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Introdução

“A política é uma maneira exigente - se bem que não seja a única - de viver o
compromisso cristão, ao serviço dos outros” 1. Esta sentença do Beato Paulo VI,
papa que teve seu pontificado marcado pela reforma do concílio Vaticano II e pelas
crises que assolavam o pensamento do homem de seu tempo, demonstra que a
política não é uma área que o cristão não deva intervir, mas justamente ao contrário,
pois é uma alta forma de caridade. Caridade esta que está intimamente associada
ao modo de vida deixado por Cristo e pregado aos quatro cantos da terra por seus
discípulos que formam a sua Igreja.
Para uma investigação sobre a política e a práxis cristã não poderíamos
deixar de lado o doutor comum da Igreja Católica já que sua doutrina foi tomada
como própria da Igreja como foi assinalado Bento XV 2, Santo Tomás de Aquino.
Nascido em Roccasecca em 1225, Santo Tomás foi formado desde tenra infância
para a carreira eclesiástica, primeiramente no mosteiro beneditino na famosa abadia
de Montecassino, mas logo ingressa na ordem mendicante dos Pregadores, os
Dominicanos. Teve como mestre Santo Alberto Magno em Paris, pouco depois vai
para Colônia prosseguir seus estudos até completar o tempo e volta para Paris onde
recebe seu título de doutor em teologia em 1259. Santo Tomás também lecionou na
Itália em algumas cidades e na capital da cristandade, Roma. O Doutor Angélico
veio a falecer precocemente aos 49 anos na abadia cisterciense de Fossanova em
1274. Antes de sua repentina morte um fato místico o faz abandonar seus escritos e
chega a compará-los como se fossem palha e assim muitas de suas obras ficaram
incompletas como a Suma Teológica, sua maior obra e a obra base deste trabalho
monográfico, o De Regno.
A filosofia escolástica de Santo Tomás de Aquino motivou a pesquisa acerca
do tema, pois ela consegue ser a conjunção do pensamento clássico grego de
Aristóteles e do pensamento cristão de sua época. Sua obra política não é tão
grande quanto sua obra metafísica ou teológica, mas é bastante importante no
contexto da alta escolástica no mundo medieval.
Sua obra De Regno ou “Do governo dos príncipes ao Rei de Chipre” é um
opúsculo escrito por Santo Tomás em torno de 1265-66 destinado ao Rei de Chipre.
Esta obra não foi concluída pelo Angélico, mas sim por Ptolomeu de Lucca, que foi

PAULO VI. Octogesima adveniens. N. 46.


1

Cf. BENTO XV. Fausto Appetente Die


2
discípulo de Santo Tomás. O objetivo de Santo Tomás ao escrever esta obra é tratar
acerca do governo régio, de sua origem até aos ofícios competentes ao Rei,
baseando-se na autoridade das Escrituras, nos ensinamentos dos filósofos e nos
exemplos de príncipes de notável conduta, fugindo de qualquer forma de tirania.
Para tal, Santo Tomás de Aquino primeiramente conceitua o que é política e que ela
é inerente à natureza humana. Ele também trata das formas de governo,
semelhantemente a Aristóteles e mostra qual é a melhor constituição para o governo
de uma cidade e também acena com a possibilidade de um governo misto.
A atualidade deste tema se dá quando a política atual se esquece de seu
principio básico: o bem comum e assim se degenera num conluio de corrupções que
não ajuda em nada o povo a ser educado nas virtudes, mas acontece justamente o
contrário, o exemplo dado dos superiores é espalhado por todas as classes, levando
toda sociedade num caminho aparentemente sem volta. Pode parecer até mesmo
ingênuo trazer a tona o pensamento tomista num contexto que muito difere do
medieval, mas a essência do tema é a mesma de quando o Angélico escrevia ao rei
de Chipre ou até mesmo quando Aristóteles compôs sua política.
No primeiro capítulo será exposta a base do pensamento político de Santo
Tomás, já que ele como todo autor bebe de fontes de seus antepassados. Sendo
assim os autores escolhidos pela importância e influencia direta são Platão,
Aristóteles e Santo Agostinho. Eles têm um espaço próprio para assim demonstrar a
influência direta e indireta de suas visões de mundo na visão do Aquinate.
No segundo capítulo mostramos o próprio pensamento político de Santo
Tomás tanto no De Regno quanto na Suma Teológica focando principalmente na
figura do Rei e o bem comum e nas formas de governo, chegando a dúvida se existe
uma melhor forma de governo e existindo qual seria. Santo Tomás sana o
questionamento e ainda lança bases para uma forma mista que é a base para o
governo atual de muitos países baseado nos três poderes.
O terceiro capítulo trata da figura oposta ao bom governante, o tirano, que é
um perigo que ronda todas as formas de governo, mas como o Aquinate tem uma
preferência pela monarquia, a tirania é mais próxima a esta forma de governo.
Também vemos a contraposição do pensamento medieval de Santo Tomás sobre o
tirano com o pensamento moderno de Nicolau Maquiavel e por fim como o Doutor
Angélico responde o problema do tiranicídio, se é licito ou não, e como se o povo
deve responder aos assédios do tirano.
Por fim, neste trabalho a obra base como já foi dito é o opúsculo De Regno,
mas também foi utilizada outras obras do Aquinate como por exemplo o Comentário
a Ética à Nicômaco, as questões sobre a Lei da Suma Teológica e também obras de
comentadores acerca do tema, tanto sobre os autores que influenciaram o Aquinate
e também sobre seu pensamento político, por meio de teses de mestrado e artigos
publicados em revistas filosóficas.
1. Base Clássica e Medieval para o Pensamento Político de
Santo Tomás de Aquino
Estando diante do arcabouço filosófico recebido pelo Doutor Angélico, se faz
necessário investigar os pensadores que vieram antes de Santo Tomás, a saber:
Platão, Aristóteles e Santo Agostinho. Sem este pré-conhecimento uma correta
interpretação do pensamento político de Santo Tomás não será possível, tanto que
ele é também um fruto de seu tempo e receptor do pensamento ocidental, sendo
que sua maior referência é o filósofo grego Aristóteles.
Estes três pensadores ajudaram a moldar o pensamento, também político até
o tempo de Santo Tomás e inclusive hoje. Platão sendo discípulo de Sócrates 3 e
mestre de Aristóteles apresentou ao mundo um modelo ideal de cidade. Aristóteles
em sua obra critica o pensamento político de seu mestre e apresenta novas
formulações para o pensamento político e Agostinho introduz a revelação na vida
política, associada à vida de virtudes para um bom desenvolvimento da cidade.
Cada um dos filósofos aqui propostos deu sua contribuição ao pensamento do
Aquinate e muitos outros o fizeram também, através de seus comentadores como os
comentadores das obras de Aristóteles 4, o platônicos com a obra do mestre de
Aristóteles e os agostinistas com as interpretações dadas ao texto de Santo
Agostinho.
A escolha destes três não leva a nenhum demérito a outros escritores e
pensadores políticos anteriores ao Angélico, mas somente dá destaque ao
pensamento de três autores já consagrados no que tange o saber político grego e
medieval, poder-se-ia também já introduzir aqui autores posteriores a Tomás, mas
devido a importância de um saber anterior ao do Aquinate fez-se uso dos autores
supracitados.
Visto isto e dadas às razões introduz-se de modo sintético o pensamento
político destes três pensadores e suas principais características que se somarão ao
pensamento tomasiano.

3
Foi um pensador grego, mestre de Platão, morto em juízo pela acusação de corromper a juventude.
Nunca escreveu obra alguma, mas seu discípulo transmitiu seus conhecimentos através de seus
diálogos como a Apologia.
4
Entre os principais comentadores e introdutores do pensamento aristotélico no mundo ocidental pós-
queda do Império Romano serão Avicena e Averróis, ambos provenientes da cultura árabe.
1.1. Pensamento político de Platão
Platão foi um filósofo grego nascido em Atenas em 427 a.C e foi discípulo de
Sócrates, de onde pode-se até hoje saber dos ensinamentos socráticos por meio de
Platão que escreveu os diálogos de Sócrates e personalidades da sociedade grega.
Neste trabalho se enfocará no pensamento político de Platão na obra A República,
onde também por meio de diálogos ele mostra a descrição da república ideal que
tem por objetivo a realização da justiça pelo cumprimento da justiça através das
suas atribuições pelas suas aptidões.
O discípulo de Sócrates tem como obra prima, como já foi dito A República.
Fernando Gallo assim diz:

Platão – que escreveu suas obras em forma de diálogo, e não em


prosa – dedicou parte do livro VIII de A República para tratar das
formas de governo. Neste documento há um debate sobre as
constituições entre filósofos como Sócrates, Glauco, Polemarco e
outros, a respeito da natureza política do Estado5.

