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Filosofia do Direito

Professor: José Rossini

Apresentação e breve conversa

O professor não iniciou a matéria de seu programa propriamente


dito nesta primeira aula, mas nos deu alguns conceitos para nos situar.
Infelizmente não consegui capturar a contento. Houve várias brechas de muitos
minutos cada. As linhas horizontais representam esses lapsos. O professor
também escreveu, no quadro, o esquema da segunda aula, em que ele começa a
discutir Sócrates.

Vamos trabalhar Filosofia do Direito, atualmente no sétimo


semestre, e não mais no décimo. A mudança se deu em virtude da construção do
perfil que se pretende formar do profissional aqui.

Nossa disciplina é diferenciada dentro da formação convencional do


bacharel em Direito, porque, desde a Revolução Francesa, aqui e no mundo,
houve passado colonial que trouxe um.

Os Códigos não têm todo o Direito, mas um momento dele. Depois


da codificação, ensinar Direito passou a ser sinônimo de ensinar Código. Até
que surgiram alguns pensadores que passaram a pensar mais nas questões
metalegais. Professores não são professores de Códigos, mas de Direito. o
Código encerra, ali, a norma apenas em um momento dentro de uma estrutura
mais complexa que é o Direito. Direito não corresponde a lei e vice-versa.

O próprio Direito Romano passou por três momentos, o pré-


clássico, o clássico, e o pós-clássico, de sua decadência. Este momento foi o que
o Império Romano se cindiu de sua banda oriental.

O que significa a expressão Estado-nação? No sentido mais literal,


vocabular, pré-conceitual: o que significa? Estado-nação significa
literalmente situação nascente. O Estado legalista de hoje em dia emergiu em
que momento? Quando ele era uma situação nascente?

A situação nascente refere-se ao fato de que o Estado moderno surge


entre os séculos XIII e XIV da Cristandade. Situemos a situação nascente diante
do quadro social onde ele emergiu. Idade Média, no mundo europeu, às portas
do final do feudalismo. Cada um em seu quadrado mesmo. Feudo vem de gado,
que, naturalmente, estava sobre a terra. Sem gado sobre a terra, sem
feudalismo! :P

O mundo feudal é o mundo da autarquia. O que é mesmo? Cada


feudo é um mundo fechado, em si mesmo, hermeticamente fechado. O senhor
feudal é o titular da terra, o rentista, autoridade econômica, militar, social,
política, jurídica, exceto divina. Só a Igreja tinha influência sobre os feudos. Não
há terra sem Igreja, nem aldeia sem Igreja. Onde está o feudo está a Igreja. A
cosmovisão não é uma produção do feudo, mas uma produção universal.
O senhor feudal era representante dos bárbaros que pouco antes
derrubaram o Império Romano.

Posteriormente, foram cristianizados, e passaram a se submeter ao


Código de Direito Canônico.

A autoridade estava absolutamente dispersa, com uma malha


infinita de feudos, pois cada um deles era a expressão de uma autoridade. O
mundo era um mundo de reis cristãos, condados, ducados. A situação nascente
era diferente porque ali se fundou a autoridade institucional do Estado com a
unificação dos feudos. Serviu para condensar, concentrar e unificar o poder.

E soberania, o que é? Igualdade essencial entre os Estados?


Vejamos. O conceito é relativamente recente, da era moderna, de Jean Bodin.
Autor de um clássico chamado Seis Livros Sobre a República. Bodin, neles,
lapidou o conceito de soberania. As nações reivindicaram para si uma condição
de posição central no poder. Soberano é aquele que, diante de certo território,
diante de certa população, reconhecido como autoridade, tenha capacidade
exclusiva, portanto soberana, de dizer o Direito. Essa é a acepção originária. A
capacidade de realizar a dicção do Direito.

Esse sujeito é o principal, também chamado de príncipe. Daqui


surge o Estado absoluto, que realiza a dicção exclusiva do Direito. O contrato
social vem depois disso.

Essa teoria de Bodin é a fonte do positivismo moderno, com Direito codificado.

Introdução

Vamos começar.

O professor não recomenda livro nenhum. Há alguns


textos, entretanto, que talvez ele nos indique ao longo do
semestre, postando no SGI. Esses textos têm um único defeito:
são de autoria do professor, diz ele mesmo!

Então, Filosofia. Qual a perspectiva? Ela começa no


século VI a.C. Não para o professor, pois, para ele, a Filosofia se
faz presente de maneira difusa nas religiões e na vida dos povos.
Estava na civilização chinesa, persa, assíria, hindu... todas
anteriores à grega. Há Filosofia antes mesmo de desaguar num
governo.

No Egito, por exemplo, o homem cristaliza na pedra sua


relação com o tempo. Ele o faz buscando a eternidade.
Compreende-se que, ali, de maneira difusa, do ponto de vista da
consciência social, se chegava a uma relação metafisica, acima do
palpável, do visível com as circunstâncias da existência. Múmias e
pirâmides são reveladoras dessa dimensão ontológica e metafísica
dessa consciência. Vida, existência, morte, renascimento,
eternidade, que são temas filosóficos intemporais. Todos estão
plenamente presentes na Filosofia egípcia.

O que acontece com a Filosofia em Atenas? Lá a


Filosofia ganha autonomia, tornando-se, em si mesma, uma forma
de saber social. Antes a Filosofia estava imbrincada com outras
formas, como até na magia, no mito e na religião.

Ao ganhar autonomia, a Filosofia alcança, em Atenas, a


Filosofia legitima, por si só, o que é característico dessa forma de
saber social. O que significa isso? a Filosofia é muito mais a
capacidade de indagar, de interrogar-se do que a capacidade de
deslumbrar-se com as respostas. Está mais na interrogação do que
na exclamação. Quando se chega a alguma exclamação na
Filosofia, ela necessariamente está preparando novas e
incessantes possibilidades de indagar novamente. A busca é
eterna pela verdade.

Em Atenas temos dupla perspectiva da Filosofia: a


Filosofia natural, também chamada de Filosofia primeira,
originária, e pré-socrática. Por que Filosofia da Natureza? Porque
nesse momento as grandes interrogações que cercam o homem
dizem respeito ao mundo e à vida. É a busca pelo
chamado ápeiron, a substância primeira, a causa das causas. o
que se quer saber é a materialidade do mundo e da vida. Do que é
feita? Qual a origem material do mundo e da vida? A Filosofia
Natural, ordinária, pré-socrática irá construir diferentes respostas
sistemáticas em sua aparência alegórica.

O ápeiron transpassa a ideia de fogo, ar, água e pó, até


chegar à partícula átomo. Isso inclusive foi revisitado na Suíça há
meses com a experiência no acelerador de partículas, e se
investigou a origem do mundo.

Tales de Mileto tem um argumento fundado na lógica


formal que mostra a inteligência do que estamos trabalhando: o
mundo seria derivado da água, e a vida também. É um
pressuposto sobre o qual é construído seu pensamento.
Demócrito, outro atomista, chegou à ideia de que o átomo não é a
matéria da matéria.

Por que é relevante discutir a materialidade da vida e do


mundo? Porque o que acontece na Grécia antiga é que ali
desaguam inquietações milenares precedentes, que são
reveladoras de um homem que está se defrontando com um terror
cósmico: um homem sem ciência, sem tecnologia, e que tem uma
relação de desigualdade com a Natureza, pois não tinha a força. O
homem buscava escrever a saga de sua sobrevivência. Para viver,
portanto, o homem deveria entender o Código Natural. Ele
encontra respostas no mito, na magia, na religião, e, um dia, na
Filosofia.
 

A Filosofia Socrática

A outra Filosofia, que é a Socrática, já que Sócrates


dividiu as águas da Filosofia, é um produto de circunstâncias
novas e diferenciais. Por quê? a Filosofia social, acrescentando um
novo capítulo, passa a líder com a natureza do homem, o homem
em si mesmo, e não mais a Natureza. O homem é um ator social
que convive na cidade. Na cidade, a confirmação da cultura
consolidou uma nova natureza, artificial, um novo casulo, produto
exclusivo da cultura. Obra puramente humana! Tal como a
própria cidade. É o embate da cultura com a natureza, no aspecto
natural e material, que permite a criação de um objeto chamado
cidade. O homem que vivia nas montanhas e florestas passa a
viver num cenário exclusivamente resultante de sua capacidade de
concessão. A cidade teve que ser concebida e construída. É a
cultura que permite a afirmação da arte na história.

A história da humanidade é a história da urbanização do


homem. Das cidades derivam as metrópoles, daí as megalópoles,
por fim a cosmópole, nesta ordem. Qual nosso horizonte de vida?
Vivemos em Brasília, ou, na verdade, na Terra? Aqui em Brasília
estamos bem perto das embaixadas, que conectam nosso Estado
aos seus pares no mundo. Hoje já temos condições de saber e nos
interessar por o que acontece no Egito, no Iêmen, na Líbia. Nossa
vida será cada vez menos circunscrita pela localidade, e a
universalidade ganhará cada vez mais força. O desafio será manter
a identidade local e as autonomias locais.
A cidade é uma transgressão absoluta para com a vida
natural. A cidade é uma pretensão de defender o homem de si
mesmo, de outros homens, de animais selvagens, dos estrangeiros
que varrem ameaçadoramente o mundo. E o que a cidade faz é
condenar o homem ao social, pois ele está vivendo, agora, num
espaço circunscrito. As pessoas estão presas na cidade agora. A
única diferença entre um presídio e uma cidade antiga é que esta
era território sagrado, considerados lugares em que se vivia na
companhia dos Deuses.

Aristóteles diz o que da cidade? Tudo o que é humano


está na cidade. De fora dos muros temos vida natural, que não é
humano, mas rústico. Daqui se depreende que a cidade humaniza
o homem, civiliza-o. A civilização é o que, em tese, nos distancia
da barbárie.

E como a sociedade condena o homem ao social? Por


meio da remoção da escolha de viver sozinho. Ninguém vive
sozinho na cidade. Na montanha, o ermitão pode vislumbrar a
aproximação de invasores, e aí se retirar para a floresta, ou optar
por ficar. Hoje usamos os mesmos elevadores, vamos aos mesmos
destinos. Alguém já disse: “o diabo são os outros.” Como seria
maravilhosa a vida sem ninguém para nos atormentar! 

Avancemos. Do que se trata esse fenômeno


transformador da história da sociedade? A vida central como vida
urbana, tal como em Atenas, considerada capital do mundo
antigo, que amplia os contatos entre humanos. Antes da cidade,
nas vilas, feiras de comércio dispersas e aldeias, não se vivia em
contato permanente, e não havia circunvizinhança necessária.

Já se disse: “onde está o homem está o perigo.” ¹ Quanta


necessidade de regência da vida na presença de mais homens! A
cidade estabelece uma necessidade de nova regência da vida
social.

A Família é a célula materna da sociedade. O regente é o


pai, que tem hierarquia sobre o grupo familiar. Poder sobre
clientes, mulheres, filhos e escravos. Ele decide o destino de sua
comunidade familiar. No entanto, a vida não foi feita sempre de
famílias isoladas. Havia também as vilas, com vizinhança
necessária, organizadas para defesa contra o inimigo externo.
Todos se defendem na vila. E quem é a autoridade da vila? Não
pode ser o pai de família. O sujeito que surgiu foi o Vilão Mor, o
chefe da vila. Ele determinava o sistema de segurança, de
abastecimento, de distribuição de atividades, e assim por diante.
Vilas congregadas fizeram surgir as cidades. A hierarquia cresce
organicamente, bem como a autoridade. Isso desagua na
formação do Estado.

A autoridade do Estado é pessoal ou institucional?


Institucional, necessariamente, em todos os tempos. Se alguém
disser “L’État c’est moi”, isso está errado, pois a autoridade é
institucional, e não pessoal. O Estado é uma criação humana,
rigorosamente aberta, e nada autoriza a dizer que vai acabar
amanhã ou será eterno.

O que isso tem a ver com Sócrates? Com ele, o homem


pôde planejar a existência, programar o dia seguinte, abastecer-se,
que é uma tarefa crucial na vida da humanidade. Tal como
significou o fogo quando de sua criação.

A cidade permitiu a existência de um sistema de


abastecimento, resolvendo o problema da sobrevivência. Os
produtores armazenam e trocam seu excedente por outros artigos,
prática típica da vida citadina. O abastecimento para 25 mil
pessoas se tornou problema do passado, e até o ócio começou!
Pela primeira vez na cidade foi possível o homem deitar e sentir-se
seguro para o dia de amanhã e depois. O que fazer em seguida?
“Descubra-te a ti mesmo”, disse Sócrates. É a mais infinita das
viagens: a introspecção.

É hora de o homem se tornar objeto maior dessa


necessidade de conhecimento. Buscar-se, realizar o
autoconhecimento, e assim surgiu a Filosofia social.

Quem irá disciplinar a vida social? O Estado, que se


formara. Qual ferramenta? A religião, a etiqueta, os costumes, e,
por fim, o Direito. Este último com capacidade de coercibilidade.
A demanda social é por paz, e o Estado promete justiça.

Atenas domina o mundo cultural, militar, econômica e


politicamente. Os persas, civilização anterior, já haviam
desenvolvido o desejo de dominação universal. Os persas criam
um império indo da África a além do Oriente Médio. Destruindo
Atenas, poderiam dominar o mundo civilizado. Persas eram
temidos, mas um general ateniense, Temístocles, consegue vencer
os persas no mar. Atenas sobrevive e o Ocidente também, pois
essa transição do Ocidente para o Oriente traria a imposição de
um modelo cultural diferente para o resto da existência. Foi a
batalha de Salamina.

Eis que, dessa batalha, nasce a glória política de


Temístocles, bem como sua ruína. Queria um exercício vertical do
poder. Acabou exilado. Aceitou abrigo justamente na Pérsia.

Atenas criou uma liga de defesa do mundo contra os


persas, e cobrou tributos de mais de 150 cidades-Estados. Com a
entrada de dinheiro, veio a corrupção, e o tratamento da coisa
pública como própria. Aqui emergiu Sócrates, vindo das castas
populares.

Disse que o mundo estava dividindo entre pessoas que


viviam do fazer e pessoas que viviam do saber. Este último era
para poucos, para senhores. Essa atividade era chamada de
“télos”, que era a percepção. Somente estes poderiam dirigir a
cidade. Os outros somente fazem, mas nada sabem, e não
poderiam dirigir a cidade a conforto. Não poderiam nem se
manifestar sobre os rumos da cidade. Sócrates, entretanto, filho
de uma parteira e de um escultor, veio do puro mundo do fazer.
Trabalhar era considerado diminutivo no mundo antigo; era um
signo de insignificância, um demérito no mundo social. Se
trabalha, é insignificante. Não é patrício, não é nobre. O
comerciante era uma das maiores vítimas de preconceito.

Somente depois surgiu a ideia de que o trabalho


dignifica o homem. Inclusive vem do termo tripalium, um
instrumento de tortura do mundo antigo!

1 – O professor mencionou um nome como autor desta frase, e o


que de mais próximo meu ouvido pegou foi “Leon Proat”. Não
encontrei a confirmação, entretanto.

Sócrates

Vamos continuar falando de Sócrates.


Sócrates era um divisor de águas dentro do pensar
filosófico antigo. Partimos do princípio de que a Filosofia não
começa em Atenas, mas já existia de maneira difusa, em várias
outras civilizações, milênios antes da grega.

Com Atenas, a Filosofia se autonomiza, tornando-se


nova forma de saber social, sem confusão com a literatura, a
magia ou a religião. Essa forma de elaboração do saber social, em
Atenas, se desenvolve primeiro como Filosofia da Natureza e, num
segundo momento, como Filosofia Social. Esse segundo momento
começa exatamente com Sócrates. Ele é o marco da transição da
Filosofia da Natureza para a Social, sem que jamais deixe de
existir a primeira. A cosmovisão não deixou de ser uma
preocupação entre os pensadores.

De tal sorte que Sócrates se singulariza porque ele vivia


na cidade, na vida citadina, preocupando-se com as formas de
convivência, e notou-se que a cidade condena o homem ao social.
Importou, a partir daí, saber o destino da sociedade. Buscava uma
função social para o intelectual. A função social autônoma e crítica
do intelectual serão os iluministas no século XVIII. Esses são os
primeiros intelectuais autônomos, pois, até então, eram todos
protegidos, de generais, de príncipes, de papas, de comerciantes.
Os mecenas patrocinavam a produção de conhecimento e do
pensamento crítico. Não havia mercado consumidor das letras e
das artes. Assim, para que Michelangelo e Leonardo da Vinci
existissem, eles precisariam de um patrono.

Quando se chega à sociedade moderna, às vésperas da


Revolução Francesa, esse patrocínio do conhecimento perdeu
força. Já há autonomia de vida urbana maior. Forma-se uma
liberdade quanto à sua capacidade de consumir, inclusive
conhecimento. O mercado se torna a regra da vida, alcançando a
esfera das intelectualidades. Surgiu a indústria da cultura,
inclusive com pesquisa de mercado de gostos, para direcionar a
produção a diferentes classes. Foi o Barão de Voltaire, às portas da
revolução, que disse: “eu vim para dizer o que penso”. Sócrates,
entretanto, estava a milênios de distância, e já tinha o mesmo
pensamento autônomo. Ele não devia a nenhum padrinho, até por
causa de sua origem pobre.

O que Sócrates pretende da essência? Que todo e


qualquer cidadão concorra para os objetivos da cidade, e buscava
instituir a corresponsabilidade. É, grosso modo, o que, por
exemplo, a OAB busca fazer hoje em dia: numa sociedade
desorganizada, opinar sobre o que é razoável e o que não é.

O ser, no mundo socrático, se evidência por meio do


magistério público, da condição de preceptor público. Preceptor
era um professor que, tradicionalmente, na história do mundo,
era voltado para a educação do chamado delfim, o filho do rei teria
que ser preparado para conduzir a sociedade, por meio do
magistério. Alexandre o Grande passou treze anos na companhia
de Aristóteles, seu mestre, e inclusive o convidou para as
campanhas. Aristóteles recusou porque sabia que sua vocação não
era de guerreiro, mas de pensador.

As nações Europeias do século XVI notaram que,


naquele tempo, importava é a dominação do espaço, então se
lançaram ao oceano. Assim obteriam riqueza. Por isso os Estados
nacionais, que se organizaram tardiamente como a Alemanha e a
Itália, se unificam para redividir o mundo pouco depois. Itália
demorou, e o último ato de unificação foi da década de 20 do
século XX, com o Tratado de Latrão.

A questão do espaço passou a ser menos relevante. Veja


Cingapura, por exemplo: nação muito próspera, mas seu espaço
aéreo pode ser cruzado em poucos minutos. Já o Brasil, com
dimensões continentais, está na contramão da história da
tecnologia.

Sócrates, portanto, é exemplar no que toca ao exercício


do saber. As sociedades apodrecem, se decompõem. Pode ser uma
viagem de nascimento, vida e morte. Chegando nesse plateau,
nada garante que irão permanecer nesse topo para sempre. Veja
todos os impérios, do Romano ao Império Mongol de Genghis
Khan. Para fora, os Atenienses resistiram aos Persas, com seus
vários lideres que queriam a dominação universal. Mesmo hoje,
com Mamoud Ahmadinejad! Até que Temístocles derrotou os
persas no mar na batalha de Salamina. Foi a batalha que salvou o
ocidente. Graças ao trirreme, navio de guerra dotado de um aríete
na quilha sob a proa considerado uma inovação tecnológica.

Temístocles, com muita glória, se tornou um problema


para Atenas. Poderia aproveitar de seu prestígio para instaurar
uma nova moral. Mas, sem raízes nas facções políticas, ele
termina não apenas fora do circuito político mas também exilado
de Atenas. Reconhecendo a grandeza de Temístocles, os persas lhe
oferecem asilo, uma ironia do destino! Temístocles se tornou
alguém do mesmo campo meritório de Napoleão Bonaparte, que,
apesar de vencer 43 batalhas das mais importantes da
humanidade, acabou se tornando um problema também. Mas este
registrou sua façanha: o Código Civil Francês.

Os atenienses, aproveitando seu prestigio por ter


repelido os persas, aproveitaram para vender proteção a mais de
150 outras cidades, cobrando impostos em troca de guarda.
Instituiu-se a corrupção. Levou à crise moral e decomposição dos
costumes. Sócrates entende então que devia-se acabar com o
politeísmo, e levantou a bandeira da unidade de Deus. Sócrates
mesmo é oriundo do mundo do fazer, daqueles que não tinham
condições de ter o saber, de ter a percepção, o télos. Criticava os
que cultuavam o ócio com dignidade, os que gozavam de tempo
livre e pouco fazer. Sócrates inclusive foi acusado de ateísta, do
ponto de vista da fé. Pegou os filhos das elites e ensinou-as, num
processo de reprodução da sociedade.

E é o que estamos fazendo aqui nesta faculdade de


Direito! Entraremos no processo de reprodução da sociedade.
Cada um assumirá um papel social.

Auguste Comte disse: os mortos governam os vivos. É


por eles que nós, vivos, somos ensinados. O mundo é muito mais
conservação do que mudança, ou também não haveria
absolutamente nenhuma regra. Cabe aos vivos dilatar as
experiências sociais vividas pelos mortos. Não se pode deixar
interferir nessa formação negativamente, ou essa reprodução não
será possível.

Sócrates ficou, portanto, conhecido como grande sábio,


muito embora dizendo que tudo o que sabia era que nada sabia.
O que ele fazia era estimular a autoprodução de conhecimento por
meio da maiêutica, que significa “parteira”: parir a verdade,
modelar a ética. É o método da dialogia, da interlocução, em que
se ouve, se aprende a ouvir, para que se possa intervir nas
convicções falaciosas dos outros. Daí seu combate vigoroso aos
sofistas, um corrente de retóricos que ensinava a juventude a se
defender de toda e qualquer acusação que lhe seja feita.
Acreditava-se que o jovem não precisava ter raízes morais
profundas; bastava o traquejo. Sofistas estão para a Filosofia
assim como a prostituição está para o amor. Busca a inquirição
para saber a procedência de sua argumentação. Ele mostra, ao
outro, que suas aparentes convicções não têm absolutamente
nenhuma sustentabilidade. Até o paroxismo, o ponto em que o
outro não tem mais como argumentar. O objetivo maior é mudar a
consciência, mudar a atitude. Foi acusado de ser corruptor da
juventude, e foi levado ao Tribunal de Atenas. Pediu aos discípulos
que trouxessem todos os candidatos a advogado, e foi
dispensando, depois de um diálogo, um a um, pois eram todos
sofistas. 561 jurados, e Sócrates resolveu fazer sua própria defesa.
Com o tempo medido em ampulheta, aproveitou para dar a última
lição: quais os problemas da sociedade, como a cidade deveria ser
refundada, e qual a melhor forma de viver.

Na condenação, a ele foi dada a possibilidade de escolher


sua própria pena. Havia um templo chamado Pritaneu, e para lá
foi levado. Só tomou o cálice fatal de cicuta depois de passar por
um mês de rituais religiosos. Ao tomar cicuta, não morreu. Foi-se
o Sócrates histórico, nasceu o Sócrates mito. 

Inspirados em Sócrates, no século I d.C., estabeleceu-se


um novo movimento chamado Patrística. Santo Agostinho é o
principal personagem. Criou uma doutrina para a fé no
Cristianismo Católico. A fé não deveria ser somente revelada, mas
conhecida. O sagrado deveria ser conhecido. O novo saber seria
a Teologia, que criou a doutrina católica. Quem auxilia a Teologia
é a Filosofia. Cristianizaram a Filosofia ateniense, começando por
Sócrates.

A convergência entre Jesus Cristo e Sócrates é que


ambos eram mestres de refinada Filosofia sem nunca terem
escrito um livro, e criaram sinais intemporais para o homem,
ambos condenados pelo Estado.

Poucos dias antes da morte, Sócrates foi procurado por


um seguidor, que lhe disse: “Sócrates, vim contá-lo o que estão
falando de ti ali no porto.” Ao que o pensador respondeu: “Penses
bem no que vais falar. Primeiramente, veja se o que vais me dizer
passa pela peneira da bondade. Em seguida, veja se passa pela
peneira da verdade, e, por fim, pela da necessidade. E então, quais
são as tuas novas?” O jovem lhe disse: “mestre, não tenho nada a
te dizer.”
Imagine como seria o mundo se todos os atos humanos
passassem por esse crivo!

Platão

 Origem social e destinos possíveis


o Estadista
o Atleta
o Teatrólogo
o Poeta
 Ponto de mutação
o Encontro com
Sócrates
 Definição
o Filósofo e pedagogo
 Filosofia
o Idealista
o Espiritual
o Transcendente
 Dois mundos
o Sensorial
o Das ideias
 Eterno retorno
o 10000 anos
 Mito da caverna
o A hiperrealidade

A conversa de hoje é sobre Platão. Que é, na trindade


filosófica em Atenas, é aquele que, de acordo com alguns,
caminhava apontando para o alto, junto de seu discípulo, este
carregando um livro de ética e apontando para o chão.

Na realidade, mais que antagonismo entre a Filosofia da


transcendência de Platão e da imanência de Aristóteles, buscamos
uma síntese, pela reflexão, indo pela imanência buscando a
transcendência.

Platão foi alguém que, contrastando com seu mestre


Sócrates, era membro das elites mais refinadas de Atenas.
Sócrates era nascido do universo do fazer, trabalhador na
juventude, e transgredira essas limitações numa sociedade de
castas, marcada por uma estabilidade profunda que não permite a
ascensão nem a decadência social. A sociedade de castas é a mais
conservadora, pois não há mobilidade social. É um princípio de
inamovibilidade. Esse princípio foi transgredido por Sócrates, que
chegou ao universo do saber vindo do universo do fazer. O
universo do saber, por sua vez, era o que legitimava o exercício do
poder. Tinha a detenção do telos, a percepção refinada à qual se
chega somente pela educação e pela cultura.

Para ter saber e cultura, deve-se dispor de tempo livre,


portanto não era para escravos. O escravo tinha uma posição
definida na sociedade, e era tido por coisa, e não pessoa. É uma
relação desigualitária. Ainda assim não era uma relação que
funcionava assim desde sempre; já foi uma evolução em relação
ao momento anterior, o das sociedades primitivas. É quando
nasce a arte da guerra, e também o conceito de prisioneiro de
guerra. Surgiu o problema do que fazer com eles. Matar fora de
combate? Afinal, a vida do inimigo não tinha dignidade. Depois de
um tempo, com uma compreensão maior do significado da vida,
pensou-se em mutilar, ao invés de matar: vazar os olhos e tirar
mãos e pés, para que o inimigo nunca mais seja guerreiro. Num
terceiro momento, mais uma mudança de comportamento: nem
matar, nem mutilar. Deixar incólume. Assim se chega à
escravidão. É aqui que surge essa relação social de senhor e
escravo. O Direito Romano, muito mais tarde, veio a legalizar essa
relação.

Estabeleceu-se uma nova relação, que é a de produção,


com a fixação do escravo sobre a terra. O senhor de terras é
senhor de escravos, que é a ferramenta da revolução agrícola, que
criou a produção na história da humanidade. Nessa sociedade irá
se criar a riqueza. Passou a haver a produção de excedente, e
começou a prática das trocas. Ao mesmo tempo, surgiu a arte do
armazenamento. Daqui para frente, surgiu a capacidade
de planejar a vida, permitindo que os indivíduos dormissem
tranquilos quanto ao dia seguinte.

Estamos na cidade-Estado grega, uma sociedade


escravocrata, que é o mundo que Sócrates, Platão e Aristóteles
conheceram. Aqui eles se preocuparam infinitamente com a
Filosofia. Hegel, filósofo da modernidade, que costuma ter lugar
na lista dos 10 maiores, e também escrevendo sobre a Filosofia do
Direito, pensou sobre a fenomenologia do espírito, com a
discussão sobre a escravatura. A dialética do senhor e escravo,
partindo do nível mais elementar possível. “Entre o senhor e o
escravo, quem é senhor e quem é escravo?” Parece uma pergunta
esdrúxula. Hegel diz que não, que isso é aparência. O único que
pode nascer para a liberdade é o escravo, pois, se transfigurar-se
da condição de escravo, ele tornará um homem livre. O senhor,
por outro lado, precisa da manutenção da escravidão, então está
preso a isso. Ele é já senhor de escravos, e não tem perspectivas, e
está condenado à preservação da escravidão para preservar seu
senhorio.

Essa é a sociedade sobre a qual Sócrates, Platão e


Aristóteles viveram. Daí começaram a dedicar tempo para pensar
nela. Chegaram à conclusão de que trabalhar era um demérito, ao
passo que não trabalhar era glorioso. Daí surgiu o termo
“trabalho”, alusão a “tripallium”, um instrumento de tortura. A
disciplina da produção foi aprendida sob a ameaça do tripallium.
Quem não produz experimenta a tortura. Na origem o trabalho é
demérito.

Platão, ao contrário de Sócrates, nasceu no universo de


privilégios, da educação, da cultura, da direção da sociedade. A
origem social de Platão é totalmente contrastante com a de
Sócrates. Platão de Atenas nasceu na mais refinada aristocracia
ateniense, descendente direto de Sólon, e do último rei da cidade.
Perguntavam o que ele queria ser ao crescer. Disse “rei”. Platão,
na verdade, era um apelido de um homem chamado Arístocles.
Ele queria ser rei, e se sentia no direito hereditário à realeza.
Entretanto a vida é cheia de mistérios; muitas vezes elegemos
certos alvos na vida e eles fogem de nós, por mais que os
persigamos. E outros atraem a fortuna, sem busca-la. Um
exemplo aqui foi o acaso do destino que uniu Fernando Henrique
Cardoso ao cargo de Ministro da Fazenda de Itamar Franco,
quem, na conjuntura econômica daquela época, fatalmente se
tornaria Presidente da República pelo trabalho de consertar a
economia brasileira.

Aparentemente Platão teve que afastar de si a condição


de estadista, com a qual sonhava. Passou a almejar ser atleta, o
que dava notoriedade. Eram figuras tão midiáticas e cercadas de
reconhecimento que isso lhe daria prestígio. Chegou a brilhar em
jogos locais, regionais e pan-gregos, até se acidentar. Teve que
abandonar esse segundo destino possível. Pensou, então, em ser
teatrólogo e poeta, pois eram atividades que tinham relação com o
mundo do saber, e também porque Homero já havia sido
contemplado com prestígio. O nível na Grécia era altíssimo. Havia
debate entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Antígona de
Sófocles ficou em sexto lugar num concurso de poetas.

Começou a perambular pela cidade, e, pela primeira vez,


esbarra com Sócrates. Presencia o grande mestre lecionando em
público, e se junta a ele. Ao final de uma aula, Sócrates pergunta a
Platão quem era ele. Disse: “discípulo.” Sócrates era um grande
orador, e Platão era um grande escritor. Uma perfeita união.
Platão depois fez uma grande festa, e, na fogueira acesa, atirou
todos os seus manuscritos. Jurou dedicar-se à Filosofia para o
resto da vida.

Nasce um mestre da oralidade ao lado de um discípulo


que, por sua vez, era mestre na escrita. Platão, diga-se, morreu
octogenário em sua mesa de trabalho, com a pena na mão,
escrevendo. Ele mal sabia que seria poeta e teatrólogo como
filósofo. A Filosofia em si era dialogal, e a técnica de teatro é a que
cria o rito, a dinâmica, a dicção, o tonos, o embate em busca da
verdade. Ao mesmo tempo, a narrativa filosófica de Platão é
profundamente poética. Levou um outro grande escritor da
Filosofia, Jean-Jacques Rousseau, dizer que Platão era grande
literariamente mesmo quando polêmico. A beleza literária
suplantava as controvérsias e os embaraços por ventura existentes
em seu trabalho filosófico.

Decidir-se pela Filosofia, como fez Platão, era também


decidir-se pela pedagogia. Não tinha uma escola formal, mas era
preceptor público, numa escola a céu aberto. O que importava era
o debate e o diálogo. Daí surge a maiêutica.

Bom salientar que o pedagogo era um escravo


doméstico. Esses escravos seriam sucedidos pelos servos
domésticos, e posteriormente pelos empregados domésticos. O
papel de pedagogo era cuidar da vida escolar dos filhos do senhor.
Eis que Platão se tornaria filósofo e pedagogo. Que pedagogo seria
Platão? O que construiria um palácio em que criará sua academia,
ambiente de ensino muito prestigiado. A academia transcendeu a
Platão. Já dizia ao seu discípulo Aristóteles: todo homem é mortal,
Platão é homem, então Platão é mortal. O homem se foi, mas o
ensinamento ficou.

Que Filosofia escreveu Platão? É a Filosofia idealista, da


transcendência, uma Filosofia espiritual. É uma teoria do espírito,
que define a matéria, causa-a, e nela interfere, e sobrevive a ela. A
grande referência é Sócrates, outro idealista. Tinha muita
serenidade diante da morte porque sabia que o espírito era eterno.

Platão, aspirante fracassado a chegar ao poder, foi


asilado em Siracusa, onde o Rei Dionísio, o Velho, lhe deu uma
vida principesca, com a condição de que não interferisse na vida
política da cidade. Não cumpriu o acordo e foi penalizado por um
ano e meio. A notícia chegou a Atenas, que resolveu comprá-lo
para tirá-lo daquela condição e ser reinvestido em si mesmo.
Posteriormente perambulou por vários lugares, até a índia, além
de Pérsia e Egito, lugar atenciosamente estudado pelo filósofo.
Envolveu-se na vida egípcia, e voltou à Grécia com grande
sabedoria.

Seu discípulo renegado cometeu uma inconfidência. Na


Metafísica, Aristóteles descreveu o saber esotérico de Platão, coisa
que ele não quis fazer. No fim da vida, Dionísio, o Novo, neto de
Dionísio, o Velho, convidou Platão para viver em Siracusa, onde
teria a oportunidade de “criar um laboratório para experimentar
suas ideias políticas”. Platão cruzou o mar e rapidamente foi
emboscado. Teve que ser, novamente, objeto de uma operação de
retirada porque Platão não queria apenas ter mais realeza que o
rei, mas queria ser o próprio rei. Que é o que ele queria ser desde
jovem!

Platão volta para Atenas para cumprir seu destino de


filósofo e pedagogo.

As ideias de Platão

Pensava na existência de dois mundos, um ideal e outro


sensorial. Vivemos exatamente de sentidos. Na modernidade,
pensou-se que nada chegava à razão sem passar pelos sentidos.
Dizia Platão que o mundo sensorial era relevante, porém
enganoso. A verdadeira realidade não está na superfície. Como
chegar à realidade, então? Indaga: quantas cores um prisma
consegue divisar? Sete. Mas na Física Quântica já se conseguiu
prever um modelo em que a luz é fracionada em 20 bilhões de
tonalidades cromáticas. É a Filosofia de Platão!

O essencial é invisível aos olhos, escreveu alguém. Como


se chega ao essencial? Por meio de uma evolução de espírito,
passando pelo mundo dos apetites, depois pelo da inteligência em
que a razão pode apropriar-se as coisas. Interlegere. Mas não é a
etapa final. O mais relevante de todos é o
conhecimento espiritual, da sabedoria máxima. Sabedoria, na
verdade, vem de sal, do sabor, que é conhecimento sensorial, a
primeira e mais elementar forma de conhecimento.

Ao chegar à sabedoria, em Platão, pode-se dialogar pois


se avançou com a grande luz. O superavanço da Física fez-nos
chegar à conclusão de que o universo é a luz, o sumo bem, fonte
divinal de tudo, que é Deus. Platão diz que nele encontramos o
bom, o belo, o puro, o justo e o reto.

Duas lições da Filosofia de Platão: o mito do eterno


retorno: Platão tinha uma visão circular das coisas. Que visão
alternativa ela proporcionava? Há a visão retilínea, cartesiana das
coisas, com olhos de engenheiro. Outra seria a visão espiralada
das coisas, que Karl Marx teve. E ainda a terceira visão, que é a
circular, com uma vida fechada, que se repete. Platão é profeta da
visão circular das coisas. O espírito se repete; Platão estudou com
os Pitagóricos, integrou uma seita na Magna Grécia, e foi ao Egito.
Pitágoras foi ao Egito e voltou grande matemático. Criou seu
Teorema. Disso resultou que Platão afirmou que, a cada 10000
anos, a vida volta ao marco zero, se tem uma crise profunda de
tudo, e temos uma crise total de paradigmas. O mundo
reacontece, mas num nível superior. Pense em circunferências
concêntricas, cujo raio vai aumentando progressivamente. O novo
acontecimento se dá de maneira mais iluminada, mais próxima do
mundo ideal.

O Mito da Caverna

Sabemos do que se trata. Uma comunidade, numa vida


subterrânea, só conhece do mundo o que a ambiência da caverna
permite, por meio das sombras. A realidade é circunscrita a isso.
Alguém vai lá fora, conhece a realidade de forma melhor, e volta,
pregando a existência do Sol, e também alegando ter visto a
origem das sombras, que entes as projetavam. A grande
comunidade da caverna só diz: “enlouqueceu”. O inconsciente
coletivo prefere a segurança na escravidão à liberdade na
aventura. O que é a Filosofia de Platão? Um convite à liberdade na
aventura. O problema é que os convidados, na época de Platão,
eram somente os que podem entendê-la. Não havia vagas para
todos nessa nave.

Platão - conclusão

Platão era um filósofo espiritualista. Seu pensamento


tem raízes também no Egito, que o levou a conceber a ideia do
espírito. As Filosofias do oriente chegaram aos ouvidos de Platão,
com as ideias de Karma e Dharma. É uma ascensão, que se chega
somente pelo processo evolutivo do ser. As divindades orientais
convergem muito nesse sentido. O Budismo, por exemplo, é uma
doutrina oriental que contém essa ideia. Essas ideias são
importadas para a Filosofia de Platão que termina por conceber a
ideia e um ser supremo.
Platão leva esse conhecimento esotérico para sua
Filosofia, que termina concebendo o mundo com um espírito
suscetível de emoção. Por isso a ideia platônica do mito do Eterno
Retorno. É a realização de uma inflexão total do espírito do
mundo, de um marco zero, o ponto de mutação, até retornar a ele
próprio. É uma ocasião de crescimento. O eterno retorno
pressupõe uma evolução do espírito do homem, uma
reencarnação do mundo em nível superior, uma luminosidade
maior, crescente e sucessiva para cada vez que essa trajetória
circular é percorrida. Cada volta aproxima o mundo em si mesmo
da Grande Luz.

Essa mística platônica levará também à necessidade de


que esta aproximação da luz seja um desafio de cada homem. O
Mito da Caverna não é outra coisa senão uma leitura da condição
humana, que sugere que a comunidade que está vivendo um
mundo obscuro chega à evidência de que aquilo que ela percebe
no plano sensorial é toda a realidade possível. Essa percepção
passada de pessoa para pessoa é o que leva à certeza dessa
condição do mundo. Até que um sujeito teria se libertado da
caverna e ido ao encontro da luminosidade, da variedade da
experiência de um mundo multiforme, que desafia, a cada dia, em
sua mutação, não apenas os sentidos mas também a consciência.
Isto é o que irá, primeiro, cegar o olhar. Ao se ambientar com a
luz, irá descobrir os detalhes, as circunstâncias novas até então
estranhas. Daí o personagem tem a tentação de voltar à Caverna
com a missão de levar a boa nova, que é quando ele é tachado de
louco. É o obstáculo residente em cada um de nós. Os presos em
rochedos da caverna resistem à boa nova. A conclusão é que o
homem prefere a certeza na escravidão à liberdade na aventura. É
uma mostra de que o inconsciente coletivo da humanidade é
profundamente conservador. E a tentadora busca de novos valores
na liberdade é preterida em favor da permanência em um
ambiente de conforto e segurança.

Platão convida, então, a que cada um de nós saia da


Caverna, e então possamos trilhar de maneira criativa, ainda que
esse trilhar signifique perambular na aventura e na incerteza. Isso
também é uma evolução, pois somente transitar do escuro para a
luz de fora é uma grande mudança. O real não está nesta ou
naquela margem do rio, dizia Guimaraes Rosa, mas sim na
travessia. Foi um prólogo da Filosofia existencialista.

Platão manda-nos buscar sempre a evolução interna,


primeiramente do indivíduo, para que então se construa a
sociedade ideal. Por isso ele considera de grande importância a
figura do Estado, equiparado a um ser grande, a um pastor. Este
homem grande tem em Platão o tratamento metafórico que o leva
à aproximação do Estado à ideia de pai, guia e pastor. Estado é
pai, sociedade é filho; Estado é pastor, sociedade é rebanho;
Estado é guia, sociedade é guiada. Existe uma estatolatria em
Platão, o que faz com que ele concentre vontade, autoridade e
hierarquia em torno desse ente que, para ele, se personifica no
homem grande. Esse homem grande, pai, guia e pastor, passa a
ser o objeto de constante preocupação no argumento platônico.
Essa preocupação irá levar ao estabelecimento da ideia de
sociedade perfeita, sociedade ideal, em que nela se encontra um
papel centralista do Estado.

Como ele confere dinamismo a essa ideia? Começa de


sua perspectiva aristocrática da vida.

Portanto, três castas se fundem em seus interesses para


formar uma unidade. A unificação do mundo é sugerida pela
articulação sintética dessas três castas no que se chamou
comunismo aristocrático. Essa aristocracia não é aquela de
consanguinidade, mas a meritória, com qualificações inatas.

Platão então organiza a sociedade com três castas: a dos


produtores, a dos guerreiros e a do rei filósofo com seu circulo
intelectual e dirigente. A primeira é a necessária a toda e qualquer
sociedade, independente de ser uma sociedade pré-estatal,
primitiva, ou altamente complexa; todas irão precisar de um
sistema de produção.

Platão pensa no sistema material, também no sistema


institucional, que leva à necessidade corporativa de, para fora,
defender a sociedade das ameaças que podem advir do mundo,
mas Platão também é temeroso no que tange ao papel dos
guerreiros, a segunda casta: “eles defenderão a cidade dos
inimigos externos. Mas quem defenderá a cidade dos guerreiros?”
Foi assim em todas as sociedades, até mesmo nos países
democráticos.

Por fim, a casta do rei filósofo com seu circulo intelectual


e dirigente. Terá o papel de natureza espiritual; o rei é filósofo, e
conhece os caminhos do mundo das ideias e poderá, com mais
legitimidade, conduzir a sociedade, com uma proximidade maior,
à grande luz. O rei é filósofo e está legitimado porque assim
poderá conduzir a sociedade por esse crescimento espiritual,
levando a sociedade ao encontro da grande luz.

O rei também é o comandante de uma casta que dirige,


que administra a sociedade. Por isso esse círculo espiritual e
diretivo completa a sociedade enquanto sistema. É um sistema
material, institucional e espiritual. Esses três sistemas se
conjugam para formar a grande ordem. Platão é o apostolo da
ordem e da regularidade. Assim, ele confere esse atributo ao
Estado, que não apenas deve estabelecer a ordem em material,
institucional e espiritual. O Estado é o responsável pela garantia
da regularidade. Esse é um objetivo dos maiores de Platão: ordem
e regularidade. É um Estado absorvente e concentracionário.
Concentracionário de vontade, hierarquia e autoridade.
Absorvente porque não quer dividir essas competências com a
sociedade. Platão surge renúncia da sociedade civil e dos cidadãos
que a integram à liberdade, à autonomia e à vontade. Isso para
que se afirme a autoridade do Estado. Entre a sociedade e o
Estado Platão já fez sua escolha: o Estado. Vontade do Estado,
hierarquia do Estado, autoridade do Estado.

Platão sugerirá intervenção na família, com a ideia do


comunismo das mulheres: elas são de todos os homens
aristocratas. Não havia família nuclear. E é aqui que mora a
questão: a família nuclear é aquela composta por um homem, uma
mulher e os filhos desse casal. Essa família nuclear desaparece em
Platão.

Platão antecipa Aristóteles, pois reconhece a família


como o mais privado dos antes. É uma desagregadora intervenção
na família. Todos seriam criados pelo Estado, que seria o
repositório dessa procriação humana, com creches estatais para a
as crianças. Imaginava que a mulher, não sabendo qual era o seu
filho, iria amar todos os filhos do Estado. Na lógica formal, é uma
boa solução! Já na vida nem tanto.

Também sugere intervenção na educação, mesmo sendo


Platão reitor de um centro de educação privado. Enquanto isso
pensava num modelo em que todas as escolas fossem públicas.
Objetivo era criar as crianças até o nível mais elevado de
conhecimento. Lapidá-las para que as habilidades se revelem, que
as vocações se evidenciem. Dali o jovem formado emergiria para
alguma das castas. Dos guerreiros, dos produtores ou do rei
filósofo. Claro, só para os filhos da aristocracia. É um comunismo
para aristocratas apenas. O resto do mundo não interessa para
Platão.

Daqui retiramos a ideia de que Platão pretende


estabelecer essa grande ordem com interferência na família e na
educação.

E do advogado, o que Platão espera? Diferente do juiz,


que é um agente do estado, o advogado é um ator da sociedade e
do mercado. Como estadista, Platão não convive bem com a ideia
de sociedade civil e mercado, nem de reinvindicação de justiça. O
advogado é exatamente um personagem dessa agenda. Platão
acusa o advogado de desservir a ordem pública na medida em que
tem técnicas segundo as quais as demandas podem se prolongar
indefinidamente. Essa chicana resulta na distorção de um
procedimento estabelecido pelo Estado.

Platão defende o Estado absoluto, sem espaços para a


não intervenção na vida individual, ou seja, sem direitos
fundamentais. Alguns até apontam Platão como inspirador dos
totalitarismos, especialmente os modernos, a exemplo do
comunista, fascista e nazista.

Nem tudo é cinzento em Platão. Ele abre o espaço social


para a mulher, que poderia ser tudo. Defende que as mulheres
têm todo o direito e competência para inclusive ser parte da casta
dos guerreiros. Quando, pela primeira vez, se realizou o
chamamento de mulheres para as Forças Armadas de Israel,
alegou-se tê-lo feito segundo a inspiração de Platão.

Esse é o Estado platônico, absorvente, absolutista,


totalitário, sem reconhecimento de nenhum espaço próprio do
indivíduo, do cidadão, da sociedade civil para o exercício de sua
liberdade e autonomia.

O poder em Platão é vinculado organicamente ao


Estado, e é absoluto, pois o Estado é totalitário. O exercício do
poder está ancorado em Platão quando afirma que o Estado é pai,
guia e pastor. É um condutor que deve necessariamente ser
seguido sem relutância, especialmente porque o filósofo é o
sabedor que conduzirá a sociedade à luz maior.

E o Direito em Platão? Tão simples quanto o direito em


Kelsen: todo direito é do Estado, não há direitos humanos, não há
Direito Natural, nem Direito das Gentes e nada de Direitos
Especiais. Só há o Direito estatal, e só é Direito o que o Estado
declara que o é. É uma concepção monista do Direito.

E a justiça? Como é defendida por Platão? Platão diz


que justo, razoável, ponderado, adequado e conveniente é que
cada um cumpra o seu papel na vida social. O que ele quer dizer
com isso é que mudanças e contestações são absolutamente
impróprias. A busca do melhor cumprimento de seu papel é
exatamente a conservação da realidade social. Essa conservação
em si mesma é a justiça.

Por fim, a paz para Platão: com todas as contingências


de uma paz precária resultante de um modelo de sociedade
marcada pela exclusão social, a paz surgirá da capacidade de
disciplina da sociedade por meio do cumprimento da regra geral,
que é cada um fazer seu papel. Assim ter-se-á paz. Sem
observância disso, Platão autoriza o Estado a lançar mão de
mecanismos corretivos, tais como a pena de morte. Ele é
organicista, com a multiplicidade de órgãos que formam um
grande organismo. Defende a pena de morte em nome da
preservação da ordem maior, daí extirpar o órgão indesejado para
evitar o “câncer”.

Aristóteles

 Aristocracia da Macedônia e o mundo


ateniense
 Nicômaco e a ciência antiga
o Aristóteles
o Fundador da lógica e
da biologia
o Platão e a academia
o Preceptor de
Alexandre
 Aristóteles e o organismo
o Hierarquia +
autoridade
 Família –> vila –> cidade // Pai –>
Chefe –> Estado
 Estado
o Ente público
antagônico ao espírito
de família
 Formas de governo
o Puras
o Impuras
 Puras
o Monarquia
o Aristocracia
o Democracia
 Impuras
o Tirania
o Oligarquia
o Demagogia
 Justiça
o Virtude perfeita
 Tipos
o Comutativa
o Distributiva
o Geral
o Corretiva
 Elementos
o Alteridade
o Débito
o Proporção
 Poder e saber
o Télos e sacrifício
 Direito
o Ética aplicada
 Paz
o Fruto da justiça geral

Vamos falar de Aristóteles (384 – 322 a.C.) hoje. Se não


pudermos levar adiante tudo que temos para falar sobre ele,
vamos começar, ao menos, a discussão.

É o terceiro grande personagem da Filosofia ateniense.


Viveu também na Macedônia, que havia sido província da Grécia,
e em outros momentos teve uma autonomia difícil de preservar.
Mais no futuro integrou a Iugoslávia.

A Macedônia nunca teve autonomia cultural. Filipe da


Macedônia, pai de Alexandre, o Grande, vinha tinha uma herança
cultural grega. Inclusive instituiu a língua grega como língua
oficial da Macedônia, acabando com a chance de formar uma
língua própria e autônoma. O próprio Filipe, ao escolher um
preceptor, escolheu um macedônico, mas também de alma grega.

Aristóteles formou Alexandre com essa alma grega, o


que fez o conquistador espalhar a cultura grega pelo mundo.

Aristóteles era filho de um físico e médico mor,


Nicômaco. Os ascendentes de Aristóteles estavam vinculados à
ciência natural e, em especial, a médica. O próprio filósofo se
tornou mais um médico e físico que, ao ser despertado, respondeu
aos estímulos. Muito jovem já foi nomeado cientista natural, onde
se ganhou notoriedade como fundador da Biologia. Aristóteles
deixou uma numerosa obra de naturalística, que veio até nós por
meio de fragmentos. Há mais de mil páginas, cobrindo espécies da
flora e fauna, devidamente classificadas e com uma teoria sobre a
origem da vida. Nisso ele já nadava de braçadas no mundo do
saber. Continuou vinculado em toda sua existência ao saber. O
Aristóteles sociólogo, politicólogo, eticólogo, filósofo, psicólogo
nunca se desprendeu do naturalista.

Aonde Alexandre chegava, coletava espécimes e enviava


a Aristóteles, para estudo.

Em certa campanha, Alexandre convidou Aristóteles


para uma expedição, que sensatamente disse não. O Mestre,
entretanto, cumprindo a regra intemporal do nepotismo, indicou,
ao negar, seu sobrinho para acompanhar o conquistador e ser
cronista, já que era historiador. Seria uma oportunidade de ouro.
Ele prometeu ao tio que cumpriria a regra boa.

No meio do caminho, o sobrinho se tornou um


problema, plantou intrigas, e Alexandre teve uma difícil decisão
para tomar. Torturou o sujeito, que teve que acompanha-lo ferido,
mas continuou viagem. Mais tarde, Alexandre teve que matá-lo. A
notícia chegou a Aristóteles, que publicamente rompeu com
Alexandre. O filósofo em seguida começou a temer por sua vida. E
isso mesmo lhe custou preço alto ao final de sua vida. Esse
Aristóteles, preparado para ser cientista natural, terá se acertado
no saber politico ao encontrar Alexandre.

