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Aula 7. Da Pólis à Academia: Platão e a instituição da filosofia.

a) A prática da filosofia e o espaço da Academia.

A filosofia está para as escolas filosóficas como a poesia de Homero está para a
Hélade e a tragédia e a retórica para o espaço da Pólis. Esta frase quer dizer o seguinte: a
filosofia, como a épica e como a tragédia, está associado a um espaço imaginário. Ela é o
gênero de discurso próprio de uma encarnação espacial específica dos ideais gregos de
vida. Embora não sejam os únicos, o cânon da filosofia são as obras de Platão e
Aristóteles, os dois fundadores de escolas (respectivamente, a Academia e o Liceu) no
século IV.
A persona de Sócrates, o verdadeiro fundador da nova forma de vida associativa,
ocupa um lugar central na obra do primeiro, quez era seu discípulo direto. Sócrates não
quis, porém, fundar uma nova forma de vida, paralela à vida política. Seu ensino era dado
na ágora de Atenas da qual ele era m frequentador regular. Para todos os efeitos, ele era
um membro de sua elite intelectual, os sofistas, se bem que estranho. Sócrates teve outros
discípulos além de Platão. Um deles, Xenofonte, não via muito bem a diferença entre eles
e os sofistas; nem que, implícita em sua atividade estava a fundação de uma nova forma
de consórcio humano. Outros, como Diógenes, viam muito bem o conflito entre a vida
socrática e a vida propriamente política mas apenas de uma maneira negativa. Diógenes
foi o pai da “escola” dos cínicos, que não era uma escola realmente, pois não representava
uma seita propriamente mas apenas um modo individual de viver às margens da
sociedade, livre das preocupações do mundo (a lenda conta que ele vivia em um barril).
Dentre todos, coube apenas Platão o papel de sacar do conflito entre a vida filosófica e a
vida política a consequência positiva: a fundação de uma nova forma de vida associativa,
que representasse uma espécie de versão purificada da vida na pólis: a escola filosófica.

b) Por que fundar uma escola?

A ideia de fundar uma escola foi provavelmente o resultado direto das viagens que
Platão fez à cidade de Siracusa na ilha da Sicília. Lá ele sofreu, por volta dos quarenta
anos de idade, a segunda experiência política mais importante de sua vida: o fracasso. (A
primeira, claro, fora a morte de seu mestre, também ela uma experiência de fracasso).
Platão fora convocado por um amigo entusiasta para implementar, na cidade de
seu pai uma reforma orientada pelos princípios socráticos. O que consistia, prática, na
reforma da moralidade do círculo governante. Não devemos enxergar na atividade de
Platão como estadista um administrador contratado para impor umas reformas à
organização da cidade mas antes um reformador religioso interessado na conversão – no
sentido literal, não cristão, do termo metanóia, o de “mudança de mentalidade” – do
poder. Embora seus diálogos estejam cheios de sugestões de reformas institucionais, de
acordo com sua própria filosofia, qualquer reforma da cidade deveria começar pela
reforma moral da elite e, particularmente, do tirano. Ocorre que a elite e o tirano em
questão, Dionísio I, eram, parece, imensamente corruptos e a mensagem de moderação,
disciplina e justiça de Platão não foram bem recebidas. A operação de implantar uma
cidade justa foi tão mal sucedida como a de seu mestre Sócrates em Atenas. Platão não
foi condenado à morte mas foi vendido como escravo por Dionísio e teve de ser
recomprado por seus amigos. Até então, a prática da filosofia tal como os discípulos de
Sócrates a compreendiam tinha por finalidade a restauração moral do estado a partir da
reeducação de sua elite feita na própria cidade. A dialética era mais ou menos tida como
um substituto tanto da poesia (incluído a Épica e a Tragédia) quanto da Retórica dos
sofistas. É verossímil supor que o fracasso em Siracusa tenha terminado de desenganar o
filósofo de uma ação direta sobre a sociedade semelhante a que Sócrates exercera sobre
eles próprios. E é bem possível que as seitas pitagóricas que existiam na Sicília na altura
em que ele lá esteve lhe tenha inspirado o projeto de criar uma pólis nova dentro da velha,
assim como um dia Atenas tinha querido criar uma Hélade dentro da Hélade. O o que
significava fundar uma escola filosófica, um tipo de instituição que até então não existia
no mundo antigo.

c) O destino da Academia. Continuidade e descontinuidade na história da filosofia.