No conhecimento Platônico, em um dos seus diálogos Platão faz Sócrates


proferir a seguinte sentença segundo Reale: “Creio que seja eu um dos poucos
atenienses para não dizer o único que tenta realizar a verdadeira arte política” 6.
Logo, a “verdadeira arte política” é a arte que cura a alma e o torna mais possível
“virtuosa” e, portanto é a arte do filósofo7.
Importante frisar que na filosofia platônica, marcada pelo idealismo não existe
uma forma perfeita neste mundo, somente no hiperurano. Para Platão todos os
Estados são corrompidos, pois só existe um Estado com a forma ideal de governo e
que esta forma que é apresentada na República não existe em lugar algum do orbe.
E mesmo que existisse aqui em neste mundo não poderia existir mais do que um,
pois só pode haver uma só constituição perfeita, mas os Estados imperfeitos podem
existir vários, pois neste mesmo diálogo Platão afirma que “A forma da virtude é uma
só, mas o vício tem uma variedade infinita”8.

5
GALLO, Rodrigo Fernando. A teoria das formas de governo na antiguidade. Revista de estudos
clássicos e tradutórios. Juiz de Fora 2013 V1.N2. p. 79.
6
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 3.ed. Vol. 01.
São Paulo: Paulus, 1990. p. 162.
7
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 3.ed. Vol. 01.
São Paulo: Paulus, 1990. p. 162.
8
Platão. República, 445 c
Um Estado só nasce porque nenhum homem é autárquico, ele depende de
outros para seu sustento e não se basta em si mesmo. Platão divide a cidade em
três classes: os lavradores, artesãos e comerciantes; os guardas e os governantes.
Cada uma dessas classes deve viver uma virtude em especial. Na classe dos
lavradores a virtude é a temperança, pois eles devem se submeter aos superiores e
são mais concupiscíveis em relação à alma. Nos guardas, segundo Reale, prevalece
a força irascível e sua função é não deixar o Estado grande demais tampouco
diminuto. Sua virtude deve ser a fortaleza 9. E os governantes são os que mais
amam a cidade, eles devem contemplar o bem, prevalecendo assim o domínio da
alma racional e por consequência sua virtude deverá ser a sabedoria.
A “justiça” está na harmonia entre as três virtudes e as três classes para que
possam chegar a bom termo e conduzindo, protegendo e servindo o Estado, todos
os cidadãos possam bem viver.
Na concepção Platônica não existiu no mundo um governo ideal, mas como
ele mesmo viveu na época da decadência da polis, Platão então tenta num esforço
intelectual analisar as constituições corrompidas que são apresentadas em ordem
decrescente, a saber, timocracia, oligarquia, democracia e tirania. É interessante
perceber que Platão não enumera nas constituições corrompidas duas formas de
governo bem conhecidas, que são a monarquia e a aristocracia, pois ele mesmo
considera como próximas da constituição ideal:

- Digo que uma das formas de governo é justamente a que


consideramos (a constituição ideal), que podemos chamar de duas
maneiras: se um dentre todos os governantes predomina sobre os
outros, é a monarquia; se a direção do governo cabe a mais de uma
pessoa, é a aristocracia.
- É verdade.
— Essas duas modalidades constituem, portanto, uma única forma:
não importa se são muitos ou um só que governam; nada se altera
nas leis fundamentais do Estado, desde que os governantes sejam
treinados e educados do modo que descrevemos10.

Visto isso, claramente se pode afirmar que Platão reconhece que haja seis
formas de governo, mas duas estão salvaguardadas para a constituição ideal e
deixa quatro para a forma real que se afastam decrescentemente da forma ideal
como já foi exposto.
9
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 3.ed. Vol. 01.
São Paulo: Paulus, 1990. p. 163.
10
Platão. República, 445 d.
É interessante deter na forma de governo chamado por Platão de timocracia
derivada da palavra timé11 que é colocada pelo pensador entre as formas da
constituição ideal (Monarquia e Aristocracia) e as três formas corrompidas já
conhecidas (tirania, oligarquia e democracia). Platão interessa-se por esta forma,
pois é a forma como Esparta é governada e o governo timocrático de Esparta era o
que mais se assemelhava ao que Platão havia pensado. Mas mesmo esse governo
também tinha falhas como, por exemplo, as honrarias mais aos guerreiros do que
aos sábios.
Como para Platão quem deveria governar a República é o governante-
filósofo, sendo que na realidade este governante não existe, Platão então tentou
com o mais baixo tipo de governo que é a tirania e claro o tirano em transformá-lo
neste governante, mas sem sucesso. Vale observar que um dos critérios de Platão
para saber quando uma forma de governo é boa ou má é saber se aquele governo
se baseia ou não na violência ou se no consenso dos cidadãos, onde eles atuam de
acordo com as leis não arbitrariamente.
Aqui não entrará no mérito de analisar os pormenores de cada forma que
Platão apresenta, mas sim de apresentar de forma sintética o pensamento político
do referido filósofo e suas principais características para assim poder avançar na
investigação dos pensadores que serviram de base para o pensamento Tomasiano.
O pensamento platônico encontrará eco na obra de seu discípulo Aristóteles
em forma de crítica, pois Aristóteles não se baseia no seu idealismo mas transpõe o
conhecimento adquirido para a realidade mas já se pode ver a importância do autor
no catálogo do saber grego e consequentemente, universal.

1.2. Pensamento político de Aristóteles


Aristóteles foi um filósofo grego, nascido na cidade de Estagira no ano de 384
a.C e foi discípulo de Platão. As obras aristotélicas são vastas e de uma gama
tamanha sobre inúmeras ciências e conhecimentos de sua época. Neste trabalho
será dedicada uma atenção ímpar para obra A Política na qual contém basicamente
todo conteúdo desta investigação, pois Santo Tomás bebe bastante da fonte do

11
Do grego que quer significar honra.
Estagirita tanto para seu pensamento político, quanto também para outras
investigações de ordem filosófica ou teológica.
A política de Aristóteles é uma obra incompleta, mas diante da genialidade do
Estagirita, sua obra é um dos grandes clássicos do pensamento político, marcando
inúmeros pensadores a partir de então, inclusive o nosso autor, Santo Tomás de
Aquino. Sua concepção de ciência política se funda como filosofia das coisas
humanas, pois depois de investigar a física e a metafísica, o Estagirita agora se
detém nesta matéria.
Giovanni Reale apresenta a obra de Aristóteles como uma investigação
acerca do fim último do homem e este fim seria a felicidade, e para chegar a esta
felicidade necessita aperfeiçoar-se enquanto homem, este é o bem supremo
realizável pelo homem.12
Aristóteles em sua Política antes mesmo de tratar das formas de governo
trata do porquê das pessoas se organizarem em cidades e submetendo-se a um
governo:
A natureza compele assim todos os homens a se associarem.
Àquele que primeiro estabeleceu isso se deve o maior bem; porque
se o home, tendo atingido a sua perfeição é o mais excelente de
todos os animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e
sem preconceitos13.

A Política está dividida em oito livros, mas será utilizado neste trabalho o
terceiro e quarto livro que tratam mais especificadamente sobre as formas de
governo.
Aristóteles em sua Política apresenta a formação da cidade e quem seriam
seus cidadãos, pois para ele não são todos os homens necessariamente cidadãos.
Por exemplo, os escravos não entram nessa classificação aristotélica. Sobre a
temática da escravidão a perspectiva do Estagirita tende a ser um tanto quanto
estranha aos ouvidos dos homens de hoje pois ele a defende enquanto destinados
pela natureza, mas rechaça a possibilidade de uma escravidão voluntária.
Para Aristóteles o Estado deve cuidar pela de vida ideal de seus cidadãos e
sendo assim qualquer que seja a forma de governo ela deve estimular a vivência
das virtudes sendo elas bem vividas ajudam no desenvolvimento da sociedade e no
bem estar geral.
12
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 3.ed. Vol.
01. São Paulo: Paulus, 1990. p. 203.
13
Aristóteles. Política, 1253a. 30.
O Estagirita vai atentar para o fato que diferentemente de Platão que concebe
apenas uma forma de governo ideal, sendo aqui será chamada de constituição 14,
admite que existam várias constituições diferentes. O Filósofo tem o trabalho de
descrevê-las e o faz de modo brilhante concebendo de maneira concisa a clássica
forma das seis formas de governo:

Como constituição e governo significam a mesma coisa, e o governo


é o poder soberano da cidade, é necessário que esse poder
soberano seja exercido por 'um só', por 'poucos' ou por 'muitos'.
Quando um só; poucos ou muitos exercem o poder buscando o
interesse comum, temos necessariamente as constituições retas;
quando o exercem no seu interesse privado, temos desvios[...]
Chamamos 'reino' ao governo monárquico que se propõe a fazer o
bem público; 'aristocracia', ao governo de poucos..., quando tem por
finalidade o bem comum; quando a massa governa visando ao bem
público, temos a 'polida', palavra com que designamos em comum
todas as constituições[...] As degenerações das formas de governo
precedentes são a ' tirania' com respeito ao reino; a 'oligarquia', com
relação à aristocracia; e a ' democracia', no que diz respeito à '
polida'. Na verdade, a tirania é o governo monárquico exercido em
favor do monarca; a oligarquia visa ao interesse dos ricos; a
democracia, ao dos pobres. Mas nenhuma dessas formas mira a
utilidade comum15.

