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UM OLHAR CARNAVALIZADO SOBRE AS “MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE

BRÁS CUBAS”

Autor: Nilcileia da Silva Rosário


Instituto 1

RESUMO:

O presente trabalho tem por objetivo mostrar como se articula as peculiaridades dos gêneros do
sério-cômico, na composição do romance, "Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis;
no que se refere não só a sua função de crítica aos moldes relacionados aos valores românticos, mas
também, a análise dos padrões morais e sociais vigentes na sociedade do século XIX, no que tange o seu
papel de interpretador da vida por meio das palavras. Para tal, foi necessário trabalhar com os seguintes
conceitos: Dialogismo autoral, de Mikhail Bakhtin, relacionando-o ao processo composicional
empregado por Machado de Assis, sobre a questão da estrutura dual existente entre o autor primário e
secundário ou imagem do autor, além do diálogo socrático e da sátira de menipéia que são elementos
principais que compõem a estrutura do romance em questão.

PALAVRAS-CHAVES: Memórias Póstumas de Brás Cubas, campo do sério-cômico e dialogismo.

ABSTRACT:

The paper aims to show is articulated as the peculiarities of the genera of the serious-comedy, in
the composition of the novel, “Memoirs of Brás Cubas Póstumas” of Machado de Assis, as regards not
only the function of criticism related to the was the values romantic, but also, the analysis of the patterns
morals and socials in effects at the society of the century XIX, as refers the its role interpreter of live
through words. To this end, it was necessary to work with the following concepts: Dialogism copyright,
Mikhtin Bakhtin, linking it to the process used by compositional Machado de Assis, on the issue of duality
between primary and secondary author or image of the author, beyond socrático dialogue and satire of
menipéia which are core elements that make up the structure of the novel in question.

Keywords: Memories of Póstumas Brás Cubas, field of the serious-comic and dialogism.

INTRODUÇÃO

O romance das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, surge


publicado originalmente em forma de folhetim na Revista Brasileira, entre os períodos
de março a dezembro de 1880, com as características estéticas que romperiam com o
modelo narrativo de romances criados anteriormente pelo autor, inspirados nos padrões
românticos que ainda predominavam no Brasil, e, somente um ano depois ocorreu sua
publicação em livro. Causando grande impacto no meio literário, ao despertar polêmica
se o enredo seria mesmo de um romance, visto que a sua estrutura insólita e desenvolta
impossibilitavam críticos, como Capistrano de Abreu enquadrá-lo de maneira

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Universidade Federal Fluminense_ UFF

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convincente nas tendências que começam a vogar também nesse momento, como
realismo e naturalismo.
Ao passar de algum tempo, compreenderam que se tratava de um estilo literário
que Machado inaugurava na literatura brasileira, que de acordo com Alfredo Bosi
(2006, p.22), refere-se:

O estudo seminal de Mikhail Bakhtin sobre a sátira menipéia,


portadora da mescla dos gêneros, bem como sua categoria de romance
polifônico aplicada ao romance de Dostoievski calaram fundo nos
leitores sensíveis ao teor paradoxal e o modo joco-sério da dicção de
Brás Cubas.

Partindo desse entendimento, a proposta deste artigo focaliza-se em estudar a


articulação da série carnavalesca, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em relação a
sua função crítica aos modelos nacionais da idealização romântica e aos padrões morais
e sociais existentes na sociedade do século XIX. Para isso, este trabalho se divide em
duas partes, a primeira tratará do Dialogismo autoral em Memórias Póstumas, e a
segunda, o emprego da sátira de menipéia na composição estrutural da obra.

I - DIALOGISMO AUTORAL

É interessante notar a forma inovadora que Machado de Assis passou a estruturar


a obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao criar, logo de início, um autor imanente
à estrutura peculiar do romance, um tipo de “autor” -narrador, mas também denominado
por Bakhtin (2003, p. 384) de autor secundário ou imagem de autor, “natura creata
quae creat 2 ”, natureza criada que também possui o poder criador delegado pelo o autor
primário, “natura non creata quae creat”, ou seja, natureza não criada, mas criadora,
que no plano ficcional da obra, tem o poder de criar personagem, o qual possui
simultaneamente dupla função de autor e narrador, o qual passa a tecer todo o enredo de
dentro da própria obra.

