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RIO DE JANEIRO
2007
CELIA REGINA DE BARROS MATTOS
RIO DE JANEIRO
2007
Mattos, Celia Regina de Barros
Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma
leitura heideggeriana / Celia Regina de
Barros Mattos – 2007
429 f.
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________________
Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro - Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profa. Dra. Angélica Maria Santos Soares
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profa. Dra. Idalina Azevedo da Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profa. Dra. Ângela Maria Fabiano Mendes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Prof. Dr. Julio Aldinger Daloz
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profa. Dra. Martha Alkimin
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profa. Dra. Sílvia Cárcamo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
Em respeito à Hierarquia
agradeço à “Outra Voz”:
no meio da madrugada, a Voz
abrir um livro ao acaso, a Voz
escrever enquanto caminha, a Voz
a palavra certa, na hora, a Voz.
Até do orientador
que, impaciente, alertou:
“Teu prazo vai-se esgotar!”, a Voz.
São meus Guias, são meus Mestres
são meus santos?
São Francisco, São Miguel
são tantos que nem sei.
Voz do daimon, voz do logos...
Só sei que ela não é minha
ou essa Voz não é “outra”
é todas; é uma só Voz.
Ao meu orientador
Se é preciso pro-duzir
espontâneo se antecipa
__
Se tocados pela imagem,
quem sabe, enxergam as “questões”?
__
Questões, eu já disse:
o que importa são as “questões”!
Ao amigo Júlio
O respeito e a admiração
sempre me incentivaram
À Luciana
Agradeço a paciência
de esperar disponibilidade
e de ouvir sempre: espera!
de alguém que tanto espera
poder ser só disponível
Às crianças da família
A todos os sobrinhos,
a todos os jovens deste mundo caduco,
um exemplo, uma sugestão:
“Vai (...) ser poiesis na vida”.:
SINOPSE
MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura
heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da
Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
destinação exige que Dom Quixote cumpra seu destino heróico e liberte o Ocidente
1
A morte não triunfou
ABSTRACT
MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura
heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da
Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
poetic point of view divided in three periplus with the hermeneutical aspect. Don
Quijote, the philosopher-Knight went out to search for Cure and between birth and
includes de “can-be” pastor and “can die” in the list of its essencial possibilities.
Nevertheless, in the epitaph “La muerte no triunfó”. From then on, Quijote faces the
confront the Technic – the most radical face of the ocidental thinking – disguised as a
Knight. The long ago announced fight is inevitable; and in the extinguishment of the
modernity the oblivion of the being as destination imposes to Don Quijote the
fullfillment of his heroic fate and set the occident free from the metaphysical
Quijote-fiction about the place of Truth and in the game of unveil-veil the noble-
MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura
heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da
Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
être pasteur et le pouvoir mourir dans la liste de ses possbilités essentielles, alors
que, dans son épitaphe « La muerte no triunfó ». Depuis lors, ilpasse par
en chevalier. La lute depuis long temps annoncé elle est inevitable ; et dans
l’effacernent de la modrnité, l’oubli du être comme une destinatin exige que Don
Quijote fasse honneur à son destin heroïque et qu’il liberte l’occident de son
singulière bataille a lieu : le chevalier – Quijote – vie, qui expose sus expériences,se
batte contre le chevalier – Quijote – fiction pour conquérir sa vraie place et, dans le
devenir, e fait, son destín héroique. Don Quijote fait de sa vie une vraie oeuvre
AGRADECIMENTOS .................................................................................................................... iv
SINOPSE ................................................................................................................................... ix
RESUMO ................................................................................................................................... x
EPÍGRAFE ................................................................................................................................. xv
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01
Capítulo I
o __
1 Périplo DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA ........................................................ 13
1 O DIAGNÓSTICO DA LOUCURA ....................................................................................... 14
1.1 DOM QUIXOTE E A RIGOROSA ANAMNESE .............................................................................. 16
1.1.1 Por que lia tanto os livros de cavalaria? .................................................................... 17
1.1.2 Por que abandonou a leitura e decidiu ser cavaleiro? ............................................. 18
1.1.3 O que pretendia, afinal, Dom Quixote, sendo cavaleiro? ......................................... 21
1.1.4 Como se processou a metamorfose? ........................................................................ 23
2 A PROCURA DA CURA ÔNTICA, UM ERRO DE PERCURSO ......................................... 33
2.1 HEIDEGGER, A CURA COMO MITO E A EXISTÊNCIA DO HOMEM ................................................. 34
3 A QUE PAIDÉIA SERVE DOM QUIXOTE? ......................................................................... 38
4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO ................................................... 53
4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO ....................................................................................... 54
5 PREPARANDO A CURA ..................................................................................................... 68
5.1 INGREDIENTES FUNDAMENTAIS ............................................................................................. 70
__
5.1.1 “De largo en largo” do nascimento até a morte ..................................................... 70
5.1.1.1 O nascimento de Dom Quixote ................................................................................ 71
5.1.1.2 A morte de Dom Quixote .......................................................................................... 73
5.1.2 Para compreender o mundo, só com disposição ...................................................... 80
5.1.2.1 Há algum temor no ar? .............................................................................................. 82
5.1.3 Do estar-lançado ao lançar-se na existência ............................................................. 88
5.1.3.1 A pouca ocupação de Dom Quixote ........................................................................ 89
5.1.3.2 Pra que tanta pre-ocupação? ................................................................................... 93
6 CUIDANDO DE CURAR ...................................................................................................... 97
6.1 TROCANDO A ESTRATÉGIA DIDÁTICA ..................................................................................... 98
6.1.1 Do aprendizado ao diálogo como aprendizagem ...................................................... 100
__
6.1.1.1 Diálogos em cadeia a coragem da renúncia ........................................................ 108
6.1.1.2 Enfim, uma aprendizagem ........................................................................................ 116
6.1.1.3 Errância não reprova ................................................................................................ 116
6.1.2 A decadência de Dom Quixote .................................................................................... 121
6.1.2.1 Silêncio, nesse falatório não há Cura que resista .................................................. 122
6.1.2.2 Entre curiosas ambigüidades ................................................................................... 127
6.1.2.3 Nunca em Espanha houve tanto escritório ............................................................. 131
7 TÉDIO, ANGÚSTIA, MORTE – AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS ............................... 134
7.1 O TÉDIO ............................................................................................................................... 134
7.2 A ANGÚSTIA ......................................................................................................................... 137
7.3 A MORTE .............................................................................................................................. 143
8 SER PASTOR OU SER POETA, TUDO É POSSIBILIDADE ............................................... 146
Capítulo II
o __
2 Périplo A VERDADE DO TEMPO DE QUIXOTE ............................................................ 156
....................................................................................... 157
Capítulo III
o __
3 Périplo A VERDADE DA OBRA DE ARTE ..................................................................... 287
1 A OBRA DE ARTE E O TEMPO ............................................................................................ 288
2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO ............................................................... 300
3 A POESIA E A “OUTRA VOZ” .............................................................................................. 303
4 DE IMITAR A SER “O OUTRO”, HÁ MUITA DIFERENÇA .................................................. 308
5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ? ............................................................. 313
6 CRÔNICA DE UMA BATALHA ANUNCIADA ...................................................................... 324
7 DA FORMA À FULGURAÇÃO, NESSE “FINGIR” SE MOVE DOM QUIXOTE ................... 335
8 PENETRANDO NO TERRITÓRIO DA ARTE ........................................................................ 340
9 DOM QUIXOTE, ANJO E DEMÔNIO DAS ARTES ............................................................... 341
10 APROXIMA-SE A DIS-PUTA FINAL; É TEMPO DE AGIR ................................................. 352
10.1 A HERMES O QUE É DE HERMES, A PAZ O QUE É DE PAZ ........................................................ 353
11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO CONTRAPONTO 357
12 DOM QUIXOTE, UMA LOUCURA “EXPERIENCIAL” ........................................................ 361
13 DOM QUIXOTE FALA, CONTA E SE CONTA POETICAMENTE ....................................... 374
14 A CORAGEM DO SALTO MORTAL .................................................................................... 381
DON QUIJOTE
INTRODUÇÃO
indiscutível que todas as vezes que mencionamos o nome Quixote, mesmo sem
todos é a “loucura”, a história de um louco que luta com moinhos de vento. E mesmo
que encontra sua primeira barreira no como. Indubitável é sua importância, mas
sabemos ter sido ele mal compreendido ao longo do tempo. O como remete ao
meio: é preciso um meio para atingir um fim. Que nome se dá ao meio como se
uma máscara bem feita da verdade, mas desprovida da outra face; máscara estreita
em seus limites, mas que, por outro lado, não oferece riscos: ou é o que fica e
permanece ou não é verdadeiro. E isso, há muito tempo, tem sido o que basta para
busca do conceito. A arte teve de submeter-se à nova ordem, à nova lógica, onde “o
caminho, a verdade e a vida” é a “logia”. Tudo isso, para garantir e ter sob
esperar-se-ia encontrar, com traços bem marcados, seu completo e definitivo perfil.
sugeriram atalhos, insinuaram fendas, reunindo tanta força que seu poder de
se, assim, que vejamos sentido na voz que a cada leitura se renova em sugestivo
recado: “Desde o século XVII, Cervantes continua buscando o seu leitor”2, busca
ao leitor: Léalos3.
ela se manifesta: a obra. O recado é o mesmo, mas é de dentro da obra que ele
vem, desviando com isso o foco do autor, concentrando-o na obra. Sem contar que é
espera seu leitor, não é Cervantes, é Dom Quixote. Mas qual dos dois Quixotes, o
personagem ou a obra?
Se no meio do caminho tinha uma rede e nessa rede ficou cativa a Aletheia,
2
A impossibilidade de localizar a frase que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue
procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos.
3
Leia (os livros de cavalaria)
Pretendemos lançar-nos numa aventura da qual nada sabemos. Antes
disso, com nada mais se pode contar. Portanto, se tem razão Antonio Machado: “se
o próprio caminho nos pode dar. Se a obra é o nosso caminho, só seus guardiões
Depois do convite à leitura, Dom Quixote nos seduz com uma viagem de
“infinitas cosas y maravillas [...] las cuales despacio y a sus tiempos te las iré
que ali acontece passa a ser nosso também. Afinal, como dispensar tamanha
Hermes, o Senhor dos caminhos. Foi por isso que Dom Quixote tomou, para si, a
respeito que lhe tem, sabe de seus antecedentes, há muito acompanha seu agir.
Dionísio, forma o par menos olímpico dos imortais. E Zeus, assim o redime:
4
O caminho se faz ao andar.
5
Coisas infinitas e maravilhas [...] as quais, devagar e a seu tempo, eu irei te contando nas conversas da nossa
viagem (CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>, versão
Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007, parte 2, capítulo XXIII, p.446).
“Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do homem”. Por isso, não
ardilosas, quando ao homem são dadas oportunidades, pode-se estar seguro de que
direito de julgá-lo. Afinal, é a ele que cabe intermediar mortais e imortais, ele é o
Com esse Deus, tudo é possível. Uma viagem em sua companhia exigirá
grande investimento, mas sem ele, não há viagem. Não acreditemos ser possível
viajar por seus caminhos, sem o pressentirmos escondido nas curvas, divertindo-se
fingimento.
__
Nosso compromisso é resgatar a Aletheia missão dura e difícil. Ao longo do
tempo, ela foi sendo encoberta por camadas outras que acabaram sufocando-a,
arte precisa ir muito além do que nos chama a atenção mais diretamente, sempre
espaço de abertura por excelência, aberturas abertas pelo insidioso provocar das
Orientados por Manuel Antonio de Castro, nos foi possível esse salto: não
abandonarmos o espacial; não perdermos nem deixarmos que Dom Quixote perca o
verdade” e se “o sentido e vigor fundamental da “obra” de arte não vem dela, mas da
verdade”7, parece que, por elas, já estamos sendo tomados [é preciso estar atento;
não somos nós que nos movimentamos em sua direção, são elas, as questões, que
nos tomam]. Parece então que, depois do método e da metodologia, estamos sendo
6
HEIDEGGER, M. O originário da obra de arte. Trad. Manuel Antonio de Castro, parágrafo 158 (mimeo)
7
CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44
Ao nos dedicarmos a essa questão na obra Dom Quixote de la Mancha, não
mais essenciais. Assim, percebemos que a mais essencial das questões, ou as mais
aletheia, a travessia não pode ser linear, será preciso “trans-vertere”, será preciso
Foi por isso que, inseridos que estávamos num contexto de viagem, na
magnífica companhia de Dom Quixote, lhe sugerimos que ela fosse realizada em
périplos. E assim o fizemos: tratamos cada périplo como uma questão, ou melhor,
Périplo significa navegação, viagem para fora, que implica ir e vir: “ir para
outro, em sentido oposto. Mas o curioso é que cada nova viagem não percorre
8
CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44.
jamais o mesmo caminho. Ou, mesmo que percorra, a cada volta, o mesmo é
independentes e dissociadas, mas que, no fundo, são a mesma. Aquela que parece
apresentar-se com mais “cara” de ser a mesma, é “Cura”. “Cura” é a questão das
questões, por ser a que trata do que há de mais essencial na vida do homem: a sua
lugar que ele ocupa dentro do real. Esse é, diríamos, o primeiro nível de “Cura”,
aquele que apresenta o homem mais próximo de sua humanidade, de tal modo que
Cura, entretanto, vai além do homem em si, do homem como aquele que tem
em três tempos”, ou Três paradas obrigatórias de “Cura”. Tudo isso caberia como
título. Ainda que não a vejamos tão explicitamente, em todos os lugares, com esse
mesmo nome, “Cura” tem essa abrangência, porque é em “Cura” que está o homem
9
CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 13.
em sua dimensão de “entre-ser”, o homem como o único que dá acesso ao ser,
aquele no qual, no existir, está em jogo o seu próprio ser. Isso inclui,
como na arte, “Cura está presente”, tendo o homem como “inter”, como o “inter”-
mediário, como “entre-ser”, na tarefa de cumprir sua travessia e descobrir que sua
essa é a nossa tese: o homem e a arte têm igual essência – poder-ser, ser
possibilidade.
que nos coloque na trilha do homem e da arte, naquilo que, em sua abrangência, os
Nosso objetivo é pro-curar o ponto crucial onde se cruzam homem e arte. Por
isso, estando, então, nesse universo __ um doutorado em Poética, que exige (usando
a forte expressão espanhola) “estar metido hasta las coronillas”10 num texto poético
__
, esse é o espaço onde isso pode acontecer. É na obra-de-arte Dom Quixote de la
Mancha, publicada em 1605 por Miguel de Cervantes, que isso pode acontecer: o
que perde a identidade e vira cavaleiro louco. Nossa viagem transcorrerá como pro-
10
Estar envolvido até “o último fio de cabelo”.
cura. De tanto ler livros de cavalaria, Dom Quixote, seduzido pelo fascínio daquelas
imprópria.
em fazer justiça com a força de seu braço e o poder de sua espada, cuida também
de fazer todas as demais justiças, e sai pelo mundo pregando todas as verdades
veiculadas pelos livros de cavalaria, verdades nas quais, de tanto acreditar, punha
caracterizamos muito mais como pro-cura, por ser Cura um processo ininterrupto do
homem enquanto reside na terra. Nesse caso, entre vida e morte, Cura jamais se
medida que cada experienciar vai dando novos sentidos a seu viver, Dom Quixote
11
A República Cristã (CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br>, versão Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007, parte 1, capítulo XLVII, p.294).
12
Consertando injustiças e desfazendo desacertos (Idem, parte 1, capítulo XIX, p.101).
filósofo. E o cavaleiro-filósofo vai dando lugar ao fidalgo que recobra, assim, a
poder-ser muitos.
tempo de Dom Quixote. Mesmo que o cavaleiro não se movimente nesse Périplo,
isso, entretanto, caracteriza uma viagem também. Por isso, nosso olhar para o 2o
Périplo tem uma dose de desconfiança. Nele, mais parece que Dom Quixote está em
repouso, como se fizesse uma parada para reflexão. Trata-se de uma viagem ao
embora Dom Quixote tenha franqueado o circuito de Cura a todos os homens, a eles
ficando muito atento para observá-los em diálogo com o mundo; embora tenha
lançado seu olhar ao “outro”, detectando, com esse olhar, a extensão-destino aliado
ao tempo; esse repouso, essa parada aparente, caracteriza também uma viagem,
Desse modo, podemos assim resumir a travessia que, junto com Dom
si sabe. E sai à pro-cura de si, sai à pro-cura da Cura, sai à pro-cura de sua
essência.
