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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor
Lauro Morhy Adam Watson
Vice- Reitor
Timothy Martin Mulholland
i
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Diretor
Alexandre Lima
A evolu çã o da sociedade
CONSELHO EDITORIAL internacional
I
Presidente Uma an á lise histó rica comparativa
Elizabeth Cancelli

Airton Lugarinho de Lima Camara, Alexandre Lima ,


Estev ã o Chaves de Rezende Martins,
Henryk Siewierski, José Maria Gonçalves de Almeida J ú nior,
Moema Malheiros Pontes, Reinhardt Adolfo Fuck,
Sé rgio Paulo Rouanet , Sylvia Ficher
Tradução
René Loncan

Coleçã o Rela ções Internacionais


Direçã o de Amado Cervo

40 12040
EDITORA

9
40 anos
Editora Universidade de Brasília
A: SE6
UnB
238 Adam Watson

alguma medida para curvar a mais poderosa das monarquias indi-


viduais da Europa , o rei de França. Era um objetivo anti-hege-
mô nico. Nem os reis espanhóis nem o imperador, nem, do outro
lado, os reis de França , tinham ainda plano algum construtivo ou
que se impusesse para a administração de toda a cristandade.
Assim, o efeito das idéias do Renascimento na Europa ao norte
dos Alpes veio a levar a á rea das unidades relaxadas da cristandade Cap ítulo 16
medieval na dire çã o de um novo sistema europeu fragmentado em
Statos territoriais que n ão reconheciam nenhuma autoridade geral .
O sistema moveu -se na direçã o do extremo das independê ncias
m ú ltiplas no espectro. No entanto, os Statos recentemente em for- A tentativa hegem ó nica
mação na Europa causavam demasiado impacto uns sobre os ou - dos Habsburgos
tros para que pudessem dispensar a coordenação em suas relações
externas. Como compensa ção pela perda das limitações medievais,
aqueles governantes que se sentiam mais ameaçados pelo poder do
Stato mais forte começaram a formar uma associa ção de proteção

O
anti-hegemônica que cobria a maior parte do que ainda era chama- Renascimento e a Reforma deslocaram a estrutura hori-
do a cristandade e deram à Europa uma medida de coesão e estru - zontal da cristandade medieval. Três aspectos das lutas
tura estratégica. do século XVI para substitu í-la por uma nova organiza-
ção da Europa são de especial interesse para nós.
O primeiro é o impulso que a própria Reforma e a consequente
sólida stasis religiosa deram à fragmenta ção e à verticaliza ção da
Europa. Em segundo lugar, devemos examinar as maneiras pelas
quais aqueles que queriam consolidar Statos independentes en -
frentaram a stasis e suas consequências. O terceiro aspecto é a
tentativa Habsburgo de estabelecer uma autoridade hegemónica na
cristandade e de desviar o sistema de Estados emergentes da frag-
mentação e no sentido da extremidade imperial de nosso espectro.

O efeito da Reforma sobre o sistema europeu de Estados

A imensa e passional explosão do espírito europeu que cha -


mamos de Reforma , inclusive os movimentos protestantes e as
reformas correspondentes naquela parte da cristandade latina que
continuou a chamar-se cat ólica , foi religiosa em sua origem e fina-
lidade. Nã o discutiremos essas diferenças religiosas, mas limitar -
nos-emos ao impacto da Reforma sobre a evolu ção da sociedade
A evolu çã o da sociedade internacional 241
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internacional européia e sobre a administra çã o dos diferentes gru - primir essas idéias politicamente revolucion á rias, os calvinistas
pos e entidades que compõem um sistema. A Reforma complicou e formavam organizações quase militares capazes de tomar o gover-
distorceu em formas inesperadas as novas prá ticas da arte do Esta - no. O calvinismo e outras seitas radicais disseminaram -se sobretu -
do ligadas ao Renascimento. À stasis religiosa , especialmente , do na metade ocidental da cristandade, especialmente em terras de
incentivou a reformulação da sociedade horizontal da cristandade fala francesa , nos Países Baixos e na Gr ã-Bretanha.
medieval em Statos territoriais. Ela distorceu o crescimento gradual Da mesma forma como os humanistas do Renascimento ido-
das lealdades “ nacionais” no â mbito dos novos centros territoriais latravam os textos cl ássicos gregos e romanos e neles encontravam
de poder. Opôs-se ao conceito de que a distribuição de poder entre as li ções que queriam, os protestantes usavam a Bíblia como outra
os novos Statos deveria ser, de alguma forma , equilibrada, inde- grande mina de preceitos e exemplos, dos quais selecionavam li -
pendentemente da religi ão, a fim de impedir que os mais fortes ções para todas as situações da vida . No domínio da arte do Estado
deles dominassem todo o sistema. Alé m dos limites da cristandade, e do ordenamento da sociedade, os calvinistas respeitavam mais os
ela mudou a natureza do impulso cont ínuo e dramá tico da socieda - Estados judaicos independentes dos juízes e dos profetas, o povo
de européia para o exterior e proporcionou oportunidades para que eleito de Deus enfrentando sozinho os reinos e os impé rios a seu
o Impé rio Otomano se expandisse na Europa. redor, do que respeitavam a memória do mundo imperial romano
A Reforma religiosa divide-se, num sentido amplo, em duas de Sã o Paulo. Para eles, a palavra “ romano” significava seus per-
parles. A primeira , ligada ao alem ã o Martinho Lutero, que procla - seguidores, a Igreja Cat ólica e o Império Habsburgo, e evocava
mou suas doutrinas em 1517, favorecia uma reforma moderada da ódio e medo. A interpretação protestante, e especialmente a inter-
igreja . Os luteranos aceitavam uma quebra com o papado “ n ão preta ção calvinista da Bíblia , confirmava seu comprometimento
à suscet ível de redençã o”, mas confiavam em bispos protestantes, em para com uma Europa desintegrada , composta de Estados comple-
reis e em outros governantes laicos para manter a ordem e a autori- tamente independentes, em alguns dos quais pelo menos eles pode-