2
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal, p. 460. Termos primeiramente
empregados pelo filósofo Jean Scott Erigène, no início da Idade Média, no que se refere
à descrição dos quatro modos da natureza do ser, referente à ação criadora da divindade,
mas que Bakhtin utiliza metaforicamente para descrever a criação artística do ser
humano.

2
Desse modo, esse autor secundário, ou imagem de autor atua como personagem
principal que narra os fatos, além de criar as personagens, as quais, ele interage e
dialoga com elas. Sendo um elemento estético que faz parte do próprio processo
composicional do autor primário, cuja intenção é reproduzir um romance que o
possibilita narrar acontecimentos e ações ocorrentes na vida dos homens que se
relacionam em sociedade, com total descomprometimento em relação ao olhar da
opinião pública, ao mesmo tempo em que torna os relatos mais objetivos e realistas,
atingindo um alto grau de verossimilhança na representação do quadro humano.
Essa consciência da necessidade de distanciamento proporciona Machado de Assis
afastar-se ainda mais da narração e da condição de autor, ao cometer uma falsa
inverossimilhança (Bosi, 2006, p.8), ao criar um autor, que não possui nenhuma
semelhança com a vida real, mas que faz parte de seu humorismo filosófico que, sob a
aparência da morte ele realiza uma auto-análise sobre a vida, visto que, o narrador é um
defunto, que só nessa condição de defunto é que se tornou autor.
Portanto, o romance é narrado em primeira pessoa, por um protagonista que já está
morto, enterrado e comido pelos vermes, Brás Cubas que, distanciado também no
tempo, pela morte, abrange com o olhar toda sua vida, procurando recapitulá-la e passar
essa narrativa com maior precisão possível.
Logo, é, esse distanciamento que lhe possibilita ter uma pseudo-onisciência, já que
eleva a narrativa ficcional ao status de realidade concreta, ao narrar com abundância de
pormenores os acontecimentos, falando da vida, das pessoas com quem conviveu, e de
sua contribuição para esse estado de coisas, compondo um painel onde pinta a natureza
humana, com total isenção e sinceridade, uma vez que se encontra totalmente
desvinculado de qualquer relacionamento com a sociedade e com suas normas sociais,
pois como defunto encontra-se livre e absolutamente soberano para descrever a vida, as
pessoas e a si próprio: “estas são as memórias de um finado, que se pintou a si e a
outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo”. (ASSIS. 2004, p.1.)
Desta forma, a narrativa de Memórias Póstumas estrutura-se sobre o enfoque
dialógico da dualidade autoral, no qual o autor revela-se tanto na forma de agente
criador da obra como força representadora, a qual concede a essência desse processo de
criação poética à imagem de autor, visto que já no prólogo à quarta edição que é feita
pelo autor primário, Machado de Assis, outorga a autonomia da autoria ao defunto de

3
“Memórias Póstumas”, ao exibir as respostas que esse deu às críticas feitas por
Capistrano de Abreu em relação à estrutura do romance, na Gazeta de Notícias, e a da
carta que o próprio Machado de Assis, recebeu de Macedo Soares:

Ao primeiro respondia já o defunto Brás Cubas (como o leitor viu e


verá no prólogo dele que vai adiante) que sim e que não, que era
romance para uns e não o era para outros. Quanto ao segundo, assim
explicou o finado: Trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás
Cubas adotei a forma livre de Sterne ou de um Xavier de Maistre, não
sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. (idem)