13
A caverna de Montesinos.
No trânsito entre o 1º e o 2º Périplos, Dom Quixote inicialmente vai conjugar
sua missão de filósofo, com uma nova que estará anunciando-se: o hermeneuta, e
Para bem realizar essa nova missão, Dom Quixote precisa passar por
sido escolhido para receber a mensagem dos deuses, tem como compromisso
forma digna para falar aos homens, não só a seus contemporâneos espanhóis,
deuses e descobre, afinal, a melhor forma de dizer aos homens a verdade: Dom
teremos, por meta, descobrir a verdade do homem, a verdade da obra, e, com isso,
fazer a convocação geral para ocupação do mais digno e real lugar do homem, o
lugar de “entre-ser”, o único lugar onde o homem exerce sua maior grandeza do
homem: ser amoroso, estar aberto ao ser, entrar no jogo em que o amor assim se
1o Périplo
“Yo sé quien soy”:14 15 assim entra Dom Quixote no mundo ficcional criado por
com uma oposição veemente e radical de seu vizinho Pedro Alonso, que lhe diz não
ser ele o cavaleiro que pensava encarnar “sino el honrado hidalgo del señor
Quijana”18.
soy”. Seria a loucura por trás de suas palavras? Dom Quixote, o “cavaleiro louco”, é
talvez um dos lugares-comuns mais repetidos. Mas será Dom Quixote de fato
14
Eu sei quem sou (1, V, p.35)
15
Ressaltamos que os três capítulos desta tese foram baseados na obra Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.
Entre outras, foram consultadas as seguintes referências bibliográficas:
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Barcelona: Juventud, 1955.
Ibidem. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>, versão Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007.
Pela grande quantidade de citações, a partir daqui, optamos por registrar como referencial bibliográfico da obra de Cervantes,
somente a forma numérica das “partes”, em algarismos arábicos, e de “capítulos”, em algarismos romanos; as páginas
referem-se à fonte eletrônica, acima citada [ex: (2, XXXII, p.487)].
16
Perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18)
17
Como aqui ocorre, em muitos outros exemplos haverá encadeamento sintático entre as duas línguas: Português e Espanhol.
18
E sim o honrado fidalgo, o senhor Quijana (1, V, p.35).
Do muito que se falou sobre a loucura no tempo de Dom Quixote, daremos
para a época. Entretanto, embora ele reconheça ser a ficção impressa “la forma
artística que nos involucre de la manera más íntima, ya que tiene lugar en nuestro
propio espíritu”20, comenta com uma ponta de ironia que não era necessário ter sido
ficción”21.
Para cada coisa existe a que lhe contrapõe e, sabe-se bem que a
contrapartida da doença só pode ser a cura. Por mais que Dom Quixote, teimoso e
de “cabeça quente”, pudesse relutar, isto só seria por pouco tempo. Cedendo, afinal,
Alonso Quijano, de tanto ler livros de cavalaria tomou a decisão de fazer uma
Mesmo que não radicalizemos, avaliando sua decisão como loucura, é plausível que
a achemos estranha, pelo menos. Abandonar os livros que tanto o seduziam; de tão
que a justifiquem. O que o teria levado a ser cavaleiro, afinal? Achamos melhor,
Pode parecer simples, mas a procura de Dom Quixote promete ser longa. Só é
19
C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
20
A forma artística que nos envolva da maneira mais íntima, visto que ocorre em nosso próprio espírito (Apud GILMAN, S.
La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.25).
21
Pela misteriosa experiência de ter sido tomado – infectado espiritualmente por uma obra de ficção (Ibidem).
22
Em outros momentos, a palavra será grafada segundo Heidegger: “pro-cura”. Heidegger caracteriza como “pro-cura” a
trajetória realizada, por todo homem, no processo de autoconhecimento.
possível contar, por enquanto, com algumas informações fragmentadas,
ouvidas e lidas.
reclusão, ainda assim, poderíamos aqui simular para Dom Quixote um atendimento
nos moldes dos tempos atuais, e assim tentar entender a loucura que o aflige e
infecta. Quem sabe assim não alcançamos a origem e/ou as causas de sua
que toma?
paciente. Tem sentido que assim se proceda, retrocedendo ao ponto em que ele não
cavalaria?; 2) E por que decidiu abandonar a leitura, optando por torná-la “real”, com
23
Consultar, a este respeito, o primeiro capítulo de Jean Calmon Modenesi (MODENESI, J.C. O Dom Quixote de Foucault.
Rio de Janeiro: Papers, 2003), que traça contundente análise do modo como a loucura era encarada e “tratada” nesta época.
Foi no mesmo cenário moderno da afirmação crescente da razão moderna (ratio) e da ciência, que se começou a tentar
“diagnosticar” a loucura, com os assim diagnosticados passando a ser simplesmente “trancafiados” em locais próprios, asilos
que procuravam suprimir o desatino e a loucura da sociedade.
24
A investigação destas quatro perguntas constituirá o cerne das próximas subsessões, de “1.1.1” a “1.1.4”.
esforçasse, Dom Quixote não conseguia atinar. Reconhecemos sua incapacidade de
Dom Quixote nos livros de cavalaria. Que o ócio era reinante naquelas terras, bem o
sabemos; o encontramos em qualquer estudo sobre a obra: “y los más locos son los
más ociosos”,25 além de estar presente em comentários na própria obra: “Este [...]
hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año”26. O ócio era de tal
modo presente que se estendia até as coisas: “[...] el famoso caballero don Quijote
de la Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante
[...]”27. Quem sabe o justificasse o tédio do cotidiano que acenava como uma
ameaça constante. Tal ameaça, por sua vez, incitava à fuga, lançando todos os que
do tédio. Era preciso fazer algo para dissipar o tédio crescente na Espanha da
época.
Pierre Vilar nos dá mostras, quando descreve o perfil da vida espanhola: “todo
es divertirse en fiestas, jugar y cazar”; ou “no se habla de otra cosa que de las
25
E os mais loucos são os mais ociosos (VILAR, P. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed.
Barcelona: Ariel, 1993, p.345).
26
Este fidalgo, os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano (1, I, p.18).
27
O famoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, deixando as ociosas plumas, montou sobre seu famoso cavalo
Rocinante (1, II, p.21).
fiestas” 28. Dom Quixote nem ia a festas, nem caçava; mas, como também nos alerta
Vilar, antes de querer ser cavaleiro, agia do mesmo modo que todos “los de la
España de 1600”:29 preferia sonhar. Embora não fosse a festas, nem caçasse, lia;
fazia parte daquele grupo, infectado pela mesma máquina literária que, como um
furacão, sacudiu Madrid. Esse fenômeno está em sintonia com outro: a inchação do
setor “terciário”, não produtivo, que absorveu uma boa fatia da mão de obra ociosa30.
cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa”,31 como atesta o texto
nutria dessa literatura: “son leídos y celebrados [...] de todo género de personas”.32
Espanha do século XVI, não oferecia, ao fidalgo, nenhuma saída nem do ócio nem
“pasaban las noches leyendo de claro en claro y los días de turbio en turbio”.33
28
Tudo é diversão em festas, jogos e caçadas [ou] não se fala de outra coisa, senão das festas (VILAR, P., op. cit.,
p.336-337).
29
Os da Espanha de 1600. (VILAR, P. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1993, p.344).
30
Cf. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.25.
31
Me parece que um mais, outros menos, são todos a mesma coisa. (1, XLVII, p.293).
32
São lidos e celebrados [...] por todo tipo de gente (1, L, p.304).
33
Passavam as noites de claro em claro e os dias de sombra em sombra. (1, I, p.18)
1.1.2 Por que abandonou a leitura e decidiu ser cavaleiro?
Por que este teria decidido sair da ficção para a vida, abandonando o tédio
ociosidade, negligente a todo e qualquer agir. Não fazia nada; não trabalhava, não
cuidava de suas terras, não produzia. Dom Quixote era pura estagnação: “olvidó casi
causas podem justificar esse quadro: é possível que o fato de ser tomado pela
mudança radical de hábito ali verificada, onde a velha leitura oral “estaba planead(a)
al parecer (al igual que un manuscrito) para leerse en voz alta. Es decir, se entonaba
substituída pela leitura silenciosa: “hacia 1605 un tal Alonso Quijano y otros que
desmedido da leitura de livros de cavalaria, pode também ter contribuído para seu
Como observa ainda Gilman37, não se pode imaginar o impacto de tal mudança.
34
Abandonou quase de todo a prática da caça, e até mesmo a administração de seu patrimônio. (1, I, p.18).
35
Estava planejado ao que parece (assim como um manuscrito) para ler-se em voz alta. Quer dizer, entoava-se palavra por
palavra, para regozijo de um extasiado grupo de ouvintes. (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18)
36
Por volta de 1605, um tal Alonso Quijano e outros que compartilhavam seu vício devoravam de maneira silenciosa. (Ibidem)
37
C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
Estaria Dom Quixote, como atesta Pierre Vilar, mergulhado num vazio
caracterizando a doença como uma ligação profunda com o “nada”. Haveria algo
que o angustiasse? Estaria Dom Quixote angustiado ou bastava o tédio para tirá-lo
perdida e que impregnara aquele ambiente, uma fuga ou uma ponta de motivação?
O que teria, afinal, levado Dom Quixote a tomar estranha decisão, e a querer,
O mal poderia estar na própria leitura. Impossível, diriam todos; a julgar pela
silenciosa, [...] sus labios aún se movían, [...] sus manos se contraían, [...] pasaban
Não era medo nem pânico, não era tédio, não era angústia? Havia sim um
sentimento inexplicável que, talvez, Francisca Nóbrega41 nos possa explicar: Pode
parecer contraditório que Dom Quixote estivesse mal, por influência de alguma falta.
homem também o experimentou, estaria Dom Quixote sentindo, nada menos, o que
38
MALDONATO, Mauro. A beira do nada. Revista viver, mente e cerébro. [S.l.]: Duetto, ano XII, n.148, mai. 2005.
39
Devoravam de maneira silenciosa [...] seus lábios ainda se moviam, [...] suas mãos se contraiam [...] passavam as noites
lendo (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18).
40
BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977.
41
NOBREGA, Francisca. Laboratório de literatura poética. Ano 1, n.1, março de 1998 (mimeo).
é comum a todos os homens: este vazio sem fundamento, esta falta de que estamos
todos imbuídos? É claro que há perguntas que aqui ainda deixamos em aberto,
afinal de que falta estamos falando? E por que Francisca Nóbrega caracteriza isso
da decisão de nosso herói: sair do livro para entrar na vida, para ter a experiência
Sabe-se, entretanto, ser esse dado limitado diante da grandeza da obra; por
muito especial, algo que fosse digno, era o que Dom Quixote pretendia. Pois, se
entrou na vida com o firme propósito de ser cavaleiro, num tempo em que essa
realidade já não era possível – posto que o mundo medieval, com seus cavaleiros e
Segredemos aqui: Dom Quixote entra e não entra. É interessante que sai da ficção
da cavalaria, para entrar na vida. Mas essa vida é também, e ao mesmo tempo,
outra ficção, pois o mundo medieval que ele pretendia experienciar não mais
criada por Dom Quixote, ele mesmo, por sua vez, fora obrigado a viver também uma
vida falsa ou fingida. Jogo de espelhos, reduplicação de mundo como ficção ou
ficção como mundo? Duplo fingir? Como explicar a necessidade de existir e ampliar
fingindo na vida ou vivendo na ficção que ele mesmo criara? Infectado de ficção é o
passa a analisar sob outra perspectiva sua loucura: Como é possível, afirmar-se,
saber ser com tamanha certeza, aquilo que, a olhos vistos, não se é? Só a loucura
ficção? A não ser que, como está bem expresso nas declarações que caracterizam o
vida real e existir na ficção. Isso, considerando que Dom Quixote, ao sair da ficção
para existir e experimentar a vida na vida, acaba caindo em outra ficção. Qual a
única via de acesso que resta é a vivência [...] das manifestações e dos produtos
que nos deixou a vida”43. E foi o que fez Dom Quixote, foi buscar a única via de
acesso num produto que lhe tinha deixado a vida – uma obra de arte, as novelas de
herói; pois parece que é esse seu procedimento: quer ter a vivência do que lera nos
42
Estes pontos, que agora são deixados em aberto, serão retomados no 3º Périplo, quando abordaremos a relação entre arte
e verdade na obra e na poesia.
43
LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar. 4.ed. Petropolis: Vozes, 2000, v.1, p.35.
Se estava tão seguro de si, precisaria Dom Quixote, sabendo bem quem é,
autores que atribuem coisas dessa categoria ao poder que tomou para si o homem
Como homem do Renascimento, Dom Quixote está tomado daquilo que transborda
prepotência de achar que tudo isso ele poderia. Nessa importante posição central
decisão de ser cavaleiro, e buscar viver uma realidade ultrapassada, dentro do novo
paradigma vigente e sem propósito maior, apenas por simples capricho. Será esta a
ser em outro”45. Ter-se-ia transformado Dom Quixote em alguma coisa que não era
antes? Quem seria esse outro, que até então, ele não era? Afinal, para o poder que
porte.
44
Cf. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 17.ed. São Paulo: Ática, 2002.
45
HOLANDA, A. B. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326.
A Dom Quixote, para quem o projeto de ser cavaleiro era “tudo”, não lhe
interessavam tais questionamentos. Para ele, transformar-se era muito simples; tudo
comporiam, por si sós, o quadro medieval de que precisava para nele atuar.
Entretanto, do que precisava, naquele momento, era tomar a primeira decisão: sair
da leitura, abandonar os livros e partir para a vida. Dom Quixote precisava mesmo,
Quixote “fica seco” por um veículo que lhe dê acesso e o coloque nessa via. Lança
mão do pouco que está a seu alcance, ao alcance de suas mãos – o universo da
cavalaria que conhecera pela leitura, e vai experimentar a vivência daquela ficção. E
assim, toma carona em Rocinante que lhe pareceu adequado para percorrer os
Dom Quixote sabe bem o que faz, quando a usa? Descobriu-se que até o final do
havia uma similitude a ser desvelada, uma semelhança a ser descoberta, uma
analogia a ser interpretada por sob a marca do verbo e da natureza”46. Isso indicia
extinguindo, mas que lhe era fortemente próxima, porque nela estivera metido “hasta
46
MODENESI, Jean Calmon. O Dom Quixote de Foucault. Rio de Janeiro: Papers, 2003.
las coronillas”47. Ao longo de bom tempo, Dom Quixote, de tanto ler, estava tão
familiarizado com essa estratégia, que a tinha próxima, bem ao alcance de suas
Temos, numa passagem, a estratégia usada pelo fidalgo, para virar cavaleiro
depois de muito apanhar, pelo arrogante que ele fora com “un mozo de mulas”48.
Dom Quixote, sem poder levantar-se, porque tinha o corpo moído, buscou, em sua
semelhante: “Ésta, pues, le pareció a él que le venía de molde para el paso en que
caminho: aproveita uma situação que esteja vivendo ao acaso, para copiar outra da
Examinemos o termo “de molde”, ele nos sugere haver sempre um molde, um
Dulcinea del Toboso, muito aborrecido, esclarece que nem ele é Marquês, nem Dom
47
“Até o último fio de seu cabelo”
48
Um moço que cuida das mulas. (1, IV, p.33)
49
Esta, pois, lhe pareceu que vinha muito a propósito para a situação em que se encontrava. (1, V, p.34)
Quixote é cavaleiro. Isso deixa indignado de tal maneira o herói, que assim lhe
responde:
Yo sé quien soy – respondió don Quijote-; y sé que puedo ser no sólo los
que he dicho, sino todos los Doce Pares de Francia, y aun todos los Nueve
de la Fama, pues a todas las hazañas que ellos todos juntos y cada uno por
50
sí hicieron, se aventajarán las mías.
Não se entrega, não admite: nem que o vizinho não é Valdovinos, nem que
histericamente saber quem é, além de saber poder ser todos os cavaleiros, de que já
Essa fixação de Dom Quixote pode ser lida, também, como exacerbação
em seu poder. Não seria este eco do poder autoconferido, excesso de confiança em
si mesmo, orgulho humano, a cega confiança em seu poder racional, fogo roubado
dos deuses? Esse poder não adquiriu Dom Quixote no mundo da ficção da
ares da modernidade.