Platão diz quais são seus critérios para averiguar quando uma constituição é
boa ou não, Aristóteles também o faz e diz que um governo bom não é aquele que
se impõe pela força ou pelo consenso, mas quando o governante visa o bem
comum. A má constituição é aquela que usurpa o bem comum e assim só visa o
próprio e vai de encontro ao próprio conceito de polis – o bem comum é a razão dos
indivíduos se reunirem nas cidades e formam comunidades políticas, não só vivendo
em comum, mas vivendo bem.
Aristóteles também distingue em três formas as relações de poder: o poder do
pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo e do governante sobre o governado,
mas a relação de interesse em cada um desses é diferente. Na relação paternal
visa-se o bem do filho, o senhorio é em seu próprio interesse e no político tem-se o
interesse dos governados e do governante.
A política aristotélica está ligada também a sua ética, e o Estagirita vai propor
outra forma de governo que una características das formas apresentadas
14
O termo empregado que designa “forma de governo” é politeia traduzido como “constituição”, mas
na Política encontram-se várias definições de “constituição”, não se confundindo com a noção atual
de constituição.
15
Aristóteles. Política. 1279 a-b.
anteriormente fundada no principio ético de Aristóteles que valoriza o valor positivo
que está no meio de dois extremos.
A vida feliz de Aristóteles se dá pela vivência das virtudes, principalmente
pelo adágio virtus in medio16como se vê neste trecho da Ética à Nicômaco:

Se é exata a definição da ética segundo a qual a vida feliz é a que se


desenvolve de acordo com a virtude, e sem impedimentos, e se a
virtude está no meio-termo, a vida mediana é necessariamente a
melhor, desde que se trate dessa mediania que é acessível a todos.17

Na melhor vivência na polis Aristóteles vai aplicar este conceito nas classes
que lá vivem colocando nos extremos os muito pobres e os muito ricos e conclui que
o melhor é viver no meio dessas duas realidades, numa posição intermediária, pois
nela é mais fácil de obedecer a razão, assim afirmando a importância de uma classe
média. O filósofo chega a afirmar que uma cidade bem governada é aquela que se
predomina uma classe média, pois nela estão afastadas os perigos de uma
revolução, conspirações ou revoltas no povo. 18 A mistura de duas formas de governo
dará a polis uma estabilidade como nesta relatada quando a classe intermediária se
faz mais numerosa afastando futuras, rápidas e constantes mudanças.
Então a democracia seria pior porque se presume que a maioria dos cidadãos
seria de pobres e na oligarquia os poucos que governariam seriam os ricos, mas
uma mistura nessas duas formas, saindo de seus extremos. Mas o Estagirita deixa
claro que mesmo se forem muito os ricos sempre será uma oligarquia, e onde os
pobres dominam será a democracia, pois poucos se arriscam, mas todos participam
da liberdade19.
Aqui se viu resumidamente a teoria política de Aristóteles que serve de base
para o pensamento de Santo Tomás e que voltará a ser abordado, pois a visão do
Aquinate assemelha-se a do Estagirita. A doutrina política tomasiana é basicamente
a visão aristotélica, principalmente no que se concerne às formas de governo.

1.3. Pensamento Político de Santo Agostinho

16
Do latim, a virtude (está) no meio.
17
Aristóteles. Ética à Nicômaco, 1295 a.
18
Aristóteles. Política, 1296 a.
19
Aristóteles. Política, 1280 a.
A ponte do pensamento clássico grego para o então recente pensamento
cristão se dá com o período da história da Igreja chamado de Patrística 20 e dentre os
Padres da Igreja um dos mais notórios é Santo Agostinho (354 – 430 dC). Nascido
em Tagaste, na atual Argélia, foi bispo e proclamado doutor da Igreja. Teve uma
juventude conturbada, tanto moralmente quanto espiritualmente, depois de seu
encontro com Santo Ambrósio e com a doutrina cristã foi batizado, tempo depois
tendo voltado para sua terra natal foi ordenado presbítero e bispo de Hipona
exercendo ali seu ministério episcopal com grande sabedoria e zelo. Autor de muitos
tratados e livros sendo uma das obras mais conhecidas Confissões, sua
autobiografia.
O bispo de Hipona é marcado por suas obras tanto teológicas quanto
filosóficas e dentro de seu portfólio de obras se destaca a Cidade de Deus onde
Agostinho expõe seu pensamento político na qual bebe da fonte platônica, mas
claro com o ensinamento cristão dando base aos seus escritos. Partindo desta fonte
platônica, Agostinho lança fundamentos de sua cidade ideal: a cidade de Deus. Na
obra homônima o santo de Hipona mostra duas cidades, uma fundada sobre o amor
próprio, a cidade dos homens e outra fundada sobre o amor de Deus, a cidade de
Deus. Isso fica claro neste trecho da obra: “Dois amores fundaram, pois, duas
cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de
Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial 21”.
Sobre uma organização justa de governo Santo Agostinho não se debruça
como Santo Tomás ou Aristóteles e Platão sobre as formas, mas afirma que quando
Cristo for a base e o centro das atividades humanas, inspirando-as e dirigindo-as 22.
O poder temporal só será bem exercido quando, no entendimento de Santo
Agostinho, se deixarem guiar pela Bondade Divina, sendo seus irradiadores. Para o
pastor hiponense toda paz e felicidade que estes detentores do poder temporal
podem proporcionar só acontecerão se estiverem em sintonia com Deus, razão e
autor de toda paz e felicidade que não estão neste mundo de modo pleno.
O problema da tirania como corrupção de um governante é tratado por santo
Agostinho quando ele afirma que sem a graça de Cristo é impossível que se torne
um tirano, colocando suas próprias vontades, seus desejos a frente do bem comum.
20
Patrística é o nome dado ao movimento filosófico cristão nos primeiros séculos da Igreja, sendo
elaborada pelos Padres da Igreja, sendo um deles Santo Agostinho e também é doutor da Igreja.
(NA)
21
AGOSTINHO. A Cidade de Deus, XVI, 29.
22
AGOSTINHO. A Cidade de Deus, XIV, 12.
Uma bonita imagem que o bispo de Hipona utiliza pra mostrar a harmonia num
governo é a comparação com uma orquestra como está escrito na Cidade de Deus:

Assim como na Cítara, nas flautas, no canto e nas próprias vozes se


deve guardar certa consonância de sons diferentes, sob pena de a
mudança ou a discordância ferirem ouvidos educados, e tal
consonância graças a combinação dos mais dessemelhantes sons,
se torna concorde e congruente, assim também igual tonalidade na
ordem política admitida entre as Classes alta, média e baixa
suscitava o congraçamento dos cidadãos. E aquilo que no canto os
músicos chamam harmonia era na cidade a concórdia, o mais suave
e estreito vínculo de coexistência em toda a república, que sem
justiça, não pode em absoluto subsistir23.

Como pensador cristão que é Santo Agostinho vai introduzir no pensamento


político e ético de seu tempo Jesus Cristo enquanto messias revelado e salvador do
gênero humano, coisa que seus antepassados clássicos não tiveram essa nova
perspectiva baseada também no conhecimento revelado. Seguindo neste parâmetro
o Bispo de Hipona tem a clareza que o homem é peregrino nesta terra, mas a visão
do pensador não o quer desviar também de suas responsabilidades na cidade
terrena.
A Cidade de Deus tem como grande característica ser uma espécie de
teologia da história, lendo à luz da revelação a história das cidades, impérios, da
humanidade até o dado momento que Santo Agostinho vivia. Um ponto chave é a
queda do Império Romano e o porquê de sua queda. Sua ambição em novos
empreendimentos bélicos e seu afã pelos bens materiais, na qual o Império estava
assentado, o desprezo pelas coisas da religião. Agostinho também elenca mais
alguns motivos para sua queda:

A própria ambição do poder — que, entre outros vícios do gênero


humano, mais puro se encontrava em todo o povo romano, — uma
vez vencidas algumas das principais potências, esmagou sob o jugo
da servidão as restantes já desfeitas e fatigadas24.

Vê-se aqui um ponto em comum dos três pensadores, Platão, Aristóteles e


Agostinho, no que tange o governo da cidade: A virtude e o vício. A virtude que leva
a cidade e seus cidadãos a um bom termo e o vício que causa sua ruína, desde a
menor cidade até o maior império até então, o Romano.
23
AGOSTINHO. A Cidade de Deus, II, 21
24
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, I, 30.
Para Agostinho o remédio eficaz para sarar a cidade que se ruiu é o amor de
Deus e a graça25. Uma luta é travada no interior do homem e quando ele se deixa
levar pelos impulsos carnais, consequentemente esquecer-se-á do bem comum e de
seus semelhantes. Vencido o impulso carnal e a vida de virtudes e na Graça o
levará a ser um bom cidadão neste mundo, preparando sua morada na cidade
celeste. O homem é dependente do criador e quando impulsionado pelo amor
Charitas26 será impelido a uma convivência pacifica com os seus, tanto governantes,
quanto governados.
Visto este arcabouço que o Doutor Angélico recebeu e o influenciará em toda
sua vida acadêmica, pode-se, portanto adentrar em sua obra e pensamento com um
conhecimento vasto e variado sobre seus antecessores. Este trabalho não se propôs
a fazer um excurso demasiado longo, mas de forma sucinta abordar algumas formas
de pensar para poder assim passar ao próximo ponto.

