Você está na página 1de 139

Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Uma arqueologia do conceito de liberdade no


ocidente

Curso Integral
14 aulas

Primeiro semestre de 2020


Prof. Vladimir Safatle
Uma arqueologia do conceito de liberdade no ocidente
Aula 1

Se vocês me permitem, eu gostaria de começar esse curso discutindo a última


palavra de seu título: uma arqueologia do conceito de liberdade “no ocidente”.
Porque há de se perguntar pelo sentido de restringir a discussão sobre os
desdobramentos do conceito de liberdade ao ocidente. O que afinal significa tal
restrição? Estaria eu a dizer que a liberdade é uma invenção do ocidente, que ela
é o presente do ocidente ao mundo, espalhado através de um contágio
irresistível de lutas sociais que questionariam estruturas arcaicas e autoritárias?
Pois comecemos por sermos honestos e admitamos quão difícil é para nós
escaparmos dessa narrativa. Nós fomos formados para repetir e aprofundar tal
história, nossa formação filosófica não nos fornece a capacidade de sair do
ocidente, de não começar por sua matriz grega. Não sabemos as línguas não-
europeias, não estudamos os textos de outras tradições, não conhecemos
realmente seus debates, conflitos e histórias. Quando procuramos sair,
precisamos pedir apoio à antropologia, pois há muito pouco na filosofia que nos
daria segurança para tanto.
Isto tem muito a ver com o que entendemos exatamente por “filosofia”.
Pois não deixa de ser sintomático, não deixa de ser o mais profundo de todos os
sintomas, a maneira com que aprendemos a defender a filosofia como a mais
genuína e única invenção do ocidente. Podemos admitir que a engenharia
encontrou seu desenvolvimento autônomo em várias localidades geográficas, no
Peru dos Incas, no México dos Aztecas e Maias. Podemos admitir que a
administração tem uma longa história na China. Podemos falar o mesmo da
astronomia, da medicina, da matemática, da literatura, mas não a filosofia. Ela
seria algo como a orquídea singular do logos em uma lamaçal infinito de mitos.
Esta passagem do logos ao mito teria ocorrido em um lugar específico, na Grécia,
um “milagre grego”, como se disse várias vezes. Dentre numerosos exemplos,
fiquemos com este enunciado em um colóquio cujo título era exatamente: “O
nascimento da razão na Grécia”:

Que a ideia e o projeto da racionalidade tenha visto o dia com os gregos,


isto não é objeto de dúvida alguma. O tema desse congresso: ‘o
nascimento da razão na Grécia’ exprime pois uma evidência. Então por
que fazer um congresso sobre essa questão? Se a emergência da razão na
Grécia interessa nossa época, moderna ou pós-moderna, é porque talvez
estejamos assistindo a seu declínio, como se o crepúsculo da razão
produzisse a necessidade de rememorarmos sua aurora1.

Afirmações como estas exprimem muito claramente o tipo de evidência que


constitui nossos departamentos de filosofia. Posteriormente, tal milagre
representado pela emergência da razão teria contaminado todos aqueles que se

1GRONDIN, Jean; “La renaissance de la raison grecque chez KANT”, In: MATTÉI, Jean-François
(org.); La naissance de la raison en Grèce, Paris: PUF, 1990, p. 11
deixaram pensar em grego. Com o advento do logos teria vindo a enunciação da
liberdade, teria vindo a luta pela transformação de nossas estruturas sociais em
nome de uma vida racional e livre.
Eu gostaria de lembrar a vocês as consequências que um pensamento
dessa natureza pode produzir. Pois se o ocidente se confunde com a destinação
do logos, então não haveria razão alguma para deixar de aplaudir os processos,
normalmente violentos, de “extensão do ocidente”, de ampliação colonial do
ocidente àqueles que precisariam ser acordados de seu sono profundo nos
braços do pensamento mítico. Esta ampliação do ocidente seria o verdadeiro
eixo do que deveríamos entender por “história”, a saber, o irresistível
movimento de nos transformarmos em desdobramentos possíveis de uma
metafísica do logos que nos moldou em suas dicotomias e tensões. Assim, a
história começaria lá onde o ocidente consegue enxergar suas raízes, de onde se
seguiria a necessidade de distinções entre sociedades estáticas e dinâmicas,
sociedades desprovidas de história e sociedades históricas.
Filósofos como Hegel, por exemplo, compreenderão sociedades como a
chinesa, a indiana e as africanas como fora da dinâmica histórica, o que significa
sociedades desprovidas de contradição imanente e que, por isto, necessitariam
de intervenções externas para entrar em movimento. Marx ainda pressupunha
essa distinção entre formas sociais dinâmicas e estáticas. Ao falar, por exemplo,
das sociedades nômades da Ásia e América, ele afirma:

O único obstáculo que a comunidade pode encontrar em seu


relacionamento com as condições naturais de produção - com a terra –
(se pularmos diretamente para os povos sedentários) como suas
condições é uma outra comunidade, que já a reclamou como seu corpo
inorgânico2.

Só a guerra modifica tais sociedades e seu princípio de estaticidade já que,


com a guerra, vem a conquista, a servidão e a escravidão. Apenas desta forma
exterior a “construção simples é negativamente determinada”. Da mesma forma,
a sociedade indiana, independente de suas transformações políticas, teria suas
condições sociais inalteradas desde a antiguidade remota até o século XIX
criando uma “vida estagnada e vegetativa”3. O que levou Marx a ver nos crimes
do colonialismo inglês um duvidoso “instrumento inconsciente da história” que,
através da destruição das antigas bases sociais, permitiria quebrar o torpor do
Hindustão em direção a uma revolução efetiva. Mais uma vez aparece a ideia de
que só graças a intervenções externas tais sociedades entrariam em movimento.
Lembro desses dois casos apenas para insistir com vocês no horizonte metafísico
que sustenta certas compreensões da história mundial que ainda circulam entre
nós.
Mas queria lembrar desses casos também para insistir em um peculiar
movimento no interior de nossa tradição. Pensem, por exemplo, no tamanho do
passo dado por um empreendimento filosófico, como a Dialética do
Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, quando estes partem de uma recusa
clara em aceitar a dissociação entre logos e mito, recusa em aceitar essa fantasia
originária do ocidente. Tanto logos, que se converte inexoravelmente em técnica,

2 MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 402


3 Ver MEGA (Marx Engels Gesammtausgabe), Bande I/12, Berlin: De Gruyter, 2000.
quanto o pensamento mítico estariam assombrados, segundo Adorno e
Horkheimer, por uma dinâmica de dominação que lhes é imanente. Isto lhes
aproxima de forma inexorável:

Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se


igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na
soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando (...) O
esclarecimento compo rta-se com as coisas como o ditador se comporta
com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipula-los. O
homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las (...)
A abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com
seus objetos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele
eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidação4.

As afirmações são claras. O fundamento do ocidente como projeto


metafísico, a saber, esta noção de que o exercício do logos nos levaria à
emancipação e à liberdade, não ocorreu. Não é do exterior que o logos encontra
as ameaças contra a liberdade, é do interior. É de sua própria dinâmica de
abstração, de cálculo, de medida. Dinâmica que fazem do exercício da razão uma
forma de dominação. Por isto, a ditadura em relação às coisas vem do próprio
esclarecimento, não de seu outro.
Alguns hoje se comprazem em associar a Escola de Frankfurt ao projeto
de destruição do ocidente. A única coisa que podemos dizer a eles é: sim, vocês
tem razão. Talvez esse seja mesmo um dos principais legados da primeira
geração da Escola de Frankfurt. Pois destruir o ocidente transformou-se em um
projeto filosófico crítico fundamental, talvez o único projeto filosófico crítico
real, a partir do momento em que fomos capazes de compreender o potencial de
alienação imanente ao nosso próprio esclarecimento. Compreender como o
exercício da razão e a violência da dominação estava imbrincado de forma tal
que exigiria uma profunda auto-crítica de nós mesmo.

Entre o comparatismo e o giro auto-crítico

Na verdade, lembro aqui desta espécie de giro auto-crítico da razão


ocidental para insistir na existência de, ao menos, duas estratégias possíveis a
reflexão sobre a arqueologia do conceito de liberdade. Uma poderíamos chamar
de “comparatista”, outra de “auto-crítica”. Todas essas duas parecem estratégias
relevantes para uma reflexão contemporânea sobre a liberdade.
Uma perspectiva comparatista seria a consequência natural de
assumirmos que a história da elevação da liberdade à horizonte social regulador
só poderia ser contada abandonando esse modelo concêntrico e arbóreo de
universalidade pressuposto pela tese do milagre grego. Universalidade que,
mesmo falando em nome da emancipação, guardará necessariamente uma
tonalidade colonial. Pois é fácil perceber como o modelo da excepcionalidade do
ocidente se baseia na noção de história mundial concêntrica e fundada em solo
europeu. Tudo se passa como se as experiências de emancipação e conflitos
sociais que ocorreram na Europa devessem ser paulatinamente repetidas em

4ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Zahar, pp.
24-27
outras partes do globo, racionalizando a vida social a partir da generalização de
um modelo cuja origem, cuja matriz será sempre europeia. Ou seja, tudo se passa
como se houvesse um movimento geral de contágio do centro para as margens,
como uma pedra que cai em um rio.
É claro que este modelo precisa sustentar uma visão de processo histórico
marcado pelas dinâmicas de atraso e antecipação. Algumas experiências sociais
encontrariam-se atrasadas, elas preservariam estruturas arcaicas que deveriam
ser ultrapassadas através do contato com sociedades em um tempo avançado,
sociedades que se anteciparam no interior de um processo geral de
desenvolvimento.
Mas uma perspectiva radicalmente comparatista assumiria existir uma
história universal que não é a descrição irresistível de processos de contágio de
lutas e experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade,
haveria uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que
opera sob a forma de ressonâncias. Tal perspectiva comparatista partiria do
princípio de que experiências de emancipação e liberdade estão presentes em
todas as formas de vida dispersas geográfica e historicamente. Tais formas
podem “entrar em ressonância”, ou seja, experiências locais podem fazer ressoar
experiências em outras localidades criando uma espécie de constelação. Ou seja,
não se trata de contrapor a história mundial a uma perspectiva que libera a força
das localidades e das territorialidades singulares. Trata-se de contrapor uma
falsa história mundial a uma história mundial des-colonial, capaz de colocar em
pé de igualdade múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade.
O que significa, é claro, assumir que as experiências dispersas de liberdade não
são indiferentes umas às outras. Elas se contaminam, mas só podem se
contaminar no interior de uma história mundial, até que elas consigam criar
relações de ressonância, permitindo a emergência de um processo global com
múltiplos enraizamentos locais.
No entanto, para um trabalho desta natureza, como disse anteriormente,
nos falta muito. Há de se reconhecer que nossa formação, em larga medida, ainda
não nos qualifica para tanto. Como toda estratégia comparatista, precisaríamos
ser capazes de trafegar bem em dois mundos, operar bem duas gramáticas. O que
ainda não é o caso.
Por isto, o que gostaria de fazer consiste em partir não da história da
elevação da liberdade a horizonte regulador de nossas expectativas de
transformação social, tal como ela se configuraria no Ocidente, mas partir de seu
ponto de esgotamento, de seu giro autocrítico. Eu gostaria de organizar essa
arqueologia a partir do fim, tendo o fim como seu verdadeiro horizonte. Ou seja,
partir do momento em que nosso modelo hegemônico de liberdade é
reflexivamente questionado no interior da própria tradição que o gerou.
Movimento rico e doloroso, um giro autocrítico desta natureza é expressão de
nosso próprio descentramento, de nossa própria possibilidade de
descentramento.
É claro que tal estratégia exige, por sua vez, a aceitação de certos
pressupostos. O primeiro deles é que poderíamos falar de “modelo hegemônico”
nesse caso. Como se a multiplicidade dispersa de usos do conceito de liberdade
no ocidente acabasse por partilhar certos traços comuns. Traços estes que
definem os limites dos efeitos pragmáticos, da força produtiva do uso do
conceito. Obviamente, esta não é uma proposição imediatamente evidente. No
entanto, gostaria de mostrar como ela pode ser sustentada.
Já o segundo pressuposto defende que um giro autocrítico da liberdade no
interior do pensamento filosófico ocidental permite abrir um campo de
ressonâncias com possibilidades de emancipação presentes em formas sociais
outras. O que poderia ser um passo importante para o que outros já definiram
antes de nós como o exercício de descolonização de nossas formas de pensar e
agir. Ou seja, o pressuposto aqui é: nossas estratégias de auto-crítica nos
aproximam de possibilidades de emancipação não organizadas por uma matriz
que se apresenta como colonizadora de pensamento.
Digamos que essas estratégias de auto-crítica partem de duas formas
possíveis do impacto do contato com o outro. Duas formas de metamorfose a
partir da exposição à alteridade. A primeira diz respeito à colisão com uma
alteridade externa, vinda do contato com outras formas de vida dispersas
geográfica e historicamente. A segunda é o fruto do desvelamento de uma
alteridade interna que parece habitar nossa própria forma de vida, que constitui
práticas que produzem contradições em nosso própria forma de vida, invertendo
continuamente às determinações valorativas que parecem nos orientar. Na
verdade, gostaria de terminar nosso curso explorando essa segunda estratégia.
Eu gostaria de mostrar como somos habitados por práticas que tem a força de
erodir periodicamente o solo de nossa noção hegemônica de liberdade e que,
com isto, nos impulsiona a estratégia de auto-crítica de nós mesmos. Há um setor
da prática estética que tem essa força, produzindo uma noção de autonomia e
liberdade radicalmente distinta daquela que circula em nosso horizonte social.

Auto-pertencimento e propriedade de si

Mas antes de falar sobre o fim, gostaria de discorrer sobre o começo e


sobre o trajeto que pretendo fazer neste curso. Eu gostaria de justificar minhas
escolhas na composição de nosso trajeto. Talvez vocês conheçam uma afirmação
polêmica de Hannah Arendt:

Não há preocupação com a liberdade em toda a história da grande


Filosofia, desde os pré-socráticos até Plotino, o último filósofo da
Antiguidade. E quando a liberdade fez sua primeira aparição em nossa
tradição filosófica, o que deu origem a ela foi a experiência da conversão
religiosa – primeiramente de Paulo, e depois de Agostinho5.

Arendt pode fazer uma afirmação desta natureza porque, a seu ver, a filosofia
grega conheceria, principalmente, uma discussão sobre liberdade onde esta não
se encontra em seu terreno natural, a saber, a política. Antes, a liberdade
apareceria principalmente como liberdade interior, como disposição ética de
conformação ao logos. Pois o modo de vida do filósofo era pensado em oposição
ao bios politikós. Isto permitira o aparente paradoxo filosófico de um escravo,
Epiteto, considerar-se livre. E apenas quando o cristianismo reconstrói toda a
noção política de liberdade a partir da discussão sobre o livre-arbítrio, sobre a
relação consigo mesmo, a liberdade poderia aparecer como um problema
efetivamente filosófico.

5 ARENT, Hannah; Entre passado e futuro, São Paulo: Perspectiva, p. 191


Esta análise, no entanto, não leva em conta o significado efetivo da
eleutheria entre os gregos, significação esta que, como veremos, não permite a
dissociação entre liberdade interior e liberdade política. Mas neste curso não se
trata de propor uma análise exaustiva dos desdobramentos da noção de
eleutheria entre os gregos, o que exigiria um trabalho de longo termo. Minha
análise é, em larga medida, pontual. Pois trata-se de pensar os gregos a partir de
uma de suas recepções contemporâneas. A tese que gostaria de defender
consiste em dizer que a experiência grega da liberdade como auto-
pertencimento será recuperada no interior do projeto de um dos filósofos
contemporâneos mais importantes para nosso debate, a saber, Michel Foucault.
Pois há uma tese em Foucault, que se explicita em seus últimos trabalhos, que
consiste a defender que a reorientação contemporânea das reflexões sobre
emancipação deveria partir da recuperação de formas de auto-pertencimento
que os gregos compreenderam como a expressão fundamental da liberdade. Por
isto, nosso primeiro módulo será dedicado à construção, entre os gregos, da
noção de liberdade como auto-pertencimento. Para tanto, gostaria
principalmente de discutir o conceito de liberdade no cinismo e no estoicismo.
Lembremos inicialmente como o conceito grego de liberdade se constitui
progressivamente sobre o solo de uma experiência negativa de desordem e caos.
Por esta razão, eleutheria estará sempre vinculada ao crescimento sem entraves
assegurado pelo vínculo ao lugar natal. Basta levar em conta como o termo
eleutheria tem sua raiz no indo-europeu leudh, que significa : crescer,
desenvolver-se. Crescer graça a raízes em um povo ou território que permite a
alguém ser e permanecer quem se é. Daí porque alguns comentadores dirão:

Contrariamente a uma ideia que se tornou tão comum quanto difícil a


justificar de forma rigorosa, a liberdade não foi inicialmente percebida
pelos gregos como a propriedade jurídica que distingue o homem
eleutheros do escravo, mas como a relação exclusiva e precária a um solo
partilhado a respeito do qual deve-se sempre defende-lo da ameaça6.

Por isto, a experiência da liberdade na Grécia estará ligada ao destino de três


conceitos reguladores: autarkeia (auto-suficiência), autoctonia e autonomia.
A noção de autarkeia é central no cinismo grego de Diógenes, de
Antístenes, de Menipo. Neste sentido, lembremos do significado em fundar a
autarkeia cínica através da posição da apatia, da capacidade de não se deixar
afetar. Fundar a dominação de si na negação direta dos vínculos privilegiados a
objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade.
Digamos que a liberdade cínica não é “liberdade de fazer determinadas ações”,
mas principalmente “libertação em relação a certos objetos e paixões”,
“libertação em relação às amarras do mundo”. Conhecemos, por exemplo, a
anedota que diz:

Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar


uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo o que
transforma a vida em algo agradável, Diógenes o tomou por modelo e
encontrou remédio em seu despojamento.

6 AVEZ, Peggy; L’envers de la liberté, Paris: Editions de la Sorbonne, 2010, p. 31


Isto permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na
limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do vínculo aos
objetos sensíveis. Este conceito negativo de liberdade nos demonstra como a
physis, enquanto plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa,
aparece principalmente como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse
um princípio positivo e autônomo de orientação da ação, seria necessário algo
como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta
ao cinismo. Várias anedotas dão conta desta orientação moral como negação
simples do nomos. Lembremos, por exemplo, da declaração de Diógenes a
respeito de seu hábito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me
esforço de fazer na minha vida o contrário de todo mundo”7.
Esta autarkeia em relação as estruturas da causalidade externa
desempenhará papel fundamental também no estoicismo. Mas é com os estoicos
que veremos mais claramente essa forma de pensar a liberdade a partir da
definição do que me é próprio, do que depende e não depende de mim, da
restrição de minha vontade e da deliberação a respeito do que me cabe. “Desde o
início”, dirá Epiteto:

a que exercerás a não ser a distinguir o que é seu e o que não é seu, o que
depende de ti e o que não depende de ti, o que encontra obstáculos e o
que não encontra? (...) E de que terás ainda um desejo apaixonado? Pois
tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que dependem de tua
vontade porque elas são belas, mas não tens o desejo dessas que não
dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazão, ao impulso que
precipita contra toda medida8.

São em afirmações como essas que vemos a enunciação de um vínculo


fundamental, vínculo esse que é nossa herança grega, entre liberdade e auto-
pertencimento. A liberdade é a capacidade de viver como se quer, de ter
vontades sem obstáculos. Mas isto pressupõe o exercício de partilha entre o que
me é próprio e o que não me é próprio, entre o que é allótrios (estrangeiro,
pertencente a outro) e o que é ta ephi emin (o que depende de nós). Um exercício
que alguns poderiam compreender como suprema resignação, ainda mais
quando Epiteto faz afirmações como: “não procure que o que acontece aconteça
como queres, mas queira o que acontece como acontece e você encontrará dias
felizes”9. Na verdade, o que move esse assentimento estóico é o reconhecimento
do logos naquilo que acontece. Há uma causalidade estrita no estoicismo, nada
acontece sem razão. Assim, a apropriação, a oikeiosis estoica em relação ao curso
do mundo pode ser momento da liberdade porque trata-se de querer o que se
afirma como racional, como se assente a uma proposição matemática cuja
verdade não depende de nós.

7 DIÓGENES LAÉRCIO, idem, p. 30


8 EPITETO, Entretiens IV, 83
9 EPITETO, Manual, VIII
O que gostaria de chamar a atenção é para o tipo de trabalho sobre si que
tal experiência da liberdade pressupõe. Um trabalho cujo eixo fundamental
encontra-se na capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim,
daquilo que estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Eu gostaria de
mostrar como tal horizonte da liberdade como auto-pertencimento chega até
Foucault. É ele que o orienta na compreensão dessas estratégias de “trabalho
sobre si” que serão a base para uma soberania sobre si mesmo que será a
expressão da experiência da liberdade:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauração de uma relação a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessão e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessão de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo10.

Mas eu gostaria de pensar este curso tendo em vista a explicitação de um


impasse nessa estratégia restauradora. Por isto, nosso segundo módulo será
dedicado ao conceito de liberdade como propriedade de si. Pois gostaria de
levantar uma questão que diz respeito às condições contemporâneas para a
realização de demandas de auto-pertencimento. Para nós, sujeitos das
sociedades capitalistas e sua fase neoliberal, o que significa ler e tentar recuperar
formas diversas de auto-pertencimento como modelo de realização da
liberdade?
Se aceitarmos que a liberdade não pode ser compreendida apenas como
um exercício de expressão individual, mas que ela é, na verdade, um modo de
relação social, então será importante nos perguntarmos como certos conceitos
filosóficos vinculados à estruturação normativa da noção de liberdade podem ser
atualmente significados. Isto dá a atividade filosófica um caráter estratégico que
é constitutivo de sua natureza histórica. Pois é possível que existam situações
históricas nas quais certos conceitos não podem mais ser postos, isto se
quisermos conservar o potencial de emancipação que eles um dia foram capazes
de expressar. Há certas coisas das quais não podemos mais falar, se quisermos
realiza-las. É possível que tal pressuposição valha para as múltiplas e diversas
formas de liberdade como auto-pertencimento.
Eu gostaria pois de partir da definição da liberdade como propriedade de
si enquanto uma das origens históricas da noção moderna de autonomia. Todos
conhecemos a afirmação de Locke no Segundo Tratado do Governo, de 1689.

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os


homens, ainda assim todo homem tem a propriedade em sua própria
pessoa. A este ninguém tem direito algum, a não ser ele próprio. Pode-se
dizer que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos são
propriamente seus. Tudo o que ele retire do estado que a natureza
providenciou e lá deixou fica misturado ao seu trabalho, justando-se a
algo que lhe pertence e, por isto, fazendo dele sua propriedade11.

10 FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245


11 LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
Ou seja, a propriedade individual do que aparece previamente como um
bem comum (a terra e todas as criaturas inferiores) é baseada no fato do
trabalho ser, ao mesmo tempo, uma expressão de si e forma de possessão. O
trabalho aparece aqui como a produção do que é próprio a mim, do que é a
confirmação especular de minha própria determinação. Como o burguês que tem
dentro de sua casa objetos que contam a história de sua pessoa, de suas
pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e memórias, a consciência que
trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande home decorada
por objetos que são a expressão de sua própria história. Pois propriedade é,
acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estão
completamente submetidas ao meu domínio. Esta sobreposição entre expressão
e possessão pode ocorrer porque a forma da auto-determinação é
imediatamente a expressão de relações de propriedade. Eu sou sujeito porque
tenho a propriedade de minha própria pessoa.
A tese que gostaria de defender com vocês consiste em dizer que, no
interior de nossas formas de vida, toda tentativa de pensar a liberdade como
auto-pertencimento será, necessariamente, submetida aos parâmetros da
propriedade de si. Tal tese parte do pressuposto do capitalismo ser algo mais do
que um sistema de trocas econômicas, ser de fato uma gramática de relações
sociais. O que nos obriga a assumir que no seu interior certas operações tornam-
se gramaticalmente impossíveis. Uma delas será distinguir auto-pertencimento e
propriedade de si. Daí a ideia de insistir na emergência da consciência
revolucionária de que só poderia haver liberdade lá onde a gramática da
propriedade fosse deposta.
Notem que se trata não apenas de dizer que a propriedade deveria ser
melhor partilhada a fim de que a liberdade não fosse paralisada pela
desigualdade social. A proposição, como gostaria de mostrar, é mais ontológica.
Trata-se de afirmar que a compreensão das relações a si, ao outro e ao mundo a
partir de uma gramática da propriedade será sempre a forma suprema de
alienação, que a liberdade começa com o colapso gramatical das noções de
“meu”, de “próprio”.

Liberdade como lei

Dito isto, gostaria de passar ao terceiro módulo: este dedicado à noção de


liberdade como auto-legislação. Pois nossa concepção hegemônica de liberdade
não está apenas vinculada à noção de auto-pertencimento, mas ao fato de tal
auto-pertencimento expressar-se de forma privilegiada através da concepção de
autonomia, concepção de ser capaz de colocar-se como legislador de si mesmo.
Para nós, até mesmo quando pensamos a liberdade, nos é natural pensá-la sob a
forma da lei, do exercício da lei.
Tal noção de auto-legislação, como gostaria de defender, tem uma dupla
matriz no ocidente: uma matriz teológica e outra matriz antropológica. Esta
dupla matriz estará sempre presente quando o conceito de autonomia tornar-se
não apenas o fundamental de uma filosofia moral renovada, como vemos em
Kant, mas também a base de políticas da emancipação.
Por isto, o terceiro módulo propõe algo como uma arqueologia do
conceito de autonomia que parte da constituição da noção de livre-arbítrio na
teologia cristã. Noção esta que pressupõe um conflito no interior da própria
vontade, como dualidade no interior de uma mesma faculdade. Pois quem fala
em livre arbítrio, fala em escolha entre aquilo que aparece à minha vontade como
possível e desejável. Essa escolha apoia-se não apenas em uma dualidade da
vontade, mas também em uma hierarquia da vontade. Há uma vontade que se
submete a outra, há um querer e um “querer querer” ou “querer não querer”,
como se estivéssemos a tratar de uma volição de duplo nível.
Soma-se a isto o fato de que os séculos XVI e XVII na Europa são, acima de
tudo, marcados pelo contato com o dito Novo Mundo. Antropólogos como David
Graeber insistirão que tal contato teve influência decisiva na constituição do
horizonte conceitual da filosofia política moderna, que começava a engendrar-se
à época: estado de natureza, origem da desigualdade entre os homens,
autonomia são apenas alguns termos cuja configuração no interior do debate
europeu é incompreensível se abstrairmos do fato de que eles eram, em larga
medida, respostas e elaborações a respeito das críticas feitas por ameríndios às
formas europeias de vida. Lembrem que relatos de jesuítas e viajantes a respeito
das ideias de povos americanos eram uma das literaturas mais prediletas dos
europeus letrados da época. E tais relatos diziam coisas, em 1642, como:

Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da


liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo
quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo
de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a
autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são
potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de
falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens12.

Como disse o padre Lallemant em 1644, a respeito dos Wendats do


Quebec: “não creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Pois
se tratava de povo que desconhecia a obrigação de submissão à autoridade
paterna, que não tinham sistemas individualizados de penas. Um crime era pago
não pelo agente, mas por compensações feitas por sua família, clã ou tribo. E o
elemento mais impressionante destes relatos era a honestidade de reconhecer
que tais sociedades funcionavam melhor que as europeias. Não é difícil imaginar
o tipo de desafio que tais afirmações colocavam para a filosofia política europeia
e seu desejo de legitimar o que entendemos pela superioridade do ocidente.
Eu insistiria em ler a construção da autonomia, desta noção de liberdade
como capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, de submeter-se de bom
grado a uma lei transcendente a partir dos moldes da submissão que devo ter da
palavra revelada, como uma das estratégias maiores da defesa ocidental de que
havia sociedades nas quais ser livre não equivalia a submeter-se à autoridade.
Por fim, gostaria de insistir que a noção de autonomia irá bifurcar-se a
partir do início do século XIX. No mesmo momento histórico que tal noção de
autonomia se desenvolvia, principalmente a partir de sua dimensão moral, um
conceito relativamente distinto de autonomia emergia no interior do que
entendemos atualmente por “experiência estética”. Pois esse conceito de
autonomia que emerge com a construção propriamente moderna da experiência
estética, a partir do final do século XVIII e começo do século XIX, não estava
12 Rélations jesuites 6, p. 109
fundado na expressão de relações de auto-pertencimento. Na verdade, ele estava
assentado em operações de abertura a processos de descentramento e de
implicação com objetos e movimentos não redutíveis a predicações de
pertencimento13. Paradoxalmente, havia uma irredutível dimensão de
heteronomia nessa experiência estética que, a partir do século XIX, se constituirá
como arte autônoma e cuja primeira figura encontraremos no romantismo.
Heteronomia esta vinda da constituição de um campo de implicação do sujeito
com objetos e movimentos que não tinham sua forma, que não se configuravam
no interior de espaços egologicamente indexados. Por isto, a forma estética a
partir de então será o espaço privilegiado de emergência do fragmentário, do
involuntário, do contingente, da desmesura própria ao que violenta o
esquematismo da imaginação (como vemos, nesse caso, nas temáticas relativas
ao sublime).
No entanto, essa heteronomia produzida pela experiência estética não
poderia, de forma alguma, ser compreendida como figura da servidão. Antes, ela
se configurava como uma experiência social da liberdade de forte cunho crítico
em relação às possibilidades que foram paulatinamente se configurando no
interior do horizonte normativo das formas de vida próprias à emergente
sociedade dos indivíduos com seus modos próprios de determinação. Primeiro,
ela permitia uma crítica às pressuposições de identidade que uma liberdade
como auto-pertencimento necessariamente pressupõe, com seus problemas para
a configuração dos processos de reconhecimento implicativo com a diferença.
Por isto, ela impedia a redução da liberdade tanto à afirmação da autonomia
individual quanto à integração a um corpo social atual (o que não eliminava a
possibilidade de expressar um corpo social por vir). Antes, ela abria espaço à
emergência de figuras da subjetividade nas quais as dimensões do inconsciente,
do involuntário, do contingente não aparecerão mais como a limitação de minha
liberdade, adiantando um processo que se mostrará fundamental para o
desenvolvimento da estratégias filosóficas de crítica a partir de então. É desta
forma que irá se configurar algo que podemos chamar de “matriz estética da
autonomia” em contraposição à “matriz moral da autonomia”.
Gostaria de terminar nosso curso discutindo não apenas a emergência de
tal matriz estética, mas como ela será a expressão de um giro-autocrítico no
interior do conceito de liberdade. Como se a arte fosse praxis social que nos
mostra algo de irredutível ao horizonte metafísico e gramatical que fundamenta
nossas formas hegemônicas de vida no ocidente. Espero ainda poder evidenciar
como tal matriz estética traz consequências maiores para o campo da moral e da
política em seus desafios contemporâneos.

13Ver, a este respeito, MENKE, Christoph; Kraft: Eine Grundbegriff ästhetischer Antropologie,
Frankfurt: Suhrkamp, 2008. O modelo de tais processos fora fornecido pela articulação entre
estética e força em HERDER, Johann; “Übers Erkennen und Empfinden in der menchlichen Seele”,
In: Theoretische Schriften, Berlin: Holzinger, 2013; alem das discussões sobre o sublime em
BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into our ideas of the sublime and beautiful, Oxford
University Press, 1990. Ele permanecerá, de certa forma, nas discussões modernas, como
podemos ver nas reflexões a respeito da força de “estremecimento” (Erschütterung) própria à
experiência estética em ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
Arqueologias do conceito de liberdade
Aula 2

Na aula passada, eu dissera que o conceito grego de liberdade se constitui


progressivamente sobre o solo de uma experiência negativa de desordem e caos.
Por esta razão, eleutheria estaria sempre vinculada ao crescimento sem entraves
assegurado pelo vínculo ao lugar natal. Bastaria levar em conta como o termo
eleutheria tem sua raiz no indo-europeu leudh, que significa : crescer,
desenvolver-se. Crescer graça a raízes em um povo ou território que permite a
alguém ser e permanecer quem se é. Daí porque alguns comentadores dirão:

Contrariamente a uma ideia que se tornou tão comum quanto difícil a


justificar de forma rigorosa, a liberdade não foi inicialmente percebida
pelos gregos como a propriedade jurídica que distingue o homem
eleutheros do escravo, mas como a relação exclusiva e precária a um solo
partilhado a respeito do qual deve-se sempre defende-lo da ameaça14.

Por isto, a experiência da liberdade na Grécia estaria ligada ao destino de


três conceitos reguladores: autarkeia, autoctonia e autonomia. Em todos esses
três casos, é claro como a noção de auto-pertencimento é um horizonte comum
fundamental. Autarkeia é normalmente traduzido por auto-suficiência, pela
qualidade de ser independente de condições externas. Pode ser também
traduzido por auto-contentamento. O termo arkeo que lhe serve de raiz significa,
por sua vez: ser forte, ser satisfeito, defender, velar. Como se a força estivesse
ligada à capacidade de não ser afetado por condições externas. Autoctonia, por
sua vez, é a condição de quem é autóctone, ou seja, de quem é deste solo, desta
terra, já que khthón é exatamente terra e solo.
Por fim, autonomia indica submetido a sua própria lei. Nomos vem ainda
de partilha, parte, dividir. O que deixa claro como trata-se de uma atribuição de
localização e determinação: qual minha parte, de que lado estou da divisão. A
primeira vez que encontramos o termo “autonomia” é na peça de teatro Antígona
(línea 917), de Sófocles (497/6 - 406/5 a.C.). No texto, o termo se refere à
decisão de, por vontade própria, seguindo a sua própria lei, Antígona entrar viva
no interior do Hades, pois ela desobedecera deliberadamente as leis da pólis,
mesmo sabendo que tal desobediência significava a morte. Vemos assim como a
autonomia aparece enquanto vontade disposta a não levar em conta a
integridade física do agente para poder se realizar. Abre-se aqui a dimensão
própria a algo como a “integridade moral”, ou seja, a decisão de realizar ações
que podem, em certas circunstâncias, relativizar até mesmo as exigências
próprias ao princípio de auto-conservação. Esta vontade que submete outras
vontades, aparecendo como um dever intransponível, dever que permite ao
sujeito relativizar as exigências imediatas de auto-conservação, reaparecerá de
maneira decisiva na constituição da noção moderna de autonomia.
Claro que, no caso de Antígona, a vontade que expressa a autonomia não
pode ser vista como individual, tal como na versão moderna de autonomia.
Antes, ela é a expressão do vínculo do sujeito a uma lei que não se confunde com
a lei da pólis, com suas determinações contextuais tendo em vista a preservação
14 AVEZ, Peggy; L’envers de la liberté, Paris: Editions de la Sorbonne, 2010, p. 31
do laço social. A lei que Antígona sustenta é, como ela dirá em um importante
momento da tragédia, a “lei dos deuses”, ou seja, lei incondicional capaz de
fundar um dever que é marca de adesão do sujeito a modelos substancialmente
determinados de ação, modelos não apenas formais, mas que prescrevem
claramente o que deve ser feito, que ação deve ser realizada, que regra prática
deve ser seguida. No caso da tragédia, temos, por exemplo, o dever de prestar o
rito funerário a todo e qualquer sujeito. O que leva Antígona a enterrar seu irmão
Polinices e enfrentar a proibição de Creonte.
Ou seja, se autoctonia indica o vínculo de pertencimento a uma terra
comum, autonomia indica para os gregos o pertencimento a uma lei comum.
Nesse dois casos, temos o movimento de compreender o exercício da liberdade
como a apropriação de um comum que fundamenta o que me é próprio. Esta
poderia até mesmo ser uma forma de descrever uma das características
fundamentais da liberdade entre os gregos. Nos dois casos, há o horizonte do que
me leva a precisar afirmar o que me é comum como certa forma de defesa. Neste
contexto, podemos compreender melhor o terceiro termo desta tríade, a saber,
autarkeia. Para tanto, gostaria de partir dos cínicos gregos.

Autarkeia e cinismo

Não deixa de ser uma profunda ironia perceber como o termo “cinismo” chegou
até nós. Seu sentido está normalmente ligado a alguma forma de dissimulação, ao
ato de retirar da enunciação da verdade a força performativa que esperávamos
encontrar. Por isto, o termo nos designa algo como um ethos em degradação,
como uma franqueza que parece zombar da verdade. Podemos fornecer um
modelo para esta maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos
partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas
universais de validade como o princípio de tolerância. Podemos também afirmar
que na significação do princípio já encontramos, aparentemente, a designação de
um modo de ação: o respeito ao outro em sua singularidade. Mas, “em certas
situações especiais”, para defender o princípio de tolerância, eu posso ser levado
a ser intolerante com aqueles que são contra o princípio de tolerância. Em defesa
da tolerância, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha
comunidade. Desta forma, posso continuar sendo tolerante na dimensão dos
critérios normativos mesmo sendo intolerante na dimensão da ação. Por sinal,
este foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto
dias antes da eleição que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais
tolerante do mundo. Sua própria figura era um exemplo maior do que
procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte
das características pessoais e opiniões eram politicamente corretas : era
homossexual assumido, tinha boas relações com imigrantes, um senso inato para
a ironia etc. No entanto, o núcleo do seu discurso era: “Os Países Baixos
alcançaram um alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo
isto deixando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância,
devemos então ser intolerantes contra os intolerantes. Nós já fomos muito
tolerantes com a intolerância”.
Esta não era a compreensão que os gregos tinham da escola cínica de
Diógenes, de Antístenes, de Menipo, de Crates, de Hipparchia, entre outros. Tanto
que seu nome aludia a “cão” , kunos, por se tratarem de filósofos cuja fala franca
era, via de regra, agressiva, sarcástica, sem consideração pelas convenções
sociais e regras de sociabilidade. Uma verdade nua, crua, resultado de uma vida
também nua e crua, tanto na recusa ao poder, tanto na franqueza em relação à
sexualidade, tanto na procura pela despossessão dos bens. Uma verdade que
estará mais próxima de uma rígida ascese corporal que de um exercício de
esclarecimento filosófico. Nudez esta que pode começar a nos explicar certa
maneira grega de viver a liberdade, de fazer da liberdade o exercício de um
regime de fala e de vida. Essa reversão do cinismo em seu contrário que
conhecemos hoje nos obriga atualmente a falar de “cinismo antigo” e “cinismo
moderno”.
O primeiro filósofo cínico é Antístenes, discípulo de Sócrates, cuja filosofia
é baseada no uso extensivo da enkrateia (auto-domínio) socrática, mas é
Diógenes que passará a posteridade como o mais emblemático dos filósofos
cínicos. Posteriormente, o cinismo será uma filosofia extremamente popular no
período do Império Romano. As figuras cínicas serão recuperadas, não por acaso,
pelo Iluminismo. Esta recuperação do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a
transformar Diógenes em herói popular na iconografia da Revolução francesa,
deve ser compreendida no quadro de constituição dos móbiles da crítica
iluminista. A parresia cínica, palavra autêntica com seu sarcasmo em relação aos
preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade aparecerá como
ponto de orientação da crítica no iluminismo. Pelas mão de Diderot, o cinismo
encontra seu ponto de inversão em seu contrário, como podemos atestar em seu
livro O sobrinho de Rameau. Posteriormente, o cinismo será recuperado pela
filosofia contemporânea, seja para indicar uma degradação do ideal iluminista
em “falsa consciência esclarecida” (razão cínica, em Sloterdijk), seja para pensar
as modalidades de recuperação de sua força crítica como forma de vida e estética
da existência (Foucault). Foucault chegará a definir o cinismo como: “uma
experiência ética fundamental do ocidente” que nos acompanhará durante toda
nossa história, como se fosse possível: “mostrar a existência permanente de algo
que pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”.
Por outro lado, lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício
mais complexo do que pode parecer pois falta um acesso direto aos textos. Os
textos canônicos de contato com o pensamento cínico são recensões feitas por
terceiros, a parte os textos de um cínico menor, Teles. Neste sentido, o sexto livro
do Vida, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres de Diógenes Laércio ainda é a
grande referência; mas ele, por sua vez, é um recessão de anedotas de domínio
público e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos que temos
acesso hoje são principalmente da fase romana do cinismo que se inicia a partir
do século I DC, como, por exemplo, os escritos de um sofista, Dion Crisostomos,
de Favorinus, além das sátiras de Luciano (nas quais Menipo e Diógenes
aparecem frequentemente como protagonistas principais) e dos discursos do
Imperador Juliano. Este estado das fontes impede um estabelecimento mais
preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O
estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja inseparável do
estudo de sua recepção”15.

15BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ, Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in


antiquety and its legacy, p. 14
Se pudermos fornecer uma definição, diremos que, neste momento grego,
o cinismo aparece como uma filosofia eudemonista fundada na crítica ao
convencionalismo da moral que guia o nomos e na tentativa de recuperação de
uma autenticidade do agir que apela ao recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava
fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura através do
programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade como
padrão regulador da conduta. Como se: “a natureza provesse uma norma ética
observável nos animais e em comparações entre culturas”16. Conhecemos, por
exemplo, a anedota que diz:

Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar


uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo o que
transforma a vida em algo agradável, Diógenes o tomou por modelo e
encontrou remédio em seu despojamento17.

Isto permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na


limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do vínculo aos
objetos sensíveis. Sexto Empírico dirá: “Epicuro afirma que o prazer sensível é
um bem. Antístenes, ao contrário, diz preferir a loucura ao mal gozo”18. Ou
ainda: “Crates acrescenta ainda a essas palavras o resumo de seu pensamento:
Quem não se deixa submeter, mas resiste ao prazer servil, gozará de uma
liberdade soberana e indestrutível”19. E em este “não se deixar submeter”
encontramos um conceito de filosofia como disciplina rigorosa (askêsis) tendo
em vista o retorno a um estado natural e à recusa aos falsos valores da vida
social. Por isto, para o cinismo, a virtude era uma questão de apatia e desafecção,
ou seja, indiferença absoluta em relação aos objetos sensíveis que mobilizam os
desejos na vida social. Indiferença que encontramos, por exemplo, na afirmação
de Antístenes presente no Banquete de Xenofonte:

E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor, a
primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais
me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razão de que
ninguém consente em ter comércio com elas20.

Desta forma, o retorno à physis pode fundamentar a autarkeia dos que


compreendem a liberdade como indissociável da capacidade de não se deixar
afetar, embora esta não afecção venha associada à denúncia da inautenticidade
das leis da polis. Denúncia que faz do cinismo a afirmação do cosmopolitismo e
da recusa do vínculo à territorialidade social da polis. Denúncia que se realiza
também na rejeição da cultura intelectual (paideia) como horizonte de formação.
No entanto, esta crítica cínica a uma cultura compreendida como
degradação da natureza foi percebida, em várias ocasiões, como entificação de
um discurso amoralista. Isto fez com que os próprios cínicos, principalmente à

16 Idem, p. 8
17 DIÓGENES LAÉRCIO, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, Paris : Flammarion,
1965, p. 14
18 EMPIRICO, Sexto; Contra os matemáticos, XI, 73-74
19 PAQUET, Lucien; Les cyniques grecs: fragments et témoignages, p. 135
20 XENOFONTE, Banquete, IV, 38
ocasião da recuperação romana, se dedicassem à separação entre um “falso” e
um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar do combate de Luciano contra os falsos
cínicos). O fato é que esta discussão a respeito de um falso e de um verdadeiro
cinismo atravessou a recepção medieval e renascentista do legado cínico. O
elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao caráter heterônomo das obrigações
morais da vida social foram motivos para a recuperação do cinismo pela filosofia
moral do cristianismo medieval (Erasmo, Morus). No entanto, não foram poucos
os teólogos cristãos que compreenderam como simples figura do amoralismo a
crítica cínica com sua ausência de vergonha (verecundia) e com seu desprezo
pelas regras sociais. A possibilidade de aproximação entre a moralidade cristã e
o cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como heresia (vide
o caso dos Turlupins). Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar ainda
que tal dicotomia na recepção do cinismo chegou até a contemporaneidade.
Basta lembrarmos do projeto de Peter Sloterdijk em recuperar o pretenso
potencial disruptivo da crítica cínica aos costumes e á moral, isto a fim de
contrapô-lo ao cinismo próprio à ideologia do capitalismo contemporâneo. No
entanto, esta contraposição simples talvez passe ao largo da verdadeira questão.
Uma explicação possível para o fato desta duplicidade na recepção do
cinismo pode ser fornecida se nos atentarmos para certos problemas na
fundamentação de toda moral naturalista. Neste sentido, lembremos do
significado em fundar a autarkeia cínica através da posição da apatia. Fundar a
dominação de si na negação direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis
equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a
liberdade cínica não é “liberdade de fazer determinadas ações”, mas
principalmente “libertação em relação a certos objetos e paixões”. Esta libertação
permite a constituição de vínculos fundamentais entre liberdade e auto-
pertencimento. Lembremos do que diz Diógenes, segundo Epiteto:

“Desde que Antístenes me libertou eu nunca mais estive em servidão”.


Mas como ele o tinha libertado? Escutem o que Diógenes diz: “Ele me
mostrou o que me pertence e o que não me pertence. A propriedade não
me pertence, pais, domésticos, amigos, reputação, vínculos familiares,
relações sociais, tudo isso me é estrangeiro”. O que então te pertence
propriamente? “O uso das representações. Antístenes me mostrou que
este uso, eu o tenho inviolável e livre de toda restrição, ninguém pode me
opor um obstáculo ou me forçar a dispo-las contra a minha vontade21.