Não satisfeito em ser um cavaleiro, Dom Quixote quer e diz poder ser todos
superior a todos. Ainda que se atribua seu comportamento à loucura, no que diz
Dom Quixote, há resquício de algo que não se deixa ver. É nesse ponto que outro
nível se insinua. Não sabemos esclarecer o que não se deixa ver; mas deixaremos
aqui um espaço para posterior conexão. Por enquanto, só percebemos que Dom
Quixote está muito seguro de si; além de saber-se cavaleiro, sabe que pode ser
50
Eu sei quem sou – respondeu Dom Quixote, – e sei que posso ser não apenas os que lhe disse, como todos os doze Pares
de França, e até mesmo todos os nove da fama, pois a todas as façanhas que eles todos juntos e cada um por si fizeram,
avantajar-se-ão as minhas. (1, V, p.35).
muitos outros. O que nos intriga é a certeza: “y sé que puedo ser”. Parece nos estar
É necessário, portanto, não perder de vista que, além da certeza do que diz
com pessoas da realidade de seu tempo, ele mesmo não se identifica com um
cavaleiro específico. Por mais que seu referencial maior seja Amadis de Gaula,
possui identidade própria, com nome só seu e tudo mais que lhe correspondia. Isso
todos: o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha. Ele não deseja de fato imitar alguém;
antes, é seu próprio caminho que deseja alcançar. É a sua própria identidade, não a
das estratégias usadas por Dom Quixote em sua transformação em cavaleiro. Monta
no lombo de Rocinante e sai para o mundo, mas antes toma todas as providências
conta sua sobrinha que, muitas vezes, ainda enquanto lia, atirava longe o livro,
que tinha direito um cavaleiro. Dom Quixote sai da biblioteca e põe o pé nos
hallaba”52 Dom Quixote não perde o passo, aproveita-se do universo que as novelas
de cavalaria lhe ofereciam para com ele poder viver, pondo-se em diálogo com o
51
Há este insistir, ao qual o cavaleiro volta a todo momento: “Yo sé quien soy”, reforçado pela certeza do saber: “Y sé que
puedo ser”; mas atenuado pelo verbo “poder” que indica possibilidade. Essa insistência não é gratuita; de tão evidente, não há
mais dúvida de que insinua uma questão que, no mínimo, inclui a questão do eu e do outro que será retomada no 2o Périplo.
52
Que vinha muito a propósito para a situação em que se encontrava. (1, V, p.34)
mundo, deixando falar o ser, permitindo que a linguagem lhe contasse a sua
verdade.
vivido já lhe tivesse legado tudo de que precisa um homem ao longo da vida. Há,
entretanto, aqui, uma leve contradição: parece estranho que um homem de 50 anos,
tão seguro de sua identidade e completude, além de ter plena consciência de todas
as suas possibilidades: “puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos”53, se lance
compromisso é colocar o mundo em ordem, e isso não parece indicar nenhum sinal
de busca.
Se Dom Quixote procurava algo que lhe faltava, onde poderia buscá-lo?
Quixote sabe quem é ou não sabe quem é, embora afirme sabê-lo. Viver essa
contradição, por volta dos 50 anos, sem ser acometido por nenhum conflito, mal-
estar ou sinal de estar em busca de algo, é quase impossível. E, mais ainda, sair
escolha, outro significado provável. É possível que, por trás da ingênua missão de
somente aventuras, algo mais esteja escondido, algo em que, disfarçado, possa
53
Posso ser não apenas os que eu disse, como também todos os demais (1, V, p.35)
54
Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)
“trajetória”; “caminhada”; “passo”... Estes normalmente indiciariam espaço geográfico
tempo que estes termos indiciam essa perspectiva, parece também que a reforçam:
patas de um cavalo, como os dois pés do cavaleiro. Sem contar com a mudança
um fidalgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año”55, para um
todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo
“querer” ser cavaleiro. Por mais que busquemos uma explicação, só o “querer” faz
sentido.
encontramos, ainda, outros termos afins a esse campo semântico que, talvez,
também pela semelhança, nos sirvam de pista. Ali lemos o seguinte: “A resposta à
há inclusão de outros termos que, com eles, são postos em tensão, aparentemente
inconciliáveis e que, por isso, merecem atenção. Entram aqui os termos “resposta” e
recurso usado fartamente pelo fidalgo, nas situações em que necessitava dar maior
Dom Quixote elimina de cada instrumento do seu mundo todo o excesso não
necessário nem essencial para que tenha lugar no mundo da cavalaria, seleciona
rigorosamente somente o que esteja dentro dos limites que lhe conferem o status de
verdade; ao mesmo tempo, não descuida de manter um fio, mínimo que seja, para
garantir-lhe a realidade de que vai precisar para cruzar aqueles difíceis e tortuosos
manual “Como ser cavaleiro”, diluído nas histórias e disponível em qualquer livro de
A armadura foi o que mais trabalho exigiu, mas, finalmente, ele mesmo julgou,
por si só, ser uma armadura finíssima, o que tinha realizado da segunda vez.
que a armadura “de sus bisabuelos”58 não era a melhor para aquela empresa,
58
De seus bisavós (1, I, p.19)
que pudo” 59 e, o que nela faltava, com sua “industria”, ele completou com papelão,
estando seguro de que, com essa providência, a armadura ficara com “apariencia de
una cuchillada” 61. Contra a armadura arremessou algumas facadas, o que a fez virar
“pedacinhos”, pondo por terra o trabalho de uma semana. Refez tudo, substituindo o
fortaleza”62. Só porque colocara uns “ferrinhos” por dentro, já lhe bastava para trazê-
significado que lhe dava aquele nome. E foi assim que, definitivamente, “la diputó y
Quanto ao cavalo – “tenía más cuartos que un real” 64, seus cascos sofriam da
mesma doença do cavalo de Gonela, e ele mancava; mas esse dado não era nada
importante, uma vez que a Dom Quixote seu cavalo “le pareció” superior, comparado
cavaleiro tão famoso; nessa tarefa gastou quatro dias. “Rocin-ante”: “ante”, prefixo
59
Reparou-as o melhor que pode. (1, I, p.19)
60
Aparência de celada inteira. (Ibidem)
61
Experimentar se era forte e resistiria ao perigo de uma punhalada. (Ibidem)
62
Satisfeito de sua resistência (Ibidem)
63
Reputou-a e teve como celada (antiga armadura de ferro para a cabeça) [...] de ajuste (Ibidem)
64
Tinha mais quartos que um real. (Ibidem)
65
Pareceu-lhe [superior (...) ao] Bucéfalo de Alexandre Magno [e ao] Babieca, o de el Cid (Ibidem)
Seu pangaré foi elevado à categoria de “primero de todos los rocines del
mundo”66, por um critério unicamente seu, sem que o cavalo tivesse, em momento
privilégio. Muito pelo contrário, estava cheio de “cuartos”, e, por isso mancava. Como
por ter as patas cheias de bicho? Mas nada disso importa para Dom Quixote; a
designação tinha simplesmente que estar em perfeito acordo com a pompa exigida
para o nome dos cavalos de ilustres cavaleiros. Isso foi só o que contou como
significativo.
Yo señora, soy el gigante [...] a quien venció [...] don Quijote de la Mancha,
el cual me mandó que me presentase ante vuestra merced, para que la
67
vuestra grandeza disponga de mí a su talante.
Se era amor de verdade, não vem ao caso. Muito pelo contrário; do que
precisava mesmo era do mínimo suficiente para tornar visível o atributo platônico
Dom Quixote, disso cuidou: dizem tratar-se de uma vizinha de aldeia próxima por
Aldonza Lorenzo a Dom Quixote: “en un lugar cerca del suyo había una moza
66
Primeiro de todos os rocins do mundo (1, I, p.20)
67
Eu, senhora, sou o gigante [...] a quem venceu Dom Quixote de La Mancha, o qual me ordenou que me apresentasse diante
de vossa mercê, para que vossa grandeza disponha de mim a seu talante. (Ibidem)
ella jamás lo supo, ni le dió cata dello” 68. Fundamental porque é a concessiva, que
Dera forma não só a uma amada, mas também a um amor platônico, tão
necessário para dar realidade ao único elemento que lhe faltava na composição do
“Dulcinea del Toboso”, por ser natural desse lugar. Se era nobre, não importa; só
precisava que o nome inventado não deixasse de atender a dois pontos importantes:
mucho del suyo”69. E, assim, deu por consumada a situação, porque a Dom Quixote
“le pareció” estar aquela mulher sob medida para suas pretensões. Bastava que
dar forma ao mundo, demonstrando cuidado com a realidade, ao mesmo tempo que,
68
Em algum lugar perto do seu, havia uma moça lavradora, de muito boa aparência, pela qual, uma vez, andou apaixonado [O
fundamental (...) “aunque”:] Ainda que [...] ela nunca tenha sabido ou buscado saber disso. (1, I, p.20)
69
Que lembrasse ou se aproximasse ao de princesa e grande senhora [e que] não destoasse muito do seu. (Ibidem)
70
Em sua opinião.
e infeccioso”, faz-nos pensar que poderíamos estar equivocados. Estaríamos
do jogo de espelhos entre vida e ficção, vida e criação poética, não seria também de
O que este jogo de palavras esconde? Se Cura virou uma questão, é preciso
A princípio, optamos por refletir sobre a Cura no sentido que até aqui vem
sendo trabalhado, no sentido usual: aquele que sempre imediatamente nos vem ao
a dedicação”. Mas podemos falar de Cura em outro sentido? Que outra Cura para a
“extrema importância” para o homem e seu viver. Há uma fábula de Higino que já
bem o destaca.
71
O mesmo impasse em relação ao sentido de cura estende-se ao sentido de infecção, com o qual Ortega y Gasset
diagnosticou Dom Quixote.
A resposta a essa outra possibilidade fomos encontrar em Ser e tempo, na
Assim foi criado o “Homo” – assim na terra como no céu – por ele
ente não é abandonado por essa origem, mas, ao contrário, por ela mantido e
homem, enquanto estiver nesta travessia entre nascimento e morte, construindo sua
existência no mundo.
72
Embora Higino seja um escravo egípcio, a fábula é latina.
73
Cabe ainda observar que Heidegger encontrou este mito em ensaio de Burdach, que mostra que Goethe extraiu de Herder a
fábula 220 de Higino, trabalhando-a para a segunda parte de seu Fausto.
74
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.263-264.
75
Ibidem, p.264.
A origem do homem, este ser preso na maravilha da vida, mas limitado pelo
insondável da morte, estaria, para Heidegger, expresso na Cura, como aquilo que o
sustenta na travessia entre estes dois pólos. Cura estaria aí capturada nesse
Ao dizer: “Yo sé quien soy”, está Dom Quixote louco, ou é alguém que busca
Dom Quixote tem tantas certezas! Mas é ele cavaleiro ou fidalgo? Está instalado o
dilema. Esse dilema parece ser da ordem do saber e do ser: estes são os verbos
reincidentes aqui.
seu próprio existir. Na afirmação de Dom Quixote, o próprio verbo “ser” se encarrega
de dispor essa relação. Ele sabe quem é, com a firme certeza que não permite
questionamento; tem, firmes, todas as certezas que sustentam suas ações, as suas
crenças no mundo e em si mesmo. “Yo sé quien soy” Mas pode alguém de fato ter
sedimentado nos romances que lia, para acabar com o dilema da falta que o
persegue desde o início do romance. Se o que procura é preencher uma falta, o que
ele busca não são justamente as certezas definitivas para acabar de vez com a
incerteza e insegurança geradas pela falta? Dom Quixote está buscando segurança
76
Heidegger se refere ao homem como existente, ao homem em sua existência a partir do termo alemão Dasein, que é de
tradução complexa e controversa. Em português, foi traduzido, na edição brasileira de Ser e Tempo, como pre-sença, termo
que escolhemos usar nesta tese. Contudo, há autores que preferem traduzi-lo por ser-aí ou que optam por não traduzi-lo.
Usaremos terminologia diferente nesta tese somente quando citarmos diretamente um autor que a use, por não acharmos
correto alterar o texto em uma citação direta. A respeito da controvérsia em torno das traduções possíveis, consultar:
INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p.29-33.
e certezas para sua vida, dentre as alternativas que já conhece, dentre o elenco do
que já viu.
do homem como existência é falar de um ser que se sabe ser, que tem consciência
da própria finitude e da morte, é, sobretudo, falar de um ser que sabe que sabe e
que sabe que é. O homem pensa, o homem fala, o homem poetiza. Desse modo, o
construindo sua existência e seu mundo. E constrói sua existência e seu mundo
sobre o abismo dos limites de sua própria não compreensão, o nada que lá no fundo
subjaz.
visível”78. Sua palavra nos serve de ilustração para a constatação que expressamos
77
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.12.
78
Ibidem, p.13.
desde a filosofia, da ciência, da arte e da religião, até na vivência de nossos
sentimentos. Mas o ser não se deixa determinar através ou a partir de outra coisa
que não ele mesmo. O ser só pode ser determinado a partir do seu sentido como ele
mesmo.
banalizado.
afinados com aquilo que se pode entender por falta: o nada, o vazio, o não visível, o
não pensado. Se tudo isso tem a ver com o ser, parece que Dom Quixote, na
situação em que se encontra, deve dar-se por satisfeito. Afinal, cheio de “não-ser”,
79
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 27.
80
NOBREGA, Francisca. Laboratório de literatura poética. Ano 1, n.1, março de 1998 (mimeo).
Para arrancar do mito de Cura todos os seus mistérios, custa trabalho. Agora
esbarramos no “fingere”. Teria ele alguma relação com o duplo fingir de Dom
Quixote, que acima deixamos no ar? Só sabemos que seu significado grego é
“formar”81. E tudo o que aponta para formação, nos traz a reboque, Platão. Haveria
cura, y hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que llaman
libros de caballerías”82. Resgatamos isso de uma conversa entre “el cura”83 e “el
cavalaria ou positivos ou negativos para a república. Não pode ser gratuita essa
dupla menção. Não somente pelo termo república em si, mas pelo que ela traz
81
Esse tema será retomado no 3o Périplo, conjugado com as transformações realizadas por Dom Quixote.
82
Na verdade, senhor cura, e acho, por minha conta, que são prejudiciais na república estes chamados livros de cavalarias
(1, XLVII, p.293)
83
Serão mantidos em espanhol, os termos usados para designar, pessoas e suas atividades: “el cura”, “el barbero”, “el
canónigo”, “el bachiller”, etc; bem como as localidades: “la Mancha”, “la cueva”, Sierra Morena”, etc.
84
E foi que lhe pareceu conveniente e necessário, tanto para o aumento de seu prestígio quanto para o serviço da república,
tornar-se Cavaleiro andante [...] buscando aventuras e praticando tudo aquilo que tinha lido que os cavaleiros andantes
praticavam (1, I, p.19)
consigo de significação. Sabemos que a leitura era o ponto vital para Platão, no
tocante à sua influência nos jovens cidadãos, pois ela colocava em risco a república
investigação”85, a questão do ser não deixou de ser retomada através dos séculos,
violentada é verdade, causa de a nossa época tê-la recebido tão desvigorada. Não
e intermináveis guerras.
máximo, suas possibilidades. Quanto mais preparado nos mais diversos níveis de
atuação, mais apto estaria para realizar o ideal renascentista, e o exercício físico
era, unido à disciplina, de vital importâmcia como preparação para o objetivo maior:
qualquer leitor exerce o discurso de Dom Quixote sobre “las armas y las letras”86, até
que se perceba ter ele função outra, muito mais fundamental que a até então
85
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.27.
86
As armas e as letras (1, XXXVIII, p.231)
presumida. O sentimento de simpatia e de louvor com que Dom Quixote se refere ao
soldado, colocando-o como um grande herói, exatamente por sua capacidade para
deixa claro a não mera coincidência entre armas e letras de um lado, e cavaleiro e
soldado espanhol tem vínculo com o estado, luta pela pátria e tem salário; embora
muitas vezes nem chegue a recebê-lo, “porque está atenida a la miseria de su paga,
que viene o tarde o nunca”, a ponto de o soldado espanhol precisar fazer transações
paralelas, chegando até a roubar “lo que garbeare por sus manos, con notable
frio na campanha, dorme no chão, sem proteção sequer de lençol. No dia de pôr à
__
prova todo o seu exercício “el día y la hora de recibir el grado de su ejercicio: [...]