As obras jurídicas mais importantes de Aristóteles para


nós são a Retórica, a Ética a Nicômaco, a Ética a Eudemo, a
Política e a Constituição dos Atenienses.

Em Portugal, há cerca de dez a quinze anos, um filósofo


do Direito chamado Paulo Pereira da Cunha recortou e colou os
textos jurídicos de Aristóteles, e compôs uma coletânea chamada
Aristóteles: Pensamento Jurídico. 1

Quem discute justiça atualmente, e o faz em


profundidade, começa sempre com Aristóteles ou passa por ele.
Dificilmente alguém não citará Aristóteles quando falar de justiça.

A obra que Aristóteles cria é extraordinariamente


numerosa, que chegou de maneira fragmentada até nós, já que os
romanos espezinharam a cultura grega, e grande parte do
conhecimento foi salva pelos árabes. Tanto que foi necessário que
se traduzisse Aristóteles de árabe para grego! Havia várias escolas
no mundo árabe especialistas em Aristóteles, e buscavam a
melhor forma de interpretar sua obra. Foram os chamados neo-
aristotélicos. Tinham um domínio do conhecimento sem igual no
Ocidente. Foi necessário, então, reintroduzir Aristóteles na vida
do Ocidente traduzindo suas obras do árabe para as línguas
ocidentais. Inclusive, cerca de quase mil anos depois, na Baixa
Idade Média, com o nascimento das Universidades, um dos
primeiros trabalhos de que as academias se preocuparam foi com
o entendimento das obras do pensador.

O conhecimento aristotélico foi preservado até o século


XI, quando foi absorvido por São Tomás de Aquino, quem criou a
doutrina oficial da Igreja Católica.

Aristóteles criou obras esotéricas e exotéricas. Qual a


diferença? Esotéricas eram obras produzidas ocasionalmente,
resultantes de compilações de notas de seus alunos, reescritas
depois pelo filósofo, que dava uma forma final. Não era permitido
que se vazasse para o público externo. Quebrou-se o pacto e um
desses livros vazados foi A Política.

As obras exotéricas eram obras criadas segundo um


plano, um projeto, e não objetivavam um consumo em sala de
aula, mas sim alimentar a complexa reflexão do espírito da
humanidade.

Uma obra resultante foi uma análise comparada das


constituições de várias cidades. Foi considerada o embrião do
estudo do Direito Comparado.

E as obras físicas? Alexandre mandou uma carta ao


mestre Aristóteles, que foi resgatada por Plutarco, o historiador
das vidas paralelas, que está estampada na biografia de Alexandre.
Julgava-se que Aristóteles não deveria ter publicado a Metafísica,
que era um saber complexo e estratégico, mais do que especial,
que não poderia ser do conhecimento do público, e que tinha que
ficar restrita ao circulo dos eleitos.

Aristóteles ambicionava uma visão totalizante das


coisas, mesmo que para elas tenha buscado uma
construção unitária. Criou o que se chamou de escada ou escala
da Natureza, quando busca o próprio, o essencial de cada coisa, e
de onde fará derivar, de maneira ordenada à sua Filosofia: pedra,
planta, bicho, homem, Deus. Perguntou-se a natureza de cada um
desses entes. Qual a natureza da pedra? Ser inanimada; e qual a
diferença específica entre a pedra e a planta? Esta última é um ser
vivo. Ao se perguntar a diferença entre bicho e planta, responderá
que é a mobilidade. E a diferença entre bicho e homem? A
racionalidade. E, por fim, qual a entre homem e Deus? Deus está
na eternidade e no infinito. O homem vive no tempo e no espaço.
Aristóteles diz que Deus é a causa primeira. “Deus é o motor
imóvel.” A causa primeira está em Deus, enquanto a causa
segunda está nos outros quatro entes. Marco Tulio Cicero depois
chamou Deus de causa das causas.

Aristóteles tira daqui a visão totalizante das coisas.


Perguntar-se-á: quem é o elemento “homem”? Definiu o homem
pela negativa (Aristóteles definia quase todas as outras coisas pela
afirmativa). Definiu o homem, basicamente, como “nem bicho,
nem Deus”: pretende seguramente ser Deus agindo
permanentemente como bicho.

Daqui Aristóteles tira que o homem é o animal ético,


desafiado a conviver segundo valores. Que outro animal ético
existe na natureza? Só o homem o é, pelo fato da consciência, de
um agir segundo não apenas os instintos, mas segundo a vontade.
Esse animal ético, ser de convivência, vive e convive onde? Para
responder, Aristóteles parte do simples para o complexo. Vive
originariamente na família, passa para a vila e chega, no final, à
cidade. Sempre segundo a hierarquia e a autoridade. Aristóteles
considera a família como ente natural, e dentro dela há havia
autoridade e hierarquia. Era o pater a personificação da
hierarquia e da autoridade dentro da família. Pensava
piramidalmente: pai, mãe, filhos, clientes e escravos, nessa ordem.

Aristóteles diz então que as autoridades domésticas e


isoladas eram frágeis frente aos perigos do mundo. Não tinham
condições de se defender das ameaças vindas do mundo, como
animais perigosos e hordas. Uma fortificação maior era
necessária. As comunidades domésticas precisavam se aproximar
mais, formando vilas, onde estavam mais seguras. Não se tinham
mais unidades domésticas isoladas. O princípio da solidariedade
servia aqui. A vila exige uma nova forma de hierarquia e de
autoridade. Pode, na vila, o pai ser hierarquia e autoridade? Não,
apenas da porta de casa para dentro. Urgia-se por uma autoridade
e hierarquia que tratasse dos interesses grupais da vila, o
abastecimento, a arbitragem do Direito, e tudo que dizia respeito à
vida coletiva, para fora da autoridade doméstica. Surge, então,
o chefe, personificando essa nova hierarquia e autoridade. Era o
pai de família mais forte dentre os ali congregados. Ele responde
pela vida coletiva.

Só que, com a crescente complexidade do mundo, as


vilas isoladas, como foram as unidades domésticas no passado,
tornaram-se frágeis também. A congregação de vilas criou uma
segunda condensação, que resultou na formação das cidades. E as
cidades, novamente, colocam os mesmos problemas que haviam
sido colocados em relação à vila antes. O simples se tornou
complexo, e o que já era complexo se tornou mais do que
complexo. A hierarquia e a autoridade na cidade passaram a
pertencer institucionalmente ao Estado. E agora tínhamos pessoa
jurídica, não mais física, personificando a autoridade e hierarquia.

O Estado criava seu Direito para a disciplina da vida


social.

E nova questão surge: quem tem legitimidade para


governar a cidade? Quem tem o direito de governar? Direito, para
Aristóteles, é ética e conduta, com componente valorativo
essencial em Aristóteles. A Lei não é lei porque o Estado
puramente a declarou; ela deve ter, de acordo com Aristóteles,
uma carga de vetores valorativos.

Aristóteles diz que Direito é Ética aplicada. A Ética


compromete o Direito com valores. Essa questão é de tal maneira
aguda e significativa que São Tomás de Aquino, no mundo
medieval, disse que se deve obedecer a lei não porque seja lei, mas
porque é justa. Interrogação: e se não for justa? Aquino diz: que se
repudie a lei. A sociedade civil tem o direito de resistência ao
príncipe que impõe a legalidade injusta. O que é isso? Direito
Natural! Não precisa ser positivado em uma Constituição.

E a relação de Aristóteles com o poder? O saber justifica


e legitima o poder se seu exercício. O mundo, já lhe disseram, que
era composto pelas pessoas do fazer e pelas pessoas do saber.
Aristóteles estava do lado dos senhores, dos que dispunham de
tempo livre. O poder exige percepção para a tomada de decisões. E
não se chega ao percepcionismo sem o refinamento, pela educação
e cultura. Aristóteles disse, então, que as aristocracias do espírito
devem iluminar o Estado, que deve ser governado por elites
responsáveis. Só quem pode refinar o télos é o senhor, que tem
tempo livre, e não os que fazem.

Só que a esse poder que se justifica pelo saber Aristóteles


nos dá uma visão pesarosa: para legitimar as aristocracias, o
poder é conseguido por meio de sacrifícios. Os nobres sábios
deveriam fazer um sacrifício para mandar no mundo, quando
poderiam estar cuidando de si mesmos. É um jogo ideológico de
Aristóteles. Assim, por dizer que as aristocracias estão governando
ao invés de cuidar de si mesmas, elas deveriam ser respeitadas
como autoridade na condição de mando.

Formas de mandar segundo Aristóteles

Formas puras e impuras de governo. Impuras são as


formas que eram outrora puras e se corromperam. As puras são
éticas, enquanto as impuras são aéticas. Aristóteles diz que
política é a arte de bem governar. Era uma visão totalmente ética
da política. O que não era o bom governo não era político para
Aristóteles. É corrupção da política, politicagem, politiquice. Essa
visão foi contraditada no século XV por Nicolau Maquiavel, que
disse que política era simplesmente “a arte de governar”,
removendo-se o “bem”. Por isso que a proposição é maquiavélica!

O governo, de acordo com o Aristóteles, que faz seu


trabalho de forma ética pode ser de três formas: monarquia,
aristocracia e democracia. Corrompendo essas formas, temos as
três formas impuras correspondentes: tirania, oligarquia e
demagogia, respectivamente. Pensem em princípio do um, do
“alguns” e do todos.

Princípio valorativo da monarquia: honra. Um tem


a honra de conduzir, solitariamente, o timão da nau da sociedade,
pois ele é o dirigente, ele é o príncipe, o principal, que tem um
dever ético. É conduzir a cidade.

Tudo em Aristóteles leva à busca pela eudaimonia, que


nada mais é que a felicidade. Corrompida a monarquia, tem-se a
tirania: recorrência ao terror, para difundir o medo, e então
conduzir a sociedade em nome de seus personalíssimos interesses.
Vale a felicidade do tirano.
E a aristocracia? O princípio aqui é a qualidade.
Aristocrata na verdade é “governo dos bons”. Só depois que a
palavra tomou a conotação de consanguinidade, e depois de
nobreza privilegiada. Corrompe-se quando o círculo dos
qualificados assumem a qualidade de máfia, a subversão total do
Estado, que deveria ter espírito público. Seria o interesse de uma
família tomando a preferência.

Quando um oligarca leva sua família para ser titular do


Estado, o titular do Estado passa a ser sua família. Deixou de ser
coisa pública. Interessa à oligarquia o dinheiro público.

E o princípio da democracia, qual é? Participação. Abre-


se o leque para a participação da sociedade civil organizada nas
decisões públicas. Esse leque nunca foi amplo nas cidades-Estados
gregas, por isso a democracia era criticada na Grécia. No auge da
democracia grega, nem 25% dos adultos participavam das
decisões.

Corrompe-se a democracia transformando-se em


demagogia, que é a arte de conduzir o povo, com promessas falsas
e vãs. Desrespeita e desconstrói as instituições. O contraprincípio
é a manipulação.

 1 – Em pesquisa perfunctória, não encontrei no Google


menções ao autor ou à obra “Aristóteles: Pensamento Jurídico”.

Aristóteles - conclusão

Faremos avaliação em grupos de 2 a 8 componentes. O professor


colocará exercício hoje. Criem grupos por “afinidade afetiva”.

Vamos continuar Aristóteles.

A questão da justiça é absolutamente intemporal.


Costuma-se dizer que existe o inconsciente coletivo da
humanidade. Essa ideia foi posta no século XX por Carl Jung,
discípulo rebelado de Freud. Nesse inconsciente coletivo da
humanidade há o valor da justiça. É de tal importância porque
não se chega só pelo exercício da razão, mas também pelos
sentidos e pela intuição. O sentimento de justiça é um corte
horizontal na experiência da humanidade. Há até um frevo
pernambucano de um bloco chamado Madeira do Rosarinho que
tem por tema a justiça de Freud!

Não se precisa frequentar a faculdade durante cinco


anos para que se tenha acesso emocional e sentimental ao que é
justo e ao que é injusto. Nem para ter acesso intuitivo. Os que irão
trilhar o caminho da Jurisprudência irão elaborar mais, claro. E aí
terão contato com o que é justo e o que é injusto.

Houve uma tentativa de diluir a questão de centralismo


da justiça, impondo o ultrarrelativismo, segundo o qual seria
impossível equacionar o razoável. Como se a justiça prescindisse
de regras da razão, do pensar, do argumentar. Para Stalin, era
justo matar 20 milhões de camponeses. Para Hitler, era justo
matar os judeus.

Professor diz: a primeira relação que devemos ter do


vínculo de Aristóteles com a justiça é tem a ver principalmente a
essa questão. Aristóteles foi o primeiro a estabelecer regras para o
pensamento do que é a justiça. Ao seu tempo, vigia esse agudo
relativismo que fazia que se reivindicasse com justas as práticas
mais dissonantes com a justiça. É como se Nero arguisse a justiça
do fogo em Roma, ou a campanha destrutiva de Genghis Khan.

Aristóteles preocupou-se com o pensamento seguido da


aplicação da justiça. Primeiro, pensar de maneira ordenada,
depois, aplicar de maneira mais ordenada. E a terceira pergunta:
o que é justiça para Aristóteles, como se chega a ela? O filósofo
entendia que havia a justiça do pensar e a justiça do agir. Há
também injustiça no pensar e no agir. Injusto é pensar e agir
injustamente. Nisso o pensador criou três categorias para a
ordenação, a operacionalização do debate. Para Aristóteles justiça
é

 Alteridade;
 Débito;
 Proporção.

O que quer dizer isso? É uma nova proposição existente


no Direito. Da ideia de alteridade tiramos que alter = o outro,
enquanto ego = eu. Aristóteles estabelece uma regra primordial:
só se é justo ou injusto para com o outro, que é o destinatário
maior da justiça. Eis a humanidade.
Segunda questão: para Aristóteles, nas interações
sociais, os homens e mulheres estão contraindo débitos,
materiais ou simbólicos, uns para com os outros. Viver por viver é
permanentemente contrair de débitos mútuos. Um débito
material é o empréstimo de um bem, que gera o dever de restituir.
Um débito simbólico, moral ou espiritual é o reconhecimento do
dever de gratidão. É o débito moral. Filhos têm o débito moral
para com os pais que os amam e criam. Cortesia e gratidão.

O débito é parte das interações sociais, quer na esfera


material, quer nas espirituais.

Pode-se pluralizar isso: eu e o outro, ou eu e os outros. A


grande questão da justiça é a proporção com que os débitos têm
que ser satisfeitos, adimplidos, liquidados. Aristóteles, à luz de
Pitágoras, dirá que justiça é proporção, medida, equilíbrio novo
que se estabelece entre as partes. Se empresto uma caneta para
Bruno, ele contrai um débito material. Bruno, de boa-fé, tenta
restituí-la, mas não aceito, e exijo uma fabrica de canetas em
retorno. Isso é absolutamente desproporcional e descabido.

Essa medida, essa proporção, esse meio-termo já está na


cultura humana. Aristóteles, de maneira fulgurante, levanta essa
bandeira. Ele irá garimpar no argumento de Pitágoras de que
justiça é proporção.

Só se pode pensar em justiça se se notar as categorias


observadas.

A justiça é de natureza comutativa, para Aristóteles. Os


atores são o indivíduo e outros indivíduos. Não há instituições
aqui.

Aristóteles avança e diz: há outra justiça,


a distribuitiva. Os atores são outros: de um lado, a comunidade;
de outro, o Estado. Há o elemento plural que é a comunidade. Os
homens vivem nela. O problema que se estabelece nessa
alteridade é que o Estado é o regente da vida, o rei. Rege a
orquestra da sociedade. Detém o poder do Estado. O rei é o
regente da sociedade porque avoca o poder. Entretanto, o rei não
se autofinancia; a comunidade é quem o suporta. Aristóteles logo
nota que a comunidade não é um monolito, um bloco, mas
heterogênea. Deve buscar, então, a simetria perante as
disparidades sociais. Se há quem seja diferente, o justo é que se
trate diferentemente. Há quem diga que o imposto sobre grandes
fortunas tem inspiração aristotélica.

Terceira justiça em Aristóteles é a justiça geral. A


alteridade é Estado – sociedade. É preciso que se entenda a
significação da justiça para Aristóteles. Para ele, era a virtude
perfeita, pois nela toda a virtude se encontra unida. Há coragem,
amizade, bom senso prático, liberalidade, etc. Por isso Aristóteles
busca um verso de Homero para dizer que a mais significativa das
justiças está na justiça da sociedade. Governar de maneira justa é
encurtar distâncias sociais. É a justiça que brilha mais que a
estrela da manhã.

Aristóteles está, então, diante de um dever, dever do


Estado. O Estado está em débito com a sociedade porque esta,
organizada, lhe proveu meios para estabelecer as políticas
públicas. O próprio é que os meios sejam retornados como
benefícios, como promoções sociais. O impróprio é que se
estabeleça um desaguadouro de dinheiro público em favor de um
ou outro.

No século XX se disse: “a sociedade é um todo de todos.”


– Jacques Marrietan (1882 – 1973). Era o líder de uma Filosofia
espiritualista do século XX. Mas é assim mesmo na prática? Não é,
mas deveria ser.

É o propósito maior da sociedade em geral. Transformá-


la num todo de todos. Pode ser um propósito de nivelamento
social radical, ou, por outro lado, reconhecer as diferenças, as
assimetrias sociais. O que alguns propõem é que se sobretaxem os
que mais têm para servir os que menos têm.

Aristóteles trabalha ainda com uma quarta justiça: a


justiça corretiva. A justiça revisional. Segundo essa justiça, há de
se compreender que as três primeiras, a comutativa, a distributiva
e a geral são guiadas pela lei e, humanamente construídas, podem
cometer injustiças. É preciso então que haja uma justiça
correcional, não inspirada na lei, mas na equidade, feita para se
corrigir os erros das outras. Usava uma metáfora: a justiça legal
era a feita pela régua rígida. A norma geral e abstrata não
considera as peculiaridades dos casos concretos.
A equidade é um mecanismo pelo qual o Direito Romano
iria se pautar dali a alguns séculos. Joaquim Nabuco diz que o
Brasil incompreendeu a diferença entre real e legal. As instituições
jurídicas formais e abstratas às vezes se tornam hermeticamente
fechadas a ponto de não compreender a dinâmica social. A
equidade é a régua maleável, a régua de Lesbos (historicamente a
régua que se adaptaria às formas dos sólidos que media). Na
equidade, se magnifica o caso concreto. Busca-se humanamente
fazer justiça.

Direito do mundo que guardou o espírito do Direito


Romano foi o Common Law.

Outra questão em Aristóteles é que Platão admitiu que a


mulher poderia ser tudo, inclusive guerreira. Golda Meir, premier
de Israel, judia de origem russa, fez o chamamento das mulheres
às Forças Armadas. Aristóteles fez o teste empírico de quase tudo,
mas também era condicionado pelo social. Viveu com a
prevalência do homem sobre a mulher.

 Morte de Aristóteles

Morto Alexandre, os gregos se deixam tomar por uma


onda de sentimento antimacedônico. Logo alguém diz ao público
que foi Aristóteles quem preparou Alexandre para a conquista do
mundo. Criou-se antipatia contra o filósofo, que teve o mesmo
destino de Sócrates. Aristóteles fugiu, escreveu carta se
despedindo de Atenas, dizendo uma coisa inesquecível: “para que
os atenienses não tenham a oportunidade de pecar duas vezes
contra a Filosofia.” Bastava Sócrates. Foi para a Macedônia, e
morreu longe de tudo que conquistara. Deprimiu-se e... cometeu
suicídio.

Morreu Aristóteles homem, resgatado séculos depois por


São Tomás de Aquino, que o usou para criar a doutrina oficial da
Igreja Católica, construída com a Filosofia grega.
 

Livros de autoria do professor:

1. Crítica da Razão Legal – segunda


edição
2. Jusfilosofia de Deus

Roma, Direito Romano e Marco Túlio Cícero

Marco Túlio Cícero foi um dos primeiros pensadores de


tradição latina. Encerramos nossa relação com o mundo grego, e
entramos agora no que é chamado de jusromano. Cícero é um
pensador do mundo romano, e pensador singular, porque tinha
vínculo mais que intelectual com o Direito. Foi advogado de
grande notoriedade no Direito Romano e jurista consagrado.
Distingue-se da Grécia pois uma coisa é se debruçar
intelectualmente sobre o Direito, e outra é, além de pensar o
Direito intelectualmente, tomá-lo quanto à vivência enquanto
advogado e jurista.

Aqui estamos mais para Jean-Paul Sartre do que para


René Descartes. Pensando, podemos desvendar as circunstâncias
da existência e iluminando-as conceitualmente. É a solução
cartesiana: “penso, logo existo.” Com o existencialismo de Jean-
Paul Sartre, podemos dizer “existo, então penso de maneira
diferenciada” Mas o existencialismo de Jean-Paul Sartre é
inexoravelmente relevante porque nos traz uma relação
existencial com o Direito, com uma visão distinta da que tem o
filósofo iluminista.¹

Marco Túlio Cícero é, portanto esse personagem do


mundo romano, mundo este que estava para viver uma trajetória
singular. Os romanos viviam em uma terra de várzea, à beira do
rio Tibre, que se prenderam a um mito de origem. Seriam
descendentes de uma raça de deuses e dividiam-se do resto do
mundo. Viviam na Península Itálica isolados de demais tribos.
Isso provocou antipatia dos vizinhos. Por isso que, em certo
tempo, um general que vivia fora da Península Itálica com forte
articulação política envolveu-se na campanha de atacar
Roma.Pirro do Épiro.

Roma era uma sociedade campesina, com poucos


centros urbanos. O teísmo romano levou a que a cidade tivesse
vários templos, a exemplo do Panteão, que sobreviveu aos
milênios. A ordem era privada, com um germe de Estado e das
demais instituições sociais.

Humilhados e ofendidos, os romanos se fecharam de


qualquer interação com qualquer outro povo da Península Itálica.
Estavam, portanto, preparando um ponto de mutação, que
consistia na organização do Estado e, com uma superorganização
do braço armado do Estado. Os romanos se revitalizaram. Logo
dispunham de um exercito de 500 mil homens e armas.
Desenvolveram um projeto de dominação da Península Itálica
para que todas as tribos se rendessem a Roma.

Conseguiram a unificação da Península. Ao mesmo


tempo, o mundo Grego se naufragava. Sócrates já havia
prenunciado isso. A previsão se confirmou. Cidades gregas
buscaram aliados de fora para atacar outros gregos. De tanto
buscarem teimosamente sua destruição, os gregos levaram-se à
decadência política, econômica e social. até pensavam, antes, que
todos os demais povos eram bárbaros.

Com o declínio do mundo grego, evidencia-se a


proposição de que outros povos irão querer escrever páginas da
história. cartagineses, persas e romanos!

Roma passou a entender que a guerra era outra forma de


fazer política, e assim conquistar a hegemonia do mundo.
Precisavam enfrentar os concorrentes, especialmente Cartago, nas
guerras púnicas. Cartago foi eleita a grande inimiga. Roma
resolveu se transformar em ordem imperial intemporal.

Se lembrarmos do esquema família-vila-cidades,


podemos expandir a sequência, incluindo em seguida reinos e
impérios. Os romanos constituíram-se em reino e deram o salto
para a vida imperial. Isso significa estabelecer-se de forma central
na história levando todas as periferias a serem tributárias do
mundo romano. Todos os caminhos do mundo levavam a Roma.
Para Roma trabalham. Todos os impérios futuros se inspiraram
no Romano.
Roma se tornou modelo porque superorganizou a
burocracia do Estado, o militarismo, e uma nova linguagem do
funcionamento do Estado, que é o Direito Administrativo. É
método e linguagem de dominação. De tal sorte que se instaurará,
no mundo, um Estado burocrático que dará a medida dessa
competência segundo a qual eles estabelecerão seu magistério na
história.

Precisamos perguntar, todavia, como Roma chegou até


lá. É possível que flagremos o sentido genético da formação,
hegemonia e declínio de Roma.

O primeiro período é a sociedade pré-clássica, da


sociedade campesina, em que os senhores, reinando sobre a
ordem privada, eram mais fortes que a esfera pública. Os romanos
herdaram as práticas e costumes dos mundos mais antigos. Na
ordem privada reinava o mais forte. Mas mesmo o mais forte dos
senhores não estava seguro de si em face do mundo, e amanhã
poderia surgir alguém com maior capacidade de fazer a guerra e
tornar-se superior. A natureza da Roma pré-clássica era a guerra.
Era regida por um Direito Costumeiro e rustico, aliado a um
mecanismo de garantia dos pactos.

Aqui veio o direito quiritário, em que o credor poderia


lançar mão do devedor, prendendo-o em cárcere privado por 60
dias. Levava então o devedor ao mercado para se fazer a
publicidade de que havia um descumpridor de contratos. Sem
adimplemento, o credor poderia reduzir o devedor à escravidão.

Mas imaginemos nós que, durante essas idas ao


mercado, ninguém tenha comprado o devedor já escravo. O que o
credor poderia fazer? Matá-lo. Com isso, dava-se o exemplo.

Essa sociedade clássica é a que preservará o dogma dos


romanos. Roma é latifúndio. A alma romana é de uma sociedade
escravocrata. Estão tão presos ao latifúndio que condenaram à
morte todos os defensores de reforma agrária em solo romano.
Também condenaram os que defenderam que a reforma agrária
fosse feita nas colônias mais distantes, ainda que fossem
sociedades abandonadas por Roma.
Havia o clamor social de parcelar o latifúndio, ao mesmo
tempo em que queriam mantê-lo. Inventaram, então, a exploração
condominial da terra. Solução romana usada até hoje, com poucas
adaptações!

É uma sociedade que preserva, portanto, sua base


latifundiária. Superdesenvolveu as rotas comerciais, fortaleceram
a marinha, as tropas terrestres com grande capacidade de
construção de estradas. Daqui surgiu o termo pontífice = o que
levanta pontes. O termo foi incorporado à estrutura da Igreja pois
é o Papa quem levanta a ponte para Deus.

Os romanos, então, fizeram-se senhores das rotas e da


riqueza. Avançaram no processo de urbanização da cidade. A
ponto de chegarem a ter, em certo tempo da sociedade clássica,
sete milhões de habitantes.

Preservam sua qualidade de vida porque se acreditavam


descendentes de deuses. Análogo à autovalorização grega, que
desconsideravam os outros, rotulando-os bárbaros.

Sociedade agraria e sociedade urbana: artesanal,


mercantil, de cultivo. Tudo regido pelo Direito, mais privado, e
posteriormente o Direito Administrativo, público, já que havia a
necessidade de um sistema de normas para o funcionamento do
Estado e garantir sua centralidade sobre o mundo. É uma
sociedade que irá supervalorizar o advogado. Pela primeira vez na
história o advogado se estabelece num escritório! Ficavam nos
portos e nos mercados conversando entre si e, enquanto o tempo
passava, os que tivessem demandas iriam escolher um ou outro
para interferir, para postular em seu favor.

Criou-se até uma mística que levou ao argumento de que


é uma honra ao cliente poder pagar honorários pelos seus
serviços. Daí o nome Honorários!

Os senadores consultavam juristas, que respondiam por


escrito, e assim escreviam a doutrina que iria orientar as decisões
políticas. Isso resulta no magistério do mundo romano. Pessoa,
obrigação, contrato, coisa, família, sucessão. Essa sequência
lembra alguma coisa? Sim, é a própria estrutura de nosso Código
Civil, excetuada somente a parte de Direito de Empresa, que é
mais moderna. Foi o mundo romano que mostrou essa visão
unitária dos institutos do Direito Civil.

Em matéria de Direito, os romanos serão sempre


considerados o ó do borogodó.

Até que um dia surgiu o Cristianismo. Primeiro, o


império resistiu; depois, incorporou. Completou com a única coisa
que faltava: valores universais. Respeito à pessoa humana,
solidariedade, dignificação do outro e das gentes, tudo isso
incorporado ao Direito Romano, que antes era regionalista, e
passou a adotar uma perspectiva universalista do Direito do
mundo. Os valores egoísticos do patriciado foram removidos. O
Estado universal romano lhe trouxe a qualidade de Direito
Intemporal.

Certo. Este Estado imperial e universal da sociedade


clássica, entretanto, padecerá dos males de todos os impérios em
sua supremacia sobre o mundo. Encontrou, em certo tempo, as
elites romanas envolvidas em profundas crises, perdendo a
capacidade de empreender, perdendo a hegemonia. Chegou a
cultura de usufruir segundo a lei do menor esforço. Conquistas,
despojos, motins, saques e partilha dos frutos entre os agentes
privados que financiaram e o Estado que promoveu. Ao mesmo
tempo os bacanais aumentaram, enquanto enriqueciam com a
guerra. Viraram escravos da guerra. Chegou a haver uma
descentralização do mundo romano, com insurgentes de várias
regiões outrora conquistadas, como a Gália.

Houve um filósofo chamado Herbert Spencer (1820 –


1903), que dizia que a história era a cissiparidade. O que é
simples torna-se complexo, que se torna supercomplexo, que se
fragmenta. Spencer se aplica aqui! Houve a separação da banda
ocidental da oriental do Império Romano. Aquela foi tomada por
bárbaros, enquanto esta deformou o que era a tradição no
Ocidente. O Direito Romano deixou de ser equitativo e
doutrinário e passou a ser exclusivamente legalista, pela tradição
religiosa do Oriente. Justiniano foi produto disso. O Direito
Romano se tornou ágrafe, autocrático, dura lex, sed lex. Daqui
veio a inspiração do positivismo moderno. A transmissão foi feita
pela oralidade e a sistematização foi desintegrada.

Eis que nesse mundo pós-clássico se dará a recepção da


transição do Cristianismo no mundo romano. A Igreja passa a ser
Estado, e tenta-se salvar o império à luz do Cristianismo. O poder
imperial romano era universal, mas faltava um argumento para
legitimá-lo. Usaram o Cristianismo para isso.

Três unidades: um só Estado, um só Direito e uma só


Religião. Rudolph Von Jhering notou que o Império Romano foi o
único a conquistar essa tríade.

O Direito tornou-se universal a partir do imperador


Caracala, porque os romanos preferiram sobreviver (daí adotando
o universalismo) a se manterem apegados à ideia de que eram
descendentes de uma raça superior.

Por fim, a unidade da religião: o Cristianismo se tornou


religião oficial do Estado romano.

1 – Neste início de aula eu estava atrasado em relação ao


professor. Esse segundo parágrafo ficou, portanto, como uma
junção de pequenas ideias dentre as coisas que ele disse nesses
dois primeiros minutos de aula, o que foi muito difícil de ouvir na
gravação.

Marco Túlio Cícero, conclusão do Direito Romano, a crise do


Império e o Cristianismo

Rudolph Von Jhering (1818 – 1892) foi um jurista do


século XIX, considerado um dos maiores de todos os tempos.
Discípulo renegado de Savigny, escreveu um livro chamado o
Espírito do Direito Romano. Lá ele se reporta àquelas três
unidades: mesmo Estado, mesma religião e mesmo Direito.
Enquanto houve magistério dos romanos sobre o mundo, as elites
começam a viver para a guerra. Começou a decadência e isso levou
à fragmentação do Estado Romano, que foi um Estado burocrático
regido por um Direito Administrativo.
Os romanos advinham de um preconceito segundo o
qual eram descendentes de uma raça de deuses. Havia uma
dualidade jurídica: direito quiritário romano, que tinha três
componentes: civitatis, indicando a incidência sobre todos os
nascidos em Roma, libertatis, indicando os nascidos livres,
e familiae, denotando os nascidos entre os patrícios. Esse Direito
quiritário era se contrapunha o Direito das Gentes, imposto aos
povos conquistados. Aplicava-se aos não romanos que integravam
a sociedade, perifericamente, de maneira subordinada. Eram
afinal as gentes nascidas não patrícias, não romanas, e sofriam o
direito das gentes, pois não era um Direito emancipatório, mas de
natureza disciplinar, de confirmação do poder dos romanos sobre
o mundo.

O Direito se unifica na Era Cristã sob o imperador


Caracala. É quando o império começa a ser ameaçado pela
decadência. Já se assentava sobre um plano inclinado, e, sem
medidas, o naufrágio seria inexorável. Decretou, então, que o
direito quiritário romano seria de aplicação universal. A dignidade
se estendeu a todos. A fragmentação era sinal de ruptura. O
objetivo com essa extensão do Direito interno romano foi
robustecer o Estado.

Terceira unidade era a da Igreja, que foi a que marcou o


mundo romano, o mundo medieval e o mundo contemporâneo. O
Cristianismo traz para a história um valor novo: o indivíduo
tratado como pessoa humana, dotado de uma alma, de uma
subjetividade. O argumento central é a regra de amor. João, 10,
10: “Deus é amor”. É aqui que vemos o imperativo do amor do
homem a Deus sobre todas as coisas. O preceito do amor ao
próximo como a si mesmo é o que funda a ética do Cristianismo.
Essa metafísica e essa ética carregam para si, para seu território,
um enunciado, que é a questão central, a garantia da salvação da
alma. O Cristianismo subjetivou a história. Não era mais o poder
do Estado, a autoridade constituída, mas a pessoa o ente central.
Foi a maior subversão possível ao Império Romano, pois acabou
com a tradição romana. É uma crise em potencial ao mundo
objetivo, que divinizava os imperadores em detrimento dos
súditos. Atacou-se a ideia de dignificação do imperador. O
Cristianismo acredita na metáfora da família e não do Estado. A
família, privada, é onde o cristianismo se organiza. Para que o
solidarismo universal exista, a posse comum das coisas deveria ser
a regra da vida. Daí o cristianismo primitivo pregou a
desautorização da propriedade privada.

Quando se chega à evidência da crise, o que falta ao


Estado imperial romano é um argumento universal que garanta a
sobrevivência do Estado frente ao mundo. Todos os argumentos
até então existentes se desgastaram e se deslegitimaram.

Para a unificação entre Estado e Igreja, ambos tiveram


que fazer concessões. Um abre mão da exigência de posse comum
das coisas, enquanto outro abre mão da diferenciação entre
indivíduos, considerando-os pessoas humanas. Assim o Estado
criou as condições de sobrevivência.

O que há, então, é um processo de mutação, a


perseguição do paganismo e ocupação dos templos pagãos pela
Igreja. Os templos pagãos foram transformados em templos
cristãos. Até hoje há alguns panteões, entretanto. Há a Igreja de
São Paulo, onde Paulo está sepultado, que era antes um templo
pagão. Foi um grande símbolo do fim do entretenimento romano
de jogar cristãos aos leões.

Cícero

Vamos transcrever aqui o esquema passado


ontem pelo professor:

Queda da Grécia e ascensão de Roma

 Roma em três períodos


o Pré-clássico
o Clássico
o Pós-clássico
 Patriciado: três status:
o Civitatis
o Libertatis
o Familiae
 Cícero
o Homo novus
 Educação
o Arpino
o Roma
o Atenas
 Mestres
o Estoicos
 Saberes
o Direito
o Filosofia
o Retórica
 Uma situação
o Molão de Rhodes
 Perfil
o Escritor
o Memorialista
o Epistológrafo
o Advogado
o Filósofo
o Jurista
o Político
 Estado
o Social de Direito
 Poder
o Obra democrática
conduzida pela
aristocracia do espírito
 Direito
o Divino, natural e
humano.
 Justiça
o Dever de promoção
do outro
 Paz
Fim
o da nova
república
 Humanismo latino
o Senado
o Catilina ¹
o Consulado
o Duelo
o Morte
o Santo Agostinho
o Renascimento
Cícero era um homo novus, não detinha o status de
cidadão, não nasceu em Roma nem era patrício. Rompeu o cerco e
chegou ao exercício da função pública apesar de sua origem. Não
fez como o avô ou pai; seu avô era homem de espírito
intelectualizado, que aspirara o saber e o modo de vida grego. Este
avô de Cícero preparou o filho (pai de Cícero) para o sonho de
saber. Quase deu certo.

Foi só com a geração de Cícero que se conseguiram os


meios para, de maneira refinada, chegar à esfera pública. Cícero
foi o primeiro a ocupar função pública em Roma como se patrício
fosse. A tradição era que a função pública era prerrogativa dos
patrícios, mas ele foi desde cedo educado por filósofos.

Cícero viajou a Éfeso, cidade grega transformada em


romana na Turquia. Ali contratou um preceptor, que ensinou a ele
e seu irmão, Quinto Túlio Cícero, o patriciado daquela região do
mundo. Quinto se notabilizou como militar, e Cícero se destacou
como jurista e filósofo. Só então Cícero volta a Roma, quando
encontrou, na vida pública, Júlio César, Otávio Augusto e Marco
Antônio, aqueles que fariam a história do Império Romano.
Sofreu discriminação na escola e logo criou antipatia pelo
ambiente. Refugiou-se em meio aos judeus, começou a escrever
em hebraico e formou-se na teologia.

Cícero, em três outros momentos de sua vida, foi a


Atenas estudar Direito, Retórica e Filosofia. Tinha, portanto, uma
formação eminentemente grega.

Voltou ao mundo romano, onde, ao chegar, teve


condições de se notabilizar como advogado. A questão da ordem
do dia era Caio Verres, um patrício romano que foi denunciado ao
Tribunal porque teria governado a Sicília da maneira mais
impiedosa, com genocídio, e ainda criando uma máquina colossal
de corrupção que teria o levado junto com os seus a se
locupletarem, fraudando o erário. Houve um júri comprado, mas
Cícero foi contratado para ser acusador de Verres. Confrontou-se
com Quinto Hortêncio Hórtalo, grande orador quem venceu nos
debates forenses. Cícero ficou odiado no patriciado, mas se
notabilizou como advogado. Acabou casando-se com uma Patrícia
e isso lhe abriu as portas para o patriciado. Não tinha raízes na
elite mas superou essa circunstância pela aliança no dedo.
O avô de Cícero dizia desde o começo que os netos não
deveriam se sentir diminuídos. Eles teriam que combater no plano
da política com a maior força.

Os filhos de patrícios eram mandados para as periferias


para aprender a mandar e, com isso, fazer um exercício
administrativo. Vinham para o centro lentamente, até chegar a
Roma, por fim disputando um cargo político. Com Cícero, bem
casado, foi diferente. Começou sua vida como governador da
Sicília, e lá fez uma revolução administrativa, aplicando suas
ideias solidaristas. Aplicou um bem mais comum.

Assim ele subiu na carreira política. Chegou a Roma,


alcançando o Senado, e posteriormente o consulado, como
primeiro cônsul, que se tornaria o eixo do poder romano. Cícero
venceu a conspiração de Catilina ¹, que institucionalizaria a
corrupção em todo o poder imperial romano. Cícero alcançou a
condição de alguém que, pelo brilho oratório, avocava para si a
capacidade de dizer as circunstâncias jurídicas e morais de Roma.
Combateu Catilina em quatro discursos célebres, as
chamadas Catilinárias.¹ “até quando, ó Catilina, abusarás de
nossa paciência? [...]²

Cícero também combateu politicamente Marco Antônio,


a quem acusou de participar na conspiração contra Júlio Cesar.
Combateu em dezessete discursos, quando demonstrou o que
Marco Antônio estava prestes a causar a derrubada da república e
instituindo o Império. Marco fez aliança com Lépido e Otávio
Augusto, que formaram o Segundo Triunvirato, e dividiram o
mundo romano em si, derrubando a república e instituindo o
império com o fim da trio. Entendiam que só com Cícero morto é
que o golpe de estado seria possível.

“Ó Origem causa das causas, não te esqueças de mim!” –


esta foi a frase que Cícero pronunciou pouco antes de ser morto
pela espada de um soldado. Isso revela sua percepção estoica do
mundo. Era a ideia de logos, a causa das causas, que Cícero
traduzia por Deus.

Os soldados voltaram a Roma dando a noticia de que a


cidade se livrava naquele momento daquele que, pelo poder da
palavra, subvertia a ordem e o poder constituído.
Daí se estabelece o Império.

Legado de Cícero

O núcleo do pensamento de Cícero se encontra em


quatro livros: Das Leis, Da República, Da Ética e Tratado dos
Deveres.

Entendia o político-filósofo-advogado-orador-publicista
que cada pessoa humana era uma centelha divina, detentora de
uma fagulha do logos universal. A pessoa humana pode ser
dignificada e respeitada em toda parte, a todo tempo. Antes do
Estado e da cidade já existia a relação umbilical do logos universal
com cada pessoa humana. Portanto, o Direito daí decorrente,
natural por excelência, antecipava o Direito da Cidade Universal,
que atingia as pessoas onde quer que estivessem. Bastava que
fossem pessoas humanas, pois já teriam a centelha divina advinda
do logos universal, e poderiam ser sujeitos de direitos.

É o que diziam os estoicos: onde quer que estivesse a


pessoa humana, ela carregava consigo sua condição de digna. Por
isso o necessário respeito e a dignificação. Esse Direito estoico e
universalista irá marcar profundamente o Direito: Direito
divino, mandamental, que se bebe nos livros sagrados, portanto
jurídicos, fonte do Direito da época. A Bíblia contêm normas
mandamentais, muito além do Decálogo. No Antigo Testamento
há o Livro dos Juízes. Diziam o Direito e detinham o poder.

O Estado aprendeu o Direito com a tradição religiosa


cristã.

O outro Direito que se reconhece é o natural. É o


Direito da natureza humana, da condição humana. É a condição
racional. O Direito natural para Cícero é aquele que permitiu o
entendimento do Código Sagrado e, segundo a razão,
valorativamente fazer o que prometia. Deveria servir ao bem mais
comum.

Justiça para Cícero é um aprendizado de natureza


moral. Se explica no agir, uma consciência que se transmuta em
atitude. Cícero descreve que, no deserto, longe do Estado e seu
braço armado, há uma legião de gente aventureira que, numa
marcha só, vai daqui para lá, mas volta homens frágeis e
solidários, carregando consigo a maior riqueza do ser humano: a
sabedoria.

Paz no mundo para Cícero é resultado da proporção


do outro. É o primeiro filósofo da história a dizer: “o outro é igual
a mim”. Nem Aristóteles nem Platão disse isso. É o fundamento
da integração e inclusão social.

Boa-fé recíproca para a criação de uma nova República,


com inclusão dos então excluídos, sem engodo. Assim se
permitiria aos romanos de maneira retificada a preservação seu
magistério imperial sobre o mundo.

Cícero foi fundador do humanismo latino. Foi o primeiro


filósofo a escrever Filosofia em latim e primeiro escritor a escrever
poesia e prosa literária. No latim não havia norma culta e
gramática. Ele criou a gramática latina e a norma culta. Foi
criticado porque o latim era tido por língua bárbara, e que não
poderia ser usada para formalizar grandes saberes.

Somente cerca de 500 anos depois de Cícero que se


evidencia a vitória de seu pensamento, quando foi revisto por
Santo Agostinho. Foi retomado fortemente pelo renascimento, já
que se buscava uma feição para o Direito moderno. Chegou-se a
coletar quase mil cartas, muitos tratados de Filosofia e Direito, de
Ética, livros, e inspirou até Norberto Bobbio.

Morreu em 44 a.C., invocando Deus em seu último


segundo de vida.

1 – Discursos de grande gabarito de Cícero enquanto


acusava um político chamado Lucius Sergius Catilina. Eis os
discursos, para os
interessados: http://www.culturabrasil.pro.br/catilinaria.htm

2 – Continuação: “...quanto zombará de nós ainda esse


teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolência? É
possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas
do Palatino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem
a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar do
Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não
pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos inteirados
da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora
o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste,
a quem convocaste, que resolução tomaste? [...]”

3 – Em outro momento da aula, enquanto respondia a


uma pergunta, o professor falou sobre a origem do Cristianismo,
que assimilou componentes judaicas e estoicas. Monoteísmo,
paraíso, queda do paraíso e redenção. Do estoicismo herdou o
conceito de pessoa humana, dignificação humana e universalismo.

O Império Romano depois de Jesus e introdução a Santo


Agostinho

O nosso personagem de hoje é Santo Agostinho, nascido


na África romanizada, e filho de patrício, funcionário municipal de
Roma. Sua vivência entre Roma e Milão o fez alcançar a condição
de um dos maiores pensadores da humanidade.

A obra de Santo Agostinho tem edições em 110 ou 120


volumes. Escreveu muito e impiedosamente. Durante três anos de
sua vida dedicou-se exclusivamente à organização de sua obra, de
tal forma que chega com bastante força aos dias de hoje. Platão,
Aristóteles e Cícero têm obras que até hoje não chegaram até nós.

A segunda coisa que devemos saber sobre a obra


agostiniana é que ela é dotada de qualidade literária que o coloca
na galeria dos grandes escritores do mundo. Há filósofos que não
chamaram para si o compromisso com o labor literário, e há
complexidade em seu trabalho, o que produziu interpretações
diferentes sobre seus pensamentos.

Dito isso, é preciso que coloquemos Santo Agostinho em


seu contexto. Qual é? Ele era contemporâneo às quedas de Roma.
A crise imperial constituiu um fenômeno da mais alta magnitude
histórica. O império formalmente parecia sólido e dotado de uma
incontrastável força; entretanto viria a sucumbir ao ser
conquistado pelos povos do norte, que havia 300 anos davam
trabalho para Roma. Viviam nas fronteiras atacando as mais
distantes casas sob domínio romano. Ninguém deu importância
maior àquela gente que parecia destinada a viver circunscrita a
esse ambiente rústico. Mas foi a gente que, depois desse tempo,
feriu de morte o Império Romano.

Acabou que os domínios do império foram


desurbanizados e novamente transformados em vilas. Foi o que
gerou o feudalismo pouco depois. As cidades viraram pó, e foram
substituídas por feudos e aldeias.

O Império Romano era marcado pelo comércio,


artesanato e latifúndio. A primeira coisa que mudou na história,
com a passagem do escravismo para o feudalismo foi a
manutenção do latifúndio por conta da exploração colonial da
terra. Agora, para o feudalismo, o que interessa não é a
integralidade da terra, mas o maior parcelamento possível. As
feudalidades recém-formadas poderiam traçar seu próprio
Direito, e proporcionar ao senhor feudal a maior renda possível. O
senhor feudal não era produtor e explorador proativo da terra,
mas exercia um empreendimento de exploração parasitária da
terra. Buscava a renda-trabalho, renda-produto e renda-dinheiro.
São as rendas que fizeram a história do feudalismo. Renda-
trabalho: o barão da terra é senhor da terra, seus vassalos
ocuparão a terra, terão a posse dela, na forma de campesinato, e o
senhor dispõe de guarda privada. O camponês trabalhava alguns
dias para o senhor e outros para si mesmo.

A segunda forma de renda é a renda-produto O barão da


terra quer se divertir. Queria viver em festas, torneios, cavalgadas,
uma vida mais requintada possível e que não lhe custasse nada.
Por isso ele prefere que o camponês ocupe toda a terra durante
seis dias, trabalhando livremente nesse tempo sem que se lhe
reconheça a propriedade. O que lhe interessava era uma forma de
repartição dos produtos que dali forem colhidos, com participação
desigualitária. O trabalho é objetivado em produtos agrícolas e
pastoris.

A terceira forma de renda é reveladora de que o


baronato da terra dá um tiro no pé, pois a economia feudal é para
o uso e não para a troca, justamente pelo caráter de isolamento
que em que os feudos viviam. Quando ganha escala maior, a troca
tem a tentação de se transformar em economia para troca. O
excedente foi posto à disposição de quem se interessasse. Deixou
de ser uma economia natural como era no feudalismo, e começou
a ser regida pela moeda. Renasceu o mercado. O surgimento do
mercado levou à morte histórica do senhor feudal. Isso porque
forçaram seus camponeses a ir ao mercado vender o excedente da
produção da terra.

Dessas três rendas o baronato da terra auferiu o lucro no


mundo feudal.

O mundo feudal, na verdade, é um mundo contratual,


regido por dois Direitos: o germânico, trazido pelos bárbaros, e o
Direito da Igreja, que criou o Direito Canônico. A fusão é o Direito
Germânico-Canônico. O Germânico se aplicava às questões
territoriais e o Canônico às relações não territoriais.

A relação contratual envolvia o senhor e o servo. O


senhor era o dono da terra, e o servo era o que se submetia.
Celebravam um contrato público. Formavam a relação de
suserania e vassalagem: o servo trabalha e fica adstrito à terra,
enquanto o senhor o protege. Era dotado de uma carga de honra,
de ambos os lados. O dever do senhor é conferir proteção e
manutenção ao servo. Proteção no sentido de o “o servo é cão, mas
com dono.” Ninguém mais molestará o servo, e este não deve
satisfações a mais ninguém. Dever de manutenção é a
estabilidade. De fome não morrerá, ao contrário do trabalhador
livre, que pode sofrer com as vicissitudes politicas, econômicas, e
do mundo em geral. Manter o servo é questão de honra para o
senhor. Deixá-lo morrer de fome é o mesmo que cair em desgraça.

O dever do servo era de serviços e de conselhos. Serviços


de toda ordem; o que o senhor precisava haveria a quem pedir. De
serviços domésticos até bélicos. E que espécie de conselhos? Os
anciãos são detentores da sabedoria, e isso é a tradição do povo
germânico. Sabe como se resolve, como se enfrenta, como
preservar os costumes, quais os caminhos, artifícios, caminhos
errados, e muito mais. É o manancial de sabedoria.

Eis o contrato de vassalagem.


É esse mundo novo que irá se instalar no Ocidente com a
queda de Roma. O Estado Imperial romano se fragmenta em sua
banda ocidental. Quando isso acontece, Agostinho é um jovem, e
um navio chega com a notícia de que o império se fragmentara. A
morte do Estado levou à crise de morte do Direito positivo.
Proibiu-se a aplicação do Direito Romano. Na Inglaterra mesmo
foi até proibido que se conversasse sobre ele.

A Igreja também transitou incólume com a mudança do


império ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, e
sobreviverá à eventual passagem para o socialismo.

A Igreja passou da periferia à centralidade do mundo


feudal. Das três, é a única unidade que sobrevive íntegra. Qual a
diferença entre o escravo e o servo? Há os pontos de vista
filosófico e jurídico. De acordo com o primeiro, o escravo não é
pessoa, mas coisa. Já o servo é considerado pessoa. Do ponto de
vista jurídico, a rigor, sendo coisa, não dispõe de personalidade
jurídica e não pode praticar atos da vida civil. O servo, sendo
pessoa, é dotado de uma capitis diminutio. Tem capacidade, pode
vender, comprar, e praticar os atos da vida contratual, pagar
renda-trabalho, renda-produto, renda-dinheiro, ir ao mercado,
negociar o quinhão do que foi produzido... O que lhe falta para ser
pessoa em sua plenitude é “só” a liberdade, a autonomia e a
vontade. Três pequenos elementos.

Nesse mundo novo, a Igreja, assistindo a transição do


escravismo para o feudalismo, tinha outro problema para lidar
durante todos os séculos. O local da autoridade! Cristo não pregou
no Ocidente, mas no Oriente. A banda oriental resistiu à ideia de
um bispo de Roma ser a autoridade. Padres gregos formaram a
Igreja Greco-Ortodoxa.