_ - dade, tanto em assuntos religiosos quanto laicos, e para defender as


á reas reformadas de tentativas cat ólicas de retomar as rédeas pela
força . O luteranismo foi um movimento nativo da metade oriental
riam ser livres para praticar sua religi ão e para instituir sua forma
de sociedade.
A Contra- Reforma católica não conseguiu restaurar a unidade
da cristandade latina e encontrou aceitação principalmente entre medieval da cristandade por meio da força. A ruptura era demasia-
alem ães e escandinavos. do ampla para que isso fosse possível . No entanto, movimentos
A segunda parte da Reforma, ligada ao francês João Cal vino, reformadores como a Sociedade de Jesus deram à quela parte da
que começou c íelivamcnle sua carreira em Genebra , em 1536, foi igreja que permanecia leal ao papa e às velhas tradições um novo
mais radical. Ela rejeitava nã o apenas o papado e certas doutrinas, poder, correspondente ao poder aumentado do S / ato italiano, e
mas também a estrutura e a tradição hier á rquicas da igreja univer - novas doutrinas para justificá-lo. A ala cat ólica da fragmentada
sal, preferindo que cada congregação pudesse escolher seus próprios igreja latina permaneceu comprometida com a visão imperial que a
havia sustentado durante a Era da Escurid ão. Ela atra ía a lealdade
| ministros. Muitos calvinistas estenderam esse princípio a formas
republicanas de governo laico, com base na teoria de que a autori- daqueles que ainda se apegavam às doutrinas e aos rituais tradicio-
dade política, como a religiosa , é inerente ao corpo do povo, que nais de sua f é, e també m aqueles que mantinham o ideal político de
pode, portanto, escolher e controlar aqueles que governam em seu uma cristandade unida e viam os Habsburgos como seus porta -
nome. A Vindiciae contra Tyrannos de 1579 afirmava o direito de estandartes.
' uma comunidade de resistir a um governante opressor e de convo- As questões religiosas e políticas candentes levantadas pela
car auxílio externo se as autoridades locais concordassem: era uma Reforma invocavam a consciê ncia , ou o julgamento, de cada indi-
receita para a stasis. Quando os governos existentes tentavam su - víduo. Quando a consciê ncia de um sú dito diferia da de seu gover-
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nante, o efeito politico era o enfraquecimento, se n ão a destruição estavam tentando impor, ajudando a envolver crescentemente os
da aceitação pelo sú dito da autoridade daquele governante e sua Estados uns com os outros. Toda a Europa , inclusive o Impé rio
solidariedade inquestioná vel para com seus concidad ãos, pois tanto Otomano, parecia estar tomando posição em dois campos. Deveria
protestantes quanto cat ólicos concordavam em que a adesã o à ver- um príncipe alinhar-se com a maior potência da Europa , a família
dadeira f é transcendia a todas as outras lealdades. O resultado foi Habsburgo, que estava comprometida com a Contra-Reforma, ou
colossal e prolongada stasis . Guerras religiosas e guerras civis, que com aqueles que por razões diferentes se opunham aos Habsbur-
jogam os homens contra seus vizinhos, em vez de contra um inimi - gos ? Há quatro exemplos relevantes, para nossa investigação, das
go externo, normalmente são os conflitos mais amargos. Persegui - maneiras pelas quais os governantes do século XVI tentaram lidar
ções e guerras religiosas engendradas pela Reforma e pela Contra- esses problemas.
Reforma foram a experiê ncia mais prejudicial por que passou a Na Espanha , o novo Estado “ nacional”, criado pelos reis cat ó-
civilização européia . licos, identificava-se com a Igreja Cat ólica e havia sido sedimenta-
do pela bem -sucedida conclusã o da reconquista contra os mu çul-
manos. Quando Carlos de Habsburgo tornou -se rei da Espanha, em
As reações dos governantes europeus 1516, a igreja e o Estado suprimiram a oposição política e religiosa
à monarquia. A maior parte dos espanhóis, acostumada com a ex-
A maré de stasis e de conflitos desenvolveu-se entre os súditos pulsão dos muçulmanos, aparentemente encarava a conformidade
de praticamente todos os governantes da Europa, exatamente oficialmente obrigat ória como um mal menor do que a guerra civil
quando aqueles reis e rainhas estavam tentando transformar um religiosa que arrasava outras partes da Europa . A opção espanhola
domínio medieval num Stato . Poder-ser -ia esperar que essa turbu- de conformidade oficialmente obrigat ória também era bastante
lência tivesse prejudicado e talvez bloqueado a forma ção de Esta- aceita de modo geral na It á lia, a maior parte da qual estava sob
dos integrados cujos habitantes reconhecessem uma lealdade pri- domina ção espanhola ou papal. Esse modelo conseguiu manter a
mordial uns para com os outros e para com seu príncipe, e assim paz e evitar destrui ção material. Muitos membros dissidentes des-
ter permitido que surgisse o que nós reconheceríamos como um sas comunidades emigraram ou fugiram e foram parcialmente
sistema de Estados. Na realidade, a turbulência teve o efeito con - substitu ídos pelo influxo de católicos provenientes dos dom ínios de
tr á rio. A quebra da unidade da cristandade, e especialmente da- príncipes protestantes. Essa política_ permitiu que os Habsburgos
quela que era a mais horizontal de todas as instituições medievais, utilizassem a energia da Espanha e da It ália e a riqueza das índias
a igreja universal, reforçou , em vez de diminuir, a concentração de em sua pol ítica externa para estabelecer sua hegemonia na Europa.
poder nas m ãos dos governantes dos Estados. Os luteranos, espe- Na Inglaterra , as classes ativas, especialmente os comercian-
cialmente, mas não apenas eles, buscavam abertamente a proteção tes e os habitantes de cidades e povoações, bem como a nova no-
de príncipes e prestavam obediência àqueles que a proporciona- breza e os novos propriet á rios de terras, tornaram-se cada vez mais
vam. O apoio luterano incentivou a independê ncia de príncipes protestantes no correr do século XVI; mas contavam com a monar-
alemães que estavam organizando seus pró prios Statos e acelerou a quia para transformar a Inglaterra de um domínio feudal dilacerado
dissemina ção da nova arte do Estado da política de poder da It ália por conflitos entre famílias nobres num Estado nacional. Todos os
em terras alem ãs do Sacro Impé rio Romano. A alienação de muitos governantes Tudor, exceto um, foram políticos,! pessoas que colo-
sú ditos com rela çã o a seus governantes e a ameaça ou a realidade cavam os aspectos pr á ticos diante dos princípios. Eles se dedica-
de guerras civis destrutivas colocavam problemas muito sé rios para
os Estados que estavam surgindo. Ademais, lealdades religiosas
passionais atravessavam as novas fronteiras que os governantes O autor usa o substantivo politiques e o adjetivo politique , em francês, para
denotar habilidade e mal ícia pol íticas. (N. do T.)
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ram, durante todo o século, ao estabelecimento de um Stato real luir o expediente mais significativo para o futuro do sistema euro -
efetivo. Henrique VIII fez-se independente do papado sem tornar- peu de Estados. A tradição medieval guelfa de particularismo dos
se protestante. Dois de seus herdeiros e muitos de seus sú ditos príncipes e de oposi ção à autoridade imperial e as novas técnicas
moderados quiseram evitar a destruição da guerra religiosa, esta- italianas de governo que estavam ensinando os príncipes a trans -
belecendo uma ú nica denomina çã o religiosa de base suficiente- formar seus dom ínios em Statos agora se associavam ao luteranis -
mente ampla para incluir a maioria. A Igreja Anglicana foi um mo para dividir, na pr á tica , as á reas alem ãs do impé rio em v á rios
meio -termo político que manteve a paz interna. A Inglaterra , no principados independentes. Os governantes desses novos Statos
entanto, não pôde escapar das armadilhas do sistema europeu. Até cada vez mais sentiam a necessidade de ter sú ditos leais, a fim de
que ponto a Inglaterra podia ser governada segundo a vontade da evitar a destrutiva stasis interna. Ademais, ao chegar à metade do
maioria protestante dependia, internamente, de quem portasse a século XVI, depois de trinta anos de confronta çã o religiosa incon-
coroa e, externamente, de até que ponto outros Estados pudessem clusiva, de guerra e de negociação, os príncipes alemães das duas
manter o poder Habsburgo sob controle, e assim levar o sistema facções estavam cansados da guerra e queriam uma paz duradoura.
europeu , que se formava, na direção da extremidade do espectro Assim, em 1555, eles aceitaram o acerto de Augsburg, com base no
onde se situam as independ ê ncias m ú ltiplas. Havia teoricamente princípio de cajus regio ejus religio. A essê ncia do meio-termo
três opções de política externa, mas umas delas, o comprometi- político de Augsburg foi permitir que pequenos e grandes gover -
mento irrestrito para com a causa protestante, era demasiado peri- nantes, e mesmo algumas cidades individuais, tivessem o direito de
gosa para ser tentada. Os políticos ingleses optaram por evitar o escolher a denominação religiosa de seu Stato e permitir que s ú di-
comprometimento tanto com os Habsburgos quanto com o campo tos insatisfeitos “votassem com seus pés”. Seguiu -se uma grande
anti-hegemônico e por manter a Inglaterra como o “fiel da balan - transfer ência de popula ções dentro da Alemanha. A maior parte
ça”; mas também se sentiam obrigados a apoiar outras potências dos migrantes ficou contente em poder mudar para um territ ório
protestantes. A filha de Henrique, Maria, prima do Habsburgo onde pudesse praticar sua religi ã o, e os príncipes também ficaram
Carlos V e casada com seu filho Felipe II, escolheu a terceira op- satisfeitos em adquirir sú ditos leais em lugar de dissidentes. As
ção, da Contra-Reforma católica e de uma aliança com a Espanha, migrações também confirmaram a alega ção “calvinista” de que a
o que tornou a Inglaterra parte da estrutura hegemónica dos Habs- autoridade de um príncipe sobre seus súditos não devia ser tomada
burgos. Sua sucessora, Elizabete, restaurou o equil íbrio no país, como um fato garantido, mas dependia em alguma medida da
apoiando ativamente a Igreja Anglicana, e retomou a atitude de exist ê ncia de uma congru ê ncia entre o príncipe e seu povo.
manter o equil íbrio entre França e os Habsburgos no exterior. Feli- A consciê ncia por parte dos governantes de que tinham um interes-
pe II da Espanha, legitimista, antifrancês e um pouco político em se comum também representou o começo efetivo do “clube dos
mat é ria de pol ítica externa, estava pronto para deixar tranquila a príncipes”, que mais tarde iria desempenhar papel preponderante
protestante Elizabete, na medida em que sua herdeira era sua ini - na administra ção da sociedade européia de Estados.
miga (de Felipe) Maria, rainha dos escoceses, uma cat ólica, mas O efeito do compromisso de Augsburg foi consolidar os dife -
metade francesa e ex-rainha de Fran ça. Quando a pressão pú blica rentes Estados e Miniestados em que o impé rio estava se cristali -
protestante obrigou Elizabete a mandar executar Maria, Felipe zando. O compromisso, contudo, também tinha aspectos hegemó -
tentou, sem sucesso, trazer a Inglaterra de volta ao campo Habs- nicos. Os governantes adquiriram maior autonomia, mas ainda não
burgo pela força . eram reconhecidos como independentes da mesma maneira que,
A opção espanhola e sua variação inglesa não estavam dispo- por exemplo, o eram França ou Suécia. As instituições impe -
níveis no Sacro Império Romano , que n ão era um ú nico Stato. riais continuaram a ser reconhecidas como a autoridade legítima.
O impé rio, na Alemanha e nos Países Baixos, no entanto, fez evo- Os príncipes aceitaram que o acerto deveria ser parcialmente nego -
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ciado e ratificado pela Dieta do Impé rio, mas que aquelas quest ões formalmente. A facção favorá vel à Contra-Reforma , a Liga Cat óli-
sobre as quais não se queriam comprometer formalmente seriam ca , liderada pela família de Guise, agia da mesma forma no Norte,
objeto de decreto do imperador Habsburgo. O compromisso de no Leste e em Paris. Eles queriam uma Europa cat ólica, aceitavam
Augsburg trouxe a paz ao império por cerca de sessenta anos, uma a hegemonia como seu meio necessá rio e viam os inimigos Habs-
longa vida naquele tempo, e aumentou consideravelmente a felici- burgos da Coroa francesa como os paladinos de sua causa. A Fran-
dade pessoal de muitos alem ães. ça, entretanto, diferentemente do impé rio, tinha sido forjada num
Os Países Baixos eram, junto com partes da It ália, as provín- Slato por Lu ís XI, e as forças da secessão tinham menos legitimi -
cias mais ricas e adiantadas do impé rio, assim como da cristanda- dade. Muitos políticos e outros que eram favor á veis a uma autori-
de. O imperador Carlos V havia nascido lá; mas seu governo au- dade central forte apoiavam a Coroa , e os ventos favorá veis a reis
sente era amplamente ressentido e metade da população se tornou ajudaram a manter o Estado uno contra as forças favor áveis à
calvinista. A divisão e os movimentos considerá veis de pessoas, fragmenta ção.
segundo duas lealdades individuais, revelaram-se, també m nos A pol ítica externa de Francisco I, baseada na oposiçã o à Espa -
Pa íses Baixos, a mais dolorosa solu ção poré m a mais prá tica para nha na alian ça com os otomanos, revelou -se infrut ífera. À medida
os conflitos religiosos. A divisão foi mais nítida do que o mosaico que a stasis entre cat ólicos e hugenotes crescentemente abalava o
em que se transformara a Alemanha. As províncias setentrionais, poder do Estado, seu filho Henrique II via a estrutura hegemónica
predominantemente calvinistas, separaram -se dos Habsburgos e do Habsburgo como menos perigosa para ele e para seu reino do que a
Sacro Império Romano e proclamaram sua independ ê ncia formal desintegra ção da autoridade real dentro de França. Henrique, por -
em 1581, depois de uma longa luta. As Províncias Unidas torna- tanto, passou a favorecer uma aliança com os Habsburgos, de
ram -se um novo tipo de Estado, uma república baseada na vontade modo que os dois grandes governantes da cristandade pudessem
popular e na imigração. Suas províncias particularistas tinham lidar com o protestantismo e manter a ordem na Europa. Os acor -
veleidades federais e republicanas; mas a é poca exigia um executi - dos ligados ao Tratado de Cateau -Cambr ésis, em 1559 - quatro
vo forte e autoridade mon á rquica e, sob a pressã o da luta com a anos depois de Augsburg - consideravam um domínio conjunto
Espanha, os aspectos militares e outros do funcionamento do Esta- que recordava a diarquia ateno-espartana e que prenunciava a
do forjaram -se em grande medida pela família de príncipes eleitos Santa Aliança no que veio a fazer para estabelecer uma ordem he-
de Orange. Os Países Baixos meridionais tornaram-se homogenea- gemónica e lidar com a stasis revolucion á ria após a queda de Na -
mente cat ólicos e leais aos Habsburgos e assim permaneceram até poleã o. No entanto, a opção espanhola nã o ia ser tentada em Fran -
que, finalmente, tornaram-se o reino moderno da Bélgica. ça . Henrique II foi morto antes que seus acordos com os
As duas opções no sistema de Estados emergente - colabora- Habsburgos pudessem entrar em vigor, e a dissidê ncia dentro de
ção com a estrutura hegemónica dos Habsburgos ou oposição antí- França continuou a crescer. Sua vi ú va florentina, Catarina de Me-
hegemônica à mesma - são extremamente visíveis no caso de diei, que se tornou regente, n ão dava import â ncia alguma a lutas
França. A França també m estava fissurada pelo calvinismo e pela em torno de dogmas, mas estava determinada a restabelecer um
dissidência de poderosas famílias nobres. A Coroa e a maioria Slato forte. De in ício, ela pensou que a toler â ncia pudesse abrir o
permaneciam católicas; assim, os calvinistas, chamados hugueno- caminho para um poder real aumentado. No entanto, quando ela
tes, voltaram-se para nobres de mentalidade independente em bus- viu que isso era impraticá vel , tentou atingir um equil íbrio à manei-
ca de proteção, incluindo notavelmente, Henrique de Bourbon , rei ra dos Mediei entre a Liga Cat ólica e os huguenotes e enfraquecer
de Navarra. Eles criaram suas próprias for ças armadas, fortificaram as duas facções, matando seus líderes. Uma stasis prolongada e
pontos fortes, administraram grandes territórios, especialmente no guerras religiosas também prolongadas dividiram a França em
Sul e no Oeste, e desafiaram a autoridade da Coroa sem rejeit á-la bolsões de território controlados pela Liga e pelos huguenotes, de
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modo que esta se tornou praticamente t ão dividida quanto a Ale- mais emancipados de qualquer autoridade laica central ou coletiva .
manha , e o grande peso externo que a França normalmente detinha O pê ndulo moveu -se caprichosamente, mas crescentemente, no
foi muito reduzido durante um tempo. sentido da extremidade do espectro onde se situam as independ ê n-
Um compromisso prá tico foi finalmente adotado, como 11a In- cias m ú ltiplas.
glaterra e no impé rio. No devido momento, o líder huguenote Hen- As migrações de dissidentes religiosos reforçaram a divisão
rique de Navarra acedeu ao trono como Henrique IV. Mas a heran- vertical da Europa. Elas aumentaram o poder de príncipes e a leal-
ça já n ão representava a ú nica legitimidade: para granjear a dade para com eles, tanto de seus sú ditos que permaneciam quanto
aceitaçã o da maioria cat ólica , Henrique tornou -se cat ólico. Seu dos novos sú ditos que imigravam. Mas os sú ditos individuais agora
Edito de Nantes, em 1598, restabeleceu a autoridade do Estado estavam decididos a escolher suas lealdades e eram capazes de
francês, ao preço de reconhecer os huguenotes, que Henrique havia fazê-lo, embora muitas vezes com grandes dificuldades. O exercí-
liderado durante tanto tempo. As famílias nobres calvinistas con - cio de opções individuais tornou a lealdade uma quest ã o mais vo-
solidaram seus feudos semi-independentes, e os huguenotes conti- lunt á ria , que envolvia o consentimento dos governados e que anun-
nuaram a alimentar sentimentos rebeldes contra a Coroa cat ólica. ciava novos conceitos do que deveria constituir um Estado.
O Edito de Nantes foi um meio-termo desconfort á vel para atender A tolerância entre Estados e príncipes, a base do compromisso de
a uma finalidade tempor á ria ; e, à medida que o poder do Estado se Augsburg, tornou -se a política da é poca no campo anti- hege-
reforçava em França, os direitos aut ónomos dos huguenotes iam mônico. Mas protestantes e cat ólicos concordavam em que devia
sendo desbastados. A emigração de dissidentes religiosos franceses haver somente uma religi ã o num domínio, e mais ainda num Stato.
foi somente adiada . Do ponto de vista externo, Henrique, agora A toler â ncia dentro de um Estado era , portanto, considerada vergo-
certo da lealdade da maioria dos cat ólicos, rejeitou as ligações da nhosa , e as pessoas que a defendiam eram denunciadas como mun-
Liga com os Habsburgos e continuou a pol ítica externa huguenote, danas e sem religiã o. A disposição de tolerar em sua pr ópria comu -
que correspondia aos interesses de Estado de uma França indepen - nidade o que se condenava e se julgava maligno surgiu do cansaço
dente. Em vez da diarquia com os Habsburgos, que havia sido cul- e do desejo de evitar mais destruiçã o material.
tivada por Henrique II, Henrique IV organizou uma liga anti - O contraste entre as nações substanciais que estavam se for-
hegemônica contra eles com os Pa íses Baixos calvinistas e os pr í n- mando no Oeste da Europa e os fragmentos em que a Alemanha e a
cipes protestantes da Alemanha , e com apoio otomano. It ália estavam divididas acentuavam a diferen ça já hist órica entre
Em todos esses exemplos, o sentido prático prevaleceu , esti- as metades ocidental e oriental da Europa. Esse contraste levou a
mulado por um apreço renascentista pela ragione di Stato. Na Es- dois conceitos diferentes do funcionamento do Estado e da nacio-
panha e na Inglaterra, durante o século XVI, a Coroa e as forças nalidade na sociedade européia de Estados, os quais se espalharam
que se conjugavam a seu redor eram fortes o suficiente para manter da Europa por todo o mundo moderno.
um Estado eficaz. Em França, isso era apenas possível. No impé-
rio, tanto o sentido prá tico quanto a ragione di Stato operavam
contra a coerência imperial e a favor de Statos separados, dos quais O papel do Império Otomano
os domínios Habsburgos eram os mais importantes. O protestan -
tismo n ã o se opunha originalmente à hegemonia no sistema de O desenvolvimento da cristandade latina num sistema de Esta-
Estados. Tornou -se anti-hegemônico em virtude do comprometi - dos foi complicado pela expansã o, na Europa Oriental e no Medi -
mento dos Habsburgos para com o lado cat ólico. Na prá tica , ele terr â neo, de uma grande pot ê ncia n ão crist ã , tecnologicamente
ajudou a fazer os Estados da Europa, especialmente os Estados adiantada e militarmente bem -sucedida , o Impé rio Otomano, mu -
emergentes dentro do império, mais diferentes uns dos outros e çulmano. Os otomanos consideravam os Habsburgos como o prin -
250 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 251