__
un día de batalla” , se expõe a “algún balazo”, ou fica “estropeado de brazo o
pierna”. E, mesmo que a sorte o proteja, que “esos milagros vense raras veces”, não
é premiado por isso, porque “¿cuán menos son los premiados por la guerra que los
que han perecido en ella?”87. É por esses motivos que Dom Quixote sai em defesa
estiver“mirando hacia la parte donde él está [ele] no puede apartarse de allí por
87
[Ao contrário (...) recebê-lo] porque está restrita à miséria de seu soldo, que vem tarde ou nunca, [a ponto (...) roubar] o que
pilhar por suas mãos, com notável perigo de sua vida e de sua consciência [O soldado (...) exercício __] no dia e na hora de
receber o diploma de seu exercício [...] um dia de batalha [__, expõe-se a] alguma bala grande, [ou fica] estropiado de braço ou
perna. [E (...) proteja, que] esses milagres raramente são vistos, [não (...) porque] quanto menos são os premiados pela guerra
que os que nela pereceram? (1, XXXVIII, p.231)
88
A cada passo está a ponto de perder a vida [se o inimigo está] Está olhando para onde ele está [...] não pode afastar-se dali
de nenhum modo, nem fugir do perigo que de tão perto o ameaça. (1, XXXVIII, p.232)
Depois de listar muitas das dificuldades enfrentadas pelo soldado, dentro de
uma simulação de guerra, Dom Quixote resume seu discurso numa constatação
crudelíssima que é a de saber não ser possível a nenhum soldado, previsto por
qualquer formação, fazer frente, naquelas condições, a um inimigo muito maior, que
inviabilizava qualquer possibilidade de luta nos moldes antigos: “benditos siglos que
sobre se poderá continuar com seu projeto, já que suas armas são seu braço e sua
espada, ainda assim sentia muito receio, “me pone recelo pensar sí la pólvora y el
brazo y filo de mi espada” 90. Da investigação que inclui o soldado, talvez esse seja o
ponto mais significativo, caso contrário, não o encaminharia Dom Quixote até esse
ponto.
pesquisa pode dizer. Digamos, por exemplo, que não pode ser casual esse discurso.
vida militar lhe trouxe; vide o “balazo” que o deixou “estropeado”, não de perna, mas
“de brazo”.91
Pelo visto, por mais que a figura do soldado pudesse ter tido algum sentido na
vida espanhola dessa época, decidimos fazer a condução por outro caminho. A
89
Benditos séculos que careceram da espantosa fúria daqueles demoníacos instrumentos da artilharia. (1, XXXVIII, p.232)
90
Me assusta pensar se a pólvora e o estanho me impedirão de tornar-se conhecido pela força do meu braço e o fio de minha
espada. (1, XXXVIII, p.233)
91
Se assim o considerarmos, o troco é dado com total maestria. Se Cervantes não tivesse caído na trama armada pelo Estado
Espanhol, se poderia ter tido a chance de optar por outro caminho, se outras possibilidades poderiam ter-lhe sido
apresentadas, nesse caso, podemos vislumbrar que Cervantes demonstra a lucidez de quem, à pro-cura da Cura fez a
travessia. Se, passados os séculos, o autor de Dom Quixote retoma “el paso” perdido, exatamente no ponto em que precisava
transmutar sua lucidez em loucura, enlouquecendo um pacato fidalgo para vingar-se da Espanha, e se, com isso, acaba
enlouquecendo, não só Espanha, mas todo o Ocidente, o mundo inteiro que com sua obra se identifica. Se assim foi, isso são
só conjecturas extra-textuais que não cabem em nosso estudo.
relação entre a república, até aqui desenvolvida, só serviu para dela serem
Cansada, sem mais saber sobre como afastar o tio enlouquecido das
heróico. É claro que uma pontinha de cada permanece, mas não o suficiente para
maior dedicação.
do soldado, nem do cavaleiro, mas, se, ao mesmo tempo, elas deixam transparente
uma íntima relação com a república, isso nos leva a desconfiar de uma nova versão
intenção. Se não foi nem o soldado nem o cavaleiro, que formação foi essa a que
Dom Quixote aderiu incondicionalmente, como leitor inveterado, chegando a ser por
ela tragado?
92
Arremessava o livro das mãos e empunhava a espada e andava golpeando contra as paredes, e quando estava cansado
dizia que tinha matado quatro gigantes que pareciam quatro torres e o suor que suava do cansaço dizia que era sangue das
feridas que tinha recebido na batalha. (1, V, p.36)
guardião” da Paidéia tradicional, inclusão adaptada à Paidéia platônica, com vistas à
sua eficácia, o que se resume de tudo isso é que a atenção da época de Dom
tendo em vista a crise do momento. Para isso, era preciso uma ação de urgência,
nevrálgico da obra. Não é por acaso que uma dramática e maquiavélica sessão do
época. E mais ainda. A essas duplas, outra de maior porte se impunha: a dupla
mentira – verdade. Com isso fica bem explicada a pergunta que tanto atormenta
Dom Quixote “¿Habían de ser mentira?”. E ainda mais que “están impresos con
aprovados pelos reis. Outra contradição ainda, igualmente intrigante, é terem sido as
novelas de cavalaria veículo de formação, pelo menos é assim que somos obrigados
mesmo tempo em que incorporava, tomando para si tudo o que povoava a realidade
93
Haviam de ser mentira [E ainda mais que] estão impressos com licença do rei e com aprovação daqueles a quem foram
dirigidos (1, L, p.304)
um outro – o cavaleiro don Quijote de la Mancha, cuja finalidade era a de “andar por
com seu lugar já ocupado no mundo, modelo no qual o fidalgo leitor se nutriu de
andante. Entretanto, não consegue ter paz nem tranqüilidade para assumir seus
naquelas novelas, as que tinha lido em tamanha quantidade e com tanto frenesi, que
teve toda a base de seus conhecimentos, para assim, estar liberado a realizar sua
nem com a realidade nem com a verdade, nesse caso, ele também seria uma
mentira. Ele que tão bem cumprira a determinação de ser cavaleiro exatamente por
ter sido um exímio leitor, acreditar em tudo o que as novelas veiculavam, poderia
Pois se, revivendo o escrutínio, não há nenhum indício que esclareça esse
impasse, como e onde encontrará Dom Quixote explicações que lhe permitam seguir
É que a chave para esse entendimento, por falha “del cura” ou, talvez de
Cervantes, não nos foi oferecida no “escrutínio”. Ali, muito livro queimado, muita
94
Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)
conversa, muitos comentários, muito julgamento, sem que fôssemos brindados com
considerada uma boa novela e aceitável pela “república cristiana” é não poder fugir
segredo confessado a dois – “el cura” e “el canónigo”. Não foi revelado isso no fórum
quase íntima, no capítulo XLVII, estendendo-se até o XLVIII, quando “el cura”,com o
O encontro foi casual: “volvió el cura el rostro, y vió que a sus espaldas
venían hasta seis o siete hombres”, dentre eles “uno de los que venían [...] era
seus criados, este se aproximou “del cura” para com ele tecer alguns comentários a
o levaram à loucura.
É nesse capítulo XLVIII que acabam definindo bem o que caracteriza uma
novela de cavalaria. As consideradas más são aquelas que nunca tiveram um “buen
discurso”, nem “reglas por donde pudieran guiarse y hacerse famosos”98. Só agora
fica claro que se trata de um estilo, estilo tão bem definido que possui todos os itens
95
Da verossimilhança e da imitação [...] a perfeição do que se escreve (1, XLVII, p.294)
96
Dignos de serem desterrados da república cristã [por (...) inutilidade] como a gente inútil (Ibidem)
97
Virou o rosto o cura, e viu que às suas costas chegavam pelo menos seis ou sete homens [dentre eles] Um dos que
chegavam [...] era cônego de Sevilha (1, XLVII, p.291)
98
Bom discurso [nem] Regras pelas quais pudessem orientar-se e tornar-se famosos (1, XLVIII, p.295)
que lhe são necessários para desse modo definir-se – “novelas de cavalaria”. Cada
vez, mais nos aproximamos do modelo ideal adotado pelo platonismo, definindo até
a arte.
Depois, fala a verdade por inteiro: “Y si he de confesar la verdad, tengo escritas más
de cien hojas”, acrescentando, ao final, um comentário que quiçá não foi inocente
nem gratuito. Disse que tinha apresentado esse material a “hombres apasionados
desta leyenda, dotos y discretos” e que tinha, de todos, recebido “una agradable
aprobación” 99.
escrutínio. Foi duro, dele, arrancar a verdade. Apesar do risco da crítica, o longo
caminho foi necessário. Só assim tem-se clareza do real motivo da loucura de Dom
Quixote: entre soldado e cavaleiro, optou por ser filósofo. E o cavaleiro, afinal, qual o
era tão real e indiscutível, a ponto de a ela poder entregar-se __ “y con esto se quietó
y prosiguió su camino, sin llevar otro que aquel que su caballo quería, creyendo que
99
Eu, pelo menos, – replicou o cônego, – tive certa tentação de escrever um livro de cavalarias, observando nele todo os
pontos que observei [Depois (...) inteiro:] E se devo contar a verdade, tenho escritas mais de cem folhas [acrescentando (...)
material a] homens apaixonados por esta lenda, cultos e de discernimento [e (...) recebido] uma agradável aprovação
(1, XLVIII, p.295)
en aquello consistía la fuerza de las aventuras”100. De tal modo estava traçado seu
Sua certeza de ser cavaleiro era tal que, ao sair pela primeira vez, pergunta:
“¿Quién duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la verdadera
historia de mis famosos hechos?”101. Apesar de não ter dúvidas de que sua história
respeito: o tom com que afirma a certeza traz, em si, a possibilidade de uma história
mentirosa que esconde uma história verdadeira. Além disso, Dom Quixote sai
ser isso uma verdade: “Y era la verdad que por él caminaba” 102.
contador de sua história - “¡Oh tú, sábio encantador [...] a quien ha de tocar el ser
cronista desta peregrina historia”103. Essa introdução deixa sinais de que há uma
possibilidade. Outra, entretanto, pode ser viabilizada: o acima descrito tem certa
aparência de jogo onde nada se define, mas que obriga a pensar nesse tema.
100
Com isto se tranqüilizou e prosseguiu seu caminho, sem levar outra coisa senão aquilo que seu cavalo queria, acreditando
que naquilo residia a força da aventuras. (1, II, p.21)
101
Quem duvida que, nos tempos vindouros, quando venha à luz a verdadeira história de meus célebres feitos (1, II, p.21)
102
E era a verdade que por ele caminhava (Ibidem)
103
Como se verdadeiramente estivesse apaixonado [sem (...) história] oh, tu sábio encantador (...) a quem deve tocar ser o
cronista desta peregrina história (Ibidem)
Depois de armar-se cavaleiro, com muitos inconvenientes, chegamos ao
ponto acima anunciado: “Gracias doy al cielo por la merced que me hace, pues tan
presto me pone ocasiones delante donde yo pueda cumplir con lo que debo a mi
profesión, y donde pueda coger el fruto de mis buenos deseos”104. Com essa fala,
Dom Quixote agradece aos céus por ter-lhe colocado tão rapidamente no caminho
Estava Dom Quixote diante de uma circunstância que exigia sua atuação de
espancado por seu amo e, “cada azote le acompañaba con una reprehensión”,105
Comparada a esta, a cena em que Dom Quixote, topando com um carro que
jaula para que possa provar sua coragem. Apesar dos avisos de que estão todos
famintos, Dom Quixote insiste: ”¿Leoncitos a mí? A mí leoncitos [...]? Pues ¡por Dios
que han de ver esos señores que acá los envían si soy hombre que se espanta de
leones!”107
De tanto insistir, o leonero abre as portas, mas o leão “más comedido que
104
Dou graças aos céus pela mercê que me faz, pois logo me dá oportunidades para poder cumprir com o que devo à minha
profissão e nas quais possa colher o fruto de meus bons desejos. (1, IV, p.29)
105
Cada açoite era acompanhado por uma repreensão (Ibidem)
106
– Descortês cavaleiro, mal parece lutar contra quem defender não se pode; subi em vosso cavalo e tomai de vossa lança –
que também tinha uma lança encostada ao azevinho no qual estava amarrada a égua – que eu vos farei saber que é de
covardes o que estais fazendo (1, IV, p.30)
107
Leõezinhos a mim? A mim leõezinhos [...]? Pois juro por Deus que hão de ver estes senhores que aqui os enviam se sou
homem que se espanta com leões! (2, XVII, p.405)
una y otra parte [...] volvió las espaldas y enseñó sus traseras partes a don
Quijote”108.
Não satisfeito de sua bravata, Dom Quixote recomenda com muita lucidez ao
tuertos”, lutando pela justiça e pela paz. Seu interesse é nitidamente o de obter
que tange à sua proposta inicial. Se tomamos seu discurso da Idade de Ouro onde
perfeito cavaleiro. Agora é Dom Quixote quem, além de ávido procurar as situações
dignas de um cavaleiro.
108
Mais comedido que arrogante, não fazendo caso de bobagens nem de bravatas, depois de ter olhado de um lado a outro
[...] virou as costas e mostrou as partes posteriores a Dom Quixote. (2, XVII, p.408)
109
Bem poderão os encantadores tirar-me a aventura, mas o esforço e o ânimo, será impossível [...] portanto, se por acaso
sua Majestade perguntar quem fez isto, direis que foi o Cavaleiro dos Leões, que daqui em diante que neste se troque, mude,
volte e mude o que até aqui tive de o Cavaleiro da Triste Figura. [Chega a oferecer] duas moedas de ouro [ao leonero (...) faz:]
Então o encarregado dos leões [...] contou o fim da contenda, exagerando como melhor ele pode a coragem de Dom Quixote.
(2, XVII, p.409)
110
Não havia a fraude, a malícia e o engano se misturado com a verdade e a retidão (1, XI, p.60)
Ainda que saibamos estar catalogado o desempenho da coragem do expor-
se, do ser valente e não covarde, no ideal do homem renascentista, pois o próprio
precisou tolerar: “no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle
parecido”.112 Sabe que sua atuação não estava conforme com o código da cavalaria
um cavaleiro andante, reconhece ter aquele, além de uma prática militar mais leve e
[...] por los desiertos, por las soledades, por las encrucijadas, por las selvas
y por los montes anda buscando peligrosas aventuras [...] busque los
rincones del mundo [...], intricados laberintos; acometa lo imposible [...]
resista a los ardientes rayos del sol [...], la dura inclemencia de los vientos y
114
de los yelos”, [até chegar onde queria:] “no le asombren leones [...]
111
Por falta de alternativa. (2, XV, p.397)
112
Não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)
113
Bem parece um galhardo cavaleiro, aos olhos de seu rei, no meio de uma grande praça, dar uma lançada de feliz resultado
em um bravo touro, bem parece um cavaleiro, armado de resplandecentes arma, passar a paliçada em alegres justas diante
das damas, e bem parecem todos aqueles cavaleiros que en exercícios militares, ou que se pareçam, entretêm e alegram, e,
se cabe dizer, honram as cortes de seus príncipes (Ibidem)
114
[…] pelos desertos, pelos ermos, pelas encruzilhadas, pelas matas e pelos montes anda buscando perigosas aventuras [...]
busque os rincões do mundo [...], intricados labirintos; acometa o impossível [...] resista aos ardentes raios do sol [...], a dura
inclemência dos ventos e dos gelos [até (...) queria] não lhe assombrem leões (Ibidem)
Como essas contingências se haviam esgotado, não perde uma que aparece
Segue seu discurso dizendo que, nesse caso, entre os extremos da valentia,
esto de acometer aventuras, créame vuesa merced, señor don Diego, que antes se
dizendo:
elevada, e, que por sua vez, contempla os dois cavaleiros em sua essência.
Não são as lutas nem a exibição de seus talentos ao rei que estão em jogo. O
mais importante não tem sequer nenhuma ligação com o corpo “que si no ha sido el
cuerpo”. O que se quer ressaltar aqui é o conhecimento que Dom Quixote exibiu
brilhantemente; do que se quer tratar é do que traz Dom Quixote no peito: “si las
115
E nisto de acometer aventuras, creia-me vossa mercê, senhor dom Diego, que antes se há de perder por carta de mais que
de menos (2, XVII, p.411)
116
[...] que entendo que se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, seriam achadas no peito de vossa mercê
como em seu próprio depósito e arquivo. E apressemo-nos, por que está ficando tarde e cheguemos a minha aldeia e casa,
onde descansará vossa mercê do passado trabalho que se terá não sido do corpo, terá sido do espírito, que acaso costuma
redundar em cansaço do corpo. (Ibidem)
ordenanzas y leyes de la caballería andante se perdiesen, se hallarían en el pecho
de vuesa merced”117.
um alerta para alocar as verdades que Dom Quixote precisa veicular, dentro do
universo da cavalaria andante, sem que isso seja necessariamente uma realidade. O
conhecimento que tanto exauriu Dom Quixote, a ponto de ele necessitar descansar
Se não foi do corpo, de onde veio o esforço empreendido por Dom Quixote?
