escolar, os
jogos com regras preparadas ocupam um lugar bastante conside­
rável e, por último, na idade escolar, relegam-se para segundo pla­
no os jogos de argumento protagonizados. Ao analisar o processo
evolutivo do jogo protagonizado já indicamos que, de fato. em ca­
da jogo há certas regras determinantes das relações histriónicas
entre os que jogam e que refletem as relações reais entre as pes­
soas cujos papéis as criança representam no jogo. Se o conteúdo
do jogo protagonizado está diretamente ligado à vida real dos
adultos que rodeiam a criança e é determinado diretamente por
ela, o conteúdo do jogo com regras e as relações refletidas nele
nào estâo ligados de maneira tào direta com as relações reais em
que vive e atua a criança. Embora os jogos com regras também
estivessem indubitavelmente associados em sua origem à ativida­
de laborai coletiva, é difícil ver atualmente essa ligação. Com mui­
ta freqüência esta se perdeu e nem mesmo os adultos, sem falar já
das crianças, podem detectar o nexo direto entre as regras lúdicas
nesses jogos e as verdadeiras relações laborais entre as pessoas.
Entre os jogos com regras contam-se alguns como o xa­
drez e as damas, outros como o futebol e o hóquei, outros
infantis, como a amarelinha, diversos com bola etc. Nos nomes
dos papéis dos jogadores, ou na trama geral de alguns desses
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 373

jogos, conservam-se elementos de papéis que um dia foram


determinantes como, por exemplo, o defensor (zagueiro) e o
atacante (dianteiro) no futebol, ou as denominações das peças
no xadrez; em outros jogos, essa ligação perdeu-se totalmente
e só se conservam as regras percebidas como determinadas
condições lúdicas.
Entre os jogos com regras existentes na atualidade, po­
dem destacar-se convencionalmente dois grupos. Um é com­
posto pelos jogos cuja regra é entregue à criança por um adul­
to; outro, pelos transmitidos tradicionalmente de geração em
geração de crianças, com diversas regras. Para pesquisar o
processo de desenvolvimento da obediência à regra lúdica pe­
las crianças, analisamos o processo de aprendizagem das re­
gras em ambos os grupos de jogos e realizamos a terceira e
quarta séries de nossos experimentos. Um jogo era uma modi­
ficação do “de prendas”, no qual os jogadores pensam alguma
ação ou palavra, e o que está na berlinda tem de adivinhar o que
se pensou. Há muitas modificações desse jogo. Simplificamo-
lo deliberadamente e demos-lhe a denominação convencional
de “jogo de adivinhar”. A regra principal consiste em ocultar
para o que está na berlinda o segredo da ação pensada. Como
exemplo do segundo, o jogo da amarelinha, bastante difundido
entre as crianças. Os materiais para analisar foram, nos jogos
do primeiro tipo, os organizados especialmente por crianças de
diferentes idades; nos do segundo, a observação da conduta das
crianças de distintas idades nas avenidas e ruas de Moscor.
Começaremos a nossa análise pela investigação do pro­
cesso de acatamento da regra no jogo de “adivinhar”.
Para ilustrar o curso desse experimento apresentaremos
uma ata.
Ata n? 1. Oleg (7; 0) e Iúri (3; 8) combinam com o profes­
sor que o experimentador deve arrancar uma flor do ranúnculo.
Entra o experimentador e começa olhando à sua volta.
Psicologia dojogo

Oleg (irrequieto): - Olhe bem ao seu redor.


Exper.: - Arrancar uma folha de uma árvore.
Júri: - Não, não é para cima.
Oleg (olha-o contrariado): - Nào lhe diga!
/tin: - Vamos, adivinhe.
Exper.: - Tenho de me pôr de pé para adivinhá-lo?
Oleg: - Não, sentado também se pode. (Ri.)
Iúri: - Sim, perto também há.
Oleg: - Voltou a dizer-lhe!
Iúri: - Eu não lhe disse nada.
O professor sai. O experimentador arranca uma folha de
grama.
Os dois meninos: Não.
O experimentador corta uma folhinha.
Oleg: - É muito fina.
Exper.: - Então nào é grama?
Os dois meninos: - Não.
Exper.: Mas o que será?
Oleg: - Flores.
Exper.: - Ah, flores!
Iúri: - Viu ,já lhe disse.
O experimentador arranca um ranúnculo. Os garotos ba­
tem palmas. O experimentador sai. Com a ajuda do professor,
Oleg e Iúri combinam outra ação: entrar no refeitório e sentar-
se numa cadeira. Entra o experimentador e começa o jogo de
adivinhação.
Oleg (a Iúri): Mas nào lhe diga.
Permanecem calados por bastante tempo. O experimenta­
dor faz uma série de perguntas.
Exper.: - É preciso fazê-lo ao entrar na sala?
Oleg: - Claro, e está bem perto. ( Tapa a boca.) Ai, quase
que escapa.
Iúri: - E está bem perto.
Exper. : - No refeitório?
Oleg: - Sim. Mas, o que mais?
Exper:: - Ler um livro.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 375

Iúri: - Não, nào é ler.


Oleg : - Fica quieto.
O professor sai. O experimentador menciona várias ações:
comer, beber, andar, cheirar flores.
Oleg: - Quantas ideias! É algo simples.
Exper.: - Sentar e escrever.
Iúri: - Não, é mais simples. Adivinhou, mas sem escrever.
A essência da regra, como se vê pela descrição do jogo,
consiste em que a criança, conhecedora da ação que o adivi-
nhante terá de realizar, nào deve dizê-la. A situação do experi­
mento é tal que a criança encontra-se, por um lado, em comu­
nicação com o professor, com quem se pôs de acordo para nào
falar da ação concebida juntos; por outro, sob a influência dire­
ta das buscas fictícias e das indagações capciosas daquele que
busca, que é o experimentador. Essa situação é típica de muitos
jogos, nos quais se produz um choque entre a regra de conduta
estabelecida de comum acordo com os companheiros e o im­
pulso direto para atuar na direção oposta à regra.
Participam do experimento um total de 20 crianças dos três
grupos do jardim-de-infancia. Nossos dados permitem delimi­
tar três fases na conduta das crianças que mostram as peculiari­
dades de subordinação das crianças à regra.
Na primeira fase encontram-se as crianças pequenas. O sen­
tido do jogo reside, para elas, no trato com o experimentador. Por
isso não podem acatar a regra do jogo, que consiste em não atuar
e ficar calado. Persuadem-se a si mesmas de que não dirão nada,
mas dão com a língua nos dentes de um instante para outro. O
sentido fundamental do jogo está, para essas crianças, em que
mais ninguém sabe o que foi que se pensou, e quem tem de
descobrir nào sabe, e não podem ficar caladas em resposta às per­
guntas capciosas, acabando por sugerir abertamente a solução.
Apresentaremos exemplos desse comportamento.
Ata n? 2. Dimítri (4; 2) combina com o professor que o
experimentador deve colher uma flor. Depois diz: - Eu não lhe
direi nada.
376 Psicologia do jogo

Exper. (entra): - Bem, agora tratarei de adivinhar o que


vocês pensaram.
Dimitri: - Pois eu nào direi.
Exper.: - Quer que lhe dê isto? ( Entrega a Dimitri um bis­
coito.)
Dimitri: - Não, isso nào. Dê-me uma flor. (Ri.)
Exper.: - Por que disse? Eu teria adivinhado.
Dimitri ri. O professor e Dimitri combinam que a adivinha
é trazer um balde pequeno.
Dimitri: - Agora nào direi nada.
Entra o experimentador: - Trago uma cadeira para você?
Dimitri (rindo):- Não.
Exper.: - Dou água? (Dá uns passos em busca de água.)
Dimitri: - Você não sabe e eu sei.
Exper.: - Nào importa. Eu adivinharei.
Dimitri: - Mas nào sabe que tem de me dar o balde. (Ri.)
Ata n? 3. Ásia (3; 10) põe-se de acordo com o professor
para que o experimentador traga uma flor.
Ásia: - Eu sei e nào direi.
Entra o experimentador e diz: - Pois adivinharei o que
pensaram.
Ásia: - Mas você não sabe e eu sei.
Exper.: - Trago uma cadeirinha?
Ásia: - Você não sabe e eu sei.
Exper.: - Trago um joguinho? Foi isso o que pensaram?
Asia: - Eu sei e te direi ao ouvido. (Corre até ele e sussur­
ra-lhe: ) Dc-me a flor.
Ata n'.'S. Nina (4; 6), depois de ter confabulado com o pro­
fessor acerca do que a experimentadora deve fazer, diz: - Eu
nada lhe direi, que adivinhe ela sozinha. (Ri com gosto.) - A
experimentadora entra, começa a adivinhar e faz uma série de
perguntas. Nina responde o tempo todo que não. Ri.
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 377

Exper.: - Ai, que difícil que é! Não vou ser capaz de adivi­
nhar. (Medita.)
Nina (sussurra bem devagar): - Uma florzinha, uma flor-
zinha.
Exper.: - Arranco uma folhinha da árvore?
Nina: - Não. (Sussurra mais alto.) Florzinha.
Exper.: - Colho uma florzinha para ti?
Nina: Sim, sim, essa margarida.
Além das peculiaridades que já assinalamos, é necessário
dizer que, nesta fase, o acatamento da regra apresenta-se pela
primeira vez ligado ao companheiro de jogo ou ao professor.
Isso se vê pelo fato de que se o professor vai embora, as crian­
ças fornecem com mais facilidades pistas ao adivinhante e de­
sobedecem à regra. A presença do professor ou de outra crian­
ça, companheira de jogo, parece obrigar as crianças a vence­
rem o impulso dc ajudar ao que adivinha. Na fase anterior, nem
o professor nem o companheiro de jogo influem na criança.
Portanto, temos pleno fundamento para afirmar que justamen­
te nesta fase do desenvolvimento a regra se apresenta pela pri­
meira vez como ente de conteúdo social.
Na terceira e última fase, o sentido do jogo está, para as
crianças, em nâo contar o pensado. No conflito entre o impulso
e a regra vence claramente esta última, com a particularidade
de que o conflito não se vê tanto como na fase anterior. A con­
dição é observada inclusive quando o professor ou o compa­
nheiro de jogo está ausente. A regra figura como compromisso
adquirido, e seu acatamento não depende da presença de con­
trole externo por parte de um adulto ou de uma criança asso­
ciada. A regra, antes exterior, converte-se em norma interior de
conduta.
Fornecemos um exemplo de conduta das crianças nesta fase.
Ata n? 15. Valentina (6; 6) e Ida (7; 0) combinam com o
professor que o experimentador arranque uma folha e a cheire.
3 78 Psicologia dojogo

Entra este último e faz várias perguntas às crianças. Apesar das


infinitas perguntas capciosas, as meninas se calam, limitando-
se a se entreolhar. Respondem com lacônicos “não” ou negam
com a cabeça. O professor ausenta-se.
Exper. (após 15 minutos de infrutíferas conjecturas): - Pois
nào sei.
Valentina: - Dizemos-lhe?
Exper.: - Não, tentarei um pouco mais.
Ida: - Fale você, que nós nào lhe diremos nada.
As atas apresentadas mostram com suficiente evidência
que, para a criança que se encontra nessa fase, a regra de “nào
falar” entra em contradição com o desejo de ajudar o experi­
mentador, e a criança, apesar de conhecer a regra, não a acata e
segue a linha do desejo que aparece na situação de trato direto
com o experimentador. A presença do professor, com quem a
criança se pôs de acordo para não exteriorizar a açào pensada,
nào contribui nesta fase para o acatamento da regra. Portanto, a
regra na fase dada ainda não se apresenta como resultado da
confabulação com outro participante do jogo (neste caso, o pro­
fessor). A criança nào sofre a sua desobediência à regra e está
completamente tranqüila quanto a isso. Tampouco há um con­
flito evidente entre a regra e o desejo de ajudar o adivinhante.
Na segunda fase, que é a seguinte, o comportamento muda
muito. O sentido do jogo para as crianças que se encontram nes­
sa fase está precisamente em não contar o que pensaram. Já se
regem por regras, mas só a duras penas conseguem vencer seus
desejos imediatos de apontar. Há uma luta entre o acatamento
da regra e o impulso de apontar. As crianças nào apontam dire­
tamente, mas olham fixamente para o objeto pensado, dão
indicações orientadoras com a mão, sentem-se aliviadas quan­
do o experimentador finalmente adivinha e já não há mais
necessidade de conter-se. Estão orgulhosas de que se lhes te­
nha confiado um segredo e nào se deixam levar pelo desejo
imediato de dizer o que pensaram.
Apresentaremos alguns exemplos típicos da conduta de
crianças que se encontram nesta fase.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 379

Ata n?8. Alexei (5; 0) combina com o professor que o experi­


mentador deve arrancar uma folhinha da árvore. O experimenta­
dor entra e tarda em escolher uma açào precisa: arranca um rami­
nho, uma flor, ata uma corda num balde e suspcnde-o numa árvo­
re. Alexei nào pára de sorrir, mas diz o tempo todo: Nào, isso
não... O professor sai. Alexei continua dizendo “nào” a todas as
ações errôneas do adivinhante, mas olha fixo para a árvore.
Exper.: - Apesar de tudo, tenho de fazer alguma coisa na
árvore, não é?
Alexei (aliviado): - Sim.
Exper. : - O que devo então fazer?
Alexei (carrancudo): - Pois adivinhe.
Exper.: - Arrancar uma folha?
Alexei (contente): - É claro! E dizia outras coisas o tempo
todo!
Ata n? 10. Leonid (6; 0) combina com o professor que o
experimentador vá ao refeitório e sente-se numa cadeira. O
experimentador entra e faz várias perguntas: - Tenho de ficar
de pé e ir a algum lugar? Tenho de trazer alguma coisa? Tenho
de ir muito longe? À cozinha? Ao escritório?
Leonid: - Para aquele lado. ( Olha para o professor.)
Exper.: - Ao bosque?
O professor sai.
Exper.: - À esplanada?
Leonid: - Mais perto. (Olhapara o refeitório.)
Exper.: - Ao refeitório?
Leonid: - Sim. E que mais?
Exper.: - Cheirar as flores? (Encaminha-separa o refeitó­
rio, lava as mãos, lê e olha os quadros.)
Leonid: - Não precisa andar.
Exper.: - Tem que ficar de pé?
Leonid:- Nào.
Exper.: - Deitado?
Leonid: - Puxa, é muito fácil, mas deitado não. (Fixa os
olhos na cadeira.)
380 Psicologia do jogo

Exper/. - Devo sentar-me?