Sendo assim, no prólogo “Ao leitor”, Brás Cubas reafirma esse duplo aspecto do
autor resultante do processo criador, ao descrever como se deu o seu processo
composicional em relação à obra. “Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.
Cheia de digressões e extravagâncias, visto que, nela em vez de o leitor encontrar
uma narrativa linear e objetiva, de acordo com o gosto do público burguês consumidor
de literatura, que segue o estilo de Flaubert ou Zola, ele adotava a “forma livre” de
Lawrence Sterne, construído, assim, da prosa errante e caprichosa de um leitor que a
partir da leitura das Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, o levara
possivelmente ao estilo de Xavier Maistre, em Voyage autour de ma Chambre, e este ao
modelo de Sterne.
No entanto, percebe-se que, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, existem duas
características essenciais e bem evidentes, as quais não se encontram em Sterne.
A primeira é a questão filosófica e sardônica que estão presentes no humorismo de
Machado, contaminado pelas “rabugens de pessimismo” e de ironia álgida, como relata
o finado autor, sendo bastante distinto do humorismo que há em Tristram Shandy, e o
gosto amargo e angustiante que a “galhofa” de Machado de Assis / Brás Cubas deixa no
leitor, e a segunda é a natureza fantástica, em que envolve toda a narrativa do romance,
que será comentada a seguir.

II - SÁTIRA MENIPÉIA E O FANTÁSTICO EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS

As Memórias Póstumas são um romance moderno representante do gênero


cômico-fantástico, também conhecido como sátira menipéia cuja sua raiz aponta
determinantemente para a origem do folclore carnavalesco, conforme Bakhtin (2005, p.

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112-113), é um gênero bastante “flexível e imutável (...) capaz de penetrar nos outros
gêneros” literário, mesclando na composição da obra essa cosmovisão carnavalizada.
Caracterizada por uma excepcional liberdade de criação, a sátira menipéia é a base
da estrutural narrativa de Brás Cubas, começando pelo fato do romance pertencer à
autoria de um defunto, relato de “memórias” totalmente póstumas, artifício este, que o
autor primário utilizou, por meio de um duplo jogo de ausência e presença do eu que
narra, o defunto, e o eu vivo, a ação propriamente dita da personagem no desenrolar da
trama, a fim de expor as discrepâncias existentes em relação às normas sociais.
Portanto, é na região dos mortos o seu berço de composição, lugar ideal para o
humor franco, irônico e sagaz de Brás Cubas, pois se encontra fora do alcance dos
limites impostos pelo mundo dos vivos. Riso, este que exerce função de elemento
deflagrador da verdade, denunciando o estado de mazela que se encontra a sociedade,
ao narrar a essência do homem, em sua precariedade existencial.
Nesse sentido, o sabor ferino e mordaz da obra destoou todos os moldes nacionais
de idealização românticas vigentes da época, causado pelo pleno impacto do novo estilo
de abordagem aos valores românticos, que o narrador-personagem ao se deter nos
defeitos e qualidades de seus amores, ressalta-os com total liberdade de expressão, sem
reverência, pudor e regra de decoro.
Na descrição de Virgília, Brás Cubas ressalta as suas sardas e espinhas, sua
preguiça e ainda a chama de indiscreta e ignorante; já com Eugênia, Brás Cubas começa
a descrevê-la com toda idealização romântica, mas, logo, ele destrói toda essa descrição,
ao relatar um dado da realidade: ela era coxa de nascença. Por fim, termina num tom
irônico e cruel denominando-a de “Vênus Manca”, ao mesmo tempo em que, emprega o
seu humorismo ziguezagueante, a sua estrutura insólita e desenvolta que compõe o
livro, impedindo, também, qualquer identificação convincente com os modelos de
romances realistas ou naturalistas.
Em relação às outras personagens do romance, Brás Cubas, também, não as
apresenta com estrutura moral unificada e típica do romantismo, uma vez que, ele expõe
a suas relações e atitudes que transgridem as convenções morais e sociais, revelando a
suas naturezas egoístas e mesquinhas, compondo uma verdadeira galeria de caracteres:
Cubas pai, o Vilaças, Marcela, o capitão do navio, Cotrim, Lobo Neves e o próprio