O texto diz que veio “del espíritu” que, por conseqüência pode ter cansado o corpo.
Mas que fica claro haver uma cisão corpo-alma, sensível-inteligível, isso é
indiscutível.
voz dos valores medievais que estão por um “triz”, que estão em vias de perderem a
cortesã. Entretanto, não faz nenhuma diferença; porque, tendo sido esses
tendo eles passado pela versão cristã ou pela versão neoclássica, não importa. Em
117
Se as ordenações e leis da caalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê (2, XVII, p.411)
118
Descansará vossa mercê do passado trabalho (Ibidem)
4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO
mundo desde sempre, antes mesmo que o homem nele ingressasse. “O ser-no-
119
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998.
4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO
Dom Quixote abandona a leitura, sai do livro, olha ao redor e vê: Espanha
como afirma Pierre Vilar, entre 1598 e 1620, se experimenta “la primera gran crisis
de duda de los españoles” 120. Isso não pode ser mero acaso.
chegava do Peru e do México, pagava-se cada vez mais caro, os gastos eram
todos.
filha e esposa, a liberdade almejada: “los bandoleros son más señores de la tierra
120
A primeira grande crise de dúvida dos espanhóis (VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed.
Barcelona: Ariel, 1983, p.332)
121
Os bandoleiros são mais senhores da terra que o rei (Ibidem, p.336)
Instigante é a simpatia que, tanto Dom Quixote como todo povo, nutria pelos
grandes chefes de quadrilha, cujas estratégias eram tão mirabolantes que não havia
quando os vê, presos, serem conduzidos a realizarem trabalhos forçados para o rei:
__ __
“Cuanto más, señores guardas añadió don Quijote , que estos pobres no han
cometido nada contra vosotros”, participando até de sua fuga. Ele, enfrentando os
verdugos reais que “arremetieron a don Quijote que con mucho sosiego los
negocios!”.123 Na Espanha não se produz; ninguém responde por nada; tudo acaba
em diversão. “El no haber dinero, oro ni plata en España, es por haberlo, y el no ser
rico es por serlo”124. Nada havia, mas era como se houvesse, nada se fazia, mas era
gastava-se “por adelantado”; a riqueza espanhola “anda por el ayre”, “em papéis,
Espanha insistia no faz de conta. Ainda que Pierre Vilar demonstre que a
crise alcança até a consciência, esse alcance é tão reduzido que o obriga a
122
Tanto mais, senhores – acrescentou Dom Quixote, – que estes pobres não cometeram nada contra vós [participando (...)
que] arremeteram contra Dom Quixote que com muita calma os aguardava [e Sancho] Ajudou [...], por sua parte, à soltura de
Ginés de Pasamonte, que foi o primeiro que libertou na campanha, livre e desembaraçado, e, arremetendo contra o comissário
caído, arrancou-lhe a espada e a escopeta. (1, XXII, p.121-122)
123
Tudo é diversão em festas, jogos e caçadas! E que ardam o mundo e os negócios. (VILAR, Pierre. El tiempo del “Quijote”.
Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. Disponível em:
<http://www.cch.unam.mx/historiagenda/11/contenido/shv1.htm>. Acesso em: 27 jul 2007)
124
Não ter ouro ou prata na Espanha é por tê-lo, e não ser rica é por sê-lo (Ibidem)
125
VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983, p.332-346.
primeiros, de vista curta, só percebem superficialmente a crise, enquanto o artista
tempo; os exemplos são muitos: Dom Quixote desperta numa manhã debaixo de um
No tienes de qué tener miedo, porque estos pies y piernas que tientas y no
vees, sin duda son de algunos forajidos y bandoleros que en estos árboles
están ahorcados; que por aquí los suele ahorcar la justicia cuando los coge,
de veinte en veinte y de treinta en treinta; por donde me doy a entender que
127
debo de estar cerca de Barcelona.
catalã, nos dez anos que separavam as duas publicações de Dom Quixote, já
alcançava seus níveis mais extremos. Desse modo, compreende-se que no capítulo
XI da parte 1, Dom Quixote, por comparação com a “dichosa edad”, a que os antigos
cavaleiro, movido por amor, nesta cena, Dom Quixote atualiza o tempo em que a
além do simples levantar das mãos para colher frutos, outro esforço não era exigido.
fontes, as abelhas “ofreciendo a cualquier mano, sin interés alguno, la fértil cosecha
de su dulcísimo trabajo”, árvores que se doam para “cubrir las casas, sobre rústicas
126
VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983
127
Não tens de que ter medo. Porque estes pés e pernas que tateias e não vês, sem dúvida são de alguns foragidos e
bandoleiros que nestas árvores estão enforcados; que por aqui os costuma enforcar a justiça quando os captura, de vinte em
vinte e de trinta em trinta; de onde me vou entender que devo estar perto de Barcelona (2, LX, p.634)
estacas sustentadas”, sem outra função que a de defesa “de las inclemencias del
cielo”, o fruto “dulce y sazonado”128. Nessa época só havia paz; até a chegada de
[...] aún no se había atrevido la pesada reja del corvo arado a abrir ni visitar
las entrañas piadosas de nuestra primera madre, que ella, sin ser forzada,
ofrecía, por todas las partes de su fértil y espacioso seno, lo que pudiese
129
hartar, sustentar y deleitar a los hijos que entonces la poseían.
rapina que violenta a Mãe Terra. Naquele tempo, as moças formosas, que viviam no
campo, se vestiam com um tecido feito da trama de “hojas verdes [...] y yedra”130
sem que, para isso, tivessem que, além de sacrificar animais, lançar mão de
seu tempo. Eram mulheres da corte que, correndo daqui pra ali, na busca incessante
curiosidad [curiosidade associada ao ócio] ociosa les mostraba”. Para falar “los
concetos amorosos”, não era preciso nada mais que a simplicidade com que a alma
verdad”; se antes a justiça funcionava de acordo com suas próprias regras “sin que
la osasen turbar ni ofender los del favor y los del interese”; se a lei “del encaje” não
128
Saborosas e transparentes [de rios (...) abelhas] oferecendo a qualquer mão, desinteressadamente, a fértil colheita de seu
dulcíssimo trabalho [árvores (...) para] cobrir as casas, sobre rústicas estacas sustentadas [sem (...) defesa] das inclemências
do céu [o fruto] doce e maduro (1, XI, p.60)
129
Ainda não se havia atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir nem visitar as entranhas piedosas de nossa primeira
mãe, que ela, sem ser forçada, oferecia, por toda parte de seu fértil e espaçoso seio, o que pudesse fartar, sustentar e deleitar
aos filhos que então a possuíam (Ibidem)
130
Folhas verdes (...) e hera (Ibidem)
131
Raras e peregrinas invenções que a curiosidade [...] os conceitos amorosos [...] Concebia-os, sem buscar artificioso rodeio
de palavras (Ibidem)
perdición nacía de su gusto y propia voluntad”, o mesmo já não se podia dizer do
seu tempo.132
Se, na Idade do Ouro, tudo funcionava assim, é porque, em seu tempo, tudo
caballeros andantes”134.
de Pierre Vilar com a de Dom Quixote, vemos tratar-se o perfil do mesmo: o perfil é o
mesmo; com a única diferença do modo de dizer. Não resta dúvida de que o
apresentado por Dom Quixote se refere a uma época vista com olhos poéticos, e, o
que, para corroborar nosso ponto de vista, acreditando estar o perfil poético muito
escritor que, mesmo tendo uma proposta de olhar com olhos historiográficos,
la crisis a corto plazo, pero del naufragio de un mundo y de sus valores surge una
genial tragicomedia”135. Com isso, ele quer dizer que aquele perfil traçado por
analistas e teóricos de vista curta, por “persona(s) que imagina(n) sistemas, que
cree(n) infalibles pero que no tienen fundamento sólido, para resolver las dificultades
132
Não havia a fraude, o engano nem a malícia misturando-se com a verdade [...] sem que a ousassem turvar nem ofender os
homens que se vendem e os interesseiros [se a lei] do ”pistolão” [...] a perdição nascia de sua própria vontade (1, XI, p.60)
133
Nossos séculos detestáveis (1, XI, p.61)
134
Para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (Ibidem)
135
E no fim das contas, o verdaderio intérprete é em um caso Cervantes [...]. O arbitrista curto de vista percebe a crise a curto
prazo, mas do naufrágio de um mundo e de seus valores surge uma genial tragicomédia (VILAR, Pierre. El tiempo del “Quijote”.
Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. Disponível em:
<http://www.cch.unam.mx/historiagenda/11/contenido/shv1.htm>. Acesso em: 27 jul 2007)
públicas, económicas o de otra clase”136, esse está longe do perfil feito pelo
traço da arte.
Muito bem disse Pierre Vilar: um mundo que está naufragando. Mas esse
mundo avesso ao da época de ouro que nos descreve Dom Quixote; pelo menos é o
Quando fala de seu mundo, para nós que já sabemos o que estamos
terra. Sem a articulação terra-mundo, sem arejamento, falta ar, falta o sopro da vida.
Assim fica fácil; a olhos sensíveis, o naufrágio desse mundo se torna sensível. É
desse mundo que emerge Dom Quixote; um mundo sem referência, “sin suelo”,
onde tudo “anda por el aire”, um mundo sem honestidade, sem justiça, sem amor.
Dom Quixote procura onde assentar o pé para transitar nesse mundo e não encontra
chão; não sabe para onde ir, não tem como se mover. Como “agir”, em todo e
qualquer sentido da palavra, sem que se possa mover? A essa realidade, o ócio se
sinaliza forte relação com outros itens da Tese que trataremos mais adiante. Por ora,
136
Pessoa(s) que imagina(m) sistemas, que acredita(m) infalíveis, mas que não têm fundamento sólido, para resolver
as dificuldades públicas, econômicas ou de outro tipo. (MOLINER, María. Diccionario del uso del Español. Madrid: Gredos,
1987, p. 232).
É verdade que houve exagero na avaliação – “sem mundo”. É claro que
mundo sempre há; caso contrário, sequer o desejo de ser cavaleiro encontraria
usaremos uma imagem que poderá tornar claro o processo. Rede conceitual; assim
Basta pensarmos numa rede rígida, sem mobilidade que possa favorecer a
resistência e durabilidade. A esses fios nos referimos, aos fios rígidos da verdade
vêm sendo submetidos à violenta luta entre a rigidez dos conceitos de um lado e a
sobre a época de ouro. Esse confronto insistente foi o que destruiu as malhas da
sensível ao insuportável viver nesse mundo, é provável que tenha optado pelo
caminho mais curto: na falta de outro, ele recompõe a rede de seu tempo, a ela
superpondo a rede da cavalaria, familiarizado que estava com a ficção lida. Tal
decisão não parece má, já que “a rede conceitual é condição prévia para [...] sair do
que não vai faltar no mundo de Dom Quixote, os do tempo da cavalaria, os de seu
137
CASTRO, Manuel Antonio de. A questão e os conceitos. Art. Fac. Letras, UFRJ, 2007, p.3.
Dom Quixote deixou bem claro a necessidade de a cavalaria fazer frente a
“nuestros detestables siglos”. Afinal, foi para isso que ela foi instituída: “para cuya
seguridad [...] se instituyó la orden de los caballeros andantes”138. Ele demonstra ter
plena consciência da validade de seu projeto. Por isso, mesmo reconhecendo quão
detestável é o seu tempo, é com os fragmentos que ainda percebe de seu mundo
que pode contar. Entretanto, falta-lhe ainda o mundo do confronto. Assim, não lhe
necessários para montar seu mundo. O que teria feito Dom Quixote acreditar ser o
mundo da cavalaria, comparável àquele mundo ideal que seu olhar tanto cobiça?
Mesmo que não compreenda muito bem sua própria escolha, de uma coisa
Dom Quixote está seguro: sabe muito bem que, se quiser compreender, só no
tão insignificante a ponto de ser localizado por um artigo indefinido e de sequer ser
simplório que ele se dá. É bem possível que, por pura falta de opção, Dom Quixote
138
Nossos abomináveis tempos [Afinal...] para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (1, XI, p.60-61)
139
Em um lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar. (1, I, p.17)
No momento mesmo em que Espanha descobre o novo mundo, é quando
menos mundo tem. E se Espanha descobre um novo mundo, é justo que Dom
Quixote, sem referências, também invente o seu. Para ser, todos precisam de
Em Menino a bico de pena141, por mais que o menino seja moldado dentro dos
por todos, desse mundo não pode libertar-se, pois somente nesse mundo e a partir
do poder público: “los libros que están impresos con licencia de los reyes”142. Com
verdade dos livros de cavalaria que estava transpondo para os séculos XVI-XVII.
Seu mundo criado precisava de respaldo. Para compreender o processo com o qual
Dom Quixote criou o mundo da cavalaria, cabe aqui o registro de que esses já eram
documentalmente.
Do mesmo modo que Cervantes afirma ter sua história o suporte documental
dos anais de la Mancha: “pero, lo que yo he podido averiguar en este caso, y lo que
140
Obra teatral de Calderón de la Barca.
141
Conto de Clarice Lispector.
142
Haviam de ser mentira [a intenção (...) público] os livros que estão impressos com a licença dos reis (1, L, p.304)
he hallado escrito en los Anales de la Mancha”143, Dom Quixote se afirma no mesmo
pressuposto para montar seu mundo cavaleiresco, a ponto de não ter tranqüilidade
enquanto não se arma cavaleiro: “mas lo que más le fatigaba era el no verse armado
diferentes. Começa meio tímido “sin dar parte a persona alguna de su intención y sin
que nadie le viese”, sai ao campo pela primeira vez “por la puerta falsa de un corral”.
Inicialmente, mesmo que reconheça ser essa sua missão, sua insegurança é tal que
chega a sentir-se exultante por ter conseguido dar o primeiro passo para realizar seu
desejo. Porque teve a coragem e conseguiu sair, isso o deixou “con grandísimo
contento y alborozo de ver con cuánta facilidade había dado principio a su buen
ritual com um pequeno gesto que realizaria no meio do campo, e em duas horas
somente: “Todo se lo creyó don Quijote, y dijo que él estaba allí pronto para
obedecerle”146.
confiança no que está fazendo: dessa vez, já faz ameaças, caso “aquella gente baja”
voltasse a agir do modo que o tinham feito todos: “comenzaron desde lejos a llover
143
Mas, o pude averiguar neste caso, e o que pude achar escrito nos Anais de La Mancha (1, II, p.22)
144
Mas o que mais o incomodava era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se em
aventura alguma sem receber a ordem de cavalaria (1, II, p.25)
145
Sem comunicar a ninguém sua intenção e sem que ninguém o visse [sai (...) vez] pela porta falsa de um curral [inicialmente
(...) deixou] com grandíssimo contentamento e alvoroço de ver com quanta facilidade havia dado principio a seu bom desejo
(1, II, p.21)
146
Em tudo acreditou Dom Quixote, e disse que ele estava ali pronto para obedecer-lhe (1, III, p.28)
piedras sobre don Quijote”147. E avisa que, a partir do momento que se arme
cavaleiro, tudo será diferente, que “si fuese otra vez acometido y se viese armado
Se percebe o cavaleiro que uma transfiguração não é aceita pelo outro e que
está a ponto de ser desmascarado, podendo correr o risco de perder sua confiança,
ou, o que é pior, deixar ele mesmo de acreditar na invenção que está construindo; a
solução encontrada pelo manchego cavaleiro será sempre a desculpa dos gênios e
sábios que promovem essas mudanças com a intenção de atrapalhar sua jornada
de glória. Quando percebe não conseguir convencer Sancho de que os moinhos são
gigantes:
-Calla, amigo Sancho – respondió don Quijote – que las cosas de la guerra,
más que otras, están sujetas a continua mudanza; cuanto más, que yo
pienso, y es así verdad, que aquel sabio Fristón que me robó el aposento y
los libros ha vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria de su
149
vencimiento [...]