Leonid : - Claro que sim, e você falando em se deitar!
Em alguns casos, o experimento faz-se com duas crianças
ao mesmo tempo a fim de esclarecer o significado do compa­
nheiro no acatamento da regra. Apresentamos uma ata de ex­
perimento com a participação de duas crianças.
Ata n? 9. Zóia (6; 2) e Anatóli (5; 10) combinam com o pro­
fessor que o experimentador arranque um ranúnculo. O experi­
mentador entra e faz uma série de perguntas, a título de sonda­
gem: - Tem que ficar de pé para fazer o que pensaram ou é pre­
ciso andar muito?
Zóia: - Não muito.
Anatóli: - Não aponte!
O experimentador menciona várias direções e lugares da
casa de campo.
Os dois meninos: - Não, nào.
Zóia: - Mas se eu já disse que nào está muito longe.
Exper.: - É preciso trazer alguma coisa?
Os meninos: - Sim, sim!
O professor sai.
Exper.: - Uma cadeira?
Os meninos: - Nào.
Exper.: - A mesa?
Os meninos: - Nãààào!
Exper.: - É uma coisa menor?
Zóia: - É pequenino assim. (Indica-o com as mãos.)
Anatóli: - Cale-se, Zóia.
Exper.: - Um inseto?
Os meninos: - Nào.
Exper.: - Um raminho?
Os meninos: - Não.
Exper.: - Folhas?
Os meninos: - Não.
Zóia: - Quase adivinhou.
Anatóli: - Zóia, se nào se calar, é melhor que fique de fora.
O desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 381

O experimentador menciona várias espécies de folhas, ao


que os dois garotos vào respondendo “nào”.
Exper.: - Uma flor?
Os meninos: - Sim!
Zóia: - Mas qual?
O experimentador cita diversas flores.
Zóia: - Nào, nào é a que há nos canteiros dos jardins.
Anatóli: - Cresce nos campos.
O experimentador menciona outra série de flores.
Anatóli (a Zóia): - Cale-se.
Finalmente, o experimentador adivinha.
Os meninos: - Sim, sim! Adivinhou!
Quando o experimentador colhe outra flor, Ida olha para o
ranúnculo, mas não se manifesta.
Exper.: - Colher e cheirar o ranúnculo?
As meninas: - Sim, é isso mesmo.
Os dados obtidos revestem-se de interesse nào só por de­
monstrarem o aumento do acatamento da regra das crianças mais
novas para as mais velhas, mas também porque revelam a
gênese do mecanismo psicológico em que se baseia a transição
da regra exterior para a interior.
No experimento do jogo de “adivinhar", limitamos e redu­
zimos, no fundo, em primeiro lugar todas as regras a uma; em
segundo, as ações foram combinadas com o professor ou com a
criança associada no jogo, o que, como demonstramos, influi no
acatamento da regra: e, em terceiro, a regra limita a atividade da
criança, reduzindo-a a se calar e não dar dicas ao adivinhante.
Em virtude dessa limitação do jogo de “adivinhar", consi­
deramos necessário comprovar os resultados prévios por nós
obtidos num jogo dinâmico com regras mais complicadas. Es­
colhemos para isso a “amarelinha”, um dos jogos prediletos
das crianças. Embora seja um jogo típico de crianças de mais
idade e o pratiquem com maior entusiasmo as escolares, vi­
mos por diversas vezes a tendência das mais novas a jogar.
Além disso, escolhemos esse jogo porque estão representados
nele três elementos lúdicos: (a) o quadro exterior das ações e a
3 X2 Psicologia do jogo

situação externa, (b) as regras limitadoras das ações e (c) as


regras implantadoras da ordem e do caráter das ações.
Este jogo é muito conhecido e pode-se ver facilmente na
primavera, quando o sol esquenta e aparecem pequenos espaços
secos nas calçadas, jardins e avenidas. Nas calçadas desenha-se
com giz e na areia com um pau a “amarelinha”, que divide o
chào em quadrados, e um grupo de crianças entrega-se com ani­
mação a esse jogo. Há muitas variantes. Reduz-se ao seguinte.
Desenham-se no chão cinco pares de quadriláteros com uma
“entrada” na base e uma “caldeira” no topo; cada participante
atira por sua vez, na ordem combinada, uma pedrinha para os
quadriláteros, avançando em seguida a um só pé para onde foi
arremessada a pedra, detém-se aí, apanha a pedra e continua
dando pulos até chegar ao fim (descansando às vezes na “cal­
deira”); percorridos todos os quadriláteros em pulos simples,
sempre a um só pé, seguem-se alguns pulos artísticos, arremes­
sos da pedra pelas costas etc. O jogador lança a pedra e avança a
um só pé para ela, até que se equivoque, pise um dos riscos das
“casas” (os quadriláteros) ao pular, a pedra caia numa casa dife­
rente daquela para onde houve a intenção de a jogar, ou caia
sobre um risco etc.; é então a vez de outro jogador.
Neste jogo há determinantes estabelecidas em funçào da
situação exterior: um campo desenhado de certa maneira, re­
gras sobre a ordem e o caráter das ações, e regras restritivas. A
presença dc todos esses elementos é precisamente, como já dis­
semos, o que determina a nossa escolha.
Presenciamos o jogo nas ruas, avenidas e parques de Mos­
cou. A idade e os nomes dos participantes serão indicados antes
de acabar o jogo. As observações foram feitas em forma de ano­
tações, nas quais se indicavam os traços mais típicos da conduta
das crianças no jogo. Não vamos fornecer anotações pormeno­
rizadas das atas, já que são supérfluas em virtude de se tratar de
um jogo muito corrente e conhecido de todos. As nossas obser­
vações contribuem para dividir em cinco fases a aprendizagem
das regras deste jogo.
0 desenvolvimento dojogo nu idade pré-escolur 383

Na primeira fase, o jogo reduz-se a traçar as várias linhas,


a arremessar a pedrinha e pular na direção dela. O sentido do
jogo para a criança consiste em jogar a pedrinha e saltar, embo­
ra não haja regra nenhuma. A criança aprende apenas exterior­
mente alguns elementos da situação lúdica.
Uma menina (3; 0) aproxima-se da amarelinha desenhada
num terreno, apanha uma pedra e lança-a. Em seguida salta a
pés juntos pelas casas (quadriláteros), apanha a pedra, retorna
à base e volta a lançá-la.
Na segunda fase, o jogo reduz-se a traçar vários quadriláte­
ros, lançar a pedra, pular a um só pé pelas casas, retomar pelo
outro lado e dar vários saltos artísticos (com a pedrinha na ponta
do sapato ou na dobra da perna, caminhar pelas casas com os
olhos fechados etc.). Já existe uma série de movimentos aprendi­
dos. Já nào vale saltar “de qualquer maneira”, mas de uma forma
determinada: a um só pé. Da situação percebida e reproduzida
em detalhe decorre a regra determinante dos “pulos”, mas ainda
não há regras restritivas. O sentido do jogo para a criança consiste
basicamente em saltar até o fim ou em que não lhe caia a pedra.
Aí nasce a regra vigente nesta fase: a de como fazer o movimen­
to. Se a criança pula bem, ganha. Ainda não há regras restritivas.
Na terceira fase, o traçado da amarelinha faz-se de acordo
com todas as regras: por exemplo, cinco pares de quadriláteros
com a “entrada” e a “caldeira”, o lançamento da pedra faz-se de
um ponto determinado em ordem rigorosa, passa-se de uma casa
para a outra procurando não pisar os riscos que delimitam as
casas; e segue-se logo uma série de pequenos pulos artísticos.
Surge uma série de regras restritivas, por exemplo, “não se pode
pisar a amarelinha”, “lançar a pedra para a caldeira é falta” etc.
As crianças não atendem ainda ao cumprimento exato das regras
e se fixam menos ainda no que elas próprias fazem; dir-se-ia,
portanto, que as regras são conhecidas, mas nào obrigatórias.
Assim, por exemplo, uma menina dc seis anos lança a pe­
dra, que cai em cima de um risco. Ela entra no quadrilátero, co­
loca bem a pedra e começa a pular. A amiga que está a seu lado
Psicologia do jogo

declara: - Mas se acertou no risco - mas nào opõe mais obje-


ções e o jogo prossegue. O sentido principal está aqui na conti­
nuidade concreta das ações, na observância do plano geral do
jogo e da ordem de saltar.
Na quarta fase, o curso do jogo corresponde exatamente
às regras e subordina-se a elas. As regras ressaltam da situação
geral do jogo. As crianças vigiam escrupulosamente a sua obser­
vância e, em caso de conflito entre a regra e o desejo de ganhar
e pular, vence a regra. Assim, por exemplo, uma menina devia
concluir o jogo em primeiro lugar, mas ao saltar pela última vez
toca no chão com o outro pé. Suas amigas assinalam o erro
imediatamente e, embora a menina tivesse uma vontade louca
de acabar, tem de ceder a vez a outra, que sai vencedora. O úni­
co consolo é que a vantagem da amiga foi muito pequena.
Nesta fase, as regras ainda nào se separaram das açòes e por
isso sào freqüentes os casos em que aparecem durante o jogo.
Por último, na quinta fase, o jogo subordina-se totalmente às
regras e está em completa correspondência com elas. As crianças
vigiam escrupulosamente o respeito às mesmas. Foram separa­
das do jogo e formulam-se precisamente como regras. Por isso as
crianças põem-se de acordo antes no tocante às regras, ou seja,
quanto e como vão jogar, quais vão ser os pulos artísticos permi­
tidos, se se pode pisar o risco ou não, se se joga com ou sem des­
canso etc. Inclusive, quando uma criança conhece mal as regras,
nào hesita em reconhecê-lo. Isso ocorrc amiúde em conseqüência
da variedade e multiplicidade de regras. O fundo do jogo está pre­
cisamente nas regras. O interesse fundamental do jogo reside cm
sua complexidade, e as crianças indicam com freqüência, no caso
de as regras serem simples, que assim não é interessante jogar e
propõem outras regras que compliquem o processo. Nesta fase,
diferentemente das anteriores, a atitude com as regras é a mesma
que se adotaria com as condições que podem modificar-se me­
diante prévio acordo. A separação e o convencionalismo das re­
gras constituem o traço típico do jogo nesta fase.
Entre as crianças observadas, nào vimos nenhuma que
passasse da terceira fase.
0 desenvolvimento dojogo na idade pré-escolar 385

As últimas duas fases de atitude perante as regras só se re­


gistram fundamentalmente entre crianças em idade escolar. Os
dados que obtivemos nessas observações demonstram que as
crianças destacam somente as regras relacionadas diretamente
com a situação lúdica - fazer os riscos e pular - sem alcançar a
síntese e formulação prévia das regras. Era preciso comprovar
esta dedução, uma vez que está em contradição com a atitude
que já conhecemos das crianças em face das regras nos jogos
protagonizados, nos quais as crianças de mais idade podem não
só repartir os papéis antes de começar o jogo, como também
formular até certo ponto os deveres de cada um, indicar os brin­
quedos que sào necessários e determinar as relações entre os que
vão jogar.
E natural que haja certa superioridade na submissão das
crianças às regras dos jogos com protagonização diante dos
jogos com regras e sem representação dc papéis. A regra do jo­
go protagonizado reflete determinadas relações sociais autên­
ticas, ao passo que nos jogos com regras estas são convencio­
nais e não estâo respaldadas por uma protagonização.
Ao confrontar o acatamento das regras pelas crianças nes­
ses dois tipos de jogos percebe-se claramente a vantagem dos
jogos com interpretação de papéis em relação aos que prosse­
guem com a aprendizagem de regras convencionais.
Nisso consiste a diferença no desenvolvimento da atitude
da criança em face das regras nos dois tipos de jogos. Ao mes­
mo tempo, faz-se também necessário enfatizar a semelhança
existente na aprendizagem das regras desses jogos.
Se nos jogos de argumento com distribuição de papéis há
sempre alguma regra, ainda que latente, nos jogos com regras
existe sempre certo argumento consistente no quadro geral ex­
terior do jogo e das ações. O desenvolvimento do jogo vai des­
de a familiarização com o quadro exterior das ações sem regras
até o jogo centrado nas regras. Assim, os dados obtidos confir­
mam a tese antes citada de que o desenvolvimento do jogo vai
desde os representativos de uma situação lúdica desdobrada com
386 Psicologia dojogo

regras latentes em seu seio até os que exibem regras patentes e


uma situação lúdica reduzida.
Para comprovar por nós as deduções inferidas nos experi­
mentos precedentes e esclarecer em que condições podem as
crianças formular as regras do jogo, realizamos mais uma série de
experimentos que denominamos “Invenção das regras do jogo”.
Os experimentos foram feitos da seguinte forma. Ofere-
ceu-se a duas crianças um tabuleiro de cartão pautado e uma
caixa com 6 soldadinhos de chumbo a cavalo, um maior do que
os demais, e 22 infantes de cartão, com suporte. Os uniformes
de 10 soldadinhos eram vermelhos e os de 18, azuis. Além dos
soldadinhos, havia na caixa duas bolinhas de madeira, uma
pintada de azul e a outra de vermelho.
Mostrou-se às crianças tudo o que havia na caixa, entregou-
se-lhes o tabuleiro e foi-lhes proposto que jogassem. O experi­
mentador disse aos mais novos: - Olhem o que lhes preparei.
Vocês vão jogar com isto e depois irào me ensinar, porque tam­
bém quero aprender; depois ensinaremos a todas as outras crian­
ças. - No transcurso e no final do jogo, o experimentador pedia
que lhe ensinassem a jogar. Às crianças mais velhas disse: -
Trouxe-lhes um jogo, mas há que pensar em como jogá-lo, que
regras há para este jogo. Pensem nelas e me ensinem. Assim
pensarão todos os pequenos. Depois anotarei todas, faremos
um jogo igual para todo o nosso grupo e ensinaremos a todos
as regras mais interessantes. - Durante o jogo e ao seu final, o
experimentador perguntou às crianças como se devia jogar. No
total, fizeram-se 14 experimentos, nos quais participaram 28
crianças.
Apresentamos a ata do jogo.
Ata n? 9. Anatóli e Victor (7; 6). Anatóli olha todos os sol­
dadinhos, uma bolinha e o tabuleiro.
Anatóli: - E para que se precisa do tabuleiro? Poderíamos
simplesmente jogar em cima da mesa, pois tem mais espaço.
(Pega os soldadinhos vennelhos. Cada menino coloca em cima da
mesa em duas filas os soldadinhos a pé e, adiante, os a cavalo.)
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 387

Victor: - Agora, ao ataque. Quando estiverem frente a fren­


te, farão os disparos.
Traçam na mesa duas linhas à distância de meio metro
uma da outra. Avançam as figuras até as linhas. Depois recuam
a cavalaria.
Victor: - São os reforços. Primeiro estiveram em explora­
ção e agora ficam na reserva.
Anatóli: - E com que vamos disparar? Derrubá-los com a
mão (empurra uma figura) não tem graça nenhuma. É claro
que assim nào se erra nunca.
Victor: - E para que queremos essas bolinhas?
Anatóli (animado): - Serão bombas. Projéteis.
Victor: - Fazer elas rolarem e que derrubem os que pude­
rem? ( Coloca uma bolinha em sua linha e arremessa-a com um
piparote. Derruba duas figuras. Sorri.) Dois já estào fora.
Anatóli: - Agora atiro eu. (Atira e também derruba dois.)
Victor: - Agora me encarrego desse chefe. (Aponta, mas
abate afigura que está detrás.)
Anatóli: - Errou! (Aponta e derruba o chefe dasfiguras de
Victor.)
Victor: - Os meus soldados também podem combater sem
chefe. (Dispara e derruba dois.) Quando caem dois, pode-se
disparar outra vez?
Anatóli: - Nào, porque senão mata todos de uma vez. Se der­
ruba um, é outra jogada; volta a derrubar outro, e a fazer outra
jogada. Na segunda partida, vamos formá-los mais separados.
Victor: - Está bem, atira.
Os dois abatem num abrir e fechar de olhos todos os sol­
dados de infantaria.
Victor: - Se o projétil acerta em algum, tem de ser retirado
da formação.
Anatóli: - De acordo, se acerta em algum, retira-se.
Terminam rapidamente o jogo. Victor ganha.
Anatóli: - Isto assim nào fica interessante, ganhar é fácil e
eu tinha menos soldados. Agora vamos disparar de mais longe
e reparti-los por igual.
388 Psicologia do jogo