cipal obst áculo a sua expansão para o oeste. O exé rcito de Sulei- A expansã o imperial do poder otomano no século XVI n ão se
man, o Magnífico, chegou às portas de Viena em 1529. A partir de limitou à Europa. Ela encontrou dois centros principais de oposi-
ent ão, os franceses, sob Francisco I, tomaram a iniciativa de orga- çã o: os Habsburgos, normalmente apoiados por Veneza e outros
nizar coopera ção com os otomanos contra o que viam como a in - aliados, no Oeste , e os persas saf á vidas, no Leste. Os dois conflitos
tenção Habsburgo de predomínio geral e inatacá vel na Europa. tinham justificativa religiosa: os saf ávidas eram hereges xiitas, e as
O acordo franco-otomano de 1536 não teve a forma de uma aliança campanhas na Europa tinham o mé rito adicional de expandir a dar
entre iguais, mas sim a de uma regulamentação unilateral , por parte al Islam. O envolvimento mais ou menos contínuo em duas frentes
do Sult ã o, das relações económicas com França ; no entanto, aquele impôs limites à capacidade militar temível dos otomanos, tanto em
acordo forneceu a base para colaboraçã o política e militar, e foi termos de seus recursos gerais quanto també m em termos de tem-
assim entendido em toda a Europa.2 Por intermédio de contatos po, uma vez que levava muitos meses para movimentar um exé r-
franceses com pr íncipes protestantes que se opunham aos Habs- cito de Istambul para Viena ou para Tabriz. A necessidade dos
burgos, os otomanos desenvolveram uma pol ítica geral de incenti- otomanos de levar em conta, ao mesmo tempo, as forças montadas
var a desordem na Europa crist ã e de enfraquecer seus inimigos contra eles, tanto no Oriente quanto no Ocidente, f ê-los buscar
Habsburgos oferecendo cooperação política e militar e atrativos aliados em potencial e negociar períodos de pausa com seus inimi-
económicos a Estados anti-hegemônicos e a movimentos rebeldes gos e, em especial , a envolver-se ativamente do ponto de vista
dentro daqueles Estados. Por exemplo, em suas pormenorizadas diplomá tico com os Estados crist ãos emergentes. Essas são as li-
negociações com Felipe II, nos anos 1570, tomaram a liderança na mita ções impessoais que associamos a sistemas de Estados. No
tentativa de coordenar os movimentos de Guilherme de Orange entanto, os contatos entre os persas e os europeus permaneceram
com os seus próprios. Em grande medida, os otomanos atingiram esporá dicos, e eles só ocasionalmente entravam em acordos milita-
seus objetivos diplomá ticos na Europa no século XVI, e o desen- res uns com os outros contra os turcos. Suas relações n ão eram
volvimento do sistema europeu de Estados atendeu bem a seus regulares ou sistemá ticas o suficiente para que nós os considere-
interesses. A união efetiva da Europa crist ã sob a lideran ça Habs- mos como membros de um mesmo sistema.
burgo foi evitada, e a á rea moveu -se crescentemente na direção de
independê ncias m ú ltiplas que lutavam entre si.
Assim, o Impé rio Otomano tornou -se, e continuou a sê-lo por A hegemonia dos Habsburgos
alguns séculos, um componente importante do sistema europeu de
Estados. No entanto, o Impé rio Otomano considerava-se, e era Foi contra esse estado de coisas pouco promissor que a família
considerado, como demasiado diferente da família de Estados Habsburgo realizou uma tentativa prolongada e complexa de esta-
crist ãos para tornar-se um membro de sua sociedade internacional belecer um sistema hegemónico na cristandade.
em evolução. Essa distinção tece consequências de monta, discuti- Alguns fatores operavam a favor de uma hegemonia Habsbur-
go. O mais importante, as idéias italianas do funcionamento do
das no Capítulo 19.
Estado à maneira do Renascimento, a Reforma e o crescimento da
consciê ncia nacional combinaram-se para tornar a sociedade euro-
péia mais turbulenta e seus governantes mais independentes. Con-
2
A natureza daquelas relações é descrita de maneira claríssima em Thomas Naff , seq úentemente, disseminaram-se o medo da anarquia e també m o
The Ottoman Empire and the European State System [O Impé rio Otomano e o temor com rela çã o aos turcos. Esses temores, combinados com o
sistema europeu de Estados], em H. Bull e A. Watson (editores), The expansion desejo dos estadistas do século XVI de estabelecer a paz e a ordem
of international society [ A expansão da sociedade internacional ], Oxford,
Oxford University Press, 1984. dentro de seus Estados, fizeram com que os homens se dessem
252 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 253