2. O Entendimento Político de Santo Tomás de Aquino


Visto o pensamento clássico em Platão e Aristóteles e o pensamento
Patrístico-Medieval de Santo Agostinho, este é o momento de debruçar-se no
entendimento político de Santo Tomás de Aquino e ver a influência aristotélica em
sua obra política De Regno e também em sua Opera Magna a Suma Teológica.
Para Calvário seria um tanto sem sentido as doutrinas políticas terem ocupado os

25
Santo Agostinho também é conhecido como “Doutor da Graça”
26
Do latim, Caridade.
pensadores medievais já que é um assunto profano pertencente à esfera da “cidade
terrena” se a tomarmos numa linha agostiniana 27.
Mas a Política para Aquino, baseando-se na definição aristotélica do homem
como um animal político28 vê que somos naturalmente inclinados ao outro, numa
demonstração da necessidade da vida comunitária. Tomás chega a comparar o
homem com os demais animais mostrando que eles têm instintos que o ajudam na
sua falta de razão para assim deliberar, e que o homem, mesmo dotado de
inteligência necessita de outros para ser ajudado.
Ao contrario de Santo Agostinho, Santo Tomás tem uma visão otimista acerca
da política, pois para o primeiro ela seria fruto do pecado, mas logo no inicio do De
Regno o Aquinate afirma a necessidade de um dominium29 para que se possa
chegar ao seu fim. Santo Tomás em sua doutrina política explica porque é melhor ao
homem o governo de um ao invés de muitos, pois a finalidade do governo é a
unidade:

E, no mundo dos corpos, o primeiro corpo, isto é, o celeste, dirige os


demais, por certa ordem da divina providência, e a todos os corpos
os rege a criatura racional. Igualmente, no homem a alma rege o
corpo, e, entre as partes da alma, o irascível e o concupiscível são
dirigidos pela razão. Também, entre os membros do corpo, um é o
principal, que todos move, como o coração, ou a cabeça30.

Para alguns comentadores contemporâneos a formulação política de Santo


Tomás seria baseada num “naturalismo” ou “economicismo” por causa da
necessidade do ser humano de sobreviver e de conservação 31. A vivência na vida de
comunidade desembocará na existência de um Estado para governar a cidade e
seus cidadãos. Esse conceito de Estado deriva de uma visão do poder que vem de
Deus.
Segundo Antônio Carlos Wolkmer tanto o poder secular quanto o poder
temporal procedem de Deus e por Ele são instituídas e Deus como sendo criador da
27
CALVÁRIO, Patrícia. O Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. Covilhã:
LusoSofia:press, 2008, p.04.
28
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Comentário à Ética a Nicômaco, de Aristóteles, (Condensado). L.48,
C.6, p. 563. <www.documentacatholicaomnia.eu/.../1225-1274,_Thomas_Aquinas>. Acessado em
16.09.2015.
29
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 126.
30
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 131.
31
CALVÁRIO, Patrícia. O Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. Covilhã:
LusoSofia:press, 2008, p.07.
natureza humana, também é o criador e fonte do poder do Estado 32. É importante
frisar que mesmo sendo Deus a fonte do poder, esse poder não é subordinado
totalmente à Igreja como defendia Santo Agostinho, mas de forma relativa, pois sua
principal atribuição de matéria espiritual.
Mas para regular esse Estado devem-se ser criadas leis e para tal a razão
deve ter precedência sobre a vontade. Na opera magna do Aquinate, a Suma
Teológica, nas questões sobre a lei vê-se de modo claro esse problema da razão ou
até mesmo de um intelectualismo proveniente da filosofia aristotélica em
contraposição ao certo voluntarismo metafísico agostiniana. Assim diz Santo Tomás
acerca se a lei é algo da razão ou não: “Ora, a regra e medida dos atos humanos é a
razão, primeiro princípio dos atos humanos[...], pois cabe à razão ordenar para o fim,
o qual, segundo o Filósofo, é o primeiro princípio do agir 33”.
Dentre as leis que Santo Tomás apresenta ele dá singular destaque à lei
eterna que é “a razão suprema existente em Deus” 34, e sendo ela eterna é superior à
lei humana que é variável. Tudo é regulado pela lei eterna, toda ordem da criação,
os fenômenos naturais e a existência do homem. A lei natural é a forma incompleta
da manifestação da lei eterna no ser humano e é produzida pela razão do mesmo
que determina as ações virtuosas do homem independente de sua crença, cristão ou
pagão. A lei humana sempre é variável, imperfeita e derivada da lei natural,
conforme a organização da sociedade que a promulga e a lei divina só pode ser
conhecida por meio da revelação e é necessária juntamente com a lei natural e a lei
humana para o bem dirigir da ação humana 35 e “porque o homem é ordenado como
a seu fim à beatitude eterna, a qual excede a proporção da faculdade natural
humana”.36
Para se chegar ao problema da melhor forma de governo ainda necessita
passar pelo conceito de justiça que para vem da base Aristotélica com traços do
direito romano. Wolkemer citando Truyol y Serra diz que a justiça é a virtude da
vontade que ordena o homem nas coisas relativas ao outro, implica igualdade em
relação ao outro37.
32
WOLKMER, Antônio Carlos. O Pensamento político medieval: Santo Agostinho e Santo Tomás de
Aquino. Revista Crítica Jurídica Nº 19, 2001, p. 23.
33
Summa Theologiae, Iª-IIae q. 90 a. 1 co.
34
Summa Theologiae, Iª-IIae q. 93.
35
Cf. Summa Theologiae, Iª-IIae q. 91 a. 4 co.
36
Summa Theologiae, Iª-IIae q. 91 a. 4 co.
37
Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. O Pensamento político medieval: Santo Agostinho e Santo Tomás
de Aquino. Revista Crítica Jurídica Nº 19, 2001, p. 25.
Na obra base deste trabalho, o De Regno, o Angélico vai como Aristóteles se
debruçar no desenvolvimento e apresentação das formas de governo e ainda
mostrar qual seria o melhor.

2.1. O Rei e o bem comum


Antes de abordar o problema da melhor forma de governo, Santo Tomás no
De Regno fala sobre o rei, quem ele é e sua função na promoção do bem comum. O
Aquinate, com sua genialidade começa tratando da necessidade de alguém a frente
da cidade como um capitão fica a frente do leme de um navio 38, e que busca o bem
comum e não seu próprio. Santo Tomás fala primeiro do rei antes mesmo de tratar
das formas de governo pela própria destinação da obra que é ao rei de Chipre,
então esse opúsculo tem a intenção de educar na virtude um rei e fazê-lo moldar-se
por elas.
Nesta perspectiva do bem comum e no governo de um só, monarquia, Santo
Tomás se aproxima dos argumentos do Filósofo 39 que segundo Cavalheiri os
regimes que se propõe a buscar o bem comum são retos sob a ótica da justiça
comum40, por isso o Angélico afirma: “Por isso, quem rege a comunidade perfeita,
isto é, a cidade ou o país, chama-se antonomasticamente rei 41.”
Cavalheiri em seu trabalho também afirma outra relação dos escritos de
Santo Tomás e do Filósofo quando trata a função do rei baseando-se na afirmação
contida na Física que diz que a arte imita a natureza; e assim o Angélico também
afirma que é melhor basear-se na natureza acerca dos assuntos ligados ao poder
régio42.
Partindo deste olhar sobre a natureza, Santo Tomás afirma a existência de
duas formas de governo na natureza das coisas, o universal e o particular:

38
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 126.
39
O Filósofo é o modo como Santo Tomás se refere à Aristóteles em suas obras.
40
CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 25.
41
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 130.
42
Cf. CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 26.
Ora, na natureza das coisas, há o governo universal e o particular. O
universal é aquele segundo o qual tudo se sujeita ao governo de
Deus, que com sua providência governa todas as coisas. O governo
particular, muitíssimo semelhante ao divino, acha-se no homem, que
por isso se chama microcosmo porque nele se encontra a forma do
governo universal. Pois, assim como toda criatura corpórea e todas
as potestades espirituais estão sujeitas ao governo divino, também
os membros do corpo e as demais potências da alma são regidos
pela razão e, destarte, a razão, de certa maneira, está para o homem
como Deus para o mundo43.