Voltam a colocar as figuras em formação e a maior distân­


cia. Dos soldados a pé, os dois têm agora um número igual. Ar­
remessam os “projéteis”, mas nem sempre acertam.
Anatoli: - Assim fica mais interessante: umas vezes se acer­
ta e outras não. Isso está melhor.
Victor (derruba dois e volta a propor): - Se caírem dois,
volta-se a atirar.
Anatóli: - Está bem.
Victor atira outra vez e abate uma figurinha. Anatóli der­
ruba duas e volta a arremessar o seu projétil.
Victor (agitado): - Vai derrubar todos!
Terminam o jogo. Em cima da mesa fica uma figura con­
tra outra.
Anatóli: - Empatamos.
Victor: - Nào, temos de continuar até que caia o seu ou o
meu.
Anatóli aponta desde o risco.
Victor: - Não. Tem de disparar de onde está o seu soldado.
Anatóli aponta do seu soldado contra o de Victor, mas não
o acerta. Victor também erra o alvo e exclama, contrariado: -
Falhei! - Anatóli acerta no dc Victor e grita com júbilo: - Der-
rubei-o! Vamos jogar outra vez.
Exper.: - Jogarão em outra ocasião. Contem-me agora co­
mo devo ensinar os menores a jogar. Quais são as regras?
Anatóli: - As regras deste jogo são muito simples. Tudo
consiste em apontar.
Victor: - Pô-los em formação e em seguida atacar.
Anatóli: - Os a pé vão primeiro adiante e depois ficam
atrás. E aponta-se do risco.
Exper.: - Que outras regras há?
Anatóli e Victor: - Mais nenhuma.
Exper.: - Quando é a vez de cada um jogar?
Victor: - Se se derrubam dois soldados, atira-se duas vezes;
se se derruba só um, uma vez.
O desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 389

No exemplo apresentado, vimos um nível bastante elevado


de jogo. Seus traços típicos são: (a) o ponto de partida para formu­
lar as regras, constituído pelo argumento e os papéis de cada figu­
rinha. As regras estão ligadas ao argumento e ficam implícitas
neste. “Sào os reforços. Primeiro estiveram explorando e agora
ficam como reforços.” Ao iniciar-se o jogo havia regras que eram
formuladas da maneira mais geral: “Agora, ao ataque. Quando
estiverem frente a frente, farão os disparos”; (b) durante o jogo, e
devido às situações formadas, formulam-se algumas regras: quan­
do acaba o jogo. a ordem das jogadas e quando se contam as bai­
xas; (c) ao terminar o jogo. as regras formulam-se de maneira
mais geral e só mostram o curso do jogo: “Formar e depois atacar.
Os a cavalo vão primeiro adiante, e depois atrás. E aponta-se do
risco.” As regras fundamentais, e mesmo assim nem todas, formu­
lam-se apenas quando o experimentador se interessa.
Baseando-nos nos dados obtidos, traçamos quatro fases
no desenvolv imento do jogo em questão.
Na primeira fase, que pode chamar-se pré-lúdica, não há
nenhuma regra. Tampouco há argumento coerente. As ações das
crianças reduzem-se a manipular os brinquedos. Mudam os
soldadinhos de lugar, e os a cavalo galopam; montam nos cava­
los os infantes etc.
Um exemplo de tudo isso pode ser o seguinte jogo:
Ata n? /. O experimentador dá instruções a Leonid (3; 6) e
Iúri (4; 0). Iúri nào presta atenção e pega rapidamente os solda­
dos de cavalaria. O experimentador diz-lhe que escute o que
ele tem a dizer e repete as instruções.
Iúri: - Eu tenho a cavalaria.
Leonid mexe em dois dos que estão a cavalo e Iúri os tira
dele. O experimentador repartiu por igual a cavalaria. Cada me­
nino desloca seus cavaleiros dc um lado para o outro.
Iúri: - Em marcha. Ai, caiu! Outro que cai.
Leonid (monta a cavalo um soldado de infantaria): - O
meu montou! (Avança as figuras.)
390 Psicologia dojogo

Os dois dizem: - Em marcha.


Iúri: Voltou a cair. (Movem-nos de novo.) Agora vão
mais depressa outra vez. Olha como corre o meu.
Leonid: - O meu corre mais. (Desloca rapidamente as
suas figuras.)
Exper.: - Ensinem-me a jogar assim.
Leonid (instruindo-o): - E assim, taca-tac, taca-tac. Em
marcha.
Iúri: - Ai, ai, caiu de novo! (Os dois dão risadas.)
Na segunda fase já aparecem elementos de argumento e
papéis. Destaca-se o chefe. O jogo reduz-se basicamente a fa­
zer formações e marchas. Os episódios do jogo não estão inter­
ligados. Não há regras claras; as crianças nem sequer compreen­
dem que possa haver regras. Na melhor das hipóteses, repre-
sentam-nas, mas não podem descrevê-las. Existem algumas
regras latentes, estreitamente relacionadas com o argumento e
alguns personagens do jogo. Essas regras são sobre as manei­
ras de formar, sobre a posição do chefe etc.
Transcrevemos, a título de exemplo desta fase, uma ata
taquigráfica do jogo.
Ata n?3. Participam Iúri e Bóris (5; 0). Depois de ouvir as
sugestões do experimentador, os dois meninos formam uma co­
luna de dois cavaleiros, dupla atrás de dupla, e atrás deles colo­
cam os soldados a pé. Depois, colocam um destes adiante.
Iúri: - Este é o chefe.
Bóris: - O chefe do destacamento. E agora em fila india­
na. (Põem os soldados um atrás do outro.)
Iúri: - O chefe que vá ao lado. (Coloca-o a um lado.)
Exper.: - Como ensinar a outros este jogo? Quais sào as
regras?
Bóris: - Pois estas, que joguem como nós.
Iúri: - Vamos jogar assim.
Bóris: - Eles vão para a guerra. (Colocam-nos todos de
frente e em seguida um atrás do outro.)
Iúri: - Esse caiu, está ferido.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 391

Bóris: - Estas bolinhas rolarão. São bombas. (Deixa-as


atrás dos soidados a cavalo.)
Iúri: - Agora começam a marchar. Taca-tac, taca-tac.
Bóris: - Querem ir para Moscou. Quem seguirá na frente?
Os de cavalaria, pois não há quem os alcance.
Iúri: - Os meus os alcançarão logo. (Desloca os soldadi­
nhos pelo campo.)
Bóris: - Agora disparam: pum, pum, pum! (Os dois tom­
bam seus soldados.) O seu está morto, caiu, mas o meu man­
tém-se de pé.
Só na fase seguinte, que é a terceira, começa-se a ver cla­
ramente o argumento e o desdobramento de uma guerra.
As regras estão estreitamente vinculadas ao argumento e
percebe-se com toda a clareza que elas provêm da situação lú­
dica geral. As regras fáticas existentes não sobressaem nem es­
tão sintetizadas, mas algumas se formam no decorrer do jogo.
Em alguns casos introduzcm-sc c formulam-se regras conheci­
das de outros jogos. Pode servir de ilustração desta fase o jogo
de Tomás e Oleg (7; 0).
Ata n? 14. Após ouvirem a proposta do experimentador, os
dois meninos retiram rapidamente todas as figuras da caixa.
Tomás: - Eu estou com os vermelhos e você com os azuis.
Oleg: - Não. eu quero ficar com os vermelhos.
Tomás: - Bom, já sabemos que todos são vermelhos.
Repartem os soldadinhos e colocam-nos espalhados pelo
campo.
Tomás: - Não vencerá os meus. E matarei todos os seus.
Oleg: - Deixe, que os seus também levarão uma boa surra.
Tomás: - Ponha os batedores na frente. Embora todos pos­
sam andar como quiserem.
Oleg: - Eu coloco os meus ao longo da linha.
Tomás. - Você é um espertalhão. Para que eu nào os der­
rube todos de uma assentada. Pois também vou colocar os meus
assim. Estes (a? de cartão ) caem à toa; mas estes (os de chum­
bo ), não é tão fácil derrubá-los.
392 Psicologia dojogo

Oleg: - Deve-se acertar no cavalo ou no cavaleiro.


Tomás (coloca os seus ao longo da linha extrema) : - Agora
põem-se aqui e, quando ficarem poucos, juntam-se todos.
Oleg: Aqui estào as balas. Dispararemos com elas.
Tomás: - Três vezes cada um. (Dispara, ou seja, põe para
rolar uma bolinha, não sem antes ter feito pontaria por muito
tempo, como se traçasse uma linha do soldado que dispara até
o alvo escolhido. Não acerta nenhuma das três vezes.)
Oleg faz rolar as bolinhas e acerta numa figura.
Tomás: - Mas você nâo tinha apontado para esse. Assim
nào vale!
Oleg: - Ah, então não vale, é? E quando na guerra uma ba­
la perdida acerta em alguém por casualidade, vão-lhe pergun­
tar se era para ele essa bala ou se era para acertar em outro?
Tomás (rindo): - Que se pergunte ou deixe de perguntar,
diga para quem aponta, está bom?
Oleg: - E se acerto em outro?
Tomás: - Então não há segunda jogada. E se acerta no que
aponta, dispara outra vez. (Aponta e acerta em quem queria.)
Acertei! Outra vez! (Volta a apontar e acerta no alvo.) Outra
vez, isto está indo bem! (Precipita-se e erra o tiro.) Ah, falhei!
(Começa afazer pontaria de novo.)
Oleg: - É a minha vez. Você já jogou três vezes.
Tomás: - O quê? Ganhei duas, portanto resta-mc outra
jogada.
Oleg: - E eu vou ficar aqui olhando o tempo todo? Com
três chega. Se acerta, atira outra vez; senão, é a minha vez. (Oleg
acerta duas vezes.)
Tomás (contrariado): - Mas se você dispara de muito per­
to e eu atravesso o campo todo!
Oleg: Eu atiro de quatro quadrados e você também, mas
pode disparar de onde quiser.
Tomás coloca os seus soldados de infantaria atrás dos de
cavalaria, aglomerando-os um pouco mais.
Tomás: - Coloco-os atrás da cavalaria, que vai defendê-los.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 393

Oleg coloca tambcm as suas figuras dessa maneira, os in­


fantes atrás dos cavaleiros. E a vez de ele atirar, mas não acerta
o alvo.
Tomás (contente): - Errou, errou outra vez! ( Dispara e
acerta num cavalo.) O cavalo está morto e o cavaleiro foi apri­
sionado. (Apanha afigura e volta a disparar.) Acertei no fuzil.
Oleg: - Bem, nesse caso, arrancou-o das mãos, mas ele
continuou vivo.
Tomás: - Nada disso, se o fuzil está carregado, explode e
pode matá-lo. (Discutem.)
Oleg: - Vamos, toma, de qualquer modo ainda tenho bastan­
te; você tem menos. (Oleg quer disparar ainda uma quarta vez.)
Tomás: - Ah, essa nào! Você não me deixou disparar qua­
tro vezes, e eu também não vou deixá-lo.
Oleg: - Mas eu voltei a acertar em cheio no alvo.
Tomás: - Nào interessa, ficamos em três e serão três!
Oleg: - Isso se o tiro falha.
Tomás: - Não. Três vezes e nada mais.
Oleg (contrariado): - Está bem, dispara.
Os dois continuam jogando até que desaparecem todas as
figuras do tabuleiro.
Somente na quarta fase, a superior, as regras são pensadas e
formuladas antes de começar o jogo. Aparecem também regras
puramente convencionais, independentes do argumento e da si­
tuação lúdica. A sua base é constituída, por um lado, pelas regras
sociais autênticas c, por outro, pelas regras de outros jogos.
Apresentamos um exemplo deste tipo.
Ata n°S. Ilia e Volódia (7; 6) ouvem atentamente o experi­
mentador e examinam as figuras.
Ilia: - Que regras vamos inventar?
Volódia: - Muito simples. Como vamos fazer os disparos,
juntos ou separados, ou quando faremos as jogadas.
Ilia: - Primeiro devemos pô-los em formação e depois fa­
zer as jogadas. Eu vou colocá-los em duas filas. Os meus sào os
vermelhos.
394 Psicologia dojogo

Volódia: - Os azuis sào mais, terào dc ser repartidos por


igual.
Ilia: - Não, que haja mais vermelhos e menos azuis.
Volódia: - Não é assim que se faz. Repartem-se sempre
por igual.
Ilia: - Bem, cada um fica com oito azuis e três vermelhos.
Colocam a infantaria em formação e a cavalaria na frente.
Ilia: - Primeiro atiram os vermelhos.
Volódia: - Não, os azuis. Os vermelhos nào atacam, e os
inimigos sim.
Ilia: - Nada disso, quando há guerra, os vermelhos tam­
bém podem começar.
Volódia: - E com o que vamos disparar? Teríamos de arre­
messar alguma coisa que derrubasse os soldados.
Ilia: - O que tombar está morto. (O experimentador propõe
as bolinhas de madeira.) Melhor ainda, pois podem rolar. Para
mim, a vermelha.
Volódia: - Eu fico com a azul.
Ilia lança a sua e derruba dois soldadinhos.
Volódia: - Agora eu. (Atira e derruba um.)
Ilia: - Agora vou pôr dois azuis fora de combate. (Derru­
ba os dois.)
Volódia: - Tem que dizer contra quem se aponta e disparar
do lugar certo. E não atirar a bolinha para cima, mas fazendo-a
rolar.
Ilia: - E lá vão mais dois, um par!
Volódia (apontando para os da cavalaria): - A esses você
nào mata de qualquer maneira. Se pego pela frente ou de um
lado, está morto, valeu?
Ilia: - Está bem, atira.
Volódia lança a bolinha e derruba, com ar triunfal, o chefe.
Depois de várias jogadas, Ilia diz: - É um jogo bonito, mas te­
ríamos de fazer alguma coisa para que as bolinhas não caiam a
toda a hora no chão.
Volódia: - Como no bilhar infantil, um parapeito ao redor.
0 desenvolvimento do jogo na idade pré-escolar 395

O experimentador promete, quando acabar essa rodada, tor­


nar o jogo mais interessante para todos e ensinar a cada um as
regras. Pede a Ilia e Volódia que repitam as regras para anotá-las.
Volódia: - E preciso repartir os soldados por igual. Depois
colocá-los em formação.
Ilia : - Em duas filas. Na frente os batedores. Depois co­
meça-se a disparar.
Volódia: - Jogam-se as bolinhas rolando. Se se trata de um
cavaleiro, basta só acertá-lo; os outros, tem de derrubar.
Ilia: - Ganha quem derruba mais soldados.
Exper.: - Quais são as regras de tiro?
Volódia: Deve-se atirar de onde está um soldado nosso con­
tra um adversário. Ao mesmo tempo ou um de cada vez, tanto faz.
O típico das crianças que se encontram nesta fase é que
têm a possibilidade de formular as regras antes de começar a
jogar, o que se vê claramente pela ata acima reproduzida.
As fases de formação das regras por nós destacadas divi-
dem-se entre os grupos dos jardins-de-infancia de maneira que as
duas últimas são próprias unicamente das crianças de mais idade.
Entre os de idade mediana, há os que se encontram na primeira e
na segunda fases. Todos os de menos idade, sem exceção, estão
na primeira fase. O experimento realizado patenteia claramente
que as regras provêm do argumento, desprendem-se dele, depois
se sintetizam e adquirem o caráter propriamente de regras.
Façamos um resumo. Todos os experimentos levados a efei­
to por nós tiveram o propósito de esclarecer, basicamente, uma
questão: a de como transcorre a aprendizagem das regras no jogo.
Na primeira série, demonstramos que o papel contribui pa­
ra que se acate a regra, primeiro, porque lhe dá sentido e a faz
evidentemente necessária para a criança e, segundo, porque ofe­
rece a possibilidade de controlar seu acatamento.
Na segunda série, o acatamento da regra puramente con­
vencional foi posto na dependência de haver ou nào um com­
panheiro de jogo. O experimento demonstrou-nos que a pre­
sença de companheiros aumenta a possibilidade de obediência
396 Psicologia dojogo