Este conceito negativo de liberdade permite, no entanto, a constituição de


um campo daquilo que me é próprio, permite a constituição de um campo de
pertencimento. Mas notemos que não temos, neste momento do pensamento
grego, algo como um pertencimento fundado na prevalência da individualidade.
A individualidade como indexador da liberdade não existe entre os gregos.
Mesmo quando personagens do mundo grego se contrapõem à lei social, nunca
isto é feito em nome dos direitos da individualidade. Como foi lembrado no início
da aula, Antígona, por exemplo, contrapõe-se à polis em nome da lei dos deuses.
Os cínicos se contrapõe à polis em nome do retorno à natureza enquanto plano
de imanência que permite a orientação da ação virtuosa. Essa ética da virtude
não é apenas fruto da crença de que as considerações exclusivas sobre o caráter
21 EPITETO, Entretiens, III, 24, 67
moral dos agentes podem definir as condições para a felicidade. Trata-se de, na
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo. O que não devia nos estranhar já que, como nos
lembra Heidegger, a physis aparece como uma palavra grega fundamental para
ser.
Isto dá uma declinação cínica singular a respeito da noção de autoctonia.
O cosmopolitismo cínico vem do fato da autoctonia não estar vinculada à
comunidade da qual venho, mas a natureza que me faz em casa em toda parte. O
que explica porque Antístenes afirmava que: “o sábio não vive respeitando as leis
da sua pátria, mas respeitando a virtude”22. Lembremos ainda de como Diógenes
se definia como: “sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pátria (apatris), um
mendigo e vagabundo, vivendo cada dia”23.
Se a realização como ser social é para o cinismo expressão de perda de si,
de submissão a um mundo de aparência, a despossessão e recomposição do
comportamento humano a partir do animal (há relatos de cínicos que transavam
e se masturbavam na rua) é a forma do retorno a si que permite a realização da
liberdade.
No entanto, muitas foram as críticas aos cínicos que insistiram no fato da
natureza no cinismo aparecer principalmente como a negação do nomos. Ou seja,
ela aparece como princípio meramente negativo. Para que a physis fornecesse
um princípio positivo e autônomo de orientação da ação, seria necessário algo
como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta
ao cinismo. Seria necessário o desenvolvimento extensivo do conceito de physis.
Várias anedotas dariam conta desta orientação moral como negação simples do
nomos. Lembremos, por exemplo, da declaração de Diógenes a respeito de seu
hábito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me esforço de fazer na
minha vida o contrário de todo mundo”24. Mas, se a physis é apenas o Outro da
vida social, então ela será apenas uma abstração capaz de englobar disposições
muitas vezes contraditórias entre si, pois variáveis de acordo com a modificação
subjetiva da perspectiva de avaliação do que pode se pôr como negação simples
do nomos. Impasse que Hegel tinha em vista ao lembrar que: “Diógenes no seu
tonel está condicionado pelo mundo que procura negar”25, ou seja, que a
verdadeira essencialidade de sua conduta é fornecida por aquilo que aparece
como limite à sua dominação de si.
No entanto, podemos dizer que a natureza no cinismo aparece como
restrição ao horizonte de necessidades que me permita poder acolher todo e
qualquer acontecimento. Não podemos deixar de comer, mas Diógenes não verá
problema em comer a carne de qualquer animal, nem verá signo de barbarismo
comer a carne humana. A limitação extrema e a indiferença funcionam aqui como
condição para a afirmação da racionalidade de todo acontecimento, como recusa
à criação de vínculos de dependência. Algo que veremos recuperado pelos
estoicos.

O riso da franqueza

22 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 10
23 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 20
24 DIÓGENES LAÉRCIO, idem, p. 30
25 HEGEL, Fenomenologia, par. 524, Phänomonologie, p. 345
Mas tentemos entender melhor a estrutura do falar franco cínico, expressão
maior da liberdade. A primeira característica que gostaria de salientar é a
articulação entre franqueza e sarcasmo. Como se a liberdade se exercesse de
forma privilegiada na derrisão e no riso. Ao falar do cinismo como forma
literária, Nietzsche lembra:

Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores,


cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido por
mistura do todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre
narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isto infringe
igualmente a severa lei antiga da unidade da forma linguística; caminho
este por onde os escritores cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na
máxima variegação do estilo, na constante variação entre formas métricas
e prosaicas, também a figura literária do “Sócrates furioso” que eles
costumavam representar em vida26.

Ou seja, esta escrita que ri de todas as coisas sérias é fruto da ironização do


gênero trágico colocada em marcha pelos cínicos. Bakhtin vê, na forma
humorística dos filósofos cínicos, as marcas do humor popular contra as
instaurações do gênero épico: “ É precisamente o humorista que destrói o gênero
épico, e geralmente destrói toda distância hierárquica”27. Neste processo de
destruição, até mesmo a fixidez da imagem de si, imagem construída no gênero
épico através da identificação com um missão simbólica que deve ser assumida
pelo sujeito, é abalada. Isto permite que o sujeito: “adquira a iniciativa ideológica
e linguística necessária para mudar a natureza de sua própria imagem”28, uma
iniciativa que estaria claramente figurada na imagem de Diógenes e na imagem
de Menipo fornecida por Luciano.
Isto demonstra como não estamos apenas diante de uma questão
estilística, mas de uma questão que toca a própria articulação cínica sobre os
modos de dizer a verdade. Modos de dizer a verdade tematizados pelos cínicos
através da parresia, ou seja, a franqueza da liberdade de palavra e da enunciação
direta da verdade que o cínico usa contra as imposturas do poder, contra a
lisonja e contra os falsos problemas filosóficos.
Michel Foucault, em seu curso sobre A hermenêutica do sujeito, retoma o
problema da parresia à ocasião de suas reflexões sobre o advento de uma relação
de cuidado de si que não seria mera figura da dominação de si (maîtrise de soi).
Foucault resume claramente o problema da parresia ao afirmar:

Faz-se necessário, já que utilizamos o logos, que haja uma lexis (uma
maneira de dizer as coisas) e também que tenha um certo número de
palavras que sejam escolhidas em detrimento de outras. Assim, não pode
haver logos filosófico sem esta espécie de corpo de linguagem , corpo de
linguagem que tem suas próprias qualidades, e que tem seus efeitos,
efeitos patéticos que são necessários. Mas o que deve ser necessário, a
maneira de regular estes elementos (elementos verbais, elementos que
têm por função agir diretamente sobre a alma) não deve ser, quando se é

26 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 88


27 BAKHTIN, The dialogical imagination, p. 23
28 BAKHTIN, idem, p. 38
filósofo, esta arte, esta tekné presente na retórica. Deve ser esta outra
coisa que, ao mesmo tempo, é uma técnica e uma ética, que é ao mesmo
tempo uma arte e uma moral e que nós chamamos de parresia29.

Neste sentido, a parresia refere-se, de um lado, a uma qualidade moral, a um


ethos, e, de outro, a um procedimento técnico, a uma tekné necessária para a
transmissão do discurso verdadeiro. Neste sentido, ela tem dois inimigos
maiores: a degradação da qualidade moral através da linguagem da lisonja e a
degradação da transmissão do discurso verdadeiro através da retórica (o que
não significa que a parresia não possa fazer uso de figuras da retórica).
Mas uma análise detalhada dos usos cínicos da parresia nos mostra uma
articulação absolutamente prenhe de consequências: nas mãos dos cínicos, a
parresia está sempre vinculada ao riso. Pois o falar franco cínico é indissociável
dos usos corrosivos do sarcasmo, do escárnio, da sátira, da paródia e da diatribe.
O humor aparece assim como a maneira correta de dizer aquilo que é da ordem
da verdade, humor que inverte designações e que esvazia significações. Isso
explica porque Diógenes era lembrado pelos gregos por ser um “falsificador de
moedas”, pois ao que parece ele e seu pai teriam de fato falsificado dinheiro em
sua juventude. Falsificar moeda significa recusar as determinações de valores e
garantias tais como circulam na vida social, significa inverter as relações de
valores, como Diógenes faz segundo tal relato: “Ao perceber uma vez guardas de
um templo levando com eles alguém que roubou um vaso, propriedade do
tesouro, afirmou: ‘Eis grandes ladrões levando um pequeno”30.
O que nos explica porque as formas da transmissão filosófica dos cínicos
estão todas vinculadas a modos humorísticos. Sabemos por exemplo que Crates e
Menipo deram à sátira (ao ponto de falarmos da sátira menipéia como gênero),
tanto ao mito quanto à filosofia, uma função central como gênero filosófico.
Podemos dizer que Diógenes eleva o chiste e os jogos de palavras a modos
privilegiados de enunciação da verdade. Assim, se é certo, como diz Foucault, que
a parresia é indissociável de uma prática de formação daquele a quem o falar da
verdade se endereça, então devemos tirar as consequências do fato deste
processo de formação dar-se pelas vias do riso. Este riso é dirigido contra as
figuras do poder. Lembremos, por exemplo, da anedota segundo a qual
Alexandre queria conhecer Diógenes e ao encontrá-lo estirado no chão pergunta-
lhe: “Diga-me o que queres e farei tudo o que quiser”, ele teria respondido: “Saia
da frente do meu sol”.

A crítica da metafísica

Mas a principal figura do poder é a metafísica, é a separação entre a


universalidade da ideia, como horizonte fundamental de produção do sentido, e a
existência. Como se a experiência da liberdade exigisse o destronamento da
metafísica. E é neste ponto que ganha relevância o que podemos chamar de
“teoria cínica da linguagem”. Ela se encontra sumarizada na afirmação canônica
de Antístenes contra a filosofia platônica : “Eu vejo bem um cavalo, mas não vejo
a cavalidade”. Afirmação repetida por Diógenes ao encontro do próprio Platão:
“Eu vejo a taça e a mesa, mas eu não vejo a ideia de taça e a ideia de mesa”. No

29 FOUCAULT, L´herméneutique du sujet, p. 350


30 DIÓGENES LAËRCIO, VI, 45
Percebam que estamos no interior de uma discussão sobre as relações
entre sentido e existência. Diógenes critica a estratégia platônica de vincular o
sentido a uma ideia transcendente, pois acredita que tal transcendência elimina
o enraizamento do sentido na existência. É isto que pode nos explicar, por
exemplo, porque Diógenes poderá afirmar que a música, a geometria, a
astronomia e outras ciências que não se baseiam no cálculo das empirias seriam
inúteis31. Ou ainda, de forma mais exemplar, podemos lembrar da história de
Antístenes que, a fim de provar a existência do movimento contra Zenão, levanta-
se da sala e começa a andar32. Ou ainda sua maneira de responder ao silogismo:
“Você não perdeu o que tem/ Você não perdeu chifres/ Logo, você tem chifres” –
“Eu não os vejo”. Uma existência, no entanto, cuja experiência não é descritível
sob a forma da predicação. Não tenho acesso ao que é a mesa ao dizer: “A mesa é
redonda, feita de madeira, um presente dado por meu pai, etc.”. A discussão feita
por Platão no Sofista parece claramente direcionada ao cinismo de Antístenes:

- Enunciamos ‘o homem’ aplicando-o múltiplas denominações. Nós


lhe atribuímos cores, formas, grandezas, vícios e virtudes. Em
todas essas atribuições, como em milhares de outras, não é
apenas o homem que afirmamos ser, mas ainda ‘bom’ e outras
qualificações em número ilimitado. É assim com todo objeto.
Igualmente, pomos cada um deles como um para dize-los
também múltiplos e para designá-los por uma multiplicidade de
nomes.
- Você fala a verdade
- E é, penso, servir aos que chegaram tarde à escola um belo
presente. A resposta imediata que encontramos é que é
impossível que o múltiplos seja um e que o um seja múltiplo. Eles
se comprazem a não permitir que o homem seja dito bom. Mas
apenas que o bom seja dito bom, e o homem seja dito homem33.

A este respeito, conhecemos, por exemplo, a afirmação presente na


Metafísica, de Aristóteles a respeito da “ingenuidade” da doutrina de Antístenes:
“que acreditava nada poder ser atribuído a um ser a não ser sua noção própria
(  )” 34. Mas é provável que Antístenes sustente a proposição
ontológica de que o ser não pode estar submetido a transformações que lhe são
exteriores. Na forma proposicional: “O homem é bom” estabeleço uma relação
entre sujeito e predicado na qual o predicado não está contido no sujeito. A
relação S é P exige assim uma transformação em S cuja causa lhe é exterior. Mas
uma teoria naturalista da linguagem, como a que anima o cinismo, afirmarão:
“que há, ou deve haver, uma conexão entre nomes e coisas de forma tal que os
nomes denominam seus nominatas em virtude de afinidade ou de propriedades
partilhadas”35. Mas como se trata de uma teoria da linguagem que é, ao mesmo

31 Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, idem, p. 34


32 “Um dos cínicos recebeu uma objeção a encontro da existência do movimento; sem nada
responder, ele levantou-se e pôs-se a andar, mostrando assim pelos fatos e pela evidência que o
movimento pode existir” (SEXTO EMPÌRICO, Hypotyposes, III, 66
33 PLATÃO, Sofista, 251b
34 ARISTÓTELES, Metafísica, 1024b, 32
35 LONG, The socratic tradition: Diógenes, Crates and hellenistic tradition, p. 36
tempo, uma ontologia, admitir que algo tem mais do que sua noção própria
implica admitir que algo está submetido a causalidade do que inicialmente não
lhe é próprio.
Mas isto implica também que a noção própria é a portadora do sentido do
ser referido. Caberá ao filósofo questionar o desvirtuamento da noção própria,
mostrando o que é de fato próprio a um referido ser. Daí porque, Epicuro lembra
que, para Antístenes, o começo da verdadeira educação estaria no aprendizado
dos nomes. Isto nos explica também porque: “Algumas das práticas linguísticas
de Diógenes mostra-o invertendo nomes que são primariamente descritivos em
nomes que pertencem apenas àqueles que merecem a descrição”36. Ou seja, trata-
se de submeter o uso descritivo dos nomes a um uso que vise apenas a
determinação da essencialidade. Talvez o exemplo mais célebre desta estratégia
crítica seja a anedota na qual Diógenes sai à luz do dia, com uma lanterna na mão,
gritando: “Procuro um homem”. Ou seja, Diógenes aceita a conotação ordinária
das palavras (o que significa um homem), mas insiste que sua denotação deve
ser invertida (o que cai sob a extensão do termo “homem”). Ao que parece,
Diógenes vagava sempre a noite, falando ao vazio.

36 LONG, idem, p. 37
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 3

Na aula passada, começamos nossa discussão a respeito do conceito de liberdade


entre os gregos. Vimos como a liberdade grega funda-se na articulação entre três
conceitos fundamentais: autoctonia, autonomia e autarkeia. Lembrei a vocês
como, em todos esses três casos, é claro como a noção de auto-pertencimento é
um horizonte comum fundamental. Autarkeia é normalmente traduzido por auto
-suficiência, pela qualidade de ser independente de condições externas. Pode ser
também traduzido por auto-contentamento. Autoctonia, por sua vez, é a condição
de quem é autóctone, ou seja, de quem é deste solo, desta terra, já que khthón é
exatamente terra e solo. Por fim, autonomia indica submetido a sua própria lei.
Nomos vem ainda de partilha, parte, dividir. O que deixa claro como trata-se de
uma atribuição de localização e determinação: qual minha parte, de que lado
estou da divisão.
Tendo tal articulação em mente, nós vimos alguns traços maiores da
filosofia cínica. A escolha em começar nossa discussão sobre liberdade pelo
cinismo grego tem duas razões. Primeiro, o cinismo foi uma verdadeira filosofia
popular que atravessa o mundo greco-romano. Sua influência será
extremamente significativa na constituição das modalidades de crítica a partir do
iluminismo, devido ao conceito de parresia (fala franca), devido à crítica ao
convencionalismo do nomos e ao recurso à moral naturalista. Diógenes chegou a
aparecer como figura heroica para os revolucionários franceses. Atualmente, o
cinismo como horizonte de uma prática e pensamento crítico reapareceram
pelas mãos de Peter Sloterdijk e Michel Foucault.
Segundo, o cinismo foi um eixo importante de influência também no
interior do pensamento grego. Neste sentido, minha ideia era explorar a relação
maior entre cinismo e estoicismo, constituindo assim um eixo importante para
compreendermos as discussões sobre a eleutheria entre os gregos. Por isto,
vamos recapitular alguns pontos da aula passada para darmos sequência a nossa
discussão.
Na aula passada, afirmei que o cinismo aparece como uma filosofia
eudemonista fundada na crítica ao convencionalismo da moral que guia o nomos
e na tentativa de recuperação de uma autenticidade do agir que apela ao recurso
à physis. Ou seja, o cinismo visava fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao
nomos e à cultura através do programa de retorno à uma moral naturalista que
toma a animalidade como padrão regulador da conduta. Como se: “a natureza
provesse uma norma ética observável nos animais e em comparações entre
culturas”37.
Isto não levava, no entanto, a alguma forma de hedonismo naturalista.
Antes o cínico procurava fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes,
na limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do vínculo
aos objetos sensíveis. Sexto Empírico dirá: “Epicuro afirma que o prazer sensível
é um bem. Antístenes, ao contrário, diz preferir a loucura ao mal gozo”. Ou

37BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ, Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in


antiquity and its legacy, p. 8
Neste sentido, lembremos do significado em fundar a autarkeia cínica
através da posição da apatia. Fundar a dominação de si na negação direta dos
vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito
negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica não é “liberdade de fazer
determinadas ações”, mas principalmente “libertação em relação a certos objetos
e paixões”. Esta libertação permite a constituição de vínculos fundamentais entre
liberdade e auto-pertencimento. Assim, a natureza no cinismo aparece como
restrição ao horizonte de necessidades que me permita poder acolher todo e
qualquer acontecimento. Não podemos deixar de comer, mas Diógenes não verá
problema em comer a carne de qualquer animal, nem verá signo de barbarismo
comer a carne humana. A limitação extrema e a indiferença funcionam aqui como
condição para a afirmação da racionalidade de todo acontecimento, como recusa
à criação de vínculos de dependência.
Por outro lado, vimos como a autoctonia cínica é pensada. Eu afirmara
que os cínicos se contrapõe à polis em nome do retorno à natureza enquanto
plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa. Essa ética da
virtude não é apenas fruto da crença de que as considerações exclusivas sobre o
caráter moral dos agentes podem definir as condições para a felicidade. Trata-se
de, na verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo. O que não devia nos estranhar já que, como nos
lembra Heidegger, a physis aparece como uma palavra grega fundamental para
ser. Isto dá uma declinação cínica singular a respeito da noção de autoctonia. O
cosmopolitismo cínico vem do fato da autoctonia não estar vinculada à
comunidade da qual venho, mas a natureza que me faz em casa em toda parte. O
que explica porque Antístenes afirmava que: “o sábio não vive respeitando as leis
da sua pátria, mas respeitando a virtude”38. Lembremos ainda de como Diógenes
se definia como: “sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pátria (apatris), um
mendigo e vagabundo, vivendo cada dia”39. Por fim, a autonomia cínica está
vinculada ao exercício de submeter-se si mesmo ao princípio de virtude e
contenção.

Determinismo e acontecimento

Dito isto, podemos entrar de maneira mais sistemática nas discussões a


respeito da liberdade entre os estoicos. Tal como o cinismo, o estoicismo será
uma corrente filosófica extremamente popular no mundo greco-romano,
desdobrando sua hegemonia durante cinco séculos. Seu nome deriva de Stoa,
que significa “pórtico” em grego e indicava o local de reunião, fundado em torno
de 300 a.c., dos primeiros discípulos de Zenão de Cítio (não confundir com o
filósofo pré-socrático Zenão de Eleia). É a respeito deste momento que falamos
de um estoicismo antigo, cujos nomes principais seriam o próprio Zenão, além de
de Cleanto e Crisipo. Segue a ele um estoicismo médio (as vezes chamado de
“romano”), cujos nomes mais conhecidos são Panécio e Posidônio. Por fim, fala-
se de um último estoicismo ou estoicismo imperial, no qual encontramos os
nomes mais conhecidos dessa escola, a saber, Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio. De

38 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 10
39 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 20
Zenão e Crisipo temos apenas alguns fragmentos e citações, enquanto as obras
de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio foram, em larga medida, preservadas.
O estoicismo é, juntamente com o epicurismo, uma das duas escolas que
marcarão o período de influência da cultura helênica no ocidente. Elas trazem as
características históricas do momento de colapso das cidades-estados e da
propagação imperial da cultural grega.
A articulação cerrada entre lógica, física e ética (os estoicos chegavam a
comparar a filosofia a um ovo sendo a lógica a casca, a ética a clara e a física a
gema) mostrava como nenhuma procura pela orientação da conduta em direção
à felicidade pode ocorrer sem a compreensão da racionalidade do universo.
A princípio, o estoicismo seria a mais refratária das perspectivas
filosóficas à liberdade. Logos é o nome da existência em sua integralidade. Não há
nada que desconheça as amarras da necessidade, não há espaço para a
desordem, o acidente ou para a contingência. Como dirá Cleanto, em seu Hino a
Zeus: “você sabe reduzir o que é sem medida. Ordenar a desordem; em ti a
discórdia é concórdia”40. Afinal, estamos a falar de uma filosofia caracterizada
pelo extremo determinismo. O que significa que a racionalidade do mundo não
está em seus elementos imutáveis, mas sua própria racionalidade imanente, suas
modificações, são a expressão da racionalidade em ato. Lembremos do que nos
diz Emile Bréhier:

Não se trata de eliminar o dado imediato e sensível, mas ao contrário de


ver a Razão nele tomar corpo. Não há progresso algum que nos leve do
sensível ao racional, já que não há diferença de um a outro. Lá onde Platão
acumula diferença para nos levar para fora da caverna, o estoico só vê
identidades. Da mesma forma que nos mitos gregos as lendas dos deuses
ficam exteriores à história dos homens, enquanto na Bíblia a história
humana é ele mesma um drama divino, no platonismo, o inteligível está
fora do sensível, enquanto que no estoicismo são nas coisas sensíveis que
a razão adquire a plenitude de sua realidade41.

A colocação é pedagógica. O logos estoico encontra-se integrado ao


mundo sensível, os acontecimentos do mundo sensível são a expressão mesma
do logos. Os corpos são plenos de razão, até porque as únicas coisas que existem
são os corpos e suas forças. Assim, não é possível que a compreensão da
racionalidade em marcha nos acontecimentos do universo seja dissociada da
compreensão do horizonte de orientação da conduta virtuosa. Como dirá Crisipo:
“viver segundo a virtude significa a mesma coisa que viver segundo a experiência
dos acontecimentos que ocorrem segundo a natureza”42. Daí uma afirmação
como:

Instruir-se é aprender a querer cada acontecimento tal como ele se


produziu. Como ele se produziu? Segundo a ordem estabelecida por
aquele que ordena tudo. Segundo esse ordem, há verão e inverno,
fecundidade e esterilidade, virtude e vício, e todos os contrários que
servem à harmonia do universo. A cada um de nós ele doou um corpo com

40 CLEANTO; “Hino a Zeus”, In: Les stoïciens I, p. 7


41 BRÉHIER, Emile; Histoire de la philosophie – L’antiquité et le moyen âge, p. 208
42 DIÖEGENES LAÉRCIO, Vida e opinião de filósofos ilustres, p. 44
seus órgãos, bens e companheiros43.

Querer cada acontecimento como ele se produziu pode parecer para


alguns como exercício de suprema resignação, ainda mais quando Epiteto faz
afirmações como: “não procure que o que acontece aconteça como queres, mas
queira o que acontece como acontece e você encontrará dias felizes”44. Mas,
insistamos: na verdade, o que move esse assentimento estoico é o
reconhecimento do logos naquilo que acontece. Há uma causalidade estrita no
estoicismo, nada acontece sem razão. Assim, a apropriação, a oikeiosis estoica em
relação ao curso do mundo pode ser momento da liberdade porque trata-se de
querer o que se afirma como racional, como se assente a uma proposição
matemática cuja verdade não depende de nós ou como se assente à necessidade
de ficar em quarentena diante de uma pandemia.
Tal perspectiva será recuperada pela filosofia contemporânea. Assim, por
exemplo, encontraremos alguém como Gilles Deleuze a tentar integrar o
estoicismo dentro de um projeto contemporâneo de elevação do acontecimento a
processo fundador da moral:

Ou bem a moral não tem sentido algum ou bem é isto que ela quer dizer,
ela não tem nada a mais a dizer: não ser indigno do que nos acontece. Ao
contrário, apreender o que acontece como injusto e não merecido (é
sempre a culpa de alguém), eis o que faz nossas feridas repugnantes, o
ressentimento em pessoa, o ressentimento como acontecimento (...) Que
significa dizer então querer o acontecimento? É aceitar a guerra quando
ela acontece, a ferida e a morte quanto elas acontecem? É bem provável
que a resignação ainda seja uma figura do ressentimento, ele que possui
tantas figuras. Se querer o acontecimento é inicialmente extrair dele a
verdade eterna, como o fogo do qual ele se alimenta, este querer alcança o
ponto no qual a guerra é feita contra a guerra, a ferida, traçada viva como
a cicatriz de todas as feridas, a morte revirada contra todas as morte45 .

Esta afirmação apresenta uma interpretação correta sobre pontos


fundamentais do estoicismo. Deleuze procura sublinhar que a apropriação
estoica não é resignação porque trata-se de querer algo no acontecimento, algo
que modifica o sentido usual das representações que temos dele. Há uma
atividade nesta aparente passividade devido à ação consciente de modificação de
significação das representações. Esta é uma afirmação que se encontra em vários
momentos de Epiteto: o que nos faz sofrer não é exatamente a morte, mas a
representação que temos dela:

O que atormenta os homens não são as coisas, mas os julgamentos


relativos às coisas: assim a morte não tem nada de aterrorizante, pois se
assim fosse Sócrates teria também achado assim, mas que julguemos a
morte aterrorizante, eis o que é realmente aterrorizador46.

43 EPITETO, Entretiens I, XII


44 EPITETO, Manual, VIII
45 DELEUZE, Gilles; Logique des sens, p. 174
46 EPITETO, Manual, V
Não é a morte e o sofrimento que devemos temer, mas o temor da morte e
do sofrimento. Mudar as representações que temos, permitir que algo no que
ocorre, algo que não se esgota nas representações que normalmente temos,
possa incorporar-se modificando a estrutura de nossas experiências, eis o que
devemos entender, de fato, por acontecimento. Ou seja, o verdadeiro
acontecimento é isto que na morte age contra a morte e que nos faz abandonar
todo ressentimento. Isto, é sempre bom lembrar, nada tem a ver com a ausência
de prudência tendo em vista a realização do que nos seria natural, do que nos
seria signo de excelência. Cabe a cada um examinar os antecedentes e
consequentes de toda empresa, examinar seu próprio projeto, sua própria
natureza e só depois assumir a ação. O que nada tem a ver com aceitar de forma
temerária toda inclinação e apetite como motivação para a ação.
Entender isto nos obriga a lembrar algumas características da lógica
estoica. Pois os estoicos insistem, mesmo afirmando existir apenas corpos, que
há o incorporal. Corpos são ativos por essência e não tem seu princípio de
transformação em forças externas. Não existe para os estoicos a inercia da
matéria: “A afirmação de que tudo é corpo quer dizer unicamente que a causa, tal
como nós a definimos, é um corpo, e o que sofre a ação dessa causa também é um
corpo”47. Isto nos ajuda a compreender a recusa dos estoico em pensar a lógica
sob sua forma proposicional (S é P). Seguindo os megáricos, os estoicos insistiam
que não devíamos pensar os juízos sob sua forma habitual, não se deve dizer “A
árvore é verde”, mas “A árvore verdeja”; não mais “O humano é mortal”, mas “O
humano morre”.
Desta forma, o que se exprime vinculado ao sujeito não é um conceito
(objeto ou classes de objeto), mas um fato ou um acontecimento. O juízo não
exprime a penetração entre dois objetos independente. Ela exprime certo
aspecto de um objeto na medida em que realiza ou sofre uma ação. Esse aspecto
é o resultado de sua atividade ou da atividade de outro objeto sobre ele. Assim:
“o que é expresso no juízo não é uma propriedade como ‘um corpo está quente’,
mas um acontecimento como ‘um corpo se esquenta’”48. Esta é a maneira estoica
de afirmar que devemos admitir apenas as proposições de fato. Note-se ainda
que neste acontecimento expressa-se a proposição estoica da mistura entre os
corpos. O fogo que se aproxima do corpo para esquentá-lo coexiste com ele em
toda sua extensão.
O que interessa aos estoicos é distinguir as diversas maneiras pelas quais
pode o acontecimento se exprimir. Isto porque um ser não se descreve a partir
daquilo que ele tem de permanente, de estável, não o que ele tem de idêntico a
um princípio capaz de constituir unidades superiores. Lembremos como, para os
estoicos o mundo era corruptível, como um ser vivo. Um ser se descreve no
desdobramento no tempo e no espaço em um campo de acontecimentos. Ele é a
extensão no espaço e no tempo de uma força interna que se desdobra. De certa
forma, não estamos diante da descrição de um ser, mas de uma maneira de ser.
Mas o elemento complicador encontra-se na noção de incorporal. Para os
estoicos, os incorporais são: o espaço, o tempo, o vazio e o exprimível ().
Que tempo, espaço e vazio sejam incorporais, eis algo que nossa sensibilidade
contemporânea pode tacitamente aceitar. Ha algo do tempo e espaço como
condição transcendental de possibilidade da experiência a animar tal teoria dos
47 BRÉHIER, Emile; A teoria dos incorporais no estoicismo antigo, p. 23
48 Idem, p. 45
incorporais. Tempo, espaço e vazio não são corpóreos, mas não podem ser
classificados como não-existentes, pois subsistem na mente. Eles são “algo” (tó
ti), quase seres que expressam o movimento na natureza, condições necessárias
para o pensamento sobre os corpos. Mas o problema se complexifica em demasia
quando definimos o exprimível, ou a expressão, como incorporal.
Os estoicos diferenciam a representação () do exprimível. A
primeira é como a marca de um sinete na cera quente. Represento um carro
como um sistema de impressões que atinge meu corpo pela visão, pela audição,
etc. A representação é um corpo me afetando. É uma impressão na alma (que
também é corpo). Já o exprimível é a dimensão dos acontecimentos e fatos que
ocorrem quando corpos coexistem, Quando dois corpos agem um sobre o outro
(como quando a faca corta a carne) algo ocorre aos corpos (a carne permite a
faca cortar, o que o não seria o caso do mármore; a faca não corta no absoluto,
cortar é um atributo relacional) e isto que ocorre é incorporal. Pois: “o que
acontece a um corpo e que se diz dele (o atributo) quando um outro corpo age
sobre ele só tem realidade na ‘expressão’, no discurso sobre ele”49. O exprimível é
um processo, não um objeto. Um processo de transformação dos corpos, por isto
incorporal.
Esta teoria exige assim abandonar uma concepção de ser baseada na
definição de propriedades, na distinção entre propriedades necessárias e
acidentais, para assumirmos uma dinâmica de corpos em contínua relação e
produção de efeitos sob o fundo da racionalidade imanente do mundo. Daí
porque a afirmação estoica do mundo exige uma moralidade de afirmação do
acontecimento.

Liberdade e autopertencimento

Nesse contexto, podemos entender melhor o que está no fundamento do


conceito estoico de liberdade. Partamos de uma definição canônica de Epiteto:

É livre aquele que vive como quer, que não se pode nem restringir nem
impedir nem forçar, cujas vontades são sem obstáculos, cujos desejos
alcançam seus objetivos, cujas aversões não encontram o objeto
detestado50.

Esse exercício livre da vontade não se submete a nada, sequer as


imposições produzidas pela tirania e pelo poder. Pois: “chamemos de livres os
seres que não suportam serem capturados e que, desde que são cativos, fogem
para a morte”51. No que a reflexão ética se transforma em uma meditação sobre o
que significa, de fato, “ser escravo”. Em que condições podemos dizer que alguém
é escravo? Quando está submetido à vontade de um outro? Mas: “quando
amamos, odiamos ou tememos as coisas, temos necessariamente como mestres
esses que tem o poder sobre elas; também nos os adoramos como deuses”52. É
pensando nisto que Epiteto associará a liberdade à crítica da “acrópole interior”,
ou seja, da tirania que se encontra em nós, que se faz sentir em nós a cada

49 MULLER, Robert; Les stoiciens, p. 71


50 EPITETO, Entretiens, IV, I, 1
51 Idem, IV, I, 28
52 Idem, IV, I, 59
instante:

É necessário começar por aí, faz-se necessário destruir essa acrópole e


expulsar os tiranos, deixar os corpos, suas partes e faculdades, os bens, a
fama, as magistraturas, as honras, as crianças, os irmãos, amigos e pensar
que tudo isso nos é estrangeiro53.

Isto significa que a liberdade estará vinculada à capacidade de afirmar a


autonomia da vontade. Pois ninguém poderia me obrigar a querer o que não
quero, a querer aquilo que vai contra minha vontade. A vontade é, para os
estoicos, uma “tendência racional”54. Neste sentido, cabe à luta pela liberdade
realizar a vontade a partir da definição do que me é próprio, do que depende e
não depende de mim, da restrição de minha vontade e da deliberação a respeito
do que me cabe. Não encontra nunca obstáculos aquele que não deseja nada que
lhe seja estrangeiro. Não é em nos satisfazendo com as coisas desejadas que nos
preparamos à liberdade, mas em suprimindo tais desejos. Daí esse exercício de
despossessão como condição para a liberdade: “Só perdemos o que possuímos,
só sofremos por aquilo que possuímos”55. Não se pode perder o que não se tem.
Epiteto chega a comparar a relação com o que temos ao habitar um quarto de
hotel. No que percebemos a articulação profunda entre autarkeia e autonomia no
estoicismo, recuperando um princípio de ascetismo que já havíamos visto no
cinismo. É neste sentido que devemos entender proposições como:

Desde o início, a que exercerás a não ser a distinguir o que é seu e o que
não é seu, o que depende de ti e o que não depende de ti, o que encontra
obstáculos e o que não encontra? (...) E de que terás ainda um desejo
apaixonado? Pois tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que
dependem de tua vontade porque elas são belas, mas não tens o desejo
dessas que não dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazão, ao
impulso que precipita contra toda medida56.

São em afirmações como essas que vemos a enunciação de um vínculo


fundamental, vínculo esse que é nossa herança grega, entre liberdade e auto-
pertencimento. A liberdade é a capacidade de viver como se quer, de ter
vontades sem obstáculos. Mas isto pressupõe o exercício de partilha entre o que
me é próprio e o que não me é próprio, entre o que é allótrios (estrangeiro,
pertencente a outro) e o que é ta ephi emin (o que depende de mim). E se nos
perguntarmos sobre o que depende de nós teremos como resposta:

Dependem de nós a opinião, a tendência, o desejo, a aversão, em uma


palavra todas nossas obras próprias ( ). Não dependem de nós
o corpo, a riqueza, as manifestações de consideração, os altos encargos,
em suma, todas as coisas que não são obras próprias57.

53 Idem, IV, I, 87
54 DIOGENES LAÉRCIO; Vida e opinião de filósofos ilustres, p. 53
55 Idem, I, I, 16
56 Idem, IV, I, 83
57 EPITETO, Manual, I, 1
Sou responsável pelo uso de minhas representações. A primeira função da
filosofia consiste em examinar as representações. Vontade e pensamento
aparecem como o fundamento do que me define em meu auto-pertencimento.
Esta é a verdadeira autoctonia do estoicismo. Não o solo do qual faço parte
enquanto cidadão da polis, não a territorialidade, mas o ponto no qual a vontade
se encontra na universalidade do logos. Sócrates nunca dizia ser de Atenas ou de
Coríntio, mas do mundo. Pois tal dimensão da vontade só pode ser inabalável por
querer o logos, por querer a racionalidade do mundo e a necessidade do
acontecimento. O que não poderia ser diferente para alguém que dirá: “você é
ator de um drama que o autor quis como tal (...) o que é seu, é de desempenhar
corretamente o personagem que te foi confiado, quanto a escolhe-lo isto é de
outro”58.
Mas isso significa reconhecer que não estamos em um teatro do absurdo,
o que implica no exercício ativo de extrair do que ocorre a força de
transformação do acontecimento. Livre é aquele que quer o logos, será a
proposição fundamental a ser extraída do estoicismo. Um querer que exige um
profundo trabalho sobre si. Trabalho esse cujo eixo fundamental encontra-se na
capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim, daquilo que
estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Trabalho de liberação das
coisas exteriores e de cultivo do que é próprio à minha natureza. Trabalho que
me leva a nunca estar fora de mim. Foi pensando nisto que Michel Foucault
afirmou:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauração de uma relação a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessão e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessão de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo59.

Uma crítica: Hegel

Neste contexto, seria interessante terminar nossa aula de hoje lembrando


de uma crítica ao estoicismo que fará história na filosofia moderna. Trata-se da
crítica hegeliana. Ela é interessante por mostrar a distinção entre um conceito
moderno de liberdade e um conceito grego. Hegel compreende o estoicismo
como, no fundo, uma filosofia da resignação. Como vimos, o estoicismo
compreende a razão (logos) como princípio que rege uma Natureza identificada
com a divindade. O curso do mundo obedece assim um determinismo racional. A
virtude consiste em viver de acordo com a natureza racional aceitando o curso
do mundo, ou seja, aceitando o destino, despojando-se de suas paixões a fim de
alcançar a apatia e a ataraxia. Para Hegel, a autarkeia estóica aparece como:
“liberdade, este momento negativo de abstração da existência”60. Mesmo que a
liberdade apareça definida como “a possibilidade de agir a partir de sua
vontade”, a vontade virtuosa é aquela que se reconcilia com o determinismo

58 Idem, XVII
59 FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
60 HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Ou seja, Hegel compreende o estoicismo como figura larvar da
individualidade moderna, que nesse momento histórico aparece como resposta
compensatória à impossibilidade de transformação efetiva das condições
concretas de existência. Sua esfera de auto-pertencimento seria uma abstração
que preservaria aquilo que trava a realização social da liberdade.
Isto talvez nos explique porque Hegel compreende o estoicismo a partir
de duas determinações complementares. Primeiro:

Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só


tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante61.

Nota-se como esta afirmação parece corroborar a exigência hegeliana de que a


consciência-de-si seja posta como essência da verdade. Ainda mais se
lembrarmos da afirmação hegeliana segundo a qual a elevação estoica ao plano
do pensamento:

consiste em que não seja a natureza imediata o conteúdo nem a forma do


verdadeiro ser da consciência, mas que a racionalidade da natureza seja
aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na
simplicidade do pensamento62.

No entanto, Hegel está mais interessado, ao menos nesta parte da


Fenomenologia, nos impasses estoicos a respeito da determinação da
racionalidade em sua dimensão prática. Sobre a autarkeia estoica de uma
consciência que se compreende como essencialidade, Hegel dirá: “Seu agir é
conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do
Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do
pensamento”63. A este respeito, Hegel chega a afirmar que: “ a grandeza da
filosofia estoica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantém
firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim”64.
Mas Hegel não deixa de lembrar que uma des-alienação que se realiza
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do
Dasein só pode aparecer como conformação àquilo que não pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será, em várias situações,
dirigida contra ele próprio:

A liberdade da consciência é indiferente quanto ao Dasein natural; por


isto igualmente o deixou livre, e a reflexão é a reflexão duplicada. A
liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua
verdade, e verdade sem a implementação da vida65.

61 HEGEL, Fenomenologia, par. 198


62 HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
63 HEGEL, Fenomenologia, par. 199
64 HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
65 HEGEL, Fenomenologia, par. 200
O que podemos pensar dessa crítica? De fato, ela procura insistir no fato
da liberdade ser uma experiência social que exige instituições específicas e
procedimentos legais para tanto. Ou seja, liberdade é um modo de relação social.
Hegel não tem a sua disposição um modelo estoico de fundamentação da razão
na physis. Por isto, ele precisa da noção eminentemente moderna da liberdade
como uma invenção social e política resultante do reconhecimento da razão no
interior da vida humana em comunidade. Isto explica sua necessidade de criticar
o estoicismo. Há uma dimensão política do estoicismo, não haveria como negar.
Mas ela está na modificação do modo de adesão ao poder social, não em uma
transformação institucional dele.
Neste sentido, não deixa de ser interessante como um anti-hegeliano por
excelência, como Deleuze, procura recuperar o estoicismo para pensar a noção
de liberdade na filosofia contemporânea. Pois o estoicismo fornece uma forma de
atividade e de vontade que não será exatamente aquela que crescerá de forma
hegemônica entre nós. Essa atividade passa muito mais pela destituição das
formas do poder do que pela instauração institucional. Ela passa pelo exercício
de definir os limites da capacidade do poder constituir sujeitos.
Arqueologia da liberdade
Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de terminar nosso primeiro módulo voltando-se para a


filosofia contemporânea. Nós vimos nessas primeiras aulas como emerge o
conceito de liberdade entre os gregos. Eu insistira que ele resultava de uma
articulação entre três noções fundamentais: autonomia, autarkeia e autoctonia.
Vimos como tais noções se desdobravam no interior do pensamento cínico e do
pensamento estoico. O objetivo central era mostrar como, em todos os casos,
víamos a consolidação de uma noção de liberdade como auto-pertencimento, no
interior de uma reflexão sobre as condições fundamentais de territorialidade de
si, de controle das afecções externas e de auto-legislação. Tal auto-pertencimento
visava a emergência de um solo comum no qual o logos se encontrava com a
physis, fundando as condições para o agir livre. Agir livre que não é exatamente a
afirmação dos sistemas individuais de interesse, mas a remissão a uma relação
de concordância com a racionalidade do acontecimento e do destino.

O que Foucault procura nos gregos

É a partir de meados da década de setenta que Foucault se volta a leitura


dos gregos. Exemplo maior dessa guinada é História da sexualidade, além de seus
cursos no Collège de France como: A hermenêutica do sujeito, A coragem da
verdade, Subjetividade e verdade, O governo de si e dos outros e O governo dos
vivos. O que Foucault procura nos gregos? O que um dos filósofos mais
emblemáticos da filosofia contemporânea procura em um retorno ao
pensamento greco-romano?
A hipótese que gostaria de defender com vocês é: um conceito de
liberdade capaz de servir como horizonte de orientação para a praxis. Notemos
que, antes de chegar aos gregos, Foucault tem um problema fundamental
referente aos modos de relação entre sujeito e poder. Lembremos como esse
problema aparece em História da sexualidade. Digamos que o ponto de partida do
projeto de Foucault é a pergunta: ter uma sexualidade seria expressão de uma
liberação do meu corpo em relação às pretensas amarras repressivas do poder?
A sociedade ocidental teria assumido a importância da sexualidade na definição
das individualidades a partir do momento em que o poder teria perdido suas
amarras repressivas? Ou a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeição que
demonstraria como a natureza do poder não é exatamente repressiva, como se
estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ela produzisse os sujeitos nos quais o poder
opera?
A partir desse problema da produção da individualidade, Foucault
defendia que a sexualidade era um modo de assujeitamento a estruturas do
poder disciplinar. A hipótese do poder disciplinar fora desenvolvida para
mostrar como devíamos compreender o poder presente de maneira hegemônica
nas sociedades modernas. Diferente do poder soberano, hegemônico em
sociedades pré-modernas, o poder disciplinar tinha um conjunto de
características próprias. Primeiro, ele não era um poder que vinha de um centro
no qual encontrávamos a vontade do soberano. Antes, ele era desprovido de
centro e disseminado por parecer vir de todos os lugares, operar em várias
instâncias e níveis; um poder horizontal. Por não ter centro, ele apareceria como
impessoal, como não exercido em nome de alguém, mas em nome de “saberes”
que fundamentam sua legitimidade na força irresistível do que se coloca como
discurso científico ou prática social necessária. Um poder de estruturas que
submetem todos, como o poder que se exerce nos hospitais, nas escolas, nas
prisões, nas empresas, na burocracia estatal.
Segundo ponto, este poder era individualizador. Através do seu exercício,
individualidades eram constituídas, o que nos levava a uma fórmula importante:
ser indivíduo é sujeitar-se a um conjunto de disciplinas que legislam sobre meu
modo de organizar o tempo, de hierarquizar meus desejos e vontade, de regular
minhas paixões, de proibir e desqualificar certos pensamentos, de determinar
minha identidade e interesses.
Tal poder disciplinar era composto de uma anatomo-política dos corpos e
de uma bio-política das populações, ou seja, ele visava regular os corpos e seus
regimes de desejos e afetos, assim como regular os fenômenos populacionais de
crescimento, de saúde social e de reprodução de costumes. Por isto, a
sexualidade podia aparecer como um dispositivo central do poder disciplinar, já
que dizia respeito tanto à experiência dos corpos quanto a questões de gestão
populacional (como aquelas questões ligadas a análise da taxa de natalidade, a
idade do casamento, aos nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relações sexuais, ao efeito do celibato e das interdições, a
incidência de práticas contraceptivas). Neste sentido, a reflexão filosófica sobre a
sexualidade expunha a maneira com que um determinado regime de poder teria
produzido um acontecimento maior, a saber, a transformação disciplinar da vida.
Foucault procurou mostrar como essa transformação disciplinar da vida
foi o resultado da sobreposição de vários discursos, como o discurso científico, o
jurídico-moral e o religioso. A este respeito, ele era sensível à maneira com que
os saberes científicos que fundamentam práticas disciplinares nos levavam a
“falar de sexo”. A fala ouvida pelas ciências da sexualidade não era apenas
quantificadora, ela também era exaustiva. Este era seu ponto central: a ciência da
sexualidade produzida no ocidente nos levou a falar de sexo de forma tal a
procurar, através desta fala, a linha de partilha entre o normal e o patológico, a
exaurir tal fala no interior de um sistema classificatório capaz de escutar cada
fantasia, capaz de incitar confissões e, com isto, a nos levar a nos inscrever no
interior de uma gramática, escolher histórias possíveis, controlando assim toda
produção possível de identidades.
Mas ficamos aqui com uma questão maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar
que sentimos no interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos
tornamos? De onde vem o mal-estar com este regime de fala que constitui nossa
sexualidade, assim como a esperança de outra forma de relação entre discurso,
verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao desvelamento desses:
“momentos nos quais nossas identificações parecem de uma contingência e de
uma violência das quais não tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais não se
trata mais de nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direção a
uma identidade nova e improvável”66. Ou seja, se há crítica social, para Foucault,
66 RACHJMAN, John; Érotique de la vérité, p. 22
é porque nossas identidades aparecem, em certos momentos, como dotadas de
uma violência da qual não tínhamos consciência. Mas por que elas aparecem
assim?
Nesse ponto que os gregos aparecem. Foucault precisa mostrar que
somos marcados por experiências históricas que fundamentam o mal-estar com
os descaminhos da nossa relação a nós mesmos. Um história do prazer e do
desejo que deve ainda parecer como potencialidade latente do presente. Pois a
genealogia não é apenas a reconstituição do processo histórico de formação do
que aparece a nós como necessário. Ela é a recuperação das alternativas que
permaneceram esquecidas no interior da formação de campos hegemônicos. Se
assim não fosse, a genealogia não poderia aspirar consolidar-se como um
pensamento crítico. Pois: “Não há outro ponto, primeiro e último, de resistência
ao poder político do que a relação de si a si”67. Assim, Foucault distinguirá a
sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas. Ou seja,
haveria ao menos duas formas de falar de sexo e esta vinculada ao erotismo
poderia permitir ao sexual encontrar sua força política. Este erotismo é, na
verdade, o resultado de práticas de cuidado de si que nos remetem à autarkeia e
a autonomia dos gregos. Pois:

Nós sabemos que é possível fazer uma pesquisa em ética, de construir uma nova ética, de
dar lugar ao que chamaria de imaginação ética, sem referência alguma à religião, à lei e à
ciência. É por tal razão que a análise da ética greco-romana como estética da existência
pode ter interesse68.