Dom Quixote, sem alternativa, em situações limite, aprende a lançar mão dos
crescendo que vai impondo e dando maior garantia de certeza àquilo que está
147
Começaram de longe a chover pedras sobre Dom Quixote (1, III, p.27)
148
Se fosse outra vez atacado e se visse armado cavaleiro, não pensaria deixar ninguém vivo no castelo (1, III, p.28)
149
– Cala, amigo Sancho – respondeu Dom Quixote – que as coisas da guerra, mais que outras, estão sujeitas à contínua
mudança; quanto mais, que eu penso, e é assim a verdade, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros,
transformou estes gigantes em moinhos para tirar-me a glória de vencê-los (1, VIII, p.47)
150
Ou muito me engano, ou esta será a mais famosa aventura que se tenha visto, porque aqueles vultos negros que ali
parecem devem ser, e são sem dúvida, alguns encantadores que levam furtada alguma princesa naquele coche (1, VIII, p.49)
“Parecen”, “deben de ser”, “y son sin duda”151, com essas expressões
acima, Dom Quixote aumenta a possibilidade de que a realidade não lhe pregue
Quixote são muitas: se acaso pairasse alguma dúvida no próprio Dom Quixote, em
relação às ousadias que estava realizando e precisasse, ele mesmo, tirar a dúvida,
perguntava, não tanto por vaidade, mas, fundamentalmente, para ter o alívio de que
Pero dime, por tu vida: ¿has tu visto más valeroso Caballero que yo en todo
lo descubierto de la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya
tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más destreza en
el herir, ni más maña en derribar? [Tudo isso] facilitaba la prueba de su
152
caballería.
empreendimento estava sempre por “um fio”. Foi assim que não deixou uma brecha
isso está garantido pelo sufixo “ante”; quer mais garantia de realidade que essa?
Ele não era cavaleiro de lugares distantes e inusitados, pertencia àquele lugar que,
__
por mais que o defina um artigo indefinido “En un lugar de la Mancha”, está ali
mesmo, bem perto. Caso não seja seu lugar de origem, todos sabem tratar-se de
terra de Espanha. Do mesmo modo agiu com sua amada Dulcinea, a “del Toboso”,
escudeiro, este era seu próprio vizinho, figura bastante conhecida no lugar. E, para
não deixar escapar nem as armas de seu plano bem arquitetado, Dom Quixote, além
experimentada. De tal modo que só o realiza uma vez. E, mesmo percebendo sua
fragilidade para a empresa arrojada que precisará enfrentar, dá por terminada ali a
questão, porque seu intento fora alcançado: passara pelo experimento empírico pelo
“mentira”. Como podia um cavaleiro com tão arrojado projeto, tranqüilo, montar um
mundo?
ideal. Entretanto, na mesma medida, na realidade real, mais era tragado pelo que
doloroso. Ainda que soubesse jogar com o fundamental para dar forma a seu
completamente transtornado:
Ahora te digo, Sanchuelo, que eres el mayor bellacuello que hay en España.
Díme, ladrón vagabundo, ¿no me acabaste tu de decir ahora que esta
princesa se había vuelto en una doncella que se llamaba Dorotea, y que la
cabeza que entiendo corté a un gigante era la puta que te parió, con otros
disparates que me pusieron en la mayor confusión que jamás he estado en
153
todos los días de mi vida?
153
Agora te digo, Sanchinho, que es o maior velhaco que existe na Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo, não me acabas tu de
dizer agora que esta princesa foi transformada em uma donzela que se chamava Dulcinea, e que a cabeça que entendo cortei
de um gigante era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na maior confusão em que jamais estive em
todos os dias de minha vida? (1, XXXVII, p.226)
O processo com que Dom Quixote inventa e instala o mundo da cavalaria vai
cavaleiro, recebem-no em seu castelo: “Y aquel fue el primer día que de todo en
real, Dom Quixote prepara o escudeiro, obrigando-o a juras, com a finalidade de que
[...] que jamás, en vida ni en muerte, has de decir a nadie que yo me retiré y
aparté deste peligro, de miedo, sino por complacer a tus ruegos; que si otra
cosa dijeres, mentirás en ello; y desde ahora, para entonces y desde
entonces para ahora, te desmiento, y digo que mientes y mentirás todas las
155
veces que lo pensares o lo dijeres [...]
Por muitas etapas passou Dom Quixote para dar realidade ao mundo da
cavalaria. Esse mundo não foi totalmente construído, para só depois Dom Quixote
154
E aquele foi o promeiro dia em que tudo de tudo conheceu e acreditou ser cavaleiro andante verdadeiro, e não fantástico
(2, XXXI, p.481)
155
Que jamais, na vida ou na morte, deves dizer a ninguém que en me retirei ou evitei este perigo, de medo, mas sim para
comprazer a teus rogos; que se outra coisa disseres, mentirás nisso; e a partir de agora, para sempre e de sempre para agora,
te disminto. E digo que mentes e mentirás todas as vezes que tal pensar ou disser (1, XXXVII, p.124)
5 PREPARANDO A CURA
Sabe-se que Cura não é um dos muitos “fazeres” do homem, em que sua
ações do homem, independente de seu querer; Cura é sua essência. Dessa forma,
Cura não possui limites, a não ser aquele estabelecido como sua finalização – a
morte. Nesse “entre” vida-morte, Cura é ilimitada. Por mais que não pareça, está
sempre presente. Sendo essência, não pode jamais ser extirpada do processo da
Cura que o move. Esse mover-se, tão íntimo da essência, tampouco pode ser
simples e previsível; jamais poder-se-á ter uma fórmula dirigindo todos os passos
da Cura. Isso porque ela só se dá na dinâmica da vida, monitorada pelo ser. Ser,
lhe suas marcas. Mas o que há de mais interessante é a flexibilidade das linhas
responsáveis por esse perfil; estão sempre em estado de “stand by”, prontas para
ser. Do mesmo modo, as marcas impressas por Cura são pura solvência; ao mesmo
registro divino fechado, a partir do qual tudo se mostra e evolui. Não uma evolução
da Cura, mas evolução em seu sentido mais poderoso e dinâmico. No caso de haver
dito registro, impossível será defini-lo; logo, fica descartado seu valor e importância.
É por isso que muitos e ilimitados são os modos que caracterizam presença e
ação de Cura. Nela, a pre-sença viaja sempre no vagão do “entre”, aquele rico
sença, por si mesma, já sempre de-caiu no mundo, mesmo em seu mais autêntico
presença dos outros, é por eles conduzido. É um modo de ser no mundo em que a
vida com pé firme, já cinqüentão. Nasce como biografia, sem que saibamos de seu
juventude, nem como foi obrigado a amadurecer naquela Mancha, não sabemos.
fundamentalmente, que todo herói nasce e morre. Dom Quixote não nasce, ou
constitui, nos anais literários daquela época, surpreendente. A única coisa que é
declarada no primeiro parágrafo é que Dom Quixote era cinqüentão: “Frisaba la edad
de nuestro hidalgo con los cincuenta años”156 e que tinha uma sobrinha __
“que no
156
(1, I, p.18)
157
Que não chegava aos vinte (1, I, p.17)
profecias reveladas via oráculo, a água como fluido que aparta ou elimina, a
herói reduplica a vida literária de outro herói perfeitamente adequado a dito modelo,
encontro e, dessa noite resulta uma gravidez que a princesa dissimulada mantém
Gandales, um cavaleiro da Escócia que leva o rebento a seu castelo, para por ele
ser criado em sua terra natal. Mais tarde, Amadis é reconhecido por seus pais e,
depois das muitas aventuras, chega a casar-se com Oriana, filha de Lisuarte, rei da
Grã Bretanha.
Tantos dados não deixam dúvida quanto ao modelo prototípico que é Amadis,
próprio do gênero épico-cavaleiresco. Seu autor garante que o que narra é matéria
chega a comentar com certo tom de ironia: “Nos cuentan [os livros de cavalaria] el
padre, la madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por
punto y día por día, que el tal caballero hizo”158. Que mais necessidade tinha Dom
nascimento é o quanto basta, para que com ele se possa impulsionar o movimento
Há quem diga que Dom Quixote levava uma vida ao modo da natureza,
sempre idêntica a si mesma. É possível que seja verdade, já que não há registro
nem informação de seu viver anterior. É como se não fosse digno o seu modo de
fluxo constante, uma dinâmica que vai possibilitando que ele exista na medida em
que vai experienciando o mundo. Só assim, Dom Quixote, aos 50 anos, começa a
Pelas características de seu nascimento, Dom Quixote foge aos padrões tanto
era algo não esperado, talvez não estivesse previsto no código da cavalaria.
158
Contam-nos [os livros de cavalaria] o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, ponto por ponto e dia
por dia, que o cavaleiro fez (1, L, p.304)
Apesar de, ao limite máximo, de aventura em aventura, se dispor à luta, seja
ela qual for, onde quer que se apresente, correndo os riscos que forem, até mesmo
o de morte; apesar de sofrer danos físicos, e ser curado com bálsamos, Dom
Quixote não morre e acaba sendo protegido dos golpes certeiros que a lâmina de
uma espada pode dar. Cruza todo o percurso de suas andanças, dá conta de tudo
É claro que pode morrer. E morre de modo tão atípico que nos leva a
desconfiar.
a morte são doença, dano físico ou, no máximo, suicídio. Mas Dom Quixote não é
decepção tem, como base, o livro de Palmerín, onde o cavaleiro morrera lutando por
vingança; e, por isso, o cavaleiro manchego não escolhe o mesmo caminho, ou pelo
menos, não é semelhante o destino que a vida lhe reserva. Dom Quixote não morre
Decide. Sem mais nem menos, decide morrer; deita-se na cama e, por pura
decisão, morre. É, sem dúvida, um modo atípico: morrer por decisão própria. Ainda
mais se essa decisão foge ao senso comum; o suicídio, por exemplo. Sabe-se que,
no modo ordinário de morrer por decisão própria, só dando cabo da vida. Nesse
caso, repetimos, a única forma acabível de morte, por decisão, só pode ser o
suicídio.
contrário, lutas resultantes dos desfechos em que o desafio do herói suplantou todos
propósito de que ali fossem, ao final de alguma batalha da qual Dom Quixote saísse
vencedor, para levar à Dulcinea a notícia, com vistas a agraciá-la com um mimo.
Isso, num século com o qual a cavalaria, apesar de muito lida, de fresca e presente
mesma de herói, não morre em meio ao turbilhão heróico em que, ao longo de sua
__
história se metera não morrera até então, não precisava morrer no final. Mesmo
que morresse, que morresse de modo coerente, dentro dos moldes em que desde
Essa providência não pode ser gratuita. É preciso que algo a justifique.
ingrediente indispensável.
nascido, sai à pro-cura de si, pro-curando Cura; se é esse seu propósito, a Cura
somente será alcançada quando ele souber finalmente quem é. Chegado esse
momento, só lhe resta morrer. Até porque, disso precisa dar conta para cumprir a
determinação de ser-para-morte.
obra, tendo nascido de forma atípica, sem nenhum dado significativo que aponte
para sua significação de ser biológico, é lógico que do mesmo modo se dê a sua
morte. Se nasce como ser literário, como ser artístico precisa morrer.
nascimento e morte –, Dom Quixote, do mesmo modo que Aristóteles, dele dá conta
atipicamente.
Vimos que Dom Quixote, embora tenha como proposta encarnar a figura de
159
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998.
Em sua proposta de dar conta do homem, considerando-o a partir do que há
espaço para a morte. É quase certo que, mais adiante nos deteremos nos
cessa a existência. Ela é a última estação, o ponto final, o fim da linha da existência.
presente e sim é a totalidade do que foi no passado e o que projeta para o futuro. A
a única certeza que tem o homem sobre a qual não tem sequer possibilidade de
escolha.
possibilidade de volta para o mundo, porque este ainda está lá. No tédio, a falta de
arremessar para a diversão, ou para qualquer outra atividade que o valha.Caso não
limiar da angústia.
A morte, entretanto, é o existencial mais radical para a Cura. Frente à morte,
possibilidade.
Quixote, o cavaleiro. Por isso, no último capítulo diz: “Yo fui loco, y ya soy cuerdo”,
diz – “fui don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano”160.
essa perspectiva, só o simples fato de saber que vai morrer, pode colocar o homem
em Cura.
morte, chegando a sofrer danos físicos que curava com bálsamos, mas não morre.
concretizar sua tarefa. Até que, feita a travessia, já curado161, pode morrer. E morre
de modo tão atípico que nos levou a buscar, em Heidegger, essa explicação. Como
Consciente, ele decide morrer. Deita na cama e morre, por pura e absoluta
estabelecida pelo senso comum. Essa decisão, em relação à morte, só pode ser
160
Já fui louco e já sou sensato [diz __] fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano.
(2, LXXIV, p.699)
161
Todas as vezes que for mencionado o termo “curado”, ler: “ter passado pelo processo de Cura. Cura é processo, não finda
antes da morte. Portanto, quando assim nos referirmos, isso atende à estratégia metodológica dos Périplos. Curado significa,
neste caso, ter dado conta, ter finalizado o projeto do 1o Périplo.
concretizada pelo suicídio ou por um intencional “acabar com a vida”. A de-cisão de
Dom Quixote pela morte é muito específica – é para marcar esse fim de ciclo, o ciclo
preparar-lhe um ritual: depois de fazer seu testamento, diz – “Cerró con esto el
fato de Dom Quixote deitar-se para morrer, “de uma ponta à outra” da cama, torna-
largo” marca os extremos desse construir. Significa que, “de ponta a ponta”, Dom
naquele momento; afinal, não sofria de nenhum mal onticamente característico, não
sofrera nenhum ferimento ôntico. Isso nos sinaliza tratar-se a vida de Dom Quixote,
não de uma vida comum, onde o viver é ordinário, e sim tratar-se de uma vida em
que está em jogo o ser-para-morte. É tão fora do ordinário sua vida, que o próprio
modo de morrer funciona como sinal de sua Cura; fora dos padrões da cavalaria.
Quixote decide morrer e deita, parece, com isso, precisar resguardar o espaço da
solidão própria da morte. No rito da morte, apesar da cama ser o mais instrumental
dos instrumentos, apesar do seu significado mais comum e prosaico, assume o valor
sagrado de altar, onde se realiza o clímax da solidão mais radical. Nesse momento o
162
Encerrou, com isso, o testamento e, tendo um desmaio, estendeu-se de ponta a ponta da cama (2, LXXIV, p.700)
homem é só solidão – nada mais compartilha, nada mais é impróprio nem
de Avellaneda163. Não pôde nem pode morrer, porque não nasceu, porque não tem
corpo sequer, como então morrer? A ele só lhe cabe, viver-vivendo a vida ordinária,
que para ele construam manicômios, único lugar onde ele e outros que sofrem de
sempre o ser do “pré”, logo ele também participa do “estar-lançado”. “[...] na maior
do que já é, do que já está estabelecido como significado, mesmo sem que perceba,
e assume isso como responsabilidade: uma vez existindo, ele “tem de ser”166.
163
Entre a publicação da primeira e da segunda parte, aparece uma obra de mesmo nome, apresentada como continuação da
verdadeira. Essa obra é escrita por Avellaneda.
164
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.188.
165
Ibidem, p.189.
166
Ibidem, p.189.
“Pré”, na época de Dom Quixote, dava o tom, determinando o humor; humor
que tocava a todos e fazia com que não perseguissem a abertura que esse próprio
ser”167.
mesmo tempo, resquícios da Idade Média, como também a dúvida sobre esses
determinado por esse clima. A obra apresenta muitos exemplos que mostram a
fragilidade dos valores medievais-cristãos, interferidos que estão pela sua não
cavalaria que professa Dom Quixote. A prova é que assim lhe responde o cavaleiro,
presencia ante quien me hallo y el respeto que siempre tuve y tengo al estado que
vuesa merced profesa tienen y atan las manos de mi justo enojo”168. E segue
dizendo-lhe que, se tem as mãos atadas, pode usar a arma que eles, os da Igreja
usam, que são as mesmas da mulher – a língua. Dom Quixote trava uma batalha
com o eclesiástico, falando com ele com a mesma dureza: “con vuesa merced, de
167
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.189.