Isso dividiu a Igreja em duas. A banda oriental


constituiu sua própria Igreja, repudiando a ideia de que um bispo
de Roma deva ser a autoridade máxima da Igreja, o Papa
universal. Roma se tornou um referencial por causa de seu peso
simbólico de ser o local em que os discípulos Pedro e Paulo
morreram. O primeiro por construir a Igreja, outro por ter
expandido a fé.
A Igreja Católica Apostólica Romana se colocou numa
singular situação. Quando ela nasce, surgem os sintomas de
decadência do Estado imperial romano. Os patrícios
compreenderam que essa Igreja, que era parte do Estado, era o
lugar que deveriam ocupar. Assim dar-se-ia uma sobrevida ao
Estado. Até porque a Igreja apoiava a salvação do Império.

Há fontes históricas que apontam que a origem dos


Papas do primeiro milênio da Igreja no patriciado romano. Isso
despertava muita antipatia, e significava um problema para o
Cristianismo e seu destino, pois ele é o resultado de um Cristo
histórico, nascido numa manjedoura, filho de carpinteiro, e que
veio redimir o mundo repleto de vícios. Era uma Igreja que tinha a
vocação da Igreja de Deus. Por isso foi necessário misturar óleo e
água para fundar o Cristianismo institucional.

Essa condição levou à dissociação do Cristianismo de


suas raízes judaicas, que estava presente do Cristianismo
primitivo. Este era o Cristianismo vivido enquanto o Cristo
histórico ensinava sua palavra ao mundo, pregando a redenção
universal.

Cristo era um profeta, ligado a uma tradição de um


profetismo judaico. O Judaísmo é repleto de profetas, e houve um
tempo em que eles eram muito, muito comuns no mundo judaico.
Havia uma profusão de profetas por volta do primeiro milênio
antes de Cristo. O próprio Moisés, por exemplo. Também a fé de
Amós, a fé de Isaias, entre outras. Isso tudo é a fé que antecede
cronologicamente o Cristianismo.

Quando a Igreja institucional se estabelece, esse


patriciado não tinha relação nenhuma com a profecia judaica.
Estavam sob um paganismo empiricamente vivido, uma religião
instrumentalizada.

Então, o que fazer com a fé? Vejamos. Até agora, a fé foi


fé na revelação. O profeta, com sua hipersensibilidade, sintonizou
os mandamentos divinos, e traduziu isso como palavra de Deus.
Essa é a profecia. Depois, a fé passou a ter que ser,
necessariamente, conhecimento. Conhecimento divino,
conhecimento sagrado. Quando se faz isso, o que se instaura é a
questão do saber como fonte do poder, quando tratamos dos
gregos. Os simples e humildes passaram a poder ser profetas, a
exemplo de Amós. Inclusive se analfabetos. Se a fé for sobretudo
conhecimento, segundo a razão, segundo a Teologia, forma-se um
saber sistemático a partir de Orígenes e Alexandrino.

Agora a fé é conhecimento, é razão, e está atrelada ao


pensamento complexo, à Filosofia; tem pensamento regrado, com
base histórica, linguística, filosófica, teológica. É uma fé que será
deixada de ser enunciada por testemunhos. A fé do conhecimento
depois veio a fazer com que a fé do simples perca a voz e ensina-os
a escutarem e a ouvirem. Os que outrora eram proativos
condutores da fé passaram a ser receptores da mensagem. Isso
porque a fé agora é conhecimento complexo. Os doutores da Igreja
deverão conduzi-la. Traumas, angústias, inquietações? Quem os
tivesse encontraria a solução com os doutores da igreja. Foi isso
que fez surgir um efeito colateral sobre a Igreja, pois, já que
“quem sabe pode”, surgiram as heresias.

Funda-se a Teologia como conhecimento sistemático da


fé. O fundador da Teologia é um sujeito chamado Orígenes. Havia
os padres gregos, da banda oriental da Igreja, e os latinos, da
ocidental. Orígenes é um dos instituidores da chamada Patrística,
um extraordinário círculo intelectual que durou do século I ao
século VI d.C. É o movimento dos pais da Igreja. São os
fundadores da doutrina da Igreja. Quais os polos desse
movimento patrístico? Parte de Orígenes e Justino, no século I da
cristandade, até o momento em que ela, cumprindo o seu papel,
construiu um bloco doutrinário sólido.

Orígenes é o fundador da Teologia, é o pai da doutrina


do Catolicismo, com grande sabedoria, tentando unificar os dois
lados. Sofreu perseguição e sobreviveu.

O argumento da patrística para legitimar a Igreja como


centro de dominação da Terra é de que não há relação direta entre
o povo e Deus, pois não se sabia o caminho para Deus. O único
caminho possível, seguro, certo, inquestionável e ortodoxo era a
Igreja. Isso legitimava muito mais a Igreja no mundo. Pregou-se,
por exemplo, que o Batismo era a primeira chave para a Salvação
e só a Igreja poderia praticá-lo.

Isso elevou a Igreja a uma centralidade simbólica. É um


poder maior que o político e econômico, pois dizia respeito ao
consciente e ao inconsciente. A Salvação passou a ser a questão
central do homem no mundo. Tinha a capacidade de decretar a
excomunhão, o que era visto como a perda do direito de se salvar.
“Seu excomungado!” expressão corrente nos sertões brasileiros.

A Igreja quer fazer desaparecer na história um mundo


regido pelo Estado, que disciplinava a vida social segundo do
Direito, em que o advogado era o operador do Direito,
encontrando sua justificativa de existência no mundo da justiça e
liberdade. Buscou constituir outra coluna para realizar a regência
da história da humanidade: o mundo não precisa de Estado, pois a
Igreja é, em si, o Estado religioso e espiritual. Não precisava de
Direito, pois a Teologia é uma forma de disciplina da vida em
sociedade. O mundo também não precisa de advogados porque o
operador da teologia é o Padre. Ele e outras autoridades
eclesiásticas teriam o poder de solver conflitos. Viveriam em paz
para a conquista da Salvação e, assim, obter a vida na Eternidade.
Usou como prova a queda do Império Romano, que vivia
exatamente sob essa estrutura criticada pela Igreja.

Depois entramos em Santo Agostinho propriamente


dito.

Santo Agostinho

Agostinho é Romano do Norte da África que tem a


notícia remota da queda de Roma e que, em face dessa queda,
desacredita na viabilidade desse fato. Escreve, de maneira cética,
consultando a respeito da veracidade dessa notícia, que levaria
depois à desintegração da banda ocidental do Império Romano.

Santo Agostinho é colocado, do ponto de vista,


intelectual, numa grave crise. Até então, ele era guiado pelas
modas e circunstâncias filosóficas da época. Abraçava todas as
correntes. Já fora platônico, neoplatônico, aristotélico, estoico,
maniqueísta... Então ele teve uma crise de concepções e pensou: o
que fazer para que se chegue a um império que seja
perduradouro?

É isso o que levou Agostinho a fundar um saber novo.


Esse novo saber se chama Teologia do Histórico.¹ Para estruturar
esse saber e responder às suas perguntas, Santo Agostinho
escreveu um livro chamado Cidade de Deus, obra que hoje é
editada em cerca de 2000 páginas em língua portuguesa. É a
resposta agostiniana à queda do Império Romano. Agostinho tem
apoio no livro A República, de Platão. Platão foi mestre de
Agostinho no tocante à ‘arquitetura’ da Cidade de Deus. Ele
próprio cristianizará Platão, de tal sorte que deu continuidade a
um trabalho de cristianização da Filosofia grega, o que começou
com Justino, antes. Toda a trindade filosófica em Atenas
desembarcaria no Cristianismo Católico.

A primeira ideia de Agostinho, na Cidade de Deus, é que


existe uma ruptura na história, que é exatamente a que ele está
propondo: duas cidades, um só destino: a decadência, a queda, o
fim. O maior exemplo é exatamente o que ele presenciou: a queda
do Império Romano, o mais orgânico e universal que a
humanidade já construiu. Chegou à conclusão de que havia uma
cidade espiritual e uma temporal. Esse antagonismo significa uma
ordem civil e uma ordem religiosa, uma laica e uma sacra.
Considera que essa dualidade é o elemento mais nocivo da
história da humanidade. Isso porque, no sentir agostiniano,
sempre que se tem essa cisão, essa descontinuidade entre cidade
temporal e espiritual, surge uma regra que lhe parece a mais
perniciosa da história da humanidade: amor do homem a si
mesmo contraposto ao chamado desamor do homem a Deus.
Amor do homem a si simboliza a cidade temporal, desamor do
homem a Deus simboliza a cidade espiritual. Cidades puramente
profanas buscando bens materiais conduzem a um antagonismo o
que foi a causa da queda de todos os impérios.

Marcos históricos relevantes para Agostinho foram,


entre outros: Moisés realizando a aliança com Deus; outro foi que,
em certo tempo, Israel se divide em dois, quando os príncipes
reivindicam o direito de organizar as cidades puramente
espirituais, se desobrigando de organizar as cidades sagradas.
Chama isso de dissociação do homem da esfera do sagrado. O
terceiro evento se encontra na condenação de Cristo pelo poder
temporal romano. Quando Agostinho reflete sobre isso, ele chega
ao embate maior entre o poder temporal e o poder espiritual.
Agostinho está, de fato, de maneira subjacente preparando o
argumento que lhe permita legitimar o Estado fundamentalista.
Santo Agostinho foi o maior defensor da ideia de Estado
fundamentalista na história da humanidade. Hoje, quando
ouvimos o termo, pensamos logo em regimes de repressão
teocrática. É uma forma de o Ocidente imputar um viés passadista
às sociedades teístas, especialmente a islâmica contemporânea.
São os países desvinculados do Ocidente. São Estados dogmáticos,
fundados em verdades indiscutíveis, em pressupostos
incontestáveis. E o Estado fundamentalista islâmico
contemporâneo está assentado em um livro e em um homem:
Alcorão e Maomé. Não precisa de ordem jurídica a não ser o
próprio Alcorão.

O que Agostinho queria era exatamente a organização de


um Estado fundamentalista para superar a dualidade entre Cidade
de Deus e Cidade dos Homens. O representante seria o Papa,
representante de Deus na Terra. Santo Agostinho, portanto,
pregando isso, sustentou que essa dualidade histórica deveria ser
superada. O mundo deveria ser constituído de somente uma
cidade para que se tivesse a possibilidade da superação do ciclo de
nascimento, ascensão, hegemonia, decadência e morte. A ordem
seria retilínea e intemporal. Essa unidade que seria criada levaria
à transfiguração do mundo, conduzindo-se à renúncia do homem
a si mesmo e levando ao amor do homem a Deus. Renúncia do
homem a si mesmo, superação, toda pretensão humana de colocar
caminhos temporais e construir sua própria história. A regra
maior da Filosofia Agostiniana, e da Teologia, é uma brevíssima
legenda: entregar a Deus. Deus é o grande depositário da história
e do destino dela. E eis que este “entregue a Deus” agostiniano é a
renúncia do homem a si mesmo, para que possa existir essa
condução da vida de cada um pela esfera do Sagrado, levando à
afirmação do amor do homem a Deus.

Na essência, isso é o que já colocamos: amor do homem


a Deus é regra metafísica do Cristianismo, e amor do homem ao
homem é a regra ética. Se se entrega a Deus, cumprindo a regra
metafísica, a segunda estará automaticamente cumprida. Isso é o
início de uma nova vida.
Agostinho está pensando em um Estado
fundamentalista universal, que é religioso, personificado pela
Igreja. Não nos esqueçamos de que nessa época temos críticas ao
advogado, ao Direito Romano, ao Estado Romano, e de restrição
aos ideais da liberdade e da justiça. Está-se em face do mundo
novo, e a principal questão com a qual Agostinho lidará é que o
maior trabalho do homem em sua vida terrena é garantir sua
salvação. É uma subjetivação da história a algo mais relevante e
poderoso que o próprio Estado. É a tarefa maior do homem na
vida. Se isso é verdade, há de se construir algo novo, o que leva a
que se construa um novo Estado, com a Teologia regrando a vida
social, com o Papa e os Padres com a tarefa de resolver conflitos.
Esse é o mundo novo.

Agostinho é um dos entusiastas, mentores desse mundo


novo. A fórmula oficial usada é a forma teológica. A forma oficial
de leitura do mundo é a forma jurídica, mas, no mundo
agostiniano, a forma oficial de leitura do mundo será a forma
teológica. A fé do mundo novo seria assentada em três bases:

 Magistério da Igreja sobre o mundo,


 Disciplina do mundo pela Teologia,
 Operação do mundo pelo Padre,
segundo ideais da Salvação e da Eternidade,
que são ideais metafísicos.

É em função desse projeto que Agostinho coloca à mesa


esse manancial de ideias construtivas de uma arquitetura político-
jurídica para o mundo. Isso significa o advento de um Estado
fundamentalista universal, personificado pelo magistério da Igreja
sobre a história. O ciclo do papado irá significar isso: magistério
temporal e espiritual. O poder civil será de natureza eclesiástica.
Agostinho queria um Estado universal, Cristão Católico, dirigido
por um monarca, que seria o Papa. É o que as Cruzadas iriam
buscar séculos depois.

Esse Estado fundamentalista universal terá que tipo de


poder? Poder monárquico. Será uma monarquia. Por quê? É a
velha regra de Hermes, que desembarca na Filosofia grega, e, por
consequência, no pensamento agostiniano. Regra fundamental era
a da unidade cósmica entre o que está embaixo e o que está em
cima, por isso monarquia. A vida humana tem que ser regrada por
uma regra divina. O monarca temporal tem que ser único. Essa
seria a forma de escolher o líder.

Direito do Estado universal: Direito Jusdivino,


disciplinado pela Teologia. Esse jusdivino é como se pronuncia o
Direito Canônico, que vem de canon, palavra que significa “regra”.
Esse Direito Canônico regerá o mundo. É um Direito que nasceu
primeiro para disciplinar as ordens religiosas reveladas e o mundo
em geral, além de declarar as demais religiões heréticas por não se
renderem ao poder central. É a tradição da lavagem de sangue,
que conduziu à crepitante fogueira. Muitos pegaram fogo.

É o Direito para suceder o Direito Romano, que teve


aplicação desautorizada. Deve ser um Direito capaz de disciplinar
o mundo, regrando a vida em sociedade. Este “disciplinar em
geral” significa disciplinar as relações territoriais também. Várias
questões territoriais ficaram sem disciplina jurídica. A Igreja
permitiu, então, que se aplicasse o Direito Germânico às terras,
Direito que era eminentemente estatutário. E, fora das relações
territoriais, para todas as outras que os homens podem
estabelecer entre si, a Igreja teria que resolver a questão, então o
Direito Canônico aparece para substituir o Direito Romano.

Fontes do Direito Canônico

Ninguém se forma em Direito na Europa sem estudar


Direito Canônico. São elas:

1. Deus;
2. Papa;
3. Concílio;
4. Costume;
5. Direito Romano.

Por que Direito Romano como a última das fontes, se era


o mais desenvolvido do mundo? Foi um ato político da Igreja.
Deus está revelado nos Livros Sagrados. Escrevê-los é um ato de
exercício do poder, já que trata de controle eclesiástico da vida. A
Bíblia, mesmo, sofreu algumas alterações depois de vários séculos.
Retiraram-se os chamados Livros Apócrifos, que constituem, de
acordo com a corrente que defendia a separação, outra Bíblia.
Dentre eles há livros inspiradíssimos, mas que conduziriam, de
acordo com o que sustentam, ao que seria outra concepção do que
seria Cristo.

Segunda fonte do Direito Canônico é o homem. Papa é


fonte do Direito Canônico porque no mundo agostiniano e
plenamente medieval, o Papa tinha poder jurídico sobre o mundo,
especialmente no que nasceria depois de Agostinho, com o
surgimento dos reinos cristãos. Reino da Igreja, do Papado, tendo
como figura maior o Papa. As Bulas Papais, que têm valor moral
sobre o mundo, tinham valor jurídico. Eram chamadas de
Decretais; tinham força cogente.

Concílios são a terceira fonte do Direito Canônico. São


reuniões de príncipes da Igreja, Bispos e Cardeais. Há o Rei, que
se reúne com os Bispos e Cardeais. Baixam os decretos, que
elaboram os Decretais do papa. É como se fosse a legislação
ordinária, a regulamentação dos decretais.

Costumes também são fonte de Direito Canônico. Ele


recepciona todo e qualquer costume romano e germânico? Não,
pois há alguns vinculados ao humanismo. Não poderiam ser
quaisquer costumes. O costume deve ser um compatível com a
razão canônica, com os princípios, com os ordenamentos, as
ordenanças teológicas. Havia costumes romanos e germânicos que
colidiam com a razão canônica. Um exemplo de costume ancestral
germânico é o direito do barão da terra à primeira noite. Quando
servos sob a tutela de um barão de terra se casavam, a primeira
noite com a mulher era reservada ao barão. A Igreja,
evidentemente, não recepcionou esse costume.

Por último, o Direito Romano. Por que razão? Porque o


mais desenvolvido dos Direitos não convém que circule no
mundo. A Igreja só recorre a eles por exceção. É a última das
formas porque buscou-se apagar da memória o Direito Romano e
o Estado Romano.

Justiça em Santo Agostinho

A justiça para Santo Agostinho só pode ser a justiça


divina. E o que é? Agostinho está, primeiro, realizando de maneira
subjetiva uma crítica, do ponto de vista humano. As justiças
humanas são todas falíveis, e esse é o motivo pelo qual Aristóteles
pensou na equidade. Há juízes que vendem sentenças, há cortes
que cometem injustiças agudas... Então o que se quer é um
patamar novo, uma reivindicação nova.

O problema da justiça divina é: quem a pronuncia? No


Irã são os aiatolás. Então acredita Agostinho que o
pronunciamento eclesiástico será unificador, e menos suscetível
das contingências humanas, portanto mais isento, purificado e
verdadeiro em relação às contingências humanas. Mesmo porque
essa justiça divina seria principiologia inspirada nos
mandamentos sagrados. Buscou por em prática a Regra do Amor:
amar a Deus sobre todas as coisas, amar ao próximo como a ti
mesmo, tudo sob o signo da solidariedade, para que o mundo seja
fraterno, e se caminhe para a Família Universal. Criar um mundo
amoroso.

Santo Agostinho também escreveu sobre um outro


conceito: a Paz Perfeita. Ele não se contenta com a paz. Sinaliza,
então, uma paz perfeita, já que o filósofo trabalha com a lógica
formal, com a dedução socrática, platônica e aristotélica. O mundo
produto da justiça é um mundo de concórdia, que levará a uma
obediência tão natural como respirar, pois não haverá razão para
dissídio maior. Um mundo em que se viverá de acordo com os
mais elevados sentimentos e não haverá motivos ou
circunstâncias para embates, disputas, controvérsias, egoísmos e
reivindicações entre os homens, pois ampliará as convergências
entre eles.

É o processo crescente de Santificação do próprio


homem.

Amanhã: São Tomás de Aquino.

1 – Fiquei na dúvida se o certo era “Teologia do Histórico” ou


“Teologia do Estoico”. A diferença no áudio é imperceptível.
Nenhum dos dois termos aparecem, entre aspas (para conferir a
precisão), no Google.

São Tomás de Aquino


 Nobreza da Sicília e Projeto de Poder
 Conde D’Aquino + Frederico
Barbarroxa
 1200:
o Tecnologia
o Terra
o Mar
o Cidade
 Educação
o Nápoles
o Roma
o Paris
o Colônia
 Condição da Igreja
o Hegemonia na
concepção religiosa da
vida
o Direito Canônico
o Reinos Cristãos
o Renda da terra
 Vínculo
o Mudança dos
Dominicanos
 Relação espiritual
o Santo Alberto Magno
 Tarefa
o Cristianizar
Aristóteles e provar
racionalmente a
existência de Deus
 Vínculo intelectual
o Com a Escolástica
 Obras principais para o Direito
o Summa Theologica
o Do Reino ou Carta ao
Rei de Chipre

Vamos começar, nesta belíssima manhã de sexta-feira,


uma conversa sobre São Tomás de Aquino. Precisamos começar
por um ponto relevante, que é a origem social de Tomás (1225 –
1274), reiterando uma prática de que o lugar social determina o
conteúdo das obras e do pensamento de um homem.

É preciso dizer que São Tomás de Aquino era italiano, do


sul, da região da Sicília, mais precisamente de Nápoles. Era
vinculado às nobrezas italiana e alemã. Era simultaneamente
sobrinho Conde D’Aquino, que reinava no Sul da Itália, e de
Frederico Barbarroxa, imperador da Alemanha. Tomás depois se
revelou importante para a nobreza ítalo-germânica.

Ali os gregos criaram colônias; a região era a chamada


Magna Grécia. A própria cidade de Nápoles era consequente de
uma colônia grega, perto de Pompeia, cidade destruída por uma
erupção do Etna. Nápoles significa “a nova cidade”. Era uma
cidade portuária e próspera.

Naquela região, Tomás de Aquino, que depois viria a ser


canonizado, viveu e produziu sua obra. A época era por volta do
ano 1200. Produziu uma grande obra intelectual, religiosa e
política. A família de Tomás vivia numa ambiguidade política
muito grande, entre a Igreja e o Império, com reis tentando
laicizar todos os poderes, a exemplo de Frederico Barbarroxa,
buscando voltar aos poderes civis e temporais, ao passo que o
papado significa a retenção, pela Igreja, de todos os poderes:
temporais, civis e espirituais. O Papa representa a tentativa de
consumação daquele projeto agostiniano, de unificação de todos
os poderes para que fiquem sob a regência espiritual, já que o
papa representava o vínculo de Deus com a Terra. De 800 a 1300
a Igreja buscará consolidar esse projeto e, em nome dele, realizará
doze Cruzadas, investidas de guerra e conquista econômica e
política sobre territórios do Oriente para tentar universalizar os
seus poderes e estancar uma fonte de poder de império, nascida
no início do século VII, chamada Islamismo, criada por um
homem chamado Maomé, uma religião também universal,
acrescida ao Judaísmo e ao Cristianismo, que reconhece Cristo
não como filho de Deus, mas profeta, e pregando que Maomé é o
último profeta, o último enviado do Senhor. A regra central do
Islamismo é que só Deus é Deus, e Maomé é seu profeta. Tira-se a
divindade de Cristo, e prega Maomé como detentor da verdadeira
mensagem de Deus.
O islamismo nasceu em expansão, tal como está até hoje.
Expandiu-se da Ásia para a África, e da África para a Europa. Os
árabes, posteriormente, desembarcariam na Península Ibérica,
onde passarão sete séculos. No Ocidente, portanto, se formou uma
região religiosamente tríplice, portanto muito conflituosa. É nesse
contexto que Tomás de Aquino viveu e nele que sua família tentou
levar adiante seu projeto de poder familiar.

Os Aquino tinham poder econômico na Itália e na


Alemanha, com poder político mais real na Alemanha do que na
Itália, onde também tinham poderes, religiosos e políticos; prova
disso é que Conde D’Aquino terá um reinado. Era um poder
instável, pois dependia da chancela do papado. Na Itália o poder
da família São Tomás de Aquino tinha vínculo profundo com a
Igreja, enquanto na Alemanha tinha vínculos estreitos com os
poderes laicos e civis. E, às vezes, quando o império
preponderava, a família desaquecia sua relação com a Igreja;
quando o Papa preponderava, eles desaqueciam sua relação com o
império. Viviam na penduralidade, ora com a Igreja, ora com o
império.

Essa é a circunstância política das famílias italiana e


alemã que, conjugando interesses, resolveram que a melhor
estratégia possível era a unificação em torno de um projeto
comum. Queriam um papa da família. Buscaram que Tomás fosse.
Ele foi educado para ser papa.

Como Tomás reagiu a esse projeto? Foi desde o início


dos anos educado por um tio bispo, que tinha poder econômico e
político em Nápoles, porque detinha uma das mais rentáveis
prelazias; era reitor e bispo de Nápoles, detinha também
privilégios na terra, acumulando grandes rendas em razão das
terras da Igreja. Este tio foi o responsável pela educação de Tomás
de Aquino. Conferiu-lhe a melhor educação possível naquele
tempo e naquela região do mundo. Com essa educação principesca
que alimentava esse projeto de poder de papa, ele viveu seus
tempos e a mudança de circunstâncias de sua vida, na
adolescência, se deu numa manhã de sol (como a desta aula!) que
cedo acabou suas lições no Seminário de Nápoles, e o tio lhe
ordenou que retornasse ao Castelo de Rocaseca, na cidade, que era
o principal castelo da família de Aquino em Nápoles.
Mas Tomás de Aquino, que era do tipo grandalhão e
corpulento, com a cabeça na lua, em vez de seguir o conselho do
tio, estimulado por essa manhã napolitana de sol, resolveu passear
pela cidade e encontrou um burburinho de gente muito grande em
certa praça, perto do porto. Foi verificar o que estava acontecendo
ali. Quando se cerca dessa gente, descobre vários jovens
realizando uma fulgurante pregação religiosa, que depois foram
identificados como membros da Ordem dos Pregadores, nômades
religiosos despreocupados com o dia de amanhã. Viviam atrás da
pregação da fé do Deus vivo.

Era a tradição do monarquismo, a fé dos desertos, que


resolveu que a fé era mística e contemplativa, de que se deveria
viver nos desertos, aguçando o contato do homem com Deus.

Essa fé deserta tem em Santo Antão (Antão do Deserto,


251 – 356 d.C) seu símbolo maior. Criou um mosteiro no deserto.
Reclusão para a fé, para que seja ela presente na vida. Os
pregadores diziam que a Igreja não precisa ser do mundo, mas
estar no mundo, que é enfrentar todos os percalços da vida. É uma
visão solidária, envolvente da fé; esse grupo quer praticar a fé com
um nível de compromisso social maior. Tomás de Aquino ouve
esses frades e se deixa envolver por essa ideia de que deve
abandonar seu projeto familiar e que deve abraçar a causa desses
andarilhos de Deus. E volta para casa, para o Castelo de Rocaseca,
e avisa à família que, a partir de então, esse é seu projeto. Todos
pensaram que fosse brincadeira daquele que se tornaria grande
pensador. Não era. Tomás acompanhou os frades pregadores.

Sua mãe, desesperada, foi atrás e contatou todos para


que ajudassem a resgatar aquele que serviria para que a família
alcançasse o poder religioso institucional. Um dia Tomás foi preso
por um nobre, que avisou a família, e ele foi trazido de volta. Ficou
um ano de castigo dentro do Castelo para que fosse mentalmente
higienizado. Quando aparentou haver desaquecido dessa ideia
“maluca” a que tinha aderido, sua família o soltou e o enviou a
Roma, onde prosseguiu o processo de aprendizado, até que, de lá,
foi transferido para o Seminário Dominicano em Paris. Os
dominicanos nasceram como uma ordem militar da Igreja
Católica, e essa ordem militar significa literalmente cani-domini,
cão ou matilha + senhor, ordem da matilha de Deus, o braço
armado da Igreja nascido para reprimir as ordens heréticas que
não se rendiam ao magistério central do papa. Fundada por um
bispo espanhol, chamado São Domingos de Gusmão (1170 –
1221), essa ordem cumpriu o papel defensor da Igreja e deu banho
de sangue em várias ordens religiosas consideradas heréticas, que
estavam ligadas ao código primitivo do Cristianismo, defendendo
a posse comum das coisas, no suposto de que o Cristianismo
Primitivo tinha um fundo de comunismo agrário, uma dimensão
comunitarista e solidarista do Cristianismo. Essa interpretação
levou à fundação de ordens religiosas que pervagavam o
parcelamento da terra e da posse comum das coisas, para que
tudo fosse de todos. Estes eram considerados hereges porque a
Igreja de Roma, quando fizera a aliança com o Estado, fizera uma
daqueles renúncias: abriria mão da ideia de posse comum das
coisas, enquanto o Império Romano abriria mão da diferenciação
entre seres humanos e adotaria um Direito Universal. Portanto
ficou adotada, pela Igreja de Roma, a legitimação da propriedade
privada. Foram obras consideradas subversivas, heréticas para
Igreja institucional. Entre essas ordens encontram-se os
chamados carpocratas, que cresceram de maneira desmensurada.
Constituíram nova Igreja fundada nos princípios do Cristianismo
Primitivo.

Cumprida essa ordem, os dominicanos resolveram que


não poderiam ficar na história como sanguinários.
Transformaram-se de ordem militar em ordem educacional.
Assim, educaram, a partir de então, os maiores intelectuais da
Igreja. Vários deles surgiram daqui, a partir dessa transição de
ordem militar para ordem intelectual.

Fundaram o Seminário, fundaram Universidades, que


nasceriam sob a tutela da Igreja, como as de Pádua, Bolonha,
Nápoles, Paris, Oxford, Salamanca, todas criadas pela Igreja. Aqui
elas terão o papel crucial dos interesses da Igreja do ponto de vista
institucional.

Foi, portanto, Tomás de Aquino para o Seminário


Dominicano de Paris, e lá ele viveria um momento decisivo de sua
vida. Foi onde encontrou Alberto Magno, que era reitor do
Seminário e catedrático da Universidade de Paris. Era professor
de Lógica, Filosofia, Teologia, grande intelectual e mestre,
considerado então, o maior intelectual de todos os tempos. Por
isso o nome Alberto, o maior. Era o acréscimo que a Universidade
de Paris lhe conferia. Os estudantes estavam, sobretudo, nas
cidades universitárias, onde houvesse maior “auê”, um atrativo
maior, uma razão maior para cultivar uma vida líbero-boêmia.
Alberto foi um sucesso absoluto. Chegou até a criar um problema
para a Universidade de Paris, pois não havia espaço. Suas lições
tiveram que ser ministradas em praça pública.

Esse grande mestre, reitor do seminário, logo percebeu o


talento de Tomás de Aquino, escondido atrás daquele silêncio, das
provocações que recebia, já que o Filósofo que se tornaria Santo
era objeto de todo tipo de bullying; era empurrado, provocado,
espancado, apelidado, posto na roda para ser objeto de todo tipo
de chacota, como se fosse um autista fechado em seu mundo. Um
dia Alberto Magno presenciou o assédio e censurou os agressores,
gritando do alto do mosteiro. Este era o mestre de Aquino, que
depois o levou à Universidade para estudar Teologia. Ali, como
estudante de Teologia, Tomás de Aquino, sobre a tutela de Alberto
Magno, se notabilizou e chegou à posição de Doutor em Cânones,
doutorado na Universidade de Paris. Isso tudo depois de brigar
com estudantes, porque havia torneios intelectuais, realizados de
mês a mês em cada uma das Universidades; os representantes
delas competiam entre si, as torcidas se organizavam, havia corpo
de jurados, e a torcida aplaudia e vaiava as questões propostas. Os
estudantes tinham que desenvolver, de improviso, teses para essas
perguntas propostas. Essas teses eram proferidas em alto e bom
som para que pudessem ser objeto de concordância e discordância
das torcidas e então ser objeto do julgamento final pelo corpo de
jurados. Havia um processo de exclusão, até que restassem
somente dois contendores, até que um se sagrasse campeão, nesse
Big Brother muito melhor do que o de hoje.

Isso notabilizava o estudante que participava e ganhava


esses torneios. Alberto Magno levou Tomás para participar desse
campeonato, já que já o envolveu em projetos. Doutor em
Cânones, Alberto depois levou Tomás a Colônia, na Alemanha, de
onde sua família era proveniente, e completou ali seus estudos. O
objetivo então seria traduzir e comentar Aristóteles. Fazer de
Aristóteles parte necessária do Cânon doutrinário do Cristianismo
Católico. Completou a obra de Alberto Magno nesse sentido.

Este século XIII, em que viveu breves 49 anos, São


Tomás de Aquino foi uma cerimônia de profunda mudança na
vida medieval. Há uma revolução tecnológica no mundo feudal,
que permitiu que se estendesse a exploração da terra. É uma
revolução industrial no mundo medieval. Levou a que a produção
de alimentos crescesse profundamente, por força da mudança
científica e tecnológica que permitiu maior rentabilidade na
exploração da terra.

1200 também é uma época de redescoberta do mar. O


Mediterrâneo perdeu os gravames de que estava cercado, os
conflitos religiosos, militares e políticos fizeram que o mar fosse
de piratas. O comércio renasceu. Do ponto de vista material, a
Igreja vivia da renda da Terra. A Igreja se transformou na maior
latifundiária do mundo medieval, já que havia, no Direito
Consuetudinário Germânico, uma regra que autorizava a
conquista militar da terra. O barão da terra conquistava a terra
lavando-a com sangue. A regra do Direito Consuetudinário
Germânico era “não há terra em senhor.” Esse barão da terra,
cristianizado, tinha consigo uma culpa por ter conquistado a terra
com sangue. A tarefa, então, seria de lavar sua alma. Ao término
da vida, o grande rentista teria uma total fragilidade íntima e
psicológica no tocante à remota possibilidade que ele tinha de
salvar sua alma. Cristianizado, ele passava a buscar ajuda para a
Redenção. A Igreja fornecia o perdão plenipotenciário, a
indulgência total. Essa indulgência é objeto de desejo dos que
lavaram a terra com sangue. Por isso fazem doação de terras para
a Igreja, que se tornou latifundiária e rentista no mundo medieval.
Do ponto de vista material, a Igreja Tomista, do tempo de Tomás
de Aquino, era uma Igreja que tem uma presença preponderante
no mundo. Do ponto de vista institucional, a Igreja estava
confortavelmente instalada. O Direito vigente era o Canônico-
Germânico. Quando se voltou ao grande comércio, surgiu a
necessidade de se resgatar o Direito Romano, que já era
superdesenvolvido, e seria ideal para a resolução dos problemas
que surgiriam a partir dali. O Direito Germânico não tinha a
solução porque era um Direito territorial, ao mesmo tempo em
que o Direito Canônico também não tinha essa solução porque era
um Direito institucional. Precisava-se de um Direito de tradição
de resolução das questões contratuais e obrigacionais. Portanto
voltou-se ao Direito Romano e o Direito Medieval passa a ser
Canônico-Romano-Germânico. De qualquer forma, do ponto de
vista jurídico, havia uma presença substantiva e então hegemônica
da Igreja no mundo.
Do ponto de vista do poder, o papado preponderava
sobre o império; havia uma aliança de papa + rei que dominavam
o barão da terra. O papa se contrapunha ao barão da terra. O papa
preponderava sobre o rei porque o reino era cristão, e num reino
cristão reinava o rei, mas reinava em nome do papa. Era o papa
quem consagrava o rei, e esse ato papal estava simbolizado porque
ele entronizava o rei, coroando-o. Ninguém era detentor do poder
de origem divina mais do que o papa, que é o representante vivo
de Deus na Terra.

No ponto de vista espiritual, a Igreja também estava


confortável, pois as concorrências, mesmo que agressivas, ainda
eram fracas: Islamismo e Judaísmo. Do ponto de vista geopolítico
a Igreja Católica preponderava sobre as duas outras religiões. Essa
é a Igreja do tempo de Tomás de Aquino. Assim Tomás frustrou o
projeto familiar de colocar um papa no poder, renunciando, de si
para si, ao destino político da Igreja e se credenciou para o papel
intelectual da instituição. Ele se formou intelectual orgânico da
Igreja, mais do que um político no sentido burocrático do termo.
Nada obstante, foi assessor de papas, e teve prestígio político
extraordinário no centro de poder, resolvendo, inclusive, questões
do interesse político e econômico da família fazendo com que ela
tivesse o maior proveito de seu prestígio no papado.

Completando seu ciclo de formação, São Tomás de


Aquino foi professor da Universidade de Paris, com ajuda de
Alberto Magno, que lhe abriu as portas do ambiente acadêmico.
Foi professor também na Universidade de Nápoles, vivendo em
alternância entre as três cidades: Paris, Nápoles e Roma. De tal
sorte que esse percurso existencial e funcional de Tomás de
Aquino, que iria, do ponto de vista intelectual, se vincular a uma
dupla tarefa: primeira, completar a tarefa de Alberto Magno, que
era tradutor e comentarista de Aristóteles. Aristóteles foi abrigado
na Universidade. O Ocidente desconhecia Aristóteles. As obras
foram defenestradas pelos romanos durante a antiguidade. Os
árabes as recuperaram. Até esse momento, os árabes tinham o
saber mais avançado do mundo. É do árabe que se traduzirá
Aristóteles para o latim e depois para o próprio grego. É desse
projeto que Tomás de Aquino se ocuparia em grande parte:
traduzir e comentar Aristóteles, difundindo o saber aristotélico,
cristianizar Aristóteles, usar a Filosofia Aristotélica como
argumento complementar dos argumentos teológicos. Por fim,
integrar à Filosofia antiga, fazendo de Aristóteles um pensador
cristão.

A segunda tarefa era resultante da vinculação


aristotélica de Tomás de Aquino. Tanto Aristóteles quanto São
Tomás de Aquino são racionalistas. À luz da razão, no primado da
razão, que anteciparia um traço da modernidade, São Tomás
provou racionalmente a existência de Deus, ainda que de maneira
equivocada. Equivocada porque Deus prescinde de prova racional.
Ele não se esgota nos critérios da razão; Ele transcende nos
critérios dela. A fé tem critérios próprios, e não se submete a
critérios racionais que são típicos da ciência. A fé não se vincula à
sabedoria.

Chama-se cientismo ou cientificismo a pretensão


equivocada da ciência de estabelecer seus critérios como os únicos
válidos para a aferição da realidade. Eis que Tomás de Aquino,
teólogo, estava, naquele momento, discorrendo para transportar a
razão para dentro da Teologia, e se envolveu com essa questão
equivocada da necessidade de provas racionais da existência de
Deus.

Por isso Fernando Pessoa, poeta português, escreveu


esse verso revelador da complexidade dessa questão. “Já viram
Deus as minhas sensações.” Chegou à via sensorial do poeta! Não
precisa de prova racional.

Tomás de Aquino construiu uma obra numerosa,


surpreendente e magnífica para sua breve vida. Morto aos 49
anos, devemos deles descontar três em que Tomás viveu em total
estado de demência. Era um “ensimesmamento” patológico que
fez com que a única frase que passou a ouvir nesses três últimos
anos foi “Frei Tomás, volte a si, porque a causa de Deus precisa
que o senhor complete a sua obra.” No que respondeu: “não há o
que completar. Tudo que escrevi não passa de feno, de palha, e
deve ser queimado.” E voltou ao seu estado de desrazão até que a
morte o alcançou. Nos últimos dias, transitou entre um mosteiro e
outro, numa madrugada de tempestade, até que chegou ao seu
destino ensopado, e já com sinais de sua doença pulmonar.
Suspeita-se que morreu de pneumonia.

 
A obra

Tomás de Aquino passou cerca de 20 anos de sua vida


compondo uma obra substancial, cujo centro é a Summa
Theológica. Agora mesmo há uma edição da Editora Loyola, em
dez volumes, feita a partir de uma tradução de Alexandre Correa,
professor de Direito Romano na Universidade de São Paulo. Outra
edição, de doze volumes em formato tabloide, contém onze de
texto, e um décimo segundo com um guia, que ensina a consultar
a Suma, pois nela há 3000 perguntas, e 1000 artigos para
respondê-las. É um labirinto.

Nessa Suma Teológica, título traduzido, há dois tratados


jurídicos: o Tratado da Lei e o Tratado da Justiça. Esses tratados
são encontrados nessas duas edições. Há também uma edição
absolutamente universitária, considerada a melhor do mundo,
recomendada pelo professor, que é a edição da BAC, de Barcelona:
Biblioteca de Autores Cristãos. Seis volumes em papel bíblico. É
explicativa do pensamento de Tomás de Aquino, e considerada a
melhor edição até pelo Vaticano.

Quem quiser pode ir atrás do Tratado da Lei e do


Tratado da Justiça editados separadamente por uma editora
portuguesa: Rés Jurídica. ¹ Os dois tratados foram publicados
autonomamente.

Outra obra tomista relevante para o Direito é a Carta ao


Rei de Chipre, também chamada de “Carta do Reino.” O rei de
Chipre manda uma carta para Frei Tomás de Aquino, lhe
perguntando como o príncipe deve ser e agir para se conduzir
como um político verdadeiramente cristão. A resposta de Tomás
de Aquino é uma obra prima do pensamento filosófico e jurídico.
Foi certamente o espelho em que Maquiavel se inspirou para
escrever Dei Principatti (O Príncipe)

São Tomás de Aquino completou a obra Agostiniana


como filósofo já da Escolástica, e não da Patrística, contribuindo
doutrinariamente para o desenvolvimento do argumento cristão-
católico. É o comportamento intelectual orgânico da Igreja.

Tomás de Aquino é escolástico, que significa: Filosofia


na Escola. A Igreja criara escolas anexas às catedrais, e essas
escolas se pluralizaram no tempo medieval.
1. Pesquisando encontrei “Rés Editora”,
então assumi que “Rés Jurídica” é uma
subdivisão daquela editora.

São Tomás de Aquino - conclusão

Aqui encerramentos a Filosofia medieval, e, a partir do próximo


encontro, chegaremos à aurora da modernidade. Amanhã
falaremos de Renascimento, e começaremos a tratar daqueles que
definiram a Filosofia política e jurídica da modernidade, como
Nicolau Maquiavel.

Vimos que Tomás de Aquino era um personagem de


1200, nascido na Sicília, no sul da Itália, de Nápoles, de uma
família amplamente nobre. Era da nobreza ítalo-germânica,
simultaneamente sobrinho de Conde D'Aquino e Frederico
Barbarroxa. Era um tempo de litígio aberto entre a Igreja e o
império. Esse litígio tratava da luta pelo poder econômico e o
político. Era uma luta que, afinal, tinha um ponto de maior
sensibilidade: os poderes a serem exercidos pela Igreja, quer o
espiritual quer o temporal, significavam que o poder laico, civil,
teria outro senhor e um outro destinatário. O império, com o
poder civil, competia com o poder temporal e espiritual da Igreja.
A competência, em poder espiritual, pertencia à Igreja e portanto
ao papa. Mas este não tinha nenhuma legitimidade para exercer
os poderes temporais. É em torno dessa questão que se deu esse
conflito de mais de quatro séculos. O papado, pelo menos entre
800 e 1200, buscava concentrar esses poderes de maneira aguda
e, ao fazê-lo, multiplicou a presença de reinos cristãos no mundo.
Levou o império a ser subordinado do papa, ou seja, que este
tenha súditos, os reis. Por isso os reinos eram cristãos: sem aval
da Igreja, sem realeza.

A equação de poder que se estabelecia é papa + rei; papa


primário, rei secundário, mas juntos dominavam o poder local e o
poder circunscrito aos feudos. O poder do barão da terra não se
universalizaria. Quem tinha poder extrafeudo era a Igreja,
assegurado pela realeza. O rei encontraria, no futuro, outro
personagem para se aliar que não o papa: a burguesia. Esse
parceiro histórico depois iria cumprir, junto à realeza, o papel de
sócio para que ela estabeleça o poder sobre o mundo. Um dia a
burguesia agradeceu e levou a realeza à guilhotina.
Quando a burguesia assumisse o poder de império sobre
o mundo, a sociedade não seria mais feudal, mas capitalista. A
forma de produção da sociedade mudaria, deixaria de ser feudal.
O resultado disso foi o Estado moderno no Direito Liberal.
Chegou-se a ele lá passo a passo.

O que queremos dizer de essencial aqui é que o litigio


entre Igreja e império era que a vontade da realeza, que mandava
nos entes autônomos, era subordinada ao poder de império do
papado, com sua capacidade econômica, de receber doações de
grande parte da Europa ocidental, também em sua capacidade de
estabelecer o Direito Canônico, de reclamar o poder como de
origem divina, e também no fato de que a Igreja era uma agência
universal num mundo de autarquias, que eram os feudos.

Por isso os filósofos medievais encerraram nessa legenda


clássica o que significava o feudalismo: cada um em seu
quadrado. Essa agência universal, organizada em rede, passou a
dispor de uma forma ainda maior de controle sobre as ideias,
especialmente com a criação das Universidades. A Igreja
hegemonizava o mundo, tendo no rei um sócio menor. Por isso
que Frederico Barbarroxa, tio de Tomás de Aquino, estava a
serviço da Igreja, bem como Conde D'Aquino, também tio do
filósofo. As famílias estavam em posição privilegiada num
momento em que o papado e a realeza está forte; e Tomás de
Aquino concorrerá para isso pois, de um lado, ele não só realizaria
o projeto da família, que era levar um de seus membros ao
papado, como também chegou a ser assessor do papa e ganhou
grande prestigio.

Esse Tomás de Aquino era, portanto, um cidadão


aparentemente bobalhão, que havia fugido e depois arrebanhado
pelos pregadores, detido pela família, vivido em cárcere privado
de onde depois saiu para realizar sua vocação teórica e teológica
em Nápoles, Roma, e Paris.

Em Paris Tomás encontra Alberto Magno (Alberto da


Saxônia, 1193/1206 – 1280), grande intelectual, lógico, teórico e
filósofo do tempo medieval, canonizado no século XX, alguém que
se tornaria reitor de um seminário da cidade, onde Tomás de
Aquino completaria sua educação e também seria professor,
ensinando as lições de alto prestígio de Magno, que foi quem abriu
as portas da Universidade para Tomás de Aquino.
Exerceu lá o magistério, e também em Nápoles, e entre
Paris e Nápoles resolve seu destino pedagógico. Perto da morte,
Tomás de Aquino já estava em estado de completa demência, mas
ainda assim o Bispo de Paris convocou o Concílio, e escreveu 13
teses contra Tomás, com o objetivo de fazê-lo ser considerado,
depois da morte, herege. Falhou. Alberto Magno foi advogado de
São Tomás de Aquino em relação a essas acusações. A Igreja lhe
conferiu, post mortem, o título de Doutor da Igreja, e depois
transformou seu pensamento na doutrina oficial da Igreja
Católica.

O que esse pensamento tem a ver com o Direito? São


Tomás de Aquino reflete uma mudança na postura do poder
dominicano. Esse era um poder que havia nascido como ordem
militar e que, depois, patrocinou um banho de sangue, o
aniquilamento dos carpocratas, que representavam uma seita,
operante na Itália, na França e na Alemanha, que propunha outra
versão para o Cristianismo, fundada no princípio do Cristianismo
primitivo. Depois de acabar com os carpocratas, a ordem
dominicana mudou de natureza, transformando-se em ordem
educacional, educando, entre os quais, Tomás de Aquino.

Como produto acabado dessa tarefa, concorrendo com o


esforço que Alberto havia feito, Tomás de Aquino o auxiliou no
sentido de traduzir, comentar e explicar Aristóteles, que está
sendo resgatado, neste momento, pelo mundo medieval pelos
árabes. Surgiu grande controvérsia na Igreja sobre a admissão de
Aristóteles como guru.

Tomás também escreveu livros comentando a doutrina


de Aristóteles, e terminou por completar um ciclo importante para
a Igreja: cristianizar Aristóteles. Santo Agostinho cristianizou
Platão, Justino cristianizou Sócrates, e São Tomás de Aquino
cristianizou Aristóteles. Assim, construiu uma visão teológica e
filosófica do mundo, segundo a razão. É o desembarque da
Filosofia na Liturgia.

Lembrem-se que, quando estudamos Santo Agostinho,


vimos que o problema da Patrística era que a fé não podia ser
revelada, mas que ser conhecimento. A fé teria de ser encarada
mais como um conhecimento teológico, mais filosófico. A Teologia
o centro do conhecimento, com auxílio da Filosofia. A Filosofia
seria parte necessária na construção do conhecimento teológico.
E, sendo parte necessária, temos um racionalismo de Platão e de
Aristóteles desembarcando agora na era medieval, com São Tomás
de Aquino se debruçando tá tarefa de buscar as provas racionais
da existência de Deus. Assim, ele antecipou o racionalismo da
Filosofia moderna, Filosofia que é essencialmente racionalista,
usando a razão como cerne de tudo. Especialmente na Filosofia
iluminista.

É uma Filosofia que, naturalmente, foi se polarizando


com o avanço dos séculos. Já no século XIX, à beira do XX, passou
a haver uma demanda na Filosofia moderna entre razão e
desrazão. Especialmente com os trabalhos de Nietzsche e
Schopenhauer no século XIX.

É São Tomás de Aquino que prepara a Filosofia do


mundo moderno.

É preciso que se diga, também, que 1200 foi o primeiro


momento em que se quebrou esse monobloco das ideias. Era
legítima a concentração de poderes em torno do papado? Esse era
o questionamento. Aqui se contestava explicitamente essa ideia.
Quem o fará será Dante Alighieri, o poeta da Divina Comédia,
poeta da monarquia. Ele distingue os poderes de maneira
explicita: poder espiritual e o poder temporal. Idealiza a entrega
do poder temporal à sociedade organizada para que esta
institua os agentes competentes para seu exercício. Entre eles não
haveria representantes do papa, pois este é legítimo exclusivo para
o exercício do poder espiritual. Não por acaso Dante foi
perseguido e, ao representar a Divina Comédia, colocou todos os
perseguidores no inferno.

São Tomás de Aquino, então, do ponto de vista jurídico,


se comportou numa perspectiva marcada pela influência de
Aristóteles. Tomás refletiu sobre o Direito aristotélico, pensando
que poderia utilizar quatro formas de Direito. Pensou nas formas:
Direito Divino, Direito Eterno, Direito Natural e Direito Humano.

Sobre o Direito Divino temos já o magistério de Cícero


que é o diálogo permanente com Tomás de Aquino, em que
sabemos que o Direito Divino decorre dos textos sagrados e da
principiologia espiritual. Os livros são mandamentais, repletos de
ordenanças, e perpassados por imperativos de justiça. Essa regra é
visível na Torá, livro judaico que quer dizer “lei”; na Bíblia,
especialmente no Pentateuco; e também visível também no
Alcorão, outro livro mandamental. Não por acaso inspira a criação
de Estados fundamentalistas.

O Direito Eterno a que Tomás de Aquino se reporta é:


Deus é causa primeira, que criou a causa segunda, que é o mundo.
Deus não é a causa segunda e não está nela, se ausentou dela. É o
Deus a que se chega por meio da razão. Esse Direito Eterno
funciona segundo uma legalidade, assentada na mecânica
universal: a Terra gira, a maré sobe, o Sol brilha no céu. É o
Direito Eterno: a vida do mundo está repleta de leis, e essas leis
constituem o Direito.

Terceiro Direito de São Tomás de Aquino é o Direito


Natural. Que Direito Natural é esse? Aqui ele estabelece uma
diferença entre o Direito Natural dos estoicos, que perpassa
Cícero, que já plantara essa semente supervalorizando a razão.
Tomás se filia a essa ideia e diz que o Direito Natural é o Direito
Natural da razão. É a razão que irá decodificar, no Direito Eterno,
conhecendo suas leis, tendo por objeto a coisa em si,
transformando-a em coisa para si.

Essa é a razão que permitirá conhecer a razão humana.


A razão sabedora de tudo isso, de Deus, da decodificação da
mecânica universal, da condição humana irá inspirar a criação do
Direito Humano. Aqui que se desembocará no universo social.

Esse Direito Humano é um Direito altamente valorativo


de Tomás de Aquino, buscado na tradição aristotélica, segundo a
qual a boa-fé é um princípio dos princípios do Direito. Este
Direito valorativo exige que esse objeto “lei” seja portador de uma
perspectiva promocional do homem em suas circunstâncias. São
Tomás de Aquino diz que a lei deve ser obedecida porque é lei, e
esta lei é portadora de valores. E se não o for? Ela deverá, de
acordo com o pensador, ser repugnada. Não será lei, mas
corrupção dela. Aqui, o filósofo santo abre as portas para o direito
de resistência ao príncipe opressor, injusto e tirânico, responsável
pela legalidade imprópria porque descomprometida com a agenda
do bem.