conta, por meio de todas as paixões da Reforma, de que alguma so e fez o possível para enfrent á-lo”,3 pode ser demasiado favorá-
ordem mais ampla entre Estados també m era necessá ria na nova vel - mas o sentido de responsabilidade e de liderança de Carlos
Europa para substituir a antiga coletividade e as regras crescente- não está em d ú vida. Nenhum plano alternativo construtivo para
mente desconsideradas da cristandade. É importante notar, parale- uma nova ordem geral entre príncipes era seriamente defendido.
lamente ao desejo dos príncipes de controlar Statos individuais, a A solução dos Habsburgos era essencialmente conservadora.
propensão à hegemonia e à ordem entre Estados que observamos Em muitos aspectos, a família olhava para tr ás, em busca do passa-
em sistemas semelhantes no passado e que tornaram plausível a do medieval: queria restaurar a unidade da cristandade e defendê-la
tentativa Habsburgo. contra o Islã, externamente, e internamente contra a heresia. De-
Em segundo lugar , o poder Habsburgo era difuso sobre a mai- fendiam a legitimidade din ástica, à qual deviam sua pró pria posi-
or parte da Europa crist ã. Carlos V presidia uma gama d íspar de ção; mas a supressã o da heresia envolvia a interferê ncia junto a
domínios, principados e funções, herdados ou para os quais tinha
essa legitimidade e a intervenção nos assuntos internos de outros
Estados, assim como nos seus próprios. Carlos n ão queria adquirir
sido eleito, cada um com seus pró prios interesses e suas pr ó prias
territ órios que ele n ão considerasse legitimamente seus, ele era a
limitações constitucionais sobre seu governante. Os territ órios favor de uma Europa que deixasse cada domínio e província com
Habsburgos eram demasiado separados do ponto de vista geogr áfi - suas próprias terras e tradições administrativas e que mantivesse
co e demasiado diversos para serem forjados num ú nico Staí o. (Os todos os príncipes legítimos em seus lugares, de modo que as pos-
elementos principais do conglomerado Habsburgo erarru a imensa sessões de sua família existissem em sua variedade juntamente
heran ça espanhola de Carlos, que cobria a própria Espanha, muito com outras. Numa Europa assim, a grande concentração de poder
da Itália e as Américas; sua posição de Sacro imperador Romano; a legítimo em suas mãos asseguraria uma hegemonia Habsburgo. Ele
grande concentração de territ órios Habsburgos ao longo do Dan ú - esperava que, por meio desta, pudesse evitar o que ele via como o
(-i bio, em parte sob o poder de seu irmão Ferdinando; a. herança da escorregar da cristandade na direção da anarquia e unir seus gover-
V Borgonha, que incluía as cidades e províncias ricas e praticamente nantes por trás dele para suprimir a heresia e para opor-se aos tur -
aut ónomas dos Países Baixos onde Carlos nascera; e algumas pe- cos. Ele estava ansioso por aliciar o rei de França, o governante
quenas suseranias em outros lugares). Os Habsburgos estavam cat ólico do Estado individual mais poderoso na Europa crist ã,
portanto obrigados a articular suas políticas em termos da Europa como um sócio minorit á rio naquelas empreitadas, com uma posi-
inteira . Ironicamente, sua primazia no sistema emergente surgiu ção somente inferior à sua própria na ordem hegemónica .
dos casamentos dinásticos concebidos para sustar a aliança anti- Os objetivos de Carlos eram moderados e, na vitória, ele tinha
hegemônica inicial contra França, e eles vieram a achar -se, por o cuidado de mostrar controle. Ele podia, portanto, exercer uma
acidente, mais que por desígnio, poderosos o suficiente para tentar autoridade hegemónica de fato, no sentido de que sua primazia era
impor a lei . N ão obstante, reagiram à lógica de sua preeminê ncia reconhecida, mesmo por seus oponentes, e de que ele era em gran-
de medida capaz de controlar o funcionamento do sistema de Esta -
fortuita de poder com uma tentativa de estabelecer uma nova or-
dos que se desenvolvia. Mas a sua tentativa de estabelecer uma
dem, com uma estrutura hegemónica aceita.
hegemonia ou um sistema suserano legítimo e aceito na Europa
A visão Habsburgo de Carlos V e Felipe II tinha, assim, o mé-
não teve sucesso. A fraqueza principal da concepção que os Habs-
rito de ver além de seus próprios territórios, em busca do bem -estar
burgos tinham da Europa era que sua aceita çã o da diversidade n ão
de toda a cristandade latina, mais que meramente em termos do
-
bem estar e independ ê ncia de um ú nico Staí o. O veredito de Sir
Stanley Leathes sobre Carlos, de que “ele e somente ele entre os 3
S. Leathes (editor), The Cambridge Modern History [ A moderna histó ria de
príncipes da Europa formou uma opinião justa sobre o risco religio- Cambridge], volume II, Cambridge, Cambridge University Press, 1903, p. 79.
254 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 255

se estendia de forma genu ína ao protestantismo: as concessões dos a rica e inovadora Holanda desempenhando um papel de liderança.
Habsburgos aos protestantes, tais como o compromisso de A criatividade brilhante da Europa, que floresceu na diversidade de
Augsburg, só eram feitas diante de necessidades militares ou pol í- seus Estados independentes, poderia ter sido seriamente limitada.
ticas. A grande for ça e as intenções honradas dos Habsburgos n ão Confrontada com o objetivo Habsburgo de estabelecer uma
eram suficientes para lidar ao mesmo tempo com a Reforma, com a ordem hegemónica européia cat ólica, a França tinha duas opções: a
luta armada contra a França e o Impé rio Otomano e com a oposi- pol ítica defendida pela Liga Cat ólica e pelos Guises, de colabora-
ção de muitos governantes menores que queriam liberdade para ção com os Habsburgos, e a política nacional defendida pelos hu -
transformar suas possessões em Statos. guenotes de oposi ção sistemá tica a suas pretensões. Uma parte
Carlos finalmente concluiu que suas responsabilidades eram substancial da opinião francesa apoiava a política da Liga, especi-
superiores à quilo que um homem podia realizar. Ele passou o trono almente durante períodos de fraqueza exceptional. Mas, salvo em
imperial e as posições Habsburgos na Alemanha a seu irm ão Fer - alguns breves períodos, principalmente no reinado de Henrique II,
dinando, que já era rei da Boémia e da Hungria, e suas demais o Estado francês, personificado pelo rei, nã o estava preparado para
possessões a seu filho Felipe. A coleção de Estados dos Habsbur- desempenhar o segundo papel numa ordem Habsburgo, e perseve-
gos tornou -se, ent ão, mais obviamente o que ela tinha sido essenci- rou numa política huguenote. A França tornou -se a animadora e
almente sob Carlos: uma aliança dinástica de dimensões européias. líder de um fraca coalizão anti-hegemônica. Príncipes e cidades
Felipe II era o rei efetivo do poderoso Estado espanhol e herdou alemães protestantes e os holandeses separatistas opunham-se aos
Portugal , o que o fez o senhor legítimo de todo o ultramar europeu . desígnios dos Habsburgos para as razões religiosas, bem como ao
Mas os domínios Habsburgos na It ália e ao longo do Reno n ão desejo de estabelecer Statos independentes. Eles se coligaram com
tinham governantes independentes e residentes para transformá -los a França e com as potê ncias escandinavas e, assim, por procuração,
em Statos ; ent ão, Felipe, veemente e sem imaginação, só foi parci- também com os turcos otomanos, numa colaboração anti-hegemô-
almente capaz de granjear suas lealdades para seu Estado espanhol nica relaxada contra a domin â ncia Habsburgo e cat ólica. Os pro-
ultrapassando as barreiras dos costumes e das culturas. Em terras testantes que se juntaram a essa coalizão nã o tinham grande temor
alemãs, as trocas de populações que se seguiram ao acerto de dos turcos, de quem estavam parcialmente isolados pela coincidê n-
Augsburg consolidaram as lealdades em torno dos Estados emer - cia de que o poder Habsburgo estava concentrado no Sul e no Leste
gentes mais do que em torno do impé rio. Ferdinando uniu seus do impé rio.
domínios que n ã o estavam sob controle otomano para formar o A resistê ncia anti-hegemônica aos objetivos integracionistas
mais poderoso daqueles Estados; mas acontecimentos paralelos, dos Habsburgos no século XVI foi particularista e local , e ostensi-
alhures na Alemanha, também fizeram com que alguns Estados não vamente comprometida com a diferenciação e as independências
Habsburgos se tornassem suficientemente independentes na pr á tica m ú ltiplas. Os governantes contr á rios aos Habsburgos estavam eles
para formar alianças, primeiro uns com os outros e depois fora do próprios integrados em alguma medida por pressões estratégicas e
império. por uma rede de alian ças que juntas cobriam todo o sistema, inclu -
Se os Habsburgos tivessem sido bem -sucedidos (o que teria sive os otomanos. No entanto, enquanto as alianças davam um grau
envolvido a aceita ção realista da Reforma), a Europa poderia ter -se de coerência às políticas do campo anti -hegemônico e eram, assim,
tornado um sistema suserano, algo como os sistemas que existiam um tipo de susbstitutivo para a ordem hegemónica, não havia qual-
na Ásia à época, em vez de uma colcha de retalhos de Estados in - quer concepção grandiosa de coordenação, e a coopera ção era uma
dependentes e juridicamente iguais. A expansão da Europa teria quest ão de praticidade temporá ria. A idéia geral de um equilíbrio
continuado como começou (ver Capítulo 19), dentro de um quadro de poder estava presente, em especial nas mentes de estadistas
ú nico e ordeiro e sem o estímulo da concorrência, sem d ú vida com venezianos e ingleses; mas, naquela fase do desenvolvimento da
256 Adam Watson

sociedade européia, o desejo de equil íbrio funcionava meramente


contra os Habsburgos e proporcionava uma justificativa para a
coopera ção com os otomanos.4 Ainda não se haviam desenvolvido
regras específicas para administrar um equilíbrio geral, incluindo a
pot ê ncia mais forte. Mesmo em França, aqueles que tinham o ob-
jetivo de destruir o poderio dos Habsburgos n ã o pensavam nada
alé m de substitu í-los no topo da hierarquia. N ã o foi sen ã o no sé-
Cap ítulo 17
culo XVII que os europeus tentaram elaborar algo de novo na his -
t ória dos sistemas de Estados, as regras e as instituições de uma
sociedade internacional conscientemente anti-hegemônica. O TRATADO DE VESTFá LIA
Uma comunidade de Estados
anti - hegem ô nica

O
século XVII assistiu ao efetivo estabelecimento de uma
Europa de Estados legitimamente independentes que se
reconheciam uns aos outros como tais. Eles ainda se
sentiam como partes do todo maior que havia sido a
cristandade latina , e a intera ção entre eles era agora de tal ordem
que cada Estado, especialmente aqueles mais poderosos, sentia-se
obrigado a levar em conta as a ções dos demais. Eles reconheciam
que, uma vez que as limitações medievais haviam desaparecido ou
haviam se tornado irrelevantes, novas regras e procedimentos eram
necessá rios para regular suas relações. Nas palavras de Hedley
Buli, eles necessitavam constituir uma nova sociedade internacio-
nal. 1 A sociedade européia de Estados evoluiu a partir da luta entre
as forças que tendiam no sentido de uma ordem hegemónica e
aquelas que conseguiram levar a nova Europa na direção da extre -
midade de nosso espectro onde se situam as independê ncias.
O aspecto decisivo desse processo foi o acerto geral negociado em
Vestf ália em meados do século, depois da exaustiva Guerra dos
Trinta Anos. O acerto de Vestf ália foi a Carta de uma Europa per-
4
O conceito de um equil íbrio n ão se limitava, evidentemente, à pol í tica externa ,
mas era também uma fó rmula política para administrar facções rivais dentro de H . Bull , The Anarchical Society [A sociedade aná rquica], Londres, Macmillan e
um Estado. Nova York , Columbia University Press, 1977 , p . 13 .
258 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 259