Ser soberano de si mesmo

Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade


histórica da experiência grega referente a relação dos sujeitos aos prazeres.
Trata-se de:

uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado à sua
conformidade a um código de comportamento, nem à um trabalho de
purificação, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos69.

Os gregos desconheceriam a conformidade a um código geral, a


determinação das condutas através de códigos gerais que definem a norma dos
atos, descrevendo exaustivamente o proibido e o permitido, como se toda a
criação no campo dos prazeres estivesse esgotada e normatizada. Por isto, ao
invés de interdições e tabus, a moral dos gregos se preocuparia com as
intensidades e com a maneira de definir os melhores momentos, circunstâncias,
idades para o uso dos prazeres. Mesmo as práticas de abstinência não seriam
justificadas a partir da desqualificação dos prazeres, mas como um exercício,
uma prática de fortalecimento de si. Seu verdadeiro propósito é: “fazer da vida
uma obra de arte”70. Daí a definição de tal erotismo como uma arte da existência

67 FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241


68 FOUCAULT, Michel; Qu’est-ce que la critique? suivi de La culture de soi, op. cit., p. 143
69 FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
70 FOUCAULT, Michel; Qu’est-ce que la critique? suivi de La culture de soi, op. cit., p. 154
composta por:

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas


fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo71.

O que há de estético nesta maneira de pensar o uso dos prazeres é o tratar


a vida como uma obra que se submete não apenas a valores estéticos, como
“harmonia”, “equilíbrio” e “simetria”, mas também e principalmente a critérios
estéticos de produção, como a ideia de que a ação não é expressão imediata de si,
mas relação agonística e singular com materiais (impulsos, inclinações) com o
qual devemos negociar, que devem ser conformados sem serem totalmente
negados. Esta ideia da singularidade dos modos de relação a impulsos e
inclinações é o que aproxima tais práticas de uma estilística individualizadora
ligada ao cálculo do momento, da situação, do contexto e a afastam da
normatividade do direito.
Tal estética greco-romana de si nos explica porque a virtude principal no
uso dos prazeres é a temperança. A imoralidade nos prazeres do sexo não é
ligada a objetos proibidos ou a práticas sexuais impossíveis. Ela é sempre da
ordem do exagero, do excesso e da passividade. Pois a atividade sexual: “porta
em si uma força, uma energeia que é, por ela mesma, dirigida ao excesso (...) a
questão moral consistirá em saber como afrontar tal força, como dominá-la
assegurando uma economia conveniente”72. O sexo é o mais violento de todos os
prazeres, mais custoso do que a maioria das atividades físicas e sempre referindo
-se ao jogo da vida e da morte. No ato sexual, o sujeito pode ser levado
passivamente pelos mecanismos do corpo e pelos movimentos da alma. De onde
se segue a necessidade dele restabelecer seu domínio, exercendo sobre os
prazeres: “um domínio suficientemente completo para não se deixar nunca levar
-se pela violência”73 do desejo.
A insistência neste tópico é compreensível se lembrarmos como, para os
gregos, a liberdade estará profundamente associada ao domínio que os
indivíduos serão capazes de exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a
temperança aparece como modo de elaboração a si em direção à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construção
misógina clássica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, não é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relação aos prazeres”74. Neste
sentido, a verdade na relação ao sexo não é uma questão de conhecimento, de
classificação exaustiva e de descrição minuciosa, mas de instauração do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada não
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”75.

71 Idem, p. 18
72 Idem, p. 69
73 Idem, p. 93
74 Idem, p. 116
75 Idem, p. 29
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania, vinculado à
leitura que Foucault faz dos estoicos e de sua askesis, assim como à sua crítica ao
cuidado de si tal como aparece no Alcebíades, referido a Platão. Foucault recusa
esta submissão do cuidado de si, tal como vemos no Alcebíades, à condição de
prolegômeno para o aprendizado do governo da cidade e à condição de exercício
ligado a uma metafísica da alma. Alcebíades deve governar a si mesmo para
poder governar os outros, seu exercício de cuidado de si é por isto submetido a
uma praxis gestionária.
No entanto, contrariamente a tal posição, há uma “autonomia” do cuidado
de si nos estoicos que claramente interessa a Foucault e que já aparece em outro
diálogo de Platão, Laques. Tal autonomia permite o cultivo de uma “soberania do
indivíduo sobre si mesmo” que aparece como horizonte ético ligado
exclusivamente à capacidade de estilizar a liberdade, de compreender que a
liberdade se realiza como afirmação da dimensão estética da existência. Este
caminho nos levaria a uma “história da estilística da existência, uma história da
vida como beleza possível”76. Por outro lado, tal soberania de si forneceria um
horizonte do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo sem desejo e sem
transtorno (trouble)” 77. Soberania que nos livra do fantasma do excesso, que
permite o aparecimento da liberdade como regulação singular dos corpos sem
transtornos, que é intensificação do cuidado a si.
Mas há de se perguntar sobre o que devemos entender por “soberania”
neste contexto e que, a meu ver, está pressuposta no horizonte do pensamento
de Foucault. Notemos inicialmente como, expulsa da condição de qualidade de
quem detém o poder do Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade
que pode ser exercida por todo sujeito em emancipação. Quando falar sobre a
vida dos cínicos, Foucault mais uma vez sublinhará seu caráter de soberania, de
“vida soberana”. Neste momento, ele não deixará de salientar algumas de suas
características maiores:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauração de uma relação a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessão e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessão de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo78.

Auto-pertencimento

Notemos a incidência fundamental da temática da liberdade como


possessão de si, como auto-pertencimento no interior do projeto de Michel
Foucault, isto graças a construção das relações de gozo-possessão e de gozo-
prazer. Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensão desse projeto. Pois tais temáticas da
possessão de si e do prazer como orientação da conduta podem parecer a
primeira vista procurar reconstruir um conceito de indivíduo que, em vários

76 FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, Paris: Gallimard/Seuil, 2009, p. 149


77 FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 94 ou ainda p. 316
78 FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
pontos, recuperaria temas da individualidade liberal. Não foram poucos os
comentadores que aludiram a uma espécie de guinada liberal no pensamento
tardio de Foucault79. No entanto, esta leitura é equivocada.
De fato, há indicações textuais que poderiam parecer nos levar a tal
caminho. Por exemplo, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histórico no qual sua ideia de soberania aparece. As
transformações políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensão individual:

No espaço político no qual a estrutura política da cidade e as leis às quais


ela se dotou certamente perderam sua importância, ainda que elas não
tenham desaparecido, e no qual os elementos decisivos estão cada vez
mais nas mãos dos homens, em suas decisões, na maneira com que eles
desempenham sua autoridade, na sabedoria que eles manifestam no jogo
de equilíbrios e transações, aparece que a arte de se governar advém um
fator político determinante80.

Ou seja, o colapso da noção de “poder comum” apareceria enquanto


condição para a consolidação da soberania como governo de si. O que poderia
parecer como uma saída de compressão do laço social a partir de uma
perspectiva individualista. Dada a impossibilidade de um espaço comum geral,
nos restaria a estilização de dimensões relacionais restritas. Levando em conta
que Foucault desenvolve este aspecto de sua teoria no início dos anos oitenta, no
momento da retração final dos horizontes de transformação global (as últimas
revoluções populares ocorrem no final dos anos setenta) e emergência de lutas
localizadas de reconhecimento que darão a tônica das ações políticas no interior
da consolidação de sociedades multiculturais, a tentação é grande de construir
um amálgama.
Mas notemos como tal conceito de soberania de si é recuperado não
apenas como resistência a toda e qualquer forma de poder estatal, mas
principalmente como crítica aos regimes de individualização que o próprio
poder estatal é capaz de produzir. Ou seja, a crítica não é feita através da
contraposição liberal entre poder estatal e liberdade individual. Ela é feita
através do reconhecimento da solidariedade profunda entre indivíduo e
aparelhos disciplinares que convergem para o Estado. Uma solidariedade que o
discurso liberal tenta sistematicamente não tematizar. Daí uma afirmação
esclarecedora como:

Não creio que devamos considerar o “Estado moderno” como uma


entidade que se desenvolveu a despeito dos indivíduos, ignorando quem
eles são e até suas existências, mas ao contrário como uma estrutura
muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados a uma
condição: que forneçamos a essa individualidade uma forma nova que a
submetamos a um conjunto de mecanismos específicos.

79Ver, por exemplo, GARO, Isabelle; Foucault, Deleuze, Althusser et Marx: la politique dans la
philosophie, Paris: Démopolis, 2011 ou DE LAGASNERIE, Geoffroy; A última lição de Foucault, São
Paulo: Três estrelas, 2013
80 FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 123.
Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de
individualização, com formas e mecanismos específicos juridicamente
totalizados, já que ele fornece o quadro institucional necessário para as outras
instituições sociais operarem, não haveria outra tarefa política do que “nos
liberar do Estado e do tipo de individualização que a ele se vincula”81 a fim de
promover novas formas de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito
relacional que permitiria a todos os tipos possíveis de relação existirem e não
serem impedidos, bloqueados ou anulados por instituições relacionais
empobrecedoras”82. Não encontraremos proposições liberais que caminhem no
sentido desta decomposição das determinações dos indivíduos e desta deposição
da regulação biopolítica do Estado através da afirmação de uma plasticidade do
direito contra as próprias instituições, em especial contra a família e o Estado.
Mas há um ponto que merece maior problematização. Tal criatividade é
compreendida por Foucault a partir da temática do redimensionamento do
espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de nossa identidade estatal,
poderíamos nos abrir à construção contínua de novos espaços de prazeres. A
este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar não exatamente à liberação de
nossos desejos, mas a permitir que nós mesmos sejamos infinitamente mais
suscetíveis aos prazeres”83. Ou ainda quando ele afirmar que deveríamos
inventar, com o corpo, um erotismo não-disciplinar84. Foucault chega a dar como
exemplo a dissociação entre prazer e sexo próprio a ritualização das formas de
prazer nas subculturas S/M, seguindo uma via aberta por Deleuze em seu estudo
sobre o masoquismo85. Neste sentido, apareceria aqui uma via para uma
“sexualização outra do corpo”, assim como o uso do que Foucault chama de “boas
drogas” poderia abrir o espaço a uma dessexualização do prazer86. Em todos
estes casos, temos reconfigurações da experiência sensível, reconfigurações de
suas velocidades, intensidades e dinâmicas através de práticas muitas vezes
relacionais que aparecem como condição para a emancipação em relação a
formas de repetição de formas hegemônicas de vida. A ideia pressuposta parece
apontar para uma dimensão propriamente sensível da experiência que só pode
ser modificada através da própria sensibilidade e que teria a força de reinstaurar
formas renovadas de laços sociais, mesmo que laços inicialmente restritos.

O prazer e o fora

81 Idem, p. 1051
82 Idem, p. 1129
83 Idem, Dits et écrits II, p. 984. Ou ainda: “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio

do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas o corpo e os prazeres” (FOUCAULT, Michel;
Histoire de la séxualité I, Paris: Gallimard, 1976, p. 208).
84 A este respeito, ver SABOT, Phillipe; “Foucault, Sade e as luzes” Redisco, vol 2, n. 2, 2013, pp

111-121
85 Ver DELEUZE, Gilles; Présentation de Sacher-Masoch, Paris: Minuit, 1965
86 Ver MENDELSOHN, Sophie; “Foucault et Lacan: le sujet en acte”, in: Filozofski Vestnik, vol.

XXXI, 2010, p. 147


Talvez a melhor maneira de compreender o que isto implica para a noção
de liberdade seja se perguntando se a estratégia de reconfiguração da
experiência sensível através do cultivo e uso dos prazeres pode ter, de fato, forte
potencia atual política de transformação, como apostava Foucault no início dos
anos oitenta. Neste sentido, há um ponto que deve ser explorado. Pois a temática
do cuidado de si e do uso dos prazeres pressupõe a possibilidade de
reconstituição de relações de auto-pertencimento, tão presentes na análise
foucaultiana dos estoicos e dos cínicos. Dentre vários exemplos, quando Foucault
fala de Sêneca:

Esta relação é pensada normalmente sob o modelo jurídico da possessão:


se está “a si”, se é “seu” (suum fieri, suum esse são expressões que
aparecem constantemente em Sêneca), só dependemos de nós mesmos, se
é sui juris; exerce-se sobre si um poder que nada limita ou ameaça, detem-
se a potestas sui87.

O que não poderia ser diferente, já que o prazer é o índice fundamental do


pertencimento de si, do estar sob a jurisdição de si mesmo em uma confirmação de
sua própria potência. Dissociado da relação à Lei, o uso dos prazeres poderia
aparecer como uma heterotopia não mais socialmente restrita à dimensão da
anormalidade, mas a dimensão de uma auto-produção de si singular.
Pode parecer estranho que um conceito de liberdade como auto-
pertencimento apareça nas mãos de um filósofo que se notabilizou por pensar o
fora (penser le dehors). Como lembra Deleuze, a respeito de Foucault:

O apelo ao lado de fora é um tema constante em Foucault e significa que


pensar não é o exercício inato de uma faculdade, mas deve suceder ao
pensamento. Pensar não depende de uma bela interioridade a reunir o
visível e o enunciável, mas se dá sob a intrusão de um lado de fora que
aprofunda o intervalo e força, desmembra o interior88.

Mas há de se lembrar que a temática do fora é, em larga medida,


dependente de uma defesa da transgressão que Foucault relativizará com o
passar do tempo ou que, ao menos, terá que conviver com o problema da
instauração de uma dimensão de relação a si que se funda na possibilidade de se
pertencer a si mesmo, constituindo um circuito de imanência instaurada, ou
ainda constituindo um “poder de se afetar a si mesmo”89. Ou seja, poder que não
sai de si mesmo, que é a instauração de um espaço no qual a força se dobra sobre
si mesma, sendo sua própria causa e efeito.
No entanto, no caso de Foucault, não há como deixar de notar que vemos
a emergência de uma ipse vinculada à dimensão das práticas e do cultivo dos
prazeres, ipse que é resultado de uma subjetivação que determina o nome para a
87 FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, op. cit., p. 90
88 DELEUZE, Gilles; Foucault, São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 94
89 Idem, p. 108. Foucault, de fato, compreende este poder de se afetar a si mesmo dentro de uma

chave nitezscheana que reverbera a temática do amor fati. Basta lembrar de afirmações como:
“esta soberania [cínica] se manifesta na felicidade deste que aceita seu destino e não conhece,
por consequência, nenhuma falta, nenhum remorso e nenhum medo. Tudo o que é dureza de
existência, todo o que é privação e frustração, tudo isto se retorna em um exercício positivo da
soberania de si sobre si” (FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérite, op. 282)
constituição de procedimentos de imanência. Se esta subjetivação é um “cultivo”,
se ela é um “cuidado” é porque ela instaura um espaço no qual não se pensa mais
o si sob a forma do conflito e do descentramento. Subjetivação na qual a ipse se
funda sobre o espaço possível de uma decisão ou mesmo, se quisermos, de um
projeto voluntário e refletido, o que nos permite nos perguntarmos que tipo de
agência voluntária é esta, o que ela implica, se ela não exigiria estruturas da
subjetividade que o próprio Foucault gostaria de recusar.
No entanto, se é verdade, como dirá Balibar, que Foucault procura
constituir uma: “ética da ultrapassagem de uma individualidade normal e
normalizada através de uma ‘sobreindividualidade’ que a supera (como
Nietzsche falava do ‘sobrehumano’ que superava o humano)”90 então há de se
reconhecer que ela se desdobra a partir das possibilidades de fazer valer formas
de auto-pertencimento que não sejam imediatamente compreendidas como
internalização de relações de propriedade, tão próprias do indivíduo moderno ao
qual Foucault não cessa de criticar.
Aqui, a questão central pode enfim se apresentar: é possível, nas
condições históricas que são as nossas, afirmar o projeto de uma ética
fundamentada na noção de liberdade como auto-pertencimento, sem com isto
sermos reconduzidos ao princípio liberal da liberdade como propriedade de si?
Esta questão é, a meu ver, decisiva para discutir a atualidade possível das
estratégias de Michel Foucault. O que nada tem a ver com a acusação equivocada
de um certo liberalismo do filósofo francês, mas com a reflexão sobre a
possibilidade ou não de realizar, nas condições históricas atuais, um conceito de
liberdade como auto-pertencimento que tenha forte potencial emancipatório e
crítico em relação às dinâmicas reificadas do capitalismo contemporâneo. É certo
que Foucault assumiu esta possibilidade, nos deixando a questão de saber se ela
é a melhor estratégia conceitual para pensar o problema da liberdade no interior
de nossa condição histórica.

90 BALIBAR, Etienne; “L’anti-Marx de Foucault”, in: LAVAL, Christian et alli; Marx et Foucault:
Lectures, usages, confrontations, Paris: La decouverte, 2015
Arqueologia da liberdade
Aula 5

Na aula de hoje, iniciaremos nosso módulo dedicado à análise do conceito de


liberdade como propriedade de si (self ownership). O movimento central do
curso consiste em compreender as mudanças, para a noção de liberdade como
auto-pertencimento, resultantes do aparecimento da concepção de liberdade
como propriedade de si. O que acontece quando a forma privilegiada de auto-
pertencimento é a propriedade de si? A partir do momento que tal noção de
liberdade como propriedade de si emerge historicamente, o que acontece com
todas as outras formas de auto-pertencimento? Ficam elas impossibilitadas ou
permanecerão possíveis?
Para tanto, partiremos de uma genealogia que irá procurar definir as
condições de emergência da propriedade de si no interior de lutas populares que
ocorreram neste turbulento século XVII inglês. Isto nos levará aos debates
levados a cabo pelos Levellers contra o absolutismo e contra a consolidação
oligárquica do Parlamento britânico. Feito isto, passaremos à maneira com que
John Locke representará a articulação filosófica e normativa da propriedade de si
como característica fundamental da noção liberal de liberdade.
Daremos então um salto no tempo e passaremos da Inglaterra do século
XVII aos EUA do século XX com a atualização da noção de liberdade de si no
interior do anarcocapitalismo de Robert Nozick. Este salto será feito tendo em
vista medir as mudanças de contextos diante da consolidação da sociedade
capitalista como sociedade de generalização da forma-mercadoria, assim como
compreender o impacto de tais mudança nas potencialidades imanentes ao
conceito de propriedade de si. Pois nossa questão não é apenas o que a noção de
propriedade de si significou no momento de sua emergência, mas como o que ela
significa nas condições sociais atuais.
Por fim, voltaremos ao horizonte histórico da Revolução Francesa a fim de
mostrar que a contestação política da noção de propriedade não deve ser
compreendida simplesmente como demanda política de redistribuição justa de
bens. A propriedade é claramente concebida por setores importantes do
processo revolucionário como fundamento de uma forma específica de vida
incapaz de permitir a realização social da liberdade. Neste sentido, eu gostaria de
explorar de maneira sistemática a ideia, presente em Graco Babeuf, segundo a
qual não pode haver liberdade lá onde imperam as relações de propriedade.
Neste sentido, nosso módulo será organizado a partir da seguinte questão: como
passamos da defesa da propriedade como garantia de minha autonomia contra o
poder do Estado e das oligarquias para a compreensão da propriedade como o
eixo fundamental das formas de servidão e alienação social?
Esta discussão sobre a liberdade como propriedade de si é central para o
nosso curso pois gostaria de defender a tese de que este modelo irá generalizar-
se entre nós, colonizando de maneira hegemônica o que poderíamos chamar de a
gramática dos enunciados e das demandas por liberdade. Para nós, e de forma
hegemônica, mesmo sem nos darmos conta, ser livre é ser proprietário de si
mesmo.
Se necessitarmos de uma definição operacional, poderemos definir
propriedade de si como a afirmação de que:
a toda pessoa é moralmente assegurada a total propriedade privada de
sua pessoa e capacidades. Isto significa que toda pessoa tem um conjunto
extensivo de direitos morais (que a lei de seu país pode ou não
reconhecer) sobre o uso e usufruto de seu corpo e capacidades,
comparável em conteúdo aos direitos gozados por alguém que tem uma
posse privada irrestrita de uma peça física de propriedade91.

Ou seja, a relação a si mesmo e a suas capacidades é pensada a partir do


modelo das relações de possessão sobre objetos do mundo. Posso gozar de mim
mesmo e de meus atributos, das minhas capacidades e habilidades da mesma
forma que posso gozar de um objeto que está submetido à minha posse. O único
limite é que este gozo não interfira no gozo da propriedade do outro. Ou seja, a
propriedade de si visa impedir que outro (seja ele outro sujeito, ou uma
instituição como o estado, a igreja, a empresa) tenha um acesso não consentido à
minha pessoa.
Quando digo, por exemplo “meu corpo, minhas regras” exerço claramente
uma demanda de reconhecimento de minha liberdade baseada no exercício de
uma propriedade de si. Meu corpo é uma propriedade minha e defino, por isto, as
regras que lhe cabem. Quando falo “meus filhos, minhas regras” amplio o
domínio de minha propriedade aos filhos, um pouco como víamos no interior do
direito romano com sua figura do pater familia. Quando digo: “Eu falo o que
quero”, “Se eu quiser me jogar em um buraco, é problema meu”, “Este é o meu
jeito”, “Vendo minha força de trabalho para quem quiser, se não estou gostando,
vou embora” e tantas outras afirmações com as quais nos deparamos
diariamente, é sempre do exercício da noção de propriedade de si que é questão.
Mesmo quando entramos em embates a respeito, por exemplo, da possibilidade
ou não de vender órgãos do meu corpo, de vender ou não relações sexuais
consensuais, é da noção de liberdade como propriedade de si que é sempre
questão.
Importante salientar como, para nós, tornou-se absolutamente natural
compreender a pessoa socialmente reconhecida enquanto tal como uma pessoa
proprietária. Como se a propriedade fosse a expressão natural de sua existência
reconhecida. O que simplesmente explicita um traço definidor que determina o
conceito de persona desde sua emergência no direito romano. É pessoa quem
pode ser reconhecido em suas relações de propriedade, como capaz de contrair
relações de propriedade. Não são pessoas os escravos, filhos, devedor em débito,
ou seja, todos aqueles que não podem mais ou não podem ainda contrair
relações de propriedade.
Por outro lado, lembremos como a relação entre proprietários é
necessariamente a relação sob a forma do contrato. Sendo a liberdade um modo
de exercício social, devemos nos perguntar sobre a forma que as relações sociais
tomam neste paradigma. Elas tomam preferencialmente a forma de relações
contratuais.
O contrato se torna a forma fundamental de reconhecimento, pois ele
define as condições para o respeito ao gozo dos objetos que estão em meu poder.
É pelo contrato que eu passo a posse de um objeto a um outro, que eu reconheço
minha posse e os limites de tal possessão. Em uma sociedade de proprietários, as
91 COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, p. 117
relações sociais tendem a se organizar como relações contratuais. O casamento
será visto como um contrato, as relações de trabalho serão vistas como um
contrato, as relação das cidadãs e dos cidadãos ao estado serão vistas como um
contrato, as relações afetivas serão vistas como um contrato. Liberdade estará
profundamente vinculada à capacidade de assumir, construir e realizar formas
cada vez mais múltiplas e singulares de contratos. Tenhamos tal horizonte em
mente a partir de agora, pois veremos uma emergência da propriedade de si que
apenas paulatinamente irá mostrar sua verdadeira extensão.

Uma era de contestações

Não é por acaso que a definição que temos de propriedade de si vem de um texto
que é, na verdade, o panfleto político de um dos primeiros movimentos no
Ocidente a se organizar em torno da noção de soberania popular. Trata-se de
Uma flecha contra todos os tiranos e tiranias, escrito por Richard Overton em
1646, na prisão de Newgate.
Estamos em meio às guerras civis na Inglaterra. Entre 1642 e 1651, a
Inglaterra será atravessada por três guerras civis que opunham, de um lado, os
monarquistas apoiadores do rei Carlos I e, posteriormente, de Carlos II e, de
outro, os defensores do Parlamento. A guerra terminará com a vitória do
Parlamento, com o fim da monarquia e a instauração da Commonwealth of
England (1649-1653) que dará lugar, posteriormente, ao protetorado de Oliver
Cromwell (1653-1658). Como o fim do Protetorado e do rápido governo de seu
filho, a monarquia retorna para continuar até os dias de hoje.
Lembremos que desde a proclamação da magna carta em 1215, o rei
britânico reconhecia limitações em seu poder e a necessidade de negociar com o
Parlamento, representante dos interesses da nobreza e de proprietários de
terras. Desde então, o rei necessitava reunir o Parlamento para aprovar
demandas financeiras e tributárias. Ou seja, o Parlamento funcionava de forma
intermitente a pedido do rei.
Carlos I procurou evitar negociações com o Parlamento, passando mais de
dez anos sem convoca-lo. Mas diante da crise financeira provocada por uma
guerra perdida contra os escoceses, que temiam que o rei estivesse a reinstaurar
o catolicismo, o Parlamento é convocado em 1640. Conhecido como Longo
Parlamento, ele tentará limitar os poderes do monarca, o que levará à primeira
guerra civil de 1642-1646. Finda a guerra, a Inglaterra estará dividida e com as
facções em contínua disputa. Uma segunda guerra civil terminará com a
condenação e enforcamento de Carlos I, em 1649, declarado como “tirano,
traidor, assassino e inimigo público”. Será o primeiro regicídio da história
inglesa, e o único. O ato abre o caminho para a ascensão de Cromwell que
precisará ainda vencer uma terceira guerra civil contra uma aliança entre
católicos irlandeses e monarquistas.
Neste contexto, a Inglaterra conhecerá vários movimentos que
advogavam maior participação popular nas decisões do estado, liberdade de
expressão e de culto a todas as seitas protestantes, ampliação do sufrágio, direito
de silêncio, entre outros. Eles se aproveitam da singular liberdade de expressão
que ocorrerá na Inglaterra entre 1641 e 1660 quando não haverá censura estrita.
Dentre esses movimentos, o mais importante será dos Levellers, nome
inicialmente pejorativo que indicava o desejo igualitário de nivelamento que será
o eixo de suas lutas por liberdade. Seus principais líderes serão John Lilburne,
Richard Overton e William Walwyn. Utilizando-se de panfletos dirigidos à
opinião pública, os Levellers terão influência em setores da New Model Army (o
exército regular nacional formado em 1645 pelos defensores do Parlamento,
composto de membros regulares vindos, principalmente, das classes populares;
tratava-se do primeiro exército de recrutas majoritariamente voluntários) e,
juntamente com outros grupos e movimentos (como os Diggers com seu
comunismo agrário) procurarão realizar um outro caminho para as
transformações esperadas pela Inglaterra. De certa forma, podemos dizer que
Oliver Cromwell saberá como se servir da energia de transformação social
produzida por essa miríade de movimentos para limitar suas consequências
reais.
A importância desses movimentos populares não pode ser menosprezada,
pois eles davam expressão política a uma longa história de sedição popular no
interior da Inglaterra. Levando isto em conta, o historiador Christopher Hill dirá:

Houve duas revoluções na metade do século dezessete na Inglaterra.


Aquela que foi bem-sucedida estabeleceu o direito sagrado da
propriedade (abolição das posses feudais, não mais taxações arbitrárias),
deu poder político ao proprietário (soberania do Parlamento e da
common law, abolição da prerrogativa das cortes) e aboliu todos os
impedimentos para o triunfo da ideologia dos homens de propriedades –
a ética protestante. Houve, no entanto, outra revolução que nunca
ocorreu, ainda que de tempos em tempos ela ameaçou ocorrer. Esta
deveria estabelecer propriedade comunal, uma democracia muito maior
nas instituições políticas e legais. Ela teria desestabilizado a igreja estatal
e rejeitado a ética protestante92.

Os Levellers estão, de certa forma, no meio do caminho entre duas


revoluções. Deles, vem a generalização da propriedade e da condição de
proprietário como estratégia de afirmação das liberdades políticas e sociais. Ela
aparece como estratégia para barrar o absolutismo e exigir igualdade de todos
perante as leis. Neste sentido, a generalização da propriedade como forma geral
de relação a si aparece como uma maneira de consolidação da liberdade civil
para além das determinações de classe, o que abriria espaço ao que Hill chama
de “democracia muito maior nas instituições políticas e legais”. Sendo todos
proprietários, todos terão direitos iguais.
Tal generalização nasce do espírito de insubordinação de classe que
atravessa esse momento da história inglesa. Ela será a forma inicial de uma
recusa à servidão e à naturalização das relações de subordinação. Tal consciência
era tão presente neste momento da história inglesa que os exemplos são legião. A
nobreza de Buckinghamshire, por exemplo, só conseguirá coletar menos de dez
por cento dos impostos devidos pela população do condado entre 1643 e 164593.
Os Levellers são apenas uma superfície mais visível de movimentos
políticos e religiosos contestatários que crescem por toda a Inglaterra e seus
puritanos. Neste momento, o radicalismo político é incompreensível sem a
remissão às sedições religiosas. A reforma protestante não é apenas o horizonte

92 HILL, Christopher; The world upside down, p. 15


93 GARDINER, S.; The great civil war III, p. 209
religioso de justificação das aspirações de liberdade de uma burguesia em
ascensão. Ela também libera uma potência de sedição popular que será elemento
importante para os movimentos políticos de contestação do poder. Muitos foram
os movimentos que queriam realizar, na Terra, a pretensa retidão da vida
anterior à queda em comunidades que deveriam ser sem possessão, hierarquia e
sujeição.
Por exemplo, se seguirmos Engels em As guerras camponesas na Alemanha. tudo se passa
como se a Reforma tivesse uma dupla face. Lutero e Calvino significariam a consolidação de um
quadro social de burguesia em ascensão contra o poder central do papado. Mas reformadores
radicais como Thomas Müntzer seriam a vertente protoproletária da Reforma. Daí porque
poderíamos afirmar que as revoltas dos anabatistas exprimiriam a energia negativa das classes
subalternas que recusam as estruturas prévias do poder a fim de estabelecer como princípio uma
nova forma de existência, uma realização imediata do Reino de Deus na Terra, na qual “toda
propriedade deve ser comum e distribuída a cada um de acordo com suas necessidades, de
acordo com o que a ocasião requeira”94. As exigências camponesas de fim das relações feudais e
de servidão, diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar nas florestas da
nobreza exprimiam um horizonte claramente revolucionário de igualdade radical baseada na
ressurgência do modelo das primeiras comunidades cristãs95.
Grupos como os anabatistas serão bastante presentes na Inglaterra. E se a
Inglaterra chegará rapidamente ao regicídio, é porque a reforma protestante,
com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto
de problematização e crítica, o que exige a institucionalização da liberdade,
levará ao direito de resistência. Já em Calvino encontramos uma afirmação como:
“Os governantes de um povo devem envidar todo esforço a fim de que a
liberdade do povo, do qual são responsáveis, não desvaneça de modo algum em
suas mãos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem,
devem ser considerados traidores da pátria”96. É fato que Calvino evita
generalizar tal consideração sob a forma de um direito geral de resistência. No
entanto, a noção calvinista expõe claramente a articulação entre
institucionalização da liberdade e crítica do poder incapaz de garantir tal
institucionalização que será radicalizada por setores do pensamento reformado,
como John Ponet, John Knox e, principalmente, Thomas Münzer. A partir deles, o
direito de resistência aparece como fundamento da vida social.
Esta abertura do pensamento reformado ao problema da resistência
alcançará o pensamento político. Entre calvinistas mais radicais, como George
Buchanan, o direito de resistência não é mais completamente compreendido
como um gesto teológico de defesa da supremacia da lei divina sobre a lei civil.
Ao justificar a deposição da rainha católica Maria Stuart, em 1567, Buchanan
serve-se basicamente de argumentos políticos ligados a quebra do pacto entre o
povo e o rei. Sendo o povo aquele que institui o rei, ele guarda para si o direito de
a ele se contrapor quando o rei governa apenas em causa própria. Já John Milton
chegará a utilizar a definição do tirano como aquele que ignora “a lei e o bem
comum” a fim de justificar o direito de resistência97. Dirá Milton: “a lei de
natureza autoriza qualquer homem a se defender, mesmo do próprio rei”98.
Notemos ainda que será apenas com Locke que o direito de resistência será
94 Cf. MÜNTZER, Thomas; Sermon to the princes, Londres; Verso, 2010, p. 96
95 Para a compreensão da potência comunista revolucionária das revoltas camponeses, ver
BLOCH, Ernst; Thomas Münzer: teólogo da revolução, Rio de Janeiro, tempo Brasileiro, 1973
96 CALVINO, João; A instituição da religião cristã, São Paulo: Unesp, 2009, p. 882
97 MILTON, John; “A tenência de reis e magistrados” In: Dzelzainis, Martin (org.); John Milton:

Escritos Políticos, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 4


98 Idem, p. 63
enquadrado como peça importante da defesa liberal do primado político do
indivíduo.

A gênese da propriedade de si

Richard Overton está na prisão, em Newgate. O ano é 1646 e os Levellers se


levantam contra o arbítrio do Parlamento. Os principais líderes do movimento
estão presos. Neste contexto, Overton inicia um panfleto no qual critica a ação do
Parlamento:

Para todo indivíduo na natureza é dada uma propriedade individual por


natureza que não pode ser invadida ou usurpada por ninguém. Para
todos, na medida em que é si mesmo, haverá a propriedade de si, senão
ele não poderia ser si mesmo; e a este respeito nenhum terceiro pode
privá-lo sem uma violação manifesta e uma afronta ao princípio básico da
natureza e das regras de equidade e justiça entre homens. Meu e teu só
podem existir desta forma. Nenhum homem tem poder sobre meus
direitos e liberdade, e não tenho poder sobre direitos e liberdade de
homem algum. Posso ser apenas um individuo, gozar de mim mesmo e de
minha propriedade de si, mas não tenho o direito de ser mais do que mim
mesmo; se faço isto entro e invado os direitos de outro homem, o que não
tenho direito de fazer. Pelo nascimento natural todos os homens são
iguais e identicamente nascidos para gozar da propriedade, da liberdade e
como somos entregues por deus, por intermédio da natureza, neste
mundo, todos tem uma liberdade inata, natural e propriedade – como está
escrito nas tábuas do coração de todos os homens99.

As colocações aqui são exemplares. Na aurora do conceito moderno de


democracia, Overton proclama a liberdade como reconhecimento de uma relação
de propriedade da qual não posso ser privado, da qual nenhum poder pode me
alienar. Daí a noção da propriedade de si como um direito natural, e não uma
convenção social. Ou seja, a natureza inscreve no coração dos homens o desejo
de propriedade e é este direito que garante um princípio de equidade. Overton
fala de um direito próprio aos “filhos de Adão” que são “direitos e prerrogativas
da humanidade” e que, por isto, vale tanto para os povos da Inglaterra quanto os
de outras nações.
A astúcia da formulação vem do fato de Overton se apoiar em um direito
legalmente constituído (o direito à propriedade), universalizando assim direitos
já garantidos pela legislação. Não se trata de dizer imediatamente: “todos os
homens nascem livres”, “todos os homens nascem iguais”, mas “todos os homens
nascem proprietários”. Esta é a grande inovação formal, criada no interior de
estratégias de obrigação de limitação do poder do estado contra os indivíduos.
Este direito natural de propriedade deve assim fundamentar a
institucionalidade da vida social garantindo um espaço no qual a ação social é
pensada como o exercício das demandas de reconhecimento da minha condição
de proprietário. Como Macpherson afirmou:

99 OVERTON, Richard; An arrow against all tyrants, p. 55


o indivíduo não tem apenas a propriedade em sua própria pessoa e
capacidade, uma propriedade no sentido de um direito a usufruir e usa-
las e excluir outros deste usufruto. Na verdade, é esta propriedade, esta
exclusão dos outros que faz de um homem um ser humano100.

Sendo a propriedade privada o fundamento da liberdade, é a


generalização da condição de proprietário, com a generalização da condição de
cidadão pleno de direitos políticos que pode, de fato, realizar tal direito natural.
Se perguntarmos o que devemos entender por “propriedade” encontraremos em
Overton sua definição como “o direito que tenho de fazer o que quero com meus
bens”. “Bens” são aquilo que pode se submeter ao exercício de minha vontade.
Para que a vontade se exerça, é necessário que existam objetos que dependem da
minha vontade para determinar suas formas de existência. Faz-se necessário
também que minha vontade não seja submetida à vontade do outro.
Note-se ainda que Overton fala de “afronta aos princípios de equidade e
justiça”. Ou seja, a igualdade como princípio social enfim emerge. Ela é uma
novidade no pensamento político e é ela que dará nome ao grupo: os niveladores.
Ela implica a recusa de uma ordem natural e hierarquizada da vida social, o que
leva Overton a afirmar: “todo homem sendo por natureza um rei, pastor e
profeta em seu próprio circuito natural e sua própria bússola, ninguém pode
disto partilhar a não ser por delegação, comissão e livre consentimento vindo
desses cujos direitos naturais e liberdade aí estão”101. Se todo homem é um rei,
então é só por livre consentimento que permito a partilha de minha propriedade
de si. Nenhum poder sobre ele pode se exercer sem que ele próprio tenha sido o
autor da delegação.
O direito natural de propriedade de si não pode ser transferido, o
representante deste poder não pode querer se valer pelo representado. De onde
se segue que o poder soberano não pode ser o rei, o clérigo, o papa ou mesmo o
parlamento. Toda soberania que não seja a popular, que não seja a soberania do
reino, soberania do corpo social do reino, é : “usurpação, ilegítima e ilegal”102. Por
outro lado, se todo homem (o termo tem aqui, inclusive, uma determinação clara
de gênero) é proprietário, então só pode haver poder legítimo quando tal
igualdade for respeitada.
É fato que a extensão de tal equidade será objeto contínuo de debate.
Machpherson insiste que as proposições de sufrágio do Levellers não eram
exatamente universais. Se voltarmos aos debates de Putney, um momento
extremamente significativo de intenso debate a respeito das múltiplas visões
sobre a reconstrução institucional do país, veremos alas hegemônicas dos
Levellers defendendo, em sua maioria, o sufrágio para todos os homens, a
exceção dos serviçais, aprendizes e indigentes. Isto concerniria 417.000
cidadãos. Um sufrágio universal masculino representaria, neste momento,
1.170.000 cidadãos. No que se vê uma diferença considerável. A justificativa para
a exclusão de serviçais, aprendizes e indigentes é que, dependendo da vontade
de outros, eles temeriam ir contra seus mestres. Ou seja, aqueles que vivem em
um vida de extrema dependência não podem ser considerados cidadãos com

100 MACPHERSON, C.R.; The theory of possessive individualism, Oxford University Press, 1993, p.
142
101 OVERTON, p. 55
102 OVERTON, p. 63
plenos direitos políticos. Eles aceitaram pertencer a seus mestres. No que se nota
como a proposição teórica da propriedade de si universal é praticamente
limitada tendo em vista a exclusão das classes pobres do direito de decidir,
enquanto maioria, o destino do país. Na verdade, enquanto Cromwell defende
que só é homem livre quem for proprietário de terras ou de uma letra patente
que lhe confere o direito de comerciar, os Levellers parecem defender que é livre
todo o homem que tem a propriedade de sua força de trabalho.
No entanto, lembremos que, em 1647, Levellers mais radicais como
Thomas Rainborough e Edward Sexby defenderão o sufrágio universal. Muitos
defenderão a igualdade radical de propriedades ou, como os Diggers, a
propriedade comunal. No que se vê a tensão extrema que a noção de
propriedade de si conjuga no momento de sua emergência.

Ser proprietário de si ou ser propriedade de si?

Mas notemos como esta maneira de afirmar a experiência da liberdade


não poderia deixar de sentir as consequências de um paradoxo. Pois lembremos
que ser proprietário de si é, também e de forma paradoxal, ser propriedade de si.
Será este paradoxo que levará, como veremos nas próximas aulas, os
igualitaristas séculos depois a assumirem claramente a crítica do direito de
propriedade como condição para a realização da liberdade social.
Pois será o caso de insistir que as relações de propriedade são,
normalmente, relações entre pessoas e coisas, ou seja, elas são exatamente o
contrário do que entendemos por relações capazes de produzir a afirmação da
condição de sujeitos. Relações de propriedade pressupõem esta distinção
fundamental entre o que se submete a um direito de uso (coisas) e o que não se
submete (pessoa)103. Por isto, elas são dissimétricas e baseadas em submissão, o
proprietário tem direito de uso sobre sua propriedade. O que é propriedade está
em relação de dependência existencial em relação a seu proprietário. Ou seja, a
causalidade de uma propriedade lhe é necessariamente exterior. Ela se encontra
na vontade de seu proprietário. No entanto, por estar no interior do domínio de
seu proprietário, a propriedade tem uma peculiar identidade ao seu proprietário.
Por ser propriedade, o que lhe ocorre, ocorre imediatamente também ao
proprietário.
Neste sentido, pode-se sempre perguntar qual é o objeto de uma vontade
por propriedade de si. O estabelecimento de relação a si baseada na forma da
propriedade exige, em algum nível, tomar a si mesmo como objeto, ou melhor,
clivar-se entre o possuidor e a posse, o que parece nos levar a alguma forma de
divisão entre o que, em mim, submete-se à condição de objeto, e o que, em mim,
eleva-se à condição de pessoa. Ou seja, esta concepção de liberdade acaba por
pressupor uma divisão interna do sujeito, como se a linha divisória entre pessoa
e coisa passasse no interior do próprio indivíduo proprietário. Esta concepção de
liberdade parece sustentar-se sobre uma concepção teológica de subjetividade
clivada. Pois não seria difícil remontar tal concepção clivada da natureza humana
à teologia. A temática da afirmação dos “motivos constantes da moralidade”
contra os “afetos”, isto a fim de educar o sujeito como uma personalidade, era
elemento fundamental da ascese puritana.

103 Ver, a este respeito: ESPOSITO, Roberto; Le persone e le cose, Roma: Einaudi, 2014
Arqueologia da liberdade
Aula 6

Na aula de hoje, daremos continuidade a nosso módulo sobre a liberdade como


propriedade de si. Na aula passada, vimos a emergência de tal concepção de
liberdade no interior das lutas políticas da Inglaterra do século XVII. Forneci,
inicialmente, um conceito operacional de propriedade de si:

a toda pessoa é moralmente assegurada a total propriedade privada de


sua pessoa e capacidades. Isto significa que toda pessoa tem um conjunto
extensivo de direitos morais (que a lei de seu país pode ou não
reconhecer) sobre o uso e usufruto de seu corpo e capacidades,
comparável em conteúdo aos direitos gozados por alguém que tem uma
posse privada irrestrita de uma peça física de propriedade104.

Ou seja, a relação a si mesmo e a suas capacidades era pensada a partir do


modelo das relações de possessão sobre objetos do mundo. Posso gozar de mim
mesmo e de meus atributos, das minhas capacidades e habilidades da mesma
forma que posso gozar de um objeto que está submetido à minha posse. O único
limite é que este gozo não interfira no gozo da propriedade do outro. Ou seja, a
propriedade de si visa, sobretudo, impedir que outro (seja ele outro sujeito, ou
uma instituição como o estado, a igreja, a empresa) tenha um acesso não
consentido à minha pessoa.
Eu havia insistido que tal conceito de liberdade como propriedade de si é
um eixo hegemônico de nossa experiência social contemporânea de liberdade. O
que não poderia ser diferente, já que o sistema capitalista sustenta-se, entre
outros, através da generalização da forma-propriedade para todas as esferas da
experiência social. Insistiria mesmo que vivemos atualmente em meio a um
embate em torno de concepções de liberdade e o conceito de propriedade de si
desempenha um papel fundamental. Por exemplo, quando vemos, em meio a
uma pandemia, pessoas manifestando-se em varias partes do mundo contra
regras de confinamento, chegando mesmo apelar a um “direito de seu infectar”
(como vimos em manifestação recente na Alemanha), podemos inicialmente
procurar ridicularizar tais fenômenos como expressão de desvario. Mas gostaria
de insistir que eles são uma consequência absolutamente possível se vocês
admitem que ser livre é ser proprietário de sua própria pessoa. Pois sendo meu
corpo algo que posso gozar como uma propriedade que uso e consumo, ninguém
pode obrigar-me a não me infectar sem meu consentimento, ninguém pode me
obrigar a usar algo em meu corpo (mesmo que seja uma máscara médica) sem
meu consentimento.
Claro que vocês podem alegar neste contexto a noção de “risco ao outro”,
“invasão do direito do outro a não ser infectado” e argumentos parecidos. Mas
aceitar argumentos dessa natureza nos obriga a uma mudança de paradigma.
Pois pressupõe que a propriedade de si não se aplica a tudo que passa em meu
corpo e que tal direito de usufruto da propriedade não seria um valor absoluto.
Haveria alguma instância fora de mim que poderia decidir os limites desse
direito, do que significa “risco ao outro”, já que o critério não é imediatamente
104 COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, p. 117
evidente (carregar um bebê no colo, por exemplo, pode ser um ‘risco ao outro’ já
que posso deixa-lo cair e ele se ferir gravemente). Esta instância, dirão alguns, é o
estado e sua sanha de controle, e sua tendência de desrespeito a condição de
mero guardião da propriedade.
Mas para entender como essa noção de liberdade se constituiu, eu sugeri
voltarmos os olhos a sua emergência no campo das lutas políticas por soberania
popular. Por isto, insisti em partir da noção de propriedade de si entre os
Levellers. Lembrei a vocês como havia uma astúcia nessa formulação inicial da
liberdade como propriedade de si extensiva a todos proposta pelos Levellers na
Inglaterra do século XVII. Pois tratava-se de apoiar-se em um direito legalmente
constituído e então reconhecido (o direito à propriedade), universalizando
assim direitos já garantidos pela legislação. Essa era uma operação de subversão
na qual um direito constituído para garantir o reconhecimento político a apenas
uma classe (a classe dos proprietários de terra e de bens) era conjugado de
forma tal a permitir a emergência de relações de igualdade perante a lei, já que
todos são proprietários ao menos de sua própria pessoa. Por isto, não se tratava
de dizer imediatamente: “todos os homens nascem livres”, “todos os homens
nascem iguais”, mas “todos os homens nascem proprietários”. Esta era a grande
inovação formal, criada no interior de estratégias de obrigação de limitação do
poder do estado contra os indivíduos.
Mas eu lembrara também que a estratégia implicava riscos. Pois o uso da
noção de propriedade para generalizar a experiência da liberdade social trará, no
seu bojo, um paradoxo. Ser proprietário de si é, também e de forma paradoxal,
ser propriedade de si. O estabelecimento de relação a si baseada na forma da
propriedade exige, em algum nível, tomar a si mesmo como objeto, ou melhor,
clivar-se entre o possuidor e a posse, o que parece nos levar a alguma forma de
divisão entre o que, em mim, submete-se à condição de objeto, e o que, em mim,
eleva-se à condição de pessoa. Ou seja, esta concepção de liberdade acaba por
pressupor uma divisão interna do sujeito, como se a linha divisória entre pessoa
e coisa passasse no interior do próprio indivíduo proprietário. Será este
paradoxo que levará, como veremos nas próximas aulas, os igualitaristas séculos
depois a assumir claramente a crítica do direito de propriedade como condição
para a realização da liberdade social.