Lei, Direito e justiça para quê? Para transformar a


sociedade em um todo de todos. São Tomás é solidarista. Se o
príncipe tirânico se serve de uma legalidade tirânica para fraudar
essa diretriz, o filósofo ensina que deve-se resistir a esse príncipe
desviado buscando-se caminhos para sua deposição.

Mas Tomás não subscreve ao regicídio ou tiranicídio, ou


haveria assassinatos políticos tentando conviver com valores
cristãos. É o precursor do impeachment. É o caminho jurídico e
político para a remoção de um príncipe injusto.

O Direito de resistência teve variantes e críticas, mas


teve defensores que alegaram que devia-se lutar e resistir na
esfera da justiça, para defender a dignidade humana em todos os
meios, inclusive os violentos, com a violência dos oprimidos. Mas
não vemos isso em São Tomás de Aquino. Ele está muito mais
para um precursor de uma não violência ativa do que a violência
dos violentados, que é o caminho posteriormente seguido pelos
anarquistas.

O Direito de Tomás de Aquino é perpassado por essa


dimensão ética, que só pode ter como signo finalístico a justiça.
Esse objeto, a justiça, seria objeto de uma condenação porque se
buscou vincular o Direito a outras propostas que não a justiça.
Uma delas seria a segurança. Isso se reflete em Maquiavel (1469
– 1527) até Hans Kelsen (1881 – 1973). Mas São Tomás abraçou
a vertente da justiça, e escreveu seu Tratado da Justiça por isso.

O pensador estabeleceu uma dialogia reprisando os


caminhos aristotélicos quanto à justiça distributiva, comutativa, e
chamando a justiça geral de Aristóteles de justiça social, criando
um conceito que se tornaria intemporal, com muita felicidade.
Justiça social é uma reivindicação universal dos povos decorrente
do argumento jurídico de São Tomás de Aquino. Justiça social é o
que dela disse Aristóteles e o que dela disse São Tomás de Aquino.
Se desenvolveu em Cícero e superdesenvolveu em Tomás de
Aquino. É a forma maior de realização do bem humano.

Isso leva à superação da tautologia: um cão correndo


atrás do próprio rabo. O bem comum deve ser definido, antes,
para que se defina depois a justiça.

Bem comum é a concessão, ao todo homem, e ao


homem todo, de um mínimo de bens materiais e espirituais para
que consiga prover sua dignidade. É uma regra totalmente ética,
mostrando o sentido harmônico do argumento jurídico tomista.
Ao mesmo tempo essa regra permite compreender que o Direito e
a justiça de Tomás de Aquino suprem altas exigências do ser
humano. A rigor, esta é uma caridade que não foi satisfeita antes,
em nenhum lugar da Terra, mesmo onde a democracia social se
superdesenvolveu até hoje.

Bem comum, ideia que funda o pensamento


solidarista, era a preocupação maior de Tomás de Aquino. É o
desaguadouro moral de sua preocupação jurídica e de justiça.
Justiça é para ser vivida, e não para ser aspirada. O teste de
verdade da justiça é a vivência social. A vida é solidária ou não é?
A vida social promove a condição humana em sua dignidade ou
não? É a pergunta que orienta se há ou não justiça em
determinado ambiente.

Há confronto entre o pensamento de São Tomás de


Aquino e o espírito da modernidade, pois esta é permeada de um
egoísmo que já habita o inconsciente coletivo das pessoas.

O bem comum precisa de desenvolvimento, dizia São


Tomás de Aquino. Ele não pensa a sociedade como um ser
estático, mas como um ser vivo em ampliação de possibilidades,
especialmente na integração dos marginalizados. O bem comum
precisa de permanente difusão porque a maior cautela que pode
haver é a conquista de consciências: criar uma consciência
solidária, e criar práticas que o confirmem, para se seja feita uma
reeducação do Estado para que se possa vivenciar a justiça. Estas
exigências resultam de uma percepção política, e foi política a
pergunta que o rei de Chipre fez: “qual o meio e o modo de agir
para que o príncipe seja verdadeiramente cristão?” Assim Aquino
escreveu uma carta-resposta, que se tornou uma obra prima, que
recebeu o nome de Carta ao Rei de Chipre (ou “Carta do Reino”).
Ali ele traçou o perfil do príncipe comprometido com uma agenda
ética e jurídica promocional da dignidade. Queria, portanto, que
esse desaguadouro se confirmasse num Estado social de Direito.
Que Direito? Permeado pela ética. Que justiça? Justiça como
expressão aguda do bem comum. Que paz? Aquela consequente
a afirmação do bem comum, pois, quanto mais comum for o bem,
maior será a possibilidade de paz perduradoura. Partilha-se o bem
de vida entre todo homem e o homem todo.

É um pensamento universalista, uma proposição


universal. Não é uma solução local.
No Renascimento, o pensamento de São Tomás de
Aquino é resgatado; nesse contexto criou-se uma segunda
Scholastica, portanto, uma corrente neotomista, e resgatam-se as
ideias do filósofo, criando o germe do Direito Moderno. É aqui
estão alguns dos fundadores do Direito moderno, resgatando as
ideias de Tomás. Estão teólogos e juristas espanhóis. Francisco
Suárez (1548 – 1617), fundador do Direito
Internacional; Bartolomé de las Casas (1488 – 1566), Bispo de
Chiapas no México, fundador dos direitos humanos; Luís
de Molina (1535 –1600), fundador do Direito Econômico; toda a
Escola que, a partir de Salamanca, criará uma dimensão social do
Direito moderno, uma contraposição do pensamento católico ao
pensamento evangélico, a Contrarreforma como resposta à
Reforma Protestante. A Reforma criou o cabedal de pensamentos
jurídicos a partir de Hugo
Grotius, Hobbes, Locke, Hegel, Kant e Rousseau.¹ Todos
protestantes, ao menos a princípio. Da Reforma e do
Renascimento há uma linha de pensamento evangélico que será
contraditada pelo pensamento católico, que advém da II
Scholastica.

É o pensamento neotomista que perpassaria


principalmente o século XX, com aguda manifestação a partir da
segunda guerra mundial. Os principais colaboradores dessa
dispersão da Filosofia neotomista foram os espiritualistas
franceses, a exemplo de Jacques Maritain (1882 - 1973). Criou
um movimento universal a partir da França.

O que o Brasil tem a ver com esse pensamento tomista?


O primeiro livro de Direito escrito no Brasil foi influenciado pelas
ideias de Tomás de Aquino. Foi escrito em Ouro Preto, Minas
Gerais, por um poeta chamado Tomás Antônio Gonzaga (1744
– 1810). Personagem da Inconfidência Mineira, autor de Marília
de Dirceu, que devemos ter estudado em tempos pretéritos; era
uma obra do Arcadismo mineiro. Gonzaga escreveu uma obra
chamada Tratado de Direito Natural, e as ideias de Tomás de
Aquino se desdobram aqui para se projetarem ao século XIX. Já
no século XX há uma floração de filósofos neotomistas. Vamos
dizer somente alguns deles: Alceu de Amoroso Lima (1893 –
1983), André Franco Montoro (1916 – 1999) e Goffredo
Teles Junior (1915 – 2009).
E atores políticos visíveis porque tinham uma visão
tomista do mundo, como Dom Helder Câmara (1909 – 1999),
Arcebispo de Olinda e Recife. Foi chamado pela Universidade de
Harvard para ser conferencista no seminário de sete séculos da
morte de São Tomás de Aquino. Outro ator político foi uma figura
chamada Herbert José de Sousa, o Betinho (1935 – 1997), que
fez campanhas contra a fome.

1. Havia mais dois nomes aqui, antes de


Hegel.

O Renascimento

 Direito e política
o Direito Romano
o Direito Romano-
Germânico
Canônico
o Reinos cristãos
o Crise do papado
o Traição da realeza
o Realeza e
burguesia
 E
stad
o
 N
ação
 S
ober
ania
o Estado Absoluto
 Economia
o Mar
o Burgo
o Comércio
o Mercado
o Ciência e tecnologia
o Navegações
o Descobertas
o Colonização
o Mercantilismo
 C
apital
ismo
come
rcial
 C
apital
ismo
indus
trial
 C
apital
ismo
financ
eiro
 Valores
o Teocentrismo
o Antropocentrismo
o Mitos
 F
austo
 D
on
Juan
 R
obins
on
Cruso
e
o Ideologia do
Progresso
o Racionalismo
o Tecnicismo
o Cientificismo
o Produtivismo
o Indivíduo e
individualismo
Vamos conversar hoje sobre um momento histórico que
é a transição que irá conduzir ao declínio do feudalismo e à
ascensão do capitalismo. É a situação que se coloca na
modernidade.

O declínio do feudalismo se manifesta desde 1200 e se


consumará em no início do século XIX. Significa que os modos de
produção não são objeto de mágica desaparição na história. Trata-
se de processos destitutivos, lentos. Foi o processo que mais
consumiu dinheiro no milênio e na história da humanidade. Ao
passo que uma forma de organização da sociedade declina, outra
começa sua ascensão. A forma de organização da sociedade agora
é liberal e capitalista.

Portanto o renascimento é o interregno, o hiato entre o


mundo feudal e o mundo capitalista. O mundo é feudal ainda, mas
se prepara para ser capitalista. Essa perda de poder dos senhores
feudais é um dos momentos mais sangrentos da história da
humanidade, perdendo somente para o século XX.

O renascimento, que abrange aproximadamente o


período do século XIII ao XVI, é o momento mais extraordinário
em termos culturais. A estética encobriu um jogo de fenômenos,
alguns altamente dramáticos e outros altamente sangrentos.

A partir do renascimento temos a manifestação da


jusfilosofia moderna. O primeiro filósofo da época é Nicolau
Maquiavel. Para chegar nele, precisamos necessariamente passar
pelo renascimento.

A expressão renascimento é por si só reveladora. Como o


próprio nome diz, é um renascimento, um ressurgimento dos
modelos sociais e culturais da antiguidade clássica e do
paganismo. Trata-se do estabelecimento de uma síntese: se
tratarmos de forma hegeliana, temos o Paganismo como tese, o
Cristianismo como antítese e, como síntese, esse fenômeno
complexo que vamos estudar agora.

O que pretende, na essência, o renascimento? Resgatar


os modelos pagãos de vida, contestando a dominação cristã na
história. O cristianismo institucional passa a ser contestado em
todos os aspectos.
O princípio fundamental do modelo pagão é que
o homem é a medida de todas as coisas. “Se não é mais Deus, que
passe a sociedade da etapa do feudalismo cristão.” É o princípio
motor do renascimento.

Só que o renascimento é um fenômeno de tal tamanho


que teve repercussão na vida econômica, política, social, jurídica,
e também nas ideias e valores. É preciso que examinemos essas
partes, unificando-as. Daí entenderemos a transição para a
modernidade liberal burguesa.

Por onde começamos? Podemos começar pelo Direito e


política. É a parte em negrito do esquema; nas próxima aula
vamos concluir a parte de Direito e Política no renascimento e
vamos, na segunte, para os valores e então para a economia.

O Direito e a política no renascimento

Do ponto de vista do Direito e da política, o mundo


feudal era, a princípio, um consórcio, um composto binário do
Direito Canônico com o Direito Germânico. Reportamo-nos à
dimensão legal, e depois às circunstâncias de poder. Esse era o
mundo medieval, pois a Igreja cria o seu Direito, fazendo a
transição do mundo escravista da antiguidade para o mundo
feudal. No feudalismo pretendia-se realizar a disciplina social da
vida não pelo Direito, mas pela Teologia. E, assim, disciplinar o
mundo, tanto pela Teologia quanto pelo Direito que a Teologia
inspira. Daí vem o conceito de cânon, que serviu, a princípio, para
disciplinar as ordens religiosas rebeldes.

É um Direito que pretendeu ser um substitutivo do


Direito Romano. Aplicava-se a todos os homens exceto nas
questões territoriais. O Direito Canônico não tinha tradição de
intervenção nas questões territoriais, além de terem os bárbaros
trazido consigo as instituições sociais, que faziam referência
fundamental à terra. O Direito da terra era o Direito Germânico.

Quando falamos de escravismo, falamos na primeira


sociedade a criar riqueza, mas era uma riqueza da terra. Era o
mundo romano, eminentemente latifundiário. Ao falar de
feudalismo, falamos numa sociedade que transformou a riqueza
em riqueza... da terra! É a coisa que não muda. Entre o feudalismo
e o capitalismo, pela primeira vez se marchará para uma fase em
que a fonte de riqueza não é a terra. A manufatura com aplicação
da ciência e tecnologia dispensa a terra.

Mas o feudalismo, que se assentava na terra, e


estabelecia a disciplina jurídica da terra pelo Direito germânico,
trazia a predominância absoluta da fé. O Direito Canônico não
precisava desenvolver institutos territoriais, pois o Direito
Germânico já satisfazia essa demanda. Assim, o Direito germânico
disciplinava as relações da terra, enquanto o Direito Canônico
disciplinava o resto da vida. Foi o esforço binário que predominou
na era medieval.

Que “resto da vida” era esse? Todas as relações entre


homens que não tenha procedência territorial, substituindo o
Direito Romano, mas ao mesmo tempo nele se inspirando.

Só que, por volta do ano 1200, conseguiu-se navegar


novamente no Mar Mediterrâneo. O feudalismo centralizou a
história da humanidade na terra, e não no mar. Feudo quer dizer
“gado”, “rebanho”. O feudalismo não tinha nenhuma natureza
mercantil, a princípio. Inibe o comércio e a cidade, até porque o
feudalismo está centrado em si mesmo, e o “si mesmo” era a terra.
A vida era hermeticamente fechada na terra e nas aldeias feudais.
As aldeias eram a esquina do mundo. Por isso havia a
possibilidade de se desacreditar o Direito Romano, repudiando-o:
Estado, Direito, advogado, justiça e liberdade, para que se
afirmasse a alternativa: Igreja, Teologia, Padre, Salvação,
Eternidade. Nessa sociedade tínhamos um Direito que trazia
consigo a inspiração teológica do Direito germânico. Até que, em
1200, restaurou-se o comércio e o mar começou a transformar a
terra.

Nenhum dos dois Direitos, nem o Canônico nem o


Germânico, tinham a tradição de trato com as questões mercantis.
O germânico era puramente territorial, e só resolvia questões
relativas à pecuária e agricultura, e estabelecia formas de partilha
da riqueza agrária. O Direito Canônico também não tinha
dispositivos mercantis, porque era literal, institucional, plasmado
na Igreja, primeiro para disciplinar as ordens religiosas, depois
para disciplinar o resto do mundo, mas esse “resto do mundo” era
um ambiente externo ao feudo em que o comércio era inibido.
Com a transformação do feudalismo sai-se da terra em busca de
mercado, e onde há gente há mercado. Fora dos feudos, além das
muralhas (burgos) se estabeleceram os locais de compra e venda.

O mar, também, trazia consigo a possibilidade de se


fazer comércio a longa distância. Nessa hora passou-se a ter uma
necessidade de segurança jurídica. O que se precisava, portanto,
era a restauração do Direito Romano, que volta ao centro da
história. Ele superdesenvolvera, na antiguidade, as relações
privadas, e continha toda a terminologia e institutos para resolver
as questões entre particulares.

A cidade abriu o comércio. Restaurou-se a cidade, o mar,


o comércio e o Direito Romano. O Direito Romano tinha essa
capacidade histórica de resolução das questões privadas porque as
instituições de direito privado foram desenvolvidas por muitos
séculos durante os tempos prósperos de Roma. Contratar, se
obrigar, e assim por diante. Nesse momento passou a ser
necessária uma disciplina para o comércio.

O sistema, então, não era mais binário, mas ternário: o


Direito era Germano-Romano-Canônico. Um Direito complexo,
de três facetas e, nele, a regra geral do Direito feudal é a
hierarquia estamental da sociedade.

Aqui devemos nos lembrar de três formas clássicas de


hierarquia social: castas, estamentos e classes. São três formas
clássicas de estratificação social. Castas remetem,
originariamente, à cor. Tinham uma natureza étnica. Uma etnia
tribal reivindicava superioridade sobre as demais, que iam sendo
conquistadas. A forma mais acabada de casta que temos hoje em
dia é na Índia. No espírito central da sociedade fechada de castas,
morre-se onde nasceu. Não há mobilidade social. Não pode
ascender nem descender na hierarquia das castas. É uma
condenação social à morte no local onde nasceu.

As sociedades de castas não desapareceram. Existem


castas ainda, e são reinantes sobre a vida. Uma casta que costuma
se apontar é a casta do capital financeiro internacional. É uma
classe democrática? Não. É um comércio de uma mercadoria
chamada dinheiro que se autorreferencia na história, faz
sua autopoiesis. Chega a fazer com que a história gire em torno de
si mesma. As castas não despareceram na história; somente
deixaram de ter um papel central. Hoje as castas existem
residualmente.

Os estamentos também não desapareceram. Um


exemplo foi a sociedade feudal. Estamento, portanto, é um grupo
fechado dentro de uma sociedade marcada pela capacidade
apenas relativa de mobilidade social, ao contrário da de castas,
que não admite a mobilidade, com um ethos, uma ética própria e
com espírito fortemente corporativo. É mais do que uma camada;
é um grupo com essas características.

Os militares se organizam em castas ou estamentos? São


um grupo fechado. Desenvolvem ética própria, centrada na
disciplina e hierarquia, mas, mais ainda, a honra. Não se pode
desonrar a hierarquia, a farda e a disciplina. A honra é para o
militar o que o crédito é para o comerciante. Um militar
desonrado não será militar, assim como um comerciante sem
crédito não será comerciante. Há até solenidade de expulsão da
corporação. Isso é estamento.

E “classes”, o que são? São macrogrupos sociais abertos


definidos pela sua relação de propriedade ou não propriedade com
os meios de produção fundamentais da sociedade. Define-se pela
‘propriedade material’ ou ‘não propriedade material’. São meios
de produção fundamentais da sociedade: capital, terra, serviços,
ciência, tecnologia, trabalho. Se produz com a conjugação de todos
esses meios. Uma empresa complexa tem tudo isso. Uma classe
que não tenha nada disso é a dos excluídos. A classe que só tenha
trabalho pode ser chamada de proletária. Uma classe que só
tenha terra pode ser chamada de camponesa. A que só tenha
serviços pode ser chamada de classe média urbana.

Na sociedade de classes pode-se ascender e descender.

Na sociedade estamental há mobilidade social, mas se


limita à mobilidade horizontal, nunca vertical. Mesmo com as
elevações de patentes dentre militares: mesmo Marechal, não se
deixa de ser militar para ser um grande magnata.

Para concluir esse assunto: os símbolos de hierarquia


social em todos os modelos: o dinheiro, poder e prestígio. Quem
tem dinheiro não necessariamente tem poder. Quem tem prestigio
não necessariamente tem dinheiro.
Há também os fatores reais de poder, aquele conceito de
Ferdinand Lassale.¹ Quem tem dinheiro e não conseguiu o poder
ainda poderá conseguir este último, pois não se chega ao poder
sem dinheiro, segundo o suíço. Essa frase tem corolários
contemporâneos, como os dizeres de Warren Buffet: “Não existe
almoço grátis”. ²

O que queremos dizer com tudo isso é que, com a


sociedade feudal estamental, a justiça era a justiça estamental, e
não universal. Não havia uma justiça que se aplicasse a todos os
homens, pois seria um princípio democrático numa sociedade
aristocrática. Cada hierarquia social tem seu juízo. Um aristocrata
não poderia ser julgado por um tribunal de artesãos. Significa que
não havia regras gerais, que se aplicassem a todos. É um Direito
casuístico e discricionário. É um Direito que, afinal, iria reger os
reinos cristãos, na base, aplicando-se o Direito germânico, com
cada um em seu feudo, com o estatuto ditado pelo barão da terra.
Contendas entre vassalos eram resolvidas pelo senhor. Ele cria
regras econômicas, sociais, jurídicas e políticas em seu feudo,
segundo o costume germânico. Era um Direito consuetudinário
marcado pela oralidade. Era um Direito sem Estado, centrado na
família. Dentro da família, transformava-se o pai na grande
autoridade, para resolver todas as contendas, e aplicar aqui
os ordalhos. Banho de água fervente, caminhada sobre brasas,
cortar a língua para ver se saía sangue.

Regra desse mundo germânico era a guerra. Era a regra


fundamental do mundo germânico, a guerra para limpar a honra
maculada do pai de família. Ninguém deveria macular o nome do
pai. Em nome dele fazia-se guerra. Se duas parentelas estavam em
conflito, como a parentela A fazer uma desfeita pública ao chefe
da parentela B, B buscava lavar com sangue da parentela A a
mancha na honra. Em outras ocasiões, depois de desrespeitada,
antes de fazer a guerra, a parentela B enviava um embaixador ao
território da parentela A, carregando uma bandeira branca,
perguntar se esta queria a guerra ou se queriam reparar a desfeita
mediante a doação de algumas cabeças de gado. Trocavam-se
coisas por honra. Lavava a honra com cabeças de gado. Que
sutileza!

Esse era o Direito Germânico que reinava. Nos reinos


cristãos, a autoridade local era o rei, mas todos estavam sob a
égide do papa. Portanto, quando os reinos cristãos se tornam
reinos marcados pela prática mercantil, eles passaram a ter de
adotar o Direito Romano também. O que acontecerá nesses reinos
é que se estabelecerá um embrião do Direito Moderno. Os
mercadores irão querer transacionar segundo as suas próprias
regras, de maneira costumeira. Daí começaram a construir o
Direito Comercial da modernlidade.

1. Leia sobre
Lassale: http://notasdeaula.org/dir2/direit
o_const1_13-08-08.html
2. Warren Buffet é atualmente o número
3 do mundo em fortuna, perdendo somente
para Carlos Slim e Bill Gates. Estima-se que
ele tenha uma fortuna de US$ 40 bilhões
hoje.

Conclusão do Direito e da Política no renascimento

Vamos continuar a transição para o renascimento.

O feudalismo, momento histórico que durou mais de um


milênio, que foi sucedido pelo renascimento, foi fundado sobre a
ideia de autarquia, auto - próprio, arkhia – poder. Feudo = gado
ou rebanho. Quando os bárbaros se deslocaram para o centro do
mundo, eles levaram seus costumes pastoris e agrícolas, as
relações de vassalagem e fundam o poder central sobre a terra, em
que as baronias eram exercidas segundo os mesmos princípios:
autonomia do barão da terra para estabelecer o estatuto completo
da vida, com autoridade política, jurídica, tudo, menos valorativa,
que cabia à Igreja. Ela estabeleceu como princípio a ideia de que,
onde existe uma aldeia, existe o Direito. Pega as entranhas deste
mundo feudal desde sua base. A Igreja não é somente a Igreja das
catedrais, mas de todas as aldeias.

Este princípio era a própria dispersão da autoridade.


Poder local, multiplicidade de barões da terra, tantos quantos
forem barões que reinarão absolutamente em seus domínios. Essa
é a regra fundamental. Sucede que, com a Igreja, logo se realizou
uma condição do advento do Estado-nação, que é o esboço que a
Igreja vai empreender, condensar, concentrar, unificar a
autoridade. No mundo da dispersão da autoridade, ela realizou a
convergência da autoridade em torno de um rei. Em que espaço,
em que territorialidade? No reino cristão. O rei reinava sobre uma
territorialidade nova, que não é a territorialidade fragmentária
dos barões da terra. É um território inteiriço. Havia a autoridade
central do reino cristão. É um esforço contrário de unificação e
condensação da autoridade. Quem reina é o rei, singularmente, e
todos estão sob seu poder, sob seu domínio. A autoriktas era dele.
É um movimento dialeticamente contrário à tradicionalíssima
dispersão territorial feudal. A partir daí unificou-se a autoridade.

Este é o extraordinário significado jurídico e político dos


reinos cristãos. Eles foram se unificando e concentrando o poder e
a autoridade, trocando a multiplicidade dispersa de poder dos
barões da terra, pela unidade concentrada do poder no rei. Isso é a
precursão do Estado-nação, que é a etapa posterior de
solidificação do reino cristão. Esse Estado-nação, que surgiria em
poucos séculos a partir dessa crise do feudalismo, seria o maior
grau dessa concentração do poder, porque vigeria o princípio
institucional e não o pessoal. No reino cristão, a autoridade ainda
era pessoal. O princípio jurídico fundamental do reino cristão é
que onde está o rei, está a lei. No Estado-nação o poder é de
pessoa jurídica, de instituição. Isso significa que não existe “L’État
c’est moi” (o Estado sou eu), já que o Estado não se personaliza.

Existe um brocardo do Direito consuetudinário que diz


que não há terra sem senhor. Ele pode obter o poder pela terra, e
fundar feudalidades. A Igreja então estabeleceu um corolário
desse princípio: não há aldeia sem igreja. Estima-se que ela tenha
tido a capacidade de estabelecer nas aldeias europeias quase 100
mil igrejas em 100 mil aldeias. Esse era o sentido dos reinos
cristãos.

O reino cristão pressupõe uma aliança. Preponderância


do papa e rei, submetendo o barão da terra. O barão da terra tinha
o poder, mas não era o principal, que era do papa, nem o
secundário, que era do rei. A dinâmica social da história é que o
rei, séculos depois, elegeria outro parceiro, prescindindo do papa,
tomando seu lugar. Esse parceiro viria depois a ser o burguês. Rei
e mercador irão investir contra o Papa e contra o barão da terra
para fundar outro modelo de vida social e econômica. O rei trairá
politicamente o papa. Desse consórcio de rei e mercador nascerá o
chamado Estado absoluto, a primeira forma de Estado moderno,
com predomínio do rei no interesse econômico do mercador.
Importa a vantagem material. O mercador tem uma vantagem
material porque até então ele era taxado e sobretaxado pelo barão
da terra para realizar seu comércio. Agora ele paga um só tributo
ao rei.

A crise do papado se traduziu na criação do Estado


Absoluto. O princípio passou a ser “só a coroa pode tributar.” O
poder da Igreja foi subtraído. As fontes vitais do papado foram
declaradas absolutamente ilegais. No Estado Absoluto, o tributo
exclusivo é passou a ser legalidade. O Estado laico começou a
ganhar forma em detrimento do Estado sacro. O Estado canônico-
românico-germânico muda para Estado civil romano-germânico.
Estado esse cuja principal atividade econômica passará a ser o
comércio, por causa do surgimento dos mercados e do artesanato.

Com a difusão da economia urbano-industrial, os feudos


desovaram gente para as cidades, e o que ressurgiu foi o Direito
Romano pós-clássico, que gerou o Direito Liberal Moderno. E até
hoje, especialmente com o sistema codificado. Nessa época, uma
comissão de juristas e estabeleceu o conceito de propriedade como
centro do sistema. Foi uma diretriz jurídica transcrita do sistema
romano.

A vantagem da realeza agora é concentrar todo o poder e


não mais ser vassalo do papa. A vantagem da burguesia nessa
submissão é que a tributação foi menor, então foi possível a
relação estreita. O Estado absoluto não nasceu liberal, nem de
Direito, nem constitucional. O Estado moderno não nasceu em
conexão com a democracia, mas sim em conexão com a
antidemocracia radical. Todo poder corrompe, e o poder absoluto
corrompe absolutamente. Essa foi uma lição aprendida pelos
liberais absolutistas ingleses.
O grande exemplo de gratidão observado na história foi
que, um dia, tínhamos a aliança estabelecida entre rei e burguesia,
que, depois, apunhalará aquele. A burguesia ficará um dia sozinha
no poder. Vai ocupar-se do entendimento de que não há falta
maior do que a falta de poder. A burguesia tornou-se fortíssima do
ponto de vista econômico, inclusive afirmou o capitalismo
comercial, realizou o industrial, e caminhou para a formação do
capitalismo financeiro. O que a burguesia fez foi agradecer pelos
serviços da realeza e mandá-la para a guilhotina no final do século
XVIII. O ovo da serpente foi fortificado em favor da burguesia.

Esse foi um longo curso de mudanças. Passou pela


Revolução Inglesa de 1688, pela Independência Americana de
1776 e claro, a Francesa, de 1789.

O que temos agora são três questões: Estado, nação e


soberania. São três questões cruciais. A afirmação do Estado-
nação significa o que, literalmente? Estado-nação
significa situação nascente e diferenciada, mas relativamente a
quê? À superação do poder autônomo, autárquico e local do barão
da terra. Agora é a autoridade institucional do Estado que
prevalece. O poder pessoal do barão da terra está indo para o
museu da história.

Depois da Revolução Francesa, toda a propriedade


feudal foi expropriada em favor do Estado Nacional Francês. É
aqui que nasce o capitalismo moderno! Sim, parece estranho, mas
foi de uma expropriação inicial – dos ativos do senhor feudal –
que o capitalismo nasceu.

A nação é a maior revolução psicossocial da história da


humanidade. Até o advento da nação soberana ninguém morria
pela pátria. Não existia pátria, nem identidade nacional; o que
havia de mais forte era a identidade citadina. Por isso os antigos
eram chamados por suas cidades: Tales de Mileto, Sócrates de
Atenas, Aristóteles de Estagira e assim por diante. Os moradores
da Hélade jamais se sentiram “gregos”. Por isso Esparta fez
aliança com persas para destruir Atenas. Não existia “A Grécia”,
mas cidades gregas. No mundo feudal, perguntava-se entre si:
qual seu feudo? Não existia nação no feudalismo.
Quem criou o espírito nacional? O Estado Absoluto. E a
criação é que levaria à circunstância que universalizaria o
sentimento de identidade a partir do processo de universalização
das sociedades urbano-industriais. Daí veio a identidade nacional.

Agora, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, sentimo-


nos brasileiros. Oxente ou tchê, Riachão do Jacuípe ou Passo
Fundo, não importa. Foi o maior ganho político da história do
mundo. Quem começou com isso foi Portugal, que descobriu o
mundo novo e se unificou cedo.

Esse fenômeno da identidade é a grande revolução do


Estado moderno, o que fará com que nós, brasileiros, nos
sintamos diferentes dos argentinos, mesmo eles estando bem
próximos de nós. Assim como eles se sentem diferentes dos
uruguaios.

Um segundo fenômeno político-jurídico é a comunidade


de nações. Pode haver a dissolução das identidades locais em prol
de uma identidade maior. Nessa hora nos lembramos da
soberania, claro. O que é? Atenção: Jean Bodin (1530 – 1596).
Atenção para o nome desse jurista e filósofo francês, em seu livro
muito clássico que, só depois de 500 anos, foi publicado no
Brasil: De la République. Ele quem funda e traz para o Direito a
temática da soberania, que é o valor mais em crise quanto ao
Estado moderno soberano. Esse Estado é o que era definido como
autoridade incontrastável e incontestável sobre certa população
em determinado território, e só ele tem legitimidade para
exercício do poder. A ideia da soberania, ao contrário do que os
manuais ensinam, é a possibilidade do príncipe de dizer o Direito
neste território. A dicção do Direito é do príncipe do Estado. Ele é
quem tem a legitimidade para dizer o Direito. A jurisdição é
exclusiva, quanto à competência, do príncipe. Esse é o sentido
original de soberania.

Há a dimensão econômica da soberania, a financeira, a


política, a filosófica e a jurídica.

Resumo da opera: o Estado Absolutista foi a primeira


forma de Estado moderno, que é um produto acabado do
Renascimento. A maior contribuição político-jurídica foi o
nascimento do primeiro Estado moderno. Não existiria o Estado
Absoluto sem o precedente dos reinos cristãos. Os reinos cristãos
prepararam os estados nacionais. Por isso que o Papa Alexandre
VI, espanhol radicado na Itália, da família Bórgia, chegou a criar
ele mesmo o Estado absoluto eclesiástico.

Naquele tempo, a riqueza das nações consistia em


espaço no mundo. Pouco a pouco começou a corrida pela
conquista de terras além-mar e surgiram as colônias.

Hoje não é mais a dominação do espaço a coisa mais


importante. O que mais importa é a detenção do conhecimento,
próprio e de outrem. Conhecendo a si e ao “inimigo”, o detentor
desse conhecimento é capaz de parar o tempo dos adversários e
acelerar seu próprio. Agora não importa mais controlar
determinados espaços.

Renascimento: valores

Vamos então conversar hoje sobre o segundo aspecto do


renascimento. Falamos da dimensão jurídico-política, e
começaremos hoje a falar sobre a dimensão valorativa, o mundo
das ideias e do conhecimento naquele contexto.

A transição na esfera das ideias naquela dimensão que


podemos chamar de psicossocial, psicovalorativa e psico-
espiritual entre o feudalismo e o capitalismo mediada pelo
Renascimento é da mais alta significação. É momento de grande
efervescência na história do mundo. Aqui passou a haver uma
riqueza de possibilidades muito grande que distingue esse
momento na história. O renascimento é uma ideia absolutamente
extraordinária.

Na dimensão espiritual, logo nos reportamos à estética.


Arquitetura, palácios, urbanização, haja vista o que Bellini
realizou em Roma, escultura, pintura, Rafael, Michelangelo,
Donatello, Leonardo da Vinci... e também na literatura.
O Renascimento é quando se escrevem, por exemplo, as
obras Os Lusíadas e Decameron. Essa dimensão estética do
Renascimento serviu como um tiro com arpão para as ideias mais
terríveis. Mais do que na Idade Média. Sim, pois aqui temos um
contexto de guerra entre o campo e a cidade. No campo feudal,
com sua cavalaria, e na cidade, capitalista, fazendo a guerra com
infantaria e artilharia, usando a ciência numa perspectiva
instrumental. Pela primeira vez, a rigor, em plena consciência se
coloca a ciência a serviço da guerra. Pólvora, por exemplo, foi um
grande instrumento de massacre no final do mundo feudal. Mas a
cidade revela uma capacidade de produção de violência maior que
o campo. Canhões das muralhas, desvio do rio para inundar Pisa,
Nicolau Maquiavel e Leonardo da Vinci. É, enfim, a
instrumentalização do saber para o desenvolvimento da arte da
guerra, se acumulando a capacidade extraordinária de destruição,
o que levou, no século XX, à diplomacia atômica. Os grandes não
fazem guerra entre si. Mas, ao mesmo tempo, estimulam a
formação de guerras regionais para tomar áreas de influência.
Interessava aos Estados Unidos e à União Soviética.

Do ponto de vista das ideias, no renascimento vai se


reafirmar e subverter a visão teocêntrica do mundo. A passagem
que se dá é a da esfera do sagrado para a esfera do humano. A
esfera teocêntrica será guerreada pela visão antropocêntrica do
mundo. Substituição de Deus pelo homem. Elevação do homem à
condição de único e verdadeiro Deus. Significava a retirada do
poder político, econômico e religioso no mundo. A ideia então foi
subtrair o poder da Igreja. A visão oficial de mundo era a visão da
Igreja. Todas as questões e conflitos humanos eram resolvidos à
luz do sagrado. Isso se chama mundividência ou cosmovisão
medieval.

Agora, no renascimento, o que se busca é uma


mundivivência e cosmovisão dessacralizada, com o poder de se
resolver os problemas da vida segundo preceitos puramente
humanos. É a magnificação do homem na história, com suas
possibilidades de emergência e afirmação na história. Essa é a
marca do renascimento!
Até então, as formas coletivas de vida tinham se
predominado sobre a forma individual. Horda, clã, tribo, família,
bando. O coletivo era mais relevante que o individual. No
renascimento se chega a um grau de especificação tão grande que
o indivíduo, periférico antes, tornou-se central. É ele quem se
afirma agora.

Michelangelo assinou duas vezes La Pietá. Isso é bem


revelador da afirmação histórica do indivíduo na história. Na arte
sacra, nenhum artista assinava sua obra. A arte era mais relevante
que o artista. No renascimento, o artista passa a ser até mais
relevante que a arte.

Essa visão de mundo antropocêntrica significa a


magnificação das possibilidades do homem em seu imaginário,
em seu ideário. Isso ensejará o advento do movimento do
humanismo, que é o movimento que irá levar a essa magnificação
ideológica do homem. o homem pretende ser Deus, transcender o
tempo e dominar todo o espaço. Isso bastava. Giovanni Pico
della Mirandola (1463 – 1494) era um grande sábio, e tornou-se
chefe do movimento humanista. Escreveu o Discurso sobre a
Dignidade Humana. Qual o ser mais merecedor de culto e
devoção existente em todo o Universo? Era sabedor dos artifícios
mercadológicos, alegou ter consultado todo o mundo e para dizer
que chegou à conclusão de que o homem era o ser mais relevante.

A postura nietzschiana de recusar-se a si mesmo era


exatamente o que o renascimento pregava.

Outro mito renascentista era Dr. Fausto (Johann


Georg Faust (1480 – 1540), que tem a fome de felicidade infinita.
Retratado em obras posteriores, como de Goethe (1749 – 1832), o
diabo lhe comparece e oferece-lhe a eternidade. O diabo,
entretanto, é o típico “171”, e não cumpre sua proposta. Descobre
que foi logrado.

Outro: Robinson Crusoe, personagem retratado num


romance de Daniel Defoe, de 1719. O mote da obra e do
personagem é a autossuficiência. O homem basta a si mesmo.
Prescinde das relações sociais e pode viver em sua ilha. É a
autarquia do indivíduo. É o que Jean-Paul Sartre resumiu depois:
o diabo são os outros. Robinson pensou na criação do mundo à
parte.

Don Juan é outra lenda, que provavelmente remonta


ao século XIV. Conquistador irrecusável, adorava conquistar
mulheres e lutar com seus homens, mas era é um narciso. Só era
apaixonado por ele mesmo. Amava a si e a mais ninguém.
Contempla-se no espelho das águas.

O homem moderno está marcado por esses mitos. Por


isso aqui também se estabelece a ideologia do progresso. Mais
tarde, com Comte, no século XVIII, chegamos à frase Ordem,
Progresso e Amor. Pregou o culto do homem, e até pensou numa
Igreja terrena. Sem ordem, sem progresso, e só o progresso pode
conduzir ao amor. A ideia da República no Brasil inclusive foi
derivada disso. Benjamin Constant Botelho de
Magalhães (1836 – 1891), quem verdadeiramente proclamou a
República, foi um dos responsáveis pela estampa da legenda na
Bandeira do Brasil.

Auguste Comte (1798 – 1857) teve esclerose precoce e


resolveu que a religião da humanidade precisava de um deus vivo.
Quem ele escolhe para representar essa “divindade” foi sua
amante, Clotilde de Vaux, mulher que já havia sido amante de
algumas outras pessoas na França. Comte é autor de uma obra
chamada Jusfilosofia Positiva, obra em seis volumes e, no quarto,
criou um saber novo: a Sociologia. Um conhecimento racional
novo.

A ideologia do progresso é renascentista. O princípio, a


matriz é esta: homem versus Natureza. Nos primórdios, a
Natureza era mais relevante que o homem. Ele não transformava
a Natureza. O homem era um mero coletor, que vivia mais uma
vida natural do que cultural. Passou a buscar uma intervenção
maior na natureza, para que o homem ampliasse suas
possibilidades, de ser, estar e sobreviver. Sem ciência e sem
tecnologia, ele estava em desvantagem em relação à Natureza.
O que temos no renascimento? É como se dissesse:
“agora é nois!” manifestação da alta sabedoria. A superciência e
supertecnologia estão a caminho. Agora a Natureza pode ser
colocada a serviço do homem. Sem, claro, nenhuma preocupação
conservacionista. Nenhum sábio renascentista teve preocupação
ambiental. Imaginava-se que a Natureza se autorrenovaria
infinitamente. Até que em 1969 o Clube de Roma se reuniu para
levantar a bandeira do crescimento zero. Descobriu-se que o
modelo renascentista era tão predatório que poderia levar à
destruição.

O produto do renascimento foi o tecnicismo, o


cientificismo, o produtivismo, este levando ao consumismo, que
requeria um mercado global. Com a agenda ambientalista,
defendeu-se que, no mínimo, deveria haver um sistema de
reciclagem. É aqui que surge a produção em série.

Uma vez perguntaram para Max Weber (1864 – 1920):


o que promete a transição do capitalismo para o socialismo?
Resposta: “a mera radicalização do controle e instauração do
cálculo como regra da vida.” Não por acaso foram os socialistas
que criaram planejamentos de Estado. Será marcada ainda mais
pela lei da racionalidade. Isso significa que todas as relações entre
homens no mundo moderno serão cada vez mais referenciadas
pela lei do cálculo. E que cálculo é esse? Por exemplo, o das
probabilidades. Vim à aula porque havia grande probabilidade de
a faculdade estar aberta e o professor estar aqui. Isso é o que
Weber diz que irá presidir a vida. É uma racionalidade
instrumental para se fazer um cálculo preciso sobre como agir na
vida. O renascimento prepara esse ambiente. Daí seu
racionalismo, tecnicismo, cientificismo, seu produtivismo. A
produção é um novo deus. A vida passou a seu um monoteísmo de
mercado.

E hoje vivemos reflexos disso: vivemos imersos num


monoteísmo consumerista.

Em suma: renascimento é o contexto de afirmação do


indivíduo na história. Só que o renascimento é a serpente de dois
ovos: o da afirmação do indivíduo e o da afirmação do
individualismo. Uma coisa é a legítima autonomia, especificação
histórica do indivíduo. Individualismo é a nociva transformação
num sistema egoístico contrário aos interesses da humanidade.

Por isso que a Revolução Francesa trouxe suas três


bandeiras (liberdade, igualdade e fraternidade), e a revolução
fraudará a terceira, pois as formas solidárias de vida estão
desautorizadas. O renascimento planta essa política em torno do
antropocentrismo.

Movimentos que marcaram: humanismo, cisma da


Igreja, com Lutero e a desacorrentação da razão, na reforma
baseada na Sola Fide: somente a fé. Quer-se dizer, de maneira
subliminar, que não se precisa nem de papa e nem de Igreja,
porque o homem pode se relacionar diretamente com Deus.

Um terceiro foi o utopismo, uma contratendência do


próprio renascimento. O mundo novo já dava sinais de ser
problemático. Com a indústria de tecidos e alimentos, a primeira
atividade industrial, que substituiu o artesanato, surgiram os
problemas da sociedade urbano-industrial. E, aqui, alguns
filósofos começam a se preocupar e a considerar que essa
afirmação do indivíduo e do mercado é um mundo grávido de
graves problemas. A solução que alguns imaginaram foi propor
um mundo não regido pelo mercado, mas pelo Estado.

Os três movimentos foram, portanto, humanismo,


reforma e utopia. Eis a plenitude ideológica do renascimento. 

Sobre a utopia temos três autores. São eles: Thomas


More (1478 – 1535), morto na fogueira da Inquisição, escreveu
um livro chamado Utopia, que é uma viagem a um lugar onde se
teria uma vida justa. O coletivo seria mais relevante que o
individual. É a raiz do socialismo moderno. Outro foi Tommaso
Campanella (1568 – 1639) foi um ateu que passou metade da
vida preso. Não morreu na fogueira porque o Rei da França o tirou
da Itália e o protegeu. Escreveu um livro chamado “Cidade do Sol”
(Heliopolis), cidade em que se tem a mesma regra de vida da
Utopia: vida regida pelo poder central do Estado, controle de tudo
para que a sociedade justa aconteça. E, por fim, Francis
Bacon (1561 – 1626), que escreve um livro chamado Nova
Atlântida, em que retrata uma nova vida, sem individualismo,
sem mercado, regida, também, pelo Estado. São três correntes
estatistas dentro do renascentismo.

Renascimento: economia

Vamos então concluir o renascimento. Vamos ver o


terceiro componente que é a economia do renascimento.

Tem-se uma tradicionalíssima imagem falsa do mundo


feudal. É o resultado de um trabalho dos iluministas que fizeram
uma clivagem que dividiria a “idade das trevas” da “idade das
luzes”. Essa construção que reservou ao mundo medieval a
condição de idade das trevas tem seu quê de infundada, e falsa. O
mundo feudal foi sim um momento de superdesenvolvimento da
tecnologia. Não podemos esquecer que no medievo de 800, os
árabes desembarcaram na península ibérica, que eram os
detentores da ciência e tecnologia mais avançada do mundo.
Trouxeram coisas que fizeram a diferença. Pólvora, esfiha,
charuto, culinária... passaram apenas 700 anos lá.

Ali se institucionaliza a preocupação maior com o saber,


com a criação da Universidade pela Igreja, em Salamanca,
Coimbra, Oxford, Paris... a própria academia de Platão e o Liceu
de Aristóteles eram Universidades. Havia uma até no Afeganistão.
Era o centro de alta sabedoria e de rotas comerciais. No mundo
ocidental, entretanto, funda-se a Universidade no mundo
medieval.

Outra frente de inovação foi pela via do mar e do


comércio. Por volta dos séculos X, XI e XII se desenvolveu a arte
náutica. Muito ajudada pelos insights advindos do mundo árabe,
que, não se pode negar, civilizaram a Europa. Investiram contra as
discriminações interreligiosas; nas cidades espanholas, onde os
árabes plantaram raízes frequentemente tinham-se Igrejas,
Mesquitas e Sinagogas, num clima de liberdade religiosa de alta
civilidade.
Os árabes, quando desembarcaram na Europa, dormiam
havia mais de 2000 anos em tapetes confortáveis. Um desses
árabes que veio à Europa foi Aladino, sobrinho
de Saladino (1138 – 1193), que resistiu aos cruzados, por si só
um iluminista do mundo da baixa idade média oriental. Saladino
também era Patrono de pesquisas científicas, tecnológicas, das
armas, das letras, dos espetáculos. Tudo isso trazido para o
Ocidente por Aladino.

Hoje o islamismo está bem diferente. Corrompido


nalguns países. Mas foi algo fantástico.

Os árabes promoveram a expansão da área agricultável


na Europa, multiplicaram a população medieval, revolucionaram
a dieta, e motivaram o que se chamou de revolução industrial
medieval.

O comércio que se estabelece entre o Ocidente e o


Oriente irá libertar a terra, e estabelecerá um novo tipo de
trabalhador, o mercador. Isso causou uma revolução jurídica, e
nasceu a autonomia do sujeito. Nasce com os mercadores.

Nas cidades portuárias, fez-se um esforço para que lá


não incidisse a autoridade do Papa, nem reinasse o Rei, nem
mandasse o Barão da Terra. Assim conseguiram estabelecer
diretrizes normativas para a vida, e os mercadores conseguiram
institucionalizar a vida das cidades mercantis para que houvesse
regras que se conduzissem ao funcionamento das instituições, que
devem estabelecer as Posturas Municipais. Surgiram os Concelhos
Municipais, que foram outra revolução. Nas cidades mercantis,
passou-se a votar para saber quem seria conselheiro. Começa aqui
a representação, um sistema eletivo e representativo que irá
marcar a modernidade. Manifestação autônoma da vontade por
meio do voto.

Dessas posturas mercantis começou a nascer o Direito


moderno, legislado, legitimado pela sociedade civil, chamada a
instituir as demais instituições. Foi o que Hegel disse: a sociedade
civil gerará a sociedade política, que é consequência da vontade
instituidora da sociedade civil. Isso é definitivo para o
estabelecimento do quadro institucional do Direito moderno.
Ideia de Estado que não se autolegitima. Trilhou-se um caminho
pós-absolutista. Foi uma minoria organizada que fez história. As
maiorias inorgânicas sofrem a história. Os mercadores são as
minorias abraâmicas desse mundo.

A afirmação do indivíduo na história reclama


autonomia, vontade e liberdade. É esse o caminho traçado pelos
mercadores. Pelo mar, há a fronteira da liberdade. Papa, barão e
rei não têm influência aqui. Assim foi possível d 1 gerar d2, que
gerou d3, em que “d” é dinheiro. Capital é um dinheiro grávido,
dinheiro fêmeo, que se replica, gerando outros dinheiros. É
trabalho humano cristalizado, congerminado. O capitalista já
acumulou capital. O capital é cientificamente definido como a
acumulação do produto do trabalho humano. Isso levará à riqueza
e ao lucro puro, que é o lucro desonerado do pagamento de fatores
produtivos, e da necessidade de se fazer qualquer reversão. É o
lucro que pode ser aproveitado para a perdularice.

Só para dar uma ideia básica, uma das ideias do


capitalismo é a circulação do capital. Isso foi escrito por Karl Marx
em seu livro O Capital. Atribui-se a Marx várias coisas, inclusive a
condição de cientista. Ele faz um julgamento negativo do lucro.

Marx diz que o capital resultaria disso: imagine uma


fabrica de aviões, que tem um custo global de funcionamento de
1000 unidades monetárias/dia. Na primeira jornada de trabalho,
de 4 horas, se fabrica um avião. Esse avião custa, no mercado,
1000 unidades monetárias. Significa que a venda desse avião
pagou por duas jornadas de trabalho. Pronto, está criada a chave
da riqueza! Como se ninguém houvesse descoberto isso! Essa é a
“mais valia”: criação de mais valor do que fora gasto, em força de
trabalho, para produzir a riqueza. Daí vem a obra O Capital, que
desencadeou o surgimento da figura de Marx político e Marx
“profeta”. Ele se divorciou no Judaísmo, mas o Judaísmo nunca se
divorciou dele.

O que o renascimento resolveu fazer foi investir na


celeridade da produção. Os mercadores do renascimento foram os
primeiros acumuladores de capital, e descobriram uma forma de
realizar a multiplicação da riqueza em velocidade maior do que as
formas de realizar riqueza existentes no mundo de até então.
Houve, portanto, uma transfiguração material da história. Entre
eles estarão fortemente os judeus, supostamente perseguidos, mas
que se tornaram, desde já, os banqueiros do mundo medieval.
Serão financistas dos mercadores, e lucrarão com a expansão do
comércio. 5042 essa gente investirá em ciência e na navegação de
longa distância. A ordem era adicionarem-se terras novas à
concepção de espaço. Há de se acelerar o tempo. Um exemplo de
investimento nesse sentido foi a Escola de Sagres, obra de judeus
que financiaram a arte náutica nas cidades costeiras de Portugal.
O objetivo era descobrir terras novas, o mundo novo. Só que,
quando seus serviços a Portugal, o judeu italiano Cristóvão
Colombo foi rejeitado, muito embora o ministro da fazenda
português, outro judeu, Isaac ben Judah Abrabanel (1437 –
1508), tenha exposto todas as vantagens em se celebrar um
contrato de expedição com o navegador. Ben Abravanel (outra
pronúncia do nome) era ascendente direto de Silvio Santos.

O mundo das grandes navegações, o mundo das grandes


descobertas é o mundo que, ao mesmo tempo, é unitário e dual,
que nascerá daí. Há uma projeção oceânica da Europa, criando o
pacto Colonial: nações de um lado, colônias no além-mar. Isso foi
tão decisivo para o futuro da humanidade que daí resultaram os
blocos globalizantes, e pode-se dizer que esta é a origem da
divisão internacional do trabalho, com o embrião do que se
tornaram, nos séculos XIX em diante, os países subdesenvolvidos
e desenvolvidos. Exceções: Canadá, Estados Unidos, Austrália e
Nova Zelândia. Isso porque esses países foram criados como
colônias de povoamento.