manentemente organizada com base num princípio anti-hege- sive o uso da força e da fraude, que consolidasse um Stcito. Riche-
mônico. També m afetou o crescimento da consciê ncia nacional, lieu queria algo mais fundado em princípios, um direito e uma
que no devido momento deveria transformar as rela ções entre os razão de Estado que reconhecessem as obrigações de um gover-
Estados europeus e o papel desempenhado no ordenamento da nante para com todos aqueles comprometidos com suas posi ções.
Europa por Estados que ficavam em sua periferia. A expansão O conceito de Richelieu de raison d’État no exterior era quase
“colonial” europé ia, em terra e no mar , e a expansão consequente que a imagem invertida de sua política interna. Ele entendia que o
do sistema europeu no mundo inteiro, exigem um exame separado bem-estar do Reino de Fran ça e dos s ú ditos do rei, que ele conside-
e serão discutidas no Capítulo 19. rava como uma missã o divina do rei Lu ís, també m exigia a elimi-
na çã o das ameaças estrangeiras representadas pela capacidade da
família Habsburgo de ditar a lei na Europa , embora o poder dos
Richelieu e a aliança anti-hegemônica Habsburgos fosse legítimo e cat ólico. Do ponto de vista da pol ítica
externa, portanto, aquele devoto príncipe da Igreja Cat ólica conti-
No século XVI, a grande concepção para a Europa fora a visão nuava a pol ítica externa dos huguenotes do século anterior. Embora
hegemónica dos Habsburgos. Seus oponentes haviam sido particu - a França fosse o maior e mais populoso reino da Europa Ocidental
laristas coligados entre si para opor -se aos Habsburgos, mas sem e ocupasse uma posição geograficamente central , ainda era mais
qualquer quadro geral de uma organiza ção alternativa . Na primeira fraca do que a combina ção Habsburgo, de modo que era necessário
metade do século XVII, o Estado francês buscou outra concepção espírito pr á tico. Richelieu incentivou no Sacro Império Romano e
grandiosa, em oposição aos Habsburgos, que estavam cansados e na Espanha aqueles elementos de stasis que ele reprimia em Fran-
se enfraqueciam. A concepção era anti-hegemônica e ainda essen- ça. Por exemplo, ele descrevia a praça forte huguenote de La Ro-
cialmente negativa; atribu ía à França a liderança da coalizã o anti - chelle como um ninho de vespas, mas sustentava que os príncipes
Habsburgo, correspondente, na realidade, àquela dos espartanos na protestantes alem ães (que estavam numa rela ção semelhante com o
Guerra do Peloponeso e à do Ba chinês. Homens como o ministro impé rio) eram aliados legítimos.
de Henrique IV, Sully, contribuíram para o conceito; mas seu ar- Richelieu teve de estabelecer uma coalizão anti -hegemônica
quiteto principal foi o primeiro-ministro de Luís XIII, o cardeal ou contra-rede a partir de componentes muito diversos, nã o com
Richelieu . base na autoridade, como podia fazer o sistema Habsburgo, mas
Dentro de França, Richelieu aplicou uma pol ítica de consoli- por meio de negocia ção e persuasão pacientes. Ele aceitava a pre-
dação da autoridade real depois da stasis prolongada das guerras de missa básica das coalizões anti-hegemônicas de que qualquer alia-
religião, aplicando novamente as técnicas do Stato italiano introdu - do era aceit á vel , especialmente se esse aliado fosse lutar por ele.
zidas por Lu ís XI. Ele sustinha que para estabelecer um Estado, Em seu Testamento político , Richelieu acentuou a necessidade de
significando o governo efetivo de um reino, era necessá rio combi- negociações exteriores cont ínuas que lhe permitiam “transformar
nar o poder de concentra ção de um Stato com a autoridade reco- completamente a natureza das coisas na cristandade” e o valor
nhecida de um rei legítimo; e que, realmente, o rei deveria ser a “ incrível” do que ele diz ter entendido somente por meio da expe-
personifica ção do Estado. Seu objetivo era unificar a França sob riê ncia de suas funções. 2 Para realizar a tarefa de ativar e coorde-
um monarca absoluto e destruir qualquer oposição efetiva , espe- nar sua coalizão ele construiu o serviço diplomá tico mais bem in -
cialmente os castelos fortificados dos nobres e as guarnições de formado e mais eficaz da Europa. A pol ítica francesa també m fazia
cidades huguenotes que haviam sido concebidos para resistir ao rei. uso eficaz do dinheiro. A França proporcionava subsídios e apoio a
Essa foi a pol ítica conhecida como raison cT État . Na It á lia, ragione
di Stato significava uma justificativa para qualquer política, inclu- 2
Richelieu , Political Testament [Testamento pol ítico], Cap ítulo VI.
260 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 261

príncipes alem ã es antiimperiais, a maioria dos quais era protestan- dade de interesses e, realmente (especialmente com rela ção aos
te, aos reis protestantes da Dinamarca e da Suécia e aos Pa íses otomanos), també m de princípios e de valores. Num sentido, foi a
Baixos independentes e calvinistas. Essa política francesa incenti- extensão a todo o sistema da f órmula de Augsburg de cujus regio
vava os inimigos turcos da cristandade a assediar os Habsburgos. ejus religio .
Os franceses usaram suas próprias tropas, acrescidas de mercená rios Os Habsburgos tinham a vantagem da unicidade de propósitos,
contratados, somente como ú ltimo recurso, depois que a morte do mas mostraram-se menos flexíveis e mais comprometidos com
Rei Guerreiro da Suécia ameaçou de colapso a causa protestante na princípios. Enquanto Richelieu estava preocupado com os interes-
Alemanha. A pol ítica de subsidiar aliados para lutar foi usada no ses do Estado francês, a política dos Habsburgo baseava-se na ma-
Renascimento italiano, como antes o fora pela Assíria e pela Pér- nutenção de todos os direitos heredit á rios a eles concedidos por
sia, e mais tarde pela Inglaterra. Em outras palavras, era uma polí- Deus - que, considerados conjuntamente, colocavam-nos numa
tica , e como outras políticas , menos preocupada com a heresia do posi ção hegemónica - e na crença de que o que importava era sal-
que com a raison d ' Etat . Ele queria levantar o Estado francês da var a alma de cada um, de modo que se devia evitar quaisquer
maré baixa na qual sua sorte havia caído e libert á-lo tanto de pres- contatos com a heresia. Era quase impossível para os Habsburgos
sões hegemónicas de cima quanto da pressão da stasis , de baixo. aceitar a independê ncia de seus territ órios holandeses. Mas havia
Os huguenotes estavam num dilema . Eles eram favorá veis à bases para um acordo com os reis protestantes da Dinamarca e da
pol ítica externa de aliança com todos os protestantes contra os Su écia, e Wallenstein, o general Habsburgo político , explorou ar-
porta-estandartes dos Habsburgos da Contra-Reforma; mas seu ranjos com príncipes alemães protestantes que poderiam ter trazido
poder militar e político adquirido com dificuldade dentro de Fran- a paz ao impé rio. Ademais, uma vez que a França era o inimigo
ça, que os protegia de perseguição, também enfraquecia o Estado e principal , os Habsburgos poderiam ter ajudado os huguenotes,
a capacidade do rei de ir à guerra. Os holandeses acharam a esco- assim como os franceses ajudavam os dissidentes protestantes no
lha igualmente amarga. A alian ça francesa era indispensá vel para impé rio e nos Pa íses Baixos. Olivares, o correspondente espanhol
salvar a independ ê ncia de seu novo Estado; mas os huguenotes de Richelieu , viu essas oportunidades e os riscos da rigidez, mas
eram os heróis da luta calvinista e necessitavam da ajuda de fora, n ã o conseguiu persuadir seu rei . A Guerra dos Trinta Anos resultou
que os holandeses haviam achado t ão preciosa num est ágio anterior. numa solução anti-hegemônica que evitou a concentra çã o do pode-
A raison d ' État també m prevaleceu sobre a ideologia no caso ho- rio alem ão num ú nico Estado, mas permitiu uma concentração do
land ês, e eles pagaram o preço da alian ça francesa concordando em poderio francês.
não ajudar ou incentivar os huguenotes. Os príncipes protestantes A rejeição pelos Habsburgos de uma raison d ’État espanhola
eram mais fracos do que os cat ólicos e, portanto, acharam pr á tico significou que os interesses de Estado da Espanha fossem sacrifi-
aliar-se ao cardeal e receber positivamente vit órias otomanas, a cados a favor dos objetivos e interesses da família de Habsburgo,
despeito do que seus sú ditos pensassem . inclusive seu poder sobre a It á lia e os Países Baixos, e a favor da
Nem a praticidade anti-hegemônica de Richelieu , nem a luta Igreja Cat ólica e da noção Habsburgo de ordem na Europa como
dos príncipes alem ães dissidentes contra a autoridade do impé rio, um todo. É dif ícil dizer qu ão ú til teria sido para a Espanha a recon-
no entanto, chegaram a representar um conceito de uma nova or- quista dos Países Baixos setentrionais, ou qu ão valiosos eram os
dem européia. Mas a coalizão franco-protestante e suas ramifica - Pa íses Baixos meridionais, que a Coroa espanhola conservou , se
ções coordenaram e estruturaram as forças que se opunham à he- comparados com o sangue e o tesouro espanhóis gastos na luta.
gemonia na caótica primeira metade do século XVII, antes que Certamente a Espanha pagou o preço de uma política externa basea-
uma nova ordem geral tivesse sido negociada e posta em prá tica. da em princípios gerais em vez de em interesses nacionais. Mais
A coordenação necessariamente tinha de aceitar uma vasta diversi- sé ria ainda era a devastação da Alemanha . Lá, a intransigê ncia dos
262 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 263

Habsburgos, as ambições dos príncipes, as opera ções do exército A nova ordem de Vestfália
sueco e a pol ítica francesa e otomana de incentivar a independê ncia
e a dissid ê ncia produziram aqueles desastres dos quais os Habs- A longa luta chegou ao fim graças às complexas negociações
burgos haviam salvo a Espanha e dos quais a política interna dos paralelas conhecidas como o Acordo de Vestfália , de 1648. Embora
Bourbons havia resgatado a França. tenha sido um acerto negociado, mais que uma imposi ção, em
O sistema da Europa setentrional ao redor do Mar Bá ltico grande medida consistiu no registro das conquistas dos vencedores.
ainda era uma rede separada de pressões no in ício do século XVII. O veredito bem conhecido de Dame4 Veronica Wedgwood de que
O sistema era dominado por dois Estados itinerantes rivais que se “a paz foi totalmente ineficaz para a solu ção dos problemas da
haviam forjado na expansão da cristandade latina, os reinos da Europa” refere-se à reorganização do mapa e às reivindicações dos
Suécia e da Polônia-Litu â nia, que freqiientemente estavam em príncipes.5 N ão obstante, as negociações de Vestf ália representa-
conflito um com o outro, bem como com seus vizinhos orientais. ram na pr á tica algo de novo e de significativo: o primeiro congres-
A Suécia se havia tornado um Estado nacional homogéneo e tam- so geral das verdadeiras potê ncias da Europa . Os eleitores e todos
bé m controlava alguns territórios n ão suecos a ela subordinados em os príncipes e cidades imperiais do Sacro Impé rio Romano que
torno ao Mar Bá ltico. O reino da Polónia havia aumentado seu eram capazes de conduzir uma pol ítica externa independente foram
poder e influê ncia por meio de uma união dinástica com a Lituâ nia separadamente representados nas negociações.
e da expansão para o Oriente e havia se transformado no principal O Acordo de Vestf ália legitimou uma comunidade de Estados
baluarte da cristandade latina nas regiões de fronteira duvidosa do soberanos. Marcou o triunfo do Stato , detentor do controle de seus
Leste. No entanto, a população heterogénea, a estrutura governa- assuntos internos e independente em termos externos. Essa era a
mental dual da Polônia-Litu â nia e a prá tica da monarquia eletiva aspiração dos príncipes em geral - e especialmente dos pr íncipes
evitaram que o reino se consolidasse num Stato efetivo. alemães, tanto os protestantes quanto os cat ólicos, com rela ção ao
A Guerra dos Trinta Anos envolveu as potê ncias escandinavas impé rio. Os tratados de Vestf ália lançaram muitas das regras e
na Europa Central, e os estadistas franceses viram a vantagem de muitos dos princípios pol íticos da nova sociedade de Estados e
colaborar tanto com a Su écia quanto com a Polónia, que geografi- proporcionaram provas do assentimento geral dos príncipes a esses
camente estavam do lado oposto ao dos Habsburgos. Os sistemas princípios e regras. O acerto foi realizado para prover um estatuto
europeus ocidental e setentrional fundiram-se. Os suecos entende- básico e abrangente para toda a Europa. Os acordos de Vestf ália
ram mais claramente do que os Estados ocidentais que “todas as també m foram a origem de algumas idéias gerais que t ê m ecoado
guerras individuais da Europa haviam se tornado uma guerra uni- em acertos subsequentes e nos congressos permanentes da Liga das
versal”,3 e as armas e a diplomacia sueca desempenharam papel Nações e das Nações Unidas, assim como a condenaçã o medieval
ativo na formação da Europa do século XVII. A contribuição mais dos males da guerra e a necessidade de uma nova e melhor ordem.
importante, e irónica, da Polônia-Lituânia foi a polonização e oci- É evidente, entretanto, que muitas coisas às quais a arte européia
dentalização da Rú ssia, que estava destinada a conquistar a Polónia do Estado posteriormente atribuiu import â ncia ainda n ão tinham
e a tornar-se uma das principais potências européias e mundiais sido atingidas. Um equilíbrio de poder, que era necessá rio para
(ver Capítulo 19). manter as condições em que regras e instituições n ão hegemónicas
4
Dame , t ítulo concedido pelo soberano do Reino Unido a mulheres, correspon -
dente ao t ítulo de Sir , quando honor ífico e n ão heredit á rio, que é concedido a
3
Carta do rei Gustavo Adolfo da Su écia a Oxenstierna, em Ia de abril de 1628. homens. (N. do T.)
Ver també m G. Parker, Europe in Crisis [A Europa em crise], Londres, Fonta- 5
C. V. Wedgwood , The Thirty Years War [A Guerra dos Trinta Anos], Londres,
na, 1974, p. 14. Methuen , 1981, p. 525.
264 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 265