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protagonista são imagens vivas da presunção genealógica, do exibicionismo oratório, da
avareza, do furor literário, da cupidez e da ambição política.
Desta forma, todos apresentam várias amarras ou elementos morais que encarnam
uma das qualidades, ou seja, defeito predominante. Por conseguinte, Brás Cubas,
assinala que se trata de uma “obra difusa”, escrita com gracejo e zombaria, porém com
travo acre e melancólico possuído de um bom senso crítico.
Essa essência inquietadora que está presente no humor do “autor” -narrador, surge
exatamente da tendência inquisitiva e filosófica relacionada à visão problematizadora de
Machado, autor primário, tem da sociedade, e que se personifica na forma de
representação discursiva na voz do autor secundário, e que penetra em todo conjunto da
obra. Podendo assim, dizer que Brás Cubas como imagem de autor acaba oferecendo
ao leitor um retrato às vezes cruel, melancólico e realista do ser humano do século XIX,
ao realizar sua viagem à roda da vida, mas que, ao longo dos tempos, não se difere do
painel humano que compõe a sociedade de hoje.
Sendo assim, necessário ressaltar o caráter publicístico atualizado que possui o
romance, enfocando em tom mordaz o universalismo filosófico e os tipos humanos que
há em todos os campos da vida social e ideológica do passado e do presente. Como se a
sua obra fosse um enorme espelho onde o leitor se mira vestido e se vê nu 3 .
De acordo, com essa perspectiva, pode se dizer que as particularidades da
literatura cômico-fantástico existente em Memórias Póstumas de Brás Cubas resumem
nas seguintes características:
a) a ausência de total distanciamento enobrecedor na representação dos
personagens e de suas ações, principalmente do personagem narrador, pois este fala e
atua no campo do livre contato familiar, com um franco discurso carnavalesco, sendo às
vezes, cínico-desmascarador, conforme se observa na descrição do perfil do “herói”,
Brás Cubas, que segundo suas próprias palavras, era adjetivado quando criança por
“menino diabo”, sendo maligno, arguto, indiscreto, traquina, mentiroso e vingativo, já
adulto, “....Tinha conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um
acadêmico estróina, superficial, tumultuário e pedante” (ASSIS, 2004, p. 37),

3
Frase adaptada do comentário introdutório de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou
Uma viagem à roda da vida de NICOLA, José. (2004) p. XXV.

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apresentando uma atitude excêntrica, pelo qual se distingue nitidamente dos heróis da
epopéia e da tragédia que possuem valores e grandezas, tais como espírito de nobreza,
amizade, respeito à família e a Pólis 4 ;
b) a mistura do sério e do cômico, que resulta de uma abordagem humorística das
questões mais cruciais da vida, em que as últimas posições filosóficas são confrontadas,
como: o sentido da realidade, do destino e da existência do homem. Além de o enredo
ser conscientemente construído com base na experiência e na fantasia livre, sem está
preso a qualquer exigência da verossimilhança externa vital, visto que o “autor”
apresenta um mundo às avessas, onde somente um defunto-autor possui prerrogativas
necessárias para escrever “memórias”, “nas quais só entra a substancia da vida”, já que,
o “herói” está subordinado à função puramente ideológica de provocar e experimentar a
verdade, permitindo uma nova visão do homem.
Desse modo, o tema da imagem da morte em gestação atua com base no próprio
núcleo da cosmovisão da obra, dando ênfase ao nascimento do romance, Memórias
Póstumas de Brás Cubas, através do defunto-autor, Brás Cubas;
c) o uso constante de gêneros intercalados, como bilhete, a história de Dona
Plácida, cartas, e a variedade de vozes de todos esses gêneros, que compõem a
politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, epitáfio e do epigrafe. De
acordo com isso, pode-se dizer que Machado de Assis preparou cuidadosamente a
combinação original da menipéia com a arte de representação autobiográfica de Sterne
de Maistre, acentuando, ao mesmo tempo, as questões filosóficas contidas em uma das
fontes do Tristram Shandy: os Ensaios de Montaigne, clássico da biografia espiritual em
estilo informal.
Logo, a “memória” de Brás Cubas pode ser classificada como romance que trata
de questões filosóficas e moralistas em tom bufo, em ritmo foliônico, predominando
nessas pseudomemórias o ânimo de paródia, o tom satírico e a carnavalização, em lugar
do estilo bem-humorado e simpático de Sterne;
d) a representação literária do estado psicológico anormal do ser humano,
nomeada de experimentação moral e psicológica. Presente na obra na forma do delírio