Do Pacto Colonial, chega-se ao mercantilismo,


começando em Portugal e Espanha, indo depois para Inglaterra e
Holanda. Nascem três fenômenos: capitalismo comercial, que
gera o industrial, que gera o financeiro. As formas de capitalismo
que nasciam iam dominando as anteriores; o capitalismo
industrial dominou o comercial, ao passo que o financeiro
dominou o industrial, quando se instaurou. Foram banqueiros
sobretudo judeus que estiveram, no início, à frente do capitalismo
financeiro. Tudo isso possibilitado pelo espírito do renascimento,
supervaloração científica, supernavegação, grandes descobertas,
estabelecimento do pacto colonial, e da afirmação do
mercantilismo, de onde nascerá a experiência do capitalismo
comercial, que depois evoluiu para a forma industrial e, por
último, financeiro.

Por isso podemos dizer que foi uma época de grande


mutação material, com a expansão das fronteiras e colônias;
jurídico-política, com a afirmação do Estado Absoluto; mutação
ideológica, com retorno do paganismo.

Intérpretes do capitalismo: Joseph
Schumpeter (1883 – 1950), Max Weber (1864 – 1920), Karl
Marx (1818 – 1883), David Ricardo (1772 – 1823) e Adam
Smith (1723 – 1790).

Nicolau Maquiavel

 Origem social
o Baixa nobreza
 Vínculo em crise
o Terra e serviço
 O lugar
o A cidade-Estado de
Florença
 Atores
Papao
o Rei
o Barão da terra
o Mercadores
 De Cosimo de Médici a Girolamo
Savonarola
 De segundo secretário a proscrito
político
 Postura
o Contra Aristóteles
 Separação
o Ética e política
 Referências
o Estado e poder
 Poder
o Conquista
o Exercício Manutençã
o
 Da guerra
o Cidade x campo
 Zoomorfia
o Leão ou raposa
 Caracteres
o Virtude e fortuna
 Relações
o Estado
o Poder
o Direito
o Justiça
o Paz

Vamos conversar hoje sobre Maquiavel. Maquiavel, a rigor, foi o


primeiro filósofo do Direito e da política no mundo moderno. Com
ele começaremos uma galeria de filósofos da modernidade.

Tudo passa sobre a Terra, até a uva, dizia Aristóteles!


Maquiavel é uma figura prostrada em posição de vanguarda por
ser, do ponto de vista conceitual, o fundador do Estado moderno.

Maquiavélico é um adjetivo exatamente vindo dele.


Nicolau é originário da baixa nobreza, é por inteiro um homem do
renascimento, nascido em Florença, que é, então, uma cidade-
Estado já que não existe, a rigor, uma Itália do ponto de vista de
uma unidade nacional. Isso só viria no início do século XX com o
Tratamento de Latrão, resolvendo-se uma celeuma territorial
entre República e Igreja.

Na Itália de Maquiavel havia feudos e baronias em um


regime de superfragmentação. Quando se volta à cidade e ao
comércio, uma das sedes esse renascimento urbano é a Itália. Ela
tem cidades portuárias e mercantis de alta consistência. A
peculiaridade é que essa afirmação das cidades portuárias se dá
num território profundamente fragmentado. O desafio de
Maquiavel é: dado que ele compreende o significado de Estado, de
nação, de soberania. O que ele sonha para sua Itália? Transformar
em uma unidade estatal, nacional e soberana. Transformar a Itália
num Estado-nação soberano. Maquiavel prefigura que os que se
unificarem mais cedo melhor estarão posicionados na
concorrência colonial que adviria pouco depois. Os que cedo se
unificarem nacional e soberanamente poderão desfrutar da
hegemonia do mundo moderno.

Quem chega tarde à unificação nacional na Europa não


sentará à mesa do banquete colonial. Quem se unificar tarde do
ponto de vista estatal e nacional na Europa não terá espaço maior
no tocante à aspiração, à conquista e ao exercício da hegemonia.
Quem não o fizer só terá um caminho: tentar, pela guerra,
redividir o mundo, que já está dividido.

A preocupação maior de Maquiavel resulta do fato de


que ele está testemunhando as unificações nacionais à sua volta,
especialmente em Portugal, Espanha, Inglaterra e Suíça. Ao
mesmo tempo há o calor do acontecimento morte de Joana D’Arc,
que comete uma extraordinária façanha, que era liderar um
movimento pela unificação do território francês. A morte de Joana
é a própria vitória francesa, e significa a própria impossibilidade
da ocupação inglesa. Dela nasce o fenômeno identitário dos
franceses, a França dotada de um só exército, a submissão a uma
só autoridade, e daí temos a emergência do Estado Nacional
soberano como resultado direto dessa vigorosa aparição histórica
de Joana D’Arc.

O que Maquiavel mais queria era que em sua Itália


houvesse uma figura como Joana. A frustração maior de
Maquiavel é que ele não verá, em vida, a unificação nacional, e
compreende que a hegemonia está sendo disputada, e tem a
percepção de que sua maior ambição não está em processo de
concretização. O que ele gostaria era:

1. Ver a unificação da Itália, fazendo com


que transformasse num Estado Nacional
soberano;
2. Ver a Itália conquistar a hegemonia no
mundo moderno, se necessário pela guerra;
3. Da afirmação do poder universal da
Itália, a restauração do Império Romano.
Com apenas essas três pequenas coisas ele se
contentaria.

Mas o que acontece é que o Império Romano não volta, a


Itália ainda está imbrincada em conflitos com Portugal e Espanha.
Não verá a unificação.

Outro problema era a Sicília. Não havia sentimento


italiano lá. O sentimento regional ao sul era ainda separatista.
Naquele momento os sicilianos ainda não haviam se convencido
que seu destino histórico era a Itália. Mas também houve
demandas separatistas na Espanha, na Irlanda, na Escócia e na
Holanda.

Maquiavel, sobre esse ponto de vista, é o menos


realizado, feliz e satisfeito dos maquiavélicos! Os sonhos maiores
do ponto de vista político foram todos frustrados. A Itália não se
tornou hegemônica e não restaurou o Império Romano.

Maquiavel morreu aos 54 anos, e passou 15 anos no


poder como chanceler de Florença. Foi destituído, e isso lhe
causou uma profunda tristeza. Tentou voltar à chancelaria, e teve
óbices cada vez maiores do ponto de vista da emergência pessoal
no cenário político de Florença, que chegou a fazer um jogo que o
levou a ter desconfiança de todos. Passou o resto dos dias
lambendo o chão dos que voltaram a dominar Florença, a família
Médici. O máximo que lhe conseguem é a condição de bolsista
com a tarefa de escrever a história de Florença. Voltou a receber
missões diplomáticas pontuais, nunca muito grandes.

Maquiavel escritor e Maquiavel pensador: o pensador


dedica os dez últimos anos de sua vida à escrita. Vive uma vida
medíocre para suas aspirações. Outrora havia recebido pessoas
importantes de outras localidades, e, deposto, passou a fazer
gestão de pessoas em sua fazenda. Entregava seu tempo livre para
passar restos de manhãs numa taberna que ligava sua propriedade
a outras. Lidava ali com as melhores pessoas: jogadores e ébrios.

Vejam o que é a piração: à noite, despia-se das roupas,


tomava banho, e vestia a roupa de chanceler. Trancava-se no
gabinete e se e punha-se a escrever. Foi ali que escreveu
verdadeiramente sua obra. Foi a obra de um politicólogo,
historiador, cientista político, sociólogo, mas menos de filósofo,
que se volta para o Estado e para o poder.

O historiador é a maior vocação de Maquiavel. Para


outros é um livro que deve ser visto com restrição, porque ele
tomou o caminho deliberado de agradar os poderosos. Essa foi a
história de Florença. Por isso alguns o veem com grande reserva.
Consideram que há histórias mais imparciais de Florença.

Maquiavel é autor de um clássico absolutamente


extraordinário chamado Comentários Sobre a Primeira Década
de Tito Lívio, e escreve uma obra prima de Historiologia, de
Filosofia Política, e também de resgate, do ponto de vista da
narrativa do sentido das instituições políticas romanas. Maquiavel
também foi teatrólogo, de grande sucesso. Mandrágora é o texto
mais conhecido dele. E foi poeta também, mas se considerava
maior do que Dante Alighieri. Entretanto, ele era o único que se
achava nessa condição. Poeta foi a coisa que ele menos foi. Foi
filósofo em sentido geral.

O que fica de maneira mais evidente em Maquiavel foi


um livro chamado O Príncipe, escrito em 1513, publicada em 1532,
depois de sua morte. Divulgou em cópias manuscritas, mas nunca
viu publicado. Só foi tipografado cinco anos depois de sua morte.
Chamava-se De Principatibus. Significa Do Principado.

A obra sugere que Maquiavel estudou uma obra de São


Tomás de Aquino chamada O Reino, em que pinta a figura de um
príncipe do bem. Maquiavel pinta o retrato do príncipe do
mal. Príncipe quer dizer “o principal”. Maquiavel, n’O Príncipe,
buscou a unificação da Itália. Cortejou os Sforzas, os Médicis, os
Cortiollis, os Cavalcantis, e ninguém lhe deu ouvidos. Isso porque
tais famílias importantes já estavam virando a página em termos
de em que se dedicar. O mundo feudal já estava em fins, e os
Médicis, por exemplo, já estavam na transição para o capitalismo.
Eram grandes banqueiros. Não quiseram se arriscar a seguir a
sugestão de Maquiavel dada no livro porque teriam que promover
guerra contra tudo e contra todos. Teriam que fazer guerra
simultânea contra o barão da terra, contra os príncipes existentes,
contra as autonomias municipais e também contra o Papa. O que
Sun Tzu recomenda, há mais de 5000 anos, n'A Arte da Guerra é
que nunca se faça guerra em duas frentes ao mesmo tempo. Os
contendores irão se unificar contra quem os ataca
simultaneamente.

A rigor, Napoleão Bonaparte, cerca de 400 anos depois,


foi derrotado por duas coisas: pelo ego e pelo acaso. Foi derrotado
pela terceira coalizão. Enfrentou o mundo todo contra si em três
oportunidades, sendo que só sucumbiu na terceira, na batalha de
Waterloo. Nas duas primeiras todo o mundo estava contra ele, e
não perdeu um confronto.

Falamos de Napoleão porque pode ter sido um dos


maiores leitores de Maquiavel. Leu e releu várias vezes O Príncipe.
Existe até uma edição chamada “O Príncipe de Maquiavel
comentado por Napoleão Bonaparte”. O sentido das notas de
Napoleão em Maquiavel foi o de desorganizá-lo. Napoleão viveu o
poder, e considerou o cientista político italiano um sujeito fora da
realidade.

O propósito d’O Príncipe foi restaurar a hegemonia


maior. Platão queria ser rei, enquanto Maquiavel gostaria de ser
criador de reis.

Outro que seguiu Maquiavel foi Benito Mussolini.

Na história, quem “limpou a barra” de Maquiavel foi


Rousseau. O professor não tem certeza se é verdadeira a
interpretação, mas inteligente é. Ele tinha uma interpretação
inteligentíssima de Maquiavel; mas o professor não tem certeza se
tal interpretação é verdadeira. A essência dessa interpretação de
Rousseau, no entanto, é que Maquiavel é um autor em camadas.
Uma coisa é o título evidente de Maquiavel, e outra coisa são os
sonhos secretos dele. Uma das interpretações é que Maquiavel era
republicano e democrata! Pasmem. O que Maquiavel faz é ensinar
o príncipe do povo e mostra como agem seus inimigos históricos.

O que Maquiavel fez foi se antecipar, em quase 500


anos, em um conceito que Max Weber iria elaborar: o conceito
de tipo ideal: a realidade é escura e caótica. Não poderemos
diretamente conhecê-la. Só revela fragmentos díspares que jamais
formarão uma unidade. Se quisermos conhecer, teremos que
purificar a realidade. Construir tipos sobre os objetos que
queiramos estudar. Daqui vem o conceito de tipo ideal: um
constructo da razão que cria a realidade, constructo que é a
essência de cada coisa. O que Maquiavel fez, na verdade, foi
construir um tipo ideal, mais especificamente um tipo ideal de
príncipe.

Maquiavel era da banda frágil da família. Seu pai havia


perdido terras, e passara a viver de favores da nobreza, e devia
numerosos impostos à cidade-Estado de Florença, e foi privado de
seu direito de viver à moda aristocrática. Foi estudar história,
logica, latim, tudo desde muito cedo. Não foi aos estudos
superiores. Tornou-se advogado autodidata, como seu pai. Seu
irmão teve um destino religioso.

Os ricos da região estavam se desvinculando da terra, e


Maquiavel se colocou no mundo dos serviços. Só que vai ter uma
reação mais orgânica com o Estado: será tesoureiro de Florença,
durante certo tempo. Florença é capital da prosperidade na
Europa nessa época. É a nova Atenas. Ali criam um ambiente de
alta ilustração. Reúne em torno de si alguns dos maiores sábios da
ciência e da arte renascentista. Os Médici são protetores de
Michelangelo, de Rafael, de Galileu Galilei... Todos os gênios do
renascimento. São os patronos das artes, das ciências, de tudo.

Florença vive sob a égide dos Médicis. Cosimo de


Médici, o chefe da família, reinou a cidade, deixando um grande
legado. Construiu um grande poder, e era o próprio símbolo do
maquiavelismo. Faz no poder aquilo que Maquiavel mais sonhava.
Maquiavel não trabalhou sob as asas dos Médicis, mas teve chance
de trabalhar com Cesare Bórgia, filho de Alexandre VI, um dos
mais beligerantes papas. Cesare, que também foi comandante
militar, foi motivo de muita excitação de Maquiavel, que viu no
líder um candidato perfeito para se tornar o príncipe conforme
havia idealizado.

Bórgia se envolveu em dezenas de batalhas políticas


sangrentas, e Maquiavel autoriza moralmente todas essas torpezas
porque está rompido com Aristóteles: a política para Aristóteles é
a arte de bem governar. Quem não bem governa está fazendo
politiquice. Para Maquiavel, política é a arte de governar,
simplesmente. Nada de carga valorativa. O objetivo do príncipe
deve ser permanecer no poder. Um conselho que ele deu foi: o
bem se faz aos poucos, o mal se faz de vez. Daí se tira a ideia de
que os fins justificam os meios. Contemporaneamente, príncipes
seriam os ditadores africanos. Criou, em certo sentido, a
psicologia política.

Os Médicis caíram três vezes do poder. Um bispo, que


havia sido levado por eles para Florença, grande pregador,
chamado Girolamo Savonarola, driblou nos Médicis, e dominou
Florença. Criou uma teocracia na cidade. Os Médicis reagiram e
eventualmente o derrubaram, mas outras facções assumiram a
cidade. Numa dessas administrações Maquiavel subiu ao cargo de
segundo secretário de Florença. Passou 15 anos no poder, e,
depois, quando os Médicis voltam ao poder, jogaram-no fora.
Quando outras facções sobem, Maquiavel aproveita. Quando os
Medicis voltam, Maquiavel é defenestrado.

A maior separação em Maquiavel é a redefinição do que


seja governar. Dissocia a ética da política.

Príncipe de ouro para Maquiavel é o que conquista o


poder para permanente exercício.

Como o príncipe vence na história? Na guerra, claro. A


nova guerra para Maquiavel é a guerra da cidade contra o campo.
Quer livrar a Terra dos barões de terras. Artilharia da cidade
contra cavalaria do campo.

Traz, no príncipe perfeito, uma zoomorfia: a força do


leão combinada com a astúcia da raposa. Tradicionalmente o
príncipe é leão ou raposa. O temperamento de leão não permitia
que se fosse satisfatoriamente raposa, e vice-versa. Maquiavel
idealizava o príncipe que unisse esses dois atributos.

Para Maquiavel, não basta ao príncipe ter a virtude de


chefe de Estado ou de líder militar. Se for desafortunado, não
conseguirá ser príncipe.

Relações de Maquiavel com o Estado: Maquiavel funda


a estatolatria moderna. O Estado é tudo para Maquiavel. Entre a
sociedade e o Estado, Maquiavel escolheu totalmente o Estado. O
que ele quer é o poder. Que Estado é esse, para Maquiavel? Estado
Nacional Soberano. É o poder que se exerce a serviço da
manutenção do príncipe em seus interesses, o desenvolvimento do
principado. Maquiavel é obcecado pela ideia de permanência no
poder. Não é fundador do desenvolvimentismo. ¹
Direito, para Maquiavel, é um instrumento de poder. É
aquilo que o poder defende como sendo de direito! O Direito é um
instrumento na mão do Estado, um instrumento de poder.

Maquiavel não sonha com justiça. A única justiça que


Maquiavel reconhece é a justiça histórica que se deve a Roma
vencida pelos bárbaros. A única forma em que isso seria possível
seria pela restauração do Império Romano. Maquiavel não é
judicialista, e se preocupa muito mais com hegemonia e
segurança. É filósofo da guerra. Não houve nenhuma relação com
a paz. Paz para Maquiavel é a Pax Romana: paz subsequente ao
banho de sangue, em que não há mais contendores, e o vencedor
submete o oprimido.

No final do século XVIII um padre escreveu um livro


chamado diálogo de Maquiavel e Montesquieu nos infernos.

Esse é Maquiavel. É fundador da Filosofia do Estado


moderno.

Um filósofo francês chamado Jacques Marietan (1882 –


1973) chegou a dizer que, para que o mundo contemporâneo fosse
pacífico e justo, deveríamos começar por jogar pela janela o
pensamento de Nicolau Maquiavel.

1. Aqui o professor fez uma comparação


com São Tomás de Aquino, especialmente
com relação à ideia de busca do permanente
desenvolvimento, para que a sociedade seja
um todo de todos. 

Thomas Hobbes

Vamos falar de Thomas Hobbes hoje. Não apenas d’O


Leviatã!

Conversar sobre Thomas Hobbes significa nos


debruçarmos sobre o Estado Nacional que terá um papel decisivo
no destino da humanidade. Reporta-se ao Reino Unido e à
Inglaterra. A Inglaterra chama para si uma capacidade militar
incontrastável no exercício da hegemonia na construção do
mundo moderno. Estabelecido o pacto colonial e divido o globo
em mundo central e mundo das colônias, a expectativa dos
Estados Nacionais é que será principal entre eles aquele que
dispuser de maior espaço no mundo, conquistando colônias e
colocando-as a seu serviço. Forma-se um único sistema
econômico unitário, mas é formado em si mesmo por um centro e
uma periferia, que é subordinada ao centro e se coloca ao seu
serviço, seja pelo fornecimento de matérias primas, mão-de-obra
barata ou escrava, transposição de trabalho e riqueza. Ao mesmo
tempo, essa periferia será o mercado consumidor crescente com o
avanço do capitalismo. A periferia será formada por Estados
Nacionais subdesenvolvidos, que transferirão royalties e
comprarão ciência e tecnologia já descartada.

Não sem ironia a crise de 1929 levou o Brasil a uma


situação catastrófica. Ganhamos o apelido de “país da sobremesa”:
exportávamos café e açúcar. O preço médio da saca de café passa a
ter valor flutuante e vai a menos de 10% do que era antes da crise.
Queima-se café e joga-se o no mar para regular a lei da oferta e da
procura.

Nosso plantation colonial sobrevive ao Império e à


República e o Brasil fica nesse mercado flutuante. O que se tem,
então, como desafio na década de 30 é ideia de que o país
precisará se industrializar, rompendo-se com a tradição
agroexportadora. Indústria era impensável naquele momento.
Havia um modelo clássico de desenvolvimento naquele momento
do mundo, e o Brasil entendia-se não habilitado. Então a ideia foi
baratear o custo de vida nas cidades para atrair para a indústria,
além da criação de uma classe média.

Nos Estados Unidos foi o contrário: primeiro se fez uma


democracia agrária e depois se fez o esforço industrialista.
Questão agrária é uma questão que está para os países
subdesenvolvidos.

Há as idades agrária, industrial e do conhecimento. As


demandas do brasileiro ainda estão da idade agrária. Não
havia animus político de fazer nenhuma reforma agrária na
década de 30. Entretanto o Brasil se industrializou, porque fez um
caminho completamente subversivo: o Estado industrializou o
Brasil e ele mesmo criou a burguesia industrialista brasileira. O
maior industrialista brasileiro foi Getulio Vargas.

No mundo, chegou-se à indústria por meio do


empreendedor individual, correndo risco. No Brasil chegou-se por
financiamento público e transferindo-o para particulares.

No final do século XIX se faz, em Pernambuco, a


transição do Engenho Bangue para o Engenho Central.
Importava-se a máquina pronta da Inglaterra, montou-se em
Pernambuco e entregou-se o empreendimento a famílias
tradicionais. Foi uma burguesia de Estado: o Estado cria a
indústria e transfere para o particular.

Existe uma ideia tradicional chamada divisão


internacional do trabalho, ideia de que os países de base colonial
tendem a se tornar países periféricos, enquanto os Estados
centrais desenvolvidos já terão se tornado blocos econômicos
globalizados. Mas há exceções que não desautorizam a regra. A
história do Brasil, nesse sentido, é reveladora. Isso porque
estamos sonhando com a transição para o centro. E ao centro não
chegamos jamais. O Brasil é um incrível fenômeno econômico.
Especialmente desde o século XIX, quando se chegou a escrever
um livro chamado “Brasil, País do Futuro”. Concluiu mais tarde
Ignácio Rangel (1914 – 1994) que a economia do Brasil cresceu
mais de 200 vezes sobre si mesma. Rangel foi um economista
brasileiro e um dos pioneiros na análise econômica pátria. Do
ponto de vista social, entretanto, a sociedade brasileira é das mais
injustas da terra. Somos medalha de ouro, vezes de prata, quase
nunca de bronze em horror social. A elite brasileira foi criada
sobre uma consciência deformada: dos privilégios, e não dos
direitos. Portugal do século XVI era mais feudal do que capitalista
quando colonizou o Brasil. Daí nascem os poderosos no Brasil,
com a capitania hereditária, latifúndios, sesmarias... a ideia desde
cedo foi criar um poder econômico baseado na exploração de
recursos. Essa matriz permanece viva.

O que Thomas Hobbes tem a ver com isso? Ele foi


ideólogo do colonialismo. Sua Inglaterra conquistou a hegemonia
na construção do mundo moderno. Significa dizer que com o
caminho militar, econômico e político, o Reino Unido, a Grã
Bretanha se coloca numa posição estratégica no mundo, dispondo
de mais espaço, e entendia-se que assim conquistar-se-ia mais
riqueza.

Thomas Hobbes foi ideólogo desse colonialismo inglês,


legitima o colonialismo, dizem que são filhas dos Estados, e que
roubar as colônias sob poder de uma nação é o mesmo que roubar
a alma e o nervo dela. Daí as colônias deveriam ser defendidas
pela guerra. Com isso surgiu o orgulho inglês de que o Sol nunca
se punha nas extensões do Império Inglês, ideia que perdurou até
a década de 40 do século XX. Quando se chega ao final da segunda
guerra mundial, Inglaterra, França, União Soviética e Estados
Unidos, Estados que tiveram grande influência na edição da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, documento
resultante do trabalho de mais de 90 nações, a edição sofre
pressão dos interesses ingleses para a manutenção do pacto
colonial. Índia, por exemplo, possessão inglesa. Há um artigo na
DUDH dizendo:

Nenhum homem será discriminado em virtude de sua origem nacional, não importando se veio de nação, colônia ou pr

O colonialismo será fortemente combatido a partir de


1952-53. Os países periféricos se uniram contra o colonialismo,
mais fortemente ainda quando surge em cena o líder egípcio
Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970), que liderou esse processo de
descolonização. Era uma terceira força que pretendia romper com
o mundo bipolar. Pregava a não aderência automática a nenhuma
das duas forças vigentes, seja Estados Unidos ou União Soviética,
mas a constituição de um mundo multilateral, não apenas
bilateral. Nasser foi assassinado por defender a emergência de
potências de médio porte.

Ao final da segunda guerra mundial a Inglaterra quis


preservar seu colonialismo. Perderá a Índia, e dessa perda haverá
um prejuízo muito grande não só para a Inglaterra, mas para
todas as nações que mantinham colônias. França também se
envolveu em uma luta violentíssima para evitar a perda de suas
possessões nos anos 60 afora. Em seguida Portugal perde Guiné
Bissau, Angola, Moçambique, uma a uma das colônias que tinha
havia mais de 500 anos.

Voltando a Hobbes: Thomas Hobbes vem da


Matemática, da Física e da Química para as ciências humanas.
Esteve, conviveu e discutiu com Galileu Galilei, considera-se um
alto teórico da Física e das Matemáticas, tem rivalidades com os
outros pensadores, e considerava-se mais relevante
cientificamente do que os outros.

Foi testemunha de uma crise da monarquia inglesa, que,


no século XVII, viveu a proclamação de uma república, sob a
liderança de um sujeito chamado Oliver Cromwell (1599 – 1658),
que veio das classes médias urbanas. Sublevou as forças militares
e as levou para uma postura antiaristocrática. Dizia Cromwell que
ouvia vozes e tinha uma missão divina. Era um príncipe
maquiavélico. Deu um banho de sangue no mundo.

Hobbes havia ido ao exílio com a realeza. Vivia na Corte


da França, por mais de dez anos, até que lhe mandarão embora.
Teve muitos conflitos no ambiente cortesão do exilio, e termina
sendo convidado a se retirar da França. Viveu pelo menos três
momentos de sua vida fora da Inglaterra. Foi preceptor de nobres
potentados, que lhe protegeram; passou a educar os jovens da
nobreza para viverem fora, em sua companhia. Ao mesmo tempo
Hobbes se considerou potencializado para fazer uma reflexão
política, jurídica e filosófica para a crise da monarquia. Que mal é
esse? A guerra civil.

Cromwell queria apenas submeter a burguesia


comercial, expropriar a Igreja, a Coroa e os barões da terra. Então,
Hobbes se pôs a estudar esse processo e passou a escrever
algumas obras.

A primeira delas é o Tratado de Direito Natural. É um


ensaio geral que levará à formulação da tese, na Inglaterra, do
Contrato Social. Ele foi pioneiro, antecedendo Locke e Rousseau.
Homem, para Hobbes, é o lobo do homem. Ele não criou esse
adágio; é um verso de Plauto, um teatrólogo romano do mundo
antigo, em que, numa peça, um personagem tem essa fala. Nisso
ele recortou e colou de Plauto e colocou no Leviatã sem indicação
de fonte.

Ele formula o Tratado de Direito Natural. O Estado de


Natureza é um Estado dramático porque nele é como se dissesse
que o que se tem é um reino mais da animalidade do que da
humanidade. Diz que é cultura humana ser mais animalesco do
que humano. Diz que o homem não é um animal social por
natureza. Bateu de frente com Aristóteles. Não havia natureza
social entre homens, pois seria um paroxismo. A continuidade
física da sociedade está, no limite, ameaçada.

Como fazer a transição do Estado de Natureza para o


Estado Social? Aqui ele escreve o Leviatã. Usando a razão, chega-
se ao Estado, ao Leviatã, ao soberano. A metáfora é o monstro que
anda bate. É um monstro bíblico que só se robustece quando é
ferido, ao invés de se fragilizar. A transição do Estado de Natureza
para o Estado Social se faz por força do Leviatã. Ele sim fará do
Estado um grande agente cívico e civilizatório da condição
humana. Aqui é o Estado quem humanizaria e civilizaria o
homem. Por isso sua estatolatria, sua paixão pelo soberano, pelo
Estado, pelo Leviatã. É o Estado que torna o homem social. Como
não é social por natureza, só com a disciplina mastodôntica do
Leviatã é que o será.

A revolução é tripla: sob o Leviatã o homem será


homem, deixando de ser lobo; o homem será cristão. Hobbes era
religioso na origem, era filho de religiosos, e foi educado para tal.
Tanto que o subtítulo da obra é "Do Estado Eclesiástico ao Estado
Civil." Ele não quer o desaparecimento do Estado Eclesiástico.

Escreveu um terceiro livro chamado Do Cidadão. Três


livros, portanto, em um só projeto. Direito natural, porque
Hobbes é enganosamente naturalista e decisivamente positivista
no Leviatã. Hobbes é maquiavélico do ponto de vista da formação
filosófica; é minoritariamente naturalista e majoritariamente
positivista. Quando dizemos que alguém é naturalista, dizemos
que este alguém acredita que o indivíduo, com sua autonomia,
vontade e liberdade antecede o Estado. E que, portanto, o Estado
só se legitima se estiver em conformidade absoluta com as
cláusulas do contrato social que o instituiu. Ele tem que ser
legitimado pela sociedade civil que o antecede, com controle e
direcionamento do Estado para que se subordine o controle à
vontade social. Importa mais a liberdade civil do que a autoridade
do Estado. Daqui vem o liberalismo! Tutela jurídica à liberdade.
Tutela do cidadão, da cidadania organizada, que instituiu o
Estado.

Do outro lado encontramos Hobbes dizendo: Leviatã é


Estado soberano. Direito é o enunciado que o Leviatã declara que
é Direito. É compatível com a ideia anterior? Não mesmo. O que o
Leviatã pode fazer para garantir a unidade da sociedade? Tudo! Só
se é livre no Leviatã. É a humanidade que sociabiliza, humaniza e
civiliza. Hobbes blefa com o jusnaturalismo e faz o casamento
radical com o juspositivismo. Afirmou-se como positivista radical.

Em Do Cidadão ele estabelece as regras de convivência


dos cidadãos entre si, dos cidadãos e o Estado, sobre a afundada
certeza de que a diretiva da vida decorre da aguda afirmação da
autoridade do Estado.

Daqui se chegam às regras de convivência.

O essencial de Hobbes é que, no final de sua vida de 91


anos, escreveu um quarto livro de significação jurídico-política
chamado Diálogo Entre o Filósofo e o Jurista. Está convencido de
suas ideias. O jurista defende o direito positivo.

O que é relevante em Hobbes é a vasta correspondência


com grandes pensadores e filósofos de seu tempo. Ele volta à
Inglaterra, Cromwell morre, não há sucessores para ele, e a
Inglaterra vai novamente para a crise. Da morte de Cromwell
abre-se um ciclo terrível de conflagração de todos contra todos
porque ele não deixa sucessor, não prepara sua sucessão, não há
estabilidade política em torno dos acontecimentos da época, então
tem-se a volta da coroa, a Igreja reivindica seu patrimônio
perdido, e a burguesia comercial quer a hegemonia do processo
em torno de si mesmo. É o primeiro país a avançar na direção da
indústria no mundo. No século XVI já tinha! Era a indústria têxtil
e de alimentos. Foi a região mais industrializada do mundo até a
segunda guerra mundial.

A Inglaterra exerceu a mais longa hegemonia do


capitalismo comercial ao financeiro. Foi uma hegemonia de três
séculos e meio.

Para encerrar: Hobbes é estatista, e, para alguns, ele


funda uma estatolatria; Hobbes é a fonte inspiração dos
totalitarismos modernos. Fonte longínqua: Platão; fonte próxima,
Hobbes. Norberto Bobbio (1909 – 1994) é um dos poucos que não
concorda com esta ideia, mas é quase um consenso.
Hobbes é radicalmente iliberal, absolutista, autoritário
e, entretanto, é absolutamente liberal em economia. Que
paradoxo!

O que Hobbes propugnava, portanto, era por uma


ordem jurídico-política totalmente fechada, e uma ordem
econômica de total liberdade.

Por quê? Inglaterra não queria barreiras alfandegárias


no mundo. “O mar é nosso!” Laissez faire et laissez passer!
Exceção: proteger o proprietário e a propriedade, conferir
subsídios aos empreendedores e criar a estrutura necessária ao
desenvolvimento dos negócios.

Foi grande defensor do liberalismo econômico, mas mais


radicalmente defensor do iliberalismo político. Essa demanda
entre liberais e não liberais fez com que nascessem, no Império
Espanhol, duas grandes facções que cercavam o rei, uma, a dos
Serviles, dos servis a toda e qualquer política do rei e a
legitimavam e qualquer circunstância, à qual vai se contrapor a
facção dos Liberales, os que condicionarão seu apoio ao rei à
adequação, à conveniência e à justeza de suas políticas. Em outras
palavras, aqueles que irão buscar a legitimidade para dizer sim e a
legitimidade para dizer não ao rei e às suas políticas. Estes
fundaram uma Filosofia do Liberalismo.

É uma Filosofia disjuntiva, portanto. Liberdade no plano


material e autoridade no plano institucional. É a Filosofia mais
conveniente à Inglaterra em seu tempo.

1. Não encontrei essa disposição no texto


da Declaração Universal dos Direitos
Humanos que li e salvei aqui em 2009.

John Locke

O objeto de nossa conversa hoje chama-se John Locke


(1632 – 1704). É inglês como Thomas Hobbes, e é do pensamento
da geração imediatamente seguinte à geração de Hobbes.
De origem religiosa, John Locke se vinculará a um
caudal de pensadores da Filosofia política entre o renascimento e
iluminismo, o ambiente intelectual preparatório da Revolução
Francesa.

O interregno entre Renascimento e Iluminismo vai


personificar o pensamento político e jurídico numa perspectiva da
Teologia Reformada. Há coincidência entre Jean Bodin, Hugo
Grócio, Hegel, Kant, Jean-Jacques Rousseau, e outros de grande
importância. Todos são protestantes, e isso não é produto do
acaso. Pensaram numa visão de mando que significou a cisão do
monobloco da Igreja Católica. A contravertente diz não à Reforma
e apresenta a Contrarreforma Católica. É um pensamento
jurídico-político de matriz filosófica que estará personificado no
pensamento moderno, numa verdadeira escola de teólogos
juristas sediada a partir da Universidade de Salamanca, na
Espanha, que terá como personagens, entre outros, Bartolomé de
las Casas, que é um bispo espanhol que viveu em Chiapas, México,
que fundou o Direito do Indigenato, a tese de que índio tem sim
alma, e o papa deveria declarar isso abertamente, para contrariar
o que os colonizadores queriam disseminar. Bartolomé de las
Casas fundou também o Direito Econômico na perspectiva
moderna. Nos quais Grócio se inspirou para escrever seu Direito
da Guerra e Direito da Paz, e outras tantas figuras que seria
demasiado falar aqui. Esse contraponto é de inspiração
neotimista; a primeira versão do neotomismo. Compuseram a
Filosofia da Segunda Escolástica. O auge da Primeira Escolástica
era São Tomás de Aquino e a Segunda era essa geração de
pensadores, principalmente da Universidade de Salamanca, com
Bartolomé de las Casas, Francisco Soarez, Molina e outros.

O que acontece é que John Locke se coloca nessa


circunstância: de um lado, a Reforma, de outro, um pensamento
social cristão se renovando. Pensamento social cristão anti-Marx,
já que o próprio cristão católico se renovara dentro do
Renascimento. Essa Segunda Escolástica era a verdadeira
vinculação entre Direito e o mundo social superador, ao passo que
o pensamento jusfilosófico da Teologia Reformada também fará
um nexo superagudo, mas entre Direito e Economia. O
pensamento cristão reformado entre Direito e Economia, e entre
Direito e sociedades o pensamento cristão católico. Um privilegia
as questões sociais, e outro privilegia as questões econômicas na
reforma. Isso porque o protestantismo é uma das fontes de
afirmação do capitalismo.

Calvino (1509 – 1564) era contra a dissipação de riqueza


oriunda do sistema feudal. Pregava a contenção. A ética medieval
é uma ética que valoriza uma atividade parasitaria e lúdica da
terra. Calvino pensava na atividade produtiva. Ele supervaloriza o
trabalho e fará dele o diferencial na questão econômica.

Vejam o seguinte: com os ideais de contenção e trabalho,


ele sediará uma ética nova: o que é fruto do trabalho deve ser
respeitado. Não se pode, com os frutos do trabalho, ter uma
atividade de irresponsabilidade. Seria uma atitude de desrespeito
aos outros e a si mesmo. “Lutei, trabalhei, ganhei, então devo
preservar o ganho e ter uma atitude de poupança.” Portanto,
jamais jogar em caça-níqueis.

Poupamos para quê? Investir e reinvestir. Iniciar uma


nova atividade produtiva ou incrementar uma. A riqueza é
legítima e justa, pois fruto do trabalho. Riqueza não é culpa, é
Graça. Deus permitiu o patrimônio. Por que eu sou o grato
guardião em razão da graça divina, eu devo colaborar com o
dizimo para a Graça da fé.

Por isso Weber diz que isso fundou o espírito do


Capitalismo. Daí escreveu seu livro A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo. Ajudou a criação da cultura de
poupança, mas também de investimento e invenção. É um
contraponto ao que se pregava no medievo, em que o lucro era
condenado. Camelo na agulha: era mais fácil um camelo passar
por um buraco de agulha do que um rentista obter a Salvação.

E aqui, o renascimento que se tem é que Calvino prega


que é bendita a riqueza. É natural que se pretenda acumulá-la em
maior escala, pois significa benção maior de Deus.

O capitalismo, para existir, precisa de uma cultura.


Quem a cria é a Teologia Reformada. Os pensadores jusfilosóficos
vinculados à Teologia reformada terão conexão necessária à
questão econômica. 2130 Ao passo que os pensadores vinculados à
Contrarreforma estarão presos à questão social. Dali teria surgido
a Teologia da Libertação. Seria um compromisso social do
Cristianismo com os excluídos.
De um lado temos a questão social e de outro a questão
econômica. É aqui que entra John Locke.

Locke é autor vinculado ao espírito da Reforma, e deve


ser compreendido como aquele que autor de um diálogo
necessário com a obra de Thomas Hobbes, de radical contestação.
Exceto no que tange ao liberalismo econômico.

O que é o Estado de Natureza em John Locke? Uma


realidade totalmente distinta daquela desenhada por Thomas
Hobbes. O homem não é lobo do homem, mas diz que o estado de
natureza é pacífico e nele estão as raízes dos valores essenciais que
defenderá por toda a vida: propriedade e liberdade, liberdade e
propriedade. Não por acaso as duas matrizes que fundarão o
liberalismo econômico: liberdade do indivíduo e propriedade
privada. A prova dos nove da verdade econômica é que a liberdade
do indivíduo pode estar expressa na propriedade privada. A
questão crucial é que o estado de natureza não é belicoso, mas tão
pacífico que já havia esses dois institutos: liberdade e
propriedade, propriedade e liberdade.

Assim John Locke contesta imediatamente Thomas


Hobbes, e está mais longe de uma perspectiva negadora de São
Tomás de Aquino. Tomás de Aquino dizia que a propriedade era
um elemento puramente de Direito humano e não de Direito
Natural. Assim poderia receber todas as restrições da ordem
jurídica e política. Mas, com era de Direito Humano puramente,
as restrições são legítimas. Que restrições são essas? São Tomás
de Aquino é consular nesse pensamento: as restrições necessárias
para que a propriedade venha a cumprir uma função social,
contribuindo decisivamente para afirmação do divino. Um
argumento jusfilosófico para isso. Seria necessário limitar o
proprietário porque a propriedade é um direito puramente
humano, e não se estaria ferindo nenhum direito natural.

No Estado de Natureza já havia liberdade e propriedade,


e propriedade e liberdade. Assim ele diz não ao argumento de São
Tomás de Aquino, para que nenhuma ordem política ou jurídica
queira limitar, enquadrar, circunscrever, dificultar o curso da
propriedade e do proprietário. John Locke quer a mais completa
liberdade como se quisesse voltar ao Direito Romano: a
propriedade é o poder absoluto da pessoa sobre a coisa, podendo
usar, dispor e fruir. Chegando a dizer que essa disposição da
propriedade, ainda que em detrimento do Direito comum, seria
legítima. Propriedade para o Direito Romano era um direito
absoluto. Poderia até destruir a coisa, sem constrangimento
jurídico-político de nenhuma espécie. Seria um dos maiores
poderes que o Direito poderia conferir ao homem. De que coisa
estamos falando? Imagine que nasce um grande rio dentro da
propriedade: se quisesse matar a nascente, ele poderia. Algo fora
do que pensam hoje as agendas de Direito Ambiental e direitos
difusos. Havia inclusive o Direito de Abuso da propriedade no
Direito Romano.

Tomás de Aquino é o primeiro a dizer que a propriedade


tem que cumprir uma função social. Quem busca retirar essa trava
é John Locke, dizendo que, desde o Estado de Natureza, há a
propriedade, que é uma das mais agudas expressões da liberdade.
A liberdade está para a propriedade assim como a propriedade
está para a liberdade. E, em John Locke, começa-se a pensar na
liberdade econômica. Assim podemos ver por que esse
pensamento da Reforma por sua relação entre Direito e
Economia, além do pensamento da Contrarreforma por sua
relação entre Direito e preocupação social vão se fazer vivos
através das vozes dos pensadores. A visão da liberdade de John
Locke tem sua prova dos nove na propriedade, na dimensão
material da vida. E no mundo moderno, quando se fala em
liberdade, pensamos naquela velha propaganda: “liberdade é calça
velha, azul e desbotada.” A liberdade está ligada ao
mundo material da modernidade, às coisas. Liberdade de
adquirir, de empreender, de proteger os agentes econômicos...
Notem que é uma ampla restrição da liberdade à esfera do
mercado. Ele reflete o pensamento da ética Calvinista.

Então vem a pergunta: por que esse mundo de Direito


Natural, em que havia desde sempre liberdade e propriedade, e
propriedade e liberdade não se eternizou? Por efeito de uma
variável que não ficou a seu controle, a bomba demográfica. Os
atores sociais, multiplicados, estabeleceram uma tensão entre
trabalhadores e propriedades. Outros passaram a querer também.
Mas não há propriedade para todos. Os romanos tinham uma
solução: a propriedade não é de coisas somente imóveis, mas
também de coisas móveis! Distribuindo bens, todos adquiririam
sentimento de propriedade, a detenção material da coisa. É um
sentimento que legitima a propriedade universalmente. Émile
Durkheim (1858 – 1917) disse algo genial: “a propriedade é
epidêmica.” Há uma epidemia de propriedade. Não no sentido
material, mas no sentimental. Quem detém a propriedade de um
bem, imóvel ou móvel, sente-se realmente ou potencialmente
proprietário. A posse de hoje é a propriedade de amanhã, o sonho
de hoje é a propriedade de amanhã. A propriedade de coisas
móveis é tão relevante quanto as imóveis. Assim se difunde o
sentimento de propriedade.

A propriedade institui o capital da ordem social e


jurídica. É o instituto que fundamenta toda a ordem jurídica. Não
é o ideal, pois este fundamento deveria ser a pessoa. Entretanto,
do ponto de vista intelectual, a ordem jurídica está estruturada no
contravalor chamado coisa. Por isso Napoleão, quando editou o
Código Civil, fez questão de sentar e ditar para os juristas o
conceito de propriedade que ele queria: aquele que estava nos
Digestos. Ele sabia o jogo que jogava. Era o poder absoluto da
pessoa sobre as coisas.

A pessoa, no elo com a coisa se obriga, contrata,


constitui família, e, ao morrer, há o nexo sucessório legalmente
estabelecido. A pessoa desparece, mas a propriedade não. O
destino da propriedade está legalmente prefigurado. Isso é tudo
para a estabilidade do mundo. Alguns dirão que isso é a
reinvenção do mundo em torno de si mesmo. E se chega a isso
através da estrutura jurídica. É um tema de alta sensibilidade, mas
é fascinante, do qual poderíamos passar a eternidade falando! E
John Locke enfrenta essa questão.

O que quer Jean-Jacques Rousseau, que viveu quase um


século depois, é purificar a propriedade. Está lavada do mal de
origem da propriedade. O mundo teria se dividido em
proprietários e não proprietários.

A bomba demográfica levará John Locke a dizer que, por


um ato de razão, ameaçadas a liberdade e a propriedade, será
possível fazer a transição entre o Estado de Natureza e o Estado
Civil. É um ato de razão, em defesa da liberdade e propriedade, da
propriedade e da liberdade, vai escolher a transição do Estado
Natural para o Estado Civil como forma de proteção à liberdade e
à propriedade, propriedade e à liberdade. Sob o Estado Social, que
é o Estado Civil de Locke, assim se terá Estado, poder do Estado,
Direito do Estado, como instâncias protetivas da liberdade e da
propriedade. Direito é a tutela jurídica à liberdade. O ponto
magno é a defesa da propriedade e da liberdade.

Esse poder e esse Direito do Estado, entretanto, não


deverão, jamais, ser absolutos. Quando as cláusulas diretivas da
transição se estabelecerem, a comunidade faz uma ressalva: ela
poderia avocar para si o direito de instituinte do pacto social. Em
que circunstâncias? Aquelas em que o príncipe transgredir em
relação à letra e o espírito do contrato que foi estabelecido. O
príncipe deve prestar um contínuo serviço ao indivíduo. Ele não
quer nenhum soberano à semelhança do Leviatã. Se o príncipe se
revelar tirânico, é legítimo que a sociedade avoque para si o poder
de instituinte, autorizando a remoção do príncipe, exercendo o jus
resistentiae: o direito de resistência para fazer acontecer, a
qualquer tempo, o grande dia do juízo. Seria o dia em que se vai
passar a limpo toda a história e julgar, inclusive, príncipe tirânico.
Direito de resistência é o direito de realizar a decomposição das
instituições jurídicas e políticas, de retirar todo o poder delas, de
zerar o contrato social, é o direito de devolver a raiz de todos os
poderes à sociedade civil, para que ela possa, a partir desse marco
zero, reinstitucionalizar a sociedade, restabelecendo um novo
príncipe. É possível fazer sem violência! Gandhi foi prova disso. A
violência não garante a permanência de nenhuma autoridade. O
mundo é feito de legitimação. Os macropoderes que existem no
mundo dependem dos micropoderes. Eles são os alicerces.
O Apartheid, na África do Sul, deixou de gozar de legitimidade e
isso cortou a reprodução do regime.

Desde São Tomás de Aquino diz-se que, no extremo, até


a violência material pode ser usada para defender os valores da
justiça.

Na Revolução Francesa, com Maximilien de Robespierre


(1758 – 1794), quando da Constituição Jacobina, chegou-se a
estabelecer o Direito natural das pessoas. Robespierre chegou a
impor a ideia de que o príncipe do Estado deve oferecer o pescoço
para a guilhotina.¹

O que evidencia o descumprimento pelo príncipe do


contrato social é o ataque à liberdade e à propriedade. Os poderes
jurídicos e políticos do Estado funcionarão como? Através do
partido, de eleições regulares, da legitimação pelo voto, e através
da ética do consentimento. Uma democracia representativa.
Assim pode-se dar um funcionamento racional das instituições
políticas e jurídicas. Max Weber disse que uma das formas de
legitimação no poder é a conquista pela via legal-racional, com
previsão legal. A investidura tem que ser legítima. Legitima-se se
observar esses critérios legais e racionais. Sociedade organizada
tem rito para que se chegue, tem calendário eleitoral, direitos e
deveres, justiça eleitoral. A diplomação no Estado laico
corresponde àquele antigo ato do papa de coroar o rei. É o sinete
da legalidade. Mas, agora, pela via legal e racional. Assim se faz a
investidura, segundo a previsão jurídica das instituições. É uma
promoção visceral do Direito com a política, entre política e
Direito, fundando-se, nessas bases, o mundo moderno, e
fundando efetivamente o liberalismo político. Casa-se a liberdade
econômica com a liberdade política. Surge o primeiro liberal total
da humanidade, contraposto a Thomas Hobbes, que foi liberal
somente pela metade: em relação à economia.

John Locke é o pensador da Revolução Gloriosa, de


1688, acontecida na Inglaterra, que é, a rigor, a primeira
revolução jurídico-política da modernidade. Ele é o filósofo.
Também a revolução da independência dos Estados Unidos em
1776 e a Revolução Francesa de 1789. Essas três revoluções fazem
parte das revoluções burguesas que fundarão o mundo liberal e
moderno do capitalismo.

O que foi a revolução gloriosa? Morto Cromwell, com


todos no cemitério, o caos se estabelece. Há o retorno de todos os
que foram lesados, e o desentendimento de todos os que
retornaram. Coroa, Igreja, barões da terra, mercadores, todos
querendo o poder supremo para si. Mas havia uma variável nova
que fez todos pensarem ser melhor perder os anéis do que os
dedos: a classe trabalhadora. Ali ocorre a primeira revolução
industrial. Era o jogo pela luta econômica e política.

Essa classe operária vem do campo, para a urbe, e não


há espaço para ela; por isso os trabalhadores vão para a suburbe,
nascendo a ideia de subúrbio, rumo à miséria, ao alcoolismo, à
prostituição, ao desemprego, à margem; essa gente, quando
empregada, ainda está numa situação pior que no mundo feudal,
pois nele pelo menos havia garantia para o dia seguinte, com
contrato que instituía do dever de proteção ao servo. O servo é
cão, mas cão com dono. Jogar pedra no servo é jogar pedra no
senhor. Outro dever do senhor era o dever de honra. O pão de
cada dia era dever do senhor. Contrapartida: servir para tudo e
mais alguma coisa, daí a origem do termo serviço, e dever de
conselho, pois a sabedoria ancestral da aldeia germânica era
detida, sobretudo, pelos anciãos. Algo tão ordenado e perene
assim já não existia no mundo que estava se formando na
Inglaterra de John Locke.

O drama da liberdade é que não se tem certeza e não se


tem segurança. Desagregam-se os feudos, os servos vêm para a
cidade, são homens livres. Pardoxo da vida: são livres para morrer
de fome e frio. Chegou-se até a pensar que o servo deveria voltar
urgentemente para seu aconchego do feudo do que viver no
mundo urbano nascente.

Futuramente esses servos egressos do feudo conseguirão


se organizar em sindicatos no mundo moderno. Foi o germe do
primeiro partido trabalhista.

Stanley é um personagem da revolução gloriosa. O


mundo é criação de Deus, e, quando o fez, não conferiu o título de
propriedade a ninguém. Logo, toda e qualquer forma de
propriedade é usurpação. E se a propriedade é uma usurpação,
não é próprio que o proprietário individual permaneça a explorar
a humanidade. No mínimo, o que se deve fazer é tornar a
propriedade coletiva para que ela, mesmo muito mal, seja uma
agência de atendimento a todos. A solidariedade deve ser a regra
entre os homens, restaurando-se o Cristianismo primitivo, com a
posse comum das coisas.

Os trabalhadores estão efervescidos. Aqui entrou o


último elemento do caos pós Cromwell. Um rastilho de pólvora
correu a Inglaterra. Com a revolução prestes a estourar, a ideia
melhor foi perder os anéis do que os dedos: formou-se um grande
consenso, uma grande união entre as classes, uma revolução
gloriosa, desorganizar essa gente reunida, preservando a tradição,
a monarquia, mas conferindo-lhe matiz constitucional,
conservando o poder de representação do rei, mas fazendo com
que o Poder Executivo seja do primeiro-ministro advindo do
Parlamento. Quem reina é o rei, mas não governa. O governo é
parlamentar. Surge a câmara dos comuns, composta por membros
eleitos em eleições próprias. Isso é a Revolução Gloriosa: um
casamento entre a preservação da tradição, para que a monarquia
se faça moderna, liberal e funcional; Câmara dos Lordes é a
tradição, e é preservada; a Câmara dos Comuns significa a
modernidade, e é neste momento instituída.

Resumo da opera de Locke:

1. Estado: liberal moderno;


2. Poder: jurígeno, sobre o controle
limitado pelo Direito expresso na
Constituição;
3. Direito: liberal;
4. Justiça: forma de garantia do cidadão
em sua cidadania econômica e política.
Econômica: a propriedade; política: a
liberdade.
5. Paz: objeto finalístico da ordem
jurídica e política.

1 – Este parágrafo ficou pouco claro.