pudessem operar, e que era, portanto, essencial ao conceito, não foi eram acerbamente discutidas. No entanto, embora não juridica-
efetivamente estabelecido. O papel indispensá vel que os Habsbur - mente iguais, as duas primeiras categorias de Estados reconheciam,
gos austríacos iriam desempenhar nos próximos dois séculos, na na prá tica, as independê ncias m ú tuas e lidavam uma com a outra
manutençã o do equilíbrio que eles haviam combatido anterior- em plano de igualdade. Essa havia sido a pr á tica entre os membros
mente, n ã o foi previsto; e os vencedores menores ainda n ã o haviam da aliança anti-hegemônica vitoriosa, e é característica dessas ali-
desenvolvido a máxima de que o grande inimigo de ontem seria o anças; e, nos termos dos acordos de Vestf á lia, tornou-se uma regra
aliado de amanh ã. costumeira na Europa . Ademais, os reis e os príncipes da Europa,
Os domínios medievais e os Statos renascentistas da cristan- cuja posição dependia de direito hereditá rio, e portanto da genealo-
dade agora haviam se transformado numa hierarquia de Estados gia, eram amplamente emparentados uns com os outros pelo san-
constituídos , que podemos dividir em três classes. Alguns sobera- gue e por casamentos. Os soberanos europeus podiam diferir muito
nos, tendo à sua frente o imperador e os reis de França e da Espa- em termos de poder e de precedê ncia, mas eram real ou potencial-
nha, eram reconhecidos universalmente como independentes, tanto mente membros da mesma grande família.
de direito quanto de fato. Sua situa çã o não foi afetada pelos acor - Assim, a Ordem de Vestf ália , negociada pelos governantes so-
dos de Vestf ália. A segunda categoria era composta de Estados beranos, legitimou uma colcha de retalhos de independências na
independentes na pr á tica, mas não completamente em termos da Europa. As fronteiras que separavam os Estados daqueles sobera-
teoria jurídica. Os membros mais significativos dessa categoria nos eram claramente desenhadas, com uma linha grossa ; e o que
eram os príncipes laicos do impé rio. Os eleitores de Statos podero- acontecesse dentro daquela linha era da competência exclusiva
sos, como a Baviera , a Saxônia e Brandenburgo, que, junto com daquele Estado. A soberania, sobretudo quando aplicada aos prin-
três bispos, elegiam o imperador, ao fim da guerra eram indepen - cipados do império, legitimava a extensão do conceito de cujus
dentes em todos os aspectos, exceto no nome. Mais de uma centena regio ejus religio; a ruptura da igreja universal agora se refletia na
de príncipes menores e cerca de cinquenta cidades imperiais livres ruptura da estrutura laica da Europa . Em sua ê nfase no cará ter se-
també m haviam adquirido considerá vel liberdade de a çã o. Nos parado dos Estados europeus, em vez de na unidade da cristandade,
termos dos acertos, ainda não era nominalmente permitido aos e em sua rejeição de qualquer idéia de que um papa ou imperador
príncipes e governos de cidades alem ães irem à guerra sem o con - tivesse alguma autoridade universal , ou de que um Estado domi-
sentimento do impé rio. No entanto, era-lhes formalmente permiti- nante pudesse ditar a lei para os outros, os acordos de Vestf ália
do fazer alianças com Estados fora do impé rio. Eles eram, assim, foram anti-hegemônicos. Em todas essas questões, o acerto refletiu
reconhecidos como componentes independentes do sistema de as visões de seus arquitetos, a França, a Suécia e a Holanda, que
Estados e participantes móveis das instituições da nova sociedade eram potências protestantes ou seguiam uma política chamada de
internacional de príncipes. A terceira categoria era composta de protestante. A Ordem de Vestf ália foi imposta pelos vencedores
Estados constitu ídos separadamente , com suas próprias leis e ins- sobre os vencidos; e os objetivos da coalizã o vencedora tornaram-
tituições, mas dependentes. Esses eram os Pa íses Baixos meridio- se o direito p ú blico da Europa. Os Habsburgos foram obrigados a
nais Habsburgos e vá rios Estados na It ália e em torno ao Mar abandonar seus objetivos hegemónicos. O papa, compreensivel-
Bá ltico, e também as colónias européias no Novo Mundo. Alguns mente , denunciou o acordo como invá lido e risível .
desses Estados podiam aspirar a conseguir sua independ ê ncia no Os otomanos, cujas armas em muito ajudaram a tornar possí-
devido tempo, como haviam feito os Estados alemães. vel o acerto, n ão tomaram parte no mesmo. Eles queriam enfraque-
Os Estados independentes obviamente não tinham poder igual, cer seus inimigos Habsburgos, mas não pensavam em termos de
e neles ainda se pensava como classificados numa hierarquia, em uma ordem anti-hegemônica para a Europa crist ã, e nada em sua
que quest ões tais como a precedência entre seus representantes política correspondia ao objetivo persa de estabelecer uma “paz do
266 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 267

rei”. A fraqueza dos Habsburgos parecia-lhes uma oportunidade. dorf , també m a servi ço da Su écia, estava mais preocupado em fun -
Cerca de quarenta anos mais tarde, os turcos sitiaram Viena. damentar o direito internacional em direitos naturais universais.
Os soberanos da Europa j á não estavam comprometidos pelas Ele queria que a guerra fosse legal somente para corrigir infra ções
leis universais que se havia suposto regulassem a conduta de go- ao direito natural. O direito internacional do século XVII foi, na
vernantes laicos na cristandade medieval. Suas relações estavam realidade, um substituto do direito universal . Sua base era o princí-
perigosamente próximas da extremidade an á rquica do espectro. pio da soberania independente heredit á ria . Era essencialmente re-
Para poder funcionar, eles n ão necessitavam simplesmente de gulat ório e n ão controlava as rela ções entre soberanos, mas as fa-
acerto territorial e jurídico que estabelecesse uma sociedade anti- cilitava. O conte ú do é tico que esse direito internacional possu ía
hegemônica, mas també m de novas regras e instituições em subs- refletia , como sempre ocorre nesses casos, a tradição cultural co-
tituiçã o às antigas. As regras e as instituições em sua forma desen- mum da Europa, derivada da cristandade latina e da heran ça cl ássi-
volvida do século XVIII serã o discutidas no próximo capítulo. ca e bíblica, conforme percebida pelos vencedores da ú ltima gran-
É necessá rio mencionar aqui uma nova instituição. O século de luta.
XVII concebeu um novo conceito de direito internacional , como
um conjunto de regras concebidas por e para príncipes soberanos
para regular seus negócios uns com os outros. Os Statos da Europa A hegemonia de Lu ís XIV
governados por príncipes já haviam começado a desenvolver esses
arranjos e prá ticas, baseados no sentido prático. A tarefa de for- O acerto de Vestf á lia marcou o fracasso do conceito Habsbur-
mular e codificar as prá ticas existentes num corpo de direito inter - go de hegemonia, e a derrota final da Espanha pela França, onze
nacional foi assumida principalmente pelos Estados protestantes da anos mais tarde, pareceu confirmar que a ordem hegemónica na
coalizão anti-hegemônica, especialmente os Pa íses Baixos. Alguns Europa era um sonho, ou um pesadelo. Houve um daqueles breves
pensadores cat ólicos consideravam o direito internacional uma períodos de esperança e regozijo geral , porque parecia, como disse-
“ciê ncia protestante”. A codificação foi, como n ão poderia ter dei- ra Xenofonte sobre a derrota dos atenienses hegemónicos, que toda
xado de ser, trabalho de advogados-diplomatas, homens que com- a Europa seria livre. No entanto, a visão e a pr á tica hegemónicas,
binavam a experiê ncia da negocia ção e da prá tica internacionais t ão logo abandonadas pelos Habsburgos espanhóis e austríacos,
com um treinamento e uma mentalidade jurídicos. O mais emi- retornaram na pessoa do maior dos reis de Fran ça, Lu ís XIV , que
nente deles foi Hugo Grotius, o autor holandês do monumental De reinou efetivamente de 1661 a 1714. Pessoalmente, Lu ís era um
Jure Belli ac Pads [Leis da Guerra e da Paz], que, depois de repre- Habsburgo francês, e foi muito influenciado por sua m ã e Habsbur-
sentar os Países Baixos em negocia ções com Richelieu , serviu onze go, Ana d ’Áustria . Ele apoiava causas cat ólicas. O estilo de sua
anos como diplomata sueco, mas morreu antes dos acordos de corte, embora animado pelo gê nio francês, refletia aquele da Espa-
Vestf á lia. Grotius queria a ordem, mais que a anarquia maquiavéli- nha dos Habsburgos. O desmantelamento do poder espanhol e aus-
ca, nas relações entre Estados, mas uma ordem que não dependesse tríaco permitiu à França, agora novamente o reino mais forte, mais
de uma pot ê ncia hegemónica. Seu objetivo era criar um corpo de populoso e talvez o mais bem administrado da Europa , reafirmar-
regras amplamente derivado do fiat divino, ou das tradições anti- se. Lu ís encontrou -se na situa çã o de agir de maneira hegemónica
gas, mas agora legitimado pelo consentimento explícito: regras na nova ordem, como haviam feito os espartanos depois da Guerra
aceit áveis para Deus e para os príncipes, descrevendo as prá ticas do Peloponeso.
reais e sugerindo como poderiam ser tornadas mais racionais e Os planos hegemónicos de Lu ís combinavam aspira ções tradi-
mais conducentes à ordem e à paz. Enquanto Grotius combinava o cionais Habsburgos e francesas. Dentro do padr ão Habsburgo, no
regulatório com o ético, um alemão mais teórico, Samuel Pufen- começo de seu reino efetivo, ele se casou com a filha do rei Habs-
268 Adam Watson A evolu çã o da sociedade internacional 269