à regra c, por conseguinte, a regra só se manifesta como tal


quando há relacionamento com algum companheiro de jogo.
Nas observações do jogo dinâmico, desenvolvido com re­
gras variadas e múltiplas (terceira série), averiguou-se, sem mar­
gem para dúvidas, que a situação exterior do jogo e seu enredo
geral conhecem-se antes das regras convencionais, e que essa
situação lúdica geral desempenha, no aspecto funcional, o mes­
mo papel que o argumento no jogo protagonizado.
Para terminar, na quarta e última série mostramos a unida­
de orgânica do argumento e das regras do jogo, assim como a
importância primordial que tem o argumento para destacar e
formular as regras.
Os dados que obtivemos permitem-nos afirmar que, ape­
sar da diferença exterior existente entre os jogos com persona­
gens e os jogos com regras, sem ultrapassar os limites da idade
pré-escolar, ambos conservam uma unidade interna tão grande
que é possível falar-se dc uma única trajetória evolutiva do jo­
go, no qual, somente no final da idade pré-escolar. se destacam
regras convencionais totalmente desligadas do argumento.
Chega até a nos parecer que, quando a regra se toma por
entidade convencional, isso é indício de que a criança já está
preparada para ir à escola.
Capítulo 6
Ojogo e o desenvolvimento psíquico

Muito antes de que o jogo fosse objeto de pesquisas cientí­


ficas, já vinha sendo empregado em grande escala como im­
portantíssimo meio de educação infantil. No segundo capítulo
deste livro expusemos a hipótese da origem histórica do jogo,
relacionando-o com a mudança da situação da criança na so­
ciedade. O momento em que a educação passou a ser uma fun­
ção social à parte data de muitos milênios, e a essa mesma anti­
guidade remonta a utilização do jogo como meio de educação.
Nos diversos sistemas pedagógicos concediam-se papéis dife­
rentes ao jogo, mas nenhum deles o omitia. Esse lugar especial
reservado ao jogo nos diversos sistemas de educação talvez se
devesse ao fato de o jogo ter uma certa afinidade com a nature­
za da criança. Sabemos não ser essa afinidade relativa à natureza
biológica, mas à social da criança, à necessidade que ela sente
desde muito cedo de se comunicar com os adultos, necessida­
de que se converte em tendência para levar uma vida comum
com eles.
No tocante às crianças de menos idade, a sua educação até
o ingresso na escola continua sendo ainda, na maioria dos paí­
ses, com exceção dos socialistas, assunto privado da família, e
o conteúdo e os métodos didáticos transmitem-se por tradição.
Claro que em alguns países leva-se a efeito um imenso traba-
398 Psicologia dojogo

lho instrutivo dos pais, mas que se concentra principalmente


nos problemas da educação e de higiene. Os de pedagogia da
educação familiar das crianças ainda estào pouco estudados. E
que resulta difícil fazer de todos os pais outros tantos pedago­
gos que se guiem conscientemente pelos processos evolutivos
nesses períodos da infância, que são os de maior responsabili­
dade. Assim que surgem problemas de educação social organi­
zada, orientada e conveniente no aspecto pedagógico, a sua so­
lução colide com toda uma série de dificuldades de caráter eco­
nômico e político. Para que a sociedade se preocupe com a
educação das crianças, deve estar interessada, antes de tudo,
na educação múltipla de todas as crianças, sem exceção. Esse
interesse existe somente na sociedade socialista.
Onde predomina a educação familiar há apenas dois tipos
de atividade que influem nos processos de desenvolvimento da
criança. São, cm primeiro lugar, as diversas formas de trabalho
na família e, em segundo, o jogo em suas variadíssimas formas.
O trabalho vai se deslocando cada vez mais da vida da família
contemporânea, não restando mais do que algumas formas de
afazeres domésticos de auto-serviço. Na sociedade burguesa,
as classes dominantes e os setores sociais abastados afastam
totalmente o trabalho da vida dos seus filhos. O jogo, como tu­
do o que não é trabalho, converte-se da maneira mais geral na
forma fundamental de vida da criança, forma universal e única
de cducaçào infantil que se dá espontaneamente. Isolada no
meio da família e das relações familiares, e vivendo em seu
quarto infantil, a criança, como é natural, reflete principalmen­
te nos jogos essas relações e as funções que os membros da fa­
mília exercem com ela e entre eles. Talvez provenha daí a im­
pressão de que existe um mundo infantil especial de jogo como
atividade cujo conteúdo fundamental sào formas compensató­
rias de toda a natureza que refletem a tendência da criança pa­
ra escapar desse ambiente fechado ao mundo das vastas rela­
ções sociais.
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 399

Na URSS, assim como em outros países socialistas, vai se


difundindo cada vez mais o sistema de educação social das
crianças de tenra idade e em idade pré-escolar. O sistema didá-
tico-educativo do jardim-de-infancia inclui o desenvolvimento
do vasto vínculo de interesses e formas de atividade infantis.
Trata-se das formas elementares de trabalho doméstico e auto-
serviço, a atividade construtiva com inclusão de aptidões ele­
mentares para o trabalho, diversas formas de atividade criativa
- desenho, modelagem etc. - explicações dos fenômenos da
natureza circundante e da sociedade, para que a criança os
compreenda, diversas formas de atividade estética - canto,
ritmo, dança formas elementares de ensinar a ler, escrever,
noções de matemática e, por último, o jogo protagonizado.
Ainda existe, numa certa parcela de pedagogos, a tendên­
cia para universalizar a importância do jogo para o desenvolvi­
mento psíquico; atribuem-se-lhe as funções mais diversas,
tanto puramente didáticas quanto educativas; por isso surge a
necessidade de determinar com maior precisão a influência do
jogo no desenvolvimento psíquico e na formação da personali­
dade, e encontrar o seu lugar no sistema geral do labor educati­
vo nos estabelecimentos infantis para a idade pré-escolar.
Claro que todos esses tipos de atividade, existentes no sistema
organizado de educação social, longe de se encontrarem sepa­
rados por uma muralha, têm estreitos laços entre si. E provável
que alguns se complementem mutuamente no sentido de
influir no desenvolvimento psíquico. Entretanto, cumpre defi­
nir com maior exatidão os aspectos do desenvolvimento psí­
quico e da formação da personalidade da criança que se mani­
festam de preferência no jogo e não podem evoluir ou recebem
apenas um impacto limitado em outros tipos de atividade.
A pesquisa do alcance do jogo para o desenvolvimento
psíquico e a formação da personalidade é muito difícil. Nela é
impossível o experimento puro, simplesmente porque não se
pode retirar a atividade lúdica da vida das crianças e ver como
o processo de desenvolvimento segue seu curso na ausência
4ÜÜ Psicologia dojogo

dessa atividade. Isso tampouco se pode fazer por razões de


caráter puramente pedagógico e por razões fatuais, uma vez
que ali onde, devido à imperfeição da vida infantil nas creches,
nào sobra tempo para se dedicar ao jogo protagonizado por ini­
ciativa própria, as crianças brincam em suas casas, compen­
sando assim as deficiências da organização da creche. Esses
jogos domésticos individuais têm uma importância limitada e
nào podem substituir o jogo coletivo. Em casa, a boneca é fre­
qüentemente o único companheiro de jogo, e o círculo de rela­
ções que pode ser reconstituído com a boneca é relativamente
limitado. Outra coisa muito diferente é o jogo protagonizado
no grupo de crianças com possibilidades inesgotáveis para re­
constituir as relações e vínculos mais diversos que as pessoas
estabelecem na vida real.
Pelas causas indicadas, o estudo propriamente experimental
do jogo protagonizado é difícil no que se refere ao desenvolvi­
mento. Por isso tem-se de recorrer, por um lado, à análise pura­
mente teórica e, por outro, à comparação da conduta das crianças
no jogo com o seu comportamento em outros tipos de atividade.
Antes de passar a expor os dados que permitem imaginar a
importância do jogo para o desenvolvimento psíquico, assina­
laremos uma limitação que nos impusemos desde o começo.
Nào vamos examinar a importância puramente didática do
jogo, ou seja, o valor que este tem para adquirir novas noções
ou formar novas aptidões e faculdades. Do nosso ponto de
vista, a importância puramente didática do jogo é muito limita­
da. Claro que se pode, e isso se faz com freqüência, utilizar o
jogo com fins meramente didáticos mas, nesse caso, como as
nossas observações evidenciam, os traços específicos sào rele­
gados para segundo plano.
Assim, por exemplo, pode-se organizar o jogo do arma­
zém para ensinar as crianças a utilizarem medidas de peso.
Para isso introduzem-se no jogo uma balança e pesos reais,
entregam-se às crianças alguns gràos ou sementes secas, e elas
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 401

aprendem a medir e pesar objetos variados, desempenhando as


funções ora de vendedores, ora de compradores. Claro que
nesses jogos as crianças podem aprender a pesar, medir, contar
artigos por unidades e até fazer as contas e dar o troco. As
observações demonstram que no centro da atividade das crian­
ças estào as operações com o peso e outras medidas, os cálcu­
los etc. Mas se relegam a segundo plano as relações entre as
pessoas no processo de “compra-venda”.
Isso nào quer dizer, em absoluto, que negamos a possibili­
dade de se utilizar assim o jogo. Muito pelo contrário. Mas a
importância dessa utilização do jogo não vai ser por nós exa­
minada. De um modo geral, o jogo protagonizado não é nenhum
exercício. Ao representar a atividade do motorista, do médico,
do marinheiro, do capitão, do vendedor, a criança não adquire
hábito nenhum. Ela não aprende a manejar uma seringa de ver­
dade, nem a conduzir um automóvel autêntico, nem a cozinhar
comidas verdadeiras ou a pesar mercadorias.
A importância do jogo protagonizado no desenvolvimento
ainda foi muito pouco estudada. A compreensão que oferece­
mos do seu papel deve ser acolhida apenas como um esboço
prévio e nào como uma solução definitiva.

1. O jogo e a evolução da esfera das motivações e necessidades


A transcendência do jogo na evolução da esfera das moti­
vações e necessidades da criança é importantíssima, embora a
sua avaliação segura só recentemente tenha sido feita. Vigotski
tinha razão quando situava em primeiro plano, como problema
central, o das motivações e necessidades para compreender a
própria origem do jogo protagonizado. Ao assinalar a contradi­
ção existente entre os novos desejos nascentes e as tendências
para satisfazê-los com urgência, que nào pode se cristalizar,
limitou-se a equacionar o problema, sem o resolver. Isso é na­
tural, uma vez que na época nào havia dados fáticos que permi­
402 Psicologia do jogo

tissem dar uma soluçào. E ainda hoje só se pode resolve-lo de


maneira hipotética.
Leóntiev (1965b) propôs em uma de suas primeiras publi­
cações, dedicadas ao estudo da teoria do jogo, tal como fora
proposta por Vigotski, uma solução hipotética para esse pro­
blema. No entender de Leóntiev, a coisa apóia-se no fato dc
que “o mundo dos objetos que a criança assimila vai ficando
cada vez mais vasto para ela. Nesse mundo já entram nào só
objetos que constituem o meio mais próximo da criança, obje­
tos que ela própria pode manipular e manipula, mas também
outros, de açào dos adultos, com os quais a criança ainda nào
pode operar na realidade e nào estão ao seu alcance físico.
Portanto, a transformação do jogo na transição do período
da mais tenra infancia para a idade pré-escolar baseia-se na
ampliação do círculo dos objetos humanos cuja assimilação se
nos apresenta como uma tarefa e cujo mundo chegam a conhe­
cer no transcurso do seu desenvolvimento psíquico” (1965b, p.
470).
“Nessa fase do desenvolvimento psíquico da criança ainda
nào existe para ela atividade teórica abstrata, conhecimento
contemplativo abstrato, e por isso a assimilação apresenta-se-
lhe, sobretudo, em forma de ação”, prossegue Leóntiev. “A
criança que assimila o mundo que a rodeia pretende atuar
nesse mundo.”
“Por isso a criança, durante a evolução do conhecimento
que adquire do mundo objetivo, aspira a entrar em relação efi­
ciente não só com os objetos que estão ao seu alcance, mas
também com outro mundo mais vasto, quer dizer, pretende
atuar como adulto” (ibid., p. 471). Neste último enunciado
expressa-se o ponto essencial da questão. Mas nos parece que
o mecanismo do aparecimento desses novos desejos não foi
descrito com toda a exatidão por Leóntiev, que vê uma contra­
dição que leva ao jogo protagonizado no choque do clássico
“eu farei” da criança com o nào menos clássico “não se pode”
do adulto. À criança não basta olhar deslumbrada um automó-
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 403
vcl cm marcha, nem subir nesse automóvel; ela precisa agir,
conduzir o automóvel, mandar nele.
“Na atividade da criança, ou seja, em sua forma interna
real, essa contradição apresenta-se como existente entre o
desenvolvimento turbulento da necessidade de atuar com os
objetos, por um lado, e o desenvolvimento das operações para
levar a cabo esses atos (ou seja, os modos de atuar), por outro.
A criança quer conduzir ela mesma o automóvel, quer ela
mesma remar, mas não pode fazê-lo porque não sabe nem pode
saber fazer as operações que são requeridas pelas condições
reais objetivas desse ato” (ibid., p. 472).
A luz dos fatos expostos nas investigações de Frádkina c
Slávina, já citadas, o processo transcorre, porem, de maneira
algo diversa. A própria ampliação do círculo de objetos com
que a criança quer atuar por sua conta é secundária. Expres­
sando-nos em linguagem figurada, baseia-se no “descobri­
mento” de um mundo novo pela criança, o mundo dos adultos
em suas atividades, suas funções e relações. Esse mundo este­
ve eclipsado para a criança pelas ações com os objetos que ela
ia assimilando com a ajuda e sob os auspícios de um adulto,
mas sem percebê-lo.
Na fase inicial da infancia, a criança está totalmente
absorta no objeto e nos modos de com ele atuar, assim como
em sua importância funcional. Chega a aprender certas ações,
que ainda podem ser muito elementares, e é capaz de realizá-
las por si só. Nesse momento, a criança afasta-se do adulto e
dá-se conta de que atua como um adulto. Antes, atuava tam­
bém como um adulto, mas nào se apercebia disso. Via o objeto
com os olhos do adulto, “como através de um cristal”. Já vimos
que para isso contribuem os próprios adultos, quando lhe
dizem que está procedendo “como um homenzinho”. A sensa­
ção causada pelo objeto deve-se agora à pessoa que até esse
momento se mantinha atrás do objeto. Graças a isso, o adulto e
seus atos começam a ser um modelo para a criança.
404 Psicologia do jogo