Fundada em 386 a C a Academia funcionou no mesmo lugar até 83 d C quando


foi arrasada pelo imperador romano Lúcius Cornelius Sulla, na ocasião da chamada
primeira guerra mitridática,pelo domínio do mundo grego. A escola não deixou de existir
por conta da perca de sua sede. Durante os 400 anos seguintes, quando a cidade estava
sob o domínio do Império Romano, o platonismo continuou sendo ensinado na mesma
cidade de Atenas, embora não mais no mesmo ginásio. Em 530 d. C, ou seja, mais ou
menos oitocentos anos depois de sua fundação, o imperador Justiniano suspendeu a
proteção que dava à escola, encerrando a fase ateniense da Academia, mas não sua
existência.
Por esta altura, os filósofos neo-platônicos eram uma comunidade internacional
com ligações nos principais centros intelectuais do mundo antigo, como Constantinopla,
Alexandria e Antioquia. Sua dispersão os levou até Bagdá onde sua atividade de
tradutores pode ter ajudado à fundação da Casa da Sabedoria, a biblioteca fundada pelos
califas abássidas que esteve na origem do período dourado do Islã. Quase um milênio
depois disto, durante o Concílio de Florença em 1453, Cosimo de Médici teve contato
com o filósofo neoplatônico Gemistos Pletho, e ficou tão impressionado que resolveu
refundar a academia platônica em Florença, sob a direção do tradutor e maior conhecedor
local do filósofo, Marsílio Ficino. O neo-neo-platonismo italiano era colorido pela
pretensão de fundir platonismo e uma versão mística da religião cristã, não muito em
acordo com a versão oficial da Igreja. Embora a inclinação mística possa dar a entender
o contrário, o platonismo florentino é a inspiração de uma parte importante do
pensamento político moderno e também do pensamento científico.
Mais longe não precisamos ir para mostrar que dos três espaços imaginários grego,
das três Grécias, a Hélade, a Pólis e a escola filosófica, esta última foi a que mais tempo
durou. A tal ponto que podemos dizer que as outras duas só ocupam em nosso imaginário
o lugar que ocupam por conta dela. Não fosse a leitura contínua das obras de Platão,
Aristóteles e de seus herdeiros ao longo da Idade Média, a experiência da pólis jamais
teria adquirido a relevância que adquiriu na própria auto-interpretação do ocidente, que
até hoje utiliza um vocabulário majoritariamente grego para se referir às próprias
instituições. Ao mesmo tempo, devemos nos precatar de que se somos herdeiros da escola
filosófica, não o somos da Pólis. Ou melhor dizendo, só o somos desta por intermédio
daquela, o que faz toda a diferença. Chamamos nossos sistemas de governo de
democracias mas eles pouco tem a ver com as democracias antigas. No plano
institucional, o estado moderno é o herdeiro direto das comunas medievais, não da pólis.

d) Continuidade ou descontinuidade histórica?

Por dever de ofício, historiadores, e particularmente historiadores da filosofia,


preferem chamar atenção para as descontinuidades que paras as continuidades da história.
É verdade, e nem poderia ser diferente, que o ensino da Academia não foi o mesmo
durante toda a sua existência, e que, em muitos casos, as ideias dos filósofos neo-
platonicos em pouco lembram as que podemos ler na República e nas Leis. Mas também
é verdade que o coração do platonismo não são as ideias filosóficas mas a vida filosófica;
e que, ao contrário da vida religiosa, esta última é uma prática do espírito que não depende
de uma continuidade geográfica ou mesmo institucional. Descontada a exigência destas
últimas, a continuidade histórica do platonismo torna-se uma ideia muito mais fácil de
afirmar sem que fazê-lo signifique negar as mudanças naturais que decorrem de qualquer
desenvolvimento histórico de longa duração mas apenas reconhecer que elas não são
suficientes para fazer o fenômeno estudado uma outra coisa. E conciliar-se com o fato de
que, se toda continuidade histórica, desde a das grandes religiões mundiais até a dos
estados, tem um quê de construída, tal não as faz menos reais por conta disto.
O caso do platonismo é a até comparativamente mais simples que o das religiões
e dos estados. Na falta de qualquer critério oficial que se assemelhe aos dogmas da Igreja,
ou de uma continuidade política como no caso das religiões mundiais, ou de uma
persistência geográfica, como no caso dos estados e das culturas, podem ser tomadas
como representantes da extinta academia todas as comunidades de estudiosos que tenham
se reunido por um período longo o suficiente para cultivar as obras e tal como a
interpretem. Segundo este critério frouxo mas não inexato, incluem-se como
continuadoras da academia tanto as comunidades filosóficas das grandes cidades do
mundo antigo – do funcionamento das quais temos não mais que pistas esparsas – até a
distante academia platônica de florença. Não incluem-se – e isto é importante, pois não
se trata de simples ideias – os leitores individuais curiosos, os teólogos cristãos que, se
leram e aproveitaram ideias platônicas, o fizeram em outro ambiente institucional; como
não incluem-se, claro, os eruditos modernos, que não mais entendem estudo da filosofia
como uma forma de vida. Talvez devam ser incluídos – seria matéria para um fecundo
debate – os sábios muçulmanos como Al-Farabi e Mulla Sadra, praticantes de uma
religião que parece ser mais capaz de absorver o projeto platônico sem descaracterizá-lo
que o cristianismo.
Qualquer que seja a resposta que, em cada caso, se dê à pergunta de que círculos
de estudiosos historicamente identificáveis são realmente herdeiros da academia e quais
não são, resta que esta perspectiva que é, ao mesmo tempo, existencial e não historicista
da filosofia, complementa a perspectiva tradicional da história das ideias, que tende a
apresentar a prática filosófica como um conjunto de teorias que são colhidas e passadas
pra frente por filósofos ao longo da história. A filosofia é isto também, e não resta dúvida
que esta é sua dimensão mais importante. Ocorre que ela foi concebida como, e também
é, uma forma de vida, semelhante às formas de vida que chamamos religiosas. Como
estas, possui uma existência histórica concreta à qual merece ser chamada a atenção.

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