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Referência: REGO, Enylton de Sá.

O calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a sátira


menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

VITORINO, Mônica Costa. Juvenal: o satírico indignado. Belo Horizonte: Faculdade de


Letras (UFMG), 2003.

Já nas primeiras linhas de MPBC, é possível definir o modelo luciânico que Machado adotará
para ler e configurar a realidade nacional oitocentista no romance. O estilo cômico e sério,
spoudogeloios, marca da sátira menipeia, é o mote com o qual Brás torna sua vida pública na
morte:

Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é


difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no
livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele
o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos
frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião (ASSIS, 2010, p. 19).

A confissão de Brás não seria outra que não a opção machadiana, diante da
acumulação literária de uma nação periférica como o Brasil, de inovar as letras nacionais
adotando “um estilo livre” à maneira de Laurence Sterne. Assim, Machado lança um enigma
para a crítica literária: por que nosso autor se utiliza desta forma de romance para aproximar-
se da “cor local”? Para Enylton Sá Rego (1989), ao fazer essa escolha, Machado arrisca-se a
tornar alvo de crítica do público, uma vez que a “forma shandiana” do escritor inglês gozara
de pouco prestígio em matéria de crítica literária após os primeiros séculos de publicação de
Tristram Shandy. E é essa opção que leva Capistrano de Abreu (apud REGO, 1989, p. 9) a
assinalar estas palavras ao autor das Memórias em carta de 1881: “O que é Brás Cubas, em
última análise? Romance? Dissertação moral? Desfastio humorístico?”.

Com efeito, os autores (MERQUIOR, 1972; BAKHTIN, 1993; REGO, 1989;


ROUANET, 2007) têm assinalado a continuidade da produção literária moderna com base na
sátira menipeia. Essa tradição, que remonta a Erasmo, Cervantes, Stern, Diderot, por exemplo,
terá na obra de Luciano de Samósata o arquétipo do riso e da crítica. Mas como se caracteriza
a sátira menipeia?

A palavra sátira guarda relações diretas com a produção literária satírica grega. Para
Mônica Costa Vitorino (2003), a crítica literária clássica, de Aristóteles a Horácio, viu na
sátira um gênero literário e, como tal, uma relação direta de correspondência entre forma e
conteúdo. No entanto, segundo a autora, deve-se ter cautela para avaliação de textos antigos
com base nesses critérios, uma vez que as teorias de Aristóteles da Arte Poética (2007) são
prescritivas e normativas, não nos fornecendo, portanto, insumos necessários à compreensão
da gênese satírica de textos antigos. Em Arte Poética (2007), por exemplo, Aristóteles toma a
categoria de mimesis para diferenciar os gêneros literários de acordo com aquilo que imitam.
Embora o estagirita não tome a comédia como artefato literário de suas considerações
filosóficas nessa obra, ele a diferencia da tragédia de acordo com os caracteres humanos que
visa a imitar: na tragédia, imitam-se as virtudes humanas, ao passo que, na comédia, os vícios
(ARISTÓLES, 2007).

Enylton Sá Rego (1989) brevemente mapeia as origens do nome Menipo associado à


sátira dos relatos não muito inconsistentes de Diógenes Laércio no século III a respeito de
Varrão, Lucílio, Horácio, Pérsio, Quintiliano, Luciano, Sêneca. O crítico da obra de Machado
de Assis identifica duas formas de conceber a sátira realizada no mundo antigo: a sátira
romana — discutida, sobretudo, por Horácio, Lucílio e Quintiliano — e a sátira menipeia. A
diferença entre as duas consiste, para Sá Rego (1989), em dois critérios: um formal e um
moral. O primeiro guarda relações diretas com a produção romana, uma vez que esta
produção limitava-se a hexâmetros, ao passo que as produções de menipeias se tratavam de
uma forma mais híbrida, de uma miscelânea de gêneros literários — como tal, essa sátira não
era considerada como gênero pelos latinos (REGO, 1989). O segundo critério versa sobre a
função social do riso, tido como meio de denúncia dos vícios da humanidade no mundo
antigo. Ou seja, o satirista, através do riso, trata de coisas séries (spoudogeloion): "As duas
máscaras diferem, mas o objetivo é idêntico: através da sátira, afirmar a única Verdade;
através da ironia, moralizar. E isso, seja com um sorriso nos lábios, seja pela denúncia
veemente dos vícios alheios” (REGO, 1989, p. 60). Luciano, embora herdeira da tradição
grega do spoudogeloin, distancia-se desta por não apresentar em seus textos um ponto de vista
moral indiscutível, isto é, os textos luciânicos possuem um aspecto não-moralizante (REGO,
1989), de modo que se distanciam dos satiristas Juvenal e Horácio, cuja verve da ironia e do
riso resvala em um apelo contra os vícios da humanidade:

Em contraste com essas personae geralmente atribuídas a Horácio e a Juvenal ‒ e


talvez por eles próprios cuidadosamente construídas ‒ vemos que é impossível
identificar Luciano com qualquer dessas duas máscaras [...] uma das características
de sua arte consiste precisamente em apresentar seus personagens em diálogos como
que ouvidos por uma espectador distanciado, deixando assim ao leitor as conclusões
sobre a moralidade do texto (REGO, 1989, p. 61).

A obra de Luciano de Samósata, para Sá Rego, guarda dois momentos, devido ao seu
caráter híbrido, com a produção literária do mundo antigo: a continuidade e a descontinuidade
com a tradição satírica. Quanto ao segundo, o próprio caráter híbrido representa o elemento de
ruptura com as normatizações de gêneros literários na Antiguidade; em relação à
continuidade, a obra de Luciano herda dos diálogos filosóficos e da comédia gregos a
linguagem literária. Dentre esses dois momentos, há um elemento contínuo na obra luciânica:
o caráter sistemático do uso de paródias. seja em relação aos gêneros literários com os quais
manterá diálogo

“o lucianismo apresenta também um método: trata-se de uma obra baseada não numa
mimesis, como a aristotélica, mas sim numa poética guiada fundamentalmente pela paródia”
(REGO, 1989, p. 65).

Um olhar sobre a característica da sátira menipeia feita por Sêneca pode apontar estas
características: “caráter parodístico, mistura de estilos populares e elevados, assim como
andamento irregular da narrativa” (REGO, 1989, p. 42).

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