Objetivamente, isso significa que a criança vê o adulto,


sobretudo, pelo lado de suas funções. Quer atuar como o adul­
to, sente-se totalmente dominada por esse desejo. Precisamen­
te sob a impressão desse desejo muito geral, primeiro mediante
as sugestões do adulto (o educador ou os pais), começa atuan­
do como se também ela o fosse. Essa sensação é tão grande,
que basta uma pequena alusão para que a criança se converta
alegremente, claro que no aspecto puramente emotivo, em adul­
to. É pela força dessa sensação que se explica a facilidade com
que as crianças assumem os papéis dos adultos. Os experimen­
tos de Slávina o demonstraram com suficiente poder persuasi­
vo. Essas sugestões dos adultos parecem indicar a saída de
uma forte sensação. Por isso nào devem ser temidas, porquanto
vão na direção da emotividade dominante que se apodera da
criança - a de atuar com independência e “como os adultos”.
(Advertiremos que, nos casos em que esse desejo não encontra
saída, pode adquirir outras formas muito diferentes, como as
de caprichos, conflitos etc.)
O paradoxo fundamental que se manifesta, ao passar do
jogo com objetos para a interpretação de papéis, consiste cm
que no meio objetai imediato das crianças pode nâo ocorrer
nenhuma mudança essencial no momento dessa transição. A
criança possuía e continua possuindo os mesmos brinquedos -
bonecos, pequenos automóveis, quebra-cabeças, fôrmas para
bolo etc. Mais do que isso, nas próprias ações realizadas nas
primeiras etapas do desenvolvimento do jogo protagonizado,
no fundo nada muda. A criança dava banho à boneca, dava-lhe
de comer e punha-a na caminha para dormir. Agora faz o mes­
mo, no aspecto exterior e com a mesma boneca. O que aconte­
ceu, entào? Todos esses objetos e atos com eles realizados es­
tão agora inseridos num novo sistema de relações da criança
com a realidade, numa nova atividade de sensações prazerosas.
Graças a isso adquiriram objetivamente um novo sentido. A
conversão da menina em mamãe, e da boneca em filha, dá lu­
gar a que os atos de dar banho, dar de comei e preparar a comi­
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 405

da se transformem em responsabilidades da criança. Nessas


açòes manifesta-se então a atividade da mãe com o filho, seu
amor e sua ternura, ou até o contrário: isso depende das condi­
ções concretas de vida da criança, das relações concretas que
a circundam.
As vésperas da transição do jogo com objetos para o jogo
representativo, a criança desconhece ainda as relações e fun­
ções sociais dos adultos, bem como o sentido da atividade que
desenvolvem. Atua conforme o dita seu desejo e coloca-se obje­
tivamente na posição do adulto, operando-se ao mesmo tempo
uma orientação eficiente de emotividade nas relações dos adul­
tos e nos sentidos de seu procedimento. Nesses casos, o inte­
lecto acompanha as emoções eficientes.
As sínteses e abreviações dos atos lúdicos sào indícios de
que se está produzindo esse realce das relações humanas e de
que o sentido realçado tem impacto emocional. É por isso que
se compreendem primeiro de maneira puramente emotiva as
funções do adulto como autor de atividade transcendente para
outras pessoas e, portanto, originador de certa atitude por parte
destas.
Deve-se somar ao que foi dito anteriormente uma peculia­
ridade mais, pouco valorizada, do jogo protagonizado, isto é,
por maior que seja a emoçào com que a criança se compenetra
do papel de adulto, ela não deixa de se sentir criança. Olha-se
através do papel que assumiu, ou seja, com os olhos do adulto,
compara-se emotivamente com ele e descobre que ainda não é
adulto. Dá-se conta de que é criança ainda, por meio do jogo,
de onde emana a nova razão de chegar a ser adulto e exercer de
fato as suas funções.
Bozhóvitch (1951) demonstrou que a criança sente novas
razões para ser adulto ao final da idade pré-escolar. Essas
razões adquirem a forma concreta de desejo de ir à escola e
começar a realizar um trabalho social sério e apreciado pela
sociedade. Para a criança, esse é o caminho para a idade adulta.
406 Psicologia do jogo

O jogo nào se apresenta como atividade que tenha uma


realidade íntima com a esfera das necessidades da criança.
Nele se opera a orientação primária de impacto emocional nos
sentidos da atividade humana, adquire-se consciência do lugar
limitado que se ocupa no sistema dc relações dos adultos, e
sente-se a necessidade de ser adulto. As tendências que, segun­
do alguns autores, constituem a base da origem do jogo são, na
realidade, resultado do desenvolvimento na idade pré-escolar,
e corresponde a isso uma significação especial para o jogo pro­
tagonizado.
A transcendência do jogo nào se limita a que a criança te­
nha razões de novo conteúdo para atuar e novas tarefas relacio­
nadas com elas. Neste ponto, reveste-se de substancial impor­
tância o fato de que no jogo se dê às razões uma nova forma
psicológica. Pode-se imaginar, por hipótese, que é justamente no
jogo que se dá a transição das razões com forma dc desejos ime­
diatos impregnados de emotividade pré-consciente para as ra­
zões com forma dc desígnios sintéticos próximos da consciência.
Claro que outras formas de atividade sào igualmente pro­
pícias à formação dessas novas necessidades, mas em nenhu­
ma outra atividade se entra com tanta carga emocional na vida
dos adultos, nem sobressaem tanto as funções sociais e o senti­
do da atividade das pessoas quanto no jogo.
Essa é a transcendência primordial do jogo protagonizado
no desenvolvimento da criança.

2. O jogo e a superação do “egocentrismo cognitivo”


Piaget, que consagrou ao estudo do pensamento da crian­
ça um grande número de pesquisas experimentais do “egocen­
trismo cognitivo”, caracteriza a qualidade fundamental do pen­
samento infantil, da qual depende tudo o mais. Entende por
essa peculiaridade a insuficiente delimitação de seu critério a
respeito de outros possíveis, e daí o seu predomínio real. Nu­
Ojogo e o desenvolvimento psíquico 407

merosas pesquisas de caráter diverso foram dedicadas ao pro­


blema do “egocentrismo cognitivo”, da possibilidade de supe-
rá-lo e da passagem do pensamento para um grau superior de
desenvolvimento.
O processo de transição do nível de pensamento típico do
período de desenvolvimento pré-escolar para outras formas
mais elevadas é muito complexo. Parece-nos que o destaque
dado ao adulto como modelo de atuação, que se observa no
transcurso dos períodos evolutivos da primeira infancia e da
idade pré-escolar, já tem implícita a possibilidade dessa transi­
ção. O jogo protagonizado dá lugar a que a criança abandone
as suas posturas - devidas à visão que lhe foi proporcionada
por seu quarto infantil, individual e específico - e adote a do
adulto. A própria adoção de um papel pela criança e a mudan­
ça, com ele relacionada, dos sentidos dos objetos incorporados
ao jogo, constitui uma mudança constante de uma postura por
outra.
Tínhamos suposto que o jogo é uma atividade em que
transcorrem os processos fundamentais relacionados com a
superação do “egocentrismo cognitivo”. Nedospásova (1972)
comprovou experimentalmente esse pressuposto numa pes­
quisa especial com caráter de “descentramento” experimental
das crianças.
Piaget examinou em um dos seus primeiros trabalhos
(1932) a patente manifestação de egocentrismo das crianças, ao
resolver o problema de Bi net de “os três irmãos”. O quid da
solução está em que, dizendo a criança corretamente quantos
irmãos tem. nào pode enumerar com acerto quantos tem ne­
nhum dos seus irmãos, ou seja, adotar a visão de um destes.
Assim, por exemplo, se na família há dois irmãos, à pergunta -
Quantos irmãos tens? - responde acertadamente: - Tenho um
irmão, que se chama Nikolai. - À pergunta - Quantos irmãos
tem Nikolai? - responde que nenhum.
Posteriormente, essa característica fundamental do ego­
centrismo, ou seja, do predomínio da própria postura da crian­
408 Psicologia dojogo

ça em seu pensamento e da impossibilidade de adotar a do


outro e admitir a existência de outros critérios, foi registrada
por Piaget e seus colaboradores ao resolverem os mais varia­
dos problemas que tinham por conteúdo relações espaciais e
entre aspectos soltos de diversos fenômenos.
Nos experimentos de Nedospásova anteriormente citados,
em que o problema de “os três irmàos” se apresentava em rela­
ção a uma família que nào era a própria, ou a própria em senti­
do convencional, a postura egocentrista ou não se manifestava
em absoluto ou se manifestava em muito menor grau. Isso ser­
viu de base para a suposição de que se se inculcar na criança a
idéia de que a sua família nào é a “sua”, ou seja, se se lhe infun­
de uma idéia nova, podem-se apagar nela todos os sintomas de
“egocentrismo cognoscitivo”.
O experimento foi realizado segundo o esquema clássico
da formação genético-experimental. Selecionaram-se crianças
(de 5, 6 e 7 anos) de “egocentrismo cognoscitivo” muito mani­
festo a fim de resolver o problema de “os três irmãos” c uma
série de outros problemas oferecidos pelos colaboradores de
Piaget, assim como os especialmente compostos por Nedos­
pásova. Infundiu-se nessas crianças um critério novo que deno­
minamos dinâmico-convencional.
Deram-se a conhecer previamente às crianças as relações
existentes na família. Com esse fim, puseram em sua frente
três bonecos em representação dos irmãos, e outros dois repre­
sentando os pais. Durante as conversas com elas estabclece-
ram-se as relações de parentesco entre pais, filho e irmão.
Quando as crianças já se orientavam com relativa facilidade no
parentesco dessa família de bonecos, os pais retiravam-se,
ficando só os irmàos ou irmãs, e começava então o processo de
formação, que transcorria em duas fases. Na primeira fase do
experimento, a criança, ajudada pelo experimentador, identifi­
cava-se com algum dos irmàos (ou irmãs), adotava o nome
dado ao boneco e assumia o seu papel, ou seja, o de um dos
irmàos, e raciocinava a partir dessa nova postura.
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 409

Por exemplo, se o menino nessa nova situaçào se convertia


em Nikolai, tinha de determinar quem eram os seus irmãos,
assinalando os outros bonecos e mencionando seus respectivos
nomes, e em seguida dizer o seu, ou seja, definir a sua postura.
O menino idcntificava-se consecutivamente com todos os
bonecos e determinava quem eram os seus irmãos em cada
uma dessas situações, para em seguida dizer quem seria ele se
esses bonecos fossem seus irmãos.
Todo o experimento foi feito com os bonecos; a criança
viu de maneira clara a situaçào. Depois, o experimento foi
levado a efeito com irmãos indicados por sinais gráficos, que
eram discos de cores, e as crianças, ao adotar o papel de um ou
outro irmão, colocavam-lhes o disco de sua cor, mencionando
ao mesmo tempo seus nomes. Assim se adotavam consecutiva­
mente, no plano puramente convencional, as posturas de todos
os irmãos. Por último, executaram-se as mesmas ações no
estrito plano verbal. A passagem das ações com bonecos para as
ações com sinais gráficos e, por último, para o mero plano ver­
bal só se efetuava depois que a criança tivesse demonstrado
suficiente desenvoltura no procedimento oferecido.
As verificações feitas depois dessa fase de formação mos­
traram que nào se supera definitivamente o “egocentrismo
cognoscitivo”. Somente algumas crianças mostraram um nível
mais elevado de solução dos problemas verificativos. A análise
dos resultados desse experimento comprobatório permitiu des­
cobrir um fenômeno que denominamos “centramento conse­
cutivo”. Ao adotar convencionalmente, a cada vez, uma postu­
ra nova, um papel novo, do qual a criança observa a situação,
ela continua desatando laços que, embora sejam novos em
cada ocasião, também lhe são evidentes. Entretanto, essas pos­
turas carecem de conexão mútua, não interferem umas com as
outras nem estão coordenadas entre si. As crianças estão liga­
das pela posição que ocupam em cada caso, sem pressupor que
haja simultaneamente pontos de vista de outras pessoas e
outros aspectos do objetivo ou da situaçào examinados. As
410 Psicologia do jogo

crianças não se dão conta de que, ao ocupar outra postura,


mudaram aos olhos dos outros participantes (em nosso experi­
mento, de outros bonecos), ou seja, de que são vistas de outra
maneira. Sendo Nikolài, o menino vê que é irmão de Andrei e
Victor, mas ainda não vê que, como Andrei, é irmão de alguém
mais, ou seja, nào só já tem mais irmãos, mas também se fez
irmão de outros.
Averiguada nas crianças a existência do “centramento con­
secutivo”, Nedospásova passou à segunda fase do experimento.
A situação foi restabelecida. Três bonecos voltaram a ser postos
diante do menino. Este identificou-se com um deles, mas nào
devia mencionar os nomes dos seus irmàos, e sim os dos irmãos
de algum dos bonecos com os quais ele nào se identificara. Por
exemplo, em cima da mesa há três bonecos: Alexandre, Kons­
tantin e Ivan. A experimentadora diz ao menino: - Você é Ivan,
mas não me diga quem são os seus irmãos, porque eu sei. Diga-
me antes quem sào os irmàos de Alexandre. E os de Konstantin.
De quem são irmãos, você e Konstantin? - O exercício era feito
com os bonecos, depois em plano gráfico e, por último, no
estrito plano verbal. Terminava o exercício quando o menino
fazia, sem apoio algum, ou seja, no mero plano verbal, todos os
raciocínios, ocupando uma postura convencional, mas sempre
do ponto de vista de outra pessoa.
A título de exemplo, apresentaremos um experimento com
Valentina (5 anos e 3 meses).
Exper.: - No nosso problema haverá três irmãs. Quais, por
exemplo? Chamemos à primeira Zina, à segunda Nádia e à ter­
ceira Ana. Se você é Zina. que irmãs tem Ana?
Valentina: - Então as irmãs dc Ana seremos Nádia e eu.
Exper,: - E que irmãs terá Nádia?
Valentina: - Se eu sou Zina, as irmãs de Nádia seremos
Ana e eu.
Exper.: - E se você fosse Nádia?
Valentina: Então as irmãs de Ana seremos Zina e eu. E
as de Zina seremos Ana e eu.
Ojogo e o desenvolvimento psíquico 411

Quando termina o exercício em plano puramente verbal,


propõem-se a todas as crianças problemas verificativos que
incluem o de “os três irmãos”, o de “as três montanhas” e o dos
“colares" (os dois utilizados pelos colaboradores de Piaget);
outro problema, para determinar “o lado direito e o esquerdo”,
e vários outros que Nedospásova inventou e nos quais se enfa­
tiza muito o fenômeno do “centramento”. Os três problemas
sào resolvidos sem nenhuma ajuda do experimentador numa
percentagem que oscila entre 80% e 100% dos casos e, com
uma pequena ajuda, resolvem-nos todas as crianças. Portanto,
nas condições deste jogo experimental, consegue-se superar o
fenômeno do “egocentrismo cognoscitivo”.
Claro que, na realidade, tudo é muito mais complexo. A
pesquisa genético-experimental é apenas um modelo dos pro­
cessos reais. Que fundamento se tem para pensar que o experi­
mento realizado seja um modelo dos que transcorrem precisa­
mente no jogo protagonizado e que seja justamente esse jogo a
atividade em que se forma o mecanismo de “descentramento”?
Digamos, primeiramente, que esse experimento é um mo­
delo dc jogo protagonizado e não de um qualquer, mas tão-só
do que conta com a participação de, pelo menos, um colega,
ou seja, é um modelo de jogo coletivo. Nesse jogo, a criança
que assumiu um papel determinado atua em conformidade
com ele e também está obrigada a ter presente o papel do seu
companheiro.
A maneira como agora a criança trata o seu companheiro é
diferente da da vida corrente, por exemplo, nào como se fosse
Kólia ou Vânia, mas em conformidade com a nova postura
determinada pelo papel que assumiu. Pode até acontecer que
na vida real exista antagonismo entre as duas crianças mas,
como companheiros de jogo, este é substituído por solicitude e
cooperação. Cada um dos companheiros de jogo atua em rela­
ção ao outro a partir da sua nova posição convencional. Deve
coordenar as suas ações com o papel de companheiro de jogo,
ainda que não se encontre nesse papel.
412 Psicologia dojogo

Além disso, todos os objetos inseridos no jogo e dotados


de um certo sentido do ponto de vista do papel devem ser acei­
tos nesses precisos sentidos por todos os participantes do jogo,
embora nào atuem realmente com eles. Assim, por exemplo,
no jogo de “médico”, descrito várias vezes, há forçosamente
duas crianças para jogar, o médico e o paciente. O médico deve
coordenar seus atos com o papel do paciente e vice-versa. Isso
se refere também aos objetos. Imaginemos que o médico tem
nas màos um pauzinho que faz as vezes de uma seringa. E é
seringa para ele porque a aciona de certa maneira. Mas para o
paciente nào deixa de ser um pedaço de pau. Pode chegar a ser
seringa para ele somente no caso dc o olhar com a óptica do
médico, sem adotar de passagem o papel deste.
Assim, o jogo apresenta-se como prática real nào só da
mudança de postura ao adotar o papel, mas também como prá­
tica de relações com o companheiro de jogo do ponto de vista
do papel representado pelo companheiro; não só como prática
real de ações com os objetos em congruência com os significa­
dos atribuídos, mas também como prática de coordenação dos
pontos de vista sobre os significados desses objetos, sem os
manipular diretamente. Esse é o processo de “descentramento”
permanente. O jogo apresenta-se como atividade cooperante
das crianças. Piaget assinalou há muito tempo a importância da
cooperação para formar as estruturas operativas. Entretanto, nào
indicou que, primeiro, a cooperação da criança com os adultos
começa muito cedo e, segundo, acreditava que a cooperação
genuína só se iniciava no final da idade pré-escolar, com o apa­
recimento dos jogos com regras que, no entender de Piaget,
requerem que as regras adotadas sejam readmitidas por todos.
Na realidade, essa cooperação original dá-se quando aparece o
jogo protagonizado e constitui um nível imprescindível deste
último.
Já dissemos que Piaget mostrava interesse pelo jogo não
só em virtude do aparecimento da função simbólica. Interes­
sava-lhe o símbolo individual mediante o qual a criança amol­
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 413

da, na opinião de Piaget, o mundo exterior, que lhe é estranho,


ao seu pensamento egocêntrico individual. Efetivamente, no
jogo individual, em que na melhor das hipóteses a criança tem
por companheiro de jogo um boneco, não há necessidade
nenhuma de mudar de posição nem de coordenar o ponto de
vista próprio com os dos outros participantes no jogo. É possí­
vel que o jogo, longe de cumprir a função de “dcscentramento
moral e cognoscitivo”, fixe ainda mais o critério pessoal, o
único da criança, sobre os objetos e as relações, fixe o critério
egocêntrico. Um jogo assim pode desviar efetivamente a crian­
ça do mundo real e enclausurá-la no mundo isolado de seus
desejos individuais limitados pela estreita moldura das rela­
ções familiares.
Na investigação experimental de Nedospásova, o jogo se
apresenta como uma atividade em que se opera o “descentra-
mento" cognoscitivo e emocional da criança. Vemos aí a enor­
me importância que o jogo tem para o desenvolvimento inte­
lectual. E nào se trata apenas de que no jogo se formam ou se
desenvolvem operações intelectuais soltas, mas de que muda
radicalmente a posição da criança em face do mundo circun­
dante e forma-se o mecanismo próprio da possível mudança de
posições e coordenação do critério de um com os outros crité­
rios possíveis. Essa mudança oferece precisamente a possibili­
dade e abre o caminho para que o pensamento passe a um nível
mais elevado e constitua novas operações intelectuais.