burgo da Espanha , e um de seus principais objetivos ulteriores foi o XIV tivesse sido estabelecida de maneira mais permanente, outras
de estabelecer seu neto no trono da Espanha, e assim substituir o formas de padronização, assim como uma pax gallica, teriam sem
eixo austro-espanhol de hegemonia Habsburgo por um eixo franco- d ú vida prevalecido també m. Mas a ordem francesa de Lu ís era
espanhol semelhante. O Sacro Impé rio Romano havia sido desinte- contrá ria aos objetivos anti-hegemônicos de Sully e Richelieu , e ao
grado pela Guerra dos Trinta Anos e pelo Acordo de Vestf á lia, espírito de Vestf ália. O Rei Sol , Lu ís XIV, encarnava o Estado e a
transformando-se num mosaico de principados ligados por alianças nação, e sua apoteose o representava como uma figura divinamente
din ásticas ou de outras naturezas a vá rias pot ê ncias. Lu ís assumiu a designada ante a qual todos os demais governantes se deveriam
política Habsburgo de centrar em si mesmo a lealdade de tantos inclinar. Quando a princesa Sofia, a mãe do futuro Jorge I da In -
príncipes e cidades do impé rio quanto possível. A fim de fazê-lo, glaterra, visitou formalmente Versalhes, a rainha de Lu ís ofereceu
ele decidiu adquirir outra fonte principal de autoridade Habsburgo, a Sofia a bainha de seu vestido para que a beijasse.
a posição de Sacro Imperador Romano, para si ou, como o meio- O comprometimento da Europa para com as independ ê ncias
termo que conseguiu , para um príncipe cliente alemão. Continuan - m ú ltiplas era t ão forte, e t ã o legitimado e reforçado pelo Acordo de
do a tradi ção francesa, ele queria projetar o governo francês direto Vestf ália, que os planos de Luís receberam inevitavelmente a opo-
(que envolvia uma medida de autonomia local) até o Reno, inclu - siçã o de outra coalizã o anti-hegemônica. Os Países Baixos desem-
indo os Países Baixos. Alé m de uma França aumentada e fora da penharam no sistema europeu o papel dos coríntios na Grécia Cl ás-
á rea de seu domínio, Luís pôde exercer uma hegemonia sobre a sica. O poder dos holandeses era económico, mais que militar, e
totalidade da cristandade, em grande parte mediante subsídios fi - eles eram anti-hegemônicos por princípio. Diante da nova ameaça
nanceiros. Os bastiões exteriores da estrutura hegemónica de Lu ís de seu antigo aliado, eles estavam, pois, dispostos a aliar -se ao
XIV eram a Inglaterra e a Escócia , governadas por seus primos- inimigo de ontem, derrotado, os Habsburgos, assim como a qual-
irmãos Carlos II e James II, e os velhos aliados de Fran ça, a Su écia quer outro membro da coalizão de Richelieu que pudessem con -
e a Polônia-Litu â nia . Seus coligados otomanos eram totalmente vencer do perigo. Em 1688, o cliente de Lu ís, o rei James II, foi
independentes e estavam fora de seu desenho-mestre, mas eram expulso da Gr ã-Bretanha e substituído por seu genro, Guilherme de
ú teis como uma limita ção permanente do poder dos Habsburgos Orange, o governante de fato dos Países Baixos, e pelo partido
austríacos. No entanto, Luís també m era o herdeiro de Vestf á lia , anti -hegemônico Whig . Depois disso, as duas potê ncias marítimas
tendo trabalhado para estabelecer sua ordem hegemónica onde protestantes assumiram a liderança da organização e do financia-
fosse possível , dentro de seu quadro. Ele herdou a m á quina diplo- mento da coalizão anti-hegemônica, que veio a incluir o papado.
má tica de Richelieu , refor çou o exé rcito mais temível da Europa e As pot ências marítimas também negociaram uma paz entre o impé-
estabeleceu um sólido lastro de recursos financeiros. Com esses rio e os otomanos de modo que o poder dos Habsburgospudesse ser
instrumentos, ele e seus competentes ministros trabalharam para usado de maneira mais eficaz para conter a França.
manter seu desenho-mestre bem elaborado e dirigido à construção Ao longo do século, a raison d’État substituiu a religião como
de uma Europa una e, induzir a parte separada a funcionar como o princípio determinante das alianças entre príncipes europeus. As
ele quisesse, por meio da técnica de Richelieu de negocia ção con- estruturas das alianças tornaram-se seculares. Assim como os
t ínua, subsídios e suborno, de um lado, mas també m pela intimida - Habsburgos e seus coligados e a coalizão franco-protestante tinham
ção e pela guerra , de outro. organizado entre si, e entre si canalizado as pressões do poder na
Essa era uma ordem francesa para a Europa , mais sistem á tica Europa na primeira metade do século, também a rede de alianças
e menos opressiva do que a austro-espanhola . As idéias e prá ticas clientes de Lu ís e a coalizão anti-hegemônica organizaram aquelas
francesas, especialmente a língua francesa, tornaram -se o modelo pressões, uma contra a outra, na segunda metade.
para a maior parte da Europa; e se a ordem hegemónica de Lu ís
270 Adam Watson
A evolu çã o da sociedade internacional 271

Aqueles que se opunham às pretensões de Lu ís na Europa nã o


prata da índias ajudava o lado hegemónico. Luís, no entanto, não
sustentavam que a França fosse incivilizada ou tir â nica. Eles reco-
herdou a divisã o ordenada da expansã o ultramarina européia entre
nheciam a preeminê ncia francesa na civiliza ção e nas artes, entre
as potê ncias ibéricas, nem fez evoluir um desenho-mestre francês
as quais muitos inclu íam as artes da guerra e do governo. Luís
para o ultramar. Embora os franceses tivessem suas próprias em-
pessoalmente era merecedor de grande respeito. A acusa çã o contra
preitadas coloniais, os holandeses e os ingleses garantiam para si a
ele era a mesma que fora feita contra os igualmente civilizados
maior parte do volume do comércio com a Ásia. Os holandeses
atenienses: de que tinham como objetivo estabelecer uma tirania
formularam um novo e disputado regime anti-hegemônico para o
sobre toda a Hélade; e contra os venezianos no Renascimento: de
comé rcio, para a colonização e para outras atividades fora da Eu -
que estavam se tornando os signori di tutta Italia.6 ropa. Eles levaram ao Oceano índico o princípio de nã o existirem
Finalmente, após uma luta prolongada e bastante destrutiva, o monopólios, da porta aberta e da liberdade dos mares, que eram
poder de Luís foi reduzido ao ponto em que n ão podia exercer he- idéias holandesas sobre como administrar as relações entre Estados
gemonia, embora seu neto tenha sido entronizado rei da Espanha.
na Europa. Aqueles princípios, no momento azado, foram adotados
Os Habsburgos, que estavam amargurados com a quest ão da suces- pela Gr ã-Bretanha e pelos Estados Unidos da Amé rica.
são espanhola, e alguns Estados també m queriam continuar a guer-
ra; mas o recentemente estabelecido Reino Unido da Grã-Bretanha
a isso se opôs. A tradição Tory1 e Stuart de ligação com a França Estado e nação
ainda era forte, e ingleses cuidadosos não queriam destruir a França.
Eles também tinham um desenho-mestre para a Europa. Queriam Por volta do começo do século XVII, a maior parte da Europa
uma ordem que fosse livre de hegemonias, mas baseada num equi- Ocidental e setentrional havia sido transformada em Estados por
líbrio de poder mais do que numa coalizão vitoriosa. Eles viam seus governantes. 0 governante era soberano, não devendo fideli-
uma França reduzida como um peso necessá rio e importante no dade a ninguém; todos os seus sú ditos deviam -lhe uma lealdade e
constante e móvel equilíbrio, de uma maneira pela qual os vitorio- obediê ncia pessoais. A nobreza, o clero, certas cidades e outras
sos de Vestf ália n ão haviam visto uma Áustria reduzida. O acerto entidades ainda tinham direitos e privil égios internos que lhes per-
resultante, o Tratado de Utrecht , discutido no capítulo a seguir, mitiam participar do governo interno, de acordo com seu nível
estabeleceu as bases do século XVIII. hierá rquico ou com estatutos específicos, e alguns Estados tinham
Embora a França tenha sido o foco estrat égico e cultural da parlamentos ou assembléias; mas o governante soberano negava a
Europa, a Inglaterra e a Flolanda tornaram-se os centros dos conhe- qualquer sú dito o direito de lidar separadamente com potências
cimentos cient íficos, técnicos, bancá rios, industriais e marítimos, estrangeiras, e seus súditos, em sua maioria, apoiavam aquele di-
t ão inovadores e t ão mutuamente capazes de reforço como que para reito. Assim, a segurança do Estado podia ser assegurada; e a segu -
representar algo completamente novo no mundo. Essa dimensão rança do Estado significava a segurança de seus habitantes. Muitos
extraordiná ria não foi uma realiza ção do poder concentrado do que se horrorizavam diante do sofrimento e da destruição causados
Estado moná rquico, mas de uma classe média culta e independen - pelas lutas religiosas sentiam que a obediê ncia, mesmo a um mau
te. As potências marítimas agora també m assumiam a liderança na governante, oferecia mais segurança do que o recurso às armas.
expansão ultramarina e na coloniza ção. Durante a tentativa Habs- O Estado era compreendido no que Hobbes chamou a pele de um
burgo de hegemonia, a Espanha hauria forças do Novo Mundo: a leviat ã, e internamente cada leviat ã era politicamente independente
dos demais.
6
Senhores de toda a It á lia. ( N. do T.) O conceito de nações distintas ou de povos dentro da cristan-
7
Partido pol ítico britâ nico histó rico. ( N. do T.) dade, baseado na língua e na cultura comuns, existia na Idade Mé-
A evolu çã o da sociedade internacional 273
272 Adam Watson