168
O lugar onde estou, e a presença diante da qual me encontro e o respeito que sempre tive e tenho ao estado que vossa
mercê professa têm e atam as mãos de meu justo asco (2, XXXII, p.185)
169
Com vossa mercê, de quem se devia esperar antes bons conselhos que infames vitupérios (Ibidem)
“pré” que todos se responsabilizam, achando que o que lhes cabe é permanecer
lançado no estabelecido.
as antigas já não servem. Talvez seja essa a tonalidade responsável pelo medo, o
temor de não se saber, o temor de não chegar a ser nem a saber, o temor da dúvida,
o temor de não conseguir dar conta da realidade, o temor, afinal, de não engrenar no
aponta o elemento que radicaliza as duas épocas: “aquellos benditos siglos que
carecieron de la espantable furia”170, em confronto com “la edad tan detestable como
Como era possível treinar destrezas nas lutas marciais, exercitar e aprimorar o físico
com ginásticas, fortalecer a alma pelo controle das paixões; como isso era possível,
170
Aqueles benditos tempos que careceram da espantosa fúria (1, XXXVIII, p.232)
por todo lo descubierto de la tierra”171; como isso era possível? A tonalidade afetiva,
O medo que sentia talvez fosse de ser tragado pelo vazio ameaçador que,
mesmo não sendo ainda irreversível, já dava sinais de incômodo mal-estar. Para
fugir do mal-estar, cada um repetia ao infinito uma mesma atividade que lhe
Mas todos repetiam, e Dom Quixote também. Seguiam lendo silenciosamente “de
Que, um belo dia, poderiam optar por fuga diferenciada, isso é possível;
mas a história que Cervantes vai contar é exatamente a do herói que teve a coragem
[...] dime por tu vida: ¿has visto más valeroso caballero que yo en todo lo
descubierto de la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya
tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más destreza en
173
el herir, ni más maña en el derribar?
temor, se o que se insinua já nesse momento é uma “[...] força que libera o homem
171
Se a pólvora e o estanho me tirarão a oportunidade de tornar-me famoso e conhecido pelo valor de meu braço e o fio de
minha espada, por todo o descoberto da terra (1, XXXVIII, p.233)
172
De claro em claro [...] de turvo em turvo (1, I, p.18)
173
Diz por tua vida: viste mais valente cavaleiro que eu em todo o descoberto da terra? Leste em histórias outro que tenha ou
tenha tido mais brio em atacar, mais alento em perseverar, mais destreza em ferir, mais manha em derrubar? (1, X, p.56)
174
CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto de (Org.). Crise da razão. São Paulo: Companhia
das Letras, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.346
Impossível imaginar o poder controlador de Dom Quixote numa conversa com
dicionário: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares
mayores – dijo don Quijote [...] Estéril queréis decir, amigo - dijo don Quijote [...] Esa
ciencia se llama astrología – dijo don Quijote”175, sucumbir ao medo. Medo de quê?
mas que é só uma tonalidade afetiva, nada mais que um humor que não se
consegue detectar, porque é essa tonalidade que vai abrir o mundo como
compreensão.
Algo assustador ou, no mínimo ameaçador, está por vir e esse algo é o tal
detectar, definir, identificá-lo. Não precisaria Dom Quixote tanto se armar, tanto dizer
que é forte, tanto se exercitar. Havia sim um algo tão temível, por trás dos “tuertos y
agravios”177, por trás das viúvas e donzelas, por trás dos fracos e oprimidos que
exigia que Dom Quixote tivesse a certeza de que precisava ser forte, de que
175
Eclipse se chama, amigo, que não cris, o escurecimento desses dois luminares maiores – disse Dom Quixote [...] Estéril
queréis dizer, amigo – dijo Dom Quixote [...] Essa ciência se chama astrologia – disse Dom Quixote (1, XII, p.64)
176
CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto de (Org.). Crise da razão. São Paulo: Companhia
das Letras, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.346
177
Injustiças e desacertos (1, XXXI, p.184)
Talvez fosse esse o motivo que o fez optar por ser cavaleiro: havia um
estão aqui nos assediando, sem que tenhamos elementos para disso dar conta.
Entretanto, sabe-se não ser mais possível acreditar em Dom Quixote, depois
de ameaça causada pelos danos. Ainda que o ente pre-sença tenha algum
conhecimento desse temível que se aproxima, sua proximidade ainda não está em
mais se aproxima, mais irradia raios de ameaça. Pode chegar ou não, o que o torna
mais terrível; pode passar ao largo. Nada disso diminui o temor; tudo isso o constitui.
Não é preciso que se constate algo que vai acontecer no futuro, para depois
temer. Não é essa a ordem: primeiro se constata o que se aproxima, para só depois
se pode esclarecer e ter claro para si o temível. Esse temível, o capta a “circunvisão”
porque ele já está na disposição do temor. Na disposição tudo fica entregue aos
fatos, é aquilo que é de fato: o ser só é percebido na facticidade, como fato de ser,
como ser de fato. Isso significa que a pre-sença está lançada em seu “pré”.
sempre no ser do seu “pré” (do pré da pre-sença), que o temor desentranha a pre-
sença. E isso pode acontecer tanto no “ser junto a”, considerando que a pre-sença é
um ser em ocupações que pode temer “pela casa ou pela propriedade”; como “ser
quer dizer aqui é que a ocupação e a preocupação são o modo de ser da pre-sença
lançada em seu “pré”. E a cavalaria foi o “pré” de Dom Quixote e Dom Quixote nela
ocupa das coisas do mundo, a pre-sença experimenta o temor de tal modo que a
“confunde e faz perder a cabeça”; a ponto de “precisar se recompor depois que ele
passa”178. Eis que a encontramos; Dom Quixote se encaixa inteiramente nesse perfil.
não terem a estirpe de cavaleiros – “- A lo que yo veo, amigo Sancho, éstos no son
caballeros , sino gente soez y de baja ralea” 180, enfrenta-os para resolver o agravo
cometido contra seu cavalo Rocinante. O resultado é que, depois de ter Dom
__
Quixote atacado a facadas um dos gallegos “¿Quién dijera que tras de aquellas
tan grandes cuchilladas como vuestra merced dió a aquel desdichado caballero
andante, había de venir, por la posta y en seguimiento suyo, esta tan grande
vítimas são os três. Tanto apanha Rocinante por ter ido importunar as éguas de “los
178
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196
179
Desalmados tratadores de éguas (1, XV, p.78)
180
Pelo que vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros, mas sim gente de soez e baixa ralé (1, XV, p.79)
181
Quem diria que após aquelas tão grandes punhaladas como vossa mercê deu naquele pobre destitado cavaleiro andante,
haveria de vir, a cavalo e em seguida a isso, esta tão grande tempestade de paus que se descarregou sobre nossas costas
(1, XV, p.81)
gallegos”, como apanham Sancho e Dom Quixote, acreditando este estar cobrando
que no había de poner mano a la espada contra hombres que no fuesen armados
No mesmo episódio, Dom Quixote nos fala, ele mesmo, do temor, em meio às
ocupações. Nesse caso está referindo-se à época. Como a está vivendo em seu
Por isso orientando Sancho a como proceder quando tiver a propriedade de sua ilha
porque “[...] nunca están tan quietos los ánimos [...] que no se tenga temor”; daí a
acontecimiento”183
O temor está em toda parte; nas ocupações e nas pre-ocupações. Como ser
às coisas do mundo”, mas junto com os outros, embora o temor não necessite ser
vivido junto. Pode-se temer em lugar de alguém. Esse, também, não tira do outro o
temor. Quem teme em lugar do outro pode sequer temer. Pode-se temer em lugar do
outro, sem necessariamente temer. Às vezes o outro teme também; às vezes “ele
182
Eu tenho a culpa de tudo, que não tinha de pôr mão na espada contra homens que não fossem armados cavaleiros
como eu (1, XV, p.80)
183
[...] não estão tão quietos os ânimos [...] que não tenha temor [daí (...) de ter] coragem para atacar e defender em qualquer
momento (Ibidem)
184
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196.
Podemos dizer que havia um humor, uma tonalidade afetiva no “pré” de cada
temor, porque este é um modo da disposição. Podemos dizer que havia algo de
ameaça no ar, algo que poderia produzir dano, mas numa distância desfavorável à
pre-sença. A proximidade em que se insinuava o dano não era suficiente para torná-
lo dominável. Podemos dizer que era no cotidiano, junto às coisas do mundo, que
Dom Quixote e todos temiam. Podemos dizer até que, no caso específico de Dom
Quixote, seu temor era, no viver as coisas do mundo, um temor por si mesmo e
também pelo outro; caso contrário, não precisava tomar iniciativa tão radical dizendo
com suas próprias palavras: “la falta que él pensaba que hacía en el mundo su
tardanza, según eran los agravios que pensaba deshacer, tuertos que enderezar,
sinrazones que emendar, y abusos que mejorar y deudas que satisfacer”185. Dom
Custe o que custar, Dom Quixote toma, para si, o ocupar-se das coisas do
185
A falta que ele pensava que fazia no mundo sua demora, segundo eram os agravos que pensava desfazer, injustiças que
consertar, desrazões que emendar, e abusos que corrigir e dívidas que satisfazer (1, II, p.21)
pelo mundo com esse propósito, sai munido de um acervo adquirido na leitura
segundo uma lei fixa, eterna e imutável. De tal modo, que é internalizando esse
referencial, que vai atuar. Desse modo, seu ocupar-se das coisas do mundo está, ao
É isso que estará sempre regulando sua ação, que estará sempre à mercê da
mergulhado na leitura da cavalaria que esse era o seu referencial maior enquanto
mundo, não será esse o rumo que tomará sua trajetória. Não percebeu o cavaleiro
que bastou colocar o pé no caminho, para constatar, irremediavelmente, que “no hay
camino”.
mais o “estar” se torna presa do “ek”186, mais Dom Quixote é provocado pelo ser,
186
“Ek” significa o “lançar-se em direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o homem existe. A expressão eksistência denota uma
dinâmica, um movimento de saída em direção a possibilidades. Nesse sentido, a proposição ek significa esse movimento de
dentro para fora.
5.1.3.1 A pouca ocupação de Dom Quixote
de Heidegger: “ser junto ao, manual intramundano”187. Sua condição de cavaleiro lhe
cavalaria, com os quais, de algum modo, se ocupava. Não é preciso muitas páginas,
lá pela 48, onde o armar-se cavaleiro é uma claríssima “ocupação” conduzida com
ele assumido, com ele mesmo e com o código da cavalaria. Sua seriedade está em,
uma falta que lhe tira completamente a tranqüilidade: “lo que más le fatigaba era el
187
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 257.
188
Como não sei ler nem escrever, como já disse, não sei sem cai nas regras da profissão cavaleiresca; e, daqui em diante,
eu proverei os alforjes de todo tipo de fruta seca para vossa mercê, que é cavaleiro, e para mim as proverei, pois não o sou, de
outras coisas voláteis e de mais substância. (1, X, p.58)
aventura alguna sin recebir la orden de caballería”.189 E, apesar do olhar crítico de
admiração “de tan estraño género de locura y fuéronselo a mirar desde lejos y
assim atuando:
[...] sobre una pila que junto a un pozo estaba, y, embarazando su adarga,
asió de su lanza y con gentil continente se comenzó a pasear delante de la
pila [...] con sosegado ademán, unas veces se paseaba; otras, arrimado a
su lanza, ponía los ojos en las armas, sin quitarlos por un buen espacio
191
dellas.
entra no curral onde Dom Quixote está velando suas armas, e, para pegar água e
saciar a sede de seus cavalos, se aproxima da “pia” onde elas estão sendo veladas,
-¡Oh tú, quienquiera que seas, atrevido caballero, que llegas a tocar las
armas del más valeroso andante que jamás se ciñó espada!, mira lo que
haces y no las toques, si no quieres dejar la vida en pago de tu atrevimiento.
[Foi uma pena que “el arriero” não tivesse escutado a recomendação de
Dom Quixote. Como não escutou,] don Quijote [...] sin pedir favor a nadie,
soltó otra vez la adarga y alzó otra vez la lanza, y, sin hacerla pedazos, hizo
193
más de tres la cabeza [...] se la abrió por cuatro.
É preciso não esquecer que, por não haver capela naquele castelo, castelo
que, na verdade, não passava de uma taberna, Dom Quixote estava velando suas
189
Mas o que mais o incomodava era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se em
aventura alguma sem receber a ordem de cavalaria (1, III, p. 25-27)
190
[E, apesar (...) ao que o] cavaleiro fazia [demonstrando admiração] de tão estranho gênero de loucura e foram olhá-lo de
longe e viram (Ibidem)
191
Numa pia que junto de um poço estava, e, abraçando sua adaga, segurou sua lança e com gentil continente começou a
passear diante da pia [...] com sossegado gesto, algumas vezes passeava; outras, encostado em sua lança, punha os olhos
nas armas, sem tirá-los por um bom tempo delas (1, III, p.26-27)
192
Arrieiro.
193
– Oh, tu, quem quer que sejas, atrevido cavaleiro, que chegas para tocar as armas do mais valente andante que jamais
cingiu a espada! Olha o que fazes e não as toque, se não queres deixar a vida em paga de seu atrevimento [foi uma pena (...)
não escutou,] Don Quixote [...] sem pedir favor a ninguém, soltou outra vez a adaga e ergueu outra vez a lança, e, sem quebrá-
la em pedaços, fez mais de três a cabeça [...] a abriu em quatro. (1, III, p.27)
armas no curral que ladeava “la venta”, ocupando-se seriamente do ritual presente
em qualquer código de cavalaria. Esse detalhado episódio tem, por finalidade, deixar
que não percamos a oportunidade de, dela, registrar outra grande mostra. Trata-se
ocupando-se das armas “Y lo primero que hizo fué limpiar unas armas que habían
sido de sus bisabuelos, que, tomadas de orín y llenas de moho, luengos siglos había
ver su rocín”194, não tanto quanto o desejável, porque, apesar de que tinha as patas
bichadas, isso não lhe parecera problemático. Para o futuro cavaleiro, seu cavalo
Rocinante era o melhor dos melhores; por isso, a Dom Quixote “le pareció que ni el
amada, “porque el Caballero andante sin amores era árbol sin hojas y sin fruto y
cuerpo sin alma”, Dom Quixote “se holgó”, ficou muito feliz “cuando halló a quien dar
nombre de su dama! [...] una moza labradora de muy bien parecer”; ocupando-se
194
A primeira coisa que fez foi limpar as armas que haviam sido de seus bisavôs, que, tomadas de ferrugem e cheias de mofo,
longo tempo havia que estavam postas e esquecidas num canto [ocupando-se do cavalo] foi depois ver seu rocim (1, I, p.19)
195
Pareceu-lhe que nem o Bucéfalo de Alexandre Magno nem Babieca o do Cid com ele se igualavam [ocupando-se da
amada] porque o cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem fruto e corpo sem alma [Dom Quixote] quando
O simples preparar um contexto, para viver a cavalaria com tamanha
ritualístico para tornar visível e dar evidência às coisas do mundo já é um leve sinal
tornava apto a triunfar sobre todas as coisas. Seu simples pensar lhe dava sempre
razão.
Quanto a isso; e disso não será possível fugir; é Heidegger quem administra
mesmo modo que não se está apenas lançado indiferentemente num poder-ser-no-
encontrou a quem dar o nome de sua dama! [...] uma moça lavradora de muito boa aparência [ocupando-se (...) mesmo] quis
pôr em si mesmo, e neste pensameno permaneceu outros oito dias, e em fim veio a chamar-se Dom Quixote (1, I, p.20)
196
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.257.
psicologicamente irado; forte e soberbo, nada preguiçoso e, ainda mais, amante da
ponto de, a partir do “mal-estar” que, silencioso, ameaçava, ver que “la cosa de que
agradecendo a Deus pelo favor de tal oportunidade: “Gracias doy al cielo por la
merced que me hace, pues tan presto me pone ocasiones delante donde yo pueda
Por muito estar “pre-ocupado com” os outros entes, foi que Dom Quixote,
tentando salvar “el muchacho Andrés” das mãos de seu amo, o pôs a perder-se
tudo saber sobre como desfazer “los tuertos y agravios”199, usou seu conhecimento
para dispor das decisões necessárias para um incidente entre amo e criado. Como
bom filósofo pre-ocupado achava que estava em suas mãos legislar sobre o certo e
o errado.
Neste relato está inserido o comportamento próprio do tipo de ensino que fora
amarrado em uma árvore, “un muchacho, desnudo de medio cuerpo arriba, hasta de
197
A coisa de que mais necesidade tinha o mundo era de cavaleiros andantes, e de que nele se resucitasse a cavalaria
andantesca (1, VII, p.44)
198
Graças dou ao céu pela mercê que me faz, pois tão logo me oferece oportunidade diante de mim para que eu possa
cumprir com o que devo a minha profissão (1, IV, p.29)
199
Injustiças e desacertos (1, XXXI, p.184)
edad de quince años”. Este jovem apanhava de seu amo, “un labrador de buen
talle”, aos quais respondia: “No lo haré otra vez, señor mío, por la pasión de Dios,
que no lo haré otra vez”200. Foi o suficiente para Dom Quixote intrometer-se,
chamando o amo de covarde, não querendo ouvir sequer suas desculpas de que a
altercação se devia ao fato de que, dizia ele, “estoy castigando [...] mi criado, que me
sirve de guardar una manada de ovejas”, e que “es tan descuidado, que cada día
me falta una”201.