Neste governo particular o homem se assemelha ao governo divino 44 pois a


razão governa as partes do corpo e a razão de um único homem governa a muitos e
Deus governa o mundo. Sendo assim de modo que Santo Tomás é conhecedor das
Sagradas Escrituras pode-se achar semelhança com a afirmação de São Paulo da
Igreja como corpo de Cristo45. Ainda segundo Cavalheiri a causa formal do Estado é
a autoridade do rei e seus súditos são a causa material 46e, portanto o rei estando
debaixo do olhar e jugo divino e seus súditos estejam sob seu poder é aquele que
deve procurar o bem da multidão para que ela possa viver bem.
Santo Tomás compara a figura do pai com a do rei cada um conforme suas
obrigações têm semelhanças em seus ofícios, mas também existem suas
dessemelhanças. Uma das semelhanças é que dentre as duas funções o pai tem o
dever de garantir o melhor para sua família e geração dos filhos e o rei deve garantir
o melhor para seus súditos sendo uma espécie de pai do povo. Santo Tomás busca
saber o que move o rei a buscar o bem comum já que é próprio do ser humano
buscar seu próprio bem.
Para se chegar ao entendimento acerca deste tema, o Angélico volta a
recorrer à filosofia de Aristóteles para justificar que o rei é o guardião da justiça, mas
não está acima da lei, mas é regulado por ela. Sendo ele este guardião, o rei é digno
de louvor e honra, sendo sua recompensa, mesmo sendo apenas momentânea.
Sendo assim, por meio da lei, rei e súdito, governante e governado formam um
mesmo corpo e como ninguém deseja a si algum tipo de mal, o rei assim não deve

43
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 159.
44
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 159.
45
I Cor. 12, 12-14.
46
Cf. CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 29.
aspirar ou desejar nenhum revés para seu povo, já que fazem parte de um mesmo
organismo.
Como todo ser humano, a inclinação ao seu próprio bem é inato a ele e
querer o bem do seu povo, o bem comum é um exercício que o monarca deve fazer
para evitar colocar seus interesses à frente do interesse comum. E Tomás entende
que esse querer o bem comum não é um natural ao homem, logo pela luz da razão,
o rei em nome do bem comum consegue também seu bem próprio.
Como pensador cristão, Santo Tomás se distancia do Filósofo acerca do
prêmio do rei ser honra e glórias, pois influenciado por Santo Agostinho ele entende
que “nada há, ao que parece, mais frágil, entre as coisas humanas, do que a glória e
a honra do favor dos homens, pois depende das opiniões e palavras deles, nada
havendo de mais mutável em sua vida” 47. Não há grandeza de alma na busca
somente de honras e glórias humanas, não há uma busca desinteressada no bem
comum e o verdadeiro prêmio para o rei não está neste mundo, mas sim na
beatitude celeste.

2.2. O melhor governo


Antes de analisarmos as formas de governo e a solução de Santo Tomás
para a melhor forma de governo se faz necessário tratar primeiramente sobre a
cidade ou reino, de quem é objeto do governo. Como dito anteriormente, o ser
humano necessita viver com outros pares e a cidade nasce desta necessidade
natural. A cidade é fundada para suprir as necessidades que cada homem não seria
capaz conseguir para si mediante uma cooperação.
No De Regno Santo Tomás quando se refere a esta comunidade ora diz
civitas vel província em outro momento diz civitas vel regno48 que cada uma tem
suas próprias características que as distinguem segundo Cavalheiri 49.
Por exemplo, o De Regno afirma que uma das características para uma
cidade ou reino seja fundada em um bom lugar é que este lugar em questão seja de
clima temperado como se vê a seguir:

47
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 143.
48
Do latim: Cidade ou província e cidade ou reino.
49
Cf. CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
Na fundação de uma cidade ou reino, deve-se primeiro, se houver
recurso, escolher uma região que importa seja temperada, porque
muitas vantagens traz aos habitantes tal região. Primeiro, porque,
com o clima temperado da região, conseguem os homens a
conservação do corpo e a longevidade. Pois, consistindo a saúde em
certo temperamento dos humores, conserva-se a saúde no lugar
temperado, pois o semelhante é conservado pelo seu semelhante.
Havendo, porém, excesso de calor, ou de frio, força é que, conforme
o estado do clima, se mude o do corpo; donde vem o transmigrarem,
por uma certa indústria natural, certos animais, no tempo do frio, para
lugares quentes, retornando no tempo de calor para os sítios frios, a
fim de conseguirem, com a disposição contrária do lugar, o
temperamento conveniente do tempo.50

Tanto para Aristóteles quanto para Santo Tomás a cidade é a “comunidade


perfeita” para as necessidades humanas, mas ela necessita de um governo para
que as coisas cheguem ao seu bom termo. É neste ponto que o Aquinate começa a
investigação acerca das formas de governo.
Para Santo Tomás de Aquino o melhor e a pior forma de governo estão bem
próximos tanto no de um só; monarquia, e em sua corrupção, a tirania. A monarquia
está centrada na figura de um rei, que no exercício das virtudes e do bem comum
visibilizaria que a sociedade caminhasse em paz e ordem. O problema deriva da
facilidade na qual a monarquia corrompe-se em tirania.
Uma vez que o monarca se afasta do bem comum e começa a somente a
tratar somente de seus interesses aí começa sua desgraça e consequentemente de
todo seu povo. O tirano é o pior, pois é o que mais se afasta do bem comum e diz
Santo Tomás no De Regno:

Logo, quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais injusto é o


regime [...]ainda mais se aparta do bem comum na tirania, em que se
busca somente o bem de um51.

A aristocracia como governo dos melhores e oligarquia como governo mau de


poucos conservou cada um a seu modo uma visão positiva e negativa até hoje de
suas formas de governo. Mas da mesma forma que com a monarquia e tirania ela

50
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 169.
51
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 132.
em sua corrupção também cairia no erro de substituir o bem comum para o bem de
alguns poucos.
No momento o Aquinate compara a sociedade a um corpo ele diz que existe
somente uma causa perfeita conjuntando tudo aquilo que se propicia ao bem
enquanto aos males existem causas diversas. Aristóteles faz sua hierarquia das
formas de governo percebe um maior afastamento entre a monarquia, a melhor
dentre as boas e a tirania, a piores entre as más e uma proximidade entre politia, a
pior das boas e a democracia, a melhor das piores 52.
Santo Tomás a partir do momento que fala do mal menor ele explica que
mesmo vindo à tirania da monarquia é melhor do que no governo aristocrático, pois
aí se corrompem muitos, contrariando a paz 53. Sendo assim, a cidade deve se
decidir pelo governo de um só, monarquia, do que pelo governo de muitos, mesmo
que dos dois tenham perigos.
Por isso Santo Tomás formula a melhor forma de governo, que não é toda
original, pois já na antiguidade clássica Políbio 54 já havia feito uma proposta parecida
de um governo misto, que até mesmo é considerado como o grande defensor dessa
forma de governo. Na Suma Teológica aparece de modo claro a resolução da
melhor forma de governo, como sendo mista, para o governo de uma cidade ou
nação:

Donde o governo mais bem constituído, de qualquer cidade ou reino,


é aquele onde há um só chefe, que governa segundo a exigência da
virtude e é o superior de todos. E, dependentes dele, há outros que
governam, também conforme a mesma exigência. Contudo, esse
governo pertence a todos, quer por poderem os chefes ser
escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos.
Por onde, essa forma de governo é a melhor, quando combinada:
monarquia, por ser só um chefe; aristocracia, por muitos governarem
conforme exige a virtude; democracia i.é, governo do povo, por,
deste, poderem ser eleitos os chefes e ao mesmo pertencer a eleição
deles55.

52
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 58
53
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 137.
54
Políbio (203 a.C. — 120 a.C) foi um historiador e geógrafo, sendo assim, não era filósofo, mesmo
assim deixou uma obra importantíssima sobre a teoria das formas de governo, como Maquiavel na
idade Moderna também não sendo filósofo, mas também deixou escritos importantes. Não se sabe se
Santo Tomás leu Políbio ou se teve contato com seus escritos.
55
Summa Theologiae, Iª-IIae q. 105 a. 1
A preocupação do Aquinate é a degeneração do governante em tirano então
ele propõe que o governo seja diluído, descentralizado. Essa é uma das razões que
podemos tomar para afirmar que Santo Tomás não é a favor do monarca absoluto e
mesmo sendo a favor da monarquia e reconheça nela uma propensão ao bem maior
do que nas outras formas ele reconhece a inexistência de uma forma perfeita.
Aristóteles também defende esta forma mista de governo em sua política:

Donde, o governo mais bem constituído, de qualquer cidade ou reino,


é aquele onde há um só chefe, que governa segundo a exigência da
virtude e é o superior de todos. E, dependentes dele, há outros que
governam, também conforme a mesma exigência. Contudo, esse
governo pertence a todos, quer por poderem os chefes ser
escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos.
Por onde, essa forma de governo é a melhor, quando combinada:
monarquia, por ser só um chefe; aristocracia, por muitos governarem
conforme o exige a virtude; democracia i.é, governo do povo, por,
deste, poderem ser eleitos os chefes e ao mesmo pertencer a eleição
deles56.

Nos dois trechos citados anteriormente vemos onde o pensamento de Santo


Tomás coaduna com o de Aristóteles e confirma que ele de fato bebeu das fontes
clássicas na formação de seu pensamento. Uma observação interessante acerca do
governo misto é a proximidade que se tem com a democracia hodierna que se divide
em três partes o poder e ocorre certa descentralização deste poder de modo que o
perigo da tirania se afaste do governo da cidade.
Santo Tomás defende a monarquia mesmo diante da proposta do governo
misto, pois dele deriva menor forma de mal. O governo de muitos propicia de modo
intenso a perversão de seus inúmeros membros e assim fica incontrolável e o bem
comum que é o objetivo da cidade até mesmo pelo contexto que ele está inserido na
Idade Média.
Portanto, viu-se a necessidade do homem de viver em sociedade e que essa
sociedade funda uma cidade. Santo Tomás apresenta algumas resoluções práticas
acerca da fundação da cidade e suas diferenças enquanto província e reino e a
cidade necessita de um governo para que todos cheguem a seu bom termo, que é o
bem comum, que nunca pode ser colocado a cima do bem privado. Por isso o
Aquinate privilegia o governo que menos se afasta da realização do bem comum e
que nele seus cidadãos possam usufruir da melhor forma possível; sendo a

56
Aristóteles. Política. II, 1270 b 6 - 1271 b 19.
monarquia na distinção clássica de Aristóteles ou na forma mista também proposta
por Aristóteles e Políbio na antiguidade clássica e transposta para seu tempo. O
próprio Cristo vai afirmar a necessidade da união do reino quando afirma que todo
reino dividido em si mesmo será destruído 57, então a noção de coesão e união do
reino é um fator decisivo para o bem da cidade.