A constituição do liberalismo e a prevalência da propriedade

Na aula de hoje, gostaria de falar sobre como a noção de propriedade de si


se desenvolverá no interior do pensamento de John Locke. Isto nos leva a
compreensão profunda, estabelecida por Locke, entre propriedade, identidade e
consciência. A propriedade não será apenas um modo de relação aos objetos
juridicamente constituída. Ela será uma forma de relação a si que garantirá a
possibilidade de minha própria identidade. Por outro lado, essa noção de
propriedade fundará um horizonte de governo no qual o estado estará limitado
em suas pretensões absolutistas, abrindo espaço a um regime liberal de governo.
Para analisar como Locke compreende tal ideia de liberdade, partamos desta
definição canônica presente no Segundo Tratado do Governo, de 1689:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os


homens, ainda assim todo homem tem a propriedade em sua própria
pessoa. A esta ninguém tem direito algum, a não ser ele próprio. Pode-se
dizer que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos são
propriamente seus. Tudo o que ele retire do estado que a natureza
providenciou e lá deixou fica misturado ao seu trabalho, justando-se a
algo que lhe pertence e, por isto, fazendo dele sua propriedade105.

Notemos o ponto de partida. Ele se encontra na noção de que há um


horizonte de bem comum a fundar a existência social. Mas tal horizonte é
quebrado pela possibilidade da propriedade individual, que aparece não apenas
como um direito natural, mas como uma espécie de fato natural: desde o
momento em que trabalha, o ser humano constitui o regime da propriedade
privada. A propriedade não é uma espécie de forma social de produção
historicamente constituída e determinada. Na verdade, ela é uma expressão
imanente da natureza. Sua realidade é assim transhistórica. O que significa
defender que o estado de natureza já é um estado de pequenas propriedades
individuais de terra, de bens e de si mesmo.
Essa noção de propriedade é expressão imediata da natureza ativa do ser
humano, do fato das mediações entre ser humano e natureza serem realizadas
pelo trabalho. É isto que permite a Locke afirmar: “Pode-se dizer que o trabalho
do seu corpo e a obra de suas mãos são propriamente seus”. A afirmação é clara
na defesa da existência humana ser existência ativa, uma atividade que é, ao
mesmo tempo, apropriação e redução da diferença do que se contrapõe a mim
sob a forma do objeto a ser trabalhado. Por isto: “deve existir um meio legítimo
de apropriação individual, quer dizer, um direito do indivíduo a apropriação”106.
Neste sentido, a centralidade do trabalho denuncia que não estamos diante de
uma identidade de substância, ou seja, da identidade de uma substância que se
desdobra a partir de si mesma. Estamos diante de uma identidade de atividade,
de uma identidade como produto continuamente ampliado e revisto. Neste
sentido, devemos lembrar como Locke defende não haver consciência sem um
desejo: “que ao mesmo tempo a perturba e a leva em direção a novos conteúdos
ou novas ideias”107, como se estivéssemos diante de um fluxo perpétuo. Essa
tensão é o fruto de um conceito de trabalho que aparece, ao mesmo tempo, como
modalidade de expressão de si e forma de possessão.
Mas notemos que esta apropriação não é a oikeiosis estoica que vimos em
aulas passadas. Pois, como vimos, os estoicos compreendiam a apropriação como
uma espécie de operação passiva. Tratava-se de ser capaz de se apropriar do
processo dos acontecimentos, de estar em condição de querer o logos que se
afirma através do curso do mundo. Ora, e isto é o que faz de Locke um autor
moderno, e não um grego, o que temos aqui é a atividade de uma consciência que
opera a partir de sua vontade de submissão do mundo a sua imagem. O
movimento é quase que inverso. Da liberdade como auto-pertecimento estoico a
liberdade como propriedade de si, uma mudança fundamental ocorre. Ela
concerne o lugar da vontade. Uma vontade de apropriação do mundo através do
trabalho e uma vontade de reconciliação com um logos encarnado no mundo.
Por isto, o ponto fundamental é como o trabalho emerge a partir de agora
como a produção do que é próprio a mim, do que é a confirmação especular de

105 LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
106 MACPHERSON; La théorie de l’individualismo possessif, p. 332
107 BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 140
minha própria determinação. Não apenas uma estrutura de reconhecimento, ele
é sobretudo uma estrutura de auto-determinação. Minha atividade determina a
forma da minha existência e o campo do que me é próprio. Tudo o que o ser
humano removeu do estado de natureza foi misturado ao trabalho e, desta
forma, algo que é seu agora se encontra no objeto trabalhado. Por isto, ele é sua
propriedade. Ele é seu espelho. Por isto: “o trabalho, no início, dá o direito de
propriedade”108.
Como o burguês que tem dentro de sua casa objetos que contam a história
de sua pessoa, de suas pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e memórias, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande
home decorada por objetos que são a expressão de sua própria história. Pois
propriedade é, acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estão
completamente submetidas ao meu domínio, que perderam seu estranhamento.
Esta sobreposição entre expressão e possessão pode ocorrer porque a forma da
auto-determinação, o campo de nossa ipse é imediatamente a expressão de
relações de propriedade. Eu sou sujeito porque tenho a propriedade de minha
própria pessoa.
Por outro lado, segundo Locke, Deus forneceu um horizonte de riquezas
aparentemente inesgotáveis que permite a todos serem proprietários. E se nos
perguntarmos pelos limites de tal direito de propriedade, encontraremos
afirmações como: “o quanto de terra um homem é capaz de lavrar, plantar,
melhorar, cultivar e usar seu produto é o quanto de sua propriedade”109. Ou seja,
a restrição a apropriação está ligada a capacidade de cada um cultivar para sua
satisfação. Haverá ainda a obrigação de deixarmos aos outros o que é suficiente,
em quantidade e qualidade, além da restrição moral ao gasto desnecessário e a
destruição suntuária.
Por outro lado, importante lembrar que o estado de natureza é um estado
de liberdade, já que conhece a propriedade, mas não um estado de licença. A
liberdade incontrolada de dispor de sua pessoa e posses não significa liberdade
de destruir a si ou as criaturas de sua posse como bem entender. Locke fala de
um “uso nobre”. Ninguém tem o poder absoluto arbitrário sobre si para destruir
sua própria vida ou tomar a vida e propriedade dos outros. Cada um está ligado a
auto-preservação e, em segundo momento, a preservação da humanidade. Note-
se que este ponto é importante por mostrar uma articulação entre propriedade e
moral que submete a propriedade a um uso moral.
Ou seja, o horizonte de conflito, tão presente no estado de natureza
hobbesiano, no qual todos tem um desejo ilimitado em relação a tudo, o que leva
necessariamente a relações belicistas e concorrenciais, não se coloca da mesma
forma para Locke. Há terras na Inglaterra, mas haverá terras também na
América, prontas para serem trabalhadas e apropriadas. “Terras virgens” (e
poderemos colocar questões importantes a respeito desta fantasia originária da
“terra virgem”, a respeito de quanto tal teoria pressupõe a deposição colonial do
outro).

Gênese do estado liberal

108 LOCKE, John; Idem, p. 299


109 Idem, p. 290
Neste sentido, podemos entender melhor outra passagem canônica do
Segundo Tratado do Governo:

O homem, tendo nascido com o título à liberdade perfeita, e a um gozo


incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza,
igualmente a outros homens ou números de homens no mundo, tem por
natureza um poder não apenas de preservar sua propriedade, ou seja, sua
vida, liberdade e bens contra as injúrias e atentados de outros homens,
mas julgar e punir as violações da lei pelos outros, como a ofensa merece,
mesmo com a morte diante de crimes para os quais, em sua opinião, o
caráter odioso do fato requeira110.

Notem inicialmente como aparece a propriedade, ou seja, englobando “a vida, a


liberdade e os bens”. Esse três termos serão indissociáveis. Por outro lado, é
claro como a defesa de sua propriedade aparecerá pois como o fundamento da
lei social, da punição e das penas. Em suma, ela será a razão fundamental da
existência do governo. O que exige limites claros à ação do governo. Ele não
poderá despossuir os sujeitos de suas propriedades sem com isto quebrar o
pacto a que está submetido: “o poder supremo não pode tomar de homem algum
parte alguma de sua propriedade sem o seu consentimento”111. Ele também não
poderá arrogar para si prerrogativas absolutas, já que sua função não é limitar
ou abolir, mas preservar e alargar a liberdade dos sujeitos. Poder absoluto não se
encontra sequer na família. Nós nascemos livres e racionais, por isto a
autoridade paterna não pode ser um direito de posse e ela se exerce apenas
enquanto a minoridade da criança impede-lhe de gerir sua propriedade. No que a
liberdade dos sujeitos sob o governo será: “liberdade para seguir minha própria
vontade em todas as coisas nas quais a lei não prescreve, e não ser sujeito a
vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem”112.
Notemos que as leis que prescrevem limites a ação são resultantes de
consentimento. Elas devem ser leis consentidas por todos tendo em vista a
preservação da liberdade. É isto que cria o corpo político e sua lógica de decisão
da maioria. Locke chega a usar exemplos dos povos ameríndios para mostrar
como são povos que vivem na liberdade do estado de natureza, só constituindo
chefias através da livre-escolha.
Mas diante dessa liberdade suposta, como então justificar nosso sistema
de governo? Ele deverá ser um consentimento visando impedir a violação da
liberdade. No estado de natureza, mesmo sendo senhor absoluto de sua própria
pessoa e possessões, o gozo deste domínio é incerto e inseguro, constantemente
exposto a invasão do outro. Ou seja, este estado é “muito inseguro”, levando os
sujeitos a procurarem a “preservação mútua de suas vidas, liberdades e bens”113,
ou seja, aquilo que Locke chama de “liberdade”. O estado de natureza é marcado
pela liberdade e insegurança. Nele, todos são juízes e executores, o que marca
todo julgamento com a parcialidade e a paixão. O governo da Commonwealth, ao
contrário, pode instaurar um horizonte marcado pela liberdade e pela segurança,
garantindo a avaliação neutra dos conflitos. O que explica porque é a

110 Idem, p. 324


111 Idem, p. 360
112 Idem, p. 284
113 Idem, p. 350
possibilidade do desregramento da vontade do outro que funda o governo. Locke
fala da ambição, da concupiscência que pode quebrar a harmonia pressuposta no
estado de natureza. Devemos notar assim que volta um afeto político que já
aparece em Hobbes como instaurador da vida social, a saber, o medo. É o medo
do outro que leva à formação do governo. É o medo que nos faz sair do estado de
natureza. No que podemos sempre nos perguntar sobre quanto a manutenção do
governo depende da perpetuação do medo, perpetuação da lembrança de que
sem governo, voltará a pretensa situação de vulnerabilidade.
Esse medo da vulnerabilidade é o que sustenta minha adesão à lei, pois se
mesmo sob a lei eu não estou submetido a vontade de um outro, é porque a
função da lei é fornecer os aparatos necessários para que a vontade do outro não
submeta a minha naquilo que é minha propriedade. É só através da lei regulada
por um estado que a paz e a calma podem pois ser alcançados. Isso pressupõe, é
claro, a imagem de povos no pretenso estado de natureza em contínua
insegurança e vulnerabilidade.
Por outro lado, sendo objeto de consenso, aqueles que não queiram mais
se submeter a lei de um governo podem abandona-lo, sob certas condições:

Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra, e só
atinge seu dono (antes dele se incorporar à sociedade), quando ele reside nela
e goze dela, a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao
governo, em virtude deste gozo, começa e termina com ele; de forma que
quando o dono, que deu apenas seu consentimento tácito ao governo, quiser,
seja por doação, venda ou outro modo qualquer, deixar a possessão em
questão, tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade
social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade, in vacuis
locis, em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono.
Entretanto, aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração
expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade
social (Commonwealth) está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e
permanecer seu súdito, e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de
natureza; a menos
 que alguma calamidade provoque a dissolução do
governo a que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de
continuar sendo um de seus membros114.

Ou seja, não posso levar minhas terra comigo para outra comunidade,
pois isto implicaria no risco perpetuo de dissolução territorial da comunidade.
Mas tenho o direito de derrubar o governo quando este deixou de ser um poder
político ligado ao pacto da preservação da propriedade e respeito da liberdade
para se tornar uma tirania, inclusive através do tiranicídio. A função do governo
é garantir a liberdade. Quando os legisladores se esforçam em tirar e destruir a
propriedade do povo ou reduzi-los a escravidão sob um poder arbitrário, eles se
colocam em estado de guerra contra o povo que não tem mais obrigação alguma
de obediência e podem se servir da força e da violência para se defende:

Qualquer um que use força sem direito, como se faz em uma sociedade na
qual não exista lei, coloca a si em um estado de guerra contra aqueles que
ele usa a força e, neste estado, todos antigos vínculos estão cancelados,

114 Idem, p. 349


todo outro direito cessa e todos tem o direito de defender a si mesmo e de
resistir contra o agressor115.

Personalidade, propriedade, pessoa

Mas é importante lembrar como, em Locke, a propriedade não será


apenas uma forma de organização social com claras consequências na
organização da racionalidade da esfera política e jurídica. Ela será também e
principalmente o fundamento ontológico da identidade. Encontramos assim uma
ontologia da propriedade que será fundamental para a definição mesma da
identidade pessoal e da consciência. Ou seja, na aurora da emergência do sujeito
moderno (se aceitarmos que Locke e Descartes são os nomes fundamentais
desse processo) a propriedade aparecerá como o modo de relação que me
permitirá ser eu mesmo (my self), criando assim uma relação profunda entre my
self e my own. Nessa natureza constituinte da propriedade, nasce um individuo
que será confundido pelo liberalismo como a expressão mais acabada da
liberdade.
Neste sentido, lembremos como é nesse momento histórico que veremos
a generalização do uso do termo “indivíduo” para descrever seres humanos.
Lembremos como “indivíduo” significava, inicialmente, o que não pode ser
dividido. Este é, ao menos, o sentido dos termos individualis ou individuus no
latim medieval. Já no latim clássico, encontramos o termo individuum. No
entanto, ele não era aplicado normalmente a uma pessoa. Os filósofos
escolásticos serviam-se dele para expressar o caso singular numa espécie – não
apenas a humana, mas qualquer espécie116.
O uso cada vez mais sistemático de relacionar “indivíduo” e “pessoa” deve
ser compreendido no interior do desenvolvimento das sociedades modernas que
fundamentam sua auto-compreensão como associações contratuais de sujeitos
providos de sistemas de auto-propriedade. É neste contexto que a compreensão
do indivíduo será cada vez mais vinculada à noção de identidade pessoal. Pois a
relação de propriedade é indivisível, ou deveria ser. Neste contexto, lembremos,
por exemplo, do que fala John Locke a respeito da noção de “identidade pessoal”
como:

Aquilo que a noção de pessoa representa e que, penso eu, é o próprio


pensamento, é a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares; o
que é consciência apenas por isto, que é a meu ver essencial ao
pensamento e inseparável dele e essencial a ele. É impossível para alguém
perceber sem perceber que está percebendo117.

Ou seja, a identidade pessoal está vinculada diretamente à capacidade de


ser a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que significa
entender-se como o mesmo agente consciente na dispersão do tempo e do
espaço, conservar-se em sua dimensão própria. É Locke quem insistirá em
compreender a identidade pessoal como inerência entre consciência e memória.

115 LOCKE, idem, p. 419


116 Ver a este respeito ELIAS, Norbert; A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar,
1994, p. 133
117 LOCKE, John: Essays concerning human understanding, p. 302
É a partir de então que “consciência” será, acima de tudo, o nome que damos
para esta identidade pessoal suposta que me faz, em cada ação ou pensamento
passado, me ver me vendo, submeter a multiplicidade à unidade do meu olhar,
como se meu olhar fosse um instrumento de posse. Eu possuo o que consigo
enxergar, um pouco como possuo as terras que sou capaz de cultivar, e a esta
possessão, a esta apropriação chamamos “reflexão”. Não por acaso, o próprio
termo “reflexão” é uma metáfora escópica e Locke é praticamente o primeiro a
usa-la para dar conta da maneira com que as operações da mente são refletidas
na própria mente, tal como um espelho refletindo um objeto. Vejam como o
termo é usado no original:

Men come to be furnished with fewer or more simple ideas from without,
according as the objects, they converse with, afford greater or less variety;
and form the operation of their minds within, according as they more or
less reflect on them118.

É bastante claro como Locke descreve um processo físico de reflexão


ótica, mas agora aplicado à mente. Filósofos como Richard Rorty falarão da
“essência vítrea” da consciência119. Mas gostaria de insistir que essas operações
de reflexão definem a estrutura do pensamento como forma de apropriação.
Refletir as operações da mente implica estabelecer uma relação profunda entre
consciência e consciência de si. Pois reflito as operações e a forma com que algo
aparece à consciência. De direito, não há nenhuma consciência que não seja
consciência de si. Neste sentido, e este ponto é fundamental, se todos os fatos da
consciência são, de direito, acessíveis à reflexão, podem se transformar em
representação para a reflexão, é porque esta é a forma da consciência tomar
posse de si mesma. Ou seja, a consciência nasce como um princípio de
apropriação. Não será estranho que valerá, para Locke, a noção de que:

Assim, posso considerar que o que é ‘eu’, ‘eu mesmo’ (myself) ou ‘meu si’
(my self) é como uma ‘coisa’ que possuo (own) ou que reconheço (own
novamente) ou que reconheço que possuo efetivamente porque foi eu que
a fiz ou que a pensei120.

A consciência é o que me permite apropriar-me da memória, assim como


me apropriar dos objetos, compreendidos agora sob a forma da representação,
da mesma maneira que os sujeitos que trabalham se apropriam do mundo. O
pensamento é compreendido sob o mesmo horizonte que o trabalho. Na verdade,
o pensamento será uma forma possível de trabalho, talvez mesmo a forma a mais
importante. Isto ficará ainda mais claro quando Kant insistir que a representação
é, de fato, um trabalho de ligação do diverso da intuição sensível. Pois a
essencialidade dos objetos está em sua condição de poderem ser representados
por mim. Esta representação é uma espécie de “made in England” posto sob o
mundo. Mesmo na estrutura da consciência, encontramos claramente as marcas
disto que um dia Macpherson chamou de “individualismo possessivo”. De toda
forma, uma longa tradição de crítica ao caráter apropriativo da consciência

118 LOCKE: Essay concerning the human understanding, livro II, cap. I, par. 7
119 Ver RORTY, Richard; A filosofia como espelho da natureza, São Paulo: Relume Dumará
120 BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 133
nascerá desta discussão, ganhando força principalmente na filosofia do século
XX. Que lembremos, entre tantos outros, de Heidegger e sua compreensão da
representação como um Vor-stellen que é ao mesmo tempo Vor-sich-stellen, a
saber, um por diante de si, como coloco uma coisa diante de mim para me
apropriar dela. Crítica que visa o fato de que pensar é compreendido e reduzido a
condição de representar.
Isto nos explica, entre outras coisas, porque tudo o que é acessível à
minha reflexão e que diz respeito aos pensamentos e ações de minha própria
pessoa me são imputáveis. Afinal, eles são minha propriedade. Sendo minha
propriedade, eles são minha identidade. E sendo expressão de minha identidade,
eles são minha responsabilidade. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilização da ação, mostrando assim como tais
discussões sobre a constituição da identidade psicológica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definição fundamental de
Locke:

A personalidade se estende para além da existência presente em direção


ao passado apenas através da consciência, pelo que ela se torna
concernida e imputável (accountable), possui e imputa a si mesma ações
passadas, apenas através do mesmo fundamento e pelas mesmas razões
que ela faz isto no presente121.

A este respeito, lembremos como Walter Freeman, popularizador das


tecnicas de lobotomia para pacientes esquizofrênicos, vinculará a função dos
lóbulos frontais à continuidade de si, que pode ser definida como “a qualidade
que o indivíduo porta para reconhecer sua responsabilidade nos atos realizados
no passado e estes que serão realizados no futuro”. A lobotomia seria assim uma
modalidade de intervenção tendo em vista a regulação da continuidade de si. O
que demonstra a resiliência da definição de Locke.
Mas insistamos ainda em outro ponto. Eu só sou imputável daquilo que é
meu, daquilo que é marca da minha vontade consciente. Nesta discussão sobre
imputabilidade, há a aurora de uma forma de existência na qual a vontade pode
ser minha, a vontade pode ser a expressão daquilo que aparece como “meu”. A
vontade, uma certa noção de vontade, aparece como modo fundamental de
existência. A vontade do proprietário é aquela que faz do objeto a confirmação de
mim mesmo.

121 Idem, p. 313


Arqueologia da liberdade
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussão sobre o


conceito de liberdade como propriedade de si, caminhando em direção ao século
XX. Nós vimos, nas aulas passadas, como o conceito apareceu no interior das
lutas políticas da Inglaterra do século XVII, principalmente através dos Levellers.
Vimos como ele era estratégia política de se basear em um direito já
juridicamente reconhecido para universaliza-lo e, com isto, limitar radicalmente
sua natureza classista. Depois, vimos como John Locke aparecia como um teórico
fundamental desta noção de propriedade, transformando-a em um eixo maior
tanto para a teoria política quanto para sua teoria do sujeito. Ao mesmo tempo
que a propriedade de si aparecia como fundamento de uma concepção liberal de
estado e de pacto social, estado que aparecia agora como instituição responsável
pela defesa e garantia da propriedade privada de seus cidadãos, ela também
servia de fundamento para o nascimento moderno da noção de identidade
pessoal, com seu primado da consciência de si. My self e my own apareciam como
termos profundamente correlatos. Neste sentido, compreendemos que a noção
de propriedade não dizia respeito apenas a uma forma de relação social, mas
também a um regime de relação a si e de constituição de formas de identidade.
Isto mostrava sua força na constituição de formas de vida que serão
hegemônicas em nosso horizonte social.
A tese que gostaria de defender com vocês é que tal noção de liberdade
como propriedade de si chega até nós e se transforma em uma peça fundamental
de uma das correntes mais influentes da contemporaneidade, a saber, o
neoliberalismo. Creio ser importante lembrar, neste contexto, que o
neoliberalismo não é apenas uma ideologia de políticas econômicas. Trata-se
principalmente de um horizonte ético que visa submeter todas as exigências de
justiça a imperativos de liberdade. De fato, a liberdade aparece como eixo
fundamental de legitimação tanto de ações governamentais quanto de modos de
relação a si. Exigências de justiça, sejam elas exigências de justiça redistributiva
ou justiça de reparação social, devem se submeter à defesa intransigente da
liberdade, dirão os neoliberais. De certa forma, podemos mesmo dizer que a
racionalidade das ações econômicas não é analisada em termos de maior
produção de riqueza e bens a um maior número de pessoas, de segurança social,
de equidade, mas a partir de sua capacidade de realizar socialmente a liberdade.
E se nos perguntarmos a respeito do que se entende por liberdade, neste
contexto, encontraremos a liberdade como expressão de indivíduos
proprietários.
É possível falar desta maneira porque o sujeito neoliberal “possui” a si
mesmo. Ele não é apenas o empresário de si, como se diz atualmente
principalmente depois do impacto de trabalhos como os de Christian Laval e
Pierre Dardot. Pois essa noção empresarial pressupõe que, nas relações a si,
estamos a tratar com capitais dos quais sou proprietário, usufruo e rentabilizo da
forma como melhor me convier. A tópica do “capital humano”, desenvolvida pelo
economista Gary Becker, implica que minhas habilidades, relações
intersubjetivas, interesses, força de trabalho devem ser avaliadas e
compreendidas como “capitais” que procuram a rentabilização. Mas ve-los como
capitais implica, por sua vez, que eles possam ser pensados como
“propriedades”, mesmo que, diferentemente do capital que circula na esfera
empresarial, este capital é inalienável, passa-lo para o usufruto do outro sem
retorno para mim seria algo como o consentimento a escravidão.
Por isto, gostaria de, nesta aula, inicialmente discutir o horizonte geral do
pensamento neoliberal a respeito da liberdade e de seus usos. Ao final, gostaria
de me voltar a um autor que desenvolve até as últimas consequências os
postulados de tal concepção de liberdade, mesmo que ele não se assuma
claramente como neoliberal. Trata-se do filósofo libertário ou do
anarcocapitalista Robert Nozick.

Uma crise moral

Gostaria de começar lembrando a vocês como se iniciava o texto que


apresentava os objetivos da Sociedade Mont Pélérin: primeiro grupo formado
nos anos quarenta para a difusão dos ideais neoliberais:

Os valores centrais da civilização estão em perigo ... O grupo defende que


tal desenvolvimento tem sido impulsionado pelo crescimento de uma
visão da história que nega todo padrão moral absoluto e por teorias que
questionam a desejabilidade do império da lei122.

De onde se seguia a exortação para explicar a pretensa crise atual a partir


de suas “origens morais e econômicas”. Esta dupla articulação é extremamente
significativa. A referida visão da história que negaria todo padrão moral absoluto
e que estaria em crescimento seriam as ideologias coletivistas e socialistas que
recusam o primado da propriedade privada. Estamos nos anos quarenta, o
comunismo está em expansão e mesmo os países capitalistas adotam modelos
híbridos, como o modelo escandinavo, ou caracterizados por fortes doses de
intervencionismo estatal de natureza keynesiana.
O trecho acima é interessante porque ele mostra como a recusa do
primado da propriedade privada e da competividade não é compreendido
apenas como um equívoco econômico que poderia trazer ineficiência e atraso,
mas principalmente como uma falta moral capaz de colocar em perigo os valores
centrais da civilização ocidental. Por isto, sua defesa deverá ser não apenas
assentada em sua pretensa eficácia econômica diante dos imperativos de
produção de riqueza. Ela deverá se dar através da exortação moral dos valores
imbuídos na livre iniciativa, na “independência” em relação ao Estado e na
pretensa auto-determinação individual. Devemos realizar a obrigação moral de
uma sociedade de indivíduos livres da tutela de quem quer que seja, capazes de
usufruir de sua propriedade como bem entender e seguros de que violações a tal
direito fundamental serão prontamente punidos. Pois o direito a propriedade
privada seria: “a mais importante garantia para a liberdade”, como dirá Hayek.
Isto nos explica porque na “sociedade livre” o individuo teria sempre a
possibilidade de escolha (econômica), ao contrário dos chamados modelos
“coletivistas”, onde se “isenta o indivíduo da responsabilidade” e “não pode
deixar de ser antimoral nos seus efeitos, por mais elevados que sejam os ideais

122 Apud MIROWSKI, Phillip; The road from Mont Pelerin: the making of the neoliberal thought, p.
25
que o geram” (HAYEK, 2010, p. 199). Como vemos, as decisões são justificadas
em termos de “responsabilidade”, de “maioridade”, de “independência”. Quer
dizer, os termos são todos morais, e não econômicos. O que não poderia ser
diferente, já que a discussão é claramente ética.
Com isto em mente, não será difícil entender porque economistas como
Ludwig von Mises, procurarão explicar as motivações para a crítica ao
liberalismo através de uma “atitude mental patológica”, como se tratasse da
expressão de uma incapacidade psicológica de alcançar o estágio de maturidade,
a saber: “o ressentimento e uma condição neurastênica que se poderia chamar
de ‘Complexo de Fourier’”. O ressentimento viria do fato de que a base
motivacional da crítica às premissas liberais seria o desejo , moralmente
reprovável, do infortúnio do outro que alcançou maiores realizações que eu
mesmo. Já o dito complexo de Fourier seria, segundo Mises: “doença séria do
sistema nervoso” que sequer Freud teria sido capaz de perceber. Ele expressaria
certos tipo de fuga em direção à ilusão devido a uma sequência de frustrações
diante das expectativas da vida. A ilusão suprema seria aquela produzida pelo
“psicótico” Fourier e consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o
fardo necessário do trabalho. Ou seja, a “realidade” negada é a pretensa realidade
da escassez e do sacrifício necessário.
Como vemos, este vocabulário psicológico visava reconstruir aquilo que
um dia foi chamado de “natureza humana” a partir da lógica da racionalidade
econômica. Isto significa que a economia aparecia como a continuação da
psicologia por outros meios. Por exemplo, é o próprio Mises quem dirá, a
respeito da noção de lucro:

lucro, no sentido mais amplo, é o ganho decorrente da ação; o aumento de


satisfação (redução de desconforto) obtido; é a diferença entre o maior
valor atribuído ao resultado obtido e o menor valor atribuído aos
sacrifícios feitos para obtê-lo; em outras palavras, é rendimento menos
custo. Realizar um lucro é invariavelmente o objetivo de toda ação. Se
uma ação não atinge os objetivos visados, o rendimento ou não excede os
custos, ou lhes é inferior. Neste último caso, o resultado é uma perda, uma
diminuição de satisfação. Lucro e perda, neste sentido original, são
fenômenos psíquicos e, como tal, não são suscetíveis de medição nem
podem ser expressos de uma maneira tal que informe a outras pessoas
quanto à sua intensidade. Uma pessoa pode dizer que a lhe convém mais
do que b; mas não pode informar a outra pessoa, a não ser de maneira
vaga e imprecisa, em que medida a satisfação obtida de a excede a obtida
de b (MISES, 2010, p. 349).

Para Mises, lucro não é o eixo de uma certa racionalidade econômica,


historicamente situada e própria ao que nós chamamos de relações capitalistas.
Antes, lucro é um fenômeno psíquico, é o objetivo de toda e qualquer ação, seja
ela ação social, formas de relação intersubjetiva ou relação a si. Colocações desta
natureza são apenas a consequência necessária das relações a si serem pensadas
a partir do paradigma da auto-propriedade. Sendo a propriedade o eixo das
relações a si, nada mais natural do que o lucro, aquilo que justifica o caráter
mercantil da propriedade, aparecer como o fundamento de toda ação livre. Por
eu ser o proprietário de mim mesmo, nada mais racional do que agir como quem
procura lucrar com o exercício do gozo dessa propriedade.

O estado neoliberal

Gostaria de partir do tom de exortação moral de tais colocações porque


creio que elas explicitam elementos fundamentais do que serão as consequências
políticas do pensamento neoliberal. Neste sentido, voltemos um instante os olhos
para o ano de 1938. No ano anterior à eclosão da Segunda Grande Guerra, vários
economistas, sociólogos, jornalistas e mesmo filósofos se reuniram a fim de
discutir o que aparecia à época como o ocaso do liberalismo. A reunião passou à
história como Colóquio Walter Lippmann, nome de um influente jornalista norte-
americano que havia escrito um dos mais discutidos livros de então, A boa
sociedade, e um dos responsáveis pela organização do evento123. Em seu livro,
Lippmann insistia que o mundo via a derrocada do liberalismo devido à ascensão
do comunismo, de um lado, e dos fascismos de outro. Mesmo o capitalismo
estaria sob a hegemonia do intervencionismo keynesiano. Havia então de se
perguntar porque isto estava a ocorrer e o que fazer para reverter a situação.
Um diagnóstico que se impôs no Colóquio fora o equívoco da crença,
própria ao liberalismo manchesteriano do século XIX, de que livre-iniciativa,
empreendedorismo e competitividade seriam características que brotariam
quase que espontaneamente nos indivíduos, caso fossemos capazes de limitar
radicalmente a intervenção econômica e social do Estado.
No entanto, o neoliberalismo sustentava que a liberdade liberal teria que
ser produzida e defendida. Como dirá décadas depois Margareth Thatcher:
“Economia é o método. O objetivo é mudar corações e mentes”. E essa mudança
dos corações e mentes teria que ser feita através de doses maciças de
intervenção e de reeducação. Como dirá Alexander Rüstow, um dos pais do
ordoliberalismo, a corrente alemã do neoliberalismo:

a coincidência do interesse egoista individual com o interesse geral que o


liberalismo descobre e proclama com entusiasmo como o mistério da
economia de mercado aplica-se apenas no interior de uma livre
competição de serviços e, como resultado, apenas na medida em que o
Estado, encarregado de policiar o mercado, observa que os atores
econômicos respeitem cuidadosamente esses limites. Mas o Estado da era
liberal era desprovido do conhecimento e da força necessária para
desempenhar tal tarefa 124.

Ou seja, Rustöw insiste na noção de que o interesse individual seja a expressão


do interesse social no liberalismo como um “resultado”. Um resultado produzido
pela ação do estado. Isto até o momento em que os indivíduos começassem a ver
a si mesmos como “empreendedores de si”. Isto até o momento em que eles
internalizassem a racionalidade econômica como a única forma de racionalidade
possível.

123 Para uma discussão sobre o colóquio, ver AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter
Lippmann Colloquium: the birth of neo-liberalism, Pallgrave, 2018
124 In: AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter Lippmann Colloquium: the birth of neo-

liberalism, Pallgrave, 2018, p. 160


Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma
sociedade com menos intervenção do Estado, ideia tão presente nos dias de hoje,
é simplesmente falsa. Em relação ao liberalismo clássico, o neoliberalismo
representava muito mais intervenção do Estado. A verdadeira questão era: onde
o Estado efetivamente intervia? De fato, não se tratava mais da intervenção na
esfera da coordenação e regulação da atividade econômica. Para os neoliberais,
mesmo a regulação de moldes keynesianos era tão insuportável quanto qualquer
forma de Estado socialista, embora valha a pena lembrar que o nível de
regulação econômica aceito pelo ordoliberalismo alemão e sua “economia social
de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo, pela Escola austríaca
que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na verdade, o que o
neoliberalismo pregava era intervenções diretas na configuração dos conflitos
sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo
econômico, o neoliberalismo aparecia assim como uma ativa engenharia social.
Neste sentido, podemos dizer que ele se vê como a engenharia social em direção
a liberdade.
Mas, de forma prática, isto implica que o neoliberalismo apareça como um
modo de intervenção social profundo nas dimensões produtoras de conflito.
Pois, para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa possa
reinar, o Estado deve intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de
impedir que o dissenso político intervenha na autonomia necessária de ação da
economia. O neoliberalismo deve bloquear principalmente um tipo específico de
conflito, a saber, aquele que coloca em questão a gramática de regulação da vida
social baseada na generalização da forma-propriedade. Isto significa, por
exemplo, retirar toda a pressão de instâncias, associações, instituições e
sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a partir da consciência
da natureza fundadora da luta de classe.
Assim, em um primeiro nível, o estado neoliberal agia de forma direta
para desregular a vida associativa e sua força de pressão na partilha dos bens e
das riquezas. Este ponto foi explicitado de maneira precisa nas pesquisas de
Gregoire Chamayou a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e fascismo125.
Por exemplo, pode parecer estranho para alguns que um dos pais do
neoliberalismo, o economista Frederick Hayek, seja defensor explícito da tese da
necessidade da ditadura provisória como condição para a realização da liberdade
neoliberal. No entanto, devemos lembrar de um significativo trecho de uma
entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio, em 1981:

Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra


ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. As vezes, é necessário para um país ter, durante
certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é
possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que
uma democracia governe com uma falta total de liberalismo.
Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem
liberalismo.

“As vezes” aparece aqui como indicação de uma possibilidade de uso sempre
iminente, desde que a sociedade não se conforme às injunções econômicas
125 Ver CHAMAYOU, Grégoire, La société ingouvernable, Paris: La fabrique, 2019
neoliberais de forma passiva. Neste sentido, notemos como 1981 era o ano em
que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado
com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton
Friedman, Gary Becker, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Neste sentido, o uso da noção de ditadura provisória não será um desvio
de rota. Hayek já havia deixado claro seu receio de uma democracia sem
restrições, de onde se seguia suas diatribes contra uma pretensa “democracia
totalitária” ou uma “ditadura plebiscitária”126 que não respeitaria a tradição do
império da Lei (Rule of Law). O respeito a tal Rule of Law, no qual encontraríamos
a enunciação dos fundamentos liberais da economia e da política, do caráter
inviolável da propriedade privada, seria o melhor remédio contra a tentação de
sucumbir a um processo de barganha através do qual o estado se transformaria
na mera emulação de interesses múltiplos da sociedade, na mera coalização de
interesses organizados. Fato que impediria o Estado de defender a liberdade
(que, no caso, não é nada mais que a liberdade econômica de empreender e de
possuir propriedade privada) contra os múltiplos interesses das corporações da
vida social, o que equivaleria assim a submeter a maioria ao interesse de
minorias organizadas. Contra essa forma de submissão de meus interesses pelos
interesses de um outro, seria necessário que todos se submetessem a regras
racionais e as forças impessoais do mercado, como se fosse questão de assumir
uma experiência de auto-transcendência, uma Lei produzida pelos humanos e
que os transcende. Neste sentido:

É fácil dizer porque Hayek pode afirmar que tal submissão a regras
abstratas e a forças que nos ultrapassam, mesmo quando as
engendramos, é a condição da justiça e da paz social. É que ela cala a fonte
do ressentimento, da inveja, das paixões destruidoras. Este que o mercado
lhe retirou seu emprego, seu negócio ou mesmo sua subsistência sabe
bem, segundo Hayek, que nenhuma intenção quis isto. Ele não foi
submetido a humilhação alguma127.

Se servidão significa submeter-se a vontade de um outro, aqueles que se


submetem às leis do mercado não se submetem à vontade de ninguém, ele não
aliena sua liberdade. No entanto, submeter-se à pretensa racionalidade das leis
da economia exige uma despolitização radical da sociedade, uma recusa violenta
de seus questionamentos a respeito da autonomia do próprio discurso
econômico em relação aos interesses políticos. Ou seja, tal submissão exige
assumir a economia como a figura mesma de um poder soberano, provido de
uma violência propriamente soberana.

Liberdade e autoritarismo

Neste ponto, podemos encontrar a expressão da natureza política


autoritária da economia neoliberal e aqui se desenha o mesmo modelo de gestão
social que podemos encontrar em teóricos do nazismo como Carl Schmitt. E não
deverá ser objeto de surpresa encontrarmos afirmações de Hayek como:

126 HAYEK, Frederik; Law, legislation and liberty vol III, p. 4


127 DUPUY, Jean-Pierre; L’avenir de l’économie, Paris: Flammarion, 2014, p. 37
A fraqueza do governo em uma democracia onipotente foi claramente
vista pelo extraordinário estudante alemão de política Carl Schmitt, que
nos anos vinte entendeu provavelmente melhor que ninguém o caráter da
forma desenvolvida do governo e posteriormente caiu naquilo que, para
mim, aparece como o lado moralmente e intelectualmente errado128 .

Hayek pode fazer tal elogio a Schmitt porque é possível encontrar a


gênese da noção de despolitização da sociedade, tão necessária à implementação
do neoliberalismo, na noção fascista de “estado total”. Noção que, como
compreendera Herbert Marcuse já nos anos trinta, nunca havia se contraposto
ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento necessário em um horizonte de
capitalismo monopolista. Compreendendo como o fundamento liberal da
redução da liberdade à liberdade do sujeito econômico individual em dispor da
propriedade privada com a garantia jurídico-estatal que esta exige permanecia
como a base da estrutura social do fascismo, Marcuse alertava para o fato do
“estado total” fascista ser compatível com a ideia liberal de liberação da
atividade econômica e forte intervenção nas esferas políticas da luta de classe:
Daí porque:

Os fundamentos econômicos desse trajeto da teoria liberal à teoria


totalitária serão assumidos como pressupostos: repousam essencialmente
na mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e
industrial, edificado sobre a livre concorrência dos empresários
individuais autônomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as
relações de produção modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos
cartéis, dos trustes etc.) exigem um Estado forte, mobilizador de todos os
meios do poder129.

Esta articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl


Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com
seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total”130. Tendo que dar
conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a
democracia parlamentar acabaria por permitir ao estado intervir em todos os
espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social,
transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida
social. Contra isto, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra
forma de estado total: um estado total “qualitativo”, como dirá Schmitt. Neste
caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para
intervir politicamente na luta de classes, eliminar as forças de sedição a fim de
permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves sociais. “Este
Estado Total Qualitativo é um Estado Forte, total no sentido da qualidade e da
energia (“total im Sinne der Qualität und der Energie”), além de autoritário no
domínio político, para poder decidir sobre a distinção entre amigo e inimigo, e

128 HAYEK, Frederick, Law, legislation and liberty vol III, p. 194
129 MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
130 Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”,

in Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp.
81-94
fiador da liberdade individual no âmbito da economia”131. Schmitt não quer um
estado planificador, mas um estado capaz de garantir uma intervenção
autoritária no campo político a fim de liberar a economia em sua atividade
autônoma. Esta noção era extremamente presente no debate alemão do final
dos anos vinte e início dos anos trinta e vem daí a perspectiva política de
Hayek132.
Esse modelo distingue-se do “capitalismo de estado” de Friedrich
Pollock, na medida em que não se trata de uma regulação direta da atividade
econômica visando a substituição do primado da economia pelo da
administração, mas de uma regulação direta no campo político a fim de liberar
a ação econômica de entraves. No entanto, ele se aproxima do modelo de
Pollock na compreensão de que o eixo dos processos de gestão social estarão
baseados na procura em eliminar as contradições sociais através da gestão do
campo econômico. Esse mesmo modelo poderá tanto operar em chave de
democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos completar, essa
indiferença vem do fato dos dois polos estarem menos longe do que se gostaria
de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da
racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores
de interesses individuais, permanecia como a estrutura da vida social e dos
modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra
tendências contrárias.

Nozick e o estado mínimo

Robert Nozick é um dos teóricos mais relevantes do que poderíamos chamar de


“teoria do estado mínimo” organicamente associada ao horizonte de reflexão
próprio ao neoliberalismo e a sua concepção de liberdade como propriedade de
si. É tendo isto em vista que podemos entender as primeiras colocações de seu
livro Anarquia, estado, utopia:

Indivíduos tem direitos. E há coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem


fazer com indivíduos (sem lhes violar os direitos). Tão forte e tão alto
alcance são esses direitos que colocam a questão do que o Estado e seus
servidores podem, se é que podem, fazer. Que espaço os direitos
individuais deixam ao Estado?133

O ponto de partida é bastante claro em seus propósitos. Começamos da noção de


que o fundamento da vida social são os indivíduos e seus direitos, resultado de
certa leitura proposta por Nozick do estado de natureza lockeano. Trata-se de
partir da situação na qual todos são livres para dispor de seus atos e de seus
bens da maneira que achar conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, e
sem depender da vontade de ninguém. Tais leis da natureza versariam sobre a

131 BERCOVICI, Gilberto; Entre o Estado Total e o Estado Social (tese de livre-docência, USP, 2003
132 Ver, por exemplo, a distinção entre Estado total e Estado autoritário em ZIEGLER, Heinz;
Autoritärer oder totaler Staat, Tübigen: Mohr, 1932. Aqui, o estado autoritário aparece como um
“estado neutro”, despolitizado, capaz de se impor a despeito dos múltiplos interesses de classes e
corporações.
133 NOZICK, Robert; Anarquia, estado, utopia, p. 9
impossibilidade de alguém prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou
propriedade.
Note-se que o ponto de partida já define muito a respeito do ponto de
chegada. Partimos do que é “meu”, do que me é “próprio”. Esta é uma relação pré
-política que, na verdade, funda o campo político. Mais uma vez vemos esta
operação que consiste em afirmar que a propriedade é o fundamento pré-
político da política. Só mesmo se houver algo “meu” pode haver liberdade. A
questão toda irá girar então em torno de como preservar o que é meu e como
garantir que existam fronteiras estritas entre o que é meu e o que é do outro,
fronteiras cujo desrespeito legitima formas múltiplas de punição e reparação.
Pode parecer que neste ponto, a emergência do estado se faz necessária
para que as fronteiras sejam respeitadas. Nozick lembra que, no entanto, grupos
de indivíduos podem formar associações de proteção mútua baseados em laços
de amizade e de comprometimento a defesas futuras. Ou seja, a emergência do
estado não é necessária. No entanto, problemas de litígios internos sobre
interpretações distintas de direitos podem inviabilizar a associação. O que pode
nos levar a ideia de que: “algumas pessoas são contratadas para exercerem
função de proteção e alguns empresários ingressam no negócio de vender
serviços de proteção”134. Esta é uma maneira de evidenciar um conjunto de
possibilidades de realização de necessidades sociais evitando a todo momento a
emergência do estado.
Dentro desse processo, é possível que uma agência de proteção acabe por
paulatinamente construir uma hegemonia obedecendo as leis de mercado,
fornecendo segurança a quem está disposta a pagar por ela. Por fim, ela pode
impedir que outras agência façam o mesmo, fornecendo em troca proteção
gratuita. Dessa forma, aparece um estado mínimo a partir do respeito as leis do
mercado. Um estado que acabará por se restringir a segurança, proteção e
garantia de respeito de contratos.
Trata-se assim de admitir o princípio de que nada nem ninguém pode
exigir ou impor princípios gerais de planejamento e de ação coletiva, nem
mesmo em nome de uma sociedade melhor e mais justa. Daí sua recusa a uma
estado redistributivo e suas discussões com a teoria da justiça distributiva de
John Rawls. Essa recusa, e esse é o ponto principal, é feita por razões morais. Ou
seja, Nozick defende que a defesa da justiça distributiva é imoral. Uma aquisição
justa (seguindo os princípios lockeanos) pode ser objeto de usufruto, de troca
não coercitiva. Qualquer taxação a essas operações seria injusta pois impede os
sujeitos de gozarem daquilo que possuem da forma como acharem necessário.
No entanto, Nozick tem uma posição singular porque reconhece que o
estado mínimo é uma utopia. No seu caso, trata-se de colocá-lo submetido à força
de uma carga utópica. A utopia aparece assim como o espaço social no qual não
posso ser submetido ao horizonte utópico de um terceiro que se apoia em
estruturas estatais para me impor o que posso não querer. O estado mínimo
aparece como o único moralmente sustentável e o único capaz de realmente
realizar conteúdos utópicos efetivos:

O estado mínimo trata-nos como indivíduos invioláveis que não podem


ser usados de certas maneiras por outros como meios, ferramentas,
instrumentos ou recursos. Trata-nos como pessoas que tem direitos
134 NOZICK, idem, p. 28
individuais, com a dignidade que isso pressupõe. Trata-nos com respeito
ao acatar nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou em
conjunto com aqueles que escolhermos, determinar nosso tipo de vida,
atingir nossos fins e nossas concepções de nós mesmos, na medida em
que sejamos capazes disso, auxiliados pela cooperação voluntária de
outros indivíduos possuidores da mesma dignidade. Como ousaria
qualquer Estado ou grupo de indivíduos fazer mais, ou menos? 135

Mais uma vez, é extremamente claro que o estado mínimo não é


simplesmente peça de uma racionalidade econômica. Ele é um operador moral
que permitiria a emancipação social através do respeito a minha capacidade de
auto-determinação e um horizonte social de múltiplas formas possíveis de vida.
Com esta ideia, o horizonte neoliberal encontra sua melhor realização através de
uma aproximação significativa com perspectivas libertárias. O que uma
perspectiva que, ao contrário, recusa o primado da propriedade de si e esse
modelo de implosão de obrigações de solidariedade poderia dizer a este
respeito?