3. O jogo e a evolução dos atos mentais


Na psicologia soviética adquiriram grande impulso as
pesquisas sobre a formação dos atos mentais e dos conceitos.
Devemos o estudo desse importantíssimo problema, principal­
mente, às pesquisas de Galperin e seus colaboradores. Como
resultado de múltiplas pesquisas experimentais de caráter de
formação genético-experimental dos atos mentais e dos con­
414 Psicologia do jogo

ceitos, Galperin (1959) estabeleceu as etapas fundamentais


por que deve passar a formação de todo ato mental novo e do
conceito com ele relacionado. Se se excluir a etapa da orienta­
ção prévia no problema, a formação dos atos mentais e dos
conceitos com propriedades programadas de antemão passa
logicamente pelas seguintes etapas: etapa de formação dos
atos com objetos materiais ou seus modelos substitutivos ma­
teriais; etapa de formação do mesmo ato com prioridade para
a fala: por último, etapa de formação do ato propriamente
mental (em alguns casos observam-se também etapas inter­
mediárias, por exemplo, a formação do ato em plano de fala
em voz alta e nào para o foro intimo de cada um etc.). Essas
etapas podem ser denominadas etapas do desenvolvimento
funcional dos atos mentais.
Um dos problemas sem resolução até o momento, mas mui­
to importante, é o da correlação do desenvolvimento funcional
e ontogenético por idades. Nào se pode conceber o processo de
desenvolvimento ontogenético sem o funcional se se adota,
naturalmente, a tese fundamental para nós dc que o desenvol­
vimento psíquico da criança nâo pode transcorrer de outra ma­
neira que nào em forma de assimilação da experiência sinteti­
zada das gerações passadas, consubstanciada nos modos de
ação com os objetos, nos objetos da cultura c na ciência, embo­
ra o desenvolvimento nào se reduza à assimilação.
Por certo, pode-se conceber de maneira puramente hipoté­
tica o desenvolvimento funcional de todo ato mental novo
como repetição abreviada das etapas do desenvolvimento on­
togenético do pensamento e, simultaneamente, como forma­
ção da zona de seu desenvolvimento mais imediato. Se se
admitem as etapas evolutivas do pensamento adotadas na psi­
cologia soviética (prático-eficiente, gráfico-figurativa e oral-
lógica) e se comparam com as adotadas na formação funcio­
nal, essa conjectura tem certo fundamento.
Ao examinar as ações da criança no jogo é fácil perceber
que ela já atua com os significados dos objetos, mas ainda se
Ojogo e o desenvolvimento psíquico 415

apóia nos brinquedos, que são os substitutos materiais daque­


les. A análise do desenvolvimento das ações realizadas no jogo
evidencia que o respaldo dos objetos substitutivos e as ações
realizadas com eles vai se reduzindo cada vez mais. Se nas eta­
pas iniciais se requer um objeto substitutivo e uma ação relati­
vamente desenvolvida com ele (etapa de ação materializada,
segundo Galperin), nas etapas posteriores do desenvolvimento
do jogo o objeto já se manifesta como signo da coisa mediante
a palavra que o denomina, e a ação como gestos abreviados e
sintetizados concomitantemente com a fala. Assim, as ações
lúdicas apresentam um caráter intermediário e vão adquirindo
paulatinamente o de atos mentais com significação de objetos
que se realizam no plano da fala em voz alta e ainda se apóiam
em ações externas que, não obstante, já adquiriram o caráter de
gesto-indicação sintético. É interessante assinalar que as pala­
vras pronunciadas pela criança durante o jogo já exibem um
caráter sintético. Por exemplo, ao se preparar para a refeição, a
criança acerca-se da parede e faz dois ou três gestos com as
mãos - lava-as - e diz: “lavei as mãos”; depois, tendo feito
igualmente uma série de movimentos com a comida - leva à
boca o pedaço de pau que faz de colher - anuncia: “já come­
mos”. Essa via de desenvolvimento na direção dos atos men­
tais desligados dos objetos pelas significações é, ao mesmo
tempo, o aparecimento das premissas para que se forme a
idéia.
À luz das razões apresentadas, o jogo apresenta-se como
atividade em que se formam as premissas para a transição dos
atos mentais para uma nova etapa, superior, de atos mentais
respaldados pela fala. O desenvolvimento funcional das açòes
lúdicas converte-se em desenvolvimento ontogenético, criando
uma zona de evolução imediata dos atos mentais. E possível
que esse modelo de correlação do desenvolvimento funcional e
do ontogenético que vemos de maneira tão convincente no
jogo seja um modelo geral da dita correlação evolutiva. Mas
isso é objeto de pesquisas especiais.
416 Psicologia do jogo

A propósito do estudo do papel do jogo no desenvolvi­


mento intelectual da criança, revestem-se de grande interesse
as opiniões de Bruner. No artigo por nós já mencionado
(1972), enfatiza-se o significado dos jogos manipuladores dos
símios superiores para o desenvolvimento da atividade intelec­
tual desses animais, e o autor chega mesmo a opinar que esses
jogos constituem premissas para a utilização posterior de uten­
sílios. Já exteriorizamos o nosso critério de jogos manipulado­
res similares quando analisamos as opiniões de Buytendijk.
Num de seus trabalhos subseqüentes (1975), Bruner mos­
tra experimentalmente o papel das manipulações prévias com
material (elementos de utensílios) a fim de posteriormente
executar tarefas intelectuais. Solicitou-se a algumas crianças
a execução de uma tarefa corrente de inteligência prática do
tipo das de Kõhler. Antes de executá-la, o primeiro grupo de
crianças observou como um adulto unia dois paus; o segundo
exercitou-se na junção, sem ajuda, de uma braçadeira a um dos
paus; o terceiro observou como os adultos cumpriam integral­
mente a tarefa; ao quarto ofereceu-se a oportunidade de mani­
pular os materiais livremente sem executar a tarefa; e o quinto
grupo não viu os materiais antes de ser encarregado de executar
a tarefa. E resultou que o grupo de jogo (o quarto) cumpriu a ta­
refa tão bem quanto o grupo em que as crianças observaram o
processo de execução da tarefa pelos adultos, e muito melhor
do que as crianças integrantes dos outros grupos.
Baseando-se nesses interessantíssimos experimentos, Bru­
ner enfatizou a importância da atividade lúdica para o desenvol­
vimento intelectual, já que no seu transcurso podem-se dar
combinações de materiais e uma orientação nas propriedades
dos materiais suscetíveis de conduzir à sua utilização posterior
como utensílios adequados à execução de tarefas.
Somos do parecer de que nesses experimentos nào é do
jogo que se trata mas, mais precisamente, da livre experimenta­
ção com materiais sem a menor relação com o cumprimento de
nenhuma tarefa concreta, de algo assim cómo uma atividade
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 417

construtiva livre cm que é mais ampla a orientação no tocante


às propriedades do material, já que nào está relacionada com o
emprego desses materiais para cumprir alguma tarefa concreta.
O que havia nos experimentos de Bruner nào era jogo, mas uma
atividade peculiar que os etólogos denominam investigação.
O que ocorre no jogo, assim nos parece, é que se desenvol­
vem mecanismos mais gerais de atividade intelectual.

4. O jogo e a evolução da conduta arbitrada


Durante a pesquisa do jogo esclareceu-se que todo jogo
protagonizado contém alguma regra latente e que a evolução
dos jogos desse tipo vai desde os que apresentam uma situação
lúdica desenvolvida e regras latentes até os que exibem regras
patentes atrás das quais se ocultam protagonismos. Não vamos
repetir todos os fatos obtidos nas pesquisas respectivas e já
apresentados por nós. Foi totalmente confirmada a tese de Vi­
gotski de que, no jogo, “a criança chora como um paciente... e
alegra-se como participante”, além do que se produz uma re­
núncia contínua da criança aos desejos momentâneos de inter­
pretar o papel que assumiu.
Todos os fatos apresentados evidenciam com suficiente
força que no jogo se reestrutura substancialmente a conduta da
criança, tornando-se arbitrada. Entendemos por conduta arbi­
trada a que se apresenta em conformidade com um modelo
(independentemente de se dar em forma de ato de outra pessoa
ou de regra manifesta) e que se verifica por confrontação com
tal modelo.
Zaporozhets foi o primeiro a se dar conta de que o caráter
dos movimentos executados pela criança em condições lúdicas
é essencialmente distinto daquele dos que faz quando cumpre
diretamente uma tarefa. Foi também quem estabeleceu que, com
o desenvolvimento, muda a estrutura e a organização dos movi­
mentos. Deles se destacam claramente a fase de preparação e a
418 Psicologia dojogo

de realização. “Outras formas superiores de estrutura dos mo­


vimentos aparecem pela primeira vez, nas fases genéticas ini­
ciais, somente quando se cumprem tarefas que, graças ao seu
acabamento exterior, à clareza e à evidência de quanto exigem
da criança, organizaram sua conduta de uma certa maneira.
Não obstante, no processo do desenvolvimento ulterior, essas
formas de mais alto nível de organização do movimento, que
antes necessitavam de condições propícias em cada ocasião,
atingem depois certa estabilidade e chegam a ser algo como
uma modalidade usual de conduta motora da criança, manifes-
tando-se já nas condições mais diversas, inclusive nos casos
em que não há circunstâncias exteriores que as propiciem”
(1948, p. 139).
Zaporozhets fornece os importantes resultados da pes­
quisa de Guinevskaia, que estudou especialmente o valor do
jogo para organizar os movimentos. Descobriu-se ao mesmo
tempo que tanto a eficiência quanto a organização do movi­
mento dependem muito do lugar estrutural que ele ocupe na
interpretação do papel desempenhado pela criança. Assim, no
jogo dramatizado do “esportista”, nào só aumenta a eficiência
relativa do salto, mas também muda o próprio caráter do movi­
mento, nele se realçando muito mais a fase preparatória ou a
do começo original. Escreve Zaporozhets: “A diferença quali­
tativa da conduta motora nas duas séries comparadas de expe­
rimentos consiste, entre outras coisas, em que a maioria das
crianças, na situação de jogo dramatizado, passa para uma or­
ganização mais complexa do movimento com uma fase prepa­
ratória e executiva claramente manifesta, ou seja, os seus resul­
tados eram melhores do que os do jogo de ‘lebres e caçado­
res’” (ibid., p. 161).
No resumo de sua pesquisa, Zaporozhets conclui: “O jogo
é a primeira forma de atividade acessível à criança que pressu­
põe a reprodução consciente e o aperfeiçoamento dos novos mo­
vimentos.”
0 jogo e o desenvolvimento psíquico

“A esse respeito, o movimento motor realizado pela crian­


ça no jogo é um autêntico prólogo aos exercícios físicos cons­
cientes dos escolares” (ibid., p. 166).
Manuilenko (1948) fez uma pesquisa experimental espe­
cial do desenvolvimento da conduta arbitrada. O objeto da
pesquisa foi a faculdade da criança em idade pré-escolar de
manter uma postura de imobilidade. Serviu de critério o tempo
que as crianças eram capazes de permanecer nessa postura. De
todas as séries de experimentos realizados oferece interesse
para nós a comparação dos resultados de duas séries: a de re­
presentar o papel de sentinela num jogo coletivo e a de cumprir
a missão direta de permanecer de pé sem se mexer na presença
de todo o grupo. Os resultados obtidos mostraram com suma
eloqüência que em todos os grupos de idade a duração da
manutenção da postura imóvel em situaçào de protagonismo
teatral eleva os índices de manutenção dessa mesma postura
em condições de tarefa encomendada. Essa vantagem é de sin­
gular magnitude entre as crianças de 4 a 6 anos, e diminui um
pouco no final da idade pré-escolar.
O que acontece? Qual é o mecanismo psicológico dessa
original “magia” do papel? Nâo resta dúvida de que tem gran­
de importância a motivação da atividade. A interpretação de
um papel, atrativo no aspecto emocional, estimula a execução
de ações nas quais o papel se personaliza. Entretanto, não basta
indicar as motivações. É preciso encontrar o mecanismo psico­
lógico que lhes permita exercer essa influência. Dão resposta a
essa questão as séries de experimentos complementares leva­
dos a efeito por Manuilenko. Essas séries consistem em que,
ao representar o papel de sentinela, nuns casos estava presente
o grupo que jogava e, em outros, levava-se a representação
para fora e a criança desempenhava solitária o seu papel. E
resultou que, na presença do grupo, a postura de imobilidade
mantinha-se mais tempo e de maneira mais rigorosa do que em
solidão. Ao representar-se o papel diante do grupo, as crianças
indicavam, por vezes, àquela que se fazia de sentinela, a necessi­
420 Psicologia do jogo

dade de comportar-se de certa maneira. A presença das crian­


ças parecia acentuar a verificação do comportamento por parte
do próprio intérprete.
Há fundamento para supor que, ao representar um papel, o
modelo de conduta implícito neste papel, com o qual a criança
compara e verifica a sua conduta, parece cumprir simultanea­
mente duas funções no jogo: por uma parte, interpreta o papel;
e, por outra, verifica o seu comportamento. A conduta arbitra­
da não se caracteriza apenas pela presença de um modelo, mas
também pela comprovação da imitação do modelo. A conduta
teatral no jogo, como fica claro na análise, está organizada de
maneira complexa. Contém um modelo que se manifesta, por
um lado, como conduta orientadora e, por outro, como modelo
verificativo; há nele execução de ações determinadas pelo mo­
delo; há também comparação com o modelo, ou seja, verifica­
ção. Portanto, ao representar o papel, há um desdobramento
original, ou seja, uma “reflexão”. Claro que ainda não é uma
verificação consciente. Todo o jogo está em poder de uma
idéia cativante e impregnada de excitação, mas já contém todos
os componentes fundamentais da conduta arbitrada. A função
verificativa ainda é muito débil e continua requerendo, com
freqüência, o respaldo da situação e dos participantes no jogo.
Aí está a origem da debilidade dessa funçào nascente; mas o
valor do jogo consiste em que essa funçào nasce aí. E precisa­
mente por isso que se pode considerar que o jogo é escola de
conduta arbitrada.
Uma vez que o conteúdo dos papéis centra-se principal­
mente, como já vimos, nas normas das relações entre as pes­
soas, ou seja, que o seu conteúdo fundamental são as normas de
conduta existentes entre os adultos, poder-se-ia dizer que, no
jogo, a criança passa a um mundo desenvolvido de formas su­
premas de atividade humana, a um mundo desenvolvido de re­
gras das relações entre as pessoas. As normas em que se ba­
seiam essas relações convertem-se, por meio do jogo, em fonte
do desenvolvimento da moral da própria criança. Nesse senti­
0 jogo e o desenvolvimento psíquico 421

do, por muito que se pondere a importância do jogo, dificil­


mente ela poderá ser superestimada. O jogo é escola de moral,
não de moral na idéia, mas de moral na açào.
O jogo também se reveste de importância para formar uma
coletividade infantil bem ajustada, para inculcar independên­
cia, para educar no amor ao trabalho, para corrigir alguns des­
vios comportamentais em certas crianças e para muitas coisas
mais. Todos esses efeitos educativos se baseiam na influência
que o jogo exerce sobre o desenvolvimento psíquico da criança
e sobre a formação da sua personalidade.
Os aspectos do desenvolvimento psíquico que destacamos
e em relação aos quais mostramos o impacto determinante do
jogo sào os mais importantes, uma vez que a sua evolução pre­
para a transição para uma fase nova, superior, do desenvolvi­
mento psíquico, a transição para um novo período evolutivo.
Anexo