3. O tirano
Depois de ver as bases do pensamento de Santo Tomás, sua teoria política e
a divisão das formas de governo que faz, será tratada neste capítulo a figura do
tirano. Santo Tomás não disseca o tema de forma metodológica, mas o trata assim
como Aristóteles a partir da forma má da monarquia, de sua forma corrompida.
Anteriormente foi dito que da melhor forma de governo deriva a pior, por isso
trataremos do tirano e se é possível depô-lo por meio do tiranicidio.
Santo Tomás não trás nenhuma novidade acerca do assunto, mas bebe das
fontes aristotélicas. Calvário trata assim sobre o tema: “É injusto o governo do tirano
em dois sentidos, um corporal, porque pode provocar danos corporais aos súbditos

57
Lc 11, 17.
e um mais grave que são danos espirituais.” 58 O principal receio sobre o tirano que o
Aquinate tem é justamente o dano espiritual, como religioso dominicano que é. A
tirania impediria um
bem viver, o bem comum e principalmente a vivência das virtudes. O rei não
pode ter o completo e irrestrito poder, deve ser temperado, por isso a proposta de
um governo misto, pois devem ser diminutas as oportunidades do rei se tornar um
tirano.
O Aquinate também bebe de outras fontes de seu tempo como João de
Salisbury59 em sua obra Policraticus. Assim diz Cavalhieri sobre esta obra e sua
diferença com a obra política de Santo Tomás:

O Policraticus é um complexo tratado de filosofia e teologia política


em que João de Salisbury faz uma análise da organização do Estado
e da relação entre os seus componentes. Trata-se da obra política
mais importante do século XII.247 Entretanto, o que diferencia o
Policraticus do De regno é, substancialmente, o conhecimento da
política aristotélica. Diferentemente de João de Salisbury, o qual
concebe o tirano como um ‘Ministro de Deus’ e fruto da vontade do
‘Criador’, Tomás de Aquino argumenta e concebe a tirania a partir da
teoria política de Aristóteles60.

Para João de Salisbury não existe um homem que não tenha tendência à
tirania, seja com todo povo ou num grupo restrito. A tirania sempre será exercida
onde houver e até onde forem os poderes dos homens políticos 61. Tende-se afirmar
que a tendência ao monarquismo em Santo Tomás se dê por conveniência ou até
mesmo por causa de seu destinatário ser o Rei de Chipre, mas na verdade o
Angélico quer fazer ciência e essa afirmação se faz leviana. A preocupação de
Santo Tomás acerca do bem comum, da vivência das virtudes e da ausência da
tirania já é uma boa justificativa contra este tipo de pensamento.
58
CALVÁRIO, Patrícia. O Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. Covilhã:
LusoSofia:press, 2008, p.11.
59
João de Salisbury (1120 – 1180) – Estudou na França entre os anos de 1136 e 1148. Foi aluno de
Pedro Abelardo, Guilherme de Conches e de Gilberto de Poitiers. Entre 1153-54, esteve em Roma a
serviço do bispo de Cantuária. Apoiou e foi secretário do sucessor de Teobaldo, Tomas Beckett, em
sua disputa com Henrique II. Em 1170, João estava nas dependências da catedral de Cantuária,
quando Beckett foi assassinado por ordem de Henrique II. Em 1176 foi eleito bispo de Chartres com o
patrocínio do jovem rei da França, Luis VII. “Foi um dos primeiros medievais a conhecer toda a lógica
de Aristóteles.” DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval: textos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p.
137. Sobre a vida de João de Salisbury,
60
CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. p. 77.
61
Cf. In: SALISBURY, Giovanni di. Policraticus. L’uomo di governo nel pensiero medievale. Tradução
de Luca Bianchi e Paola Feltrin. Milano: Jaca Book, 1984
O grande problema da monarquia na discussão levantada por Santo Tomás
não está por ela ser a melhor teoricamente, mas na prática todo ideal de que o rei
deve ser promotor do bem comum e das virtudes não acontece até mesmo sendo
pior do que as outras formas que ele apontara. Todo De Regno toma uma postura
de alerta e advertência ao rei para que ele não se deixe corromper pela tirania.
Souza Neto na introdução dos Escritos políticos de Santo Tomás diz que a
obra: “assume amiúde um tom parenético, fato que o leva a ser tanto um tratado
sobre a monarquia quanto contra a tirania.” 62, pois uma questão levantada é qual tipo
de tirania Santo Tomás aborda, se aquele que o tirano assemelha-se a um deus ou
aquele que a tirania se dá pela força. O Angélico se refere à tirania exercida pela
força à semelhança do ocorrido na Grécia antiga. Essa forma sempre é execrada e
indesejada pelos súditos.
No De Regno nos capítulos XI e XII Santo Tomás vai reforçar que não é
proveitoso ao monarca se tornar um tirano, pois seu tempo no poder sempre será
diminuto, pois será fundado sobre o temor não sobre o amor. Ainda Calvário diz que
“os reis conseguem mais riquezas praticando a justiça do que o tirano exercendo a
rapina; [..] até mesmo os bens terrenos advêm mais aos reis do que aos tiranos, por
isso mais vale, para o bem do próprio governante, ser rei do que tirano.” 63
Neste capítulo também abordará em linhas gerais como a tirania foi
compreendida pelo pensador moderno Nicolau Maquiavel e sua diferença com o
pensamento de Santo Tomás.

3.1. O Problema da Tirania


Como dito anteriormente o poder do tirano não é bem visto por seus súditos,
então o povo se vê diante de um problema já que aquele que deveria prover as
condições básicas para o bem viver não o faz e de modo mais trágico ainda coloca
uma carga nos ombros deles. Mas Santo Tomás diz que se a tirania não for
excessiva os súditos devem tolerar o tirano, pois depô-lo seria pior, porque pode vir
a acontecer que quem assumir o trono seja pior do que o deposto.

62
SOUZA NETO, Francisco Benjamin de. Introdução. In: TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos
políticos de Santo Tomás de Aquino. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 22.
63
CALVÁRIO, Patrícia. O Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. Covilhã:
LusoSofia:press, 2008, p.12.
Para Santo Tomás o maior bem que se é sociável e político é o bem comum e
o rei é quem está ordenado a conduzir a este bem comum. Esta é sua finalidade e
razão de ser. A condição para o governante agir corretamente é o compromisso de
governar a multidão para o bem comum. Quando se afasta desse compromisso
começa a degringolar-se em tirania. Quando se diz que o rei deve fomentar a vida
de virtudes do povo, tem-se por base que este também viva a mesma vida de
virtudes para que assim possa bem governar.
O problema da falta de virtude também é tratado na Suma Teológica quando
o Angélico explica sua preferência pela monarquia:

O governo real é o melhor regime para o povo, se não se corromper.


Mas, por causa do grande poder de que o rei é dotado, o seu
governo facilmente degenera em tirania, se não for perfeita a virtude
de quem foi investido nesse poder64.

A escolha entre o bem e o mal é feita pelo monarca e por sua virtude ou
ausência dela. Tanto a monarquia como qualquer outra forma de governo pode vir a
degenerar-se em tirania, mas a monarquia é a que mais constantemente é atacada
por essa tentação em se corromper. O principal problema e razão da tirania para
Santo Tomás, que se baseia em Aristóteles é a ausência de bem comum e a busca
do bem particular do rei, já convertido em tirano. Assim diz Santo Tomás que “se,
contudo, o governo se ordenar não ao bem comum da multidão, mas ao bem
privado do governante, será injusto e perverso o governo 65”. E ainda acrescenta
citando o profeta Ezequiel, quando o próprio Senhor adverte os maus pastores:

Daí ameaçar o Senhor tais governadores, por Ezequiel (34,2): “Ai


dos pastores que a si mesmos se apascentavam (como procurando
os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos
apascentados pelos pastores”. Em verdade, devem os pastores
buscar o bem do rebanho e os governantes o bem da multidão a eles
sujeita66.