135 NOZICK, idem, p. 358


Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de introduzir algumas características da crítica à


liberdade como propriedade de si que se desdobram no interior das lutas sociais
do século XVIII, em especial na Revolução Francesa, e posteriormente chega a
Marx. Haveria um caminho mais natural para abordar tal questão e ele passaria
pela exploração dos textos de Jean-Jacques Rousseau sobre a crítica da
propriedade e seus desdobramentos no interior do debate próprio à Revolução
Francesa. Todos vocês certamente conhecem esta passagem célebre do Discurso
sobre a origem da desigualdade:

O primeiro que cercou um terreno, dispôs-se a dizer: isso é meu, e


encontrou pessoas suficientemente simplórias para acreditar, foi o
verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,
assassinatos, miséria e horror poderia ter evitados ao gênero humano
aquele que tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem este
impostor. Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de
todos e que a terra é de ninguém”136.

Como vocês percebem, contrariamente a perspectiva lockeana de


naturalização da propriedade, Rousseau compreende a emergência da
propriedade como uma forma de catástrofe que funda a sociedade civil como
forma maior de alienação, ou ainda, como dirá Rousseau, de “decrepitude da
espécie”137. O Estado de natureza é um momento desprovido de toda forma de
propriedade, baseado em um uso sem propriedade feito por indivíduos isolados
e nômades. Nós veremos este ponto como mais calma no próximo módulo,
quando teremos uma aula dedicada ao problema da relação entre liberdade e
igualdade em Rousseau.
Mas, neste momento, gostaria de insistir como esta compreensão da
propriedade não exatamente como uma forma de liberdade, mas como a forma
fundamental da alienação social, ganhará setores importantes da Revolução
Francesa e alimentará lutas politicas fundamentais no século XIX e XX. Na aula de
hoje, eu gostaria de lembrar como este ponto aparece na Revolução Francesa, e
para tanto gostaria de falar do comunismo de Graco Babeuf. Depois, gostaria de
articular tal perspectiva com algumas considerações de Karl Marx. A articulação
se justifica porque Babeuf será um dos líderes da chamada “conspiração dos
iguais” de 1796: uma tentativa de intervir no curso da Revolução Francesa
através de um golpe contra o Diretório visando realizar uma república
radicalmente igualitária. Marx e Engels verão, nesse caso: “a primeira aparição
de um partido comunista realmente ativo”.

A conspiração dos iguais

A Revolução Francesa, depois da vitória, é atravessada pelo conflito entre a


grande burguesia e os setores populares, conflito este expresso na polarização

136 ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inégalité, p. 164


137 Idem, p. 171
entre girondinos e jacobinos. Na base desse conflito, encontra-se a emergência
paulatina de uma noção de liberdade que se afirma como experiência não mais
ligada ao exercício da propriedade.
A segunda constituição revolucionária, de 1793, constituição que nunca
entrará em vigor, já que o governo jacobino que virá a seguir será um governo
de estado de exceção, apresentará inovações formais importantes. A primeira
delas, diz respeito a definição dos direitos naturais: “igualdade, liberdade,
segurança, propriedade”. Que a igualdade apareça como um direito natural, eis
algo que deve nos chamar a atenção. Ela é pensada aqui como condição para a
formação da vontade geral e para a soberania popular. Esse conceito de
soberania popular dá ao povo tanto o poder instituinte quanto o poder
destituinte. Como podemos ver no artigo 28: “ Um povo tem sempre o direito de
rever, reformar e mudar sua Constituição. Uma geração não pode assujeitar com
suas leis as gerações futuras”.
Essa força destituinte vem, entre outras coisas, da natureza largamente
indeterminada da noção de liberdade. Notemos que, ao invés de definir a
liberdade como o exercício da propriedade que tenho sobre a minha pessoa, o
que seria algo cuja extensão normativa é relativamente clara, a constituição de
1793 prefere aborda-la a partir de um princípio, ao mesmo tempo, igualitário e
indefinido. Como vemos no artigo 6:

A liberdade é o poder pertencente ao homem de fazer tudo o que não


interfere no direito do outro. Ela tem por princípio a natureza, por regra a
justiça, por salvaguarda a lei. Seu limite moral está na máxima: não faça ao
outro o que não queira que seja feito a ti.

Não deixa de ser sugestivo uma norma jurídica constitucional que faça
apelo a um preceito moral subjetivo para a definição de seu exercício. Podemos
dizer que isto vem do fato da propriedade e de seu usufruto estar em processo
de limitação normativa de seu exercício. Vejamos, por exemplo, o que diz o artigo
19:

Ninguém pode ser privado da menor porção de sua propriedade sem seu
consentimento, salvo quando a necessidade pública legalmente
constituída exige e sob condição de uma indenização justa e prévia.

O apelo ao conceito de “necessidade pública”, que se sobrepõe, ao direito


de usufruto da propriedade, pode parecer que se está a dizer que, em condições
excepcionais, a preservação do comum se sobrepõe ao exercício da liberdade.
Mas é próprio de uma situação revolucionária a compreensão de que situações
excepcionais são a verdadeira regra. Seja porque a revolução precisa lutar contra
inimigos que estão a todo momento a sua espreita, seja porque ela necessita
debelar algo ainda mais grave e profundo, a saber, a distorção social de um
princípio fundamental para a felicidade comum. Os setores mais radicais da
revolução compreenderão que esta distorção social será a própria noção de
propriedade. É neste ponto que encontramos Graco Babeuf.
O nome de Babeuf ganha importância após a queda do governo jacobino,
em 1795. Neste momento, a reação burguesa procura reinstaurar sua hegemonia
através da instauração do Diretório, que suspende tanto a constituição de 1793
quanto várias conquistas dos jacobinos. A este respeito, como normalmente se
associa os jacobinos apenas ao momento do terror, valeria a pena lembrar como
só os jacobinos foram sensíveis à escravidão, já que foi apenas graças a eles que
ela foi abolida. Só os jacobinos recensearam os indigentes e forneceram a todos
eles uma renda vinda dos confiscos de bens dos “traidores da pátria”. Só eles
organizaram cuidados médicos aos pobres em domicílio.
Babeuf não é exatamente um jacobino, pois está disposto a dar um passo
que os jacobinos não tentaram, a saber, não apenas a igualdade diante da lei, mas
a crítica radical da propriedade como modo de organização da vida social. Neste
momento, aparece a noção de que a liberdade não é apenas a igualdade perante a
lei, mas “igualdade real”, o direito mais primitivo que deve fundar a nova
realidade social. Daí a ideia de que: “a Revolução Francesa que a pré-execução de
outra revolução, muito maior”138. Esta revolução não tocará apenas o direito de
herança, de alienabilidade da propriedade. Ela não apernas denunciará a
“distinção de mérito” como uma “loucura assassina”, já que as produções do
gênio e da indústria do presente são, na verdade, uma compensação às invenções
e genialidades precedentes das quais os inventores e gênios do presente se
aproveitaram na vida social. Essa revolução da qual fala Babeuf será fundada no
“bem comum ou na comunidade de bens. Não mais propriedade individual de
terra, a terra é de ninguém. Nós reclamamos, nós queremos o gozo comum dos
frutos da terra: os frutos são de todos”.
Notem aqui a sobreposição significativa entre todos/ninguém. Há um
“ninguém” que é condição para a realidade de “todos”. A terra é de ninguém, o
que significa que há uma dimensão de impropriedade. Babeuf dirá claramente:
“façam muitos improprietários”. O termo não existe como tal em francês e em
nenhuma língua latina. Mas sua ideia é clara. Trata-se de reconhecer que
vivemos em um mundo no qual há coisas que não estão submetidas ao regime de
posse, cujo usufruto comum pressupõe uma disjunção radical entre uso e posse.
Daí uma colocação como:

O direito de propriedade! Mas qual é pois esse direito de propriedade!


Entende-se por isso a faculdade ilimitada de dispor da propriedade o
quanto quiser? Se compreendemos assim, digo claramente, então estamos
a admitir a lei do mais forte. Ë enganar o voto de associação; é chamar os
homens ao exercício dos direitos da natureza e provocar a dissolução do
corpo político. Se, ao contrário, não se compreende dessa forma, eu
pergunto qual será pois a medida e o limite desse direito? Pois, afinal, é
necessário um. Ou vocês acreditam que esse limite virá da moderação do
proprietário? Vocês querem de boa fé a felicidade do povo? Vocês querem
tranquiliza-lo, vocês querem vinculá-lo de maneira indissolúvel ao
sucesso da revolução e ao estabelecimento da república? Vocês querem
cessar as inquietudes e as agitações intestinas, declarem hoje que a base
da constituição republicana dos franceses será o limite do direito de
propriedade139.

Limitar o direito de propriedade é, neste caso, liberar a dimensão do impróprio,


do que é objeto de limite a toda possessão. Babeuf fala de “despropriarizar” a

138 Manifeste des égaux


139 BABEUF; Écrits, p. 328
França. Pois é necessário “fazer nas coisas a mesma revolução que foi feita nos
espíritos”140.
Eis um ponto central que acaba por tocar em uma das distinções
metafísicas mais bem estabelecidas entre nós: a distinção entre pessoas e coisas.
Pois estamos profundamente colonizados pela ideia lockeana de que o trabalho
produz o direito de possessão. Aquilo no qual eu trabalho é meu. Um povo, como
um sujeito político coletivo, como um trabalhador coletivo, deveria também
aparecer como o proprietário dos objetos nos quais ele trabalha. Seguindo tal
esquema, a emancipação social só poderia se compreender como o ato de tomar
possessão dos objetos cuja fonte de existência são o meu trabalho ou o trabalho
do povo do qual faço parte.
Ou seja, “coisas” aparece aqui como o que está a serviço de “pessoas”,
como o que pode ser submetido a uma relação de propriedade personalizada.
Vemos aqui uma forma de emancipação que não escapa da generalização das
relações de propriedade e de usufruto conectado à propriedade. Neste sentido,
podemos dizer que apenas em uma sociedade de proprietários, em uma
sociedade na qual o estatuto fundamental de membro confunde-se com o
estatuto de proprietário, podem existir “coisas”. Nas sociedades nas quais
“pessoas” são livres, o preço a pagar por tal liberdade é que as “coisas” estejam
sujeitas à servidão. Assim, se São Tomas afirmava que “pessoa” era o espaço no
interior do qual a razão podia expressar o domínio de seus próprios atos141,
como o autor de seus próprios atos, não sendo levado por outro, é porque, para
nós, as coisas não agem, elas são ativadas por nós.
Mas podemos perguntar, seguindo esta noção de que a terra é de
ninguém, de que devemos fazer improprietários, se o verdadeiro conceito de
emancipação social não seria exatamente a noção de uma sociedade de sujeitos
livres, mas uma sociedade de sujeitos e coisas livres. Pois é possível que a
emancipação das coisas seja a primeira condição para a emancipação dos
sujeitos. Estamos a falar de uma sociedade na qual as coisas seriam
inapropriáveis, na qual elas não seriam nem propriedade individual nem
propriedade coletiva, mas a expressão de que vivemos em um circuito de objetos
que nos afetam e não nos são próprios. Isto nos mostra como a reconstituição da
biopolítica que nos governa não pode se realizar sem começar pela destituição
da centralidade das relações de propriedade na definição da vida social.
Nesta deposição do meu e o do teu, das pessoas e das coisas, do próprio e
do impróprio é que se funda a verdadeira revolução capaz de realizar uma
liberdade que não é apenas liberdade dos sujeitos, mas constituição de um
mundo livre. Daí uma afirmação como:

Todos os males estão no auge; eles não podem piorar mais: eles só podem
ser consertados por uma convulsão total! ... Que tudo se confunda então!...
que todos os elementos se misturem e se entrechoquem! ... que tudo entre
no caos, e que do caos saia um mundo novo e regenerado. Venhamos,
após mil anos, mudar tais leis grosseiras142.

140 Idem, p. 329


141 AQUINO, Tomas; Suma teológica, Petrópolis: Vozes, 1998, vol. I, Q. 29, art. 1. Para um
desenvolvimento importante deste ponto, ver ESPOSITO, Roberto; Due: la macchina della teologia
politica e il posto del pensiero, Roma: Einaudi, 2013, p. 113
142 BABEUF, idem, p. 337
A igualdade real aparece assim como esse espaço capaz de produzir não
exatamente uma homogeneidade absoluta, mas um caos criador, no qual as
hierarquias, os lugares estabelecidos, a distinções grosseiras se misturem e se
entrechoquem. Para Babeuf, essa é a condição real para a liberdade e para a
criação de uma sociedade livre.

Em direção a Marx

Alguém que não deixará de ser influenciado pelas ações e problemas levantados
pela ala mais radical da Revolução Francesa será Karl Marx. É em Babeuf e nos
ditos enragés que Engels e Marx encontrarão as fontes do comunismo no interior
da Revolução Francesa, e não nos jacobinos. Um dos elementos centrais será a
crítica da propriedade e a defesa da igualdade real.
O recurso a Marx nesse contexto é relevante porque há, em Marx, a junção
entre três níveis de exigências que muitos gostariam de dissociar: uma reflexão
sobre a liberdade e seu exercício, uma reflexão sobre a emergência de novos
sujeitos políticos e sua força revolucionária, uma crítica à vida possível no
interior das sociedades capitalistas e em outros formas sociais incapazes de não
se fundar em estruturas de exploração e violência. O que Marx mostrou é como
nenhum destes três níveis de exigência caminham separados.
Que Marx seja um pensador da liberdade e da emancipação, eis algo que
vale sempre a pena lembrar. Sua pergunta fundamental não é apenas pelas
condições sociais para a realização da liberdade, já que não posso ser livre em
uma sociedade não-livre, mesmo que acredite que me exilar em minha
interioridade seria possível. A questão de Marx gira em torno de uma crítica a
outros modelos de liberdade, em especial este no interior do qual liberdade e
propriedade estão associados. Pois temos a ilusão de podermos ser livres
quando somos proprietários de nós mesmos, quando possuímos a nós mesmos.
A base material, jurídica e política das sociedades capitalistas encontra-se na
generalização da estrutura da propriedade, até mesmo para as relações a si. Mas
uma liberdade sem possessão é a única liberdade concreta real, lembrará Marx.
Esta liberdade exige uma transformação radical dos modos de reprodução
material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do
trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma ação
unidimensional, disciplinar e alienante. Ela exige que as relações à natureza
deixem de ser uma possessão para ser um “metabolismo”. Ela exige que as
relações humanas não sejam mais pensada como relações entre proprietários
que passam entre si contratos. Ao movimento desta transformação, Marx dá um
nome: comunismo.
Esta experiência comunista, experiência da emergência de um comum que
não será posse de ninguém exige a reflexão sobre como sujeitos que não tem
mais nada que os vincule à vida mutilada das sociedades capitalistas afirmam seu
desejo de transformação e agem de forma revolucionária. Uma revolução não
apenas da estrutura do poder e de sua base econômica, mas da forma do
exercício do poder e de desativação da exploração econômica. Insisto neste
ponto porque um dos teóricos fundamentais do pensamento econômico pensa,
na verdade, como permitir a emergência de uma sociedade pós-econômica, para
além das injunções disciplinares que fizeram da economia a verdadeira forma de
produção de subjetividades.

A questão judaica

É neste contexto que ganha importância um dos primeiros textos publicados por
Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado nos Anais
franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno Bauer. Ele deve ser
lido como uma espécie de complemento às críticas de Marx sobre a possibilidade
de confundir a emancipação humana como emancipação política enquanto
cidadão do Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipação
política dos judeus deveria ser feita à condição do abandono de sua religião, pois:
“Enquanto o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos serão igualmente
incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipação”143. Nosso Estado
ainda é cristão, por isto não faz sentido esperar emancipação política no seu
interior, da mesma forma como não faria sentido esperar emancipação política
de quem conserva a centralidade de seu envolvimento religioso. Bruno Bauer
exige, pois, que os judeus renunciem ao judaísmo e que o homem em geral
renuncie à religião para tornar-se emancipado como cidadão.
Marx não concorda com a solução apresentada por Bauer. Pois ao invés de
se perguntar se os judeus tem o direito à emancipação política, há de se
perguntar se a emancipação política tem o direito de exigir dos judeus a
supressão do judaísmo e de exigir do homem a supressão da religião. Ou seja, o
primeiro ponto a destacar aqui é a maneira com que Marx lembra que não se
coloca uma questão sobre se uma comunidade específica tem o direito à
emancipação política. De certa forma, a questão é desprovida de sentido por
naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta. A própria forma de colocar a
questão esconde o verdadeiro problema, a saber, se a emancipação política
atualmente configurada é, de fato, uma emancipação humana. Neste sentido, há
de se lembrar que, pensada a emancipação política como cidadania: “a presença
da religião não contradiz a plenificação do Estado”144. Pois a emancipação
política que conhecemos até agora, através da constituição de um Estado de
tolerância religiosa, é uma emancipação que, ao menos aos olhos de Marx,
merece ser profundamente criticada.
Esta situação específica é uma ocasião para Marx lembrar como a forma
geral de superação das contradições entre liberdade e restrição no interior do
Estado moderno consiste em conservar as restrições através da constituição de
modelos formais de liberdade que escondem novas formas de alienação. Assim:

O limite da emancipação política fica evidente no fato de o Estado ser


capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique
livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem que o
homem seja um homem livre145.

Como cidadão do Estado, o homem não se liberta da religião. Ele ganha a


liberdade de ter uma religião que lhe seja privada, própria. Ele leva assim uma

143
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34
144
Idem, p. 38
145
Idem, p. 38
vida dupla não só mentalmente, mas na vida concreta: laico como cidadão do
Estado e religioso como membro da sociedade civil, laico como cidadão e
religioso como indivíduo vivo. Tal reconciliação clivada impede o advento do que
Marx chama de “estado político pleno” no qual seja possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero” (Gattungsleben), advindo assim uma
existência real do gênero. Até porque, o verdadeiro Estado cristão é aquele que
constitui a “religião da vida privada” ao apontar à religião um lugar entre os
demais elementos da sociedade burguesa. No entanto, Marx insistirá que
emancipar não consiste em emancipar politicamente, mas em se emancipar do
modo atual de emancipação política, emancipar das clivagens atualmente
produzidas e geridas pelo Estado.
Antes de tentarmos definir este conceito central de vida do gênero como
horizonte de emancipação e reconhecimento, vamos tentar entender melhor o
que está em jogo neste texto que foi objeto de tanta polêmica. Na verdade, Marx
está a criticar a compreensão da determinação social da liberdade através da
realização do homem como indivíduo abstrato. Neste contexto, “abstrato” deve
ser compreendido como: submetido a um modo disciplinar de constituição de si
no qual ele é constituído como indivíduo que tem um conjunto de propriedades
que lhe são inerentes e próprias (sua religião, suas tradições, sua cultura, etc.). A
discussão da transposição da religião, da esfera pública para a esfera da
constituição da vida privada, é apenas um modo privilegiado para apreender os
modos de privatização de si, de constituição de si a partir da produção da esfera
do privado, do que me é próprio, do que é minha predicação. Daí porque Marx
pode fazer aproximações como:

A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o


mercador e o cidadão, entre o diarista e o cidadão, entre o proprietário de
terras e o cidadão. A contradição que se interpõe entre o homem religioso
e o homem político é a mesma que existe entre o burgeois e o citoyen,
entre o membro da sociedade burguesa e sua pele de leão político146.

Os exemplos de Marx servem para lembrar que a esfera da liberdade


individual é compreendida como a esfera na qual posso ser respeitado como
proprietário. Daí porque ele afirma, em uma colocação decisiva: “A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade
privada”147. O que equivale também: a tratar todas as suas expressões e
exteriorizações como o que pode ser submetido à condição de coisa da qual sou
proprietário, coisas de uma pessoa. Assim, Marx insistirá, por exemplo, que a
noção de liberdade pressuposta pela Declaração dos direitos do homem e do
cidadão, de 1793, era calcada em larga medida na absolutização do indivíduo
proprietário. Daí uma colocação como:

“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite
entre dois terrenos é determinado pelo estaca da cerca. Trata-se da
liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesmo

146
Idem, p. 41
147
Idem, p. 49
(…) A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito
humano à propriedade privada”148.

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de


indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados
pelo estaca da cerca. O que deixa clara como a propriedade não é apenas um
problema econômico, mas um problema disciplinar de modos de relação à si.

Gattungsleben

É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de


um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noção de “vida do gênero”
( Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos o sentido do
que Marx entende por emancipação e alienação. Vimos como Marx insiste que
um Estado político pleno é aquele no qual seria possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero”. Estado no qual os indivíduos não são
clivados em uma abstração política de cidadãos e a atribuição privada de
predicações (como ter sua própria religião), mas no qual tal clivagem é superada
a partir do momento em que os seres humanos podem se encontrar na vida do
gênero. Esta vida não é mais uma abstração, como é o caso da abstração do
cidadão, pois ela é a expressão da vida em sua condição de não apropriada.
Tentemos inicialmente entender melhor este ponto a partir do comentário do
seguinte trecho dos Manuscritos econômico-filosóficos:

O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da


espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da
beleza149.

Esta caracterização do ser humano como “ser sem espécie definida”, “ser sem
medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a
medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica
em relação à determinação própria a toda espécie nas suas relações de
transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente
ao próprio objeto150. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o
objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo
tempo, superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal
condição de ser para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de
espécie alguma, não tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero”
( Gattungsleben) que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de
Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinções entre humanidade e
animalidade, dirá que:
148
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
149
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
150
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 151

No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do


qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não
pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a
orientação da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino.
Um gênero sem naturalidade, desapropriado. Mas, e há de se salientar isto com
toda força, esta monstruosidade de um gênero que se objetifica sem ser espécie
alguma definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia a
produção própria aos “indivíduos histórico-universais” de A ideologia alemã, não
é simplesmente a afirmação de que o homem só age de maneira não alienada
apenas quando age conscientemente como “ser social”, ou seja, reconhecendo
que sua essência, por não ser essência natural alguma, só poderia ser sua própria
auto-produção, ou seja, seu “ser social” genérico e historicamente determinado.
Se assim fosse, a afirmação da vida do gênero não seria nada mais que uma
apropriação reflexiva da universalidade situada de minhas condições históricas,
assim como da substância comum às relações intersubjetivas que me
constituíram e que se expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que
nos levaria a uma especularidade muito bem descrita involuntariamente por
Feuerbach ao falar, não por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:

“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de si


mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas
quando o homem namora sua própria forma individual, mas não quando
ele admira a forma humana. Ele deve admirá-la; não pode conceber
nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo
ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá-la”152.

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao ser humano olhar-se no


espelho e não ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da
forma humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente
não seria atualmente completada com a pergunta: mas o que dizer se
insistíssemos que, ao contrário, o ser humano é exatamente este ser que se perde
ao olhar-se no espelho, que estranha sua imagem como quem vê algo prestes a se
deformar, que não reconhece sua própria imagem por não ter uma forma
151
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
152
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o
que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit.,
p. 101).
essencial que lhe seja própria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do
espelho é confrontação com algo do qual não nos apropriamos por completo,
mas que nos atravessa produzindo o sentimento de uma profunda
impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
passa à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se
determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante
de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulação do campo de determinações
que permite a organização das diferenças predicáveis responsáveis pela
particularização dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade não deve ser
compreendida como determinação normativa capaz de definir, por si só, o sentido
daquilo que ela subsume, mas como a força de descentramento da identidade
autárquica dos particulares153. A universalidade é, neste contexto, apenas a
generalização da impossibilidade do particular ser idêntico a si mesmo e a
transformação desta impossibilidade em processo de constituição de relações.
Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos dizer que o trabalho que
expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido como a fonte inesgotável dos
possíveis que passa à existência, mas sem nunca determinar-se por completo em
um valor particular de uso totalmente funcionalizado. Por isto, ela pode
impulsionar os objetos trabalhados a uma processualidade sempre aberta sob a
forma de devir contínuo.

153
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
Arqueologia da liberdade
Aula 9

Na aula de hoje, iniciaremos nosso módulo dedicado à noção de liberdade como


autonomia. Trata-se de, na verdade, compreender como consolida-se, para nós, a
definição de que a liberdade está profundamente vinculada a processos de auto-
legislação. Até agora, vimos, a partir a análise da filosofia grega, a configuração
de um eixo no interior do qual a liberdade aparece como uma forma de auto-
pertencimento. Posteriormente, vimos como tal auto-pertencimento se desdobra
em propriedade de si, principalmente através da ascensão do capitalismo como
modo geral de organização de nossas formas de vida. Na última aula, foi possível
entrar em contato com algumas modalidades de crítica a tal noção de liberdade
como propriedade de si.
Agora, iniciaremos um trajeto composto de dois momentos. Primeiro,
trata-se de compreender a gênese da noção de liberdade como auto-legislação.
Isto nos obrigará a voltarmos os olhos à teologia cristã, em especial Agostinho e
os reformadores protestantes. Veremos, posteriormente, como esse tema da auto
-legislação será peça fundamental daquilo que poderíamos chamar de
“dispositivo colonial”. Ou seja, a auto-legislação, com seu horizonte cristão de
luta interna contra os vínculos aos bens temporários em nome da redenção da
culpabilidade através da graça divina, será elemento decisivo na lógica da
dominação colonial. Pois para que tal dominação seja moralmente justificada, ela
precisa aparecer como pedra angular do processo civilizatório. O que, por sua
vez, pressupõe que povos colonizados e suas culturas precisem ser
compreendidos como expressão de regressão e atraso. A medida do atraso será
fornecida pela distância em relação à realização institucional da liberdade como
auto-legislação, com sua pressuposição psicológica da constituição de uma
subjetividade marcada pela experiência da culpabilidade e da consciência do
pecado original. Ou seja, os povos colonizados não são efetivamente livres
porque eles não são cristãos.
Feito isto, nós analisaremos dois modelos fundamentais de autonomia na
modernidade, a saber, este fornecido por Rousseau e este fornecido por Kant. A
análise de Rousseau nos permitirá melhor desdobrar as consequências políticas
da noção moderna de autonomia. Já Kant nos permitirá analisarmos melhor sua
configuração moral através da constituição da ruptura na filosofia moral
produzida pela emergência de uma ética deontológica, com sua definição
procedural da ação moral.
No entanto, no mesmo momento histórico que tal noção de autonomia se
desenvolvia, principalmente a partir de sua dimensão moral, um conceito
relativamente distinto de autonomia emergia no interior do que entendemos
atualmente por “experiência estética”, e é em direção a tal debate que
terminaremos o curso com nosso último módulo. Pois esse conceito de
autonomia que emerge com a construção propriamente moderna da experiência
estética, a partir do final do século XVIII e começo do século XIX, não estava
fundado na expressão de relações de auto-legislação e auto-pertencimento. Na
verdade, ele estava assentado em operações de abertura a processos de
descentramento e de implicação com objetos e movimentos não redutíveis a
predicações de pertencimento. Paradoxalmente, havia uma irredutível dimensão
No entanto, essa heteronomia produzida pela experiência estética não
poderia, de forma alguma, ser compreendida como figura da servidão. Antes, ela
se configurava como uma experiência social da liberdade de forte cunho crítico
em relação às possibilidades que foram paulatinamente se configurando no
interior do horizonte normativo das formas de vida próprias à emergente
sociedade dos indivíduos com seus modos próprios de determinação. Primeiro,
ela permitia uma crítica às pressuposições de identidade que uma liberdade
como auto-legislação necessariamente pressupõe, com seus problemas para a
configuração dos processos de reconhecimento implicativo com a diferença. Por
isto, ela impedia a redução da liberdade tanto à afirmação da autonomia
individual quanto à integração a um corpo social atual (o que não eliminava a
possibilidade de expressar um corpo social por vir). Antes, ela abria espaço à
emergência de figuras da subjetividade nas quais as dimensões do inconsciente,
do involuntário, do contingente não aparecerão mais como a limitação de minha
liberdade, adiantando um processo que se mostrará fundamental para o
desenvolvimento das estratégias filosóficas de crítica a partir de então. É desta
forma que irá se configurar algo que podemos chamar de “matriz estética da
autonomia” em contraposição à “matriz moral da autonomia”. Terminaremos
nosso curso com tal discussão.

Retornando a Antígona

Partamos de uma consideração propriamente arqueológica, já que este


curso se propõe a ser uma arqueologia da liberdade. Já foi dito neste curso que a
primeira vez que encontramos o termo “autonomia” é em um texto grego: a peça
de teatro Antígona (línea 917), de Sófocles (497/6 - 406/5 a.C.). No texto, o
termo se refere à decisão de, por vontade própria, seguindo a sua própria lei,
Antígona entrar viva no interior do Hades, pois ela desobedecera
deliberadamente as leis da pólis, mesmo sabendo que tal desobediência
significava a morte. Vemos assim como a autonomia aparece enquanto vontade
disposta a não levar em conta a integridade física do agente para poder se
realizar. Abre-se aqui a dimensão própria a algo como a “integridade moral”, ou
seja, a decisão de realizar ações que podem, em certas circunstâncias, relativizar
até mesmo as exigências próprias ao princípio de auto-conservação. Esta
vontade que submete outras vontades, aparecendo como um dever
intransponível, dever que permite ao sujeito relativizar as exigências imediatas
de auto-conservação, reaparecerá de maneira decisiva na constituição da noção
moderna de autonomia.
Claro que, no caso de Antígona, a vontade que expressa a autonomia não
pode ser vista como individual, tal como na versão moderna de autonomia.
Antes, ela é a expressão do vínculo do sujeito a uma lei que não se confunde com
a lei da pólis, com suas determinações contextuais tendo em vista a preservação
do laço social. A lei que Antígona sustenta é, como ela dirá em um importante
momento da tragédia, a “lei dos deuses”, ou seja, lei incondicional capaz de
fundar um dever que é marca de adesão do sujeito a modelos substancialmente
determinados de ação, modelos não apenas formais, mas que prescrevem
claramente o que deve ser feito, que ação deve ser realizada, que regra prática
deve ser seguida. No caso da tragédia, temos, por exemplo, o dever de prestar o
rito funerário a todo e qualquer sujeito. O que leva Antígona a enterrar seu irmão
Polinices e enfrentar a proibição de Creonte. Daí sua fala central:

Mas Zeus não foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte] para
mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela justiça,
companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas
determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de
transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é
de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que
ninguém possa dizer quando surgiram154.

O fundamental, nesta afirmação, é que a ação não é legitimada simplesmente em


nome do vínculo natural ao sangue e do caráter insubstituível do irmão, mas
principalmente ela é legítima porque a lei divina entrega, aos membros da
família, a obrigação de realizar o reconhecimento da incondicionalidade da
posição dos sujeitos, para além das determinações contextuais de ações.
Incondicionalidade expressa na obrigação do rito funerário. Como dirá Lacan:
“Antígona representa, por sua posição, este limite radical que, para-além de todo
conteúdo, para-além de tudo o que Polinices pôde fazer de bem e de mal, de tudo
o que pode lhe ser infligido, mantém o valor único de seu ser”155.
Esta figura da legislação a partir da lei divina estará presente também no
cristianismo, mas em um contexto estruturalmente distinto. Pois se, em
Antígona, a lei divina é reclamada para justificar o vínculo privilegiado a um
objeto empírico, a saber, o corpo morto do irmão, no cristianismo a lei divina
aparecerá como empuxo radical de transcendência em relação a todos “bens
materiais e temporários”, como dirá Agostinho. Devemos estar atentos a maneira
como o cristianismo se constrói a partir de dispositivos e preceitos de controle e
cuidado de si já em circulação no mundo greco-romano. No entanto, tais
dispositivos serão ressignificados de forma tal a operar no interior de uma lógica
da submissão da vontade à consciência da culpa e da falibilidade. Desta forma, a
própria noção de autonomia ganhará outro sentido e função.

A teologia da autonomia

Mas gostaria de discutir a relação entre autonomia e teologia cristã de


trás para frente. Na verdade, gostaria de partir dos reformadores protestantes
para voltar, posteriormente, a uma das bases de seus pressupostos, a saber, a
filosofia de Agostinho.
Primeiro, é certo que tal descolamento em relação ao princípio de auto-
conservação, próprio a essa noção de autonomia, reaparecerá, séculos depois,
nos pressupostos de teses de teólogos protestantes como Martinho Lutero (1483
-1546) e João Calvino (1509-1564). Esta é uma discussão importante, pois não é
completamente verdade que a filosofia moral moderna rompe radicalmente com
horizontes teológicos de justificação da ação, em especial aqueles presentes na
Reforma Protestante. Uma dependência silenciosa permanecerá.
É lugar comum a afirmação de que o protestantismo foi decisivo para a
constituição da noção moderna de indivíduo e de autonomia individual.
Lembremos, por exemplo, de como diversas seitas protestantes entendiam que

154 SÓFOCLES, Antígona, op. cit., p. 219.


155 LACAN, Jacques; idem, p. 325.
cada igreja era particular e deveria se fundar sobre um pacto ou uma aliança na
qual cada membro se engaja a partir de sua vontade própria. Ou seja, a igreja é
uma aliança entre fieis, a todo momento renovada. Esta era uma consequência
natural de duas ideias centrais de Lutero: a salvação é dada pela fé (e não pelas
obras) e a afirmação da livre interpretação da Bíblia. Assim, Lutero poderá dizer:
“fica evidente que um cristão é livre de todas as coisas e está acima delas,
portanto, não necessita de boas obras para ser justo e bem aventurado, pois a fé
lhe dará tudo em abundância”156. Notemos como o reformador retoma um tema
filosófico maior que já vimos desde nosso módulo sobre a filosofia grega: a
liberdade como libertação em relação às determinações empíricas do mundo (as
obras) e retorno à interioridade (a fé).
Por defender tais posições, a reforma faz com que a mediação
institucional da Igreja perca importância, dando força ao exame individual de si e
de suas motivações. Como percebeu o sociólogo Max Weber (1864-1920),
aparece com isto uma interioridade marcada pelo sentimento de forte solidão
interior do indivíduo. Pois:

No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma – a bem-


aventurança eterna - o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua
estrada ao encontro do destino fixado desde toda eternidade. Ninguém
podia ajudá-lo157.

No caso do pensamento reformado, em especial no calvinismo, esta


solidão interior era aumentada devido ao dogma da predestinação. Segundo tal
dogma, os salvos já estão predestinados por Deus. No entanto, não sabemos qual
a vontade divina pois há uma incomensurabilidade entre sua vontade e a ciência
do homem. Se há predestinação, se Deus já decidiu se serei ou não salvo antes de
minhas próprias ações, então a verdadeira causa última das minhas ações (a
vontade de Deus) não é acessível ao meu entendimento. Perspectiva esta que
devemos chamar de “voluntarista” por insistir na incomensurabilidade entre o
entendimento humano e a vontade de Deus. Assim, uma questão maior impunha
-se a cada fiel individualmente: “Serei eu um dos eleitos? E como eu vou poder
ter certeza dessa eleição?”. A resposta era apenas uma: devemos nos contentar
em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança em Cristo
operada pela verdadeira fé.
Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade
coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeção
sistemática em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza
subjetiva da própria eleição. Como não havia para os protestantes sacramentos
como a confissão, que servia como reparação de momentos de fraqueza e
leviandade, a pressão de uma unidade coerente das condutas acabava sendo
entificada em uma vida pensada como sistema:

Nem pensar no vaivém católico e autenticamente humano entre pecado,


arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado, nem pensar
naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado seja por penas

LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão. Trad. Erlon J. Paschoal. São Paulo: Unesp, p. 43
156

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de
157

Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 95


temporais seja por intermédio da graça eclesial158.

Temos assim uma situação religiosa que produz necessariamente a


experiência da interioridade (apenas a certeza da minha fé individual é o
caminho para minha salvação, apenas eu posso interpretar o sentido da escritura
divina, o tribunal que avalia minhas condutas sou eu mesmo, ele está em mim) e
da unidade coerente das condutas (apenas a perseverança de minha conduta é o
sinal de minha predestinação, eu devo ser tão regular quanto uma norma). Estas
duas experiências serão fundamentais para o desenvolvimento da noção
moderna de autonomia. Para chegarmos a tal noção, basta, principalmente,
recusar a perspectiva voluntarista. É tal incomensurabilidade entre consciência e
causa da ação que Kant recusa ao constituir sua teoria da autonomia. Pois:

Uma moralidade composta de tirania e servilismo só pode ser evitada se


Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos membros sejam
mutuamente abrangentes por aceitarem os mesmos princípios. Assim, os
oponentes do voluntarismo tinham de mostrar que a moralidade envolve
princípios que são válidos tanto para Deus quanto para nós159.

Mas notemos como tal noção de autonomia pressupõe uma clivagem


subjetiva fundamental. Uma das consequências de tal concepção clivada da
natureza humana será, assim, a compreensão do indivíduo como espaço de um
conflito incessante entre vontade autônoma que comanda o dever e desejos
ligados aos impulsos “irracionais” dependentes em relação à natureza. A
temática da afirmação dos “motivos constantes da moralidade” contra os
“afetos”, isto a fim de educar o sujeito como uma personalidade, era elemento
fundamental da ascese puritana. Ela permitiu o desenvolvimento de um conceito
de autonomia compreendido como a possibilidade de se agir de outra forma do
que se age, já que posso, a todo momento, apoiar-me em meus princípios morais
para me contrapor às tendências internas aos afetos. O que transforma a
liberdade fundamentalmente em livre-arbítrio, capacidade de deliberação e
escolha a partir de vários modelos possíveis de ação. O resultado, no entanto, não
poderá ser muito diferente do que dizia um poema popular da literatura
puritana, Auto-machia, escrito por George Goodwin em 1607:

Eu canto meu Eu, minhas guerras civis internas


As vitórias que perco e ganho
O duelo diário, a luta contínua
A guerra que nunca termina, até o fim de minha vida
E ainda, não apenas minha, não minha somente,
Mas de todos que, sob o honroso signo
Do estandarte de Cristo, irão seu nome sustentar
Com votos sagrados de corpo e alma

Tal concepção não esperou os puritanos para aparecer. Ela pode ser
facilmente identificada nos exercícios espirituais de ascetismo próprio dos

WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, op. cit., p. 107


158

SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Trad.


159

Magda França Lopes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, pp. 554-555
monges da Idade Média. Ela, por sua vez, é peça fundamental da concepção de
livre-arbítrio legada por Agostinho. No entanto, a novidade aqui é que tal guerra
civil interna não levava a alguma forma radical de rejeição religiosa do mundo,
de uma figura possível daquilo que o antropólogo Louis Dumont (1911-1998)
chamava de “indivíduo fora do mundo”160. Na verdade, tínhamos, contrariamente
à prática monacal, uma forma de estar no mundo onde os ideais ascéticos
podiam guiar até mesmo a vida profissional mundana através, por exemplo, de
uma ética protestante do trabalho. Ética para a qual o trabalho será visto como
vocação ascética, trabalho feito não tendo em vistas o acúmulo e fruição de bens,
mas que aparece como resposta a uma vocação que define minha identidade e se
impõe a mim como dever. Desta forma, as formas da vida, seja na dimensão do
desejo, seja na dimensão do trabalho, eram organizadas a partir da necessidade
constante do exame de si, da guerra que só termina com o fim de minha vida e,
com isto, da afirmação da autonomia da vontade.
Notemos ainda como tal clivagem subjetiva permanece como referência
na filosofia moral contemporânea. Por exemplo, o filósofo Harry Frankfurt (1929
-), em um importante texto de filosofia moral, insistirá que uma diferença
essencial entre os seres humanos e outras criaturas seria a existência, nos
primeiros, de “desejos de segundo nível”161. Além de ter desejos e motivar-se, os
seres humanos poderiam também desejar (ou não) ter certos desejos e
motivações, ou seja, terem “desejo de segundo nível”. Desta forma, eles poderiam
desejar ser diferentes do que são, usando o que Frankfurt chama de “capacidade
de auto-avaliação reflexiva”.
Mas é possível pensar em ao menos duas formas de desejar ter certo
desejo. Posso querer que este desejo seja um dentre outros desejos que tenho ou
posso querer que ele seja absolutamente determinante na constituição da minha
vontade e da eficiência de minha ação. Há uma importante diferença de
intensidade aqui. É possível, por exemplo, desejar ter o desejo de se concentrar
no trabalho mas, dependendo da intensidade deste desejo, ele pode perder sua
eficiência e ser anulado por outro desejo mais forte. Quando certo desejo
constitui a vontade, temos não apenas um desejo de segundo nível, mas uma
“volição de segundo nível”. Tal capacidade de determinar a vontade através de
uma volição de segundo nível seria o verdadeiro atributo determinante de um
ser dotado de autonomia. Pois é através deste segundo nível que determino se
meus desejos são ou não desejáveis. Ou seja, percebemos novamente como a
liberdade da vontade consiste em poder desejar outra coisa do que se deseja de
maneira irreflexiva, ou seja, ela aparece como figura do livre-arbítrio.

O livre-arbítrio

Essa compreensão do livre-arbítrio tem uma matriz que nos leva diretamente a
Agostinho. Tentemos entender este ponto a partir daquilo que, em filosofia,
chamaríamos de “compatibilismo” próprio à reflexão de Agostinho sobre a
liberdade. Uma posição compatibilista é aquela que afirma ser, de alguma forma,
compatível determinismo e livre-arbítrio, enquanto incompatibilista afirmará, ao

160 cf. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
161 cf. FRANKFURT, Harry. “Freedom of the Will and the concept of a person”. In: The Journal of

Philosophy, n. 68, 1971


contrário, que a aceitação de alguma forma de determinismo retira por completo
a possibilidade de existência da liberdade.
É claro que isto nos exige definir melhor o que podemos entender, ao
menos neste contexto, por “determinismo”. No caso de Agostinho, a função do
determinismo é preenchida pela presciência divina, ou seja, o fato de deus saber
todas as coisas antes delas acontecerem. O que lhe leva a enunciar:

Convencidos da existência de um Deus supremo e verdadeiro,


confessamos também que possui potestade, vontade e presciências
soberanas. E não tememos por isso, fazer sem vontade o que
voluntariamente fazemos, porque de antemão sabe Ele, cuja presciência
não pode enganar-se, o que tem de fazer162.

Ou seja, o fato de Deus saber de antemão o que ocorrerá, o fato de nada


ocorrer para além da soberania de sua vontade é uma forma de determinismo, de
se estar submetido a uma vontade outra, mas que não implica limitação ao livre-
arbítrio humano, não coloca limitações ao caráter voluntário da ação humana.
Afirmação que, a princípio, poderia parecer colocar, na conta da vontade de
Deus, o pecado e o mal que derivam das escolhas que realizo através de meu
livre-arbítrio. Por que então permitir a existência do pecado se nada pode
subsistir fora da vontade divina?
Um eixo fundamental do argumento de Agostinho se encontrará no
primado dado por Agostinho à vontade. Só a vontade pode destronar a alma do
caminho reto. Por outro lado, só através da vontade a boa ação pode ser boa. Se
não houver vontade para o bem, não existiria bem. O compatibilismo de
Agostinho se justifica através da afirmação da necessidade da ação voluntária,
caso contrário não haveria julgamento, responsabilização ou pecado. O ser
humano tem o poder de se tornar bom através de sua própria vontade. Um bem
agir desprovido de vontade não pode ser um bem agir, mas apenas uma reação
mecânica e externamente determinada:

Se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir


esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados
premiando as boas ações? Visto que a conduta desse não seria pecado
nem boa ação, caso não fosse voluntária163.