Fragmento das anotações de Vigotski para


conferências sobre psicologia infantil *
11. Fórmula da idade pré-escolar.
Por um lado, aparece uma série de tendências nào cristali­
záveis (nova formação) +, e por outro, persiste a tendência a
satisfazer de imediato o desejo (base velha) = dai o jogo, ou
seja, a satisfação ilusória dos desejos insatisfeitos (função da
imaginação).
12. A disparidade dos campos visível e semasiológico é
nova na idade pré-escolar. É a base do jogo, a criação de situa­
ções fictícias. E um novo grau de abstração, arbitrariedade e
liberdade. Daí a imaginação, que só é possível no plano de abs­
tração da situação, de arbitrariedade e liberdade, no plano da
síntese, ou seja, da criação de ideais das coisas. A elaboração
onírica das impressões baseia-se no caudal ininterrupto da fala
por meio da união livre do significado com o objeto (garrafa
quente-vulcào) + cristalização visual do significado. Aspectos
centrais e periféricos da percepção. Vias de desterro e fuga. No
sonho dá-se a percepção: em contrapartida, o significado da

* Ver notas no final do texto.


424 Psicologia dojogo

palavra vê-se em seu lugar: o aspecto do objeto entende-se por


seu significado, por isso o conto é possível na idade infantil,
tanto no sentido emocional quanto no intelectual. A criança
vive no passado e nò futuro: aparecem as noções de tempo e
espaço.
13. É o jogo o tipo preponderante ou principal de ativida­
de? Não será unicamente um espelho dos processos que trans­
correm em outras esferas? Não se pode tomar o reflexo espe­
cular pelo objeto refletido, embora se possa estudar o objeto
mediante seu reflexo especular. A relação do jogo com o de­
senvolvimento é a da aprendizagem para o desenvolvimento.
Por trás do jogo estão as mudanças de necessidades e as mu­
danças de consciência de caráter mais geral. O jogo é uma fon­
te de desenvolvimento e cria zonas de evolução imediata.
14. Deve-se descobrir o que está por trás - empregar os
raios X tal como no problema do ensino - e aplicar ao desen­
volvimento a análise microscópica interna: a mudança no seio
da estrutura celular do tecido reduz-se basicamente a aspectos
eficientes e semasiológicos, dos quais dimanam a abstração e a
arbitrariedade = liberdade.
15. No jogo, a criança aprende a atuar em situação cognos-
citiva, e não visual (cf. o asno de Buridan, em Spinoza), deter­
minada por tendências e razões internas.
Um paradoxo do jogo é que a criança atua pela linha da
menor resistência (obtém prazer), mas aprende a atuar pela de
maior resistência. Escola de vontade e moral.
Outro paradoxo do jogo é que a criança costuma acatar a
regra, renunciando ao que deseja, e nesse caso o acatamento da
regra e a renúncia a atuar segundo o impulso direto é o cami­
nho para a máxima satisfação (quantos conflitos há entre as
duas satisfações, quantas lutas relacionadas com o jogo!). Em
resumo, o jogo oferece à criança uma nova forma de desejo, ou
seja, que a ensina a desejar, correlacionando o desejo com o
“eu” fictício (ou seja, com o papel no jogo e sua regra), ou seja,
no jogo são possíveis as realizações supremas da criança que
Anexo 425

amanhã serão o seu nível médio real, a sua moral: Cf. Piaget,
não no julgamento moral, mas na moral em ação. A idéia que
chega com força irresistível é um conceito convertido em pai­
xão: o protótipo desse ideal spinoziano está no jogo, que é o
reino da arbitrariedade e da liberdade. Transferir o problema
do jogo para o jogo em profundidade (o que há por baixo e por
detrás dele) e em altura (os avanços supremos que amanhã
serão o nível médio são o desenvolvimento por cima).
Nesse sentido, o jogo é uma formação nova da idade pré-
escolar que contém condensadas e reunidas, como num foco, as
tendências mais profundas do desenvolvimento (submarinas e
subterrâneas) e as eleva, ou seja, procura dar um salto vital para
o mundo desenvolvido das formas supremas da atividade espe­
cificamente humana contidas no meio como fonte evolutiva.
16. A situação substitutiva no jogo (idéia acertada de
Elkonin) é o protótipo de todo o processo cognoscitivo (álge­
bra). Essa idéia derruba a teoria da prioridade do pensamento
autístico. Mas corre o perigo de intelectualismo.
17. Plano duplo de corrente eficiente no jogo: emancipa­
ção do conhecido e do irresistível: a criança chora como
paciente no jogo (é difícil mostrar como se chora) e está con­
tente como participante. Tipos supremos de vontade como
jogo (substituições do arrebatamento e da motivação): é fácil
ser herói no jogo, é a forma de heroísmo infantil exeqüível, à
criança “basta conhecê-lo”. O nosso heroísmo contém algo do
jogo. Não a satisfação produzida pelos caramelos, mas a espe­
cífica dojogo.
18. A criança aprende no jogo a possibilidade de ser capi­
tão, guarda de trânsito etc.
19. As novas categorias de atitude em face da realidade
aparecem no jogo (Elkonin ). Isso é verdade.
20. O sincretismo não procede do jogo (contra Elkonin).
Há distintos níveis de desenvolvimento (estrutura complexa do
desenvolvimento) e correntes desse processo em diferentes
profundidades. As correntes determinantes nào são as profun­
426 Psicologia do jogo

das (impulsos), mas as externas (nào superficiais!!! em oposi­


ção à psicologia grosseira). 0 jogo é o nível superior do desen­
volvimento do escolar, o da superfície.
21. Contra Koffka: dois mundos. Um pedaço de madeira
em duas estruturas. O prazer, acompanhante da atividade acer­
tada, assim como eu quero. Conhecê-lo sem o separar da ação.
Não se pode desterrar do jogo a alegria e a liberdade.
22. A açào no campo imaginário, na situação fictícia, e a
formação do desígnio arbitrário, do plano vital e das motiva­
ções da vontade aparecem no jogo e colocam-no no nível supe­
rior do desenvolvimento, elevam-no à crista da onda, transfor­
mam-no no mar de fundo do desenvolvimento da idade pré-
escolar que é impelido para o alto por toda a profundidade das
águas, relativamente tranqüilas. Isso é o principal. No jogo
ecce honto. Unir isso à satisfação dos desejos insatisfeitos.
23. O jogo é um novo aspecto no desenvolvimento da fala:
a fala no aspecto do jogo encara o desenvolvimento do Welt (do
mundo) em vez do umwelt (meio ambiente) e a vontade cons­
ciente.
A palavra torna o homem livre. A criança é livre no jogo.
Mas é uma liberdade ilusória. O jogo não morre, mas entra em
relação com a realidade. Tem sua continuação interior no ensi­
no escolar e no trabalho (atuação obrigatória com a regra) e
seus correlatos na idade pré-escolar (liberdade na percepção,
arbitrariedade etc.), mas nào se superestime a liberdade do
jogo: nem tudo pode sê-lo todo.
Wundt sobre a pobreza da fantasia infantil. Experimentos
de Morózova e Piaget. A regra é invulnerável.
24. Fases: o bebê é um campo limpo (não há jogo).
A primeira infância é a união do campo visível com o
semasiológico (Ernstspiei, jogo sério). Até os três anos de
idade a criança não compreende que o Sol parece pequeno: ilu­
são de Aristóteles.
A criança pré-escolar: divergência do campo semasiológi­
co exterior e o visível (o jogo).
Anexo 427

O escolar: aparecimento do campo semasiológico interior,


independente, não sobreposto, mas coordenado com o exterior
(jogo desportivo).
O adolescente: aparece na consciência o Ernstspiel.
25. Na teoria de Elkonin nào nos afastamos do meio, mas
vamos avançando a partir da própria criança (uma etapa do
desenvolvimento condiciona a outra): isso é verdade.
26. Em suma. No jogo vemos o movimento da criança no
plano puro dos significados, daí a liberdade, a imaginação, a
satisfação dos desejos etc. Isso é o principal. Mas também
vemos isso na percepção real: a união do visível com o signifi-
cado-percepção do objeto. Rumo à teoria da percepção, estrei­
tamente vinculada à teoria do jogo, de maneira que não se
entende um sem o outro (caminhos dc desterro e fuga, olfato,
constância, materialidade, arbitrariedade, sistema). Na percep­
ção unem-se a imagem visual A com o significado A, e aqui
tem-se a união da imagem A com o significado B.
Nós: se houvesse aqui um cavalo!
27. Contribuição para o jogo: 1) Não é uma função predo­
minante, mas sim orientadora e pode ser que também desorien-
tadora, ou seja, que se desvie do desenvolvimento normal; 2) o
aspecto afetivo não é um prazer, mas não se pode esquecer; 3)
a criança menor de 3 anos nào entende, em geral, os primeiros
rudimentos de atividade profissional, o que é ser médico ou
capitão (ou seja, as suas funções), mas tão-somente as funções
das coisas dos seus familiares: no jogo, a criança aprende a
atuar como os adultos e a trabalhar, de um modo geral; 4) todo
jogo tem regras: aí está o quid da situação fictícia do ponto de
vista do comportamento; 5) a criança aprende o seu “eu” no
jogo: e criando pontos fictícios de identificação, os centros do
“eu”: daí a natureza social do “eu”. C f Rollenspiel (jogo prota­
gonizado); 6) a criança já possui o seu “eu”, mas não se dá
conta, tem processos internos, mas nào se apercebe disso: a
tomada de consciência de si e do seu conhecimento está no
jogo: antes o pensamento e a coisa estavam unidos, não vi­
428 Psicologia dojogo

nham dissociados. Aqui, devido à divergência do campo sema-


siológico e óptico, com preponderância do primeiro, destaca-
se da coisa na ação a idéia sobre a coisa da coisa e começa a
ação da idéia sobre a coisa, e nào da coisa. Essa é a base da
liberdade. O primeiro passo é a fala. À fala só se chega me­
diante outros (à liberdade também; mediante si mesmo, assim
como mediante outro, é o resultado desse desenvolvimento). O
jogo vem depois da fala. É curioso que, ao perder a liberdade e
a arbitrariedade, os enfermos perdem a ação lúdica convencio­
nal. Se o centro se encontra na regra, as deduções sào: que há
também uma regra exterior (permanecer sentado à mesa, sem
falar, nào tocar nas coisas dos outros), mas o que importa para
o jogo é a regra interna própria, pessoal (diferença fundamen­
tal de duas regras morais da criança, segundo Piaget, por cola­
boração unilateral e mútua): autolimitaçào e autodeterminação
internas. A tomada de consciência do “eu” no jogo, a tomada
de consciência do pensamento, do “eu quero” - no jogo cf.
gramática e fala. Daí:
a) O paradoxo do “eu”: no jogo alegra o que eu quero, a
atividade egocêntrica; mas aí mesmo está a limitação desde o
interior do seu “eu” momentâneo.
b) A regra convertida em arrebatamento: a diferença prin­
cipal consiste em que o seu efeito positivo triunfa como impul­
so seu do mais vigoroso. Cf. Spinoza: o efeito pode ser vencido
com um fortíssimo arrebatamento. Isso não pode acontecer no
jogo. Daí, o jogo nào é a forma predominante de atividade: a
criança está 24 horas por dia por debaixo de si mesma no jogo.
Nâo vence os arrebatamentos reais.
c) Por conseguinte: a significação da palavra orientada
para a ação por meio da situaçào fictícia e da regra. Temos aqui
uma atitude nova entre a palavra e a açào. Antes a palavra inse­
ria-se na situaçào (função indicativa - atenção arbitrária -
mudança da estrutura do campo. Cf. Kõhler - escravos do
campo sensorial), e a situação determinava as ações mediante a
palavra.
Anexo 429

Aqui a açào vem do significado da coisa e não da coisa: o


Aufforderungscharakter [caráter exortativo, vocativo] passa
para o significado da palavra.
d) Isto só é possível graças à mudança molecular micros­
cópica da própria composição da percepção (os movimentos
moleculares determinam as propriedades mais importantes das
coisas): antes, o principal na percepção era a figura, ou seja, a
percepção do objeto = figura/sentido. Aqui vemos a razão
inversa, que a percepção do objeto = sentido/figura. Isto é uma
transição no jogo. A palavra tem uma orientação bipolar, si-
tuando-se com o significado no pensamento e com o sentido
na coisa: a passagem do sentido para o interior, para os proces­
sos e atos próprios. Os caminhos de fuga recobrem-se em
seguida de mielina - os processos intercentrais modificam os
de fuga.
e) Todo jogo com regra é uma situação fictícia (o inverso
do parágrafo primeiro acerca de que toda situação fictícia é um
jogo com regra): por exemplo, o xadrez, que implica regra.
ergo a rainha e o cavalo ditam uma conduta distinta das peças
de madeira. Mas num princípio não se tem consciência da regra
do jogo, há que descobri-la (está latente) no jogo com bonecos
e de modo lábil (depende do capricho); depois adquire-se
consciência dela, apresenta-se diretamente nos chamados
jogos com regras (nestes é preciso descobrir a situação fictícia
latente).
A trajetória central do desenvolvimento do jogo vai da
situação fictícia patente com regra e objetivo latentes com fic­
ção, regra e objetivo lábeis, até a situação fictícia com regras e
objetivo patentes e ficção, regras e objetivo constantes (o jogo
com bonecas - também existente na atividade pré-lúdica - e o
jogo de xadrez são os pólos do desenvolvimento), ou seja, do
jogo extrai-se a sua essência.
f) Atitude com o simbolismo: por isso o jogo nào é simbo­
lismo; o símbolo é um signo, mas uma boneca não é um signo
de criatura e sim o resultado de um simbolismo remoto; o sen­
430 Psicologia dojogo

tido separado da coisa é a via do pensamento de sentidos pura­


mente objetais separados das coisas (ideações) - em lugar de
imagens - ideais (conceitos). O jogo puramente simbólico é
impossível para a criança. Ergo: exemplo de Koffka: 2 modos
de conduta com um pedaço de madeira, nào de símbolo (um
modo) + a coisa, mas do significado e a coisa, ou seja, a coisa
com dois significados, o de boneca e o de lasca de madeira;
esta é a descrição exata e adequada do jogo: ergo, nào dois
mundos e duas estruturas, mas um só mundo.
g) A sensação das emoções: assim, a criança não simboliza
no jogo, mas deseja, satisfaz o desejo, faz passar pela emotivi­
dade as categorias fundamentais da realidade - cf. o tempo o
dia, a meia hora, estào representados de outra maneira no jogo;
o espaço: no jogo, cinco passos sào cem verstas etc. Quando a
criança deseja, satisfaz; quando pensa, atua; a ação interior é
inseparável da exterior; a imaginação e o entendimento e a von­
tade, ou seja, os processos internos em açào exterior.
h) O jogo, como tipo dc atividade e desenvolvimento das fun­
ções psicológicas superiores (que também é sociogênese) é uma
unidade de contrários. A contradição do jogo é a atividade livre,
quer dizer, arbitrária, toda em poder do arrebatamento, de maneira
que era considerada como instinto, ou seja, em forma arbitrária e
inconsciente, o interior no exterior, quer dizer, uma contradição de
suas funções psicológicas (elementares e diretas) com seu sistema
e tipo de atividade (livre, arbitrária) resolve-se na transição para a
fala interior e as funções psicológicas superiores: a causa do de­
senvolvimento dessas novas formações da idade escolar no jogo.
O mouro cumpriu sua missão e pode se retirar.
Aditamento ao ponto “e”: relações entre as funções e o
jogo. O caminho que vai do jogo aos processos internos na
idade escolar é a fala interna, a integração, a memória lógica, o
pensamento abstrato (sem coisas, mas com conceitos), o prin­
cipal caminho do desenvolvimento; quem entender esta cone­
xão compreenderá o principal na transiçào da idade pré-esco-
lar para a escolar.
Anexo 431