Montesquieu

Vamos ter uma conversa “em dois tempos”


sobre Charles-Louis Secondat (1689 – 1755), o Barão de
Montesquieu. Montesquieu, na verdade, era nome próprio da
nobreza, da terra que ele havia herdado, e isso faz com que se
passe a assinar o nome do título, e não da pessoa. Abriu-se mão do
nome de registro civil.

Na verdade Charles se transforma no Barão de La Brède,


o que é um título de Montesquieu.

Por isso que, com nossa nobreza sem tradição, quando


inventado o Estado Nacional por D. Pedro I e D. Pedro II, quando
este quis agraciar Joaquim Nabuco com um título de barão,
conferindo-lhe uma possessão, ele recusou, e resistiu à tentação. O
nome dele era Nabuco de Araújo, na verdade. Nabuco é uma
forma sintética de Nabucodonosor, nome do rei babilônico de
grande prestígio. Talvez tenha sido por isso que foi recusado o
título!

Charles Secondat é o Barão de La Brède e de


Montesquieu.

Charles é alguém absolutamente singular e atípico na


história do iluminismo. Assim como Voltaire, ele tem raízes
profundas na nobreza feudal. O iluminismo é um clube de
intelectuais na origem francesa, que vai espalhar esse espírito no
mundo inteiro, porque vamos encontrar iluminismo na Itália, na
Espanha, em Portugal, na Escócia, na Alemanha, nos Estados
Unidos, no mundo afora. Ali o espírito se dissemina. O que
significa o iluminismo? Uma crença desabrida nos poderes da
razão. Crença aguda e extraordinária, fazendo com que se
estabeleça na retórica dos intelectuais que irão preparar o espirito
da Revolução Francesa fazendo com que se estabeleça um embate
entre razão e superstição.

Superstição, para os iluministas, significa todas as


divindades na história da humanidade. Eles trazem consigo a luz
da razão. Por isso que, num esforço grande, eles estabelecem uma
fenda entre a idade das trevas e a idade das luzes. Com essa
modéstia, dizem que tudo foi prefácio da história da humanidade.
Daí começaram a editar as Enciclopédias, em que se “passaria a
limpo” a história sobre tudo. Da agricultura à situação da mulher
na ordem econômica, jurídica e política. Verbete sobre verbete,
artigo sobre artigo, tudo sob o signo do iluminismo. Ordenariam
uma visão racional de tudo. Recuperariam a superstição e a
transformariam na razão. A enciclopédia é um esforço coletivo
desses pensadores. Três exemplos que mais nos interessam são
exatamente Montesquieu, Voltaire e Rousseau, além de outros
mais.

Eles trazem pela primeira vez a razão para a história. É o


racionalismo, mas este já estava em Sócrates, Platão, Aristóteles,
que volta à história da humanidade pelo medievalismo árabe até
Tomás de Aquino, que recupera as obras, passa pelos humanistas,
e desembarca nos iluministas que chegam nesta hora no baile,
para só então começarem a dançar.

Dizem que a razão educada, a razão culta irá transfigurar


a história da humanidade. Universalmente o homem é um agente
de mudanças, portanto sua razão tem que ser objeto da educação e
da cultura.

Por isso a educação e a cultura têm que ser difundidas.


Isso para que se possa fazer do homem, em qualquer latitude, um
agente de mudanças.

Que mudanças? As que permitem que o mundo seja


universal, guiado exclusivamente pela razão. Um mundo
geométrico, aritmético, ordenado, planejado. Esse mundo irá
existir algum dia? Jamais. Brasília é uma cidade iluminista em sua
concepção. Ordem sobre ordem, setor de tudo. O que se teve aqui
foi o começo da reinvenção da vida. Até hoje há litígio entre o real
com o legal, do legal com o real.

A vida real, entretanto, reinventa o legal. Puxadinhos de


bares e restaurantes nas quadras comerciais, por exemplo, mas
são transgressões.

Um mundo sem superstição jamais existirá, porque são


portadores da ideia de que a razão presidirá a história. Mas Freud
descobre que o homem não é simplesmente razão, mas um misto
de razão e desrazão. É sombra e luz, e essa dualidade determina
sua conduta. Percebe-se que é uma díade que existirá para
sempre.

O mundo da superstição, o preconceito dos iluministas é


o mundo do mito, da magia, da religião, da poética, da intuição,
dos sentimentos, tudo isso. Como se se pudesse, com a razão e
com a ciência, elidir todas essas vertentes da condição humana
para restringir à ciência e à razão. Daí vem
o cientificismo ou cientismo, o pressuposto de que a ciência
prescinde de todos os demais para chegar à realidade.

Hoje há um contraponto: há de se recuperar todas as


formas de elaboração do saber social. A ciência há que se conjugar
todas as vias sentimentais, magias, mitos, sabedorias, religiões,
para que se crie uma visão mais total, mais plural, mais dinâmica
da realidade. Foi Montesquieu, à sua maneira, que está presente
nessa luta dos iluministas.

Charles Secondat era um nobre que herda privilégios da


nobreza, tinha terras, títulos, e herda também o dever de garantir
uma vida de altíssimo padrão, porque às vezes somos tentados a
imaginar que a vida refinada é o produto do aqui e agora; em
todos os momentos os potentados viveram regiamente, e herdou o
dever de conferir a essa parentela uma vida de altíssimo padrão.
Essa missão se faz pesada em demasia porque Montesquieu se faz
grande patrono que imaginava que dinheiro desse em árvore:
quando ele sente que ameaçaria seu futuro, casou com uma
mulher megarrica, e viveu pensando na razão até o resto da vida.

Chegou aos ciclos centrais na França, e é alguém


educado pelo pai para ser advogado. Por que advogado? Porque o
pai imaginava que o advogado poderia ser um tipo intelectual do
Estado. Montesquieu estava mais próximo da advocacia do que da
medicina. Seria presidente de parlamento, com a formação de
advogado. Ainda não existiam como saberes específicos a
Sociologia e a Ciência Política. A formação advocatícia poderia, de
acordo com seu pai, lhe dar todo esse conhecimento. Era o
espírito da cultura humanística: quem queria ser sociólogo,
filósofo ou cientista político deveria fazer advocacia.

Fez curso em Paris. Isso foi seu inferno e sua glória.


Como vinha sendo educado desde muito cedo na cultura
humanística, e tinha uma base humanística forte, estava
demonstrado desde cedo que seria um bom escritor. Foi para a
faculdade de Direito esperando que tivesse ali uma efervescência
de ideias. Quando chegou à faculdade, lhe deram grandes coleções
de leis para ler. Enfrentou esse universo e teve a expectativa que
as aulas magnas seriam sua redenção. Mas os professores iam à
aula com o pressuposto de que os alunos não soubessem ler. Às
manhãs da faculdade de Direito era leitura de normas, com
tentativas de explicar o que estava escrito. Isso era uma afronta ao
espírito, para Charles.

Essa metodologia era avassaladora na faculdade de


Direito. Formava os alunos não em Direito, mas em Código.
Montesquieu, então, tem vontade de voar da faculdade, nunca
mais vê-la, mas o pai lhe repreende e ele teve que tirar o máximo
de proveito das circunstâncias. Começou a construir seu paraíso e
sua gloria na faculdade. Criou uma paciência franciscana e, à
medida que o professor lia, ele reescrevia em sua consciência o
que estava escrito. O professor estava lendo a lei, e Montesquieu
começou a construir o espírito. O professor lia: “todos são iguais
perante a lei”. Montesquieu perguntava-se: “o que significa isso?
O que é essa igualdade? Que lei é essa?” Nisso ele construía o
espírito. Começou a criar o método, e que foi de onde saiu a
obra Do Espírito das Leis. “A letra mata”. É uma regra
hermenêutica fantástica e universal. É uma proposição paulina. A
letra mata, mas o espírito dignifica. Ele começa a desenvolver essa
técnica de construção do espírito. Chegou à sua formação jurídica
e ao Direito se dedicou, como pensador do Direito.

Mas é humanista plural e, ao mesmo tempo, é alguém de


um cuidado com suas circunstâncias muito grande: tinha os pés
na nobreza feudal e a alma relativamente voltada aos círculos
liberais, onde foi objeto de muita desconfiança. Para os nobres, ele
é um transgressor, traidor e subversivo. Convivia com os que
queriam mudar a ordem feudal, e promover a ordem liberal,
burguesa e capitalista. E, entre os liberais, ele é visto como alguém
merecedor de desconfiança, um infiltrado, pois tinha origem
nobre. Quem era ele? Vivia da nobreza da terra, super-explorava a
servidão que ela permitia, e vivia no circulo de poder central da
França. Uma dupla desconfiança.

Esta é a situação de Montesquieu.

Montesquieu vai, entretanto, escrever uma obra da qual


dizia o maior editor da França: “vai vender feito pão.” Só que
Montesquieu é tão cauteloso que publicou livros sobre livros sem
assiná-los, por medo de ser alvo de perseguições dos dois lados.
Vamos entender essa perseguição, pela qual se sentiu ameaçado
não somente Montesquieu, mas Rousseau e outros. Os iluministas
serão proscritos, perseguidos, e condenados à morte. Rousseau foi
condenado à morte duas vezes. Queriam que fosse morto e
remorto. No mesmo mês ele publicou “Emílio” (ou “Da
Educação”) e Do Contrato Social. Fugiu para a Suíça, em busca de
sua Genebra, onde pudesse ficar salvo da perseguição tenaz que
era movida em seu desfavor, mas, quando chega à fronteira, seus
parentes o alertam para não se aproximar de sua cidade natal pois
ali também fora condenado à morte. Exilou-se nas montanhas e
passou dois anos, até que a poeira baixasse. Conseguiu se
defender escrevendo um livro maravilhoso chamado Cartas
Escritas na Montanha: exegese, hermenêutica e argumentação
jurídica. O mundo liberal e burguês lutava contra os senhores
feudais. A história é a uma luta de privilégios contra direitos. Os
privilégios feudais são personificados pela aristocracia da terra...
ninguém entrega o bastão da história para ninguém. Os
iluministas foram os primeiros intelectuais da história que
conseguem viver do ofício intelectual, sem patrocínio, sem
dependência de papas, generais, reis, porque até então, na história
da humanidade, o intelectual não era livre para pensar, mas era
cronista de seu patrono, que deveria escrever os grandes feitos dos
grandes homens. O pensador um cortesão que não tinha
autonomia intelectual.

Os iluministas criaram o cerne do pensamento


intelectual autônomo. Por isso perguntaram a Voltaire qual era
sua função. Respondeu: “minha função é dizer o que penso”.
Porque isso é possível? Porque agora existe, nasce na história da
humanidade um mercado de produtos intelectuais. É mercado e
comércio que alcança a cultura. Nasce uma indústria cultural. O
ator é o autor. Até então o artista, o intelectual, por meio de
educação são, em sua maioria, preceptores e educadores de outras
pessoas. Tinham que viver de seus ofícios. Produzia partituras
musicais; Rousseau, por exemplo, tinha uma multiplicidade de
ofícios. E vendia também as conferências. Rousseau era
contratado, por exemplo, para falar sobre “o amor”. Os
intelectuais se colocam no mercado vivendo de seus próprios
serviços, sem padrinhos.

O feudalismo sobrevive pelo controle de uma estrutura


jurídico-política feroz, que queria sua manutenção a qualquer
preço. Quem ocupa essa estrutura jurídico-política feudal são os
nobres togados, com funções de Estado. Quem tinha terra e
riqueza delegava poderes aos nobres que não tinham. Quem dizia
o Direito era a nobreza togada. Nesse contexto surgiu Cesare
Beccaria, que escreveu Dos Delitos e das Penas. O próprio
Beccaria foi preso nas masmorras. Escreveu sobre o que viveu.
Embateu-se amorosamente com uma mulher casada, e seu marido
termina com os poderes que tem por leva-lo à masmorra. É dali
que ele prega o humanismo penal.

É a nobreza togada dizendo a ferro e fogo, dizendo o que


era lei, para que o feudalismo sobrevivesse. O papel ambíguo e
reticente de Montesquieu em face dessas circunstâncias, que vai
escrever uma obra composta de novelas, além de ter escrito
diálogos, poemas, peças de teatro, e sobre numerosas coisas de
relevância estética; mas as obras principais de Montesquieu são
três:

1. Do Espírito das Leis;


2. Cartas Persas e
3. Razões da Grandeza e da Decadência
dos Romanos.

O professor mesmo é tentado a dizer que este último


livro é mais relevante do que o Do Espírito das Leis, temerário,
mas uma tentação.

O que Montesquieu fez do ponto de vista científico?


Fundou a Sociologia jurídica antes que houvesse Sociologia geral.
Montesquieu viveu de 1689 a 1755, mas a Sociologia geral seria
fundada no século seguinte, por Auguste Comte, engenheiro,
matemático e filósofo, que será o líder do positivismo, e, no curso
de Filosofia positiva, ele funda a Sociologia como saber específico.
O espírito, método e objeto da Sociologia cria algo o que a coloca
no topo do saber social.

Mas alguém, com espírito avançado, um século antes


havia criado uma Sociologia específica. Eis a contribuição
histórica de Montesquieu.

Cartas Persas: livro altamente maroto e de extrema


atualidade. Pérsia é o Irã. Mahmoud Ahmadinejad tem, mesmo
hoje em dia, vontade imperial. Foi quem queria lapidar Sakineh
Mohammadi Ashtiani, acusada de adultério e conspiração para a
morte de seu consorte.

Mas Cartas Persas é o contrário: um persa que vive na


Europa ocidental, que considera os costumes do Ocidente
absurdos. Manda cartas para sua terra natal relatando cada coisa.
Fez enorme sucesso. Na 25ª edição, ninguém foi condenado à
morte, surge a assinatura do nome de Barão de Montesquieu.

Na terceira obra, Montesquieu cria a metodologia da


chamada pluricausal. Para entender o que é a metodologia
pluricausal, podemos tomar a metodologia unicausal conforme
pensada por Marx, que é: os fenômenos têm uma causa em que as
relações humanas decorrem das relações econômicas. Daí seria
uma circunstância unicausal. A economia tudo determina,
inclusive as mentalidades. A metodologia pluricausal de
Montesquieu prega que não existe a causa, mas as causas, que,
simultaneamente, funcionam para que um fenômeno possa
existir. Com essa metodologia ele explica a origem,
desenvolvimento e decadência do mundo romano. É uma obra
prima. Elencou 20 causas para a derrocada do Império Romano.

E, por fim, Do Espírito das Leis. Montesquieu leva 20


anos para escrever esse livro. Viajava pelo mundo, tinha uma vida
de “grande sacrifício”. Não parava de viajar. Trabalhava entre oito
e doze horas por dia. Diz, numa carta famosa, que será o retrato
da dificuldade que irá viver para escrever esse livro: “a respeito de
minhas leis, trabalho nelas oito horas por dia no mínimo... serão
quatro volumes em 24 livros, em grande formato.”

Quando ele sentou para ler o primeiro volume do que


havia escrito, ele decidiu que perdeu seu tempo, pois estava
ininteligível. Trabalhou em demasia. A possibilidade de trabalhar
de maneira concisa foi jogada fora. A ideia foi incinerar os
manuscritos. Eis aí o príncipe, eis aí a utopia, uma pletora da vida
de sínteses. Nisso ele senta e escreve um livro de apenas 100
páginas, um resumo, como diria. Quando leu, pensou que era um
nada mais que um telegrama, uma traição a tudo que pensava. De
novo para o fogo. Até que chegou à terceira versão do Livro, com
cerca de 700 páginas, muito curioso. Há capítulos de uma página,
e outros de sessenta. Não há simetria. Hoje entende-se que o
ensaio tem que ter simetria. O livro de Montesquieu não passa por
essa prova.

Mas outra questão curiosíssima do livro é que, quando


alguém se debruça sobre o Do Espírito das Leis pela primeira vez,
fica se perguntando: onde está o Direito? Isso aqui é só história do
comércio, história universal do comércio! Mas aqui está:
Montesquieu coloca em prática de maneira bem sutil sua
metodologia: comércio é uma fonte civilizatória da história da
humanidade. Quanto mais a civilização estabelecer um comércio,
mais desenvolverá suas instituições jurídicas e políticas. Chegam-
se aos institutos jurídicos e políticos pelos pactos materiais da
vida. Estabelece-se o diálogo de proximidade de povos e
civilizações distantes. Assim chega-se a civilização, e lá se
pergunta pelas instituições jurídicas e políticas.
E Montesquieu, então, publica seu livro em Genebra, na
Suíça, sem autor. Poderia provocar celeuma na realeza, ou ser
perseguido pela Igreja, poderia fomentar a fúria da inquisição,
então resolveu se manter nas sombras. Disse: “este livro quase me
matou. Não mais escreverei. É um filho sem pai. Tive que escrever
três versões em 20 anos para chegar a isso”. Exauriu-se. Ele não se
guiou pelo modelo de ninguém, e criou um modelo novo. Criou a
Sociologia jurídica.

Diz que sua metodologia é a única que permite que se


veja por inteiro o que está posto no mundo: uma visão totalizante
das coisas. Mais tarde, Montesquieu assume o livro, e vai viver
desses embates assumidos principalmente com a Igreja, que o
considerou maldito. Considerou-se que ele cedia à mais
subversiva das doutrinas. Sociedade de mercado, burguesa e
capitalista. Mas é acusado, ao mesmo tempo, pelos liberais, de ser
conservador, porque pregava uma mudança sob controle. É
acusado também de ser reacionário, de querer levar para o
passado as instituições jurídicas e políticas ou fazê-las agora a
voltar à forma historicamente pretéritas. Marcha à ré: daí vem o
nome reacionário. É acusado, pelos conservadores, que querem a
manutenção do Estado das coisas, de ser revolucionário, de ceder
espaço para ideais perigosíssimos de mudanças. A mais grave das
acusações, entretanto, foi a de spinozista: partidário das ideias de
Baruch de Spinoza (1632 – 1677): filósofo judeu holandês de
origem portuguesa e espanhola, família perseguida nos dois
países, vivendo depois em Amsterdã. Maldito pelos cristãos,
judeus e mouros. Este sim vivia numa boa, era perseguido por
representantes das três grandes religiões! Spinoza valorizava
sobremaneira os aspectos materiais do mundo, e, nessa Filosofia
incompreendida, foi acusado de ser propagandista do
materialismo, pregando preponderância do materialismo sobre o
espírito e sobre a fé. Por isso foi expulso de toda comunidade
religiosa, a começar pela judaica. Sua Filosofia panteísta, ao
contrário, é altamente complicada porque ele vê a transcendência
na imanência, que, simplificadamente, significa ver o que está
para além do mundo, o que é metafísico, nas coisas do mundo,
materiais, visíveis e palpáveis. Quando se diz, então, que
Montesquieu é spinozista, ele é jogado na mão do Tribunal do
Santo Ofício. Por isso Montesquieu se refugia nessa estratégia de
viajar enquanto a poeira não baixa.
O que há, então, em Montesquieu é que ele vai para
o Index Librorum Prohibitorum. Lista de livros que não deveriam
ser livros, que não deveriam ser publicados, de autores malditos,
cuja alma estaria perdida para sempre. É como uma excomunhão
espiritual. Mas ele foi tão sutil em sua capacidade de transitar
sobre espinhos que, mesmo no Index, ele conseguiu se eleger para
a academia francesa. Rei da França instituiu, e, quem chegasse a
essas 40 cadeiras, seria membro de uma academia invulgar.

A partir daí podemos dizer hoje, de Montesquieu, que


ele vive este embate patrimonialista feudal vs. liberalismo
capitalista. Patrimônio de família, patrimônio da nobreza. Esse é o
patrimonialismo. Por causa disso que se considera que o Brasil
nasceu sobre esse signo do patrimonialismo. Veja como se sente
Sarney. A preponderância dos interesses da família. A família
como titular da esfera pública.

O mundo feudal, portanto, é um mundo patrimonialista.


Há uma hereditariedade nele, e essas funções públicas, como
exército, administração, magistratura e Igreja só são alcançadas
por quem é nobre. Não existe meritocracia. O mérito é ser nobre.
Montesquieu provou isso. Ele próprio chegou à magistratura
sendo nobre da terra; ele próprio se distraia do mundo e da vida
vivendo num castelinho. Era patrimonialista, mas namorava o
liberalismo. Queria que a esfera pública fosse aberta para o
mérito, através da difusão da educação. Montesquieu está com um
embate entre a nobreza, o Primeiro Estado, o clero, o Segundo
Estado, e o povo, o Terceiro. Eis o mundo feudal que Montesquieu
viu. Terceiro Estado é a burguesia. O quantitativo do povo na
França daquela época era em torno de 26 milhões de almas.
Extraordinária maioria. O que eles podiam? Sofrer a vida. No
segundo patamar, da base para o cume da pirâmide, estava o
Clero. Tradição das forças da terra, que designava seus membros
para as funções clericais. Tanto material quanto espiritual.
Mandavam-se filhos para serem cardeais. Subindo, chegamos à
nobreza, o primeiro Estado, detentor de superprivilégios. Era um
mundo estamental feudal, fechado em si mesmo, com dificílima
hipótese de mobilidade social. O nascimento demarcava
diferenças. Na nobreza não havia mais que 200 mil almas,
enquanto o segundo Estado era composto por 100 mil delas...
daqui podemos dizer: que coisa absurda! Como é que 300 mil
dominavam 26 milhões? Minorias organizadas dominam a
história. É o que mais vemos hoje: quem mais adquire direitos
mediante pressão junto às Casas Legislativas são as minorias
organizadas, já que as massas inorgânicas nada fazem.

Montesquieu é originário na nobreza, mas contestado lá


mesmo e no clero. Amor longínquo pelo povo. 

Montesquieu – continuação

 Programa máximo
o Reformar a
monarquia em França
 Meio final
o Do Espírito das Leis
 Leis são relações necessárias que
derivam do espírito das coisas
 Estilo e ditado
o A forma
 Valores magnos
o Liberdade +
igualdade
 A eleição
o Monarquia
constitucional
 A influência
o Isaac Newton
 Latifundiário e vinhateiro
 Povo
o Virtude e defeito
 Deus
o Virtude e defeito

Qual são o contexto e as circunstâncias? Recuperando a


aula de ontem, o essencial é a situação de Charles, Barão de
Montesquieu, é que ele nasceu na nobreza feudal, e tem uma
consciência razoavelmente liberal. Mas ele tem reticências: em
meio ao radicalismo iluminista, no sentido filosófico, buscando
uma solução desde a razão, buscou um caminho de equilíbrio e
moderação que permita a renovação da tradição feudal sem que
venha a ser elidida pela mudança capitalista. O sonho de
Montesquieu é dessa natureza: criar uma equação nova que
permita a sobrevivência do arcaico e o advento do moderno, com o
advento da câmara dos comuns e sobrevivência da câmara dos
lordes.

Esse equilíbrio resultante da revolução gloriosa de 1688


é o sonho que Montesquieu pretende transpor para sua França e,
se possível, universalizar. É por isso então que ele é portador de
privilégios feudais, defensor de privilégios, mas proponente da
renovação liberal desde que não tenha as cores radicais como
querem iluministas. Deve vir vestida de equilíbrio e moderação. É
em razão dessa dualidade que ele termina desacreditado pela
nobreza da terra, feudal, e pelos liberais, que o consideravam um
aristocrata repleto de privilégios. O fato é que esse ideal de
equilíbrio e moderação vai fazer a desgraça e a aventura de
moderação. Desgraça porque revolução não se faz com
moderação, pois revolução é ruptura, que pressupõe
necessariamente o radicalismo. Revolução, aqui, é a quebra
substantiva da ordem posta. ¹

Se a ordem posta tem forma de triângulo, a revolução


terá forma de círculo. Se a ordem posta é o dia, a revolução é a
noite. Montesquieu queria mudança pontual, dentro da ordem
estabelecida, preservando, entretanto, a estrutura geral da
sociedade. Ela não deveria mudar de forma ou natureza; ao
contrário, com a revolução, tem-se uma descontinuidade e o
estabelecimento de uma nova realidade formal e
conteudisticamente distinta. São mudanças evolucionárias e não
revolucionárias. Mudanças de equilíbrio e não de estrutura. As
mudanças revolucionárias estruturais existem, entretanto. A
Revolução Gloriosa de 1688, a independência dos Estados Unidos,
Revolução Francesa, Revolução Chinesa de 1949 são as grandes.
Temos uma sociedade rural que passa a ser urbana. O equilíbrio
na sociedade muda sem que sua estrutura se altere. Montesquieu
queria uma mudança evolucionária, reformista. Não desejava que
a sociedade feudal mudasse, a rigor e em forma, para se
transformar em sociedade capitalista. Desejava trazer elementos
de mudança que a sociedade liberal capitalista prometia para o
antigo regime.
O antigo regime, em si mesmo, foi objeto de grande
polêmica, antes e depois dos iluministas. A realidade da
monarquia na França foi a marca da negatividade. O antigo
regime era perverso, de privilégios, moral e socialmente
insensível. Levava as massas na França a um extremo de misérias.

Entretanto, um cidadão chamado Alexis de Tocqueville


(1805 – 1859) escreverá, mais tarde, um clássico chamado Antigo
Regime e Revolução. Inventariou uma série de estatísticas dos
séculos XVI, XVII e XVIII e demonstrou que a monarquia
francesa estava no melhor momento de toda a história. Apogeu
social, econômico e político. Virou o jogo e o fez com dados
empíricos. E aí se abriu uma celeuma sobre o que seria a França
no período pré-revolucionário.

Os iluministas em geral, exceção feita a Montesquieu e a


Voltaire, barões, queriam a desagregação feudal, impondo o novo
regime, contraposto ao antigo regime.

Outra exceção a essa regra era a de Jean-Jacques


Rousseau, que vamos estudar, que nada tinha de feudal,
privilegiado, de defensor do antigo regime, proponente de uma
revolução na qual se acredita. Ele considera que a atriz histórica
dessa revolução, a burguesia, é totalmente traiçoeira. Trairá a
revolução. Fala, em tese, do que seria se a burguesia fosse sincera.
Nesse sentido histórico, Rousseau estava repleto de razão.

O ideal posto no argumento jurídico feudal é um ideal


personalista, porque se entende que, no mundo feudal afora, há de
se estabelecer um elo identitário entre rei e lei. Como se a lei nada
mais fosse que uma emanação da vontade do rei. É a pessoa do rei
que realiza o ditado da lei, respondendo, portanto, por toda ordem
jurídica. É o efeito de uma causa unipessoal. Isso está concentrado
na vontade real. Isso se consagra e se estabelece, é um consenso
na realidade jurídica feudal. Deriva da vontade do rei.

Montesquieu quebra essa regra. É um nobre que investe


contra o argumento legal da nobreza, na medida em que cria uma
teoria da lei que o leva a ser considerado spinozista com uma
explicação material da lei, tirando da vontade do rei. É como se
Montesquieu dissesse que o rei imagina que a lei é sua vontade,
mas está perpassado por vontades materiais que a condicionam. A
lei não pode ser fruto da vontade singular de ninguém. Nisso,
Montesquieu tira uma carta da manga e põe à mesa, e essa carta
significa exatamente colidir com essa visão personalista da lei e a
leva a ter raízes complexas. Leis são relações necessárias que
derivam do espírito das coisas, do Direito. E o fundamental aqui é
demarcarmos esses nexos frasais.

Relações necessárias: que relações são essas? Relações


alistadas naquele modelo que vimos ontem, a metodologia
pluricausal, com causas que se equacionam entre si, desde o
clima, até o contexto histórico, a estrutura econômica, o
condicionamento político, os elementos psicossociais, até a
tradição, costumes, gramática, tudo que se possa compaginar
nessas rubricas para mostrar que todos os elementos, em sua
dinâmica, são determinantes da ordem jurídica e pactos legais
estabelecidos na sociedade. Tudo é relevante. Não há fator único.
“Povo de Mato Grosso, em matéria de relevância, o principal é
tudo!” – disse um sujeito chamado Roberto Campos.

Montesquieu vai aos extremos na medida em que


resgata uma tese do mundo antigo que defende que o clima influi
na ordem jurídica. Há uma relação necessária com o ambiente
físico. Considera que todos os megaestados têm uma natureza, e
os microestados têm outra. Uma coisa é o megaestado União
Soviética e exemplo de outro é Cuba. Isso define o sentido das
instituições jurídicas e políticas. Isso é polemico. A paisagem
influencia! Montesquieu resgata, subscreve e dá um sentido novo
a essa tese. É fundamental que se compreenda: ele articula entre
si fatores moderados e pesadíssimos. Sentido da ordem política,
elementos psicossociais, elementos que são inexoráveis para a
determinação da ordem jurídica. Mesmo a Geografia tem seu peso
moderado, ainda que talvez não tenha a magnitude imaginada por
Montesquieu. É evidente que as circunstâncias geográficas levam
a um posicionamento geopolítico singular do Estado no mundo.
Essas variáveis congeminadas em suas relações fazem com que a
lei delas derive. É o que Montesquieu chama de espírito das
coisas. Daí se tem a derivação da lei. Nisso Montesquieu dirá que
descobriu a equação do Espírito das Leis. Por isso há as populares
“leis que pegam” e “leis que não pegam”. Ele descobriu, ou achava
ter descoberto, o motivo para leis serem vigentes e eficazes, ao
passo que outras eram vigentes mas ineficazes, porém criadas pelo
mesmo corpo legislativo, na mesma época, pelos mesmos atores, e
às vezes voltadas para os mesmos objetos. Os valores que a lei
eficaz carrega estão mais próximos da sociedade a que se destina.
Outras não se batem com as aspirações sociais. Podem ser postas
em vigência, mas a consciência social não as introjetará e não
guiará sua mente. É a consciência social que irá permitir, afinal, à
coletividade introjetar e agir de maneira diferente aos comandos
legais. Eis a explicação do porquê de uma lei ser vigente e eficaz, e
outra vigente e ineficaz, mesmo sendo criada pelo mesmo corpo
legislativo, ao mesmo tempo, sob inclusive os mesmos objetivos;
mas uma se sintoniza e retrata a consciência social e com isso a
consciência social; outra tem uma relação desafinada com a
consciência social e dela difrata, e não a retrata.

Aí Montesquieu considera que desconstruiu uma


equação em torno da qual ninguém ainda teria chegado perto. Por
isso dirá que o Do Espírito das Leis é um filho criado sem mãe e
sem pai pois não haveria precedentes.

Montesquieu é etnocêntrico porque faz apologia de sua


Europa para a humanidade. Criou uma teoria falsa de povos do
frio e povos do calor. Calor = Ásia e África, fundamentalmente. O
resto do mundo nem conta, muito embora no Do Espírito das Leis
ele se reporte às minas do Brasil, e sua inserção periférica no
comércio mundial. A tese é: todas as civilizações da história da
humanidade aconteceram no clima frio. E a única esperança da
história da humanidade decorre da exportação dos valores dos
povos do frio. Os povos do frio possuem a vocação da liberdade, a
destinação, fisiográfica até, para a liberdade. Ao contrário, todos
os povos das zonas tórridas só têm esperança se submeterem aos
valores do frio. Sua esperança de liberdade é a submissão aos
povos do frio.

O projeto de Montesquieu, portanto, era reformar a


monarquia francesa. Isso significa conservá-la e conferir uma
dimensão constitucional. A Constituição passa a ser a prova dos
nove da realidade política e jurídica. Vejam que no art. XVI da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão temos o que
Montesquieu carrega consigo: “Qualquer sociedade na qual a
garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos
poderes, não tem Constituição.”

Toda a expectativa jurídico-política dos iluministas


reside nisso. O mundo era um mundo mais de poder do que de
norma. A lei era a vontade do rei. A norma não é nada, pois a
vontade do rei é a expressão de uma realidade maior, chamada
poder. Por isso o poder era um poder absoluto.

O que se espera dos iluministas é que se crie um mundo


em que a norma tenha tamanha significação, de tal modo que a
norma valha mais que o poder, poder esse que deveria deixar de
ser absoluto e para ser constitucional, ordenado pela lei e de
acordo com a lei. Por isso a autoridade da Revolução Francesa
será politicamente responsável pelo seus atos. Até então, a
autoridade é inalcançável pela lei. A ideia seria diferenciar-se do
funcionamento dos tempos de Roma de Ulpiano, em que o rei
estabelecia a lei, e a lei só pode dirigir o povo. A lei não pode
dirigir, controlar ou limitar o rei. O propósito maior da Revolução
Francesa é normatizar o poder, constitucionalizá-lo, criando um
poder segundo a norma, segundo a lei. Por isso o Estado
Constitucional Moderno é advindo da Revolução de 1789.

O que Montesquieu quer? Que essa ordem


constitucional alcance a monarquia, para que o rei não seja
absoluto, e exerça o poder nos limites e segundo as diretrizes do
pacto constitucional. Essa é a grande reforma da Constituição na
perspectiva da monarquia em França segundo a perspectiva de
Montesquieu. Para isso ele escreve seu grande livro. Para que o rei
se submeta a essas relações necessárias que derivam do espírito
das coisas.

Na França vigorava havia séculos uma regra chamada


Convocação dos Estados Gerais. O rei poderia convocar eleições.
Elegiam representantes, passavam um mês em Paris, discutiam os
problemas da França, passavam ao rei, mas não tinham nenhuma
força cogente. A realeza não convocava os Estados Gerais havia
160 anos na França. A Convocação era um fator legitimador! O rei
reinava absolutamente, sem receber sequer sugestões.

O livro: Montesquieu, que, fazendo as contas de sua


vida, se autodefiniu como um homem essencialmente feliz, foi
também alcançado pela desdita na vida. Ficou cego. Terminou
ditando o livro, e sua obra era desequilibrada estilisticamente.
Ditando, ele perdeu o controle formal do livro, daí o motivo de
haver capítulos tão menores uns que os outros. Mas terminou o
livro porque foi a obra de sua vida. Peguem a tradução de
Fernando Henrique Cardoso, a melhor tradução brasileira!
Montesquieu termina ditando o livro, e nele há uma
atitude marota: diz-se totalmente enamorado pelo iluminismo e
pela liberdade. Liberdade e igualdade antigas! Significa que
impugna a liberdade e igualdade do presente. Mundo sem
servidão. Igualdade é uma maior similitude econômica e social
entre os homens. Isso na modernidade. As antigas eram liberdade
e igualdade para os aristocratas, para aqueles “do clube”.
Montesquieu compreende que está preso em seu mundo. Pensa a
partir de seu lugar social. É um advogado da nobreza e da
aristocracia. Camufla como um pano de toureiro, mas tem um
fundo eminentemente conservador.

Influência intelectual maior de Montesquieu é de Isaac


Newton, o grande físico inglês. Não é incomum dizer isso por
causa do espírito científico da modernidade. Montesquieu se
sentia geólogo e cientista natural, assim como foi sentia Hobbes.
Preparou-se, inclusive, para escrever uma história da Terra. O
modelo de simetria é Isaac Newton. É o ideal que quer: um mundo
geométrico, arquitetado, equilibrado.

Outro iluminista, o Barão de Voltaire, escreveu um livro


inteiro sobre Isaac Newton e a revolução que ele significa no
paradigma científico. Era gênio mesmo sendo aluno medíocre
enquanto na escola. Vejam como é a escola formal! Muitos dos
grandes gênios aprenderam por conta própria ou com mestres
dedicados, e não em sala de aula.

Finalizando: Montesquieu, mesmo viajando muito, foi


obrigado a circular nos ambientes salonares da nobreza. Teve
tempo para ampliar sua fortuna. Teve sucesso como latifundiário
também. Ampliou a base material de sua vida, ainda mais depois
do casamento. Como esse aristocrata e nobre termina por se
relacionar com o povo, que faria a Revolução Francesa?
Montesquieu tece palavras finais ao final de sua vida: “o povo é
excelente. Excelente para escolher quem vai ser o seu senhor. O
povo é imprestável para governar.”

Mas Voltaire é muito mais desabrido em sua linguagem


e, na esteira do que disse Montesquieu, Voltaire, em ironia ácida,
dirá uma coisa um pouco mais rasgada sobre o povo: “o povo não
deveria se meter a governar.” Era exatamente o que Montesquieu
estava dizendo, exceto que com elegância.
Religião: questão de alta sensibilidade em qualquer
tempo, em especial naquele, porque o tribunal do Santo Ofício
estava funcionando, e teve a sagacidade para julgar e não executar
ninguém, mas entregava para o braço civil do Estado.
Montesquieu teve altos e baixos com os jesuítas. Sentiram o cheiro
do demônio n’O Espírito das Leis. Sabiam, entretanto, que uma
coisa é a fé profunda, e outra é a Igreja. Todas as instituições
temporais têm seus vícios e suas misérias. Montesquieu, ao final
da vida, divide as águas e morre cristão. Morre na fé, morre com
Deus, e pede, no leito de morte, para ser confessado e comungar.
Faz uma distinção que a princípio os iluministas não sabiam fazer:
eles combatiam a fé e Deus, Deus e a fé. Voltaire até chegou a
dizer: se Deus não existisse, ele precisaria ser inventado. Não
tributa a Deus os defeitos da Igreja.

Montesquieu não serve para fazer a revolução. A


agitação que se faz é a partir das sociedades secretas, dos círculos
revolucionários que vão levando esse espírito de mudança à
frente, adiante. Essas sociedades secretas, esses clubes jacobinos
jamais se alimentaram de Montesquieu, porque era moderado.
Precisavam apagar o fogo com gasolina. A inspiração deles é um
cidadão genebrino chamado Jean-Jacques Rousseau.

1. Vou transcrever aqui algo que pus nas


notas de rodapé da aula de Filosofia, no
terceiro semestre, no dia 18/03/09: A
melhor definição de revolução strictu
sensu é de Olavo de Carvalho,
adaptadamente: “a promoção de um evento
futuro e grandioso, visando a mudança
completa do status quo, levada a cabo por
um indivíduo ou um pequeno grupo,
mediante a concentração ilimitada de
poder nas mãos desse(s) sujeito(s) que
prometem realizar a subversão. Essa
concentração de poder se dá com a entrega
de confiança, meios de realização, direitos
subjetivos e dinheiro dos indivíduos para o
revolucionário.”  

Jean-Jacques Rousseau
 Origem social e aventura do mundo
 A experiência religiosa
 A França como destino
 Da academia do iluminismo
  O preceptor, o escritor
 O musicista e o filósofo
 Ponderação entre razão e emoção
 No Brasil: o Mito do Bom Selvagem
 Estado de natureza
o Antropologia
o Filosófica
o Positiva
 O
home
m
bom,
puro
e
doce
  Advento de dois males
o Propriedade e
desigualdade
 Purificação da propriedade
o Função social +
democracia social
 Purificação da desigualdade
o As classes médias
 O falso contrato social

Vamos conversar sobre Jean-Jacques Rousseau hoje.


Rousseau (1712 – 1778) mereceria todo um curso, mas temos uma
agenda limitada no tempo, e temos que discuti-lo dentro da
medida do possível.

Rousseau nasceu em Genebra, na Suíça, mas era de


origem francesa. Genebra era e é um lugar muito bonito, centro do
protestantismo. Um dos lideres da Reforma Protestante do século
XVI era um suíço de Zurique. João Calvino, um francês, governou
Genebra e estabeleceu um governo teocrático. Naquela cidade
passa o Rio Ródano; é um lugar onde há de tudo: joalherias, sedes
de vários bancos mundiais, e muitos escritórios de advocacia por
acaso avizinhados das joalherias e dos bancos. Curiosa essa
sequência. Já que é onde se opera o crime mundializado de
lavagem, os escritórios estão disponíveis bem pertinho!

Mas foi ali que nasceu Jean-Jacques Rousseau, no


Bairro de São João, um bairro católico. Ele é originário de
segmentos intermediários da sociedade, mais especificamente a
pequena burguesia relojoeira. Rousseau, entretanto, ascenderá à
condição de grande burguês. Teve um irmão que teve um destino
incógnito: ao sair de casa um dia, nunca mais foi visto. Existe um
romance chamado O Filho Único, contado da perspectiva do
irmão que ficou sozinho. Rousseau enfrentará a aventura do
mundo. Fugirá de casa, mas dele sempre se terão notícias. Até
pensou em retornar a Genebra.

Rousseau teve o infortúnio de, nos verdíssimos anos de


sua vida, perder sucessivamente a mãe e o pai. Foi criado por tios
e avós. Essa criação foi traumática para ele, ainda mais porque o
menino atípico, que sentia profundamente falta do pai e da mãe,
com a educação que os tios lhe conferiam, terminou conflitado
com esse ambiente e foi mandado para uma instituição religiosa
onde os jovens com problemas de família eram mandados. Quase
um reformatório. Por isso Rousseau será criado por padres
católicos e depois por pastores protestantes. Foi tanto católico
quanto protestante. Quando a família o aceita socialmente e se
torna parte da burguesia relojoeira suíça, quando a grande
indústria do Paraguai e da China não lhe faziam concorrência, os
relógios eram grandes obras de arte. Rousseau já havia partido
para a aventura no mundo. Fugiu à pé da Suíça para a França, e
viveu de maneira muito desigualitária do ponto de vista de sua
experiência material. Conheceu tanto a necessidade quanto o
fausto. Não sendo nobre, não tendo família e escopo social de
Montesquieu ou Voltaire, sem chance de exercer funções na
Administração, Igreja, Exército ou Nobreza, tornou-se protegido,
em especial, de figuras riquíssimas e potentadas. Havia pessoas
que queriam um acompanhante de alta sofisticação e que se
dispusesse a viver nesses luxuosos castelos. Uma delas se fez como
que sua mãe, Françoise-Louise de Warens, ou simplesmente
“Senhora de Warens” e foi certamente a maior das protetoras de
que dispôs.

Ele a chamava freudianamente de mamãe. Com ela, teve


vida principesca. Não foi eterna porque nada é eterno; essa
Madame de Warens se sentia com potencial para proteger mais de
um Rousseau. Passou a abrigar, posteriormente, um oficial do
exército. Estabeleceu-se um amor a três. Rousseau entra num
processo de desconstrução psicológica que evidência um traço
doentio de sua personalidade, e começa a fazer uma leitura
patológica da realidade. O mundo era uma grande conspiração em
seu desfavor. Levou-o a escolher o isolamento total, e rompeu com
toda a humanidade. Onde está, considera que todos conspiram
contra ele.

Rousseau é tão sofrido nesse particular que saiu em


estado febril distribuindo manuscritos não publicados chamados
“Rousseau, Juiz de Jean-Jacques”. Distribuía a qualquer estranho.
Tratava de acusações reais e imaginárias. Essa atitude levou-o a
receber cartas anônimas. Ele foi ameaçado de que escreveriam
uma biografia não autorizada dele. Ficou mais louco do que
poderia ser.

Em estado febril escreveu um clássico


chamado Confissões. Livro único na história da humanidade.
Raríssimas vezes alguém terá se desnudado psicologicamente com
a força e riqueza de detalhes que Jean-Jacques Rousseau fez nesse
livro, parecido com as Confissões de Santo Agostinho. Custa-se a
crer que tudo aquilo tenha acontecido na vida de um homem só.
Assim ele foi ao mais absoluto isolamento. Em sua companhia só
tinha um cão. Rousseau uma vez declarou que descrê
absolutamente da condição humana.

Esse Jean-Jacques conhecerá também as necessidades


porque, inimizado por todos, não terá as âncoras sociais e as
estabilidades possíveis a quem dispunha de seu talento. Viveu
sobretudo como preceptor, como educador de nobres. É um
grande mestre da cultura. Mas Rousseau, ordinariamente, litiga
com seus próprios empregadores. Não tem a inteligência
emocional para conviver com diferenças e rompe
sucessivamente com eles. Até escreveu uma tal “Carta de Saint
Marie Sobre Educação de Seus Filhos”. Começa, no primeiro
parágrafo, por escrever um desaforo: “eu educo seus filhos da
maneira mais refinada durante as manhãs e tardes, e você os
deseduca durante as noites. Não servirão para nada! Vou lhe dizer
o que é a verdadeira educação.”

Viveu também como copista de obras musicais. Vendia-


as para sobreviver. Ao mesmo tempo, desempregando a si mesmo,
sobrevive também fazendo conferências, porque aquela é a época
em que surgia um mercado para arte, para as letras para a cultura
em geral. Por exemplo, uma vez, foi chamado para fazer uma
"conferência sobre o amor". Recebe direitos autorais, fica
desempregado várias vezes como preceptor, recebe pelos seus
serviços, profere conferências e tira uma graninha. Assim
sobrevive. Mas nas entressafras desses momentos ele conhece a
necessidade. Assim foi sua vida.

A experiência religiosa foi algo profundamente marcante


na vida de Rousseau, e ele jamais se despedirá da fé de Deus e da
Religião. Bateu de frente com os demais iluministas, anticlericais,
que faziam pregação antieclesial. Rousseau sempre carregou a
marca da religiosidade e expressará em toda sua vida.
Paralelamente escreveu um dicionário musical.

Existiu também o Rousseau escritor, maravilhoso


escritor. Se não tivesse um significado como sociólogo,
politicólogo ou filósofo, sobreviveria como esteta. Era da família
de Platão, de Cícero, dos grandes escritores, que importavam-se
não apenas com o conteúdo, mas com o estilo. Estilo
absolutamente extraordinário de alguém que sobreviveria pelo
lavor literário. Escreveu romances, e é o autor que, entre outras
peças, escreveu A Nova Heloisa. É o fundador do Romantismo. O
que significa? A elevação do indivíduo a uma dignidade no mundo
das artes sem precedentes. A validação do eu, da subjetividade e
deste mundo emocional de que cada um é portador. Cada homem
é um universo, e suas experiências subjetivas frente ao mundo é
dos maiores patrimônios emocionais.

Rousseau filósofo: absolutamente singular. É filósofo da


Natureza, ecologista num mundo que legitima a depredação da
Natureza; é filósofo da política, do Estado e do Direito. É também
filósofo do ser, da ontologia, da dimensão metafísica da vida. É
um saber grande da história da Filosofia. Escreveu como arte
literária.
No Direito, a contribuição de Rousseau está nas obras
Do Contrato social, Discursos Sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade Entre os Homens, chamado por Norberto Bobbio
de “absolutamente clássico”; há também as Cartas Escritas na
Montanha, e também temos Direito no Projeto de Constituição
para a Córsega e para a Polônia. Este foi um livro recentemente
muito requisitado porque a Polônia entrou de vez na transição da
modernidade para a pós-modernidade, e com o fato de o Papa
João Paulo II ser originário de lá. Derrubou o socialismo real.
Nesta ocasião, o livro de Jean-Jacques Rousseau foi muito
reeditado no mundo. Polônia ficou afirmada na história, já que em
todas as vezes que o império russo se expandiu trouxe a Polônia
para si.

Rousseau fará da França seu lugar de eleição. De origem


francesa, embora suíço, a França será o lugar de sua vida.
Inscreveu-se em concursos literários que as academias lançam
periodicamente sob a chancela real. Lança-se um tema, dá-se um
prazo, lançam-se inscrições, e monografias são submetidas. Quem
ganha leva dinheiro e ampla legitimação real e intelectual. O
trabalho é publicado e ingressa num clube dos produtores de
ideias. Rousseau ganhou vários desses concursos. Começou um
processo de crescente transformação que lhe conferirá
notoriedade, e começa a haver um jogo de egos que vai encontrar
em Voltaire o principal opositor de Rousseau. Voltaire até então
estava confortavelmente legitimado como o mais celebre da
França, e Rousseau começa a abalá-lo. Voltaire chega à condição
de seu arqui-inimigo, inclusive um dia denunciou Rousseau para
que a polícia prendesse-o e deportasse-o para a Suíça, pois era
nocivo à vida social. Foi um jogo de vaidades.

Isso, claro, em desfavor de um homem que tinha aquelas


condições psicológicas.

Rousseau entra para os iluministas, para as


enciclopédias, e entrou no desafeto deles por causa de sua
singularidade de pensamento. Portador desse quadro nervoso,
também litigou de maneira interpessoal e terminou inimigo de
todos. Considerou os iluministas todos conspiradores.

De resto, devemos dizer que o traço maior do


iluminismo está no racionalismo. Desautoriza o mundo
emocional, sentimental. Mas Rousseau não. Uma das suas
singularidades é que ele também é racionalista, profundamente
vinculado, preso, relacionado com o mundo das emoções, dos
sentimentos, das volições, da subjetividade, com o mundo
sentimental. Considerando essa dimensão emocional e intuitiva
em detrimento do que era a regra dos iluministas, que era a
valoração exclusiva da razão, que construiria a vida simétrica,
geométrica, planejada, enfim, totalmente marcada pelo princípio
da racionalidade. Uma vez solidificada, seria transformada em
regra de vida do mundo, tirando as superstições.

Rousseau não acredita nisso, pois considera que a vida


jamais será racional e sempre a razão dividirá espaço com um
agudo mundo sentimental, volitivo, poético e intuitivo. É uma
crucial singularidade que fez a diferença entre Rousseau e os
iluministas. Não era um clube exclusivamente francês, mas
também escocês, espanhol, inglês, e até português. Havia
iluministas até nos Estados Unidos! Em Portugal, coincide com o
magistério de Marques de Pombal. Tentou fazer uma reforma
pedagógica no sistema educacional português.

Que relação Rousseau tem com o Brasil? Rousseau


nunca esteve aqui mas, na verdade, agiu como se conhecesse o
Brasil. Não esteve fisicamente aqui, mas é um grande leitor, e leu
profundamente a obra Mensagens, que fala no Brasil, de Michel
de Montaigne (1533 - 1592), e mais uma coisa chamada Literatura
dos Viajantes. Mandavam-se espiões, cientistas, sociólogos e
antropólogos para conhecer o Brasil. Isso foi feito de 1500 até
meados do século XIX. Rousseau conheceu as observações
existentes até seu tempo. Era tudo publicado na Europa, não aqui.

Leu também descrições de como vivia o índio brasileiro.


Nisso Rousseau diz: “eis aqui o Bom Selvagem, como sempre
sonhei!” O índio brasileiro é o último remanescente na existência
de um Estado de Natureza, do elo perdido do paraíso. A partir da
descrição do modo de vida do índio brasileiro, de sua relação
idílica com sua ambiência, Rousseau constrói o Mito do Bom
Selvagem. O que é o Bom Selvagem? Alguém que, no Estado de
Natureza, revelou a existência de uma antropologia fazendo com
que a percepção da natureza humana fosse diametralmente oposta
à descrita por Thomas Hobbes. Para o pensador inglês o
homem era o lobo do homem, portanto deveria viver em estado de
permanente beligerância. O lobo teria que preventivamente matar
outro para não morrer. Para Hobbes o homem era mau por
definição. Rousseau, ao contrário, disse que o homem era, por
definição, bom. O último testemunho do homem original era o
índio brasileiro. O homem, nas origens, foi bom, puro e doce.
Assim como o índio brasileiro!

Afonso Arinos de Melo Franco (1905 - 1990), jurista de


Minas Gerais, que foi senador da constituinte, Ministro das
Relações Exteriores do governo parlamentarista de 61, escreveu
um livro reeditado recentemente chamado O Índio Brasileiro e a
Revolução Francesa. É a relação de Rousseau para criar o Mito do
Bom Selvagem com o índio brasileiro.

Estado de Natureza permitirá a Rousseau disser que ali


se vivia pacificamente, em estado de pureza, bondade e doçura.
Havia posse comum das coisas, tudo era fraternalmente
partilhado. O homem encontrava-se em sintonia com o outro, e
todos viviam num Estado de equilíbrio com a natureza e tudo era
preservado. Eis o estado de Natureza de Rousseau, contrastante
com o estado de natureza de Hobbes.