De fato, só pode haver culpa e pecado se houver vontade, mas


paradoxalmente só pode haver liberdade se houver a possibilidade do pecado,
pois não havendo pecado, todas as ações humanas são igualmente necessárias.
Não sendo a manifestação do querer de Deus, o pecado é um exercício inerente à
liberdade humana. Não é possível introduzir o livre-arbítrio sem introduzir a
possibilidade de pecar. O paradoxo é que a possibilidade de perder a liberdade
aparecer como uma contraprova da liberdade. Uma liberdade caracterizada pela
possibilidade da vontade se desviar do bem imutável para caminhar em direção
ao querer dos bens mutáveis, para caminhar em direção a esta libido descrita por
Agostinho como a pior forma de desgoverno:

162 AGOSTINHO; A cidade de Deus, parte I, p. 230


163 AGOSTINHO; Do livre-arbítrio, p. 75
A libido é tão forte que não apenas domina o corpo inteiro nem só dentro
e fora, mas também põem em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do ânimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cúmulo, se ofusca
quase por completo a razão e surge a treva do pensamento164.

Como vemos, estamos no interior de uma relação política, baseada na relação de


domínio. Aqui fica bastante claro porque a liberdade deve aparecer como uma
relação de auto-legislação. A marca do pecado original se expressa por uma
libido que aparece como força de sedição e queda. Sob o pecado, o ser humano
não legisla mais a si mesmo. Ao se deixar guiar pela razão, a vontade é levada
àquilo que não é apenas objetos de sentidos corporais, o que implica escapar do
horizonte moral de queda e culpa. Por isto:

Quando a ação, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais


da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que
precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos
como sendo a lei eterna165.

Este governo se torna necessário a partir do momento que o pecado


original produz a vergonha de se descobrir atravessado por uma libido que se
manifesta como desobediência. Ela impõe uma compreensão da libido não
apenas como excesso e a impureza a se regular através de práticas de contenção
visando o fortalecimento de si. Ela é, por um lado, a expressão da culpabilidade
no interior da vida humana. Mas, principalmente, ela é a marca do involuntário
no interior do voluntário. Ela é a vontade submetida ao que ofusca quase
completamente a razão e impõe as trevas ao pensamento. Essa insubmissão
expressa no humano a insubmissão original à lei divina. Deus colocou no
humano a marca dessa insubmissão primeira para que ela possa ser superada
através do exercício autônomo da vontade e do governo, para que dessa forma
ela não mais ocorra. Como lembrará Foucault:

O homem caído não caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisão marca sua própria vontade que se divide, retorna
-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus166.

164 Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J


165 Idem; Do livre arbítrio, p. 47
166 FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
Arqueologia da liberdade
Aula 10

Na aula passada, vimos a emergência de um conceito de autonomia vindo do


pensamento teológico cristão. Ele se consolida como livre-arbítrio e manifesta
uma concepção clivada de subjetividade baseada na hierarquia entre formas de
vontade, entre vontade e desejo. Essa clivagem seria, como vimos em Agostinho,
marca de uma concepção teológica de queda e pecado, pois a insubmissão da
libido à vontade lembra ao ser humano sua própria insubmissão perante deus,
seu descaminho no mundo, assim como a necessidade de uma forte auto-
legislação com poder de auto-coerção.
Na aula de hoje, gostaria de falar um pouco sobre como tal concepção
teológica de autonomia será politicamente assumida. Mas para tanto gostaria de
começar pela maneira com que tal concepção de autonomia será peça
fundamental daquilo que nós poderíamos chamar de “dispositivo colonial”. Pois
as relações coloniais não são apenas relações de dominação e coerção. Para se
consolidarem, elas devem ser relações de produção. Elas devem, de certa forma,
produzir os sujeitos que a elas estão submetidos. Isto significa que o colonizado
deve ter o colonizador em seu interior, como uma instância a todo momento lhe
observando. O colonizador deve julga-lo, expor a dependência e atraso do
colonizado, demonstrar como sua concepção de si é expressão de algo que deve
ser superado, que deve ser submetido a um processo de desenvolvimento. E não
haveria forma mais perfeita neste sentido do que levar os colonizados a crerem
que, no fundo, eles não são livres e nunca foram livres. Só haveria uma maneira
possível de ser livre, a saber, ser como o colonizador. Tornar-se o colonizador de
si mesmo.
Pois a liberdade que o colonizado tinha antes da colonização era uma falsa
liberdade. No máximo, era alguma forma de licenciosidade ou de liberdade sem
segurança alguma, como se estivéssemos submetidos ao risco da lei do mais
forte. Um forte dispositivo filosófico-conceitual deverá ser mobilizado para que
esse “processo civilizatório” seja bem sucedido. Isto é o que permitiu a
antropólogos como David Graeber insistirem que o contato com povos
ameríndios teve influência decisiva na constituição do horizonte conceitual da
filosofia política moderna, que começava a engendrar-se à época: estado de
natureza, origem da desigualdade entre os homens, autonomia são apenas alguns
termos cuja configuração no interior do debate europeu é incompreensível se
abstrairmos do fato de que eles eram, em larga medida, respostas e elaborações a
respeito das críticas feitas por ameríndios às formas europeias de vida. Críticas
essas que poderiam ser expressamente formuladas ou fruto da mera existência
outra que tais sociedades implicavam. E certamente, para o olhar europeu, as
sociedades que mais pareciam dizer algo a respeito da situação originária de
estado de natureza eram aquelas sociedades desprovidas de estado, como as que
encontrávamos no Brasil e na América do Norte, já que diante de sociedades
como os maias, astecas e incas, os europeus se viam mais próximos de uma
estrutura conhecida.
Tomemos, por exemplo, esta explosão filosófica de interesse pela
descrição do “estado de natureza” a partir do século XVII. Notemos como antes
de Hobbes, Locke, Spinoza, Montesquieu, Rousseau nós podemos até encontrar
algumas elaborações sobre o que chamaríamos hoje de “estado de natureza”.
Elas estão lá em Epicuro, Platão, mas são elaborações absolutamente regionais
que não tem a função própria às teorias do estado de natureza, a saber, legitimar
as formas políticas atuais ou potenciais através de uma descrição filosófico-
antropológica da gênese dos laços sociais. Ou seja, o estado de natureza aparece
como fundamento do político.
Não será por acaso que muitas descrições do estado de natureza darão
espaço para considerações antropológicas vindas do contato com o dito Novo
Mundo. Como se a América fornecesse a imagem de uma “humanidade em estado
bruto”167. Tomemos, por exemplo, o que encontramos em Thomas Hobbes. No
seu caso, fica claro como a fundamentação do estado de natureza é, ao mesmo
tempo, psicológica e antropológica. Por um lado, não sendo uma hipótese
histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a partir da análise das
paixões atuais. Isto leva Macpherson a afirmar que, longe de ser uma descrição
do ser humano primitivo, ou do ser humano aparte de toda característica social
adquirida, o estado de natureza seria: “a abstração lógica esboçada do
comportamento dos homens na sociedade civilizada”168. Hobbes pede que
lembremos como “todos os países, embora estejam em paz com seus vizinhos,
ainda assim guardam suas fronteiras com homens armados, suas cidades com
muros e portas, e mantém uma constante vigilância”. Lembra ainda como os
“particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado, para se defenderem,
nem dormem sem fecharem – não só as portas, para proteção de seus
concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos domésticos”169. Mas
notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas na minha porta e em
meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices não apenas do desejo
excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do excesso do meu
próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas trancas e você verá
não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de seu próprio desejo
que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais imperam a
violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma universalidade
implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do


governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência
natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos

167 GRAEBER, David; La critique indigène, le mythe du progrès et la naissance de la gauche, p. 4


168 MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
169 HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
dias daquela maneira brutal que antes referi170.

Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade171.

Este é apenas um exemplo. Poderíamos lembrar aqui também da maneira com


que o continente americano aparece como a prova antropológica do estado de
natureza para John Locke. Contrariamente a Hobbes, Locke não compreende o
estado de natureza como uma guerra de todos contra todos, mas como o
fundamento social da liberdade. Pois: “nós nascemos livres, assim como
nascemos racionais”172. Isto significa afirmar que a liberdade, como horizonte de
racionalização social do ocidente, pode ser também encontrada entre povos não-
ocidentais que ainda estariam em um estado anterior ao advento do estado:

Em muitas partes da América não há nenhum governo. Há grandes e


aparentes conjecturas, diz Acosta, que tais homens, falando sobre esses
do Peru, não tiveram por muito tempo nem reis nem comunidades civis,
mas viveram em tropas, como fazem hoje os Cheriquanas, na Flórida,
assim como os que vivem no Brasil e em várias outras nações que não tem
reis, mas que nas ocasiões de guerra e paz, escolhem seus capitães como
querem173.

Esses homens sem reis, parlamentos e outras instituições políticas desta


natureza, diz Locke, são livres e iguais. O que produz um problema político
fundamental, a saber, como justificar a existência do estado e da hierarquia. Pois
diante dessa liberdade suposta, como então justificar nosso sistema de governo?
Como vimos anteriormente, ele deverá ser um consentimento visando impedir a
violação da liberdade. No estado de natureza, mesmo sendo senhor absoluto de
sua própria pessoa e possessões, o gozo deste domínio é incerto e inseguro,
constantemente exposto a invasão do outro. Ou seja, este estado seria “muito
inseguro”, levando os sujeitos a procurarem a “preservação mútua de suas vidas,
liberdades e bens”174, ou seja, aquilo que Locke chama de “liberdade”. O estado
de natureza é marcado pela liberdade e insegurança. Nele, todos são juízes e
executores, o que marca todo julgamento com a parcialidade e a paixão. O
governo da Commonwealth, ao contrário, pode instaurar um horizonte marcado
pela liberdade e pela segurança, garantindo a avaliação neutra dos conflitos. O
que explica porque é a possibilidade do desregramento da vontade do outro que
funda o governo. Locke fala da ambição, da concupiscência que pode quebrar a

170 Idem, p. 110.


171 HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
172 LOCKE, John; Segundo tratado do governo, par. 68
173 LOCKE, John; idem, par. 103
174 Idem, p. 350
harmonia pressuposta no estado de natureza.
Notemos, com isto, a defesa de que a emergência do estado é a marca do
desenvolvimento social e da efetivação concreta da liberdade. Pois sem estado
não haveria a impessoalidade da lei vinda da centralização da decisão e da
interpretação da lei. É claro que tal compreensão é uma abstração ideal. Nenhum
estado paira acima dos interesses sociais, como uma força que não expressa a
predominância de forças outras que lhe controlam. Mas é fundamental insistir
que tal teoria tem uma função colonial maior, a saber, constituir a narrativa do
atraso dos povos colonizados e de sua liberdade frágil, sem garantias
institucionais necessárias.
De toda forma, notem que Locke se serve do princípio da “igualdade
perante a lei” como expressão fundamental da justiça social e da liberdade
institucionalmente assegurada. De fato, não há a noção de “igualdade perante a
lei” entre os ameríndios porque a igualdade não é algo que se diz da relação a um
poder soberano, que não existe, mas que se diz do modelo mutualista de decisões
e deliberações.

Sociedades sem estado, sociedades de liberdade

Nesse ponto, podemos lembrar de algumas elaborações fundamentais de um


antropólogo para quem a análise da liberdade das sociedades sem estado era um
ponto central: Pierre Clastres. Gostaria de lembrar a vocês algumas elaborações
de Clastres, presentes principalmente em seu “A sociedade contra o estado”.
Seu livro é a defesa de que tais sociedades não estavam em alguma forma
de estágio anterior de desenvolvimento social, devido à inexistência do Estado
ou à inexistência de uma lógica econômica de produção do excedente. Na
verdade, essas eram sociedades que se organizavam de forma deliberada contra
a possibilidade de emergência do Estado, como forma de preservação de sua
liberdade. Para elas, a emergência do poder centralizado, da figura do Um, da
cristalização da autoridade em lugares no qual o poder e a força de lei se
encarnam em um ponto, era vista como sua própria destruição.
Isto significava que o espaço da chefia, em tais sociedades, não se
confundia com o lugar do poder. Como diziam os portugueses: “gente sem fé, sem
lei, sem rei”. A tribo não possuía um rei, mas um chefe que não era chefe de
Estado. Ou seja, o chefe não dispunha de nenhuma autoridade, nenhum poder de
coerção, nenhum meio de dar ordem. Como dirá um chefe guerreiro da tribo
abipone:

Os Abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de


acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a
mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem
prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus
companheiros, logo eles me dariam as costas.

Ou seja, a palavra do chefe não tinha força de lei e sua autoridade depende da
boa vontade do grupo, dando ao poder uma certa “fragilidade permanente”. Sua
verdadeira função era procurar, pela palavra e sua força retórica, apaziguar
conflitos entre sujeitos, famílias, linhagens. Ou seja, a função do chefe é
argumentativa. Ele deve regular divergências através das virtudes de sua
palavra. “Mais do que um juiz que sanciona, ele é um árbitro que busca
reconciliar”175.
Esta descrição converge com aquelas que encontramos nos relatos de
viagens de jesuítas do século XVII a respeito dos povos ameríndios. Tais relatos
diziam coisas, em 1642, como:

Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da


liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo
quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo
de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a
autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são
potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de
falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens176.

Não será por outra razão que jesuítas como Gabriel Segard reconhecerão que a
capacidade de argumentação média de um membro Wendats (tribo do Quebec)
era maior do que dos franceses. O que não deveria nos surpreender já que, como
se tratam de povos submetidos a autoridade não-coercitiva, o uso contínuo da
argumentação é traço social trivial. Como disse o padre Lallemant em 1644, a
respeito dos mesmos Wendats do Quebec: “não creio que existam pessoas sobre
a terra mais livres que eles”. Pois se tratava de povo que desconhecia a obrigação
de submissão à autoridade paterna, que não tinham sistemas individualizados de
penas. Um crime era pago não pelo agente, mas por compensações feitas por sua
família, clã ou tribo. E o elemento mais impressionante destes relatos era a
honestidade de reconhecer que tais sociedades funcionavam melhor que as
europeias. Não é difícil imaginar o tipo de desafio que tais afirmações colocavam
para a filosofia política europeia e seu desejo de legitimar o que entendemos pela
superioridade do ocidente.
Ou seja, a colocação de Locke a respeito da insegurança reinante em tais
sociedades dificilmente se sustenta. Ao contrário, vemos sociedades nas quais a
função efetiva do poder em tempos de paz consiste em dirimir conflitos através
do que chamaríamos, entre nós, de “argumentação racional”, o que leva outro
antropólogo, David Graeber, a afirmar que estamos diante de sociedades onde
seus membros são dotados de grande capacidade de argumentação e
questionamento, ou seja, dotados daquilo que chamaríamos, entre nós, de
“capacidade crítica”. É isto o que permite Clastres afirmar:

Encontramo-nos então confrontados com um enorme conjunto de


sociedades nas quais os detentores do poder são de fato destituídos de
poder, onde o político se determina como campo fora de toda coerção e de
toda violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde, em uma
palavra, não se dá uma relação de comando-obediência177.

De onde se segue que não seria evidente que coerção e poder político
estariam vinculados em todo e qualquer lugar. Clastres chega a falar desses
sociedades como “sociedades sem conflitos”, o que coloca uma série de

175 CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, p. 48


176 Rélations jesuites 6, p. 109
177 Idem, p. 27
Clastres tenta afirmar que se tratam de normas sustentadas pela
sociedade inteira, e não por grupos particulares. São normas da própria
sociedade, que todos respeitam, não imposta por ninguém. Isto lhe leva a
afirmação de que:

o ‘poder’ de um pai sobre seus filhos, na sociedade primitiva, ou de um


marido sobre sua mulher ou suas mulheres, se ele tiver várias, nada tem a
ver com aquela relação de poder que digo ser a essência do Estado, da
máquina estatal. O poder de um pai sobre seus filhos nada tem a ver com
o poder de um chefe sobre as pessoas que lhe obedecem, não é a mesma
coisa178.

O mínimo que podemos dizer é que tal proposição é dificilmente sustentável.


Relações de poder visam a perpetuação de modelos de reprodução social. Nesse
sentido, relações de gênero e familiares são absolutamente integradas ao
processo de funcionamento do poder político. Ainda mais porque não admitem
contestação e passam por expressão da totalidade da sociedade até mesmo para
um antropólogo advertido como Clastres. No entanto, como se trata de criar a
visão de sociedades sem conflitos, chega-se a essa definição do caráter não-
político do poder paterno e marital.
De toda forma, há de se reconhecer que Clastres é sensível a um ponto
fundamental, a saber, a amplitude da liberdade política de tais sociedades
demonstra a limitação da liberdade política das sociedades ocidentais.

Guerra e fuga

As exceções a esse modo de exercício do poder eram quase sempre


ligadas à guerra. A preparação e a condução de expedições militares eram as
únicas circunstâncias nas quais o chefe aparecia como aquele que exerce a
autoridade. Por ter a guerra como atividade constante, as sociedades ameríndias
sabem do risco permanente do chefe sair do estreito limite determinado à sua
função. Nesta análise, aparece a figura de sociedades com estruturas políticas
extremamente complexas e inventivas. Estruturas que demonstram a
consciência de tendências imanentes à degradação da vida social sob o império.
Por isto, elas desenvolverão dispositivos para impedir a transcendência do
poder, impedir o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria
legalidade, como um poder soberano exterior aos seus sujeitos.
Pode-se ter a impressão de que tais descrições nos trazem a imagem de
sociedades estáticas que só poderiam sair de sua relação de estabilidade por
alguma forma de intervenção externa. No entanto, temos sociedades assentadas
na luta contínua contra a emergência de um estado que elas pressentem a todo
momento, de uma pressuposição que pode passar ao ato a qualquer momento.
Lembremos, por exemplo, de Clastres falando sobre o desenvolvimento histórico
dos Tupi-Guaranis.

178 Idem, p. 244


Após defender a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do
interior das sociedades originárias ameríndias, Clastres depara-se com o caso
complexo dos Tupi-Guaranis com sua alta taxa de densidade demográfica e seu
processo de concentração do poder político na chefia. Este prenúncio do Estado
produz, no entanto, uma sublevação comandada por profetas-críticos das
tendências concentracionistas, cujos efeitos seriam destruidores do poder do
chefe. Ou seja, Clastres insiste em uma clara contradição a animar tal sociedade
que levará ao discurso de profetas que organizarão “loucas migrações” em
direção à Terra sem Mal, em uma linha de fuga para fora da iminência do Estado.
Palavra virulenta que levava os índios à destruição de uma sociedade em vias de
se tornar um Estado :

Eis uma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível


ascensão da chefia, suscita em si mesma e libera forças capazes, mesmo
ao preço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica da
chefia, de impedir o movimento que poderia levar à transformação dos
chefes em reis portadores de leis179.

Como mostrou de forma magistral Ruy Fausto, essas sociedades são


organizadas por um impossível (a constituição do poder do estado) que as
mobilizam continuamente e que pode emergir a qualquer momento180. Qual o
interesse dessa discussão antropológica para nosso debate sobre a liberdade?
Vemos um modo de liberdade social que parece demonstrar a limitação do
quadro institucional ocidental consolidado exatamente para garantir as
condições institucionais da liberdade. Como se fossemos obrigados a criar,
através das teorias do estado de natureza, a imagem de uma sociedade que não
existe nem nunca existiu, apenas para justificar um “dispositivo colonial” que se
demonstrará inacreditavelmente perene entre nós e para bloquear o impacto de
descentramento que a “descoberta” de tais sociedades pelos europeus poderia
ter em relação a seus próprios modos de vida.

Se as sociedades primitivas são sociedades sem Estado, não é por


incapacidade congênita de atingir a idade adulta que a presença do Estado
marcaria, mas sim pela recusa dessa instituição. Elas ignoram o Estado
porque não o querem, a tribo se mantém na disjunção chefia e poder
porque não quer que o chefe se torne detentor de poder, ela recusa que o
chefe seja chefe. Sociedades da recusa da obediência: tais são as
sociedades primitivas181.

Isto nos lembra como a ausência de estado não é uma falta, não estamos a
ver sociedades na infância do mundo. Estamos diante de processos políticos
complexos que visam impedir que uma pressuposição passe à posição, que uma
possibilidade sempre inscrita se realize por querer preservar uma experiência
social de liberdade. A razão para tanto, ao menos para Clastres, é que a divisão
política engendra a divisão econômica, e não o contrário como sustenta o
marxismo para o qual o estado é um instrumento de classe. Neste sentido, as

179 CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 233.
180 FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política II, p. 197
181 CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violência, p. 154
sociedades ameríndias lutam para impedir a consolidação de divisões sociais que
serão a quebra da igualdade e a marca fundamental do fim da liberdade, pois não
pode haver liberdade lá onde a sociedade é organizada sob a forma da submissão
ao poder de um outro.

O que falta à liberdade ameríndia?

Mas se o primeiro passo do “dispositivo colonial” é afirmar que a estrutura social


dos povos ameríndios era marcada pelo atraso, o segundo consistirá a defender
que sua liberdade não poderia ser a verdadeira autonomia. Haveria algo de
profundamente falho nela, pois ela não poderia ser compreendida como
expressão do livre arbítrio.
Nós vimos, na aula passada, como o livre-arbítrio aparecia marcado pela
experiência teológica da culpabilidade e da queda. Só há livre-arbítrio porque há
a necessidade de explicar a existência do mal e do pecado sem apelar à vontade
divina, mas à vontade humana e sua pretensa incapacidade de se sobrepor à
rebeldia da libido. A auto-legislação própria à autonomia é expressão do
reconhecimento de uma hierarquia que faz da vontade racional, ou seja, esta que
está mais próxima da lei divina (ao menos para Agostinho) a força que domina o
que ainda se vincula aos bens temporários e ao corpo. Neste sentido, não será
estranho encontrar relatos de jesuítas que viveram entre os ameríndios a
afirmar que estávamos diante de uma falsa liberdade:

É, sem dúvida, uma disposição absolutamente contrária ao espírito da fé,


que nos obrigam a nos submeter não apenas nossa vontade, mas também
nosso espírito e todos os sentimentos do homem a uma potência
desconhecida para nossos sentidos, a uma lei que não é terrestre, e que é
inteiramente oposta aos sentimentos e leis da natureza corrompida182.

A colocação é extremamente relevante para nosso debate. Por desconhecer os


preceitos teológicos de uma lei divina que se constrói no distanciamento em
relação aos interesses dos sentidos, na oposição à causalidade da natureza e sua
maneira de afetar nossos corpos, a insubmissão à autoridade nada tem a ver com
a liberdade. Não é possível para um europeu a esta época (talvez apenas Spinoza
faça realmente exceção nesse momento) pensar uma liberdade que não se funde
na negação da corporeidade. A ausência dessa negação aparece como prova da
ausência de livre-arbítrio. E não havendo livre-arbítrio, não pode haver liberdade
pois a vontade está completamente submetida aos ditames da inconstância da
libido e da “natureza corrompida”.
Eduardo Viveiros de Castro tem uma bela explicação para essa forma de
recusar qualquer forma de transcendência em relação à corporeidade. Ele insiste
na existência de um perspectivismo ameríndio, mas um perspectivismo que nada
tem de relativista. Tal perspectivismo está claramente expresso na conhecida
parábola relatada por Lévi-Strauss em Raça e história. Segundo ela, nas Antilhas,
alguns anos após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis criavam
comissões para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes submergiam
prisioneiros brancos para saber se seus corpos eram iguais aos deles.

182
Ou seja, nunca foi questão, para os ameríndios, de duvidar do fato dos
europeus terem uma alma. Nesta cosmopolítica, todo existente, sejam humanos
ou animais, participa da mesma humanidade. Os animais tem almas como nós,
mesmo um europeu pode ter alma. O que diferem são seus corpos, que
estabelecem perspectivas singulares baseadas em sistemas específicos de
afecções. Assim, uma multiplicidade de corpos pressuporá uma multiplicidade de
perspectivas sob a univocidade de uma mesma humanidade. Contrariamente ao
nosso multiculturalismo, aparece pois um peculiar multinaturalismo no qual
vários conceitos de natureza cortam o plano de um mesmo campo da cultura.
Esta univocidade da cultura, tão estranha a nossa sensibilidade atual que
só saberia ver nisto um narcisismo animista, permite, ao contrário, uma
operação generalizada de descentramento. Se a mesma humanidade está
presente nos humano e animais, então nada é humano inequivocamente. Ser
humano é, na verdade, estar constantemente fora de si, ser um anti-Narciso, já
que, como dizia Lévi-Strauss: “nada de humano deve ser estranho ao homem”.
Arqueologia da liberdade
Aula 11

“O homem nasceu para a felicidade e para a liberdade e em todos os lugares ele é


escravo e infeliz”183. A frase é de Robespierre, enunciada em um discurso no dia
10 de maio de 1793. Ela claramente retoma uma das primeiras afirmações do
Contrato Social, de Rousseau: “O homem nasceu livre e em todos os lugares ele
está sob grilhões”184. Tal relação não era um mero acaso: a influência de
Rousseau sobre os revolucionários franceses é conhecida e assumida,
principalmente pelos jacobinos. Saint-Just dirá, por exemplo: “Jean-Jacques
Rousseau era revolucionário”.
Este viés rousseauista da Revolução Francesa não é apenas uma
referência filosófica mais ou menos utilizada para legitimar ações políticas a
partir de um autor que usa o termo “revolução” normalmente de maneira
pejorativa, como alguma forma de degradação a ser evitada. Ela expressa as
consequência práticas de uma modificação estrutural na compreensão dos
horizontes próprios à política que tem em Rousseau um momento decisivo. Este
horizonte tem relações profundas com a generalização do paradigma da
liberdade como autonomia. Ele ainda implica uma filosofia da história que, ao
mesmo tempo, vê o progresso como queda e vê todo retorno à origem como
impossível. No que a experiência será marcada, ao mesmo tempo, por um tempo
de ruptura e por uma suplementaridade em relação a uma origem perdida, mas
que ainda insiste no interior de nossos horizontes de expectativas.
Sobre a generalização do paradigma da liberdade como autonomia,
lembremos inicialmente como ela implica a consciência da instauração de um
sujeito político dotado de soberania e cujo nome será “povo”. Há uma instituição
do povo que, ao menos para uma grande parte da sensibilidade do final do século
XVIII, parece só poder se realizar como autonomia política. Temos aqui a
equação da autonomia como emergência do povo à cena do político em uma
situação de ausência de representação e mediação. A autonomia é aquilo que
permite a imanência do povo ao poder, uma imanência que precisa da
construção do conceito de vontade geral para ganhar realidade. Vejamos então
os passos em direção a tal resultado.
Primeiro, lembremos da centralidade e da radicalidade de uma afirmação
como esta de Rousseau, a respeito da instituição das leis:

Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituição do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral185.

183 ROBESPIERRE, Maximilian; Pour le bonheur et pour la liberté: discours, p. 8


184 ROUSSEAU, Jean-Jacques; Du contrat social, Pleiade vol. III, p. 351
185 idem, p. 381
A radicalidade das afirmações é explícita. Primeiro, notemos como Rousseau
afirma ser um povo o resultado de uma instituição. Ou seja, ele é uma criação,
cria-se um povo através de uma forma de instauração institucional. De certa
forma, é possível dizer que a instituição não é uma emanação do povo. Há uma
invenção política do povo que equivale a uma transformação na própria natureza
de cada indivíduo, a uma alteração da constituição humana e à criação de uma
outra forma de existência.
A emergência do povo é uma criação política. Na verdade, é a criação
política por excelência. Ela faz da sociedade não uma associação de indivíduos,
como gostariam os pensadores liberais, nem um pacto entre soberano e a
população que ele governa. Pois a soberania é um pacto que o povo passa
consigo mesmo, não com outro. A sociedade será um corpo. Para ser mais
preciso, ela será um corpo político. Este corpo será o suplemento possível a
relações perdidas no estado de natureza. Ele é um artifício, por isto só poderá ser
fruto de um tempo de ruptura.
Por isto, como veremos, esta invenção do povo não é resultado da simples
recusa do fato natural devido a uma teoria do progresso e da perfectibilidade
humana. Seu tempo não é o da ruptura linear. Ela é fruto de um suplemento a
uma perda, de um retorno impossível mas cuja impossibilidade, longe de
paralisar a ação, é condição para a criação de uma ação política possível.
Assombrado pelo contato com a liberdade ameríndia, o pensamento de Rousseau
produzirá não exatamente alguma forma de “retorno” ao que os europeus
compreendiam como formas arcaicas de vida social, mas uma aceleração em
direção à ruptura. Para tanto, o estado de natureza deverá aparecer como
anterior até mesmo àquilo que encontraríamos na América, como inacessível,
mas podendo ser suplementado através da invenção da autonomia política.
Assim, para entender a estrutura de tal tempo, e por consequência
entender como a noção moderna de autonomia encontrará em Rousseau uma de
suas principais fontes, precisamos voltar a sua teoria do estado de natureza e do
processo de alienação vinculado à emergência da socialidade.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem com os homens que temos


diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a
seus cuidados com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela
é ciumenta deste direito186.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo


Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de
natureza como estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para
sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da
vida. De certa maneira, não seria errado dizer que a experiência da falta é uma
criação da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos
animais e aos humanos o espaço potencial de realização de seus desejos e
necessidades, então a falta não pode ser uma condição contínua de um desejo
que está sempre a procura de novos objetos.

186ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La


Pléiade, p. 139
Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descrição do estado de
natureza, e não será por outra razão que Kant chamará Rousseau de “Diógenes
sutil”. Pois, como vimos, eram os cínicos que definiam a liberdade como uma
liberação em relação às necessidades socialmente produzidas, a liberdade como
autarkeia, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de
artifícios e engenhos para encontrar a satisfação. Retornar a uma certa condição
de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realização da liberdade. Assim:

Não é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um


grande obstáculo à conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação
de todas essas inutilidades que cremos necessárias. Se eles não tem a pele
aveludada, não tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se destas
das bestas que venceram187.

De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e


estes que fazem parte da vida social, um traço que explica em larga medida como
é possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se
o humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem
que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a
propriedade. Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos
vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas
propriedades. Os humanos são sós, seus encontros são intermitentes, suas
preocupações se vinculam a auto-conservação em um espaço natural vasto no
interior do qual eles estão em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem
contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente
como nômades solitários, mesmo as sociedades ameríndias não seriam mais o
estado de natureza.
Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de
indivíduos em relação de concorrência e violência, era porque os desejos eram
compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro,
vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma
certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade
mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em
rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na
rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo próprio ao desejo se
traduz em rivalidade e não em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de
relação às coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relações de
propriedade. Não há uma história da emergência das relações de propriedade em
Hobbes porque elas são naturais, elas estão lá desde o início da existência
histórica dos seres humanos.
Não há esta dimensão originariamente mimética do desejo em Rousseau,
assim como não há uma naturalidade das relações de propriedade. Os humanos
não conservam, eles consomem. Eles não se territorializam, mas estão em
nomadismo. Estes indivíduos isolados não conhecem a desigualdade, a não ser
esta produzida pela diferença de idade, de saúde, de força do corpo e de
qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”.
Mas esta desigualdade física não se traduz em “desigualdade política ou moral”.
187 Idem, p. 140
No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que
os vinculam, a saber, a piedade ou a compaixão. Esta piedade é, principalmente, a
impossibilidade de sustentar uma posição de indiferença em relação ao
sofrimento do outro. Ela não é uma forma de prática cooperativa, mas regime de
implicação afetiva a partir da identificação do sofrimento, mesmo que seja uma
implicação intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de
natureza não são indiferentes a sorte de outros humanos.

História da queda

Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do


estado de natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se
serve de dois fenômenos para descrever a emergência da vida social e da
corrupção desta relação imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos
empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus próprios instintos. No entanto, se
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criação e
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na
qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os
séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao
cabo em tirano de si mesmo e da natureza188.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história
da civilização como progresso da negação do dado natural”189. O primeiro destes
temas consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de
conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do
mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condição originária que
seria o espaço de afirmação da emergência do sentido. O advento da vida social é
algo como uma queda:

Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar suas invenções


aos dons da natureza. E desde então a história universal, embaraçada pelo
peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho,
adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os
olhos com horror para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e
nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele próprio seja
poupado pela doença universal190.

Isto faz da história da técnica a história do afastamento do sentido, uma história


da alienação no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro,
estar preso ao olhar de um outro.

188 Idem, p. 142


189 STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
190 Idem, p. 23
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do
estado de natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o
trabalho cooperativo não é fonte de emancipação, mas uma das principais fontes
de alienação. Pois o trabalho cooperativo é expressão de relações de
dependência e com tais relações de dependência aparecem a necessidade do
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser


realizadas por um e a artes que não necessitavam do concurso de várias
mãos eles viveram livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser
por sua própria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de
um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um ter
provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho se tornou necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão
germinar e crescer como musgos191.

A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na


cooperação dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta
prévia contra situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra
a imanência à natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade
imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relações de trabalho e produção
se funda em tendências imanentes de exploração e dominação. Pois, com as
relações de produção, não estamos apenas a falar do advento da propriedade,
mas principalmente do reconhecimento da importância da sanção do outro, a
necessidade de reconhecimento do outro como condição para a justificação de
minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do advento de um ser-para-
outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda
de si, já que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da
origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida
social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a
estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles
se tornam então: “enganadores e artificiais”192 ao submeterem seus desejos a
demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência
do desejo de reconhecimento:

Nós nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma


grande árvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer,
transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupação dos homens e
mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os
outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pública teve um preço.
Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais

191 ROUSSEAU, Idem, p. 171


192 Idem, p.173
eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo
para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direção ao
vício193.

Fica claro assim como Rousseau não distingue demandas de


reconhecimento e processos de alienação. Pois o estabelecimento de relações
sociais não é compreendido como constituição de um campo móvel de
incorporação das singularidades. As relações sociais são solidárias de dinâmicas
de alienação e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à
normatividade natural, se isto fosse possível. As modificações implicativas
produzidas pelas demandas de reconhecimento são sempre compreendidas por
Rousseau como alienação na dimensão da aparência, o olhar do outro não é a
confirmação de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois não é através do
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensão da experiência estética e,
em especial, da expressão musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Rousseau aceita
que a célula elementar da vida social são os indivíduos, no seu caso, indivíduos
em relação de imanência à natureza. Ou seja, temos primeiro indivíduos isolados
e, em um segundo momento, o artifício da criação de relações. Neste sentido, a
liberdade natural implica certo modo de relação a si que podemos descrever
como “relações de auto-pertencimento”, relações nas quais afirmamos o fato de
se pertencer apenas a si mesmo, o que a vida social não pode realizar. No
máximo, a vida social pode construir uma forma compensatória de autonomia
baseada na emergência de uma vontade geral. É desta forma compensatória que
fala O contrato social.

Um corpo político

Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um corpo que não tem
a configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se concentra, de maneira
indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há uma soberania a animar
o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma soberania popular que tem no
espaço da assembleia popular sua expressão máxima. Esta assembleia é
expressão de um princípio de igualdade moral ou política fundamental. Desta
forma, Rousseau espera poder instaurar uma totalidade social baseada na
igualdade como virtude que modera os apetites e nos afasta do caráter egoísta
dos interesses. Como vimos, este corpo político é uma espécie de suplemento a
um outro corpo perdido, a saber, a natureza como uma espécie de corpo nômade
no qual os indivíduos podiam circular em imanência.
Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não
é a somatória de vontades particulares, ou seja, um vontade de todos. Ela é a
expressão de um desejo de liberdade e de igualdade baseado, inicialmente, na
ideia de auto-legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral
permite a constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de
defender e proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, mas
principalmente defender-se do próprio poder, defender-se dos efeitos de
193 Idem, p. 169
usurpação do poder quando alienamos a soberania popular a um outro, seja ele
um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto, Rousseau dirá que o
povo não obedece a um soberano, ele não passa alguma espécie de contrato com
ele. Na verdade, o povo se manifesta através do exercício da soberania. Ele pode
derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se reúne em assembleia, ele não
tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe representa o povo, pois a
soberania não é algo que possa ser representado sem ser perdido. Neste sentido,
deputados e príncipes são apenas “comissários” do povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o
homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
e a propriedade de tudo o que ele possui”194. Notemos a estrutura da retórica de
Rousseau. Sabendo que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis
soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau quer realizar uma liberdade que
ainda signifique pertencimento de si apelando a uma lógica própria às
individualidades proprietárias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau:

No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada


como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele
apreendeu a vontade geral não como o que a vontade tem de racional em
si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade
singular enquanto consciente, a reunião dos indivíduos singulares no
Estado se transforma em um contrato195.

Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noção de vontade


individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, não advém exatamente
vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associação de diversas vontades que
não desejam um objeto universal, mas que desejam as condições para a
afirmação de seus sistemas particulares de interesses196. De fato, como nos
lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no
momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”.
Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicação que nasce
no nível da sua independência natural. Sua entrada na união civil é feita
unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condições de
estabelecimento do contrato social não são recuperações da natureza reprimida,
mas regulação da vida social a partir da realidade de uma alienação de base.
Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade
194 ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
195 Idem,
196 Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau
com freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas
avalie, em compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de
otário?” In: A filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos
entrar no contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que
compõem a “pessoa pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas
continuam portanto a desfrutar um direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode
infligir aos súditos nenhuma que seja inútil à comunidade” (idem, p. 230).
moral, de auto-legislação, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar
para si mesmo sua própria lei.
No entanto, há de se conceder a Rousseau a crença em uma espécie de
revolução. A instauração da vontade geral é fruto do desejo de ser parte de um
corpo político, mas este desejo não é fruto apenas do medo da despossessão,
como podemos encontrar em Hobbes. Ele não é fruto simplesmente da procura
por segurança, mesmo que Rousseau mobilize tais argumentos por consciência
de estar a falar com indivíduos alienados que precisarão ser também tocados em
seus interesses individuais a fim de assumir a transformação de seus interesses
individuais em vontade geral. Na verdade, o desejo de ser um corpo político é,
acima de tudo, fruto do desejo de igualdade que pulsa como natureza primeira
do humano. Em estado de natureza, os humanos são iguais, sua diferença é
meramente física e, por isto, profundamente limitada. Por serem iguais, eles não
se submetem uns aos outro, eles são livres. O corpo político é o suplemento que
permite a produção de uma igualdade social que ressoa a igualdade natural.
“Querem dar ao estado consistência?”, dirá Rousseau “aproximem os graus
extremos o máximo possível: que não sofram nem de pessoas opulentas nem de
mendigos”197.
Este desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade.
Mas só ele cria a verdadeira autonomia enquanto auto-legislação. Daí porque:
“melhor o estado é constituído, mais as questões públicas sobrepõem-se às
privadas no espírito dos homens”198. Pois ele nos abre a estrutura de motivações
que não são a expressão de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da
concorrência e do medo. Em Rousseau, tal vontade autônoma não é expressão de
um conflito com a voz da natureza em nós, como vimos em Agostinho, mas é
condição para que a cristalização de uma falsa natureza seja deposta.
Tal vontade será o predicado fundador da humanidade do humano, isto a
ponto dela ser inalienável. Por isto, não é possível representar a vontade, não há
governo a partir da representação. Quando um povo se dá representantes ele
não é mais livre, ele deixa de ser um povo:

A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não
pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a
vontade não se representa: ela é a mesma ou ela é outra, não há meio
termo199.

Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos
para a imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a
metáfora do corpo político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu”
no sentido que posso dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu.
Um corpo não se submete à minha vontade como esta cadeira se submete
enquanto objeto. Mesmo sendo espaço da minha subjetividade, um corpo sempre
me faz me confrontar com o que não controlo e com o que me constitui sem me
ser imediatamente próprio. No entanto, esta exterioridade do corpo ao sistema
de afirmações individuais é a instituição da aderência a uma generalidade que
constitui outra forma de existência. Existir como um corpo é sempre existir como

197 ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392


198 ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
199 Idem, p. 429
mais do que mim mesmo.

Música e reconhecimento

Mas voltemos a afirmação que abriu esta aula:

Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em


estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar
cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte
de um todo maior do qual os indivíduos receberão de certa maneira sua
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral200.

O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda
terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos
nos perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança
da própria natureza humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A
vida política parece não poder dar conta desta nostalgia. No máximo, ela
transmuta a experiência de auto-pertencimento própria ao estado de natureza
em desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de autonomia. Por
isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela
experiência da individualidade possessiva.
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. A política procura uma linguagem da pura
presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a
encontra na música e no uso da música como paradigma para a reinstauração da
ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada
ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica
derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma
polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma
definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação
a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação
que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no
canto.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
que não se refere aos modos de imitação no interior da vida social, mas no
vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação
entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos.
Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de
veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :

200 Idem, p. 381


Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo
durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas
-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum animal ou
pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o uníssono
ou outra música que a melodia ; que as línguas orientais, tão sonoras, tão
musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes povos voluptosos
e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem ela suas músicas
tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha efeitos tão
fracos ; que, enfim, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos
duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do
que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta
grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras da arte ;
quando, digo eu, levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não
desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a
respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis as
verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 201.

A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos
da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda
fala) como fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da
fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um
fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
doador de sentido, como transparência e proximidade.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um
espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da
disseminação da representação devido ao ideal estético de clareza. Esse
naturalismo musical, que submete a música ao “prazer moral da imitação”202
enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por vir (ou seja, há
uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal como houvera
antes em Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente de efeitos
objetivamente determinados.
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música
como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e
recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”203. Uma
língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A
primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e

201 ROUSSEAU, Dictionnaire de musique


202 ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
203 Idem, Essai sur l’origine des langues,
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as
necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras
palavras”204. Ou seja, a fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma
fala muda, mais próxima da pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os
coloca em relação de concorrência e de defesa. Mas:

a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas,


mas no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição
que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da
humanidade, a ordem que seu nascimento tinha contribuído para
apagar”205.

As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a
um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é
aquela que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela
mais próxima do canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau,
não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o
ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses
distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos
interesses e das estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será
o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das
paixões. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de
expressão, fazer dela ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero
espaço de afirmação de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros
sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem
contra sua degradação, uma procura da linguagem em parar um processo
descrito por Rousseau da seguinte forma:

A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem,


que as luzem se estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais
ajustada e menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela
não fala mais ao coração, mas à razão. Por isto, o acento se apaga, a
articulação se estende, a língua se torna mais exata, mais clara, mas mais
surda e fria206.

A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a


política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação.
Neste sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeição é a
eliminação da força expressiva da linguagem. Pois o progresso natural das
“línguas letradas” consiste em perder a força a fim de ganhar clareza, o que só
pode significar para Rousseau uma forma de sujeição.

204 ROUSEEAU; Idem, p. 380


205 PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
206 ROUSSEAU; Idem, p. 384
Arqueologia da liberdade
Aula 12

Na aula de hoje, iremos analisar a consolidação da autonomia moral através de Kant.