Ainda Santo Tomás, afirma como já foi dito anteriormente qual é o principal
mal que o tirano incorre com seu povo. O mal espiritual é deveras maior do que o

64
Summa Theologiae, Iª-IIae q. 105. a 1.
65
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 128.
66
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 128-129.
mal temporal, justamente pela visão de eternidade que o santo dominicano tem a
partir do cristianismo. No problema da tirania será abordado também na ordem
temporal quanto na espiritual.
No campo temporal deve-se compreender tudo que envolva o mundo
material, aos bens adquiridos por qualquer cidadão de bem. A tirania vem quando o
rei toma aquilo que é de direito do cidadão, impelido pelas paixões desordenadas a
possuir tudo, inclusive aquilo que é de seu súdito. Santo Tomás assim fala sobre
essa prática: “O que é possuído da paixão da cupidez rouba os bens dos súditos;
daí Salomão (Pr 29,4): ‘O rei justo eleva sua terra; destrói-a o homem avaro’”.67
Seguindo no texto do De Regno, o Aquinate agora diz que se um homem for
levado pela ira chegando ao derramamento de sangue para satisfazer seus próprios
desejos essa vontade que o impele nesse assassínio que não é a justiça, mas sim
sua força68. A origem da tirania para Santo Tomás não é produto da razão humana,
mas uma paixão estranha que traz a insegurança e afasta a justiça. Cavalheiri diz
que “na prática, o matar por desregramento da vontade semeia a incerteza em todas
as ações dos súditos”69. Sendo assim também no campo espiritual as coisas se
tornarão incertas.
Na ordem espiritual além de desprezo ao bem comum e o domínio de um
caráter irracional ou até mesmo bestial que o leva a cobiçar, roubar pela força seus
povo, mata por motivo torpe e consequentemente gera insegurança e desconfiança
e se afasta da justiça e do direito.
Cavalheiri faz um contraponto do entendimento de Santo Tomás com o
Filósofo quando os dois tratam da mesma temática desta forma:
Essa argumentação de Tomás de Aquino aproxima-se da objeção
que Aristóteles faz à monarquia absoluta, entendida como sistema de
governo no qual o rei exerce uma autoridade universal, obedecendo
somente à sua própria vontade. Segundo o pensador grego, o reino
de um homem, que obedece somente à sua própria vontade, é
desejar o governo de “uma besta selvagem, pois o apetite irracional
tem esse caráter bestial, e a paixão falseia o espírito dos dirigentes,
mesmo dos homens mais virtuosos.70
67
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 133.
68
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 133.
69
CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 85.
70
CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 86.
A tirania além de impedir o bem viver de seus cidadãos no progresso nas
coisas temporais, o tirano impede na vida espiritual. Sem a prática da vida da cidade
a vivência constante das virtudes, que os leva a excelência é abalada. Essa falta
que causa na vida dos súditos também abala o próprio tirano no exercício de seu
poder “porque aos tiranos são mais suspeitos os bons que os maus, e sempre lhes é
de temer a alheia virtude”71. Ora os bons suspeitarem sobre a tirania é para Santo
Tomás “a razão pela qual pretendem os ditos tiranos que os seus súditos não se
tornem virtuosos nem adquiram o espírito de magnanimidade que lhes faça
intolerável a sua iníqua dominação72”.
Ainda Santo Tomás prossegue falando sobre o perigo para a soberania do
tirano que é a organização dos seus súditos para depô-lo. Porém o tirano faz de
tudo para que as relações entre o povo não se estabeleçam ou fiquem abaladas por
desconfianças ou coisas do gênero, pois “não confiando um no outro, nada possam
tramar contra o senhorio73”.
Também o tirano não faz seu povo crescer em riquezas, pois a mesma
também abalar seu poder e os ricos de seu povo podem vir a ser tiranos como ele,
já que ele mesmo, o tirano se utiliza desses mesmos artifícios. De uma forma geral,
o uso da força, o enfraquecimento de relações e o aniquilamento das virtudes são as
marcas gerais da tirania e deve de todos os modos ser evitado.

3.2. A tirania e o pensamento moderno: Nicolau Maquiavel


No pensamento moderno, a posteriori de Santo Tomás, surgem novos
pensadores políticos e aqui se destaca a figura de Nicolau Maquiavel 74 que não

71
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 134.
72
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 134.
73
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 134.
74
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) nasceu em Florença e foi chanceler da República Florentina,
secretário das nove milícias e é um importante pensador italiano do período da Renascença. Sua
principal obra é o tratado político “O Príncipe” escrito quando esteve exilado em San Casciano. Sendo
pai da ciência política moderna criando a noção de Estado como forma de organização de uma
sociedade. Sua descrição de como chegar ao poder e manter-se nele de formas pouco ortodoxas até
então o valeu a alcunha de maquiavélico para aquelas pessoas que utilizam de sua forma de
escalada ao poder.
concorda com a noção clássica de tirania como uma forma corrompida da
monarquia.
De acordo com Daniel Aust de Andrade a noção que Maquiavel é contrario a
tirania como forma degenerada é falsa como se vê a seguir:

Propomos que na busca pela verdade efetiva dos fatos Maquiavel


contraria outros autores políticos e não considera o tirano como uma
forma degenerada de governo – tradicionalmente associado à
corrupção da monarquia, tampouco aquele que governa com o uso
da força e da astucia, mas um modelo político possível que faz parte
do mesmo universo que os outros governos legítimos75.

Assim a distinção do governante de virtú76 e o governante tirânico se dão no


reconhecimento dos outros, coisa que é própria dos homens políticos. Para
Maquiavel, mais do que querer ser um bom governante ele deve parecer ser bom
através de suas ações. Os conceitos de “bom” e “mau” são trocadas por “louvável” e
“censurável”, pois para ele algo que se pareça virtude, praticada acarretará em ruína
e alguma com aparência de vício, seguida darão origem à segurança e ao bem-
estar77.
Sobre o questionamento se Maquiavel e contra as virtudes tudo aquilo que
anteriormente era louvado como características positivas do Rei, Daniel Aust de
Andrade assim afirma:

Cabe ressaltar que Maquiavel não deseja contestar aquilo que é


conhecido como virtude e como vício, tampouco procura
desmoralizar as noções mais comuns, o vocabulário moral tradicional
e aceito da humanidade. Ele não diz e nem sugere (como fazem
alguns reformadores radicais) que humildade, bondade,
espiritualidade, fé em Deus, santidade, amor cristão, veracidade
inabalável, compaixão, sejam maus ou atributos sem importância; ou
que crueldade, má-fé, política de força, sacrifício de homens
inocentes as necessidade sociais e assim por diante sejam bons. O
que o autor trata de afirmar é que não é necessária a posse dessas
qualidades, mas apenas aparentar possuir, e mais ainda, que o
príncipe terá proveito maior se não for prisioneiro das qualidades que

75
AUST DE ANDRADE, Daniel. O Tirano e o político em Maquiavel. Revista Vernáculo nº26. 2010.
p.59
76
Virtù é para Maquiavel a capacidade do príncipe de controlar as ocasiões e acontecimentos de seu
governo. O governante com grande virtù constrói uma estratégia eficaz de governo de governo capaz
de sobrestar as dificuldades impostas pelas imprevisibilidades da história. In: SILVEIRA SOUZA,
Rubin Assis. Virtù e Fortuna em Maquiavel a partir da obra ‘O príncipe’.
<http://www.jus.com.br/artigos/29050/virtu-e-fortuna-em-maquiavel-a-partir-da-obra-o-principe>
Acessado em 08/10/2015.
77
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro. Editora Ideia Jurídica. 1ª edição. 2014. p. 137.
ele finge possuir ter. Isto é, sugere que ao cumprir a sua função, o
disfarce não deve ser estranho à figura que ele recobre78.

A combinação virtudes no modelo cristão e a busca por uma sociedade


terrena satisfatória e vigorosa seria impossível no pensamento maquiavélico, da
mesma forma que apenas o existir das leis seria necessário para o respeito integral
aos compromissos firmados e para a bondade humana. A ação do príncipe de
Maquiavel também não é como ele bem entende, pois se agir assim seus súditos o
teriam como um louco e não teria o apoio deles numa futura batalha ou em algum
problema que os assolasse.
Interessante perceber que virtù não é um conceito semelhante ao que se
entende classicamente com os gregos e com o modo cristão, mas não está
totalmente desligado de uma valoração moral. Mas contrariamente ao Aquinate,
Maquiavel considera o uso da perversidade, maldade e da “boa crueldade”, coisa
que no pensamento cristão é inconcebível.
Pudemos ver de modo conciso que a abordagem dada por Santo Tomás
difere de Maquiavel visto que o filósofo de Florença lança mão de todas as
estratégias para se assumir o poder e assim também se manter e Santo Tomás
parte ao contrário, também se respaldando na doutrina cristã-católica. E tendo visto
também certo desprezo de Maquiavel acerca das virtudes até mesmo dizendo que
elas poderiam causar ruínas no governo, tem-se aí uma clara discrepância em torno
da doutrina do Aquinate, já que a vivência das virtudes sempre irá levar a si e seus
súditos a bom terno. Por isso Santo Tomás afirma que “quando os dirigentes, que
deveriam induzir os súditos às virtudes, nefandamente lhas detestam e vedam-nas o
quanto podem – poucos virtuosos há sob os tiranos 79”.