4
Termo de origem grega que significa de acordo com Dicionário grego-português e
português de S.J, Isidro Pereira, (1998), p.467, Cidade, Estado ou reunião dos cidadãos
atenienses.

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de Brás Cubas. Ponto chave da filosofia das Memórias Póstumas, em que o Moribundo,
Brás Cubas, que devaneia, ao imaginar que, montado num hipopótamo, cavalgava rumo
à origem do século, até que uma vasta figura de mulher, Natureza ou Pandora,
arrebatando-o para o alto de uma montanha, o faz contemplar o cortejo das épocas, onde
a vida é vista pelo um novo ângulo, obrigando-o a endente-la e avaliá-la de uma
maneira nova, fora da vida comum, entrando na esfera do fantástico experimental, em
que tudo é feito com o objetivo de criar situações extraordinárias para provocar e
experimentar uma idéia filosófica, uma verdade.
Nessa perspectiva, o desfile dos séculos é um espetáculo amargo; em que Brás
Cubas percebe que o homem é o chocalho dos seus sentimentos, que o prazer não é
senão “uma dor bastarda”, que Natureza se apresenta como “mãe inimiga” do ser
humano, um flagelo; a História se mostra uma catástrofe.
Com isso torna-se compreensível o “riso descompassado e idiota” do protagonista
na observação do cortejo, pois, o mundo todo lhe “parece cômico e é percebido e
considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo”. Já que o riso, aqui,
aparece na ambivalência da “forma universal da concepção do mundo que assegura a
cura e o renascimento”, pois, Brás Cubas passa rir, quando compreender a existência
humana, que surge de uma desalentadora oscilação entre dor e o prazer, produzida pelas
mazelas e os absurdos que existem na vida humana, mas mesmo assim, o ser humano
busca na vida, a felicidade que é passageira. Nada menos do que uma fantasia, uma
ilusão, que escapa das mãos dos homens. Revelando-o, portanto, a futilidade das
pompas e a inutilidade da vaidade e do orgulho, pois a ação do sofrimento e da morte é
inevitável.
Dessa maneira, nota-se que através do tom sério-cômico que compõe as narrativas
das memórias do personagem-narrador, Brás Cubas é um fátuo, um escravo dos desejos,
que almeja egoisticamente ao prazer, a glória e o poder, e que sua vida se desenvolve
num cenário onde predomina a decomposição dos seres e das experiências: o seu amor
por Virgília, a beleza de Marcela, a ternura pela irmã, tudo acaba, tudo apodrece. Sendo
afirmativa do próprio “autor”, ao relatar que o livro “é enfadonho, cheira a sepulcro,
traz certa contradição cadavérica: vicio grave, e, aliás, ínfimo, porque o maior defeito
deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer...” (ASSIS, 2004, p.81).