O papel de Kant é fundamental nessa consolidação, já que será ele o responsável por
dar à forma da liberdade como auto-legislação a figura de uma disposição moral
secularizada, cortando as raízes que ainda permaneciam da matriz teológica da
autonomia. Quase todos os temas desta matriz teológica da autonomia estão presentes
em Kant, a saber, a clivagem subjetiva entre vontade e desejo, a tópica do amor à Lei
que determina minha destinação moral superior, o caráter sublime da Lei moral. No
entanto, modifica-se a exterioridade da Lei, que não está mais fundada no horizonte
da vontade divina, mas na capacidade de auto-determinação do ser humano.
Tal auto-determinação se exerce através de um modelo de liberdade expresso
através do dever. A centralidade da noção de dever como fundamento para a
liberdade, e não como limitação para a liberdade é uma operação moderna
fundamental e expressa um dos eixos maiores do conceito de autonomia. Ela resulta
da afirmação de que liberdade e obrigações vinculantes não são opostos, mas a
mesma coisa. Lei auto-imposta e liberdade seriam a mesma coisa, o que só pode
mesmo ser compreendido quando retornamos à matriz teológica da Lei como forma
de liberação em relação à libido. No entanto, este tema se modifica em Kant. Não se
tratará diretamente da luta contra a heteronomia imposta pela libido, embora o tema
esteja presente. Trata-se da recusa em aceitar uma perspectiva utilitarista própria à
emergente sociedade dos indivíduos.
De fato, todo organismo age operando escolhas a partir de normatividades
capazes de definir valores. No entanto, apenas os seres humanos conheceriam
deveres. Isto se explica por haver um modelo específico de funcionamento da norma
próprio à maneira moderna de definir o que é o dever. Primeiramente, na filosofia
moral kantiana, o dever é indissociável de uma divisão. Apoiando-se no dever, posso
tomar distância de minhas próprias ações, descrevendo-as como se estivesse diante de
um objeto na terceira pessoa. Posso operar uma divisão subjetiva na qual sou uma
espécie de juiz de mim mesmo, dividindo-me entre uma consciência que julga e uma
consciência que é julgada. Divisão que, por sua vez, se apoia no uso extensivo de
vocabulário jurídico, como nos mostra a metáfora da consciência moral como um
tribunal.
Mas a partir de quais valores opera esta consciência que julga tendo como base
a noção de dever? Eis um ponto importante: a vontade que ama o dever é uma
vontade que quer uma determinada forma de julgar. Assim, se todo organismo age a
partir de normatividades capazes de definir valores, só os seres humanos poderiam
agir tendo em vista a realização de procedimentos formais que não são encontrados na
natureza. Tal caracterização do dever a partir de um conjunto limitado de
procedimentos formais é uma das grandes peculiaridades de certa tradição
hegemônica da filosofia moral moderna, tradição deontológica que tem Kant o nome
principal.
Chamemos de “estratégia procedural” tal modelo de definição do dever, pois
ela se funda na determinação de um conjunto limitado de procedimentos formais que,
por si só, seriam capazes de definir o que devo ou não fazer. Tal estratégia procedural
tinha duas grandes finalidades. Primeiro, ela visava fornecer as bases práticas para a
emancipação da capacidade reflexiva do indivíduo moderno em relação à
normatividade dos laços comunitaristas. Há assim um problema político na base dessa
noção moral. Pois, contra certas tendências que definiam o dever a partir da
necessidade de internalizar hábitos, crenças e autoridades presentes nos costumes
legados pela tradição, ou seja, que viam o dever como simples modo de adesão social,
essa estratégia procedural fornecia um critério para o questionamento do caráter
limitado de práticas comunitárias. Eu julgo não apenas como membro de uma
comunidade com seus sistemas de crenças, mas como membro de uma espécie de
comunidade universal virtual na qual os seres humanos estariam ligados pela razão.
Um “reino dos fins”, como dirá Kant.
A princípio, isto parecia garantir as bases para uma crítica ao relativismo
presente em afirmações segundo as quais meu dever simplesmente estaria referido
àquilo que devo fazer para reproduzir formas de vida da qual faço parte. Pois, por trás
do respeito a laços comunitários, pode-se esconder a reprodução silenciosa de práticas
de violência social e de autoridade não legítima. Por isto, podemos dizer que tal
estratégia procedural é a expressão de uma época que já não confia inteiramente nos
hábitos e em princípios tradicionais de autoridade legados pelo passado. Época que
deve retirar do próprio presente o critério do que é válido e merece meu assentimento.
Ou seja, época assombrada por aquilo que filósofos como Jürgen Habermas chamam
de “problema de auto-certificação”.
Kant havia estabelecido três procedimentos formais para a definição do dever.
Primeiro, uma ação que é a realização do dever é universalizável, ou seja, ela é válida
em toda e qualquer situação. Por isto, ela ignoraria espaço e tempo para afirmar sua
necessidade para além de todo e qualquer contexto. Juízos universais valem sem
exceção e tem, com isto, a força de explodir contextos. Segundo, ela deveria ser
incondicional, isto no sentido de não ser condicionada por alguma finalidade outra.
Por exemplo, se deixo de contar mentiras não por consciência do dever moral, mas
por medo de ser descoberto, ou seja, se minha ação é condicionada por outro fim que
não o amor pelo dever, então ela não poderia ser moral. Por fim, sendo incondicional,
a ação que é realização do dever será também necessariamente categórica, isto no
sentido de ser enunciada de forma absoluta, de não poder ser realizada de outra forma.
Deste modo, se quiser saber o que devo fazer, preciso perguntar se minha ação pode
ser universalizável sem contradição, se ela é incondicional e categórica.
Desta forma, Kant produz uma estratégia radicalmente anti-aristotélica, na
medida em que não espera fundar a normatividade moral em práticas sociais capazes
de definir, ao mesmo tempo, virtudes privadas e sociais. A estratégia procedural é
constituída como consequência de um princípio já presente em Rousseau, a saber, a
medida da correção deve ser procurada na pressão em direção a um vínculo social que
ainda não existe. A autonomia aparece mais uma vez como pressão em direção a
processos de emergência de um corpo social que coloca em questão os vínculos
sociais tais como eles se encontram atualmente.
Neste sentido, se a primeira finalidade da estratégia procedural era garantir as
condições de possibilidade para a emancipação dos julgamentos em relação aos
limites impostos à reflexão por práticas comunitaristas, a segunda, por sua vez, será a
peça central para um processo de constituição de si, de trabalho sobre si que Kant
descreve como “maioridade”. Uma maioridade que, como compreendeu Foucault,
equivale: “à modificação da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso
da razão”207. Neste modificação, o uso da razão se sobrepõe a toda forma de
obediência exterior, a autoridade é dada por uma lei que expressa minha própria
essência e vontade. Isto demonstra como a questão fundamental aqui não é
simplesmente: “O que devo fazer?”, mas “Como devo ser?” ou ainda “Que tipo de
207
FOUCAULT, Qu’est-ce que les Lumières?, In: Dits et écrits II, p. 1383
transformação de si procuro realizar?” Pois, ao instaurar uma dimensão de “dever ser”
inauguro um processo no qual a vontade se transmuta em uma força normativa ideal.
Como dirá Foucault comentando Kant: “Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal que
se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma
elaboração complexa e dura”208. Elaboração esta feita através da afirmação de nossa
autonomia.
Mas notemos os paradoxos e desafios decorrentes da articulação entre nomos e
autos, entre lei e eu pressuposta pela compreensão da autonomia como a capacidade
de dar para si mesmo sua própria lei, de ser o legislador de si mesmo. Pois, no interior
das discussões sobre autonomia, a relação entre nomos e autos, ou ainda, entre nomos
e ipse deveria ser pensada como uma profunda relação de auto-pertencimento.
Relação esta que permite a sujeitos reconhecerem e se reconhecerem em um campo
de normas cuja determinação imanente seria a expressão imediata de sua própria
liberdade. Daí porque alguém como Kant falará, na aurora das discussões modernas
sobre autonomia, de “causalidade pela liberdade” (Kausalität durch Freiheit), de
relação não de submissão, mas de “amor” à lei.
Ou seja, a relação entre lei e ipseidade no interior da autonomia não poderia
em hipótese alguma ser pensada como uma relação exterior, como se tratasse da
internalização de uma causalidade externa. Como disse anteriormente, é desta forma
que a matriz teológica da autonomia pode ser relativizada. Pois estaríamos diante de
uma relação de expressão pensada, neste caso, como identidade imanente. Relação na
qual a realização da liberdade não entra em conflito com o caráter vinculante do que
se realiza sob a forma de normas que visam dar atualidade à humanidade enquanto
princípio de universalização. É devido à centralidade de tal operação de expressão que
podemos afirmar que liberdade como autonomia não consistiria apenas em se afirmar
para além da causalidade da natureza e das disposições mecanicistas que
aparentemente submeteriam tudo o que é objeto, tudo o que é coisa. Liberdade como
autonomia seria estar em possessão de si mesmo, em possessão de meus atos e de
minhas razões para agir. Possessão esta que se realiza em uma relação imanente de
auto-pertencimento.
Notemos como tal noção de liberdade como auto-pertencimento será
preservada até mesmo após deslocamentos produzidos no interior do horizonte de
compreensão da estrutura da autonomia. Ou seja, ela ainda será preservada mesmo
quando vermos a insistência em pensar a realização da autonomia através da
implicação não exatamente com leis, mas com práticas sociais, em uma chave que
nos remeteria inicialmente a Hegel209. Tais práticas, expressas em potencialidades
racionais próprias a formas de vida que são também nossas, vinculariam a realização
da autonomia à apropriação reflexiva do processo histórico que as produziu (ou ainda,
que de alguma forma está em vias de as constituir). Apropriação reflexiva que, desta
forma, seria auto-reflexão de uma concepção não-mentalista de sujeito que se
confunde com a experiência histórica de afirmação de práticas sociais nas quais os
participantes não se veem mais como objetos de coação ou de sujeição. Mas note-se
que, neste modelo, precisamos admitir que as práticas sociais que constituem nossa
forma de vida são racionais e universalizáveis. Ou, e esta me parece a interpretação
correta, que há uma potencialidade racional no interior de nossas práticas sociais,

208idem, p. 1389
209
Ver HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. A este
respeito, ver ainda PIPPIN, Robert; Hegel practical philosophy: rational agency and ethical life,
Cambridge University Press, 2008 e HONNETH, Axel; Die zerrissene Welt des Soziale: Sozial-
philosophische Aufsatze, Frankfurt: Suhrkamp, 1990
mesmo que tal potencialidade ainda não tenha se realizado. Assim, a universalidade
não vai para as práticas atualmente em operação, mas para a disposição crítica que
força o presente em direção à sua transformação.

O gozo do dever

Mas, aqui, vale a pena colocar uma pergunta fundamental, a saber, de onde
podem vir as motivações subjetivas que me fazem aquiescer a um sistema de conduta
fundamentado em tal clivagem subjetiva? De onde vem a satisfação com tal liberdade
que faz com que o auto-pertencimento só possa ser afirmado através de certa
clivagem, auto-negação e transformação de si? Se quisermos ser mais precisos, em
uma figura do auto-pertencimento como crítica de si. Pois este auto-pertencimento
não é afirmação de relações imanentes a si. Lembremos mais uma vez, ele é um
trabalho. Se recusarmos argumentos baseados na simples coerção ou no medo de ser
“destruído” pela procura em realizar o desejo, por que sujeitos adeririam a tal modelo
de moralidade no qual preciso, a todo momento, lutar contra meus próprios impulsos,
já que os motivos teológicos não podem ser utilizados neste horizonte? Se não
tivermos medo de pecar por certo anacronismo, há de se perguntar aqui sobre a
“economia libidinal” do dever.
Uma maneira de responder tais perguntas passa pela defesa de que sujeitos não
determinam a totalidade de suas ações através do cálculo do prazer e da satisfação
própria ao bem-estar. Neste sentido, é correto dizer que, para Kant, a vontade
autônoma é vontade que se coloca para além do princípio do prazer, embora não se
trate aqui de elevar a negação do prazer a critério de moralidade de nossas ações. Na
verdade, seria mais correto afirmar que a vontade autônoma é aquela que se afirma
em uma dimensão de indiferença em relação às exigências do prazer.
No entanto, uma afirmação desta natureza tem consequências importantes, já
que ela leva Kant a dissociar a relação, até então necessária, entre ação moral e
felicidade. Pois, ao menos para Kant: “aquilo em que cada um costuma colocar sua
felicidade tem a ver com o seu sentimento particular de prazer e desprazer e, até num
mesmo sujeito, com a carência diversa de mudanças desse sentimento”210. Ou seja,
um dos impactos fundamentais do advento da individualidade moderna seria a
conjugação da felicidade no particular, já que ela estaria profundamente ligada ao
amor próprio e às exigências egoístas do Eu. Cada um procura alcançar e definir sua
felicidade à sua maneira, levando em conta as experiências contingentes de prazer e
desprazer que teve, experiências que mudam no sujeito através do tempo.
Devido a tal particularismo, Kant não pode admitir que ela apareça como a
aspiração de toda ação moral, como era o caso, por exemplo, em Aristóteles, quando
este podia afirmar que: “a felicidade (eudaimonía) é a atividade conforme a
excelência”211. Ou seja, atividade para a qual convergem todos os que procuram a
excelência que o ser humano pode alcançar como animal racional. Alguns filósofos
contemporâneos, como Alasdair MacIntyre, criticarão Kant por ele pretensamente não
compreender que a obediência a uma máxima moral só se justificaria se esta mostrar
sua capacidade em realizar a felicidade de seres racionais212.
No entanto, é bem provável que Kant seja guiado aqui por uma importante
intuição: com o advento da individualidade moderna, a felicidade advém um conceito

210
KANT, Crítica da razão prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 43
211
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Edunb, 1992, 1099a
212
MACINTYRE, Alasdair. Depois das virtudes. 2a. edição. Trad. Jussara Simão. Revisão de Hélder
Buenos Aires de Carvalho. Bauru: EDUSC.
problemático. Ligada de maneira constitutiva ao prazer, ela será vista como uma
experiência intermitente. Como os animais, só conhecemos contentamentos por
contraste. Pensando nisto, Kant dirá que é necessário que todo contentamento seja
precedido de uma dor, como um jogo no qual se alternam constantemente medo e
esperança. O domínio da procura da felicidade é, por isto, o domínio da instabilidade.
Por outro lado, conjugada no particular, a felicidade não é um ponto natural de
concórdia, mas fonte de uma experiência social de discórdia. Não apenas devido à
pluralidade de visões que ela comporta, mas também porque, como dirá Kant, nosso
prazer cresce ao compararmos com a dor do outro, assim como nosso sofrimento
diminui ao compararmos ao sofrimento semelhante ou maior do outro. Se aceitarmos
tais colocações de Kant, precisaremos determinar, para além da procura da felicidade,
uma outra forma de contentamento capaz de servir como motivação para a ação. É
neste ponto que poderemos encontrar um certo gozo ligado ao amor pelo dever.
Uma maneira de introduzir tal questão passa pela recuperação do uso kantiano
da distinção entre duas formas de falar “o bem” em alemão: das Gute (que Kant usa
para descrever uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao
bem-estar do sujeito). Já podemos imaginar que os objetos ligados a das Wohl e, por
consequência, ao prazer e ao desprazer serão todos empíricos, pois: "não se pode
conhecer a priori de nenhuma representação de qualquer objeto, seja ela qual for, se
ela se vinculará ao prazer ou desprazer ou se será indiferente a ele”213. O sujeito não
pode saber a priori se uma representação de objeto será vinculada ao prazer ou à dor
porque tal saber depende do sentimento empírico do agradável e do desagradável. E
não há sentimento que possa ser deduzido a priori (exceção feita ao respeito -
Achtung) já que, do ponto de vista do entendimento, os objetos capazes de produzir
satisfação são indiferentes. Logo, a faculdade de desejar é determinada pela
capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à patologia das experiências
empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais. Isto permite a Kant afirmar
que não há universal no interior do campo dos objetos do desejo, nem todos desejam
as mesmas coisas, já que aqui cada um segue seu próprio sentimento de bem-estar e
os princípios narcísicos ditados pelo amor de si.
Tal purificação da vontade através da rejeição radical da série de objetos
patológicos nos levaria, no entanto, em direção a um bem para além do sentimento
utilitário de prazer. Esse bem, que Kant chamará de das Gute é, na verdade, "apenas a
maneira do agir (...) e não uma coisa que poderia ser assim chamada"214. Quer dizer, a
vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica para
a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade
livre.
E de qual forma trata-se aqui? Nós a encontramos no imperativo categórico :
"Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio
de uma legislação universal". Estamos aqui diante de uma pura forma vazia e
universalizante, forma que não diz nada sobre as ações específicas legítimas, sobre
quais regras devo seguir, já que ela não enuncia regra alguma. "A lei", diz Kant, "não
pode especificar precisamente de que maneira alguém deve agir e em que medida
deve ser realizada a ação visando o fim que é ao mesmo tempo dever"215. O que não
invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento próprio à vontade
livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral.

213
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 37
214
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 60
215
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 233
Desta maneira, Kant pode traçar um horizonte regulador de reconciliação
através da determinação perfeita da vontade pela Lei. Horizonte que, mesmo não
alcançável por um ser clivado como nós, deve guiar nossas ações. Horizonte no qual a
vontade aparece como Logos puro. Das Gute se confunde aqui com o amor pela Lei, o
que permite a Kant reintroduzir o conceito aristotélico de Soberano Bem enquanto
síntese entre a virtude e a felicidade, abrindo no entanto o espaço para uma importante
mudança qualitativa no contentamento produzido por tal síntese. Pois ela produziria
um: "agradável gozo da vida (Lebensgenuss) e que, no entanto, é puramente moral"216
. Desta forma, um gozo próprio ao contentamento de si (Selbstzufriedenheit), distinto
da felicidade, pois vindo do sentimento de respeito à Lei, aparece no horizonte
regulador do Soberano Bem. Guardemos esta fórmula: a conformação perfeita da
vontade à Lei, a realização da vontade como dever promete um gozo para além do
prazer. É ele que nos fornece a “economia libidinal” da autonomia.
Entre a culpa e o sublime

Se nos deslocarmos à Crítica da faculdade de julgar, encontraremos um


paralelo que nos fornece indicações importantes a respeito deste gozo produzido pela
conformação perfeita da vontade à Lei moral. Tal paralelo aproxima a autonomia
moral e o sentimento estético do sublime.
Uma das características mais marcantes da estética moderna é o movimento
histórico de dissociação paulatina entre o belo e o sublime, isto a fim de, entre outras
coisas, descrever duas modalidades distintas de sentimentos produzidos pela
contemplação das formas. Na Crítica da faculdade de julgar, Kant parte desta
distinção entre belo e sublime, vendo no primeiro aquilo que concerne à harmonia e
equilíbrio das formas do objeto e que produz um prazer sensível ligado ao livre jogo
da imaginação. Já o sublime sempre indicaria a dimensão do ilimitado, do limite à
representação e, por isto, produziria um prazer negativo ligado à violência contra a
imaginação. Kant chega a falar do sublime como o que constitui um abismo no qual a
imaginação teme se perder.
Duas determinações do sublime são fornecidas por Kant: o sublime
matemático e o sublime dinâmico. O primeiro nomeia o que é absolutamente grande,
isto no sentido de absolutamente desmedido. Daí a afirmação conhecida : “é sublime
aquilo que, do simples fato de o pensarmos, demonstrar um poder (Vermögen) do
espírito que ultrapassa toda medida de sentido”. Kant indica como exemplo o
embaraço daquele que entra na Basílica de São Pedro, em Roma. Nestes casos, se a
violência contra a imaginação produz desprazer, ele é compensado pelo prazer de
descobrir toda medida da sensibilidade inadequada às ideias da razão.
Já o sublime dinâmico estaria ligado à manifestação da força descomunal da
natureza. Uma força que só é sublime se contemplada em situação de segurança. Pois
é sublime esta capacidade de pôr-se diante do perigo, do caráter destrutivo de uma
força, a fim de revelar nossa destinação superior. Diante da força descomunal da
natureza, tenho consciência da finitude de minha resistência física, mas contemplando
tal força como um espetáculo distante venço meus impulsos imediatos de auto-
conservação, o que me abre à descoberta do prazer de não me confundir
completamente com eles. Por isto, Kant dirá : “sublime é o que compraz através da
sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos”.
Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant,
podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à
descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de

216 KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 485


nossa dissociação entre existência física e personalidade. Desta forma, através do
sublime, encontramos um estado no qual os sentimentos de dor e alegria convergem
para o mesmo objeto. Entusiasmamo-nos com o temível porque podemos querer o que
os impulsos repudiam. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se harmonizam. No
sublime, elas encontram seu ponto de desregramento.
Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o
sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o
sublime se assenta evidencia a existência de algo em nós que coloca entre parênteses
nosso desejo de auto-conservação e quebra a capacidade de apreensão da imaginação.
Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na
disposição humana ao sentimento moral, na disposição em acolher o que resiste aos
interesses dos sentidos. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de
maneira desinteressada, o sublime nos prepara a estimar aquilo que vai contra nosso
interesse sensível.
Tal discussão sobre as relações entre autonomia moral e sentimento do
sublime servem para mostrar uma dimensão importante da economia libidinal do
dever. Normalmente, devido à nossa sensibilidade contemporânea, dizemos que o
dever assenta-se sobre um sentimento de culpa que, em si, já é motivo de gozo. Não
há dever sem culpa e a consciência da culpabilidade sempre foi uma maneira
patológica de demanda de amor. Pois a experiência da culpa é indissociável do
sentimento de ser virtualmente observado por alguém a quem reconhecemos
autoridade legítima, a quem esperamos uma forma de amparo por nos fornecer uma
norma capaz de explicar o que devemos fazer para sermos reconhecidos como
sujeitos dotados de dignidade. Saber-se culpado é, assim, uma forma de nos
certificarmos que a Lei é para nós, que temos um lugar assegurado diante da porta da
Lei.
Pensando nisto, o psicanalista Sigmund Freud chegou a explorar a maneira
que uma modalidade de sofrimento psíquico, como a neurose obsessiva, era na
verdade uma forma de “patologia da moralidade” capaz de mostrar como o dever
estava necessariamente vinculado à transgressão. Pois, neste caso, haveria uma
articulação profunda entre transgressão do dever e gozo culpado, já que a culpa seria a
única forma que o neurótico obsessivo conheceria de confessar seu amor por aqueles
que representam a Lei moral. Em um livro como O mal estar na civilização, Sigmund
Freud generalizará tal estrutura para a condição de modelo privilegiado de adesão
social na modernidade, não se restringindo mais aos casos de neurose obsessiva. Isto a
ponto de afirmar que o sentimento de culpa seria o problema mais importante do
processo civilizatório. Tudo se passa assim como se um caso patológico simplesmente
fornecesse a lente de aumento para um processo presente em todos sujeitos.
De fato, não é possível negligenciar o peso de tal crítica, principalmente
quando Kant insiste que a dor em relação ao abandono de nossas inclinações e a
humilhação de nosso amor-próprio são sentimentos necessariamente produzidos pela
consciência da Lei moral. Dor e humilhação ligadas à consciência da culpabilidade
diante da Lei. Kant insiste, por exemplo, que a forma do dever é intransponível. Ela
sempre aparecerá como uma obrigação que quebra nossa presunção. Querer ignorar
nossa clivagem subjetiva, retirando o caráter de norma exterior do dever e
transformando o que tem a forma necessária da obrigação em algum regime de
impulso natural, de inclinação espontânea e entusiasmada para o bem é, para Kant,
arrogância e fanatismo moral de quem acredita, erroneamente, poder alcançar a
santidade da conformação absoluta entre imperativo moral e inclinações. Kant fala
que tal conformação absoluta só pode ser objeto de um “progresso que avança ao
infinito”217. Mas, como sabe o velho Zenão de Eleia, um progresso ao infinito é, na
verdade, a perpetuação de uma distância infinita, isto se não quisermos apelar à
imortalidade da alma. Quem anda em direção ao infinito continua, a partir da
perspectiva do infinito, no mesmo lugar. Desta maneira, o auto-pertencimento
pressuposto pela relação entre vontade livre e Lei moral é, ao mesmo tempo,
postulado e infinitamente adiado. O paradoxo da forma do dever se encontra no fato
dele abrir o espaço a um processo de transformação de si que, ao mesmo tempo que
funda a possibilidade de minha auto-determinação, impede que ela ganhe a forma de
uma relação imanente à si. Isto pode nos explicar porque:

O conceito de liberdade, é um conceito puro da razão que, precisamente por


isso, é transcendente para a filosofia teórica, isto é, um conceito tal que não e
pode ser dado nenhum exemplo adequado em qualquer experiência possível.
Ele não constitui, portanto, objeto de nenhum conhecimento teórico possível
para nós, e absolutamente não pode valer como um princípio constitutivo, mas
unicamente como regulador e, na verdade, apenas como um princípio
meramente negativo da razão especulativa218.

No entanto, é certo que uma crítica de moralidades centradas no dever


necessita refletir sobre um espectro mais amplo de motivações que levam os sujeitos a
assumir tal modelo de normatividade. Uma destas motivações é, certamente, o fato da
enunciação moderna do dever estar vinculada à procura de uma experiência de
contentamento ou, ainda, de gozo marcada pela superação em relação à finitude de
nossa determinação sensível, assim como superação em relação ao sistema de
interesses do indivíduo. A tal contentamento, Kant dá o nome de “respeito”, elevando
-o à condição de único sentimento moral.
É interessante sublinhar como, no interior da sociedade dos indivíduos, o ideal
de formação subjetiva baseado na consciência do dever aparece necessariamente
ligado à vontade de não agirmos apenas como indivíduos. O que explica porque
perspectivas sociais fortemente individualistas sempre estiveram mais à vontade no
interior da moral utilitarista, que vincula a ação moral à procura da maior felicidade
para o maior número, entendendo aqui “felicidade” a partir do cálculo de
maximização do prazer e afastamento do desprazer. Para além de tal perspectiva
utilitarista, o dever aparece como forma de ultrapassagem da finitude, descoberta
daquilo que “eleva o homem sobre si mesmo”219 permitindo-lhe descobrir a
“sublimidade de nossa existência supra-sensível”220. Ao falar de “sublimidade”, Kant
acaba por afirmar que, à sua maneira, há um importante prazer estético no
reconhecimento do dever, como se estivéssemos diante de um projeto moral
assentado em uma peculiar forma de construção estética de si. Por mais paradoxal
que isto possa parecer, foi Nietzsche quem melhor compreendeu este ponto, ao
afirmar:

No fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente naqueles


organizadores e artistas da violência e constrói Estados, que aqui,
interiormente, em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás, no
“labirinto do peito”, como diz Goethe, cria a má consciência e constrói ideais

217 KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 198


218 KANT, Metafísica dos costumes, p. 27
219 KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 141
220 idem, p. 143
negativos, é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha linguagem, a
vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho
Eu animal – e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro
homem, outros homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade
de artista, esse deleite em dar uma forma, como a uma matéria difícil,
recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica,
uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente
prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz
sofrer, essa “má consciência” ativa também fez afinal – já se percebe - , como
verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma
profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a
própria beleza221.

Como construção estética de si, o dever guarda o desejo de não limitarmos


nossa existência àquilo que atualmente somos, àquilo que atualmente nos determina.
Ele é a expressão de que nada nos obriga a nos contentar com a imagem atual do
homem, com suas configurações locais e suas determinações antropológicas.
Expressão de um desejo do que ainda não tem imagem e figura. Pois: “Estamos
cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados até ao excesso, em
toda classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos
considerarmos já moralizados”222.
Fica a questão de saber se o dever seria a única forma possível de tal elevação
em direção ao sublime, que aparece como motor silencioso para a formação de certo
conceito moderno de sujeito. Trata-se de uma questão relevante porque conceitos
filosóficos tem a característica de serem, muitas vezes, feixes de determinações
contrárias, o que faz, inclusive, com que funcionem de maneiras distintas de acordo
com a situação na qual se inserem. Com o conceito de dever não poderia ser diferente.
Podemos distinguir, ao menos, quatro determinações que lhe produziram:

a) a expectativa política de liberar os indivíduos de vínculos comunitaristas


fortemente enraizados sob a forma de hábitos ritualizados e autoridades
tradicionais;
b) a crítica da pretensa heteronomia de desejos e impulsos vistos como
“naturais” e animalizados;
c) a procura em superar o sistema particular de interesses atomizados dos
indivíduos modernos;
d) a tentativa de garantir uma segurança ontológica para a ação moral através
da fundamentação de critérios para a definição de normatividades justas.

O conceito moderno de dever é uma espécie de dispositivo que unifica esses


quatro processos autônomos entre si. Ao desmontá-lo, cada um desses processos
poderá seguir um destino diferente. Alguns poderão ser simplesmente recusados
(como o segundo ponto, com sua concepção de natureza compreendida como o
“avesso da liberdade”, ou mesmo o quarto ponto), outros poderão ser recuperados em
outra chave.

221
NIETZSCHE, Friedrich; Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 76
222KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita In: KANT, I. A paz
perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34
Arqueologia da liberdade
Aula 13

Antes de começar a aula de hoje e, por consequência, antes de começar nosso


último módulo, gostaria de fazer uma espécie de recapitulação do trajeto que
desenvolvemos nas últimas seções. Ela será importante para explicar melhor o
sentido desta guinada final em direção ao debate referente a autonomia estética.
Acho importante explicar o melhor possível porque um curso sobre a
arqueologia do conceito de liberdade acabe por terminar em uma discussão
sobre as potencialidades imanentes ao conceito estético de autonomia. Ou seja,
porque depositar na experiência estética a tarefa de impulsionar nossa
imaginação social em direção àquilo que, em nossa primeira aula, foi definido
como um giro auto-crítico do ocidente em relação à noção de liberdade?
Quando começamos a discutir a liberdade como auto-legislação, como
essa pretensa capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, vimos como tal
operação era a expressão consequente da pressuposição de certa clivagem no
interior do que poderíamos chamar de “natureza humana”. Ser o legislador de si
mesmo só pode fazer sentido se há um objeto a ser legislado, ou seja, se me
divido entre aquele que julga e aquele que é julgado. Clivagem esta que se
organiza através das polaridades entre razão e libido, entre vontade e desejo.
Lembremos, mais uma vez, como o livre-arbítrio pressupõe certa relação na qual
a liberdade se afirma contra a libido:

A libido é tão forte que não apenas domina o corpo inteiro nem só dentro
e fora, mas também põe em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do ânimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cúmulo, se ofusca
quase por completo a razão e surge a treva do pensamento223.

Como vimos anteriormente, o exercício da liberdade se configura como uma


relação política baseada na efetivação de relações de domínio. Ficava então
bastante claro porque a liberdade devia aparecer como uma relação de auto-
legislação. Pois se tratava de exercer uma relação de domínio sobre uma
afetividade insubmissa e sempre pronta à deriva. Dessa forma, a marca do
pecado original acabava por se expressar através de uma libido que aparece
como força de sedição e queda. Sob o pecado, o ser humano não legislaria mais a
si mesmo, sendo então necessário sustentar a existência de uma vontade que
ama a lei divina. Por isto:

Quando a ação, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais


da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que
precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos
como sendo a lei eterna224.

223 Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J


224 Idem; Do livre arbítrio, p. 47
Mas lembremos como o afastamento da libido era produzido não apenas pelo
sentimento de culpabilidade e pelo desejo de submissão de toda corporeidade
que aparece como espaço do involuntário. Há ainda e principalmente o desejo de
comunhão com o divino, de fortalecimento de si que promete um tipo de gozo e
contentamento de outra natureza, que promete o advento de um mundo
purificado de tudo o que é estranho e insubmisso.
Vimos como a constituição do conceito moderno de autonomia poderia
ser compreendido como a recomposição dessa força de transformação de si, mas
agora sem o apelo à ascese em direção à lei divina. O voluntarismo de quem
defende a incomensurabilidade entre a vontade divina e a razão humana deve
ser abandonado em prol da concepção de que a lei moral não se aplica apenas
aos homens, mas a todos os seres racionais, deus incluso. Dessa forma, a
concepção moderna de autonomia poderá constituir, a partir do desejo de auto-
determinação, o núcleo das motivações em relação ao afastamento dos impulsos
e inclinação. A auto-legislação não aparece mais como uma estratégia de ascese
religiosa, mas como uma estrutura de auto-determinação.
Vimos em Rousseau como tal auto-determinação só poderia se realizar
através de um novo corpo social. Corpo esse que se expressa através da vontade
geral e realiza, assim, as exigência normativas da soberania popular:

Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituição do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral225.

O topos da auto-legislação como transformação de si, esta estranha


relação de auto-pertencimento projetada para um corpo por vir, está aqui mas
vinculado à emergência política de um corpo social igualitário no qual os
interesses individuais paulatinamente se transmutam em vontade (geral). Este
desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade, só ele cria a
verdadeira autonomia enquanto auto-legislação. Daí porque: “melhor o estado é
constituído, mais as questões públicas sobrepõem-se às privadas no espírito dos
homens”226. Pois ele nos abre a estrutura de motivações que não são a expressão
de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da concorrência e do medo.
Em Rousseau, tal vontade autônoma não é expressão de um conflito com a voz da
natureza em nós, como vimos em Agostinho, mas é condição para que a
cristalização de uma falsa natureza seja deposta.
Por fim, na última aula, vimos como Kant constituía a autonomia moral
através de um movimento também marcado por essa estrutura paradoxal do
auto-pertencimento como transformação de si, como abertura a um trabalho
sobre si, mas agora impulsionado pelo dever (sollen). No entanto, quando foi
questão de analisar o que poderíamos chamar de estrutura motivacional do
dever, percebemos que nos deparávamos com um complexo de figuras e
metáforas jurídicas. Pois, por um lado, a dinâmica do amor a lei não poderia ser

225 idem, p. 381


226 ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
pensada sem a naturalização da consciência como um tribunal interno, como um
juiz cuja força da lei nos humilha e provoca dor. Ou seja, toda a dinâmica libidinal
de culpabilização que encontrávamos na matriz teológica da autonomia parecia
novamente em ação.
Esse modelo jurídico consolidou certa compreensão da liberdade como
jurisdição de si, como afastamento do horizonte da vida sensível através da
conformação da vontade à forma geral de uma lei auto-imposta, universal,
categórica e incondicional. No que poderemos sempre nos perguntar a respeito
desta estranha característica de certa noção hegemônica de liberdade no
ocidente que nos leva a acreditar ser natural pensar a liberdade como o exercício
de uma lei. Mesmo quando pensamos liberdade, pensamos o exercício de uma lei.
No entanto, eu insistira que havia algo a mais nesse modelo kantiano de
autonomia moral. O binômio moralidade-gozo culpado é apenas uma parte da
gênese dos sentimentos morais. Há ainda uma promessa de superação de si que
nos levava em direção a tematização da relação entre lei moral e experiência do
sublime. A vontade que quer a lei moral procura algo para além do princípio do
prazer, para além do cálculo de maximização do prazer e afastamento do
desprazer que regula os desejos patológicos e os espaços da sensibilidade. Um
para além que não é apenas mortificação de si. Vimos inclusive como Kant chega
a falar de “gozo” nessa relação entre lei moral e sublime. Mas se quiséssemos
aprofundar este ponto, seria necessário compreender o tipo de prazer negativo,
de desregramento entre razão e sensibilidade, de impulso para fora dos limites
das exigências de auto-preservação, produzido pelo sublime.
Desta forma, um certo contentamento estético entrava no horizonte das
dinâmicas motivacionais da autonomia moral. Contentamento este que não era
produzido pelo belo e sua harmonia das faculdades, mas pelo sublime e seu
empuxo para fora do sistema de conservação da imagem atual do humano. E,
neste ponto, encontrávamos algo que não era exatamente uma lei que o sujeito
dá para si mesmo. Na verdade, encontrávamos o impacto de uma força que
violenta o esquematismo do entendimento e as formas da imaginação.
Eu diria que certa maneira de compreender a autonomia estética partirá
desse ponto de imbricação entre lei e força deixado por Kant. E tal compreensão
da autonomia estética será decisiva porque irá abrir outro espaço para o que
poderemos entender por liberdade. Um espaço no qual as temáticas do auto-
pertencimento estarão definitivamente afastadas. E é sobre isto que nos
debruçaremos agora, a saber, sobre essa concepção de liberdade que nasce da
experiência estética e que coloca em questão nossa tradição ocidental, para a
qual a liberdade é uma questão de autonomia, de autarkeia e de autoctonia, ou
seja, de definição do exercício contínuo de um autos, de uma ipse. Se o maior
atentado contra a liberdade era o involuntário, como vimos por exemplo em
Agostinho, agora teremos a emergência de uma liberdade pensada como
capacidade de se abrir ao involuntário e fazer dessa força que parece decompor
minhas exigências de controle e ordenamento o fundamento de uma agência
radicalmente aberta à alteridade e ao que não tem a imagem atual do humano.
Na primeira aula de nosso curso eu dissera que gostaria de partir não da
história da elevação da liberdade a horizonte regulador de nossas expectativas
de transformação social, tal como ela se configuraria no Ocidente, mas partir de
seu ponto de esgotamento, de seu giro autocrítico. Eu dissera que gostaria de
organizar a arqueologia da liberdade no ocidente a partir do fim. Ou seja, partir
do momento em que nosso modelo hegemônico de liberdade é reflexivamente
questionado no interior da própria tradição que o gerou. Movimento rico e
doloroso, um giro autocrítico desta natureza é expressão de nosso próprio
descentramento, de nossa própria possibilidade de descentramento.
Eu dissera ainda que esse giro auto-crítico era fruto do desvelamento de
uma alteridade interna que parece habitar nossa própria forma de vida, que
constitui práticas que produzem contradições em nossa própria forma de vida,
invertendo continuamente as determinações valorativas que parecem nos
orientar. Isso significava admitir que somos habitados por práticas que tem a
força de erodir periodicamente o solo de nossa noção hegemônica de liberdade e
que, com isto, nos impulsiona a estratégia de auto-crítica de nós mesmos. Agora,
gostaria de mostrar como esse setor se consolida inicialmente na prática estética.
Vem da prática estética a emergência de um conceito de liberdade radicalmente
distinto daquela que circula em nosso horizonte social. Essa experiência estética
irá paulatinamente influenciar e impulsionar outros setores da práxis social,
como a política, a clínica, entre outros. Pois tudo se passa como se fossemos
habitados por um conceito de liberdade que é estético, como se a arte fosse uma
prática de liberdade que nos aproximaria de outras matrizes de liberdade
estranhas à linha hegemônica tradição ocidental.
Na verdade, essa noção de liberdade estava assentada em operações de
abertura a processos de descentramento e de implicação com objetos e
movimentos não redutíveis a predicações de pertencimento. Paradoxalmente,
havia uma irredutível dimensão de heteronomia nessa experiência estética que, a
partir do século XIX, se constituirá como arte autônoma e cuja primeira figura
encontraremos no romantismo. Heteronomia esta vinda da constituição de um
campo de implicação do sujeito com objetos e movimentos que não tinham sua
forma, que não se configuravam no interior de espaços egologicamente
indexados. Por isto, a forma estética a partir de então será o espaço privilegiado
de emergência do fragmentário, do involuntário, do contingente, da desmesura
própria ao que violenta o esquematismo da imaginação (como vemos, nesse caso,
nas temáticas relativas ao sublime).

A autonomia estética, entre auto-referencialidade e força

A fim de desenvolver tais pontos, insistamos como uma reflexão sobre o


sentido da expectativas próprias à autonomia estética deve partir das questões
presentes na autonomia da forma musical. É a partir a música que o problema da
autonomia adentra o campo das artes. A escolha em privilegiar o campo musical
no interior das discussões sobre a natureza da autonomia estética não pode ser
vista como gratuita. Primeiro, porque há de se insistir na anterioridade histórica
da autonomização da forma musical em relação a processos simétricos em outras
linguagens artísticas. É atualmente aceita por vários teóricos e críticos de arte, a
tese de que a autonomia da forma musical é não apenas historicamente anterior,
mas decisiva na constituição do debate estético em geral sobre a autonomia227.

Ver o clássico estudo de WEBER, Max; Fundamentos racionais e sociológicos da música, São
227

Paulo: Edusp, 1994 assim como o mais recente KIVY, Peter; Antithetical arts: on the ancient
quarrel between literature and music, Oxford University Press, 2009 e NEUBAUER, John; The
emancipation of music from language: departure from mimesis in Eighthenn- Century aesthetics,
Yale University Press, 1986
Lembremos, a este respeito, do que diz o crítico de artes visuais Clement
Greenberg:

Em razão de sua natureza ‘absoluta’, da distância que a separa da


imitação, de sua absorção quase completa na própria qualidade física de
seu meio, bem como em razão de seus recursos de sugestão, a música
passou a substituir a poesia como a arte-modelo (...) Norteando-se, quer
conscientemente quer inconscientemente, por uma noção de pureza
derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda nos últimos
cinquenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitação radical de seus
campos de atividade sem exemplo anterior na história da cultura228.

De fato, como vimos em aulas passadas, o problema da forma autônoma


aparece já no século XVIII, no interior de uma querela entre Jean Jacques
Rousseau e Jean-Phillipe Rameau a respeito da possibilidade de sustentar uma
perspectiva naturalista em música baseada na conservação de afinidades
miméticas fundamentais entre forma musical e linguagem natural. Afinidades
estas pretensamente quebradas pela insistência no vínculo entre racionalização
do material musical e advento da harmonia moderna com suas regras de
progressão e de organização do contraponto229.
No entanto, o adjetivo “absoluta” denuncia como Greenberg pensa no
paradigma da “música absoluta” do século XIX resultante da elevação da música
instrumental, desprovida de textos, programas e funções sociais derivadas à
mais absoluta das artes (como vemos tanto na estética dos românticos quanto na
de Schopenhauer e de Nietzsche, entre outros)230. O que Greenberg está a dizer é
que a música teria fornecido às artes no século XX um vetor de desenvolvimento,
um princípio definidor de constituição da forma a partir da distância em relação
à mimesis, isto a partir da tematização de sua própria estrutura, enfim, a partir
de certa “pureza” que é purificação da esfera da arte em relação à esfera das
formas enraizadas na vida prosaica.
Tal estratégia de purificação acaba, no entanto, por corroborar a forma
hegemônica com que o problema da autonomia estética ainda é tratado, ou seja,
como vinculado a um processo de autonomização das esferas sociais de valores
no interior do qual os julgamentos estéticos teriam sua “legalidade própria”
( Eigengesetzlichkeit) . Lembremos como a temática da legalidade própria da

228 GREEENBERG, Clement; “Rumo a um mais novo Laocoonte”, In: COTRIN, Cecília e FERREIRA,
Glória; Clement Greenberg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 52-53.
229 Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Écrits sur la musique, la langue et le théatre, Gallimard, 1995.

Ver também: MASUDA, Makoto; "Musique et société. Anthropologie et théorie musicale chez J.J.
Rousseau", Etudes de langue et littérature française, Tokyo, n° 60, 1992, pp. 57-69. MOFFAT,
Margaret; Rousseau et la Querelle du théâtre au XVIIIe siècle, Bordeaux: Brière et Paris: E. de
Boccard, 1930 e PRADO Jr., Bento; A retórica de Rousseau e outros ensaios, São Paulo: Cosac Naify,
2008
230 Como encontramos nas discussões de DAHLHAUS, Carl; Die Idee der absoluten Musik, Kassel:
Bärenreiter Verlag, 1978
Esta estrutura de auto-legislação, ao ser aplicada ao campo da estética,
nos leva normalmente a compreender o problema da autonomia como uma
questão de imposição de padrões próprios de validação e regulação, como se a
esfera estética fosse animada por exigência internas de validação de seus
fenômenos que não levam em conta os modos de organização e expectativa de
outras esferas sociais de valores. No que reencontramos aqui a temática maior
da sociologia weberiana da modernidade como “autonomização das esferas
sociais de valores” depois do colapso do poder unificador dos mitos teológico-
religiosos. Isto fez com que a produção estética aparecesse como destinada a
instaurar processos de auto-tematização no interior dos quais trata-se da arte
“falar de si mesma”, tematizar sua própria forma, afirmando-se como espaço de
auto-referencialidade.
Do ponto de vista de suas consequências sociais, esta afirmação de uma
esfera de legalidade própria, com seus modelos autônomos de validação, foi em
larga medida, compreendida a partir de uma lógica compensatória. Tal esquema
afirma que a experiência moderna de auto-tematização da forma seria herdeira
de uma certa decepção histórica. Ou seja, o que temos aqui é uma leitura
melancólica da autonomia estética. Diante da incapacidade histórica da arte ser
motor de transformação social, isto a partir principalmente da segunda metade
do século XIX, não lhe teria restado outra coisa senão falar de si mesma, ser uma
mera art pour l’art. Não podendo transformar o mundo através da realização de
ideais reformadores que viam na circulação das obras de arte um potencial
“educador” e de reforma moral, ela teria se voltado a uma reflexão sobre si
mesma. Lembremos, por exemplo, do que fala Pierre Bourdieu a respeito da
formação do campo literário e artístico, com suas exigências de autonomia da
arte e dos artistas, na França da segunda metade do século XIX:

Como não supor que a experiência política desta geração, com o fracasso
da revolução de 1848 e com o golpe de estado de Luis-Napoleão
Bonaparte, além da longa desolação do Segundo Império, não tenha
desempenhado um papel na elaboração da visão desencantada do mundo
político e social que segue o culto da arte pela arte? Esta religião exclusiva
é o último recurso dos que recusam a submissão e a demissão231.

Afirmações desta natureza procuram sustentar que a sequência de


decepções históricas na Europa do século XIX (1830, 1848, 1871) teriam
mostrado à literatura, em especial, e à arte, em geral, sua impotência em se
colocar como motor do processo de transformação social. Recusar a submissão

do artista ao gosto jornalístico e à afirmação do modo de vida de uma época de


reino da burguesia só seria possível através da constituição de uma “religião
exclusiva” marcada pelo culto da arte pela arte. Este modelo compensatório, que
fustiga tanto a independência social do artista quanto a independência formal de
231 BOURDIEU, Pierre; Les règles de l’art: génèse et structure du champ littéraire, Paris: Seuil,
1998, p. 104. Mas a base da crítica deste “formalismo estético” vem de Lukàcs e sua crítica à
literatura de vanguarda com seu “rousseauismo pervertido, sua recusa do social” (LUKACS,
Gyorg; Realismo crítico hoje, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55)
sua linguagem, servirá de fundamento para todas as denúncias que levantarão a
voz contra os “formalismos” da arte no século XX, assim como contra a pretensa
incapacidade da arte integrar, em seu interior, a relação crítica com o mundo
social. Pois se trata de desqualificar as consequências políticas das demandas de
autonomia estética por estas pretensamente serem a expressão mais bem
acabada de uma dinâmica de pura e simples evasão.
Nesta leitura, a autonomia estética não pode ser compreendida, de forma
alguma, como estratégia de emancipação social. Ao contrário, ao desqualificar a
procura da autonomia, tal leitura abre espaço à tematização da experiência social
da linguagem como necessariamente dependente de horizontes enraizados nas
formas de interação e comunicação próprias ao mundo da vida ordinária, mesmo
com o risco de esquecer que tais formas de interação estão imersas em um
espaço de reificação que toma principalmente as dinâmicas de circulação da arte.
No entanto, podemos aceitar a prevalência dada por Greenberg à música
lembrando, por outro lado, que talvez ele não estivesse atento ao fato de que, no
caso da estética musical, tal debate sobre a autonomia escapa do problema
estrito da auto-tematização da forma. Na verdade, ele se vincula ao
desdobramento de dois conceitos centrais para a estética moderna, a saber,
expressão e sublime, e gostaria de trabalhar esses dois conceitos: o primeiro na
aula que vem e o segundo na aula de hoje.
A forma autônoma permitirá o advento de uma expressão capaz de se
colocar como crítica à submissão da subjetividade à convenção do estilo e seu
regime estrito de caráteres, assim como à personificação. Por isto, esta expressão
estética será incompreensível se pensada nos limites da expressão dos atributos
intencionais de uma individualidade fortemente organizada do ponto de vista
egológico. Por outro lado, a presença da temática do sublime na estética musical
(desde ao menos os textos de E.T.A. Hoffman sobre Beethoven) visa mobilizar a
força anti-representacional da música como estratégia de crítica a um mundo
social de convenções e a uma noção social emergente de individualidade
marcada pelo auto-controle, pela determinação através de propriedades e pelas
exigências de auto-preservação. A desmedida do sublime é estratégia de crítica à
medida social imposta pelo horizonte de racionalização emergente do
capitalismo.