3.3. O tiranicídio
Alguns pensadores formularam que o mais justo diante de um regime tirânico
é a morte do tirano. João de Salisbury é um desses pensadores que corroboram
com o tiranicídio em sua obra Policraticus, segundo Calvário80. Até mesmo na
78
AUST DE ANDRADE, Daniel. O Tirano e o político em Maquiavel. Revista Vernáculo nº26. 2010.
p.62.
79
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 134.
80
CALVÁRIO, Patrícia. O Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. Covilhã:
LusoSofia:press, 2008, p.11.
história bíblica já houve relatos de tiranicídios, no Antigo Testamento 81, mas na
doutrina de Cristo o assassinato não é permitido, nem mesmo numa “causa justa”
como no caso da morte de um tirano. Santo Tomás, fiel à revelação Cristã também
não aprova o tiranicídio e lembra-se da forma que os cristãos foram perseguidos
pelos tiranos do Império Romano.
A melhor forma de se encarar uma tirania não excessiva é tolerá-la em nome
do pro bono pacis (para o bem da paz), já o excesso da tirania leva ao propósito de
matar o tirano. Cavalheiri afirma que “o excesso de tirania causa a escravidão de
uma multidão de homens em benefício de um só 82” já que essa é a pior forma de
opressão do povo. Neste caso, a morte do tirano libertaria a muitos do jugo
opressor, por isso a morte do tirano se justificaria não por se tratar de seu chefe,
mas de um inimigo do povo, lembrando que esta é a visão de Cavalheiri.
Nem toda insurreição contra o tirano é boa, pois segundo o entendimento do
Aquinate:

Pode, certamente, acontecer não cheguem a prevalecer contra o


tirano os que se lhe opõem e assim ele, provocado, se enfureça
mais. Se, entretanto, puder alguém vencer ao tirano, deste fato
mesmo advirão, muitas vezes, gravíssimas dissensões no povo,
dado que, durante a insurreição contra o tirano, ou, derrubado ele, a
multidão divide-se em facções, quanto à organização política83.

Nem toda revolta contra o tirano chega ao seu fim da forma que foi pensada.
Basta um olhar atento sobre a história ver quando um ditador, tirano que controlava
o poder de forma “moderada” foi deposto ou até mesmo morto por seu povo qual
foram as consequências desses atos. Recentemente no Oriente Médio durante a
denominada “Primavera Árabe 84” aconteceu justamente aquilo que Santo Tomás

81
Jz 3,15-28
82
CAVALHEIRI. Alceu. O Pensamento Político de Tomás de Aquino no De Regno. 2006. 119f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 90.
83
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 139.
84
A primavera árabe foi uma sucessão de eventos de revoltas populares na região da África
Setentrional e no Oriente Médio a partir do ano de 2011 que levou à cabo vários regimes tirânicos que
dominavam estes países a bastante tempo. Depostos ou mortos esses ditadores, os países se viram
diante de uma revolta popular pelo poder nas diversas partes do povo, tanto de parte religiosa, quanto
militar. Numa análise dos regimes desses ditadores, de certo modo o poder dos tiranos acalmavam
os estados de animo daqueles povos e que sob seu poder se mantinham em segundo plano.
Depostos, já não havia mais quem os impedissem de chegar ao poder, numa guerra civil que se
estende até hoje.
alerta sobre os perigos de uma revolta popular para tirar o poder do tirano. No
recente caso, o tirano que conseguia segurar os ânimos quem por algum acaso
pudesse tirá-lo do poder e também evitava a animosidade no seio de seu povo foi
morto ou deposto de seu cargo. Em todos os países em que os revoltos populares
aconteceram ou se instalou uma nova tirania, civil/militar ou pior ainda estourou-se
uma guerra civil entre partes do povo que se estendem até hoje como no caso da
Síria. Eis uma clara demonstração em que o pensamento do doutor angélico se faz
atual e presente na conjuntura contemporânea da política que é bem diferente da do
século XIII.
Santo Tomás afirma que é justo o povo resistir ao tirano e até mesmo
removê-lo de seu posto, mas a possibilidade do seu assassinato é rechaçada, pois
não encontra bases na doutrina apostólica 85. Segundo São Pedro em sua carta diz
que devemos ser reverentemente submissos, tanto aos senhores bons e
moderados quanto aos perversos86, portanto não é a toda e qualquer tirania que se
deve insurgir um levante, mas contra aquele que pesadamente oprime o povo e o
escraviza.
A iniciativa privada de assassinar o tirano não resolve o problema, mas pode
causar um maior ainda, pois o povo pode perder um bom rei do que afastar o perigo
da excessiva malignidade no governo da multidão. Portanto quem deve afastar o
tirano é a iniciativa da autoridade pública: “Quer, assim, parecer que não se deve
proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela
autoridade pública87”. Assim como afirma Salomão e Santo Tomás o cita como
exemplo que o sábio afugenta o ímpio88.
Santo Tomás na continuação de seu De Regno faz uma retrospectiva
histórica acerca da deposição dos tiranos e a espera de um novo rei pela autoridade
que compete dá-lo ao povo:

Se, porém, pertence ao direito de algum superior prover de rei a


multidão, também dele se há de esperar remédio contra a maldade
do tirano. Assim, de Arquelau, que já começara a reinar na Judéia
em lugar de seu pai Herodes, a quem imitou na malícia, foi, primeiro,
85
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 140.
86
1 Pd 2, 18 In: TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad.
Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 140.
87
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 140.
88
Pr 20, 26.
diminuído o poder, perdendo o nome de rei e sendo distribuída entre
seus dois irmãos metade do seu reino, visto terem os judeus
representado a César Augusto contra ele. Depois, como nem assim
se contivesse na tirania, foi desterrado por Tibério César para Lião,
cidade da Gália89.

Santo Tomás termina sua explicação sobre a possibilidade de tiranicídio


afirmando que caso não haja forças humanas para afastar o tirano do controle da
cidade, o que resta, não como ultima opção, mas como escolha frequente, a
confiança em Deus, o Supremo Rei. Deus “que em seu poder está converter à
mansidão o coração cruel do tirano90”.
E como forma de consolar o povo numa eventual tirania que eles não
conseguem remover, Santo Tomás faz uma bela passagem pelas Sagradas
Escrituras, mostrando como Deus na história da Salvação já livrou o povo do poder
tirânico pela ação de Sua mão.

Se, no entanto, de modo nenhum se puder obter auxílio humano


contra o tirano, deve-se recorrer ao rei de todos, Deus, que é socorro
azado na tribulação (Sl 9,10). Que em seu poder está converter à
mansidão o coração cruel do tirano, conforme a sentença de
Salomão (Pr 21,1): “Está na mão de Deus o coração do rei, e inclina-
o para onde quiser”. Foi Ele quem converteu à mansidão a crueldade
de Assuero, que preparava morte aos judeus (Est passim.). Foi
Quem de tal maneira converteu em tanta devoção o cruel rei
Nabucodonosor, que se fez pregador do poder divino. “Eis que
agora”, disse, “eu, Nabucodonosor, louvo e engrandeço e glorifico ao
rei do céu, porque verdadeiras são suas obras, e justos os seus
caminhos, e pode humilhar aos que andam na soberba” (Dn 4,34).
Aos tiranos que julga indignos de conversão, pode eliminá-los e
reduzi-los a condição ínfima, segundo o que diz a Sabedoria (Eclo
10,17): “Destruiu Deus os tronos dos chefes soberbos e no lugar
deles assentou os mansos”. Foi Ele quem (Ex 14,28; 15,1.4), vendo
a aflição do seu povo no Egito e ouvindo-lhe o clamor, arrojou no mar
o Faraó tirano com seu exército. Ele quem (Dn 4,30), ao citado
Nabucodonosor, antes ensoberbecido, não só lançou fora do sólio
real, mas ainda, privando-o da comunhão dos homens, mudou à
semelhança de animal. “Nem se lhe abreviou a mão” (Is 59,1) de
modo que não possa libertar de tiranos o seu povo. Pois, prometeu,
por Isaías (14,3; 58,11), que haveria de dar ao seu povo o descanso
do trabalho, da confusão e da dura servidão à qual antes se
sujeitara. E por Ezequiel (34,10, 2), diz: “Libertarei o meu rebanho da
boca deles”, isto é, dos pastores que a si mesmos apascentam. 91

89
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 141.
90
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 141.
91
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 141.
Santo Tomás também aponta as condições que o Senhor dá para que o povo
consiga se livrar o tirano que os assola:

Mas, para que o povo mereça conseguir de Deus este benefício,


deve afastar-se dos pecados, por isso que, em punição do pecado,
recebem os ímpios o mando, por divina permissão, como sentencia o
Senhor, por Oséias (13,11): “Dar-vos-ei um rei no meu furor”; e, em
Jó (34,30), diz-se que “faz reinar o homem hipócrita, em razão dos
pecados do povo”. Cumpre, por conseguinte, suprimir a culpa, a fim
de que cesse a peste dos tiranos92.

Podemos concluir que a possibilidade do assassinato no tirano em Santo


Tomás não existe por causa de sua fidelidade ao depósito da fé cristã. Viu-se
também que nem sempre a retirada do tirano de seu cargo, caso a tirania for
moderada é a melhor forma de se resolver este problema. Pois poderia incorrer em
agitações desnecessárias no povo causando sua ruptura ou até mesmo uma tirania
pior daquele que assumir o posto que esteja a vagar, pois não seria um homem
virtuoso a ocupar um lugar, mas apenas alguém o alcançou pela força. Por isso o
processo de retirada do tirano deve ser feito pela autoridade pública, não por
iniciativa privada. E o doutor angélico termina reafirmando a necessidade da
confiança no Justo Juiz e Supremo Rei em sua ação quando as possibilidades
humanas se findam.

TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco
92

Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 142.

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