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Assim sendo, todo esse pessimismo de Brás Cubas possui fonte na metafísica , em
que o tempo é um agente de dissolução e estrago, por isso, as leis que regem a vida é a
destruição e a crueldade. Desse modo, que surge a reação do protagonista em matar com
metafísica volúpia as borboletas, moscas e formigas, além de mostrar que os oprimidos
não diferem dos opressores. Observa-se isso, nas atitudes do ex-escravo Prudêncio, que
Brás Cubas quando criança maltratava-o, e ao se encontrar livre, chicoteia ao seu
próprio escravo.
Assim, Brás Cubas, mestre do desmascaramento, e um seguidor do moralismo
francês, referente as idéias filosóficas de Pascal e Schopenhauer em que o homem é
naturalmente mau e egoísta, atitude que causa todo mal a humanidade, de acordo com
Coutinho (1990, p. 200), “o homem é só disfarce, mentira e hipocrisia, para si e para os
outros”, para os quais, os bons sentimentos são a máscara hipócrita do egoísmo, que
ocultam nas causas mais nobres as ações de impuros interesses, já que os valores sociais
estão pautados na mentira e nas conveniências.
Observa-se nesse ponto, a retomada da teoria do medalhão, na fala do Cubas pai,
ao dizer: “Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de
todos é valer pela opinião dos outros homens” (ASSIS. 2004, p. 46). Neste caso, o ser
humano é produto do olhar de outros homens. Declaração, essa, ratificada pelo próprio
Cubas filho, “De um ou de outro modo, é uma boa solda a opinião, e tanto na ordem
doméstica, como na política” (ASSIS. 2004, p. 113).
Por último, a derradeira característica a ser comentada em relação ao romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas:
e) o uso de contraste agudo e do oxímoro, na figura de Quincas Borba, o mendigo
filósofo que representa como criador da teoria do “humanitismo”, sendo uma sátira a
“religião da humanidade” dos positivistas, que se reivindicam por si só o pleno
reconhecimento do caráter agônico e bélico da vida. Nisto consiste a ironia de Machado
que está justamente atribuindo-lhes essa arrogante pretensão de considerar que toda
crueldade e desgraças que há no mundo são outras vitórias de Humanitas, o principio
superior do Ser, que segundo Schwarz (2000, p.164-166), está vinculado a crítica que
Machado fazia ao pensamento de Darwin, que não só justificava como também
mantinha toda organização estrutural escravocrata da sociedade brasileira, mediante a
esse processo de seleção natural refletido no romance pelo ambiente das elites

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aristocráticas, do próprio Brás Cubas, do Lobo Neves e Cotrim, além dos agregados,
como dona Plácida, e da exploração dos escravos, na figura do escravo forro Prudêncio.
Logo, Quincas Borba é um otimista ridículo, como o Pangloss, personagem criado
pelo filósofo e escritor francês Voltaire em seu romance satírico Candido, que defendia
o otimismo infundado e o finalismo, sistema filosófico segundo o qual tudo tem um fim
determinado.
Neste caso, Machado faz do “humanitismo” uma teodicéia absurda, ao compará-la
com a filosofia de Pangloss, além de construir uma imagem grotesca e dogmática seu
propagador, Quincas Borba, visto que o seu humorismo tinha a finalidade de conceder
uma homenagem implícita à metafísica de Schopenhauer, em relação a filosofia do
Humanitismo, ao defini a dor como a essência do ser (Coutinho, 1990, p. 222), que
nasce a partir da “vontade de viver, de ser e de conservar a existência (...) que gera
sempre novas necessidades e novos dons, novos anseios e afinal o tédio, que acompanha
sempre a satisfação dos desejos.”

CONCLUSÃO

Em suma, toda essa articulação do gênero do sério-cômico e da sátira da menipéia


na composição do romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas, está relacionada à
concepção da visão de mundo de Machado de Assis, que leva o leitor a refletir sobre a
vida através do comportamento e das ações vivenciadas em sociedade pelos
personagens do romance.

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Bibliografia:

ASSIS, Machado de.Memórias Póstumas de Brás Cuba.São Paulo: Editora Scipione,


2004.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad.Paulo
Bezerra, 3ª. Edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra, 4ª. Edição, São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francis
Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo: HUCITEC, 1987.
BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões.São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COUTINHO, Afrânio.A literatura no Brasil. (Co-direção:Eduardo de Farias Coutinho).
4ª. ed. São Paulo: Global, 1997.v.4.
______.Machado de Assis na literatura brasileira.Coleção Afrânio Peixoto, da
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1990.
S.J, Isidro Pereira, Dicionário grego-português e português-grego. 8º.ed. Livraria A.I.
Braga, 1998.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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