Primeira figura romântica da liberdade: o sublime em Beethoven

Compreendendo o sublime a partir da noção kantiana de “conceito


indeterminado da razão”232; ou seja, uma Ideia da razão que não é adequada a
particularidade de nenhuma determinação sensível, mas que pode ser reavivada pelo
espírito devido exatamente a esta inadequação, o romantismo alemão viu, na ausência
de determinação sensível das representações próprias à música instrumental, o melhor
veículo para a atualização de certa experiência da infinitude. Esta é a temática central
do que devemos entender por “música absoluta”. Lembremos como “música
absoluta” designa a ideia, profundamente romântica, segundo a qual a música
instrumental, desprovida de textos, programas e funções específicas, distante da
mimesis e da representação, realiza a essência absoluta da experiência musical. Trata-
se, com isto, de vincular a racionalidade musical à autonomização da esfera da música
em relação a uma origem na qual o sentido do fato musical não estaria em si mesmo,

232 KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkraft, Hamburg: Felix Meiner, 1988 p. 154
sentido advindo dos modos de organização funcional do material, mas seria
dependente da função da música no interior de rituais ou na sua subordinação em
relação a textos recitados ou cantados: subordinação da linguagem musical à palavra.
Desta forma, a música instrumental seria um modo privilegiado de formalização
daquilo que não se deixa expressar diretamente, que seria “qualitativamente contrário
ao conceito”, já que a linguagem musical diria aquilo que a linguagem prosaica não
saberia dizer sem produzir determinações particulares vinculadas à indexação do
mundo dos objetos.
A possibilidade de uma linguagem para além dos limites cognitivos da
representação aparecerá como expressão maior de uma subjetividade capaz de deixar
para trás as convenção, as estruturas de percepção ligadas ao senso comum e ao
hábito. Neste contexto, a crítica da representação impulsionada pela reconfiguração
da categoria do sublime é peça maior de uma estratégia de liberação do sensível das
amarras do ordenamento naturalizado do espaço e do tempo, o que permite o advento
de formas singulares de experiência do sensível. Lida desta forma, a autonomia
estética em sua relação à metafísica do sublime não pode ser o resultado de estratégias
de purificação da linguagem visando constituir uma esfera de valores organizada a
partir de exigências de “legalidade própria”. Antes, ela é a emergência de uma
sensibilidade reconfigurada, ela é motor de uma “revolução na sensibilidade”233 capaz
de fazer com que a potencialidade de novas formas da vida social, novas formas de
imbricação e síntese possam realizar expectativas emancipatórias de produção de
experiências singulares. Desta maneira, a linguagem musical produzirá a figura
sensível de uma experiência nova de liberdade na qual a emergência de uma força
capaz de reconstituir a forma da experiência para além dos modos de representação da
consciência poderá realizar uma heteronomia sem servidão.
Gostaria de tentar mostrar como isso ocorre musicalmente e para tanto
gostaria de discutir alguns aspectos de uma peça de Beethoven chamada
Abertura Coriolano. Comecemos por lembrar do que diz E.T.A. Hoffmann a
propósito da música de Beethoven.

“A música de Beethoven suscita o medo, o horror, o terror e a dor, nos


elevando a esta nostalgia infinita (unendliche Senhsucht) que é a própria
essência do romantismo. Beethoven é um compositor puramente
romântico e não seria por isto que ele está menos a vontade na música
vocal, que não deixa lugar para as emoções indeterminadas
( unbestimmten Sehnens) por representar tais emoções, que vem do reino
do infinito, apenas através da determinação dos afetos pelas palavras?”234.

Aqui, Hoffmann apresenta alguns dos traços fundamentais que


acompanharão o conceito de sublime durante todo o século XIX. Primeiro,
Hoffmann afirma não apenas que Beethoven é puramente romântico, mas que a
música é talvez a única arte puramente romântica, como se devessemos assumir
uma aproximação, cheia de consequências, entre “romântico” e “musical”.
Beethoven é romântico por ser eminentemente “musical”. Seria interessante
perguntar-se, no entanto, o que o adjetivo “musical” pode significar neste
contexto. Seguindo as discussões a respeito da noção de música absoluta,
podemos dizer que “musical” significa, primeiramente, expressão do que se

233 SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, São Paulo: Iluminuras, 1997
234 HOFFMANN, E.T.A.; Kresleriana, Reclam, 1986
conserva em uma certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a
música vocal. Pois o que é musical não tem a precisão do que se define no
interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade
de categorização das palavras. Neste sentido, o que é musical desconhece a
“determinação dos afetos”. Por isto, aquilo provido de qualidades musicais tem a
força de provocar em nós uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca
está completamente presente.
Mas o vocábulo “infinito” não está aqui por acaso. Ele é importante por
expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convenções
formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao
infinito era a maneira romântica de se compreender em um tempo de mutação
no qual a ordem social não podia mais aspirar fundamentação que outrora teve,
no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética devia ser
sistematicamente questionada por parecerem “finitas”. Neste sentido, é
interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a música era
talvez a única arte realmente romântica por ter por único objeto a expressão do
infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressão do que desarticula
nossa capacidade de estabelecer relações de identidade e diferença e que, por
isto, nega constantemente as aspirações construtivas da forma. O que é “musical”
é pois indeterminado, dispõe-se em um jogo constante com o informe, não por
deficiência em relação à prosa do conceito (como o anti-romântico Hegel
defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito.
Hoffmann lembra como, para um certo ouvinte médio da época, a música
de Beethoven não seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria
desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas
sinfonias uma sucessão inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um
crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram: “massacrados por uma massa
de ideias sobrecarregadas e sem relação umas com as outras, assim como pelo
tumulto incessante de todos os instrumentos”235. Música composta por temas
fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de não mais
do que quatro compassos, ideias cujas transições são muitas vezes abruptas,
cortadas, marcadas por pausas e interrupções.
Hoffmann precisa lembrar das opiniões deste “populacho musical”
( musikalischen Pöbel) para afirmar que tal desarticulação dos princípios
construtivos da forma, que tal desregulação das normas, produzida pela música
de Beethoven, não era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior
da forma a tensão entre a expressão do infinito e a regularidade das convenções.
Este que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito às
regras gramaticais da linguagem musical hegemônica236. Mas eles deveriam
procurá-la na força unificadora da ideia. Nesta tensão entre expressão do infinito
e regularidade das convenções, a obra não se desagregaria em um mero jogo com
o informe porque a música de Beethoven seria capaz de fornecer novos
processos construtivos.

Contra a comunidade

235Apud ROSEN, Charles; Le style classique, p. 497


236Por tal razão, Charles Rosen lembrará que: “antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tão
claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditório” (ROSEN, Charles; Le style
classique, Paris: Gallimard, p. 488)
Um exemplo privilegiado do procedimento de Beethoven é sua Abertura
Coriolano. A obra é uma abertura para a versão escrita por Heinrich Joseph von
Collin para a peça “Coriolano”, de Shakespeare. A peça de Shakespeare foca-se no
desterro do general romano Coriolano, herói romano devido a sua bravura no
comando das tropas contra os Volscos.
Coriolano é a expressão dos ideais aristocratas de honra, bravura e
arrogância. Por isto, sua relação com as demandas populares e com os tribunos
sempre foi de completa incompreensão. Ao ser nomeado cônsul romano pelo
senado e pedir o voto do povo, Coriolano mostra toda sua inabilidade,
conseguindo despertar a ira popular e ser banido de Roma. Ou seja, Coriolano é,
acima de tudo, aquele que não sabe como falar com o povo, ele é aquele que
simplesmente não sabe como se expressar.
Na condição de banido, ele acaba por se aliar aos antigos inimigos a fim de
marchar sobre a cidade. Às portas de Roma sitiada a indefesa, Coriolano prepara-
se para o ataque final quando sua mãe e esposa aparecem rogando-lhe que
abandone seu ódio e não invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as
mulheres e abandona seus planos, o que lhe levará à morte pelas mãos dos
Volscos.
Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais.
Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos
no qual o desprezo pela pretensa inconstância e pela irracionalidade da opinião
popular são evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida,
deixando mais clara sua dimensão de herói trágico. Ele é o homem sem
comunidade, sem lugar, cuja certeza de si o exila do contato com os outros
homens. Personagem que representa com clareza a tensão da individualidade
moderna nascente com sua potência de incomunicabilidade, com sua expressão
assombrada pela indeterminação. Homem só capaz de parar diante do objeto de
desejo em vias de dissolução. Assim, ao escolher transformar a morte de
Coriolano em suicídio, Collin permite a exploração da consciência da experiência
moderna da desorientação diante da tentativa de ocupar um lugar marcado pelo
desterro.
A composição de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na própria
construção da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros
acordes, é baseada nas modulações possíveis de uma relação de polaridade e
conflito entre dois grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente
toda a música, aparecendo como elemento construtor interno aos motivos (como
podemos ver na partitura em anexo). Já o motivo que aparece nos compasso 15 a
19 demonstra claramente um procedimento no qual a polaridade opositiva entre
duas notas serve de base construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é
simplesmente cortada e suspensa antes de se completar (como no final deste
primeiro motivo) ou aumenta por acumulação e intensidade. Ela é o melhor
exemplo de como: “em Beethoven, ideias formais e detalhes melódicos vem à
existência simultaneamente; o motivo singular é relativo ao todo. Ao contrário,
no final do século XIX a ideia melódica funciona como um motivo no sentido
literal da palavra, colocando a música em movimento e providenciando a
substância de desenvolvimento na qual o tema em si foi elaborado”237. No caso
da Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a própria ideia musical.
237 DAHLHAUS, Between romanticism and modernism, p. 42
Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar
acontecimentos que poderiam ser compreendidos como negações radicais da
funcionalidade da obra. Um exemplo maior encontra-se na forma com que a
polaridade dinâmica entre notas se transforma em polaridade conflitual entre
motivos e temas. A peça toda é atravessada pelo antagonismo entre os motivos,
associados a Coriolano e organizados basicamente através de polaridades entre
duas notas e um tema melódico sinuoso associada às vozes femininas da mãe e
da mulher. A primeira apresentação do motivo, pelo primeiro grupo de violinos e
pelo grupo de violas, é na tônica de dó menor. A segunda é sob uma modulação
para a tônica de si bemol menor. Não por acaso a construção da melodia
feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando tocada pelos
violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos clarinetes. A
ideia de contraposição e distensão é evidente, embora não seja possível dizer que
exista aí alguma organização baseada, por exemplo, no esquema antecedente-
consequente ou mesmo em algum princípio de transição. Poderíamos pensar em
uma relação de contraste, mas tal contraste não segue nenhuma forma de
desenvolvimento orgânico. Em certos momentos, ele opera por simples
justaposição ou se serve de longas pausas e suspensão da dinâmica para a
melodia “feminina” ser reapresentada. É possível dizer que a peça se move por
antíteses, já que os momentos, tomados individualmente, parecem contradizer
uns aos outros. Ou seja, tomados isoladamente, cada um dos momentos musicais
contradiz o que lhe segue. Esse caráter irresoluto do conflito chega até o final da
peça, onde a transposição musical da ideia do suicídio de Coriolano ganha forma
de um final sem superação, música que simplesmente dissolve sem cadência
conclusiva ou promessa de reconciliação teleológica. Ela não se resolve, ela
simplesmente para.
Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de
resolução do conflito, a contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como
poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a
processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto
central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de
processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela
relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em
atualizações contraditórias, sem com isto perder sua univocidade. Pois ela
desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos
e a univocidade de sua processualidade infinita que absorve a multiplicidade das
determinações.
Mas se a ideia musical está, no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na
voz de Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está, ao mesmo tempo, no
reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da
comunidade que pede para ser poupada é porque a ideia expressa a inexistência
de um solo comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam não entrar
em contradição. Por isto, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e
motivos e o que os dissolve em um puro devir que expõe exatamente a
fragilidade do enraizamento de todos os momentos. Tanto a comunidade quanto
a individualidade são momentos a serem dissolvidos. Em Abertura Coriolano,
Beethoven mostra de forma clara como a essência do que constitui as vozes já é o
que as dissolve como momentos de um devir.
De certa forma, essa é uma interpretação que fundamenta boa parte da
compreensão feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal
compreensão parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela
exploração sistemática do caráter da forma como processo. Tomemos, por
exemplo, uma afirmação a respeito da conhecida comparação adorniana entre
Beethoven e Hegel:

“A realização de Beethoven encontra-se no fato de que em sua obra – e


apenas nela – o todo nunca é externo ao particular, mas apenas emerge de
seu movimento, ou melhor, o todo é este movimento. Em Beethoven não
há medição entre temas mas, como em Hegel, o todo como puro devir é a
mediação concreta”238.

Esta é a maneira de dizer que, em Beethoven a ideia musical é o que


constrói uma noção de totalidade dinâmica. Ideia que, pela sua clareza na
apresentação (e por nunca quebrar algumas estruturas elementares de base,
como, por exemplo, a polaridade entre tônica e dominante), permite ao ouvinte
conservar a percepção da processualidade interna da forma, mesmo à despeito
da presença de tudo aquilo que, à época, seria visto como índices de uma forma
em desagregação, em flerte contínuo com o informe. Por isto, não há exatamente
mediação entre temas, mas um devir contínuo, que nunca para por parecer ser
capaz de se desdobrar em tudo. Desta forma, a temática do sublime pode
aparecer como modo de compreensão da autonomia das obras em relação às
regularidades formais e às convenções de estilo.

238 ADORNO, Beethoven, p. 24


Arqueologia da liberdade
Aula 14

Revendo nosso trajeto

Esta é a última aula de nosso curso. Apesar das dificuldades desse semestre
atípico, conseguimos chegar ao fim. Antes de entrar no assunto específico de
nosso último encontro, gostaria de recompor rapidamente nosso trajeto nesse
semestre a fim de esclarecer os problemas centrais que, a meu ver, devem guiar
toda discussão contemporânea a respeito do tema da liberdade.
Primeiro, eu comecei lembrando a vocês que nossas discussões sobre o
conceito de liberdade normalmente partem de certa limitação: elas falam do
desenvolvimento dos debates e lutas no ocidente. Infelizmente, ainda não somos
formados para desenvolver uma verdadeira perspectiva comparatista que nos
permitisse sair da ilusão de que a liberdade é uma invenção ocidental e construir
assim articulações fortes entre processos históricos. Mais do que qualquer outro
conceito filosófico, a noção de liberdade transformou-se, entre outras coisas, em
peça fundamental do que chamamos de “dispositivo colonial”. Pois se trata de
dar a impressão de que a liberdade é uma produção da modernidade ocidental
com suas instituições, modos de vida e espaços públicos. O que faria com que a
história mundial devesse necessariamente ser a irresistível história do “devir
ocidental do mundo”, com toda a violência e destruição que sabemos muito bem
que isto implica.
Contra isto, não foram poucos aqueles que insistiram na necessidade
urgente de abandonar toda perspectiva de história global, o que implica, a meu
ver, uma estratégia equivocada e catastrófica. Pois temos uma história mundial,
no seu centro encontra-se o capital e seus processos de auto-valorização. Nossas
vidas estão completamente conectadas no interior dessa falsa universalidade
que produz processos que fazem com que tudo o que seja sólido se desmanche
no ar. Contra essa história mundial baseada em uma falsa universalidade, só
mesmo outra história universal baseada em uma universalidade concreta por vir,
na qual a experiência da liberdade desempenhará papel central.
No entanto, esta experiência não se construirá sem antes abandonarmos o
modelo de universalidade concêntrica, com sua crença na existência de
localizações privilegiadas nas quais emergem os processos de liberdade que
depois deverão se espalhar por todo o mundo. Localizações que, não por acaso,
estariam em solo europeu. Nós tivemos uma aula sobre o impacto da experiência
ameríndia de liberdade no pensamento europeu exatamente para mostrar quão
colonial era esta ideia, ainda fortemente presente entre nós, de que o destino dos
que procuram a liberdade é se tornarem “bons europeus”.
Anteriormente, eu havia dito que deveríamos assumir uma história
universal que não é a descrição irresistível de processos de contágio de lutas e
experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade, haveria
uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que opera sob a
forma de ressonâncias. Isto significava partir do princípio de que experiências de
emancipação e liberdade estão presentes em todas as formas de vida dispersas
geográfica e historicamente. Tais formas podem “entrar em ressonância”, ou seja,
experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades
criando uma espécie de constelação. Ou seja, não se tratava de contrapor a
história mundial a uma perspectiva que libera a força das localidades e das
territorialidades singulares. Tratava-se de contrapor uma falsa história mundial
a uma história mundial des-colonial, capaz de colocar em pé de igualdade
múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade. O que
significava assumir que as experiências dispersas de liberdade não são
indiferentes umas às outras. Elas se contaminam, mas só podem se contaminar
no interior de uma história mundial, até que elas consigam criar relações de
ressonância, permitindo a emergência de um processo global com múltiplos
enraizamentos locais.
Como havia dito anteriormente, ainda não somos formados em nossos
departamentos de filosofia para tal tarefa. Mas há algo que podíamos fazer e que
consistia em recuperar a arqueologia da experiência da liberdade levando em
conta com tal operação faz parte de certa crítica de nós mesmo, crítica daquilo
que nos tornamos. Ou seja, tratava-se de uma arqueologia que não visava
explicitar o processo histórico de constituição dos fundamentos normativos dos
conceitos hegemônicos de liberdade presentes em nossas formas de vida. Não se
tratava de confundir gênese e validade, mas de procurar entender como
desenvolvemos a auto-crítica das nossas formas de vida.
Tendo este espírito em vista, partimos da constituição da noção de
liberdade como auto-pertencimento entre os gregos. Tentei demonstrar o que
significava pertencer a si mesmo em um horizonte social no qual “si mesmo” não
indicava a presença de uma individualidade fortemente determinada. De nada
adianta dizermos que a liberdade entre os gregos se funda na articulação
conjunta entre operadores de autonomia, de autarkeia e autoctonia se não está
claro o que devemos entender por “autos” neste contexto. Primeiro, eu recusei a
ideia, presente em autores como Hannah Arendt, de que a liberdade entre os
gregos era fundamentalmente uma questão de liberdade interior e apolítica.
Liberdade como afastamento do horizonte da política, mesmo que a política seja
o campo de ação de homens que não são servos, ou seja, homens livres. O
afastamento em relação à comunidade, como vemos nos cínicos e nos estoicos,
era feito em nome de uma recuperação da força normativa da physis. Vimos, por
exemplo, como os cínicos se contrapõem à polis em nome do retorno à natureza
enquanto plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa e a
constituição de um noção específica de “si próprio”. Essa ética da virtude não é
apenas fruto da crença de que as considerações exclusivas sobre o caráter moral
dos agentes poderiam definir as condições para a felicidade. Trata-se de, na
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo e no estoicismo. Isto funda um nomadismo
cosmopolita (no caso do cinismo), uma moralidade do acontecimento que vê o
exercício do logos como apropriação (oikeiosis) do curso do mundo (como no
caso do estoicismo). Este tipo de auto-pertencimento tem consequências
políticas, pois pode alimentar uma força destituinte em relação ao poder, o que
está mais claro no cinismo do que no estoicismo.
Durante o primeiro módulo, eu apresentei alguns casos de tentativas
contemporâneas de recuperação do conceito de liberdade como auto-
pertencimento. Falei um pouco de Deleuze, mas o horizonte fundamental foi
Foucault. Ficou em aberto a possibilidade contemporânea de tal recuperação.
Depois disto passamos à discussão a respeito da liberdade como
propriedade de si. Tentei mostrar como, mesmo não nascendo exatamente
dentro de um horizonte liberal, ela se consolidará como pressuposto
fundamental do liberalismo e de um dispositivo maior de consolidação da nossa
forma ocidental de vida a partir de certa “metafísica da propriedade” que serve
de base ao capitalismo. Levando em conta teóricos do neoliberalismo e de certas
versões do liberalismo, como essa defendida por Robert Nozick, procurei
mostrar como consolidou-se as condições sociais para a generalização da forma-
propriedade enquanto horizonte regulador da vida social. A meu ver, isto
invalida toda e qualquer tentativa de recuperação da liberdade como auto-
pertencimento.
No interior de nossas sociedades capitalistas, todas as formas de
pertencimento e possessão foram colonizadas por um regime geral expresso nas
relações de propriedade. Não seria possível a uma reflexão própria a filosofia
política ignorar tal situação. Não seria possível ignorar que existe algo como uma
força metafísica do capitalismo, ou seja, um modo de conformação das
possibilidades gerais de existência e de relação através da generalização de uma
ontologia de propriedades que organiza até mesmo nossas formas de luta e de
resistência. Até mesmo o vocabulário de nossas lutas é conjugado no interior de
uma ontologia de propriedades, na qual é questão sempre de explicitar o que me
seria “próprio”, o que seria “meu”.
Mesmo quando a democracia liberal foi criticada do ponto de vista da
defesa dos bens comuns, tal crítica foi feita normalmente em nome de outra
forma de propriedade, de outra forma de possessão, a saber, a propriedade
coletiva239. Raros foram os momentos nos quais tal crítica foi feita em nome da
possibilidade de circulação do que é impróprio, do que não é configurado como
propriedade. Isto demonstra como boa parte de nosso esforço crítico
permaneceu no mesmo horizonte normativo que fundamenta o que gostaríamos
de criticar.
Foi tendo isto em mente que procurei explorar a ambiguidade imanente
a uma forma fundamental de auto-pertencimento na filosofia ocidental, a saber, a
ideia de auto-legislação, fundamento das noções modernas de autonomia e livre-
arbítrio. Vimos como a base de nossa noção ocidental de auto-legislação era
teológica, ela se assentava em uma desqualificação teológica das estruturas
motivacionais vinculadas à libido. Por isto, o controle de si pressuposto pela auto
-legislação que aparece com Agostinho tem um caráter de internalização da
culpa, de sujeição a uma autoridade exterior (na caso, deus) que difere
radicalmente dos dispositivos de autarkeia dos gregos. A liberação em relação
aos impulsos e inclinações, a ascese grega é um exercício de fortalecimento de si,
não exatamente de submissão da minha arrogância, vinda do pecado original, à
vontade de um outro. Ela é a expressão da distância contínua de mim em relação
a mim mesmo. Esta identidade de si é uma identidade continuamente diferida.
De certa forma, a noção moderna de autonomia irá preservar este modelo
paradoxal de auto-pertencimento, mesmo quando a matriz teológica for
relativizada. Nós vimos isto através de Rousseau e Kant. De formas distintas,
fomos confrontados com uma junção singular entre auto-pertencimento e
transformação. Se a vertente liberal da reflexão sobre a liberdade acaba por

239 Para um modelo de crítica baseado na despossessão, ver AGAMBEN, Giorgio; Altíssima
pobreza: regras monásticas e formas de vida, São Paulo: Boitempo, 2014
realizar os processos de auto-pertencimento como propriedade de si, essa matriz
que, entre outras características, é não-liberal trará no seu bojo o elemento
paradoxal de que só posso ser mim mesmo se me abrir a algo que não pode ser
pensado sob a forma dos sistemas individuais de interesses, da propriedade de
sua própria pessoa, que o sujeito liberal exerce como fundamento de sua
soberania.
Na aula passada, tentei defender com vocês que esse ímpeto de
transformação de si é o elemento decisivo para a consolidação da autonomia
estética. Para além da temática da autonomia como auto-referencialidade, tão
presente nas críticas ao pretenso “formalismo” da arte moderna e
contemporânea, para além da leitura compensatória da autonomia estética
(Bourdieu, Lukàcs, entre tantos outros) comecei a defender com vocês a
necessidade de compreender o tópico da autonomia estética como um motor
fundamental do giro auto-crítico do conceito de liberdade no ocidente. Se
liberdade está ligada não apenas a jurisdição de si, mas principalmente à
capacidade de não agir a partir do medo, e se a forma da auto-legislação sempre
foi assombrada pelo medo da perda de si, da deriva, da insubmissão, então a
experiência estética nos acostuma a não temer o que nos aparece como
impróprio, insubmisso, irredutivelmente outro, pois isto vem de nossa própria
atividade.
Se na aula passada, começamos a abordar este ponto através da discussão
sobre o conceito de sublime, eu prometera que essa nossa última aula seria
dedicado ao conceito de expressão estética. A escolha obedece a várias razões,
mas há ao menos uma que gostaria de salientar. O conceito de sublime,
contrariamente ao conceito de belo, permaneceu como horizonte de
compreensão da racionalidade das obras de arte. Não apenas filósofos
contemporâneos continuaram a mobiliza-lo (Adorno, Lyotard), mas a arte
contemporânea (Barnet Newman, Mark Rothko) e a literatura (Paul Celan,
Wallace Stevens).
Já o conceito de expressão poderia parecer obsoleto diante de um
momento histórico no qual operadores como gênio artístico, autoria,
autenticidade, parecem entrar definitivamente em colapso. Mas gostaria de
voltar mais uma vez ao romantismo a fim de demonstrar porque creio que se
trata de um operador decisivo se quisermos compreender a arte como uma
prática de liberdade.

Para introduzir o conceito de expressão

Gostaria de partir de uma tese. Longe de ser a insistência no culto a um Eu


excessivo e exaltado, a expressão estética a partir do romantismo seria marcada
pela tentativa de: “liberar totalmente de suas cadeias um sujeito até então
entravado mesmo na expressão de seu sofrimento pelas convenções expressivas
controladas pela burguesia”240. Levar tal colocação a sério implica assumir que
não se tratará da consolidação de dinâmicas de “expressão de si”, como se
estivéssemos diante de: “um processo de ‘subjetivação’ [dos afetos] na ascensão
da sociedade burguesa”241. Esta leitura corrente visa integrar a formação da

240 ADORNO, Theodor: Figuras sonoras, p. 118


241 WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hanser Verlag, 2009, p.
17
expressão estética romântica no interior do quadro de afirmações da
individualidade liberal em ascensão. Como se a arte fosse reflexo de tal processo,
como se os artistas fossem representantes letrados da ascensão liberal, e não
críticos de suas ilusões.
Pensar a expressão como liberação do sujeito de convenções controladas
pela burguesia significa, no entanto, liberar um sujeito até então conformado às
convenções da individualidade burguesa e a ilusões que, um século mais tarde,
chamaremos de “comunicacionais”. Sem esta liberação não será possível haver
política, pois as formas de reprodução da vida social estarão intocadas nas
estruturas da psicologia dos sujeitos, no circuitos de seus afetos, nas crenças de
sua vida interior. É neste sentido que compreender melhor as dinâmicas ligadas
à construção do conceito de expressão estética aparece como momento
fundamental para analisarmos as expectativas de emancipação social que as
obras de arte ainda seriam capazes de fazer circular. Ela marca, e isto temos
dificuldade cada vez maior em pensar, a emancipação do sujeito diante de sua
condição de indivíduo. Assim, se aceitarmos que a especificidade da arte como
experiência é o fato dela ser uma experiência social da liberdade ou, como
querem alguns, uma “prática da liberdade”242 capaz de mostrar à sociedade o que
a liberdade pode ser, se aceitarmos que ela funciona não apenas como um
discurso compensatório à ausência efetiva de liberdade na vida social, mas como
uma das fontes principais de um desejo de liberdade que irá impulsionar
transformações estruturais na vida social, então diremos que é a realização da
arte como linguagem expressiva que permite aos sujeitos fazerem a experiência
da liberdade. A arte, a partir de certo momento histórico, cria algo até então
inédito, algo fortemente associado a constituição de uma nova consciência da
liberdade, a saber, uma linguagem expressiva.
A este respeito, lembremos, por exemplo, como Lessing compreende o
advento da arte dos tempos modernos, entre outros, através de uma dissociação
possível entre expressão e beleza. Afirmando que a arte nos tempos modernos
conquistara fronteiras incomparavelmente mais largas, ele dirá:

A sua imitação, diz-se, estender-se-ia a toda natureza visível, da qual o


belo é apenas uma pequena parte. Verdade e expressão seriam a sua
primeira lei; e assim como a natureza mesma sacrificaria a toda hora a
beleza a intenções superiores, do mesmo modo também o artista deveria
subordiná-la ao seu desígnio universal e não entregar-se a ela mais do que
verdade e expressão o permitem. Em suma, graças à verdade e à
expressão o mais feio da natureza é transformado num belo da arte243.

As colocações de Lessing são exemplares a respeito das mutações


românticas da categoria de expressão. Por se vincular a um conceito de verdade
elevado à orientação da experiência estética, e não a um conceito de fruição, a
expressão não se submete mais às disposições normativas da beleza. Suas formas
se alargam em direção ao que é indiferente à medida, à proporção e à simetria da
beleza. Impulsionada por uma demanda de autenticidade que chega mesmo a

242 Ver a este respeito a bela reflexão presente em BERTRAM, Georg; Kunst als menschlische
Praxis: eine Ásthetik, Frankfurt: Suhrkamp, 2014
243 LESSING, G.E.; Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia, São Paulo: Iluminuras,

2011, p. 101
questionar a beleza, como se esta não participasse das “intenções superiores” e
do “desígnio universal” do artista, a expressão se abre à experiência da
desmesura própria ao sublime.
Notemos, no entanto, que o termo “expressão” mudará de sentido quando
indicar a manifestação da genialidade do artista, isto a partir do final do século
XVIII. Pois a noção de gênio é tributária daquilo que Adorno entende como a
questão fundamental do romantismo, a saber: “esta de um estado de consciência
que não pode mais se fiar em canon formal objetivo algum e deve objetivar por si
mesmo, a partir de seu próprio peso, as leis de gravitação de sua própria
subjetividade”244. Isto nos auxilia a compreender porque antes do romantismo, a
expressão estava, em larga medida, ligada à mimesis, à capacidade de imitar de
maneira perfeita, um pouco com se espera de um artista de teatro que ele
expresse de maneira perfeita seu personagem. Vínculo entre expressão e
mimesis que, ao menos sob esta forma, desaparecerá com a noção romântica de
gênio, isto a ponto de alguém como Lizst afirmar claramente: “A música não
imita, ela expressa”. Assim, a genialidade do artista estará ligada à sua
capacidade em quebrar a regularidade da forma sem desestruturá-la
completamente. Quebras que fornecerão uma tensão interna à forma, que
mostrarão à forma que ela sempre será assombrada por algo de informe.

A destituição do território

Gostaria de analisar o problema da expressão em Chopin através de dois


exemplos. Um diz respeito a essa articulação fundamental no romantismo entre
experiência estética e emergência do povo, ou seja, da arte como forma de
emancipação social através da auto-determinação do povo. O outro diz respeito à
reconstrução do corpo.
Seria importante lembrar aqui que há maneiras distintas de se procurar
por um povo. Podemos faze-lo à maneira dos compositores nacionais que
recuperam e catalogam materiais folclóricos, músicas populares a fim de
contribuir para a consolidação da identidade nacional no interior da afirmação
dos estados-nação. Dvorak, Janacek e os tchecos, Grieg e os noruegueses, Sibelius
e os finlandeses, Borodin e os russos, Villa-Lobos e os brasileiros. A absorção do
folclore pelos compositores era, na verdade, peça maior da estratégia burguesa
de enraizar sentimentos nacionalistas em uma “gramática da origem” capaz de
fornecer a ilusão de uma continuidade identitária, de materiais musicais
tipicamente nacionais, como os cristais da Boêmia, o café brasileiro e os queijos
franceses. Mas seria este exatamente o caso de Chopin e os poloneses? Já se
procurou sem grande sucesso traços diretos de materiais folclóricos em suas
Mazurkas, com resultados extremamente limitados, não indo além de referências
ligadas a um imaginário popular bastante genérico, até porque, compor danças
polonesas era algo feito pela “música séria” desde a renascença. Eles
praticamente inexistem em suas Polonaises, peças no entanto organicamente
animadas pelo sentimento de procura de um povo em vias de desaparição, assim
como inexiste o trabalho temático com o mito ou com marcas do Volkgeist.
Por isto, podemos dizer que no caso de Chopin e suas Polonaises, o eixo
principal de sua procura por um povo, é outro. O que encontramos inicialmente é
a reformulação completa de um gênero que, até então, aparecia como gênero
244 ADORNO; Figuras sonoras, p. 116
menor ligado à dança, ao divertimento e, por isto, a estereotipia das formas. Um
gênero menor e completamente tipificado advém uma forma-extensa com
desenvolvimento verdadeiramente sinfônico e força dramática. Este novo
desenvolvimento da Polonaise como forma-extensa des-identifica os materiais,
retirando sua tipificação estrita.
Note-se, por exemplo, o sentido de Chopin chamar por um povo
privilegiando operações musicais como a elevação intensiva de operações por
contrastes e por diferenciação de sentimentos no interior do mesmo tema,
muitas vezes no interior da mesma frase musical. Notemos como estas
diferenciações são, na verdade, diferenciações em continuidade. Que tenhamos
em mente o exemplo da Polonaise n.5 e suas resoluções através de cortes
abruptos que, no entanto, resolvem a última nota do tema no início do tema
seguinte de intensidade completamente oposta, criando assim uma continuidade
onde deveria haver apenas ruptura.
Este ponto nos leva a outra característica musical importante. Chopin
chama um povo fazendo apelo a um fluxo constante de desconstituições e
recontextualizações semânticas que transformam o sentido de peças
normalmente usadas para chamar musicalmente um povo, como hinos, marchas,
danças e uníssonos. Os elementos musicais próprios a hinos, marchas e danças
estão lá, mas em um jogo de passagens e instabilidade tal que lhes retira a
capacidade de, digamos, fundamentar um solo. Os hinos se dissolvem em
contrapontos, as marchas viram danças, as danças carregam uma tensão, vinda
da ressonância dos momentos musicais anteriores ainda vivos e prestes a
reemergir, que retiram da dança sua função de divertimento. Isto nos permite
dizer que este povo chamado por Chopin, constitui seus vínculos e seus sistemas
de transmissões através da partilha de uma expressão que não terá solo,
expressão que constrói um espaço musical em fluxo contínuo de transformação.
Fluxos muito intensos para fundar um solo.
Neste sentido, se a emancipação política no século XIX esteve tão
vinculada à construção de um território nacional, com seu imaginário de
libertação e recuperação de uma origem silenciada, a estratégia de Chopin segue
outra coordenada. Ela é um esforço contínuo de desconstituição de territórios, de
invasão de forças heterogêneas que desestabilizam formas e produzem um
espaço de múltipla imbricação. Há de se atentar para este modelo de
emancipação através da abertura a forças heterogêneas. Como disse
anteriormente, ela fornece um outro modelo de emancipação, não mais ligada às
ilusões autárquicas de autonomia e jurisdição de si.
De toda forma, não é por acaso que tal modelo aparece a respeito dos
poloneses do século XIX. Neste momento, como dirá Engels: “polonês e
revolucionário são dois termos idênticos”. Afastado do pan-eslavismo e sua
ressureição contra-revolucionária de arcaísmos, os poloneses seriam, na
perspectiva de Engels e Marx, o único povo eslavo capaz de aceder a uma
consciência revolucionária visando a emancipação coletiva245. Já sua constituição
de 1791 fora acusada de jacobinismo e simpatias revolucionárias, o que motivara
a guerra russo-polonesa e a posterior partição da Polônia. Após a partição, várias
revoltas se sucedem, em especial Varsóvia, em 1830, e principalmente Cracóvia,
em 1846. Marx e Engels dirão que a insurreição de Cracóvia deveria ser vista
como um modelo por ser o primeiro movimento na Europa a hastear a bandeira
245 Ver ENGELS, Friedrich; “A revolta húngara”, In: Nova Gazeta renana, 13 janeiro 1849.
da revolução social, sendo não apenas uma revolução nacional, mas uma
revolução de emancipação de classes, o que os fazem defender sua posição de
precursora das revoluções de 1848. Ou seja, o vínculo à causa polonesa tem, no
século XIX, uma complexidade para além do problema da emancipação nacional.

Reconstituir um corpo expressivo

Mas tentemos desenvolver o problema da expressão musical como


abertura ao heterogêneo através da discussão de algumas peças paradigmáticas
dos Estudos para piano. Comecemos por lembrar que uma abordagem do
conjunto dos Estudos de Chopin em seus dois livros, o opus 10 e o opus 25, além
dos três Estudos sem opus publicados posteriormente, demonstra como não se
trata no caso de Chopin apenas de apresentar dificuldades técnicas para a
formação das habilidades musicais do interprete. Trata-se de algo mais
audacioso, a saber, reencontrar o corpo, reconstruir seus gestos com suas
intensidades e movimentos, recuperar a mão através de dedilhados e
movimentos que construam para cada um dos dedos uma sonoridade que lhes
seria própria.
Não deixa de ser interessante lembrar aqui como a música
contemporânea foi sensível a esta natureza fundamental do gesto musical que
anima o princípio construtivo de Chopin e enraíza sua linguagem musical.
Tomemos, por exemplo, a seguinte afirmação do compositor húngaro Gyorg
Ligeti à ocasião de uma explanação a respeito de seus Estudos para piano:

Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos táteis são quase
tão importantes quanto conceitos acústicos (...) Um giro melódico ou uma
figura de acompanhamento chopinesco não é apenas ouvido, mas é
também sentido como uma forma tátil, como a sucessão de excertos
musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico246.

Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâmica
dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através
da repetição de movimentos. Esta inscrição da corporeidade em um processo de
produção de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de
uma certa expressão corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de
artista”, ligada a uma trabalho sobre si que faz do corpo o campo de
desdobramento daquilo que Ligeti chama de “conceito táteis”.
Mas há algo mais do que produção de um esquematismo corporal em
Chopin e é este ponto que merece nossa atenção. Se é verdade que: “nos Estudos
de Chopin, o momento de maior tensão emocional é geralmente aquele que a
mão é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensação muscular
se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixão”247 é porque,
muitas vezes, esta escultura da dinâmica dos corpos não é apenas a constituição
de uma regularidade, mas o aprendizado das paixões naquilo que elas tem de
mais amedrontador, ou seja, na confrontação com o ponto no qual tensão
emocional e limite corporal se tocam.

246 LIGETI, Etudes,


247 ROSEN, Charles; The romantic generation, p. 383
Esta gramática que não é apenas o ensino da regularidade, mas o
desenvolvimento da confrontação com o limite, não se contenta em ser o
conjunto de condições para o desenvolvimento da virtuose pianística. Ela é o
desenvolvimento da forma como passagem em direção ao limite, como se
realização da forma e sua própria dissolução fossem processos indissociáveis.
Por isto, tal gramática não é apenas um exercício de virtuose, mas a conquista da
expressividade através da reversão da normatividade em princípio de
desconstituição da própria forma. Esta dialética é uma das características
maiores da expressão romântica e diz muito a respeito da maneira com que a
experiência estética poderá a partir de então ser elevada à condição de modelo
social de liberdade. Pois liberdade aqui é indissociável da capacidade de operar o
manejo de uma dialética rigorosa entre constituição e desconstituição.

Violência, dissociações e equilíbrios

Analisemos dois exemplos maiores a este respeito, a saber, o Estudo opus


10 n. 12 (1833) e o opus 25, n. 12 (1837). O que os une é, acima de tudo, uma
mesma caraterística construtiva. Tratam-se de estudos cuja célula elementar é a
repetição de um gesto. De certa forma, é correto afirmar que a ideia musical que
dá unidade e princípio de desenvolvimento à peça é a expressão de um gesto.
Nos dois casos, toda a peça é baseado em um gesto ascendente e descendente
normalmente desenvolvido para mostrar como o pianista deve “tomar posse” da
extensão do teclado. O opus 10 n. 12 tem, além destes gestos de arppegios
ascendentes e descendentes, o movimento de escalas descendentes, claramente
ouvido nos oito primeiros compassos e retomado tanto na primeira reexposição
dos temas quanto ao final. Neste sentido, o que ouvimos na peça é simplesmente
a manifestação de um gesto pianístico fundamental que garante coerência de
desenvolvimento e unidade estrutural à obra. Como se o gesto fosse a célula
elementar do nascimento de toda significação possível, a base de toda e qualquer
linguagem expressiva, o “ser bruto” da língua liberado agora de sua condição de
“objeto” potencial.
Mas há dois pontos fundamentais aqui. Primeiro, uma análise do opus 10
n. 12 demonstra como o Estudo se estrutura, desde seu início, através de um
esforço de construção a partir da desconstituição produzida pela mão esquerda.
Pois a mão esquerda não pode ser descrita como fornecendo algo que se
assemelha a um acompanhamento que se subordina a melodia. De fato, entre os
compassos 10 e 28 os arpeggios ascendentes e descendentes ainda “mimetizam”
uma estrutura tradicional de subordinação. Podemos encontrar tais figuras de
acompanhamento já no Cravo bem temperado, de Bach. Mas há algo aqui de
completamente diferente.
No Estudo opus 10 n. 12, a velocidade e intensidade a que a mão esquerda
está submetida, em contraposição à continuidade da mão direita, funciona como
uma espécie de distorção da função inicial das figuras musicais. Ou seja, elas
estão saturadas e em desconstituição semântica. Há um crescimento por
saturação até os compasso 29 ao 41, onde não há mais nada que possa ser
descrito como se referindo a acompanhamento, nem se trata por isto de uma
estrutura tradicional de contraponto, pois não há exatamente uma outra “voz” na
mão esquerda. A submissão das figuras musicais a um trabalho cada vez mais
extremo de velocidade, intensidade e modulação retira-lhes o caráter de voz para
aproximar-lhes de algo, de certa forma, anterior à voz de um sujeito. A
continuidade ininterrupta deste trabalho de velocidade e intensidade faz de toda
a sequência da mão esquerda algo abaixo da incorporação da música à voz,
abaixo do processo de incorporação de frases musicais à intenção significativa.
Há de se sentir esta impessoalidade, esta despersonalização em emergência para
interpretar de forma correta a peça. Há de parar, ao menos por um momento, de
se perceber como portador de “vozes” que se agenciam em um diálogo.
Assim, ao invés da subordinação das vozes, ao invés das vozes em
contraponto, temos algo como uma espécie de fluxo intensivo cortado pelo
trabalho da mão direita com pontuações que paulatinamente constituem uma
série melódica extraída da transcrição pianística de uma gestualidade em
explosão. Como se estivéssemos diante de um fundamento que, ao invés de
operar por semelhança ao fundado, é a forma mesma do que não permite
construção alguma por relações de semelhanças. O que demonstra quão errado
estava René Leibowitz ao dizer que, em Chopin, a escritura não ultrapassa nunca
o solo da melodia acompanhada.
Tal construção através de cortes é pois a expressão de um segundo
princípio que se descola do princípio meramente gestual da mão esquerda. A
mão esquerda apresenta uma intensidade em limite contínuo e uniforme
enquanto a mão direita é capaz de operar por contrastes, tal como vemos no
contraste que suporta a relação antecendente-consequente das células motívicas
dos compassos 10, 11 e 12. Esta operação por contrastes, que aparecerá em
outros momentos da peça, indica um modelo de construção e controle estranho
ao fluxo contínuo e indiferenciado da mão esquerda. É por levar em conta tal
dinâmica de agenciamento de contradições que podemos dizer que poucas foram
as peças musicais que expuseram de forma tão evidente a estrutura da expressão
romântica como elaboração da contradição posta entre indeterminação e
determinação, como elaboração singular de modalidades de controle do que
aparece como posição enfim exposta do ímpeto (Drang). Como se tratasse de
expor um corpo que parece, a todo momento, confrontar-se com a
desestabilização produzida por um plano de pura intensidade. Como se
interpretar um Estudo como este exigisse do pianista perceber-se entrar em um
movimento de dissociação, chegar no limiar de um descontrole que, apesar disto,
deverá ser calculado e conscientemente produzido. Esta forma da expressão
musical como subjetivação de processos que, no interior da linguagem musical,
estão, de certa maneira, em processo de desconstituição semântica por
expressarem o que força a forma musical em direção ao informe fazem da
experiência estética uma relação constitutiva à heteronomia. Não haverá depois
disto experiência estética sem o impulso de forçagem da forma para fora de si
mesma. Esta será a maior das contribuições românticas.
Nas notas redigidas para a elaboração de um método de piano, Chopin
escreveu: “A palavra indefinida (indeterminada) do homem é o som”/ “A língua
indefinida: a música”248. Chopin não poderia ser mais romântico nesta forma de
elevar a indeterminação a condição de processo fundamental da linguagem
musical. No entanto, há de não esquecer como tal elevação é peça maior da
estratégia de dar à experiência estética a condição de forma paradigmática da
emancipação social. Pois insistamos mais uma vez que essa língua indefinida
própria à música será o veículo de uma sensibilidade outra. Se a música a partir
248 CHOPIN, Frédéric; idem, p. 48
do romantismo associa de forma tão clara a expressão ao fragmentário, à
ruptura, à não conformação a princípios construtivos, à exaustão do limite, à
desconstituições semânticas, à críticas às formas gerais do classicismo (a ponto
de relativizar o conceito de “belo” em prol do “sublime”) é porque o movimento
do qual a música será, de forma cada vez mais evidente, expressão da crítica à
linguagem reificada da vida ordinária, linguagem esta submetida aos imperativos
comunicacionais e seus modos de constituição de objetos.
Estes processos visíveis no fundamento da estética romântica ganharão
vida própria para além do próprio romantismo, não apenas no interior da
Segunda Escola de Viena, mas mesmo para além dela. Há de se salientar este
ponto pois poderia parecer que principalmente a partir do serialismo, a
expressão musical não teria mais lugar. No entanto, não é correto dizer que a
expressão deixaria de ser um conceito estético central depois que, como dizia
Boulez, “Schoenberg morreu”. O recurso ao serialismo, à inexpressão (como na
música de indeterminação de John Cage ou no objetivismo de Stravinsky) ou
mesmo ao maquinismo em suas versões múltiplas na história moderna da
música (de Colon Nancarrow, por exemplo) podem significar mudanças radicais
no regime de similitude da música à linguagem (“Sprachähnlichkeit”), como diria
Adorno249. Mas é possível levantar como hipótese de que tais estratégias podem,
por sua vez, serem lidas no interior de uma dialética necessária para a
recuperação da potencialidade não-intencional da expressão.
É claro que podemos encontrar tendências importantes da música
contemporânea que visam transformar a experiência estética em experiência, ao
mesmo tempo, não vinculada de maneira estrita a funções sociais exteriores e
não dependente de uma estética dos sentimentos própria à uma concepção de
sujeito fortemente egológica. Neste sentido, não é mero acaso que momentos
decisivos da arte modernista tenham sido animados pela luta contra a expressão
e o estilo. Tais momentos denunciaram o estilo como depositário de uma
gramática reificada de formas, assim como a expressão musical aparece como a
tentativa de fetichizar uma “segunda natureza” que teria se cristalizado através
de uma gramática fixa dos modos de afecção.

Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl
249

Hansen Verlag, 2009, pp. 7-14

Você também pode gostar