O que existiu num dia? Outra obra. Narrava que, num


mês de verão, um bando amigo e fraterno caminhava sobre a
Natureza e, de repente, numa manhã esplendente de Sol, um
homem mais forte que os demais do grupo apontou para algo e
disse “isto é meu. Ai de quem me contestar!” O que ele tinha era a
força. Por ela, criou a propriedade. Efetivamente exclui a posse
comum das coisas, fazendo com que, no mesmo dia, dois males
tenham surgido na história da humanidade: propriedade e
desigualdade. Isto é meu, e não do resto da humanidade. Esses
são os dois males da humanidade para Rousseau.

Rousseau prenunciou Karl Marx do século XIX, que


nunca o citou em suas obras, mas o leu de cabo a rabo e o
replicou.

Qual o remédio desses dois males? Rousseau diz que a


propriedade se purifica na medida em que o proprietário
efetivamente trabalha e que a propriedade se torna proveito social
e não apenas pessoal, e que a propriedade se torna objeto de um
proveito social quando cumpre com a função social, e que
partilha, na forma de lucro, seus resultados. Resgata a legenda de
São Tomás de Aquino da função social da propriedade e a
especifica: o que é produzido é do proprietário e da comunidade
que o produziu. A comunidade externa deve ser beneficiada pelo
cumprimento da função social da propriedade, o que é, hoje, um
direito em nossa Constituição de 1988. Veja o alcance que tem a
função social da propriedade. Com o proprietário trabalhando
ativamente, partilhando com a comunidade o produto da
propriedade, e distribuindo o lucro também com os que nela
trabalham, assim a humanidade se purifica.

Rousseau não é contrário à propriedade, mas só quer


que ela se purifique.

E a desigualdade? Como se purificaria? A propriedade se


purificaria se se incluísse numa agenda de uma democracia social.
A ideia seria haver uma massa de proprietários cada vez maior.
Isso é “democratizar”, para Rousseau. Tornar cada vez mais
horizontal a experiência da propriedade. Era a democracia social.
Assim fundar-se-ia uma sociedade fundamentalmente social.
Sociedade majoritariamente de classe média. Com isso, a
desigualdade se purificaria.

A força do cantão, que é de natureza comunitária, e o


passado histórico do mundo romano são dois caracteres.
Dominaram a Suíça por mais de 500 anos. Rousseau pensa
poderosamente na vida comunitária. Os iluministas voltam aos
gregos, enquanto Rousseau volta sobretudo aos romanos. Sua
Suíça foi romana. Rousseau pensa nisso: em democracia social.
Existirá quanto maior for o número de proprietários, que tenham
a vivência da propriedade, um fato que preocupou Roma e os
romanos. O Império Romano legaliza a propriedade privada, a
grande propriedade. Com as crescentes reclamações dos
estrangeiros e homens pertencentes a classes mais baixas da
sociedade, o Estado resolveu difundir o espírito da propriedade
tornando a propriedade móvel cada vez mais possível. A
propriedade imóvel que permanece reservada. Mas a propriedade
móvel também legitima o instituto da propriedade privada.

Rousseau sonha com o estabelecimento social de uma


sociedade de classe média. Em certo sentido, a sociedade
americana é a que mais se aproxima do ideal de Rousseau. Foi o
segredo dos Estados Unidos no mundo! Foi ali que primeiramente
as classes médias foram expandidas. No século XIX o Brasil não
tinha classe média. A rigor, não existia povo. Só havia despojados
e proprietários. Tanto que o Código Civil é um produto do século
XX no Brasil, e não do século XIX ou antes.

Rousseau contesta o falso contrato social. Matéria para


amanhã!

Rousseau – continuação

 Modelo iluminista
o Patrimonialismo x
liberalismo
 Modelo de Rousseau
o Patrimonialismo e
liberalismo x
democracia social
 Falso contrato social
o Privilégio e Aristocrat
ismo
 Propriedade + desigualdade + Estado
+ arbítrio
 Solução:
o Novo e verdadeiro
contrato social
 Fim
o “Um mundo em que
não haja ninguém tão
rico que possa comprar
um miserável e
ninguém tão miserável
que tenha que se vender
a um potentado.”

Voltemos a falar de Jean-Jacques Rousseau. Vamos


precisar algumas coisas relativas ao que o professor disse ontem.

Das circunstâncias pessoais e biográficas de Rousseau


podemos dizer que sua mãe morreu quando ele nasceu. É uma das
razões de seus transtornos emocionais. Também é por isso que a
Madame de Warens era como uma mãe para ele. O pai de
Rousseau ficou em sua companhia até 10 anos de idade. Era
irrequieto, mundano, e desapareceu igual o irmão do pensador.
Cedo alfabetizou o filho, que, aos oito anos, já sabia todos os
historiadores gregos e romanos. O gosto pela leitura
acompanharia Rousseau para sempre.

Rousseau tinha uma doença que eventualmente levou-o


à morte, na bexiga, que o incomodou muito e se aprofundou ao
final de sua vida. Hoje se tem à mão, e é possível até olhar isso na
Universidade de Genebra, os dossiês médicos que apontavam que
ele era absolutamente estéril.

Sua governanta ficou 25 anos com ele. O que há de


peculiar é que com ela ele teve 5 filhos, sendo absolutamente
estéril! É um retrato que não deixa de ter seu quê de perverso. O
que Rousseau fez com essas crianças? Um dia preparou a
garotada para ir ao parque infantil, numa casa estatal de recepção
de crianças abandonadas e nunca mais foi buscá-las. Isso fez
amargar as críticas sobre ele.

Nas cartas anônimas que ele recebia, isso era apontado:


a falta de responsabilidade moral. Certamente, porque Rousseau
foi um dos maiores pedagogos da história da humanidade.
Escreveu um livro indicando como as crianças devem ser
amorosamente tratadas e educadas. Por isso foi condenado à
morte na Suíça e na França. No mesmo ano ele publica o Do
Contrato Social. Começou distribuindo na Holanda, mas, ao
espalhar na Europa, foi condenado. Isso o levou à clandestinidade,
a ser foragido, e elevou os traços nervosos de sua psique. De lá ele
escreve as Cartas Escritas na Montanha, em que se defende de
todos os processos.

Rousseau é alguém que estará radicalmente envolvido


com as ideias mais febris que irão criar o espírito do iluminismo
político. As massas teriam uma clarividência sobre a ordem que
está se formando, e formou um arco histórico que terminará por
derrubar o antigo regime. O antigo regime era um embate entre
burguesia e os barões da terra, com feudalismo decadente e
capitalismo nascente. O feudalismo não quer sucumbir, mas acaba
ficando para trás na velocidade da produção de riqueza. O próprio
Marx era fascinado por capitalismo! O sistema econômico criou
um desenvolvimento em questão de décadas, que o feudalismo
levou séculos para criar, enquanto o escravismo antigo levou
milênios. Acelera-se o tempo social com o advento do capitalismo.
Comunicações, transportes, ideias, vivência mútua. A própria
construção econômica da riqueza se insere de maneira radical
nesse ambiente. O poder germinativo do capitalismo é muito
maior do que do feudalismo.

Do ponto de vista econômico, é possível dizer que a


massa de riqueza socialmente gerada está sobretudo vinculada à
própria economia. Do ponto de vista social o feudalismo já era
página virada. Mas as forças da terra resistiram, e de lá surgiu a
primeira teoria econômica sistematicamente pensada: a
chamada fisiocracia. Pensamento fisiocrático remete-se à ideia
de physis = Natureza, krateia = poder, força. François Quesnay
(1694 – 1774), Ministro das Finanças francês, criou uma escola
econômica de onde surge um pensamento sistemático: toda
riqueza é proveniente da terra. Na sociedade escravista e feudal, a
riqueza vinha da terra. No capitalismo não. Criou uma díade, um
antagonismo entre riqueza natural e riqueza artificial. Quesnay
impõe o argumento de que o Estado devia perseguir toda e
qualquer forma de riqueza artificial e subsidiar toda fonte de
riqueza natural. Significa dizer que política econômica de Estado é
política econômica para a terra. Demonstrou com um livro
chamado Tableau Économique. É uma das altas tentativas de se
criar um fluxograma que explique como se constrói a riqueza.
Explicou por que a única riqueza germinativa é a da terra, e
defende que a riqueza urbana é artificial e estéril. Daí as forças do
campo deveriam pressionar o Estado para criar uma política
econômica voltada para a terra.

O feudalismo não teve como sobreviver mais a não ser


por controle tirânico. Quem a controlava era a nobreza decadente,
que perdeu o vínculo com a terra. Passou a ter que ocupar as
instâncias jurídicas e políticas para garantir o status quo. Isso
significava fazer concessões. Veio a nobreza togada, a nobreza da
terra, que não queria deixar o mundo se transformar.

Por isso que encontramos um iluminista italiano em


estilo razoavelmente francês chamado Cesare Beccaria. Passou
grande parte da vida preso. O próprio Beccaria disse que o juiz
deve fazer tudo, menos interpretar a lei. Interpretava sempre em
desfavor da verdade e da justiça. Em vez disso, defendia que o juiz
deveria aplicar a lógica formal de Aristóteles, ou seja, aplicar a lei
mecanicamente ao caso concreto sem dar a mínima opinião sobre
ele.

Houve um contemporâneo de Beccaria chamado Pietro


Verri que o acusou de ter copiado duas ideias postas no livro Dos
Delitos e Das Penas. Escreveu um clássico chamado Observações
Sobre a Tortura. Demonstrou a existência da tortura no
procedimento judicial. “O juiz aplica uma fórmula para que a
verdade transpareça.” Descrevia o braço armado do Estado como
instrumento de tortura, pondo o acusado no cavalete, içando-o até
30 metros; assim a verdade transpareceria. Depois de ter estado
nas alturas, ao descer, o acusado dizia: “mas qual é mesmo a
verdade que Vossa Excelência quer que eu diga?” E subia
novamente. Mais 30 metros e, então, o sujeito era solto. Na ata
das audiências, ficava escrito: “por não haver mais nada,
determinei que seu cadáver fosse retirado do pátio.” Não havia
garantias processuais.

O antigo regime é expressão do patrimonialismo. A


esfera pública é privilégio, direito hereditário das forças da terra.
Patrimonialismo significa uma herança que se difunde no mundo,
chegando a Portugal e vindo até o Brasil. o Brasil é inserido na
história perifericamente num instante em que se faz uma
transição do feudalismo para o capitalismo, mas o signo sobre o
qual o Brasil é construído é bem mais feudalista. “Você sabe com
quem está falando?”

“O patrimonialismo deve ser vencido pelo liberalismo!”


Isso se pregou. Isso significa aplicar a Filosofia da Liberdade.
Onde está a liberdade? Na esfera econômica, na jurídica, na
política, e no mundo dos valores. Que ordem é essa? Emergência
do indivíduo na história, que o mundo moderno está propondo
por meio dessa vocalização dos iluministas, e pretende que o eixo
central da vida se resolva entre indivíduo e Estado. A ordem
jurídica deve girar em torno dessa dualidade e o Estado deve
colocar todo seu poder jurídico e político a serviço do indivíduo,
em torno dessa legenda da liberdade.

A liberdade econômica estava na livre empresa. O


indivíduo é o ator que, por excelência, deve proativamente ocupar
os espaços econômicos do Estado no exercício de empreender.
Detém os capitais, a atitude proativa do mercado é dele, e o
Estado deve ser uma força-tarefa cujo papel é a geração de
segurança, criação de infraestrutura para seu empreendimento e
concessão de subsídios para o ato de empreender. Laissez faire et
laissez passer. Deixe o indivíduo fazer, deixe o indivíduo passar. O
mercado não precisa de intervenção do Estado. O Estado deve
conferir segurança ao proprietário.

Isso contrasta com uma sociedade em que se diz que


tudo é Estado, que não há interesse individual, que o mercado não
tem sua própria dinâmica e as empresas estatais devem fazer a
construção da riqueza, e não os acordos individuais, não as
empresas privadas.

A liberdade do mundo moderno se restringirá à


dimensão econômica. Será problemático porque o ato de
empreender implica posse de capitais, e capital não é visto como
um bem democrático. Não havia a figura do pequeno
empreendedor.

Liberdade jurídica: o que é isso? A ideia de que o


indivíduo é sujeito de direitos, e que sua subjetividade precisa de
tutela e proteção jurídica para que possa estar amparada no poder
jurídico do Estado. Direito, nessa perspectiva liberal, nada mais é
que tutela à liberdade. Liberdade aqui é jurídica, liberdade do
indivíduo como expressão de sua subjetividade. Sujeito de direitos
que está colocado de maneira central na esfera jurígena do Estado.

Liberdade política: que liberdade política é essa? Só a


ética do consentimento manifestada pelo indivíduo, através de
partido e eleição, por meio de votos, pode legitimar a ordem
pública. Assim elegem-se lideres. A ética do consentimento
representa o indivíduo. Ideia bem diferente da que tinha aquele
rei (Luís XIV, 1638 – 1715) que dizia “L’État c’est moi.”

Fidel Castro disse, certa feita: “o regime foi legitimado


no dia da revolução.” Isso é absolutismo, do mais radical possível.
E em pleno século XX. Compreende-se aqui que a legitimação é
um processo diário e permanente que a ordem precisa, e decorre
da vocalização do cidadão, e não apenas num momento pontual,
que seria o dia da revolução à qual Fidel se referia.

Por fim, onde está a liberdade na esfera dos valores e


consciência? No livre exercício do chamado direito de
consciência. O indivíduo tem poderes que são dele, não do
príncipe, de escolher, fazer, falar, cultuar, transitar, se comunicar
e nenhum poder do Estado deve suprimi-lo. Emitir opiniões,
seguir qualquer credo, escrever e publicar segundo sua
consciência, e assim por diante. É o direito de consciência, que
ajudará a fundar o Direito moderno. Paz de Vestfália: não é poder
do príncipe estabelecer a religião do Estado, mas direito de cada
cidadão cultuar ou não seu transcendente de acordo com sua
soberana vontade.

Liberalismo, afinal, é centralidade do indivíduo na


história com a conferência desses poderes: liberdade, autonomia e
vontade. Essa agenda, essa proposta, esse pensamento dos
iluministas é aquele do qual Rousseau diverge. Rousseau é
radicalmente contra o patrimonialismo, e desconfia
profundamente da verdade dos ideais da burguesia. A burguesia
não tem força histórica para, sozinha, derrubar o estabelecimento
feudal vigente. Sozinha não poderia. A cidadela feudal, com seu
monobloco jurídico-político, tem o vigor de uma força,
personificados na bastilha, que não permite à burguesia, sozinha,
controlar a ordem feudal. Seria necessário, para que se derrubasse
a secular ordem feudal, a formação de um bloco histórico que
reúna todas as forças descontentes com o feudalismo, numa só
vontade para que se pudesse, numa ponderação nova, estabelecer
um embate com o antigo regime sobrevivente. Nesse bloco
histórico estão camponeses, os chamados sans-culottes, que eram
radicais trabalhadores urbanos das classes mais baixas, a pequena
burguesia tradicional, as novas classes médias urbanas,
operariado, que não consegue espaço formal no mundo do
trabalho, além da burguesia, novos e decadentes burgueses. Todos
esses se reúnem numa força para fazer o combate ao antigo
regime.

O apelo histórico da burguesia reflete nas três bandeiras


da Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade.
Essas bandeiras a burguesia liberal não inventou, mas eram da
franco-maçonaria. O apelo é propiciar a liberdade, igualdade e
fraternidade aproveitando a todo esse bloco histórico. Por que
vamos todos juntos derrubar o antigo regime? Porque virá uma
nova ordem de liberdade e igualdade. A burguesia manuseou o
pano de toureiro, movendo todos contra o antigo regime, já que
ela não conseguiria sozinha. Por isso Rousseau se antagoniza com
os demais enciclopedistas e com os demais iluministas. Acreditava
que o liberalismo no poder exprimiria a verdade nesses ideais.
Queria combater os antigos privilégios e o novo engano e ele seria
portador da única verdade em jogo. Por isso Rousseau ficou só.
Quando chegou aos seis anos finais de sua vida, radicaliza o
próprio combate dos iluministas. Disse que eram falsificadores da
própria Filosofia e que a única explicação plausível é a
que ele estava produzindo, para que se tivesse a antevisão do que
seria uma verdadeira mudança. Reivindicava para si a condição de
portador da única verdade em jogo nesse processo.

Esse é o caminho que levou Rousseau à afirmação da


democracia social. É a única forma evidente e verdadeira de
vencer antigos e novos privilégios. A única forma de repudiar
antigos e novos aristocratismos, para que o mundo não crie novas
tiranias.

Há um quê de verdade subjacente a Rousseau aqui.


Houve pregação iluminista, que levou à Revolução Francesa,
estabelecendo o caos, e quem retomou a ordem foi alguém que se
tornaria novo tirano: Napoleão Bonaparte. Tirania agora fardada,
agora militar, agora guerreira. “Eu sou o freio da Revolução
Francesa” o que sobrara da revolução seria o que ele consentisse.

Napoleão queria literariamente ser como Rousseau. Até


o estilo foi copiado; Napoleão lia muito as obras do filósofo. Mas,
como político, no poder, foi anti-Rousseau. Tornou-se um tirano.

Olhando para as tiranias do mundo, Rousseau prega a


democracia social, que é antídoto para o falso contrato social:
aquele que derruba uma tirania para constituir outra; que derruba
algumas aristocracias para estabelecer outras.

Falso contrato social é a nova e falsa ordem. A nova


ordem recriará os arcaísmos do mundo de tirania, privilégios,
aristocratismo típico do feudalismo. Rousseau diz que a
propriedade sem função social, a desigualdade que a propriedade
sem função social cria será resguardada pelo Estado a serviço do
arbítrio e não da liberdade. Uma ordem jurídica neotirânica. A
desigualdade mais crua e cruel se estabeleça no mundo e esse
Estado da nova ordem iria criar novas formas de arbítrio, tirania e
opressão. Esse é o falso contrato social.
Por isso que Rousseau dirá um dia: o homem nasceu
bom e feliz; a sociedade o corrompeu e o colocou sob ferro em
toda parte. É a sociedade do falso contrato social. A sociedade do
antigo regime e do falso contrato social. A sociedade o torna
miserável.

Então Rousseau propõe um remédio para tudo isso: o


verdadeiramente novo contrato social. Quem é portador dele? “Eu
estou só!” Disse Rousseau. Disse que os iluministas eram
mercadores da verdade. “Eu quem estou preso visceralmente a
duas verdades.” Criou arrepio: a verdade da Bíblia e a verdade de
Cristo. “Não quero ser mais do que discípulo da Bíblia e de
Cristo.” Foi antagonizado por tudo e todos, inclusive pelos
enciclopedistas com os quais conviveu.

Por isso ele estabelece o que é o escudo ético do novo e


verdadeiro contrato social: produzir “um mundo em que não haja
ninguém tão rico que possa comprar um miserável e ninguém
tão miserável que tenha que se vender a um potentado”. E vejam
que Rousseau está trabalhando com dois nexos frasais
reveladores: comprar e vender. Típico do liberalismo! Esse
comércio não poderia existir. É o fim ético para uma verdadeira
ordem social.

Drama de Rousseau é que ele sinalizava para o mundo


utópico. Ele diz: é o mundo que seria viável se a burguesia fosse
verdadeira. O mundo giraria exclusivamente em torno de
interesses, e teria o antidoto para isso: a democracia social, o
mundo da representação substituído pela participação. Como
haveria participação direta da cidadania organizada? Como
convocar 27 milhões de pessoas para participar das decisões
jurídicas e políticas? Não serviu naquele tempo, mas mas os que
defendem a ideia de Rousseau dizem que ele tem a seu favor, hoje,
a revolução técnica e científica do cybermundo atual. Twitter!

E diz mais: participação. Participação porque toda vez


que a sociedade perde o senso comunitário ela cria uma ordem
fria. É uma profecia. O traço que se coloca é o sentimento de
solidão dentro da multidão e essa epidemia de depressão mundial.

A Vontade Geral de Rousseau


“Ensinar é um privilégio, porque se interfere
no destino das pessoas. Não se pode ocupar a
cátedra para acertar as próprias contas com a
vida.” – Professor Rossini Corrêa
 Vontade geral
o Indivisível
o Inflexível
o Infalível
o Verdadeira
 Objeto:
 Interesse comum
 Vontade geral
o É o meio de
realização da
consciência moral, para
a promoção do interesse
comum no novo
contrato social
 Povo -> vontade geral -> soberania
 Soberano é o povo político na
sociedade organizada
 Governo é o corpo dirigente
intermediário que, como comissário do
povo político, tem por fim realizar os
propósitos soberanos da vontade geral
 Religião civil
o Leis
o Deus
 "Meu Reino não é deste mundo"

Na aula que vem vamos falar em Revolução Francesa na


Filosofia do Direito.

Vamos conversar hoje sobre um dos pontos de maior


sensibilidade de Jean-Jacques Rousseau. Se perguntarmos onde
está a essência do pensamento de Rousseau ela está aqui.
Rousseau tem um determinado objeto finalístico em seu
pensamento que vamos colocar à mesa ao final deste assunto,
amanhã.

Devemos, no entanto, dizer antes de tudo, dizer que o


conceito centralíssimo da Filosofia jurídico política de Rousseau
reside na ideia de vontade geral. É um conceito que tem um quê
de enigmático, intraduzível e de definitivo. A primeira coisa que
Rousseau faz é dizer que a vontade geral diverge da vontade de
todos. São coisas diferentes. Vontade geral é vontade majoritária.
Vontade de todos é o que funda a ideia de totalidade, e se
acontecesse estaria caminhando para o totalitarismo. A ideia de
vontade de todos foram sociedades autoritárias,
concentracionárias, em que uma parte avocou para si o direito de
dizer a vontade de todos. São sociedades tirânicas. Fascismo: tudo
pelo Estado, tudo para o Estado. Assim estaria representada a
vontade total da sociedade. Essa foi a ordem jurídico-política
criada por Mussolini. Não reservou ao cidadão nenhuma vontade.
O mesmo para o comunismo.

Não é, a rigor, isso que Rousseau quer. Rousseau fala


em volonté générale, que é a vontade de um núcleo majoritário da
sociedade, que, numa relação de Estado e sociedade, que é
desenhada dessa natureza, o Estado é verticalmente superior à
sociedade; esse núcleo proposto por Rousseau pretende subverter
essa pirâmide e dizer que, na verdade, esta relação faz da
sociedade o ente superior e o Estado o ente inferior. E o
indivíduo? Rousseau raciocina geométrica e
aritmeticamente onde? A vontade geral não se confunde com
vontade total; o indivíduo é integrante da vontade geral, e
Rousseau tem uma fórmula que tem um quê de esotérica,
enunciada da seguinte forma: “o indivíduo dissolve toda sua
vontade para formação e integração da vontade geral, e sai da
vontade geral individualmente mais fortificado que nunca. Aqui
está a vontade geral, fortifico-a, e, quando me ausento dela, estou
recuperado como indivíduo, fortificado pela energia que o coletivo
despejou em mim.” É uma relação dialética de retro-alimentação.
De tal sorte que Rousseau irá centrar uma questão definitiva para
dizer da justeza do ordenamento jurídico em torno do indivíduo.
Rousseau diz que o indivíduo só deve obedecer às leis que ele
mesmo autorizou, desde a confecção até a efetivação. O indivíduo
é juiz da ordem jurídica, que só deve se submeter às leis que ele
mesmo autorizou, participando da produção, reconhecendo a
legitimidade, introjetando-se no exercício da ética do
consentimento.

O que Rousseau faz, acredita-se, é arquitetar o que viria


a ser a democracia moderna. Tanto que na segunda metade do
século XX emerge a agenda da democracia participativa. É uma
reconceitualização da democracia. O argumento é puramente
rousseauniano. É a devolução de poderes ao gerador do poder.
Quem deve exercê-lo é a sociedade civil. Como se evidencia isso?
Decidindo, de maneira participativa, sobre matéria orçamentária,
interferindo ativamente na eleição das políticas públicas
prioritárias, conferindo à sociedade organizada o poder de
também dizer o Direito, e assim por diante. A sociedade se
organiza e, de maneira organizada, coexerce todos os poderes e os
controla. A questão crucial de Rousseau é o controle do poder pela
sociedade civil organizada. Só assim a sociedade seria organizada.

De toda forma, a casta que controlar o poder irá


imprimir sua vontade em detrimento da vontade geral. Por isso
que se diz que a sociedade civil organizada deve desconfiar
permanentemente do poder do Estado. É absolutamente
intemporal essa regra: quando for possível, o poder do Estado
trairá. Sem controle, restabelecerá sua própria vontade como
substitutivo da sociedade civil organizada. Podemos ter uma
sociedade absolutamente pacifista, fundar um momento de poder
com a ética do consentimento da sociedade, mas se a ela estiver
desorganizada, a casta política poderá conduzir essa sociedade a
uma situação de guerra completamente divergente para com sua
vontade. Onde a democracia avançou o Estado é controlado pela
sociedade. Há controle social sobre o poder do Estado. Contas
públicas, por exemplo. Nada de verbas e atos secretos; tudo isso
são formas de fraudar a sociedade civil organizada. Imagine uma
gestão institucional de um dos poderes da República com atos
secretos: isso vai contra toda a ideia mais elementar de Direito da
sociedade.

Vontade geral é meio de realização. Não basta


proclamar, devem-se efetivar direitos. Existe uma consciência
moral que elege objetos finalísticos como representativos
soberanos maiores, supremos da própria existência da ordem
jurídica e política. A ordem jurídica e política existem para que e
para quem? Para cumprir uma agenda de consciência moral que
promova a vida. O que promove a vida é aquilo que pode se
considerar o interesse comum da sociedade. O que promove a vida
representa o interesse comum da sociedade. Como isso? um novo
contrato social. Ele insurge contra o contrato social estabelecido
de uma perspectiva única, que o professor vai falar depois.

Como se relaciona com esse novo contrato social?


Vamos na aula de amanhã.

Vejamos os atributos da vontade geral.

A vontade geral é indivisível. Significa que Rousseau


rasga com a divisão do poder de Montesquieu. O poder é uno, e o
que existe é uma simples divisão do trabalho. Existe uma unidade
institucional. Não há poderes, mas poder. Diverge da ideia da
existência de cinco poderes, de Benjamin Constant; de três com
Montesquieu e dois com Locke. Por isso chama a vontade geral de
indivisível.

A vontade geral também é inflexível, porque Rousseau


compreende o jogo político e a onda de pressão e contrapressão
estabelecida na sociedade, de tendência e contratendência, de
tempo e contratempo e considera que a vontade geral não pode
ser concessiva, e não pode afirmar sua verdade hoje para amanhã
não ser fiel a ela, ou para amanhã regatear contra sua verdade,
para amanhã tergiversar para com ela. Crédula em si mesmo, a
vontade geral deve ser constante quanto às suas postulações. Não
deve se deixar flexibilizar a ponto de se tornar inconsistente,
desautorizativa de si mesmo. Tem que ser vigorosa e não deve
fazer concessões em torno do essencial.

Segundo Rousseau, outro atributo da vontade geral é


que ela é infalível, porque o mundo é cercado pela dimensão
teológica, e uma das coisas que virá depois de Rousseau e da
Revolução Francesa é a ideia da infalibilidade papal. Tem no
meio religioso, e lá se estabelece e renova o dogma da infalibidade
papal. Rousseau reivindica que a vontade geral é infalível, e essa
ideia em si mesmo é polêmica. A maioria, seja como expressão da
vontade total ou da vontade geral, pode se enganar. Pode ser
objeto de logro e engano. O fato de ser maioria não garante nem
que o ambiente, por si só, seja democrático. Ou teríamos que dizer
que o julgamento de Cristo foi democrático. E alguém lavou as
mãos. Portanto, infalível, desde que não manipulada. Não pode
estar a serviço de poderes espúrios. Essa reivindicação de
Rousseau da infalibilidade da vontade geral é das mais polêmicas,
mas ele quer criar uma referência, um paradigma que, entre 8 ou
80, escolhe 80. E, porque infalível, só pode ser verdadeira. A
lógica formal funciona aqui.

Com este magma, núcleo fundamental, maneja sua visão


de democracia social porque irá dizer que a vontade geral é a
expressão do interesse comum. Por isso tem que fortificar esse
conceito e fazer dele uma força movente de uma democracia, com
poderes sociais agudos, dando o direito de controlar e direcionar o
poder do Estado.

Como?

Povo, com um conceito recuperado agora com J.J.


Gomes Canotilho: o povo político, que traduz os seus anseios mais
profundos por meio da vontade geral, que é um repositório dos
interesses comuns da sociedade. Os anseios do povo político
desaguam nos interesses e fundam a soberania. A soberania é da
sociedade, e não do Estado. Quem é o mandante, a sociedade ou o
Estado? Para Rousseau, a sociedade. O outorgante também é a
sociedade. Nisso consiste a diferença de Rousseau com todos os
pensadores que o precederam. E o Estado mandado, e não
mandante, é a maior mudança do argumento jurídico-político.
Significa dizer que Rousseau quer passar de um modelo A para
um modelo Z. instituir o modelo Z. Por isso soberano é a
sociedade civil organizada e não o Estado.

Quem é o soberano? O povo político na sociedade civil


organizada. É ele quem autoriza a autoridade, para controlá-la. A
autoridade é da sociedade civil organizada. A autoridade da
sociedade é nada mais que um comissariado do povo. O
presidente é um comissário do povo, o legislador, o ministro.
Significa “comissionado pelo”. Essa expressão, que é de Rousseau,
foi recuperada por Vladmir Lenin na Revolução Russa.
Transformou essa expressão de Rousseau em moeda corrente na
realidade político-jurídica na Revolução de 1917.

Governo para Rousseau é um corpo dirigente


intermediário que se define por comissário do povo. Tem
finalidades a cumprir, quais sejam: a realização dos propósitos
soberanos da vontade geral. Aí está a questão. Quais são os
propósitos soberanos da vontade geral? Estabelecer aquele
“mundo em que não haja ninguém tão rico que possa comprar um
miserável e ninguém tão miserável que tenha que se vender a um
potentado” Um mundo em que vai encerrar numa outra legenda,
que é o dever de cada um: amar a justiça. O objeto jurídico é o
primeiro a que Rousseau se reporta. Respeitar as leis, e imolar, se
necessário, sua vida a seu dever. Essa é a legenda áurea de
Rousseau. Esses são os deveres de cada um.

Então esse propósito soberano da vontade geral está


encerrado nas ideias de justiça, leis e dever. E aqui Rousseau fala
em amar, respeitar e imolar como as atitudes necessárias para a
defesa desses signos maiores do novo contrato social.

Quando o novo contrato social se estabelece? Rousseau


então tira uma carta da manga e diz: este contrato social é o que
poderia ter sido feito se a burguesia fosse verdadeira e
comprometida com seu discurso jurídico-político. Como não é,
esse contrato é utópico, no sentido grego e filosófico da expressão.
Significa dizer: é uma utopia, não tem lugar ainda no mundo
concreto. Se o mundo se transfigurar, se os homens se
santificarem, e por isso a questão religiosa é premente e presente
em Rousseau, e se forem objeto de qualificação da consciência,
progressivamente poder-se-á chegar perto deste mundo. Se, e
somente se, eles se purificarem e justificarem, e tiverem mais
próximos de uma nova atitude ética e moral diferenciada. Por isso
ele diz: a legenda final de seu pensamento converge para uma
legenda crística: “meu Reino não é deste mundo”. Não está no
aqui e no agora. Pode ser feito como uma promessa que se
encontra no dever e no progresso moral da humanidade.

Rousseau diz que esse novo contrato social, que não está
feito ainda, precisará ser defendido, porque o filósofo compreende
que o mundo é de embates entre privilégios e direitos. Cada novo
direito que se estabelece é um velho privilégio que se elide, que se
suprime, que se tira de circulação social. Então, para que se tenha
o estabelecimento de um novo contrato social substantivamente
comprometido com o mundo dos direitos, é preciso que o mundo
dos antigos e dos novos privilégios seja vencido. Como os
privilégios ameaçados reagem à emergência de novos direitos?
Reagindo da maneira mais absurda, e, muitas vezes, recorrendo à
barbárie para que novos direitos não se estabeleçam. Vejam no
mundo atual o líder líbio Muammar Gaddafi, por exemplo.
Representa o mundo dos privilégios na Líbia. 

Rousseau sabe da existência de pessoas apegadas aos


privilégios. É preciso então que se estabeleça uma religião
civil para defender o novo contrato social sob pena de ser
consumido na voragem da reação dos antigos e dos novos
privilégios contra o advento e afirmação do novo contrato social.
O novo contrato social só permanecerá e se desenvolverá se
houver a blindagem de uma religião civil, do cidadão, defendendo-
o, protegendo-o para que não seja afinal destruído pelos antigos e
novos privilégios. Por isso é necessário que se fomente o
desenvolvimento e a afirmação aguda e substantiva de uma
religião civil, que é consciência e atitude individual e coletiva em
defesa da vontade geral, em defesa no novo contrato social.
Defende Rousseau que cada cidadão seja defensor da nova ordem
frente aos antigos privilégios. Afinal, a vontade geral orquestrar a
si mesma como um instrumento de apoio e defesa ou será
derrogado, elidido, revogado, para que sobrevivam os antigos e
novos privilégios.

Por isso Rousseau aposta todas as fichas na formação


dessa consciência moral e cívica que personifique a religião civil,
e, assim, que se defenda afinal o novo contrato social, sob pena de
seu desaparecimento.

No jogo entre privilégios e direitos, a maior


possibilidade da sobrevivência de direitos reside na vigorosa
afirmação de uma religião civil que realiza a blindagem do novo
pacto social.

Se estabelecido, qual será o critério de verdade desse


novo contrato social? Nisso Rousseau põe outra carta à mesa, que
é puramente jurídica, que mostra o apreço que o Direito tem: o
critério de verdade do novo contrato social, em sua afirmação,
reprodução e desenvolvimento é promover uma transição de um
mundo multimilenar em que os homens se colocaram acima da
lei para um mundo novo em que a lei esteja colocada acima dos
homens. Isso porque em todas as épocas da humanidade os
homens pretenderam se colocar acima das leis. As leis são
excelentes... para os outros. As ressalvas para transgressão, cada
certeza de impunidade representa uma aspiração e uma evidência
de que em todos os tempos a pretensão dos donos da vida foi a de
se colocar acima das leis, e cumprirem o postulado romano, de
que o rex, acima da lex, usa-a como instrumento de controle e
punição do populus. Rousseau estabelece que o critério de
verdade é aquele. Se se estabelecer um mundo em que os homens
estejam efetivamente subordinados quanto à sua consciência e
suas atividades às responsabilidades que derivam da lei, esse
mundo será novo. Se, neste mundo, existirem aqueles que tenham
porte para solapar leis, este mundo não será novo. A maior
revolução da história da humanidade é uma ordem em que todos
estejam subordinados à lei. Não haja mais aqueles que tornem sua
vontade superior à vontade das leis.

Qual a vontade majoritária? Das leis, ou dos tradicionais


ocupantes do poder? A das leis, que deve subordinar e disciplinar
a todos, direcionando as pessoas, enfim, fazendo com que não
haja margem para permissão para que alguns resistam com sua
vontade acima das leis. Não é possível uma sociedade democrática
com uma vocalização que diz: “para os amigos, tudo; para os
inimigos, a lei.” Frase de Agamenon Magalhães, aliado de Getúlio
Vargas. O poder tudo pode; se não pudesse, não seria poder, disse
Agamenon. Lógica formal absolutamente falsa. Rousseau
estabelece esta clivagem: se o mundo for novo, todos estarão com
as vontades subordinadas à da lei. Se for uma reinvenção do
arcaico, haverá promiscuidade entre pessoas e poder e alguns se
colocarão acima das leis.

Rousseau diz que este mundo que propõe terá sua


evidência quando os homens estiverem mais próximos de Deus.
Quando avançarem em sua consciência moral, em sua purificação,
e só então será possível. Por isso se aproxima da legenda crística:
“meu Reino não é desde mundo”.

Por isso o pensamento iluminista está próximo: chegou


ao rigor com o eclipse do Estado-nação soberano. A ascensão
histórica de agora é a econômica-jurídica-política das
comunidades de nações. O mundo iluminista encontrou seu fim
aí.

A questão da Revolução Francesa é a que desafia a


humanidade. Suas três bandeiras, liberdade, igualdade e
fraternidade, foram fraudadas e a principal fraude se vinculou ao
valor da fraternidade. O valor liberdade foi reduzido à liberdade
de mercado; o de igualdade foi reduzido à igualdade formal e o de
fraternidade foi totalmente esquecido. Por isso que a ideia de
estabelecer uma nova agenda neste terceiro milênio para o mundo
na esfera jurídica representa o desafio de fazer um mundo em que
justiça e liberdade se encontrem, pois, no socialismo real, a
liberdade morreu. No capitalismo selvagem, a justiça foi morta. O
que se quer hoje é a terceira via, sob o signo maior
da solidariedade. Isso tem tudo a ver com o argumento de
Rousseau fundado na realização de uma consciência moral
comprometida com a promoção da vida. Por isso que a agenda de
Rousseau sobrevive. Rousseau foi ecologista, apólogo da
democracia participativa, defendeu a liberdade, não a considerou
discorde da igualdade, e também foi defensor da solidariedade.
Por isso o sentido especial deste propósito:

1. Amar a justiça,
2. Respeitar leis, e
3. Imolar, se necessário, sua vida em seu
dever.

Eis a questão!

A Religião Civil de Rousseau e a Declaração dos Direitos do


Homem e do Cidadão

 Jurar x abjurar
 Pena de morte
 Vida
o Justiça
o Lei
o Dever
 Equilíbrio social na igualdade possível
 A Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão

Vamos explicitar os objetos finalísticos de Rousseau.


Rousseau parte de um princípio tocando numa corda de alta
sensibilidade. É o princípio de que a igualdade é moralmente
desejável, uma realidade como que impositiva para quem
pretenda ordenar de maneira diferenciada a vida social. Rousseau
parte dessa constatação: uma coisa são as desigualdades naturais,
e outras são as desigualdades sociais. Uns são brancos, outros
pretos, uns altos, outros baixos. Contra essa desigualdade, o que
há por fazer? Nada. Entretanto, outra coisa, a juízo de Rousseau,
são as desigualdades sociais, que resultam de hierarquias e
construções e estabelecimentos humanos. E, porque são
construções e estabelecimentos humanos, são passíveis de
mudanças, intervenções e reformas. O que é moralmente
desejável é uma diminuição equitativa das distâncias sociais. Isso
porque ele não tem vínculo nenhum com os privilégios da
nobreza. Está desembaraçado dos compromissos que teve
Montesquieu, Voltaire e Hobbes. Vivia a aventura do mundo.
Antecipou a locução de Karl Marx no século seguinte: quando não
se é nada é que se pode ser tudo. Como Karl Marx irá traduzir
isso? Quem não tem nada a perder a não ser sua miséria é que
pode promover a mudança social. Quem tem a perder não faria de
forma alguma essa aventura.

Sabemos desde Platão, com o Mito da Caverna, que o


homem prefere a certeza na escravidão à liberdade na aventura.
Rousseau propõe intervenção nas desigualdades, que são imorais.
Não propõe um igualitarismo absoluto como sonhado por Marx,
mas promove a diminuição das distâncias sociais. E, ao propô-las,
propõe uma nova igualdade possível: a que resulte numa
sociedade em que não haja ninguém tão potentado que possa
comprar um miserável, e ninguém tão miserável que tenha que
se vender a um potentado.

O que Rousseau propõe é uma construção social que se


traduziria no século XXI de crescente ampliação das classes
médias. Em certo sentido, é a esta é a sociedade americana.
Ampliou consideravelmente as classes medias no século XIX.
Rousseau considera que essa é uma forma de diminuição das
desigualdades sociais, a constituição de uma pequena burguesia
rural e urbana. Aposta na média propriedade, nos médios
serviços, na democracia quanto à propriedade no campo e na
cidade para o estabelecimento de uma sociedade de classe média.
Com isso ele ambiciona a diminuição das distâncias sociais,
estabelecendo um novo equilíbrio social, rompendo com a lógica
dos párias e dos potentados, do grande abismo social,
estabelecimento da média propriedade democrática rural e
urbana. Quanto mais propriedades, melhor, na visão de Rousseau,
assim se dá fundamento ao novo equilíbrio social.

Objetos finalísticos em Rousseau: vita nova, como diria


Dante: através de uma cidadania organizada que imprima em
cada cidadão essas legendas: amar a justiça, respeitar as leis
e imolar, se necessário, sua vida a seu dever. Esse é o
objeto finalístico de Rousseau.

Como se defende esse novo contrato social? Através,


da religião civil. Um esforço moral e cívico que conquiste
consciências, que conquiste cada cidadão e vincule cada um a esse
espírito. Entretanto Rousseau carrega o veneno porque, no intuito
de defender o Contrato, lança mão de coisas perigosas: quem jurar
defender e abjurar da defesa, o destino deverá ser a pena de morte
por trair o Contrato Social. Quando diz isso, cria um instrumento
de alta periculosidade porque o detentor do poder poderá se servir
desse expediente para mantê-lo. Matar a democracia para mantê-
la? Seria mais ou menos isso.

Robespierre disse que Rousseau escreveu o evangelho da


nova ordem social. A obra Do Contrato Social de 1772 passou
longe dos aparelhos do Estado. A obra “Emilio” ou “Da Educação”
fez sucesso imediato. Dez anos depois foi condenado à morte, por
volta de 1782, quando Do Contrato Social já será um sucesso.
Haverá reedições francesas, holandesas, alemãs, inglesas,
italianas, espanholas e portuguesas. Será o inspirador de certos
segmentos da Revolução Francesa que irá acontecer em 1789, que
é o embate entre a nova ordem e o antigo regime; mas a nova
ordem não irá equacionar essas questões. A França viverá uma
década de total turbulência social, econômica e política
consequente da revolução. Entre 1789 e 1799 o caos se estabelece
na França. A alta burguesia financeira e industrial será agente da
revolução. Os girondinos serão senhores da revolução. Os mãos-
de-ferro foram as forças que fizeram a revolução com espírito
mais democrático do que a alta burguesia. Sans-culottes,
burgueses menores, nobres decadentes, proletários, afinal,
reunidos, fizeram a revolução pela burguesia. O poder lhes foi
entregue por essa força histórica e, daí nasceria, em tese, um
mundo de liberdade, igualdade e fraternidade.

Foi necessário um complexo social para que o antigo


regime sucumbisse.
Um decreto da Assembleia Nacional ainda em junho de
1789 expropria toda a propriedade feudal. Dizia: “a partir deste
instante, toda propriedade feudal passa a ser pública, do Estado,
ficando proibidas as percepções de todas as rendas que
constituíram o feudalismo.” Significa dizer: o barão da terra é
rentista, que percebe rendas, e todas entram na ilegalidade. Este
decreto da Assembleia Nacional manda o feudalismo para o
museu da história. E, quando expropria a propriedade que é o
objeto da maior tutela desde o Direito Romano, ela é
simplesmente expropriada. A propriedade feudal foi transferida
pelo Estado para a alta burguesia. Não deu outra coisa que não
fosse um mar de sangue.

A nobreza francesa que não sucumbiu à guilhotina se


espalhou para o mundo. Foram para a Inglaterra, Alemanha e até
para o novo mundo. Quando caiu a monarquia em 1792, que
resistiu tanto porque a alta burguesia tentou fazer uma
composição de interesses e sustentou o rei por esses três anos
desde julho de 1789. Os girondinos então caem, e todos vão para a
guilhotina.

Foram atrás do cadáver de Rousseau e levaram ao


Panthéon. É o espaço na França onde se enterraram os que
exceleram em sua história. Robespierre foi quem liderou essa
colocação de Jean-Jacques Rousseau no Panthéon Sorbonne e
dizia que ali estava sendo celebrado o "escritor do novo evangelho
da humanidade".

Robespierre foi depois guilhotinado, e em seguida houve


um terceiro momento da Revolução Francesa, com luta sangrenta
entre Jacobinos e Girondinos de 94 a 99 do século XVIII, quando
se dá a ascensão definitiva de Napoleão Bonaparte. Napoleão era
demasiado jovem quando da Revolução. Adolescente, era
obcecado em Rousseau. Até escreveu obras tomando o mesmo
estilo. Mas, na vida ativa militar, foi um anti-Rousseau. Filtrou da
revolução o que lhe convinha.

A Revolução Francesa realiza a primeira proclamação


dos direitos. Proclamam o universalismo em 1789, com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e ajudam a
tornar o universalismo positivado em 1948, com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. É o percurso do mundo dos
direitos. Depois entendeu-se que não basta proclamar, mas deve-
se partir para a efetivação, para a positivação. Direitos da criança
e do adolescente, do consumidor, todos vieram da Organização
das Nações Unidas.

O documento jurídico da Revolução Francesa sintetiza o


que será a ordem jurídica a partir daí. É sobre ele que vamos falar
agora.

A Declaração dos Direitos do Homem e do


Cidadão

Vamos agora ler o preâmbulo da Declaração dos Direitos


do Homem e do Cidadão, lembrando que em 1793 uma mulher foi
guilhotinada por ter escrito uma Declaração da Mulher e da
Cidadã. Olympe de Gouges (1748 – 1793). Dizia que a revolução
era patriarcal e não democrática. Para isso, ela redigiu um texto
irônico, com normas como:

 Esta revolução só será efetivada quando as mulheres se tornarem completamente cien


 Homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Distinções sociais só poder
 A mulher nasce livre e permanece igual aos homens em direitos. Distinções sociais só
 Todos os cidadãos, inclusive as mulheres, são igualmente admissíveis em todas os l
nenhuma outra distinção que não seja suas virtudes e talentos.

Declaração escrita duas semanas depois da revolução. Tem-se


aqui um Código jurídico densamente articulado, que anuncia o
que será a ordem jurídica da contemporaneidade.

Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do


Cidadão:

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esque
infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos natu
constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar seus direitos e deveres; de m
qualquer momento confrontados com o fim de toda instituição política, sejam mais respeitados, para que as recla
incontestáveis, voltem-se sempre para a manutenção da Constituição e a felicidade geral.

Ignorância, desprezo e esquecimento do homem são as


únicas causas das desgraças públicas. Daí resolveram apresentar
os direitos naturais. Significa que a Revolução Francesa não foi
feita em nome de nenhum direito positivo. Até o dia, tudo
apontava para a vitória do Direito Natural, mas verteu-se para o
Direito Positivo. Depois de chegar ao poder a burguesia vai jogar
ao mar o Direito Natural e estabelecerá esse ciclo do positivismo
jurídico que será selado, no século XX, por Hans Kelsen. Até o dia
da revolução e da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, a burguesia age segundo o Direito natural. E aqui ela se
reporta à ideia de direitos naturais inalienáveis e sagrados do
homem. Por quê? Porque precisa conferir significação maior ao
fato que irá afirmar e que essa nova Declaração tem um quê de
divino, pois precisa-se de um fundamento para a ordem jurídica, e
a revolução busca resolver a ordem jurídica com o mando do
religioso. A ideia de Estado laico tem que ser relativizada, porque
todos os documentos apontam para a esfera do divino para sua
afirmação.

Primeiro direitos, depois deveres. Até então havia


súditos, que só experimentavam direitos com favor ou graça do
príncipe. A ideia aqui foi antepor direitos aos deveres.

Felicidade de todos: mote aristotélico! Ressonância


remota aqui desembarca. A ideia de que a felicidade é o objeto
finalístico de tudo.

Preservar a Constituição: a Constituição passa a ser o


objeto jurídico de eleição da nova ordem do Estado moderno que
se fará Estado Constitucional. Ter Constituição será uma grande
diferença. Quem não tiver Constituição será bárbaro.

Vejam ainda que os atos dos Poderes Legislativo e


Judiciário estão confrontados porque se confere legitimidade a
cada cidadão para verificar se tais atos são compatíveis ou não
com as finalidades da ordem jurídico-política. É direito da
cidadania passar um filtro na inadequação de todo e
qualquer todo e qualquer ato do Poder Executivo. Direito de pedir
contas aos dois poderes pela primeira vez na história da
humanidade.

Princípios simples e incontestáveis: a nova ordem seria


tão transparente que até um poste poderia saber seus direitos.
Isso ensejou a que Napoleão dissesse que o seu Código seria
límpido, claro, breve no enunciado, assim ter-se-ia uma clara
afirmação do direito. Mas Direito algum jamais foi simples assim,
infelizmente.
Preservar a Constituição e a felicidade de todos.
Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e declara...

Por conseguinte, a Assembleia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser supremo, os segu

Auspícios do Ser Supremo: Deus é o fundamento, que se


veste com o manto da sacralidade. Ainda se fala em Estado laico...
é o novo Direito recorrendo ao fundamento de validade teológica.

Art. I

Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse

Os homens, e não os franceses. Nascem e permanecem


livres e iguais. Proclama-se a isonomia jurídica pela primeira vez
na história da humanidade. Essa foi provavelmente a maior
revolução dentro da revolução burguesa. Há duas igualdades aqui:
uma, com dimensão formal e abstrata, e outra, com dimensão real
e concreta. Esta última é a igualdade social e econômica. A
igualdade formal e abstrata é a igualdade jurídica. A humanidade
lutava por essa igualdade jurídica desde que existe. Quem a
proclama e quem a estabelece é a Revolução Francesa. Demanda
mais igualdade social e econômica, mas isso é outro capítulo.
Importante foi a conquista da igualdade jurídica formal abstrata.

Pequeno comentário: “Todos os homens são iguais


perante a lei, mas desiguais perante o juiz.” ²

A igualdade jurídica é uma conquista exponencial da


humanidade e o maior produto da Revolução Francesa. A partir
de então não se terá mais nenhuma legitimidade para que se
reivindique o nascimento desigual e permanência nesse estado.

Distinções sociais só podem ser baseadas sobre a


utilidade comum: isso tem a ver com o pensamento igualitário de
Jean-Jacques Rousseau? Significa que não cabiam mais
privilégios, consanguinidade, precedência, e o que quer que fosse.

Art. II

O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a
Direitos novamente referenciados como naturais. Só há
ordem jurídica para a tutela e afirmação dos direitos naturais
imprescritíveis do homem. Não há outro fundamento finalístico
ou outra justificativa para ordem jurídica e política. Ou é um
serviço aos direitos imprescritíveis e naturais do homem, ou não
tem nenhuma justificativa para existir. Liberdade proclamada por
John Locke, propriedade também, segurança por Thomas
Hobbes, e resistência à opressão por São Tomás de Aquino no
mundo medieval e Locke na modernidade.

Encontro pleno da Filosofia com o Direito.

Art. III

O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma instituição nem nenhum indivíduo pode exerce

Que da nação declaradamente não decorra: o que se está


dizendo é que entre nação e Estado o fundamento de todos os
poderes reside na nação e não no Estado, e nenhum indivíduo,
corporação, casta pode se assenhorar do poder do Estado para
reclamar poderes autônomos, legitimação autônoma, autoridade
autônoma. Ou deriva da nação, ou não tem nenhuma
legitimidade. Quem disse que a sociedade civil era detentora da
soberania? Rousseau. Ela deveria desconfiar a todo o momento do
poder do Estado. A verdade não é que o Estado é mais relevante
que a sociedade, mas o contrário.