dia. Ser espanhol, francês, inglês, alemão ou italiano tinha um signi- na ção permaneceriam até o século XIX como dois conceitos sepa-
ficado étnico que transcendia à fidelidade política. Agora, as po- rados concorrendo pelas lealdades de alemães e italianos.
pulações contidas nos leviat ãs da Europa Ocidental e setentrional O contraste entre as nações substanciais que estavam se for-
mando no Ocidente, onde as unidades administrativas e étnicas
desenvolviam uma lealdade primordial para com o Estado e entre
si. Ser membro de um mesmo corpo reforçava politicamente o coincidiam em termos gerais, e os fragmentos em que a Alemanha
e a It á lia estavam divididas, acentuaram a diferença, que muito
antigo conceito da na çã o e dava-lhe um novo significado. A orga-
durou , entre a Europa Ocidental e a Europa Central. Essa diferença
nização vertical e a consciência nacional das popula ções da metade
tornou -se maior no século XVII. A classe média , que no Ocidente
ocidental da cristandade latina, que haviam se desenvolvido lenta-
mente ao longo de séculos, desde o tempo de Joana d’Arc, estavam figurava entre os partid ários mais leais dos Estados nacionais, na
completas para efeitos práticos. Em nenhum lugar da Europa Oci- Europa Central tornou-se crescentemente desvinculada de seus
dental havia uma noção de nacionalidade mais forte do que na príncipes locais e especialmente de suas negociações e de suas
Espanha , que assim contrastava com os demais domínios dos guerras com outros príncipes.
Habsburgos. As novas nacionalidades de Estado - com exceções
hist óricas como os catal ãos, os huguenotes e os irlandeses de fala
gaélica - normalmente se cristalizaram em torno de uma dinastia e A periferia e o centro
nos territ órios sobre os quais aquela dinastia era soberana. Mas um Que características e capacidades permitiam que um Estado
Estado não tinha de ser mon á rquico, e certamente sua população
tentasse a hegemonia no sistema europeu ? Em sistemas anteriores,
nã o tinha de ser leal a um governante individual inaceit ável, para
comunidades das áreas periféricas ou das cercanias imediatas de
que um sentido de nacionalidade se reforçasse. As lutas dos calvi-
uma á rea de civilização, tais como a Assíria, a Macedonia, os mau-
nistas contra os Habsburgos nos Pa íses Baixos e contra os Stuarts
rianos, a China e Roma, eram obrigados, pelo contato constante e
na Escócia e na Inglaterra tinham um sabor republicano; mas onde
pelas lutas com vizinhos estrangeiros, a desenvolver uma maior
eles tiveram sucesso, reforçaram a pele do leviat ã e o conceito de
capacidade militar e uma estrutura administrativa mais firme do
nacionalidade na Europa Ocidental e setentrional. que as das comunidades mais civilizadas, refinadas e conscientes
Na parte oriental da cristandade, que agora podemos chamar
de tradições da regi ã o central relativamente protegida, assim como
de Europa Central, a noçã o de nacionalidade desenvolveu -se de
uma maior disposição para inovar e para aprender da experiência.
maneira muito diferente. A dissemina ção da educação, o desenvol- Em todos aqueles casos, um Estado itinerante mais vigoroso e
vimento da imprensa e o uso crescente dos vernáculos em lugar do competente conseguia estabelecer uma hegemonia sobre o sistema
latim, tudo isso tendia a reforçar uma consciência nacional lingu ís - e um dom ínio sobre grande parte dele. Na Europa, o papel dos
tica. Não obstante, tanto na It ália quanto na Alemanha , o desenvol-
Estados perif éricos també m foi significativo. A situa ção era mais
vimento do Stato levou à forma çã o de unidades políticas que nor - complexa e os resultados foram diferentes, mas n ã o t ão diferentes
malmente tinham uma tradi ção local , mas eram demasiado quanto se diz às vezes.
pequenas para compreender uma parte decisiva da nação medieval.
Na Alemanha , a instituiçã o do “Sacro Impé rio Romano da Nação
As três direções do impulso centrífugo da cristandade medie -
val haviam sido na Ibé ria , no Levante e em torno do Mar Báltico-.
Alemã” havia parecido, a Bertoldo de Mogú ncia e a outros, ser
capaz de evoluir para um Estado-nação alemão. No entanto, os
No século XVI, o mais poderoso e determinado dos Estados itine -
rantes, forjado na expansão cruzada, era a Espanha. A Espanha e o
efeitos divisivos do protestantismo e o car á ter multiétnico dos do-
Estado de Portugal, condicionado de maneira semelhante, porém
mínios governados pelas dinastias mais poderosas, os Habsburgos
mais marítimo, concordaram em compartilhar a continuação da
e mais tarde os prussianos Hohenzollern, asseguraram que Estado e
274 Adam Watson
A evolução da sociedade internacional 275

reconquista expandindo-se no ultramar; e ambos extraíram consi-


periferia, mas do centro. Essas tentativas quase deram certo. Real-
der á vel poder, riqueza e experiê ncia de suas realizações coloniais.
mente, Napoleão o conseguiu no continente europeu , e sua ordem
Os Habsburgos usavam esses recursos itinerantes tradicionais,
inclusive a “riqueza das índias” e a inigualada infantaria espanhola , imperial só foi quebrada pelas duas potê ncias mais perif éricas da
em sua tentativa de hegemonia na Europa. No entanto, o prolongado Europa, a Gr ã -Bretanha e a R ússia. Embora a França, com seu
acesso ao oceano Atlâ ntico, tenha podido realizar operações signi-
esforço hegemónico, junto com o desenvolvimento continuado dos
impé rios ultramarinos, revelou -se demasiado para os Estados ibé ri - í ficativas no ultramar, os seus oponentes anti-hegemônicos obtive-
ram um equilíbrio líquido substancial de forças proveniente de
cos. Os domínios Habsburgos no alto Dan ú bio també m eram um
Estado fronteiri ço. Os nomes Ostmark , Steiermark , Krain (periferia dentro da Europa. O mesmo ocorreu nas duas guerras do século
oriental, periferia estíria e fronteira) indicam o cará ter de fronteira XX contra a Alemanha. Nesses grandes confrontos militares, a
daquelas províncias. Com a Hungria , elas formavam a barreira da periferia revelou -se mais forte do que o centro.
Europa contra o Impé rio Turco Otomano, poderoso e guerreiro, ele
próprio um Estado itinerante de um Isl ã em expansão que havia
expulsado os latinos do Levante e agora os perseguia para o norte,
. Algumas consequências dos acordos de Vestfá lia
no Dan ú bio, na direção do centro da Europa. Os métodos espa-
O século XVII foi decisivo para a sociedade européia de Esta-
nh óis e austríacos pareciam duros aos italianos e holandeses, mais
dos. As grandes linhas daquela sociedade desenvolveram-se a par -
civilizados, sobre os quais os Habsburgos reinavam, e també m para
tir dos esforços de Richelieu , bem como dos holandeses e suecos,
o resto da Europa .
Por que, ent ão, a combina ção dessas duas tradi ções itinerantes, para forjar os elementos d íspares na Europa crist ã que se opunham
juntamente com os outros recursos controlados pelos Habsburgos, aos Habsburgos num campo anti-hegemônico coordenado. O diá -
era insuficiente para estabelecer uma hegemonia durá vel sobre a r logo diplomá tico e estratégico cont ínuo que coordenava a coalizão
sociedade européia de Estados que surgia ? Podemos discernir duas em tempo de guerra inclu ía os otomanos; mas tornou-se muito
razões principais. Em primeiro lugar, durante todo o período da mais íntimo entre os príncipes e as cidades crist ãos, que comparti-
tentativa hegemónica Habsgurgo, a pressão otomana ao norte do lhavam uma visã o cultural e enfrentavam problemas semelhantes.
Dan ú bio e no Mediterrâ neo foi demasiado forte para permitir aos Todos os membros crist ãos da coalizão, grandes e pequenos, che -
Habsburgos total liberdade na Europa. Os Estados itinerantes que gando at é aos príncipes menores do impé rio, tratavam -se uns aos
se fizeram senhores de outras civiliza ções nã o tinham um poder outros com base numa igualdade de fato, porque tinham de ser
que se comparasse ao dos otomanos que os ameaçavam na reta- persuadidos, e nã o obrigados a cooperar. Do mesmo modo, novas
guarda . Em segundo lugar, a coloniza ção do Novo Mundo exércia formas de jurisprud ência internacional desenvolveram-se no campo
maior demanda em termos de mão-de-obra e de outros recursos anti-hegemônico. Essas pr á ticas de tempo de guerra foram estabe-
sobre a Espanha e proporcionava ao Estado menos força l íquida do lecidas pelos acordos de Vestf ália como as regras da nova comuni-
que então se supunha. Em terceiro lugar, havia o grande e duradou- dade da Europa. As regras evolu íram , então, por meio de uma prá-
ro poder de França, o centro geográfico e cultural da Europa Oci- tica ad hoc , para a legitimidade constitutiva da sociedade européia
dental. de Estados.
A França conseguiu restabelecer-se, no século XVII, como o A hegemonia, no entanto, não ficava parada por muito tempo.
Estado mais poderoso do sistema europeu. As tentativas de Lu ís • Como o Acordo de Vestf ália foi formulado pelo campo anti-
XIV e de Napoleã o de estabelecer uma ordem hegemónica france- hegem ônico, ele estabeleceu a legitimidade da sociedade européia
sa como a base da sociedade européia de Estados não surgiram da consideravelmente mais para a frente no espectro - na direção das

independências m últiplas mais do que a distribuição do poder na
276 Adam Watson

Europa e a propensão para a hegemonia no sistema podiam garan -


! A evolução da sociedade internacional
277

tir. Logo abriu-se um vazio entre as premissas e a prá tica da nova dade internacional, formada a partir da fragmenta
e sua presença no congresso permanente ção de impérios,
comunidade, entre o “é” e o “deve”. A nova hegemonia Bourbon- das Nações Unidas, evo-
Habsburgo de Luís XIV veio a preencher aquele vazio. Assim, a luiu a partir do Acordo de Vestf ália e guarda
lhança hereditária. com ele uma seme-
hegemonia continuou a ser um traço integrante e constitutivo da
prática do sistema europeu de Estados, a despeito da legitimidade
anti-hegemônica estabelecida por ocasião dos acertos de Vestf ália.
Pois, como aconteceu tantas vezes antes, e depois, o líder da coali-
-
zão anti-hegem ônica tornou se a nova potência hegemónica e in-
corporou à sua estrutura hegemónica muito da maquinaria e muitos
dos Estados da coalizão vitoriosa, junto com a prática hegemónica
de seu predecessor. O pêndulo da pr ática européia balançou de
volta à posição de Vestf ália, mas somente até uma parte do percurso.
Entre os traços significativos da nova sociedade para o futuro,
figurava a soberania independente dos príncipes e das cidades do
império. Muitas cidades e governantes alem ães e italianos tinham,
havia bastante tempo, adquirido graus vari áveis de liberdade de
a çã o e mantinham rela ções e alianças com outros Estados euro-
peus. O Acordo de Vestfália legitimou e padronizou a prática. Mais
de uma centena de pequenos principados, alguns dos quais não
eram constitu ídos por mais que a propriedade territorial pessoal de
uma família nobre, foi convidada à mesa de negociações e adquiriu
uma qualidade sacrossanta de soberania, enquanto permanecia
nominalmente como parte do império. A nova ordem permitiu que
cada Estado tomasse, na sociedade internacional mais ampla da
Europa , o lugar que sua força e posição geográfica tornassem pos-
sível. Todos eles participavam independentemente do diá logo di -
plomático, n ã o meramente dentro de uma das redes de alianças que
competiam entre si e que haviam organizado o longo conflito mi -
litar, mas desde então capazes de passar de um lado para o outro.
Alguns dos Estados menores baseavam suas rela ções com outros
Estados, nos termos do estatuto de Vestf ália, em questões de prin-
cípio, religiosas, din ásticas e outras; alguns eram anti-hegemô-
nicos, determinados a conservar sua liberdade soberana livre de
controle imperial ou de outra natureza; e alguns aplicavam uma
política que seus críticos chamavam de “ meretrício”, fazendo con-
tratos com quem fizesse a melhor oferta. O conceito de indepen-
dência para tal multidão de pequenos Estados em nossa atual socie-

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