A criança atua no jogo com significados separados das


coisas, mas inseparáveis da ação real com os objetos reais; aí
está a contradição, mas o distanciamento entre a significação
do cavalo e o cavalo real e a transferência daquela para um pau
de vassoura (ponto de apoio objetai, caso contrário o significado
volatiliza-se, esfuma-se) e a atuação real com o pau de vassou­
ra como se fosse um cavalo (ou seja, a criança atua primeiro
com os significados como se fossem coisas e depois adquire
consciência deles e começa a pensar; ou seja, tal como antes
possui conhecimentos da linguagem gramatical e escrita, sem
saber que os possui, quer dizer, nem toma conhecimento nem
os domina de maneira arbitrária, agora possui os significados,
opera com eles, mas sem sabê-lo e sem operar arbitrariamente
com eles; a criança não separa consciente e arbitrariamente o
significado de cavalo do cavalo real, mas quer ser cavaleiro e
desfruta involuntariamente de poder separar o significado da
coisa, ou seja, não sabe o que faz; nào sabe que fala em prosa =
cf. Luria: a teoria do cristal, não presta atenção à palavra, daí a
definição funcional dos conceitos, ou seja, das coisas, daí a
palavra ser parte da coisa; outro tanto acontece com os signifi­
cados na idade escolar; a compreensão do cristal - fala - e a
compreensão dos significados no transitório) é uma etapa tran­
sitória necessária para a operação com significados.
Se na idade de um ano e meio a criança faz a descoberta de
que cada coisa tem um nome, no jogo descobre que cada coisa
tem um sentido, que cada palavra tem um significado que pode
substituir a coisa. A integração baseia-se na emancipação da
palavra da coisa no jogo (o behaviorista descreveria o jogo e
sua propriedade característica: a criança denomina as coisas
ordinárias com nomes extraordinários [palavras], suas ações or­
dinárias com denominações inusitadas, apesar de conhecer os
nomes verdadeiros) e as significações das palavras na lingua­
gem interna. Mas tal como o distanciamento entre a palavra e
a coisa necessita de um ponto de apoio em forma de outra coisa,
conserva-se na fala interior, como ponto de apoio, a estrutura
física da palavra.
432 Psicologia dojogo

Mas o mais importante está nisto:


No momento em que o pau de vassoura, ou seja, a coisa, se
converte em ponto de apoio para separar a significação de
“cavalo” do quadrúpede real, a criança só pode separar o signi­
ficado da coisa ou a palavra que a significa se encontrar um
ponto de apoio em outra coisa, ou seja, subtraindo com a força
de uma coisa a denominação de outra; a mudança dos significa­
dos é a expressão dessa debilidade da criança, que obriga uma
coisa, poderíamos dizer, a influir em outra no campo semasio-
lógico. Essa transferência está facilitada pelo fato de a criança
tomar a palavra por uma propriedade da coisa, nào vê a palavra
(teoria do cristal), mas vê através desta a coisa significada. No
plano da correlação objetai e da função indicativa, a palavra “ca­
valo”, referida ao pau de vassoura, significa “o cavalo está ali”,
ou seja, vê mentalmente a coisa através da palavra.
O mesmo acontece em relação à ação própria da criança: o
garotinho que se mexe vigorosamente sem sair do lugar e se
imagina galopando montado a cavalo inverte no ponto crítico a
estrutura da ação/sentido.
De novo, para extrair da ação real o sentido da açào (ir a
cavalo sem ter a possibilidade real de fazê-lo), necessita de um
ponto de apoio em forma de ação substitutiva da real. Mas de
novo, se antes o determinante da estrutura ação/sentido foi a
açào, agora a estrutura dá a volta e é o sentido/ação o que se
relega a segundo plano, converte-se em ponto de apoio (de
novo o sentido se separa da açào com a ajuda de outra açào) e é
só. Torna-se de novo um ponto crítico da operação pura com os
sentidos das ações, ou seja, da eleição voluntariosa, da solu­
ção, do conflito das motivações e restantes processos brusca­
mente separados de sua realização. Quer dizer, o caminho para
a vontade, tal como nos casos da coisa e do sentido, é o cami­
nho para a meditação. Na solução voluntariosa está a realiza­
ção do ponto indeterminante: cf. os meus experimentos de se­
leção e classificação, de um novo ponto de vista. A realização
Anexo 433

por sorteio é mais difícil (por ser cega) do que por escolha cons­
ciente, ou seja, escolher por sorte nào é o superior na vontade.
Daí. na psicologia ingênua amadurece a compreensão de
sua operação, ou seja, o sentido da recordação, e passa para os
processos psicológicos supremos, ou seja, o signo depois da
palavra na ontogenia como signo para si mesmo, e na filogenia
um nódulo para a palavra (?).
Pela primeira vez a açào adquire sentido no jogo: ou seja,
toma-se consciência dela. A açào substitui outra ação, assim
como a coisa outra coisa. Como transforma a criança uma coi­
sa em outra ou uma ação em outra? Mediante o movimento no
campo semasiológico não ligado ao campo visível, com as coi­
sas reais que submetem todas as coisas e ações reais. Esse mo­
vimento no campo semasiológico é o mais importante do jogo:
por um lado, é movimento no campo abstrato (o campo dos
significados surge antes das operações arbitrárias com as sig­
nificações), mas o modo de mover-se é situacionista, concreto
(ou seja, não lógico, mas eficiente). O aparecimento do campo
semântico, mas com movimento como se fosse real, é a princi­
pal contradição genética do jogo.

Notas - As anotações de trabalho (manuscritas) que Vigotski utilizava


para profenr conferências sobre psicologia infantil da idade pré-escolar foram
entregues por ele ao autor deste livro. As primeiras 10 teses estào dedicadas a
questões gerais do desenvolvimento psíquico e foram omitidas por nào terem
nenhuma relação direta com os problemas da psicologia do jogo.
A mençào de Elkonin em vários lugares está relacionada com a crítica
ou a avaliação positiva do seu informe sobre o jogo que precedeu diretamen­
te as conferências de Vigotski.
As citações de Spinoza que se lêem nas anotações devem-se a que
Vigotski nessa época trabalhava seriamente nas correlações entre o instinto e
o intelecto.
Algumas teses de Vigotski, acolhidas nas anotações, estão expostas
com maior detalhe na ata taquigráfica, publicada, de sua conferência sobre a
psicologia do jogo (ver Voprosi Psijologuti. 1966. nV6).
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Notas

Nota do autor
1. A ata taquigráfica dessa conferência de L. S. Vigotski foi publi­
cada na revista VoprosiPsijologuii ( 1966, n? 6).
2. Vigotski deixou-me suas anotações para essa conferência. A
parte correspondente ao jogo é publicada em anexo no presente livro.
3. Alude à ata taquigráfica da minha conferência, lida a estudantes.
4. Trata-se do problema da unidade do intelecto e da vontade, que
interessava a Vigotski.
5. Esse grupo era integrado por Asnin, Bozhóvitch, Galperin. Zapo­
rozhets, Zíntchenko, Lúkov e outros.

Capitulo l
1. Essa relação c uma reprodução xerográfica, sem indicação de
ano. publicada pela UNESCO. Foi-me facilitada por Usova e utilizei-a
no meu trabalho.
2. Ver Marx, O capital, vol. I, cap. I.
3. Engels, F.: Obras (em russo), vol. 12, p. 731.
4. A primeira anotação abreviada deste jogo foi publicada por
Leóntiev, A. N. (1944). O jogo descrito foi tomado das observações de
Frádkina, F. I. e trata-se de um jogo corrente com alguns elementos
experimentais.
5. Essa pesquisa esteve sob a direção pessoal direta de Bogus-
lávskaia.
446 Psicologia dojogo

Capitulo 2
1. Marx. K... O capital, vol. I, cap. I. sec. “O fetichismo da merca­
doria”.
2. Brincar com bonecas, disseminado em nossa sociedade princi­
palmente entre as meninas, sempre foi apresentado como exemplo do
instinto de maternidade. Os fatos mencionados refutam esse ponto de
vista e evidenciam que essa brincadeira clássica das meninas nào é, em
absoluto, manifestação do instinto maternal, mas reproduz as relações
sociais existentes na sociedade em questão, concretamente a divisão so­
cial de trabalho nos cuidados com as crianças.
3. A arma de fogo penetrou na sociedade que se encontrava no nivel
do regime de comunismo primitivo ora durante a colonização, ora durante
o processo dc intercâmbio com os europeus.
4. O problema da periodização por idades foi por nós examinado
num trabalho à parte (ver Voprosi Psijologuii, 1971, n? 4).

Capitulo 3
1. Nào é missão nossa efetuar aqui uma crítica geral do hedonismo.
2. Ver, mais adiante, a teoria do jogo de Freud (subcapitulo 2.
“Teorias e problemas da pesquisa do jogo infantil**).
3. Trata-se dos experimentos realizados por W. Kõhler com chim­
panzés, um dos pontos de partida da concepção gestaltista de insight ou
do que K. Biihler chamaria a “experiência do ah!”.
4. No livro de Hinde, R., (1975) apresenta-se uma enumeração inte­
ressante das características típicas das ações lúdicas.
5. Ver Vigotski, L. S., Investigaciones psicológicas escogidas,
Moscou, 1956, Ed. da Academia de Ciências Pedagógicas, pp. 56-109.
6. Ver, de Freud, S., O ego e o id . Leningrado, 1924.
7. Para expor os trabalhos de ludoterapia orientada utilizei uma edi­
ção mimeografada, de uma lista bastante ampla de trabalhos sobre o jogo
de Gallusser, U. M A First Survey of Research on the Play o f Children
below the Age o f Nine Years, Londres.
8. Posteriormente, quando Piaget tomou conhecimento das obser­
vações críticas dc Vigotski. aceitou a repreensão por ter utilizado sem
critério crítico as teses de Freud sobre a existência do “princípio dc pra­
zer” e do “princípio de realidade”.
9. A única exceção é a possível satisfação alucinatória das necessi­
dades. satisfação que surge em virtude de meios rtarcotizantes especiais.
Notas 447

10. Ver, sobre este assunto, o livro de L. I. Bozhóvitch (1968).


11. Um ano, seis meses e 23 dias.
12. Os limites da presente obra não nos permitem determo-nos na teo­
ria geral do desenvolvimento psíquico da criança elaborada por Piaget. A
respeito de algumas questões dessa teoria já expressamos o nosso ponto de
vista no artigo, escrito em colaboração com P. Y. Galperin, “Contribution
al análisis de la teoria de J. Piaget sobre el desarrollo dei pensamiento”,
publicado como epílogo da tradução do livro dc J. H. Flaver La psicologia
genética de Jean Piaget (Moscou, 1967).

Capitulo 4
1. A pesquisa de Frádkina foi orientada por Leóntiev.

Capitulo 5
1. A pesquisa foi realizada sob os auspícios de Rádina e Pántina.
2. A pesquisa foi dirigida por Morozova.
3. Essa escola-clínica especial foi organizada na URSS pelo cate­
drático Sokolianski. Ela existe até o dia de hoje.
4. Os dados destes experimentos foram reunidos por Gucrtchcnon e
analisados por nós.
5. Valentin é um menino de três anos de outro grupo do jardim-de-
infãncia.
6. Aqui e a seguir indicam-se os números das atas registradas no
experimento.
7. Este trabalho foi realizado por Frádkina.
Impressão c acabamcnto:

Orjjlrafír
■ ' U t f c i r M ia ra

tcl.: 25226368
Os bebês e suas mães
DONALD W. WINNICOTT
O campo grupai
ANA MARÍA FERNÁNDEZ
Falar de amor à beira do abismo
BORIS CYRULN1K
A mente e a memória
ALEKSANDER R. LURIA
No princípio era a educação
ALICE MILLER
Psicometria genética
SARA PAÍN
Desenho da criança
MAUREEN COX
Epistemologia genética
JEAN PIAGET
Psicanálise do adolescente
PATRICK DELAROCHE
Os alimentos afetivos
BORIS CYRULNIK
A construção do pensamento e da linguagem
L. S. VIGOTSKI
Grupos de encontro
CARL R. ROGERS
O processo grupai
ENRIQUE PICHON-RIVIÈRE
O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas
MARÍA LUISA SIQUIER DE OCAMPO
MARÍA ESTHER GARCÍA ARZENO
ELZA GRASSANO DE PICCOLO E COLABORADORES
O jogo protagonizado
Há, sem dúvida, muitos fenômenos distintos a que nos
referimos com o termo "jogo", desde as manipulações de
um objeto qualquer por um bebê até os jogos "adultos"
como o xadrez ou o futebol. Entre uns e outros
encontramos, na literatura psicológica, muitas categorias
e subdivisões. Fala-se de jogo imaginativo, imaginativo
individual ou social, jogo "turbulento e desordenado"
(rough-and-tumble), jogo simbólico, jogo criativo, jogo de
representação de papéis etc. Alguns desses termos
assinalam diferenças teóricas entre os autores que os
utilizam. Por exemplo, a denominação "jogo simbólico"
em Piaget englobaria todos os anteriores, quer a criança
os realize sozinha, quer na companhia de outras
crianças, porquanto se postula que a estrutura
psicológica que permite todos eles é substancialmente a
mesma. Em outros casos, é possível que a preferência por
um ou outro termo dependa mais da língua em que se
expressa originalmente o autor e da escolha de termos a
critério de seus tradutores. A obra de Elkonin trata do
jogo "protagonizado", que poderia equivaler, segundo
cremos, ao jogo sociodramático de Smilanski (1968)
ou Feitelson (1978), ao jogo social de Eifferman (1971),
ao jogo de fícçào de Garvey (1977) ou ao jogo simbólico
mais desenvolvido de Piaget (1946).

ISBN 978-85-7827-204-3

9h7 8 8 5 7 8 ' 2 7 2 0 4 3
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