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Marsilio de Pádua 89

nenhum deles. Isto só por si nos explicará o sucesso


alcançado por este grandioso sistema de ideias não só
no seu tempo como nos séculos que se seguiram até
aos nossos dias (i).

MARSÍLIO DE PÁDUA

§ 15. Depois de S. Tomás (f 1274), o complexo


de ideias do mundo escolástico, que atingira com ele
o ponto culminante e o seu máximo de sistematização,
volta, a desagregar-se. Os séculos xiv e xv represen­
tam um período de decadência. Os diversos momentos
antagónicos, que a síntese tomista procurara conciliar,
libertam-se e dão origem a outras tantas tendências e
directrizes cada vez mais independentes, através de
cujas lutas se sente já como que 0 alvorecer do mundo

(1) Este grande sistema filosófico, a cuja pervivência


para além da Idade-Média teremos ainda ocasião de nos refe­
rir várias vezes, acha-se hoje renovado dentro do panorama
do pensamento católico contemporâneo, de base escolástica,
tendo sido perto de nós objecto de uma adesão oficial por
parte da Igreja católica na Encíclica AeterniPatris de Leão XIII,
em 1879. S. Tomás tornou-se deste modo, hoje, o filósofo ofi­
cialmente recomendado e mais autorizado do Catolicismo,
embora as suas doutrinas puramente racionais nada tenham
de dogmático e obrigatório para os crentes — facto que, infe­
lizmente, nem sempre é tomado na devida conta por muitos
deles quando fazem filosofia. Em Portugal, nomeadamente,
há um tomismo, espécie de fides implícita, que parece ser a
única filosofia católica admissível como natural prolongamento
da crença religiosa. É-se tomista sem se saber bem porquê,
como do lado anti-católico quase sempre se é materialista e
positivista, também sem se saber bem porquê.

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Filosofia do Direito e do Estado
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moderno. A mística (Eckhart); o amor da natureza


e o experimentalismo (Rogério Bacon); bem como
um mais forte voluntarismo em metafísica e em psico­
logia (Duns Scott), levando a um triunfo das tendên­
cias individualistas e nominalistas em sociologia e em
política; enfim, uma maior radicalização do elemento for­
mal do raciocínio lógico, com abstracção dos seus conteú­
dos objectivos (Pedro Hispano, Occam), são as mais
marcantes dessas tendências e directrizes. A nenhuma
delas iremos referir-nos aqui em especial. Mas quere­
mos salientar um facto da maior importância, relacio­
nado com algumas dessas tendências, que é indispensá­
vel não perder de vista para bem compreender a transição
da EscolásxÍG€r~para^o«.Renagcimento, no que concerne
às novas concepções do Estado. Referimo-nos, uma vez
mais, ao recrudescer da luta entre este e ajgreja,j2ntre~
regalistas e curialist as, guelfos e gibelinos, apontando,,
para uma totaLemancipação^do-Estado. Se, por um
lado, não podemos deixar de ver neste facto uma conse­
quência do fortalecimento das nacionalidades europeias,
por outro não. ppdemps^também.deixar-de ver nele uma
consequência do robustecimento das aludidasjejidênçias
individualistas .e,norninaTis tas da Escolástica decadente.
O nome, porem, que assume aqui maior significa­
ção como pensador político é o de Marsílio de Pâdua
(1280-1343?), cuja obra, Defensor Pads (1324?), repre­
senta, sem dúvida, a última palavra do pensamento
individualístico e da autonomia do «político» na base
da Teoria do Estado na Idade-Média (1).

(1) É incerta a data do seu nascimento e da sua morte,


bem como sfio incertos quase todos os tópicos da sua biogra-

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Marsílio de Pádua 91

E assim, em franca oposição ao pensamento


tomista, termina a Escolástica. Regalistas (partidários
da supremacia do poder imperial), nominalistas e
voluntaristas (partidários do indivíduo e do primado
da vontade como potentia nobilior), são eles os últimos
representantes da Idade-Média em matéria de pensa­
mento político, anunciando já o Renascimento (i). Em
Marsílio de_Eádua, como__em Occam, o indivíduo
querente é, de facto, a única substância de toda a vida
social e histórica; esta e o Estado são mero produto
■“dosHinferesses individuais, combinados dentro do con-
cêitõ~do bonum commune. A ideia do «contrato social»,
já lançada na Antiguidade pelos epicuristas (2), retoma
a sua marcha como elemento basilar constitutivo de
toda a ciência puramente temporal da sociedade
humana (3). É a primeira prefiguração na Idade-Média
das ideias de Rousseau. Finalmente, entre o temporal
e o espiritual — como entre a filosofia e a teologia, a

fia. Sabe-se que Marsílio de Pádua foi professor e reitor da


Universidade de Paris em 1312. Pode ver-se, por ex., F. Bat­
taglia, Marsilio di Padova e la Filosof. política del Medio Evo,
1928; C. W. Previté-Orton, The Defensor Pads of Marsilius
of Padua, 1928; e Lagarde, Marsile dePadoue, le premier
théoricien de VÈtat la'ique, 1934.
(1) Marsílio de Pádua, com o seu amigo Jean de Jun-
dun e Occam, colocaram-se ao lado do imperador Luis de
Baviera contra o Papa João XXII, em 1324, combatendo as pre­
tensões de supremacia do papado sobre o Império.
(a) Cfr. supra, pág. 45.
(3) Defensor pads, I, 12, 7 (ed. Previté-Orton): «conve-
oerunt enim homines ad civilem communitatem et vitae suffi-
cientiam consequendam et opposite declinadum».

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razão e a fé —traça-se uma separação cada vez mais


nítida, em detrimento da síntese tomista, que seria a
primeira condição do aparecimento do Estado-moderno.
Por aqui se vê, pois, como é absolutamente incor-
recto e inhistórico todo o juízo que pretenda julgar a
Escolástica e a Idade-Média, filosòficamente, como um
sistema de ideias e uma e'poca homogéneos que se nos
impusesse dum só jacto ou enaltecer, como expressão
de pensamento cristão, ou, pelo contrário, rejeitar em
bloco, como expressão de uma época só de trevas e
obscurantismo. Infelizmente, esta última opinião foi,
como é sabido, a dominante nos séculos xvm e xix.
Mas tão insustentável opinião está hoje vencida.
A Escolástica foi uma das épocas mais poderosas e
criadoras na história do pensamento filosófico da
Europa. Nela, quer na sua corrente ortodoxa, quer
sobretudo na heterodoxa, encontram-se já todos os
gérmenes do pensamento moderno (i).

C. - TEMPOS MODERNOS
E RENASCIMENTO

Dá-se o nome de Tempos modernos, História


moderna, ao período que se estende desde meados do
século xv em diante, no início do qual se acham os

(i) Merece ler-se sobre este ponto o livro de Gilson,


já citado, La Philosophic au Moyen-Ãge, de Scot Erigéne à
Occam, 1930,

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