O fundamento decorre declaradamente da nação.


Inspiração clara de Jean-Jacques Rousseau.

Art. IV

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais de cada hom
o gozo dos mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei.

Vejam, aqui, a relevância e ousadia do art. IV. Diz o que


é liberdade. Isso se tornou um princípio jurídico. Inspiração de
tudo isso é de Kant, autor dessa pérola de sabedoria difusa da
humanidade. Teu direito termina onde o meu começa. Tu queres
ouvir música, mas eu quero dormir. A música é possível até certa
hora. Harmonia jurídica tem que se estabelecer aqui. a
orquestração da convivência da sociedade tem que se dar pelo
Direito.
Art. V

A lei só pode proibir as ações prejudiciais à sociedade. Tudo o que não for proibido por lei não pode ser impedido, e ning

Princípio da reserva legal! Está ancorado aqui na


Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Anuncia toda a
ordem jurídica da humanidade na pós-modernidade. O objeto
central da normatividade social passa a ser a lei. Lei, e não
equidade. ¹

No silêncio da lei, há um permissivo. A ordenança legal


gera a obrigação.

Art. VI

A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer para sua formação, pessoalmente ou
que protege, seja aos que pune. Todos os cidadãos sendo iguais aos seus olhos são igualmente admissíveis a todas a
outra distinção, além de suas virtudes e seus talentos.

A lei é a expressão da vontade geral. Volonté générale de


Jean-Jacques Rousseau. Aquela efetivação da consciência moral
que Rousseau prometia ganha um emblema. É a lei. todos os
cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de
seus representantes. Democracia representativa de John Locke.
Devo ser obrigado a obedecer às leis de cuja elaboração participei.

Deve ser igual para todos, seja protegendo, seja punindo.

Lugares empregos públicos: privilégio feudal tem


formalmente um ponto final aqui. Todos os cidadãos estão
igualmente habilitados para todos os lugares e empregos públicos,
conforme suas capacidades e, sem outra distinção, seus talentos.
Estabelece-se legalmente o princípio do mérito, que será parte da
vocalização dos liberais ingleses, sobretudo, de John Locke a John
Stuart Mill (1806 – 1873). Princípios liberais em que os liberais
pugnaram pela educação pública e gratuita, pela igualdade.

Art. VII

Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as f
executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer

Vamos por partes. Nenhum homem pode ser acusado,


detido ou preso... o que é isso? Devido processo legal! Quem o
defende no pensamento jurídico iluminista? Cesare Beccaria, em
Dos Delitos e Das Penas. Cesare desembarca aqui. Foi como sua
monografia ao final do curso! Tinha 22 ou 23 anos quando
escreveu a obra!.

“Aqueles que expedem, fazem executar ou executam


ordens arbitrárias” significa que ninguém pode falar que estava
somente cumprindo ordens. Ordem injusta e arbitrária que
configura crime contra a humanidade foi feita para ser
desobedecida.

Que princípio temos in fine? Imagine alguém com prisão


decretada que não se entrega. Este sujeito está praticando o crime
de desobediência.

Art. VIII

A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude
aplicada.

Princípio da anterioridade. Ao mesmo tempo, quem


inspira esse artigo é Beccaria. Busca a ponderação entre delito e
pena, o humanismo penal e  evitar penas despóticas. A
anterioridade é inspiração de Thomas Hobbes.

Art. IX

Todo homem é presumido inocente até ser declarado culpado. No caso de se julgar indispensável sua prisão, qu
severamente reprimido pela lei.

Princípio da presunção de inocência. Quando a ordem


jurídico-política se desenvolveu, esse princípio se tornou a regra
de ouro. Em outros lugares, a regra consuetudinária é a outra:
presunção de culpa. Por isso a herança portuguesa entre nós se fez
revivida.

Vamos ver só até o X hoje:

Ninguém deve ser perseguido por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não atrapalhe a ordem

Direito de expressão. A inspiração vem de John Locke


com As Cartas sobre a Tolerância. A transformação do princípio
da tolerância em valor jurídico, e a defesa da liberdade de
consciência e religiosa. Tudo isso é puramente Locke. Mais
proximamente dos círculos franceses, esta ideia remente ao Barão
de Voltaire, que, na esteira de Locke, escreveu um livro chamado
Tratado sobre a Tolerância. Mas é herdeiro das Cartas Sobre a
Tolerância de John Locke nisso.

Art. XI:

A livre comunicação de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois fa
dessa liberdade nos casos previstos pela lei.

Significa dizer que o direito de opinião está


necessariamente vinculado ao direito de circulação das ideias.
Direito de comunicação. Livre comunicação do pensamento. É
crucial que numa sociedade, sobretudo na sociedade moderna,
que é a primeira que estabelece um fundamento das suas
instituições numa realidade chamada opinião, a regra da
afirmação do mundo moderno, burguês e capitalista é que se
estabelece uma grande legenda, da opinião: a opinião governará o
mundo. Dirigirá as instituições econômicas, sociais, políticas e
jurídicas da sociedade. Portanto a humanidade precisa de quê? De
educação, cultura, e libertação da razão, portanto das ideias que
daí derivam. Daí liberdade de comunicação.

O homem não apenas é receptor de signos e sinais, mas


também emissor deles. Essa emissão é que se legitima na
modernidade. Daí o que Voltaire disse: minha função é dizer o que
penso, e deve ser objeto da mais ampla liberdade.

A descoberta da imprensa, por Gutemberg, permite


transformar o conhecimento em um objeto móvel e portátil, e, em
tese, estar com qualquer um.

Um dos direitos mais precisos do homem, salvo


responder pelo abuso. Significa dizer: aqui pode-se dar o
fenômeno da colisão de direitos. Liberdade de informação pode
destroçar o direito à imagem, à intimidade e à honra, previsto no
art. 5º, inciso X da Constituição Federativa do Brasil.

Em nome da liberdade de informação muitas vezes se


dilacera, incinera o direito à imagem de outrem, e, quando não é
veraz, o estrago está absolutamente feito e é praticamente
irreversível. Lembremo-nos do episódio da Escola Base de São
Paulo.
A delicadeza dessa questão reside precisamente nessa
harmonia do direito à informação, com as garantias individuais e
coletivas. Essa ordem jurídico-política da modernidade é que
investirá o cidadão de poderes individuais, e de cautelas, inclusive,
no tocante a esse universo imaterial.

O abuso enseja as leis de imprensa no mundo inteiro. A


punição, a disciplina, a previsão legal de punibilidade do exercício
exacerbado e irresponsabilidade desse direito, sem o qual não
existe sociedade livre. O que é uma? É uma que, entre outras
coisas, está fundada na liberdade de opinião. Assim se exerce
crítica e controle.

Dizem que quem vazou a informação da evolução


patrimonial de Antônio Palocci foi o próprio fogo amigo. E que o
grupo de José Dirceu teria vazado para a mídia. Se não for
verdade isso, terá sido uma mídia investigativa que teria
denunciado, sozinha, sem o concurso dessa facção. Essa situação
na qual não foi vivenciada nenhuma ilegalidade aparentemente
segundo o Procurador-Geral da República, mas é altamente
problemática do ponto de vista moral. E aqui temos mídia
investigativa, Temos liberdade de comunicação e controle
democrático dos poderes.

O professor é colecionador de livros. Um dia achou um


de Affonso Arinos de Melo Franco, orador oficial na cerimônia de
promulgação da Constituição da República de 1988. Professor de
Direito Constitucional e autor de uma grande obra de direito
público valiosíssima. Liberdade de imprensa: o estabelecimento
de uma lei democrática de imprensa no Brasil. Foi senador até 66,
e voltou a ser no fim da vida. Tinha uma dedicatória: Aliomar de
Andrade Baleeiro. Em testemunho desta causa quase perdida: a
causa da liberdade de imprensa. Porque as sociedades passaram a
ter controles concentracionários e opressivos, porque é da
imprensa silenciada que nascem as possibilidades múltiplas da
corrupção.

Com a Lei 5250/67, a folha tinha que publicar


fragmentos dos Lusíadas.

Art. XII:

A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é instituída pela vantagem de todos
Benefício de todos, e não para conveniência particular:
acontece demais hoje em dia. Onde as instituições políticas e
jurídicas estão subdesenvolvidas, a força pública é instrumento de
benefício particular. General Golbery do Couto e Silva (1911 -
1987), um dos fundadores do SNI, tinha um sitio em Luziânia
onde estava sua biblioteca. Um dia a imprensa, desamordaçada,
denunciou que ali havia um destacamento da Polícia Militar desde
64, guardando o sitio e a biblioteca, que estabelecia para a
segurança do patrimônio literário. Em 10 anos do início do regime
ele tinha trazido as teorias geopolíticas para o Brasil. Queria
colocar patrulhas da Polícia Militar 24 horas por dia em sentidos
circulares opostos onde havia a mansão dele. As forças públicas na
história do Brasil são tidas e havidas como instrumento do
exercício de poder. Os governadores a usam segundo
conveniências particulares. Existem, na verdade, para garantia
dos direitos do homem e do cidadão. Por isso o benefício de todos.
E, por isso, a justificativa candente de sua instituição.

Os governadores do Brasil costumam se referir às Polícia


Militares como “a minha polícia”. Daí a utilização política da força
pública.

Art. XIII:

Para o sustento da força pública e para as despesas da administração, uma contribuição comum é indispensável. Ela
faculdades.

Manutenção e despesas. Contribuição comum.


Igualmente de acordo com as posses. Quem não tiver posses está
abrigado pela isenção. A redação não é a melhor, porque enseja
um aparente paradoxo.

Um problema é: uma coisa é imposto de grandes


fortunas, de renda propriamente dita, e outra é imposto que
incide sobre salário, e sai no contracheque de cada um. Não é
razoável, porque taxa, como se fosse renda, algo que na verdade
não é renda. Tecnicamente, renda é: alguém é rentista, e vive de
rendas. Não é como alguém que vive de salário. Quem vive de
rendas vive de aplicações, de patrimônio consolidado, que é posto
para render. Rendas passivas. Alguém pode ser rentista por ser
titular de dez mil apartamentos. Neste caso se justificaria o nome:
imposto sobre a renda. Mas imposto sobre salário não se justifica.
Usar a expressão “famílias com renda de até três salários mínimos
foram as que mais adquiram produtos da agricultura local...” é
uma grande impropriedade, uma convenção absolutamente
imprópria. Tanto que nunca existiu imposto sobre assalariados até
1943 no Brasil. Foi em meio à guerra que Vargas estabeleceu o IR
incidindo sobre o salário.

Isso é uma questão, além do que a justeza do sistema em


si mesma é uma coisa que tem sido questionada no mundo todo
porque, em casos como o brasileiro, quem mais tem patrimônio
menos paga. De fato. É uma pirâmide invertida. No mundo, faz-se
justiça fiscal isentando segmentos mais vastos da população.
Nesse projeto de justiça, cabe também a chamada justiça da renda
mínima, em que também se percebe uma renda que a sociedade
lhe confere. Atribuição de um mínimo de renda, garantia de
participação nos equipamentos sociais, e isenção de contribuição
tributária.

Art. XIV:

Cada cidadão tem o direito de constatar por ele mesmo ou por seus representantes a necessidade de contribuição públic
cota, a estabilidade, a cobrança e o tempo.

Necessidade da contribuição pública, controlar seu uso e


determinar seu vulto. Distribuição, cobrança, e duração. CPMF.
Foi instituída a contribuição com o propósito de fazer uma
revolução na saúde. Estabelecida a contribuição sem a oitiva da
sociedade, ato unipessoal, com poder concentracionário, é desvio
absoluto de finalidade, e controle da vida do cidadão.

E, depois, quando se diz apurar por meio de seus


representantes, temos a questão da democracia representativa.
Seria tarefa dos representantes a permanente discussão sobre a
instituição, uso, distribuição, cobrança, etc. Daí foram instituídos
os tribunais de contas. São órgãos do Poder Legislativo,
amparados no Art. XIV da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Ela que ensejou o estabelecimento dos tribunais de
contas do mundo.

Drama dos tribunais de contas: sua composição política.


O que os tribunais de contas viraram, entre nós, foram gaiolas
douradas para onde o poder remete os amigos. Quando houve a
queda de um governador do Distrito Federal, ele havia acabado de
nomear um conselheiro de contas. Mas é de se supor que, em
sendo procedentes as imputações que a ambos foram feitas, entre
eles havia um acordo de cumplicidade. Por isso essa questão
delicada da composição política dos tribunais, todos, inclusive os
de contas. O que vale para os tribunais dos estados vale também
para os tribunais de contas.

Art. XV:

A sociedade tem o direito de exigir contas a qualquer agente público de sua administração.

Direito de solicitar prestação de contas de cada agente


público de sua administração. Contas públicas têm que ser
abertas. O professor assessorou uma pessoa que, no Paraná foi
secretário do interior e justiça com 23 anos. José Richard era o
governador daquele período. Um dia comentou que tomou posse
10 horas da manhã, tinha larga agenda, mas resolveu, da posse, ir
diretamente para a secretaria, sem participar de qualquer
solenidade. Chegou lá e foi subindo, até que descobriu onde era a
cadeira do secretário, sentou onde ficaria 4 anos, quando uma
senhora de 160 kg entra na sala, carregando papéis, dizendo que
eram notas de empenho para se assinar imediatamente. Ele nunca
tinha ouvido falar em nota de empenho! Não sabia o que era
contabilidade pública, nunca pensara em despesas públicas.
Extraordinariamente jovem. Há pessoas que ficam 30 anos como
chefe de gabinete e têm o savoir-faire (know-how).

É a alma da democracia: dinheiro público é sagrado.


José de Almeida, estadista, romancista, ministro do TCU, senador
da República, embaixador no Vaticano, enfim, o chamado vice-rei
do Norte e Nordeste, disse uma coisa que o Brasil fez pela metade:
o homem de Estado tem o dever de tratar a coisa pública como se
fosse sua, mas sabendo que jamais poderá sê-lo. Aqui só se ouviu
a parte “tratar a coisa pública como se fosse sua.” ...para dela se
apropriar.

Art. XVI:

Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada,

Um dos mais importantes artigos. Garantia de direitos,


separação dos poderes. A aula jurídica dessa declaração está neste
artigo. Aqui estão os dogmas da ordem jurídico-política da
modernidade. Dizer que determinada sociedade não tem
Constituição é um dos maiores insultos da modernidade. “Cabra
safado” é o somatório de todos os insultos. Não tem Constituição!
Para a consciência jurídica da modernidade é uma bofetada,
porque se quer instituir o Estado Constitucional Moderno. Ao se
dizer que determinado Estado não tem Constituição, está-se
fazendo a maior das acusações sobre o ponto de vista da moral
jurídica a essa sociedade. Seria uma sociedade despótica,
absolutista, tirânica, bárbara, subdesenvolvida quanto às suas
instituições jurídicas e políticas. Para que se reconheça se uma
sociedade tem ou não Constituição, devemos ver Montesquieu,
John Locke, e outros que trataram de separação dos poderes.

A questão das questões: direitos devem ser mais que


proclamados, mas também efetivados. Sociedade que não
assegura garantia de direitos não tem Constituição. Paraguai tinha
Constituição formalmente, mas não realmente, porque não se
assegurava a garantia dos direitos, nem a separação dos poderes
porque havia poder unipessoal. Tinha formalmente uma
Constituição, mas não tinha materialmente uma. É o ensinamento
de Ferdinand Lassale: Constituição é uma folha de papel. Significa
dizer que, mais que proclamar, devem-se efetivar os direitos
proclamados.

Alfredo Stroessner Matiauda (1912 – 2006) foi ditador


dos anos 50 aos 90 no Paraguai. 40 anos de poder direto e outros
tantos de poder indireto.

Art. XVII e último da Declaração dos Direitos do


Homem e do Cidadão:

Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade
uma justa e anterior indenização.

Aqui importam as questões material e econômica.


Regime jurídico de proteção à propriedade. Inviolabilidade reside
nisso. Qual o sistema de propriedade dos tempos modernos?
Propriedade privada. Direito inviolável e sagrado. O maior dos
direitos materiais tem manto divino. Por quê? Essa ordem jurídica
laica diz que acabou o tempo do Direito Divino... por que então ela
quer vestir logo agora a propriedade com um manto sagrado? Um
dos problemas da ordem jurídica moderna é que sempre
desconfiou do fundamento de validade do poder vigente. Povo,
razão? O divino é muito mais seguro do que os terrenos profanos e
mundanos. É cercar a propriedade de uma dignidade capaz de
protegê-la muito mais do que se dissesse: é um direito inviolável e
ancorado na vontade popular majoritária. A vontade popular
majoritária é flutuante e pode ser feita e desfeita com dinheiro.

Salvo quando a necessidade pública exigir: daqui


tiramos o termo indene, que quer dizer “deixar sem dano”. Justa
indenização. Frederico da Prússia caçava e caminhava com sua
corte quando descobriu uma propriedade paradisíaca e para lá se
dirigiu, perguntou quem era o senhorio, se apresentou ao Rei da
Prússia, que lhe disse: é minha, senhor, mas não está à venda!
Não interessa. Esse déspota teve coragem de dizer uma coisa
inesquecível: como ousa dizer isso de seu rei? Resposta: ainda há
juízes em Berlim. Frederico queria fazer uma reivindicação do
tamanho de sua arrogância, conveniência e prepotência.

Não mais se teve notícias do proprietário corajoso.

Karl Marx

Esta é a segunda parte da aula de quinta, 08/06. A primeira


parte se trata da continuação dos comentários à Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e foi deslocada para o final da
aula de 03/06, para manter a continuidade.

 Três fontes
o Economia Política
inglesa
o Ideologia alemã
o Sociologia política
francesa
 O método
o Dialética
o Materialismo
o História
 Meios de produção, relações de
produção e juízos morais
 Julgamento do Estado e máscaras
ideológicas
 Teoria da história e luta de classes
 A revolução e contrarrevolução:
ditadura x ditadura
 Primeira transição: socialismo
 Segunda transição: comunismo
o Propriedade
o Classes
o Direito
o Justiça
o Paz
 Judaísmo em Marx

Nesta semana encerramos nossas atividades. Vamos começar a


aula sobre Karl Marx.

Por que Marx? Devemos, com serenidade, refletir sobre


tudo e sobre todos, mantida a postura com que nós transitamos
desde Sócrates até Karl Marx, sem realizarmos apologia de
ninguém, buscando iluminar o pensamento de todos, sem afastar
qualquer crítica.

Marx é um dos sujeitos que mais influências exerceu


sobre o pensamento dos povos. Está na galeria de Aristóteles,
Rousseau, Hobbes, São Tomás de Aquino. São pensadores que
exerceram uma profunda influência nas civilizações. Como
poucos, o poder das ideias foi exercido a partir do pensamento de
Karl Marx.

Há de se dizer de Karl Marx o que se diz de Elvis: não


morreu. Está vivo nesse curso serpenteante da história, e,
amanhã, suas ideias estarão retomadas por outros por outros
pensamentos históricos.

Depois vamos ver a relação entre Marx e a burguesia. É


um dos produtos intelectuais da Revolução Francesa, e do mundo
burguês e capitalista. É também um de sues maiores interpretes.
Delfim Neto, grande economista brasileiro, deve ter lido e relido O
Capital pelo menos vinte vezes para entender Economia Política.
Há o Marx filósofo, historiador, moralista, e até profeta. Fazem
um todo, mas um todo muito facetado. Só se entende Marx se se
fizer a relação com sua origem renegada: judaísmo. Judeu
desviante, pobre e rebelado. Declina, mas carrega no seu
inconsciente.
Acabou e não acabou a Revolução Francesa. Vamos
para Karl Marx (1818 – 1883).

Acabou e não acabou porque é um enigma e um


paradoxo. Não há na história nenhuma revolução maior que a
Revolução Francesa. A Revolução Russa está virtualmente morta,
mas a francesa está viva. As grandes bandeiras da Revolução
Francesa foram traídas. O drama das revoluções é isso: não ter os
ideais seguidos. Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo uma vez
disse: “sem radicais, a revolução não é feita, com radicais, não se
governa.” Regra estrutural das revoluções é que os lideres são
consumidos por ela mesma. Vladimir Lenin foi alvejado pelas
anarquistas, que queriam suprimir a família, e queriam fazer o
comunismo de Platão, o amor livre. Lenin as acusou de terem
consciência burguesa. Resolveram reagir com bons tiros em
Lenin. Trotsky vai para o exilio e lá morre. O chefe da polícia do
Czar assumiu: Joseph Stalin.

Na Revolução Francesa não foi diferente: Jean-Paul


Marat (1743 – 1793) e Robespierre ¹, por exemplo, foram mortos.
Então é uma revolução traída, que se sintetiza por uma
consciência contrarrevolucionaria de Napoleão, que fundou o
poder unipessoal em base militar. O liberalismo e a democracia da
Revolução Francesa terminam no poder despótico de Napoleão.

Karl Marx é produto da Revolução Francesa. Com a


frustração histórica que ensejou, criou um desespero na
consciência coletiva. Foi uma revolução feita por múltiplas forças
sociais, mas a burguesia, que assumiu, governou burguesamente.
Daí se chamar de “jornada de otários” o somatório das forças que
concorreram para a revolução, que deram apoio à burguesia, que
terminou no topo ao final do processo. Onde ficaram a liberdade,
a igualdade e fraternidade? Todas foram esquecidas. Sobretudo a
terceira bandeira. A liberdade ficou restrita ao plano econômico,
para liberdade de empreender, e a igualdade ficou restrita à
isonomia, à igualdade formal, que é relevantíssima, porém não
suficiente. Em tempo de paz, em maior igualdade social e
econômica, o mundo não avançou majoritariamente nessa
direção. A fraternidade desapareceu completamente.

Por isso que alguém disse: “todos são iguais perante a


lei, mas todos são diferentes perante o juiz.” O juiz julga de acordo
com os seus preconceitos.
Por que Karl Marx tem relação com a Revolução
Francesa? Porque dali surgem as ideologias contestatárias
modernas. Que ideologias são essas? As negações da Revolução
Francesa são o socialismo, o anarquismo e o comunismo
modernos. São produtos da frustração da Revolução Francesa.
Socialismo é a ideia de que há de se fazer uma harmonia entre
capital e trabalho. Anarquismo é a ideia de estado elidido
imediatamente, para que se estabeleça o primado da comunidade
organizada sobre o mundo. Em conselhos, teriam controle da
vida. E o comunismo é o mundo em que tudo é propriedade de
todos, os homens reinventam a si mesmos e justificam-se a cada
período de tempo. É o mundo da propriedade coletiva e não mais
da harmonia entre capital e trabalho como no socialismo.

Tudo isso em tese. Vejam a desigualdade entre as duas


Alemanhas do século XX pós 1945! O custo da unificação foi
abissal, profundo, porque a Alemanha Oriental era satélite da
União Soviética.

Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) escreveu um livro


chamado “O Fantasma de Stalin.” Contava que o líder soviético,
apesar de morto, continuava “aterrorizando” com as ideias que
abraçou, as quais persistiram.

Nascem essas ideologias. Fazer revolução da revolução.


Queria-se fazer, de imediato, uma revolução “verdadeira”. Marx é
herdeiro desse sentimento, de que a Revolução Francesa foi uma
revolução falsa. Quais são os fundamentos do pensamento de
Marx, sem os quais não existiria Karl Marx como ficou conhecido?
Primeiro deles é a Economia Política inglesa, fundada com David
Ricardo, Adam Smith, Jean Charles Léonard Simonde de
Sismondi, e outros mais. Essa teoria clássica é interpretação do
funcionamento da economia capitalista em ascensão, e dessa
economia clássica surge a teoria do valor trabalho, que vamos ver
na aula de amanhã. É o trabalho que cria riqueza. O trabalho
sistêmico na economia capitalista é indispensável para a geração
da riqueza. Marx se apropriou dessa teoria e disse “eureka”. Dizia
que tinha a chave que levaria ao maior segredo da humanidade:
como um rico fica rico? Imaginou ter descoberto a explicação
técnica para isso.

Ideologia alemã: Marx é alemão, advogado de formação,


filho de advogado, se forma em Direito e jamais exerce qualquer
atividade jurídica; tem consciência antijuridicista. Tinha
embaraço profundo com o pai. E termina estudando Filosofia.
Doutorou-se em Filosofia, e fez uma tese sobre os filósofos pré-
socráticos, focando em Demócrito e Epicuro.

Marx navegava nas águas da Filosofia do Direito, mas


com um discurso de total negação do Direito. É chamado
hegeliano de esquerda, discípulo de Hegel, que escreveu uma
grande Filosofia do Direito. “Crítica à Filosofia do Direito de
Hegel” foi uma obra que escreveu. Disse: “coloquei Hegel de
cabeça para baixo”. Fez papel de criatura como criador,
acreditando ter virado a página do mestre.

Escreveu outro livro chamado A Questão Judaica, já que


Marx é um judeu pobre e desviado, e também escreveu sobre
Direito em O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Falava sobre
funcionamento jurídico-político da sociedade. Preocupação: a
história se repete ou não? Chegou à conclusão que não, salvo
como farsa. Luís Bonaparte ou Napoleão Bonaparte: o sobrinho
quer ser novamente o tio, uma contrafação, mas Napoleão nunca
se repetirá. Fracassou na guerra franco-prussiana. Alemanha
derrotou a França em grande estilo.

São nessas três obras que está o fundamento de Marx: o


18 Brumário de Luís Bonaparte, a Questão Judaica e na Crítica à
Filosofia do Direito de Hegel.

Ele irá então dialogar com a ideologia alemã, grande


escola de Filosofia, que é a consciência da ascensão da burguesia,
e, dessa escola filosófica, tirará dois conceitos cruciais para o
estabelecimento de seu método: dialética a materialismo.
Chamou-o de método do materialismo histórico dialético. Ambos
vêm da Filosofia Alemã pretérita; o que o que Marx faz é construir
uma teoria da história com essas duas variáveis.

Por fim, terá uma relação íntima, porque expulso da


Alemanha, e é transformado em apátrida. Foi expulso de três
países. Ganhou intimidade com o pensamento francês, e tomou
conhecimento da Sociologia Política Francesa, que nasce
imediatamente após a Revolução Francesa. É de lá que Marx tirou
dois conceitos fundamentais para seu pensamento: luta de classes
e revolução. Não é um conceito dele, mas da Sociologia Política
Francesa, de onde também veio o termo revolução.
Quem está nessa Sociologia política francesa? Três
figuras que constituem o socialismo que Marx chamou de utópico.
Proclamou, então, que estava criando o socialismo científico, daí
seu caráter “moderno” e positivista. Considera que ser ciência é
ser tudo. A verdade tem que ser verdade científica, ou não é
verdade. É positivista como qualquer positivista. Mesmo tendo
lutado para não ser.

Dialogou com dois pensadores: o primeiro é Henri de


Saint-Simon (1760 – 1825); o que Marx ficou devendo a ele não
está escrito. Outro é Charles Fourier (1772 – 1837), que fez parte
da Sociologia política francesa. Havia ainda outro, chamado
Owen, um inglês que viveu na França. Todos têm em comum o
socialismo humanitário com o qual pretendem compatibilizar o
homem com os maiores valores morais do Cristianismo. Owen é
arquimilionário e financia a aplicação de suas ideias. Criou
centenas de falanstérios, microssociedades perfeitas, em que
homens e mulheres se tratavam segundo o princípio da igualdade,
não havia polícia, álcool, violência. Um microorganismo perfeito,
diferente do todo, pretendendo provocar a metástase do bem. Foi
tão exemplar, tão harmônico, tão perfeito, tão luminoso, tão
solidário e tão paterno que vai inspirar a criação de tantas outras
manchas que, nessa ideia de metástase do bem, vai fazer com que
eles se multipliquem vertiginosamente na sociedade e quando a
grande sociedade perceber, já estará toda tomada pelo sangue
bom, pela agenda do bem.

Mas é claro que algo deu errado. O que foi? Os


socialistas utópicos não tinham a mínima ideia de um conceito
chamado estrutura social, que jamais permitiria que essa
metástase do bem mudasse sua natureza. Estrutura social está
para a sociedade assim como a moldura está para o quadro. Ela
limita o quadro. A estrutura da sociedade é uma barreira que
limita-a fazendo com que mantenha sua forma de ser.

Vamos ver como funciona a estrutura social: Ernesto


Che Guevara (1928 – 1967), médico das classes medias argentinas,
idealista, se tornou revolucionário mundial, fazendo lutas
revolucionárias da Bolívia ao Congo. O que Guevara queria?
“Passar o mundo a limpo”. Zerar tudo, e criar uma sociedade, em
tese, paradisíaca. Sem sociedade de mercado, burguesa e
capitalista. Guevara morreu em 1967 na Bolívia e é hoje uma das
imagens mais vendidas no mundo. Isso porque o mercado
moderno, burguês e capitalista se apropriou de sua imagem tanto
que hoje até baterias de automóvel são vendidas com a cara do
sujeito. Pela culatra! Acabou funcionando como instrumento da
sociedade capitalista.

Fourier foi um grande crítico social de usos e costumes,


e Saint-Simon foi o pensador grande e sistemático das sociedades
urbano-industriais. Descobriu a indústria como grande fenômeno
que fazia-a distinta das sociedades agrárias do passado. Ele quem
cria o conceito de luta de classes. Nos três, e sobretudo num líder
do comunismo francês chamado Louis Auguste Blanqui (1805 –
1881),2 se estabelece o conceito de revolução da revolução. Marx
se apropriará desse megaconceito de revolução. Essas são as
âncoras de Marx. Se não tivesse se apropriado do saber burguês,
não haveria pensamento de Marx contra a burguesia. Apropriou-
se de tudo que era da burguesia.

Amanhã vamos ver a teoria do valor trabalho, da


dialética, o papel do materialismo, dos conceitos de luta de
classes, e de evolução do pensamento.

Marx considera que descobriu a pólvora. É demasiado


humano, como dizia Nietzsche. Escreveu frases sobre Ludwig
Feuerbach (1804 – 1872): “os filósofos não fizeram nada mais que
interpretar o mundo. Trata-se agora de transformá-lo.” Significa
dizer: “eu sei como o mundo será transformado. Entre os filósofos,
só eu sei!”

Esse Marx, superpotente, é evolucionista, e o


evolucionismo explica de maneira problemática sua tese:
sociedade primitiva, escravista, feudal, despotismo asiático,
capitalista e ele tem a chave da história: ele anuncia a sociedade
socialista e a sociedade comunista. A consumação da história. Eu
tenho a chave!

1. O professor mencionou um terceiro


nome aqui.
2. Mais uma vez havia outro nome ao
lado deste, que não consegui compreender.
Karl Marx – conclusão

“A religião é o opio do povo.”

Disse essa frase Karl Marx certa feita, mas ele era
portador de uma religião judaica profunda. Demitiu-se do
judaísmo, mas o judaísmo não se demitiu dele.

Método: o que sobrou de Marx? Rigorosamente, sobrou


o método. E sobrou a interpretação do Marx economista da
sociedade capitalista. Interpretação sistêmica que está presente
n’O Capital, reconhecido universalmente como uma grande
interpretação do capitalismo. Não é a única; existem pelo menos
duas alternativas: a de Max Weber, que escreveu Economia e
Sociedade, a rigor, como alternativa interpretativa a O Capital. O
capitalismo em Marx resulta da aplicação de seu método:
fenômeno material transfigurador que estabelece novo meio de
produção da história, derrubando o meio de produção feudal, para
que uma nova instituição social se estabeleça, a burguesia.
Fenômeno material decorrente da acumulação primitiva de
capital.

Enquanto em Marx esse fenômeno é a acumulação


primitiva de capital, em Weber é o resultado mais límpido e
transparente da ética calvinista. Weber traz uma explicação
espiritual no livro A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo.
Libera o homem da culpa da riqueza, que a considera benção,
graça, favor de Deus, e o autoriza a acumulação de mais riqueza
desde que se contribua com a causa de Deus.

Essa é a ética do trabalho, da poupança, da reinvenção,


da compreensão de que não se é proprietário de nada, mas
guardião, da graça da riqueza. Diferente da explicação de Marx,
segundo o qual o capitalismo vem de uma classe nova de
mercadores, que descobrirá a chave da nova riqueza do capital,
que investirá em ciência e tecnologia e criará as condições para a
criação de um sistema produtivo, numa capacidade maior de
produzir riqueza, em escala superior, e, se possível, universal.
Sistema que fará a projeção oceânica da Europa, dividindo o
mundo em nações e colônias; que criará o sistema mundial
econômico em que há centro e periferia, fazendo com que se
acumule capital no comércio, que se acumule capital na indústria
e que se acumule capital nas finanças, criando, respectivamente, a
burguesia comercial, industrial e financeira, e buscando a
globalização econômica.

São dois caminhos explicativos, portanto. A explicação


de Marx não é a única; a de Weber sobreviveu a Marx.

Há outros interpretes do capitalismo. Joseph


Schumpeter (1883 – 1950), grande interprete do capitalismo na
história.

Em Marx, em certo sentido resta o método. O método


em Marx é uma fusão dinâmica do materialismo de Feuerbach
com a dialética de Hegel. Dois filósofos que foram mestres de
Marx. Ludwig Feuerbach (1804 – 1872) e Georg Wilhelm Hegel
(1770 – 1831) são aqueles de quem Marx se apropria para criar seu
método. Marx tem uma teoria da história, que será desenvolvida à
luz de Feuerbach e Hegel. É materialista porque explicará das
relações sociais, dos fenômenos sociais, do evolver da história e de
aspectos materiais da vida. Um materialismo fundado no
argumento filosófico de Feuerbach, que diz que não foi Deus
quem criou o homem, mas o homem criou Deus. Marx é
materialista à luz de Feuerbach. Mas Marx é dialético, imaginando
a dinâmica das coisas. Desde a Grécia, com Heráclito, que se
existe dialética como método de apreensão e percepção do real.
“Tudo flui!” nunca veremos duas vezes as águas do mesmo Rio.
São sempre águas, mas são sempre outras. É o princípio da
dialética.

No mundo moderno, Hegel foi o grande responsável


pelo resgate da dialética. Criou uma superfilosofia fundada na
dialética, nessa dinâmica fluida e processual das coisas. A dialética
de Hegel é uma dialética ternaria, que dela Marx se apropriará: os
fenômenos acontecem porque uma tese se afirma, se tensionam
porque uma antítese se estabelece, e se transformam porque se
chega à síntese, que é a superação da tese e da antítese. Uma tese
poderia ser uma manhã de sol, sua antítese poderia ser uma tarde
chuvosa, e a síntese das duas é uma noite estrelada. Os fenômenos
são todos diferentes entre si a manhã de sol foi negada pela tarde
de chuva, e a noite estrelada não aconteceria sem a superação de
ambas. Eis a síntese.

Quando se chega a uma síntese, o processo não acaba,


pois a síntese se desdobra em novas teses e novas antíteses,
produzindo novas sínteses.

Existe também a formulação da dialética pós Hegel e pôs


Marx que pressupõe o chamado quarto momento da negatividade.
É uma síntese. A dialética é isso: uma forma de percepção e
apreensão do real. Nisso Marx se apropria da dialética e do
materialismo, funde os dois e cria a teoria volitiva da história, a
história da humanidade, que é esse evolver de modos de produção
e formações sociais. Sociedade primitiva è sociedade
escravista è sociedade feudal è sociedade do despotismo
asiático è sociedade capitalista è sociedades
socialistas è sociedades comunistas, sendo que das duas últimas
Marx se considera o profeta.

Marx pensou dialeticamente assim: feudalismo é tese,


capitalismo é antítese, e a síntese será seu socialismo. Vejam como
Marx, com o método, justificou a pretensão histórica. Mostrou
uma teoria da história à luz da dialética e do materialismo. Diz,
primeiro, que a história é a única e a verdadeira ciência. Segundo,
diz também que a essência da história está no conflito. E uma das
formas mais agudas de conflito é a chamada luta de classes, que
lutam pela possessão do mundo. O que é o mundo? O mundo
econômico, o mundo institucional, o mundo do Estado, e também
das ideias. Quer dizer que há o mundo material, o institucional e o
espiritual. Quem detém tudo isto é a classe dominante, e quem
não detém é a classe dominada. A história da humanidade,
segundo ele, é a luta de classes dominantes contra as dominadas.
Aponta isso na história: patrícios contra plebeus, senhores contra
escravos, barões da terra contra servos, burgueses contra
proletários... qual o julgamento moral de Marx? Dizer que tudo
isso configurou a exploração do homem sobre o homem. Como se
transfiguraria tudo isso? Com a revolução somente. Com a luta de
classes libertadora conduz-se à revolução.

Para quê? Em última instância, para que “estas coisas”


não sejam “destes” contra “aqueles”, para que tudo isso possa ser
de todos. Essa é a justificativa de Marx. Não haveria mais
antagonismo de classes.

Por isso que Marx irá buscar, materialista que é, nessa


esfera econômica, a chave da vida. Diz que os meios de produção
são a chave da história. No mundo moderno, os grandes meios de
produção são capital, terra, ciência, tecnologia e serviços, e que
esses meios são propriedades da burguesia. Do outro lado só há o
trabalho, e que o proletário tem que vender para sobreviver. Da
junção disso tudo há o empreendimento capitalista.

Por que o trabalho é relevante? Porque Marx apropria-se


da teoria do valor-trabalho, da economia clássica. Marx bebeu nas
fontes do pensamento pretérito. Nenhuma dele própria. Sem a
Economia Política clássica, a Sociologia Política Francesa e a
Teologia Alemã não existiria Marx. Ele fez uma reengenharia em
tudo isso. Vai para a teoria do valor-trabalho, explicando a
riqueza: entram as relações de produção, que criam a riqueza, mas
a riqueza vem, sobretudo, do trabalho. O segredo da história é a
mais valia: a exploração da classe trabalhadora pela burguesia.
Fábrica de aviões! Como se explica esse modelo de Marx? Vamos
pensar na fábrica de aviões. Lá se trabalham quatro horas pela
manhã, e quatro pela tarde. O custo/dia de tudo que compõe essa
fábrica de aviões, com impostos, insumos, reinvestimento,
inovação tecnológica, pesquisas, salários, etc. somam 1000
unidades monetárias. Nas primeiras quatro horas de trabalho, o
proletariado fabrica uma aeronave que vai para o mercado ao
preço de 1000 unidades monetárias, revertendo à fábrica o custo
de 1000 gastos com todos aqueles passivos. Os trabalhadores vão
ao almoço, tiram uma soneca, jogam uma dama, voltam à labuta e
fabricam outro avião, que irá ao mercado por outras 1000
unidades monetárias. Tudo no mesmo dia! Esses outros 1000
estão totalmente desembaraçados de todos e quaisquer ônus. Aí
está a mais valia! “O segredo da história que só eu descobri!” A
classe trabalhadora cria mais valor do que aquilo que a classe
empregadora paga-a.

Marx diz que o juízo moral é que o capitalismo é


intrinsecamente mal. Marx, assumindo a persona de profeta,
afirma que deve-se, portanto, libertar o homem de si mesmo.
Como se fará isso? Ele encontrou um herói libertador, um
messias, judaicamente falando. Quem tem que libertar a
humanidade é o proletariado, pois, do ponto de vista filosófico,
ninguém é feliz pela metade. O proletário não é feliz porque está
condenado às contingências do mundo material e concreto. É uma
besta de carga que tem que trabalhar. Ninguém é
verdadeiramente feliz porque, porque, por outro lado, usufruindo
de tempo livre, no ócio não criativo, nessa vida vazia, sem
nenhuma relação com tempo concreto, com o fazer, com o
construir, com o escrever sua própria história, não se é feliz
também. Necessidade de um lado, alienação de outro. Para que o
homem seja íntegro e inteiro, Marx diz que esse agente libertador
é que irá parir o novo homem. Como esse agente libertador parirá
o novo homem? Primeiramente, esgotando-se a possibilidade
histórica de sobrevivência em uma sociedade em que, em face de
mais lucro, tenha-se que ter menos salário, e vice-versa, criando-
se um antagonismo entre as classes. Segundo porque estes, que
estão no universo do trabalho, já aprenderam a fazer sua luta
sindical, e devem aprender a fazer a luta política. Na luta sindical
se luta por salário; na política luta-se por poder.

E como essa classe trabalhadora chega lá? Sem


regramento espiritual e consciência desenvolvida? Como irão
libertar a humanidade? Há um porém: essa classe trabalhadora,
que tem uma consciência em si, e chega à luta sindical sozinha, irá
chegar à luta política porque vai uma consciência para si. Uma
consciência superdesenvolvida. Como será desenvolvida? Porque
os intelectuais da pequena burguesia vão trair sua classe e se
associar ao proletariado.

Enfim, é o modelo de Marx. Os intelectuais irão levar a


consciência desenvolvida para o proletariado. Com a consciência
desenvolvida, vão preparar o proletariado para aguardar o
momento de crise aguda do capitalismo, com o momento de
exacerbação da sua vontade política de mudança, e com o
momento em que essa classe operaria possa usar a violência para
quebrar a ordem estabelecida, pondo no lugar outra ordem. A
chave de tudo em Marx, em última instância, está na violência.
Luta de classes para parir uma sociedade nova, com recurso à
violência.

É um filósofo da guerra e não da paz. Será da paz em


suas hipotéticas consequências. Mas do ponto de vista operacional
ele quer transfigurar o mundo pela violência, e não acredita em
outro meio que não a violência para se chegar lá. A fórmula é
vontade política do proletariado + crise do capitalismo +
violência. Se se souber manejar a violação, vai-se quebrar a ordem
estabelecida, far-se-á a ruptura, e se estabelecerá a nova ordem.
Isto é a luta de classes em seu sentido mais radical: o momento da
ruptura. Isto é revolução: criar a ordem Z onde existia a ordem A,
e promover as transições da sociedade intrinsecamente maligna
para sociedades mais justas.

Primeira transição de Marx: capitalismo para


socialismo. Aqui haveria luta de classes em níveis extremos. Isso
porque o estabelecimento do socialismo será contestado pelo
capitalismo. A contrarrevolução irá querer solapar a revolução e
restabelecer o antigo regime. É um contexto tenso desse processo
que só sobreviverá se se universalizar. Toda e qualquer tentativa
de estabelecimento do socialismo fracassará a não ser que se
universalize. O socialismo é uma sociedade mais perfeita do que a
imperfeita sociedade capitalista, porque pluralizaria as formas de
propriedade, criaria um sistema justicialista de repartição da
riqueza, e nele conviveriam a propriedade familiar, a propriedade
comunitária, a propriedade privada, a propriedade cooperativa, a
propriedade estatal; o socialismo firmará a ditadura do
proletariado, porque o que existia no passado era a ditadura da
burguesia; essa ditadura do proletariado seria dirigida pelo
partido do proletariado, e conduzirá a revolução à vitória sobre a
reação. Assim permitirá o desenvolvimento material da vida. Isto
é, ter o que dividir. Uma capacidade maior de produzir riqueza do
que o capitalismo, assim ter-se-ia um desenvolvimento material
da sociedade e o Estado, na ditadura do proletariado, poderá
realizar uma repartição justicialista da riqueza. Não existirá mais
burguesia para se apropriar de tudo, e o Estado do proletariado
realizará essa repartição da riqueza.

Por que o socialismo não é perfeito para Marx? Porque


nele sobreviverão injustiças. Para o socialismo, cada um
contribuirá segundo suas capacidades, e as capacidades humanas
serão desiguais. Uns contribuirão mais, outros menos, assim uns
terão retribuição maior, outros menor. As habilidades são
distintas e as capacidades são diferentes, e as remunerações
também o serão; dessa forma, as desigualdades naturais
determinam as desigualdades sociais. Haverá injustiça de
qualquer jeito. O que fazer para chegar à perfeição, então, é a
segunda transição.

Essa transição não é a do capitalismo para o socialismo,


mas deste para o comunismo. Esse tipo de sociedade comunista,
hipotética, reclamada por Marx jamais existiu. Nela, a reação
burguesa e capitalista teria sido universalmente vencida. O
socialismo se tornou vitoriosamente um fato universal. Esse
superdesenvolvimento da produção socialista, por meio do
superdesenvolvimento da ciência e tecnologia conduzirá a um
mundo de superprodução jamais visto na história da humanidade.
As Minas do Rei Salomão nada serão diante desse mundo com
rios de riqueza correndo pela vida. O socialismo será um fato
universal nesse momento.

O significado dessa segunda transição é a chegada do


homem à sociedade comunista que porá fim à pré-história da
humanidade. Abrirá a porta para a “verdadeira história” da
humanidade. O que haverá nessa história da humanidade em
Marx é, primeiro, e vejam as chaves de Rousseau, que a
propriedade se transformará de privada em coletiva. Na sociedade
comunista tudo será de todos porque a propriedade é coletiva. O
guardião dessa sociedade em que a propriedade é coletiva é, num
primeiro momento, o Estado. Desde Rousseau a propriedade é
fonte das desigualdades, quando contou a historinha em que um
dos andarilhos apontou para o trigal fértil e disse “isto é meu!”,
cercando-o em seguida, criando, daí, a desigualdade, pois o
mundo passaria a ser de proprietários e não proprietários. Marx
diz que a propriedade se transformará em propriedade coletiva. E
em consequência, a sociedade será sem classes. Lógica formal. A
propriedade não desiguala mais porque tudo é de todos, e, se tudo
é de todos, a igualdade social se estabelece. A sociedade sem
classes será a sociedade comunista.

Nessa sociedade comunista, hipoteticamente de


propriedade coletiva e sem classes, o que acontecerá com o
decorrer do tempo é o desaparecimento do Estado. Será extinto na
história da humanidade. Por quê? Porque Marx diz: o Estado não
é nada mais que o guardião dos privilégios de classe. Ele legaliza a
propriedade privada, a injustiça, a exploração. O Estado seria o
cão de guarda da burguesia. Não existindo mais burguesia, porque
não existe mais propriedade privada, logo não existirá mais
Estado, que tenderá a desaparecer.

E como se viverá sem Estado? A sociedade que aceitou


essa verticalização, conferindo ao Estado poderes para geri-la,
recobrará o poder de gerência, e, horizontalmente, a sociedade
organizada através de conselhos gerirá a vida. A experiência do
exercício da autoridade será horizontalizada, e voltará a ser social.
Esses conselhos funcionariam para a gestão da vida porque, até o
dia do advento da sociedade comunista, que é puramente judaico
(Marx está falando de queda e reencontro do Paraíso; o que ele
busca é reencontrar o Paraíso depois das quedas históricas), isso,
diz o professor, será possível porque na sociedade comunista se
colocará um ponto final na experiência histórica da humanidade,
em que os homens eram administrados pelas coisas. Na sociedade
comunista, as coisas seriam administradas pelos homens.

Avancemos em Marx.

Essa sociedade terá que forma de disciplina social? Qual


o lugar do Direito na sociedade de Marx? Nenhum. O que
acontece na sociedade comunista é a morte do Direito! Porque
Marx repugna o Direito Natural, desacredita no Direito
Costumeiro e considera uma falsificação ideológica os direitos
humanos. Acredita só no Direito do Estado, que é o que determina
o que deve ser Direito. Desaparecendo o Estado, desaparece o
Direito. Morre o Direito. Morte do pai de Marx, que era advogado!
É uma leitura psicanalítica: Marx matando o pai.

E a justiça em Marx? A justiça é a moral aplicada a


todas as relações entre os homens. A morte do Direito será o
nascimento justicialista da moral. A moral será a própria
expressão viva da justiça.

E o que vai acontecer com a paz de Marx? Ele, que havia


partido do máximo de conflito entre os homens, da luta de classes,
da violência como parteira da história, diz que a paz perfeita se
estabeleceria entre os homens porque, estancadas as fontes da
apropriação e da exploração, a harmonia universal será a regra da
vida. Isso seria o ponto final na pré-história da humanidade.
Comunismo é o parto do homem novo; o homem que superou
essas “mesquinharias”: se dar bem, ser egoísta, tirar vantagem,
passar a perna, puxar o tapete. Um homem totalmente
desalienado, solidário, fraterno e disposto a usufruir de todas as
oportunidades jamais vistas antes dessa nova ordem com tudo
que ela permite.

Como o homem novo irá viver? É um homem em busca


de sua verdadeira humanização. Entendamos: Marx fez a coisa
mais temerária do mundo que é descrever o que seria o cotidiano
do homem comunista. É a descrição do paraíso no Livro do
Gênesis da Bíblia Cristã, que vem da Torá Judaica. Marx
reencontra a si mesmo nas fontes do judaísmo. O homem
comunista acordará 10 da manhã. Como não pode ter apenas uma
relação abstrata e teórica com o mundo, mesmo sem precisar,
trabalhará das 10 às 12, pois o mundo é uma maquina de
automação de fabricação incessante de riquezas. Fará sesta do
meio-dia às três da tarde, passeará de barco até as cinco ou seis da
tarde, lerá literatura grega até jovem, jantará regiamente porque
ninguém é de ferro, e depois vai para a noitada para relaxar. Essa
é a ideia contida na Ideologia Alemã!

Marx se articula com os filósofos que pregaram a


harmonia universal, depois de ter sido filósofo da luta, da
violência, e da luta social aberta. Mas se articula com os filósofos
da harmonia universal por meio daquilo que havia repugnado: a
ideia de Paraíso, o Éden, o homem antes da queda do paraíso.
Inconscientemente trai a si mesmo. Mostra que é
permanentemente judaico. Sinaliza para esse mundo novo que
traria consigo o mundo novo e viveria essas circunstâncias
paradisíacas.

Essa segunda transição, do socialismo para o


comunismo, jamais existiu. Tivemos transição do capitalismo para
o socialismo, e o sistema socialista que se conheceu entrou em
colapso no final do século XX. Restou a Coreia do norte, Vietnã do
Norte, China despótica asiática e Cuba, que preserva apenas a
propriedade familiar. Além dos espasmos latino-americanos
idealizados no Foro de São Paulo.

O que há de jurídico em Marx: desjuridicização de


tudo. Morte do Estado, morte do Direito, confirmação da conexão
entre Estado e Direito como única verdade jurídica possível,
renovação do ato segundo o qual se repugna o Direito Natural, o
Direito Consuetudinário e os direitos humanos, e a ideia de que
através da ditadura se chegará à democracia, e através da
violência se chegará à harmonia, e a ideia de que, segundo esses
procedimentos, se reencontrará o paraíso. Violência, revolução e
ditadura são os ingredientes que irão parir o mundo paradisíaco.

Sabemos nós que a emergência da violência na história


se torna absolutamente inadministrável e incontrolável; depois de
lançado mão da violência, ninguém administra a sua dinâmica e
seus efeitos. Da aplicação da violência na história não nasce
nenhuma pacificação. E não existem precedentes que autorizem
essa ideia: do máximo de ditadura, chegar-se ao mundo da
democracia social. Isso porque o mundo de administração da
sociedade pela própria sociedade só pode se estabelecer segundo
parâmetros de verdadeira realização da democracia. Vai-se chegar
a essa democracia por meio do máximo de ditadura? O máximo de
ditadura criará elites dirigentes, que reclamarão o poder para
sempre, como aconteceu no socialismo real.

Lenin disse: sociedade comunista será a sociedade


burguesa sem burguesia! Vamos matar a burguesia no mercado,
mas Lenin não imaginou que a burguesia renasceu do Estado. Foi
o que aconteceu na União Soviética.

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