Ordenou Dom Quixote que soltasse o rapaz, além de obrigá-lo a pagar o que
lhe devia: “Hizo la cuenta don Quijote y halló que montaban setenta y tres reales”.
Não permitiu que o amo-lavrador descontasse os três pares de sapatos que lhe
havia comprado, respondendo: “quédense los zapatos y las sangrías por los
azotes”202, achando terem sido pagos os sapatos com a surra que estava levando.
com seu criado, “el muchacho” Andrés, Dom Quixote o abandona, deixando-o
entregue à sorte. Por fim, ficou provado que Dom Quixote não tinha o conhecimento
que acreditava ter para resolver situações daquele calibre, a ponto de, em posterior
[...] que si otra vez me encontrare, aunque vea que me hacen pedazos, no
me socorra ni ayude, sino déjeme con mi desgracia; que no será tanta, que
no sea mayor la que me vendrá de su ayuda de vuestra merced, a quien
Dios maldiga, y a todos cuantos caballeros andantes han nacido en el
203
mundo.
200
Um rapaz, nu da metade do corpo para cima, de até quince anos de idade [Este (...) amo] um lavador de bom tamanho [aos
quais respondia] Não farei outra vez, senhor meu, pela paixão de Deus, que não o farei outra vez (1, IV, p.29)
201
Estou castigando [...] meu criado, que pastoreia uma manada de ovelhas minhas[e que] é tão descuiado que cada dia me
falta uma (1, IV, p.30)
202
Fez as contas Dom Quixote e achou que montavam a setenta e três reais [não (...) respondendo] fiquem os sapatos e as
sangrias pelos açoites (Ibidem)
203
Que se outra vez me encontrar, ainda que veja que me fazem em pedaços, não me socorra nem ajude, mas me deixe com
minha desgraça, que não será tanta, que não seja maior a que me virá de sua ajuda de vossa mercê, a quem Deus maldiga, e
a todos os outros quantos cavaleiros andantes nasceram no mundo (1, XXXI, p.185)
A arrogância de Dom Quixote no que se refere saber-se autoridade por
conhecer todas as leis que poderão colocar ordem em seu país é tal que
avisá-lo da desconfiança de que sua fórmula não funcionaria: “Mire vuestra merced,
señor, lo que dice”, dizia o menino Andrés; “[...] basta que yo se lo mande para que
me tenga respeto”, respondia Dom Quixote; “[...] pero este mi amo” que se nega a
pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se pode esperar dele?, dizia
Andrés; Não se preocupe, porque “sabed que yo soy el valeroso don Quijote de la
Mancha”, respondia Dom Quixote204. Com essas palavras, deixou o rapaz nas mãos
de seu amo, seguro de que sua determinação seria uma ordem, que o amo
“[...] el fin del negocio sucedió muy al revés de lo que vuestra merced se imagina [...]
No sólo no me pagó [...] como [...] me volvió a atar a la mesma encina, y me dio de
nuevo tantos azotes [...] y, a cada azote que me daba, me decía un donaire y
aprendera nos livros de cavalaria. Sem contar com a sensação de poder que tal
certeza lhe dava, fazendo-o dizer de si para si: Dom Quixote de La Mancha “hoy ha
204
Olhe, vossa mercê, senhor, o que diz [dizia o menino Andrés]; Basta que eu o ordene para que me tenha respeito
[respondia Dom Quixote]; Porém, este meu amo [que se nega a pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se pode
esperar dele?, dizia Andrés; Não se preocupe, porque] sabei que eu sou o valente Dom Quixote de la Mancha, [respondia Dom
Quixote]. (1, IV, p.31)
205
O fim do negócio aconteceu muito ao contrário do que vossa mercê imagina [...] Não só não me pagou [...] como voltou a
amarrar no mesmo azevinho, e deu-me de novo tantos açoites [...] e, a cada açoite que me dava, me dizia uma graça e chiste
sobre fazer burla de vossa mercê (1, XXXI, p.184)
206
Hoje desfez a maior injustiça e agravo que formou a desrazão (1, IV, p.32)
Tanta pre-ocupação com as coisas do intramundano acabou levando ao
insucesso a sua tão desejada intervenção no “mayor tuerto y agravio que formó la
conhecimento.
6 CUIDANDO DE CURAR
Tudo estava selecionado por Dom Quixote para a nova etapa da pro-cura.
cavalaria. Também, Alonso Quijano já dava sinais de desmedida. Afinal, “se pasaba
las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio”207 p. 37/38].
outro, no cavaleiro Dom Quixote. E mais, para não pecar por falta, estende esse
justiça. Mesmo tateando ainda, já está, de algum modo, no caminho, dispõe de todo
está sustentado pelas coisas que Dom Quixote conhece e que, sendo do
em Dom Quixote o incômodo da ansiedade. Não pára nunca, corre de lá pra cá, sua
207
Passavam as noites de claro em claro e os dias de sombra em sombra. (1, I, p.18)
atenção está só voltada para a providência divina que lhe proverá com
oportunidades de fazer justiça. Acha que isso será possível com o acervo medieval
que traz consigo, crê num transcendente poder paralelo do qual necessita o homem
para suportar a vida, para agüentar conviver com a dor, com o medo, com a morte.
Constrói um mundo e, com essas convicções, por ele sai, com o conhecimento
Sai efetivamente pelo mundo Dom Quixote, e, naquilo que pensara ser fácil,
ele encontra dificuldades: vendo passar “unos mercaderes toledanos que iban a
comprar seda”, resolve, “por imitar en todo cuanto a él le parecía posible los pasos
que había leído en sus libros”, levantar a voz, exigindo que todos confessassem
disseram: “señor Caballero, nosotros no conocemos quien sea esa buena señora
óbvio: “si os la mostrara [...] – ¿qué hiciérades vosotros en confesar una verdad tan
208
[Vendo passar] alguns mercadores de Toledo que iam comprar seda, [resolve,] para imitar em tudo que lhe parecia possível
as passagens que havia lido em seus livros, [levantar (...) confessassem] que não há, no mundo todo, donzela mais bela que a
imperatriz de la Mancha, a incomparável Dulcinea de Toboso (1, IV, p.32)
209
Senhor cavaleiro, nós não conhecemos esta boa senhora que dizeis. Mostrai-a-nos. (Ibidem)
notoria?”. E segue: “La importancia está en que sin verla lo habéis de creer,
não poderem ser injustos com outras “emperatrices y reinas”, pedem a Dom Quixote
“que vuestra merced sea servido de mostrarnos algún retrato de esa señora”211.
Para eles não importa que a foto seja do tamanho de “un grano de trigo”, mas que,
Mais adiante, outro entrave no seu querer passar adiante, as verdades que
equívoco de Dom Quixote. Ele se apropria de uma bacia de “el barbero” e afirma que
error en que está este buen escudero, pues llama bacía a lo que fue, es y será
Os sinais são contundentes, realizar o seu projeto não será tarefa fácil, Dom
Quixote percebe que seu discurso encontra aqui e ali barreiras com as quais não
contava. Mas não podia ser de outro modo, havia empirismos, nominalismos e
relativismos disputando, cada um, seu lugar de verdade. O diálogo que estava
210
Se eu a mostrasse a vós [...] o que farieis vós em confessar uma verdade notória? [E segue:] A importância está em que
sem a ver terieis de crer, confesar, afirmar, jurar e defender (1, IV, p.32)
211
Que vossa mercê seja servido de mostrar-nos algum retrato dessa senhora (Ibidem)
212
Vejam vossas mercês clara e manifestamente o erro em que está este bom escudeiro, pois chama bacia o que foi, é e será
elmo de Mambrino (1, XLIV, p.277)
213
“Bacielmo”
214
Meter-me eu agora em coisa de tanta confusão a dar minha opinião, será coisa de juízo temerário (1, XLV, p.278)
O ponto marcante dessa percepção não obedece ao movimento linear da
obra. Digamos que Dom Quixote já o providenciara, por pura intuição, por obra da
providência, quem sabe. A providência já a tomara em sua segunda saída. É ela que
servir ao cavaleiro como escudeiro. Não por ser escudeiro, mas por dar, à obra, sua
travessia. Percebe que o pro-curar-se não requer isolamento. Até então estivera
tentando colocar a máquina da cavalaria para funcionar, sem perceber que faltava a
linguagem, sem dar-se conta de que aqueles embates desconfortantes, onde outras
visões disputavam um lugar de verdade, era Cura anunciando-se já. Era Cura
215
Aprendizado significa conhecimento aprendido como verdade absoluta, fixo e definido.
216
Aprendizagem significa conhecimento circular, possível a partir do diálogo, onde cada resposta se desdobra em novas
perguntas. Na aprendizagem, nada é ensinado.
e incerteza traça o perfil desse leitor; ele precisa de algo que lhe ofereça o mínimo
de sustentação. Afinal, de todo material que circula naquele território, apesar de sua
que dispõem. Aliás, é essa disposição que move todo povo espanhol em direção à
O modo como essa leitura vai afetar a cada um dos leitores é impossível
por Heidegger como doutrina que traduzia o mito em verdade como adequação.
Foi com essa verdade que Dom Quixote sucumbiu à Paidéia e foi treinado
das idéias. Usando a alma como veículo, o cavaleiro dali transpôs todo acervo de
O processo não fora tão difícil: fazer um ajuste do olhar para captar o
essencial com os olhos da alma racional, que desse acesso ao conhecimento certo e
isso era tudo do que precisavam todos, por isso foi possível realizar o que desejava
hijo del entendimiento217. Esse é Dom Quixote, o filósofo, o homem que detém todo
de Dom Quixote, todos liam: “con gusto”,218 os livros de cavalaria eram lidos “y
217
Filho do entendimento. (C.f. GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.108)
celebrados de los grandes y de los chicos, de los pobres y de los ricos, de los
cavaleiro, Dom Quixote era no máximo vítima do riso, mas era perfeitamente
conhecido, todos nutriam sentimento de afeto por ele. Todos aqueles referenciais
eram de algum modo familiares, afinal, todos liam, todos compartilhavam o mundo
da ficção.
Dom Quixote fora tragado pelo mundo da cavalaria e acreditava que, com o
É verdade que, neste Périplo, Dom Quixote, tendo nele ingressado, armado
Se sabia de tudo, se até de si mesmo sabia tão bem, para que perguntar?
__
Entretanto, querer saber de si, querer conhecer sua verdade anunciando: “Yo sé
Essa afirmação vai, ao longo da obra, ganhando forma cada vez mais clara e
razão inversa do propósito deste capítulo, razão esta que coincide com o querer do
cavaleiro, no grau máximo do seu impróprio, é contraditório que ele afirme, com
convicção, saber-se, e conhecer sua identidade própria. Esse foi o preço do exagero
218
Com apreciação. (1, L, p.304)
219
E celebrados pelos adultos e pelas crianças, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e ignorantes, pelos plebeus e
cavalheiros, finalmente, de todo gênero de pessoas de qualquer estado e condição que sejam (Ibidem)
e da repetição da leitura de novelas de cavalaria – perda da identidade por imitação,
nos moldes das “más de cien hojas”220 escritas por “el canónigo”, essas sim, o
conseqüentemente, para pensar. Com esse sentimento, Dom Quixote não consegue
conviver, e a providência é entrar na vida da cavalaria. É por isso que decide ser
cavaleiro.
É claro que não é esse o único motivo de decisão desse porte. Há ainda
divulgador da verdade, num contexto onde sua escolha corre o risco de, sendo
avaliada como mentira, não dispor ele da sustentação necessária para pôr em
prática seu projeto. Digamos que esse impasse seja decorrente de outro – as
filósofo, essas também eram, do mesmo modo, ameaçadas, uma vez que o
Temos aqui uma tarefa hercúlea que Dom Quixote terá de realizar. Essa,
parece ser muito maior do que aquela em que acredita ser o “desfacedor de
220
Mais de cem folhas (1, XLVIII, p.295)
221
Haviam de ser mentira? (1, L, p.304)
222
Sejam condenados ao fogo (1, V, p.36)
agravios, enderezador de tuertos”223 e promotor da justiça. Seria essa, a batalha
Nada disso importa na verdade. Importa sim que, mesmo sem consciência,
Dom Quixote, conseguiu escapar do círculo vicioso que a todos tragava. Sua fuga
do tédio foi, pelo menos, diferente da dos demais de seu tempo que seguiram lendo
“de claro en claro, de turbio en turbio”,224 expressão que, por sua entonação ritmada,
não dispõe dos elementos necessários para tais esclarecimentos. E, do que ele não
de si mesmo?
ingressando na vida.
Outro dilema enfrentado por Dom Quixote, assim que deu o salto
223
Desfazedor de agravos, consertador de injustiças (1, LII, p.312)
224
De claro em claro e os dias de sombra em sombra (1, I, p.18)
225
(1, L, p.304)
Intrigado, põe-se Dom Quixote a pensar que o grande problema talvez
estivesse na didática usada para sua formação. Muito bem dito: formação. Uma
didática nos moldes da Paidéia só pode ter sido muito rígida, descartando qualquer
na medida certa, de tal maneira certa que sequer permitisse a menor questão.
lugar principal.
Quixote: sem folga que abrisse para identidades nem diferenças. Todo espaço do
Uma prova, não só de ser Dom Quixote porta voz do conhecimento medieval-
cristão veiculado nos moldes da cavalaria, como também da rigidez fixa desse
elogiando Dom Quixote, lhe diz “que si las ordenanzas y leyes de la caballería
depósito y archivo”226.
226
Se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê como seu próprio
depósito e arquivo (2, XVII, p.411)
Esse conhecimento, em forma de placa de computador, está incrustado no
cumpre seu desígnio: ocupa todo espaço, preenche o “entre” totalmente. Sem
cavaleiro muito a exercitou. Inicialmente, Dom Quixote impõe o seu discurso, sem
propriamente dito.
o outro – é somente o marcador daquilo que eu não sou, portanto, de uma diferença
proximidade bem maior do que a do diálogo com o outro. Isso porque nada é mais
próximo de nós do que nós mesmos. Por isso, só o autodiálogo pode alimentar-nos.
Mas como se dá essa auto-alimentação? Ela acontece no “entre”; no
próximas por isso, estão tão próximas do que eu sou, que são o que eu sou. São o
própria proximidade”.227
com-o-outro, entretanto, é aquele que não permite essa apropriação. Para tal, outra
conhecimento que atendia aos interesses de “la república cristiana”, sai pelos
227
CASTRO, M. A. de. A configuração da obra como diálogo e escuta. Disponível em:
<http://www.travessiapoetica.blogspot.com>. Acesso em: 25 jul 2007.
Ao longo da obra, entretanto, vão se desenrolando situações cada vez mais
não há diálogo, quanto mais é tocado por experiências radicais que lhe exigem
vai percebendo, à medida que sente ser ele o que mais perde com a rigidez. E perde
porque, sem permitir a proximidade do outro, impede que se alimente a sua própria
proximidade, impedindo assim que, de tão próximo de si mesmo, seja tocado pelo
ter se submetido a diálogos desse nível, foi assim que, vítima do aprendizado vazio
de diálogo, acabou sendo tragado pelo outro, por aquele que não dava nenhuma
folga para que se articulasse o jogo da proximidade e, por isso, de fidalgo, acabou
virando cavaleiro.
nele se processou. Talvez essa seja uma boa explicação, uma dentre outras para
dialogar.
6.1.1.1 Diálogos em cadeia __ a coragem da renúncia
Carregava tanto conhecimento e, em alguns momentos lhe ocorria não ter nenhum
dar conta.
Para Dom Quixote tudo começa a ficar claro: por mais que seu peito seja um
simples, é preciso esforço para revolver e dali retirar o mais adequado. Sem contar
não atendia a uma situação nova que se estava mostrando. Começa então a ceder.
De fato, de tão cheio, nada mais cabia. Era urgente renunciar, Cura só é possível
com renúncia.
acumular tanto conhecimento. E o medo que sentia. Não sabia com a mesma
sofrimento essencial”228.
228
LEÃO, E. C. Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157, p.73, abr-jun, 2004
1o DIÁLOGO:
Dom Quixote faz uma pregação sobre o amor do ponto de vista do código de
cavalaria. O tema é a igualdade entre todos os homens: “se puede decir lo mesmo
que del amor se dice: que todas las cosas iguala”229. Com isso quer que todos
ao ponto de vista de seu amo, e expõe o seu: que acredita ser melhor comer
mis solas como sentado a par de un emperador. Y aun, si va a decir verdad, mucho
mejor me sabe lo que como en mi rincón, sin melindres ni respetos, aunque sea pan
y cebolla”. Sancho prefere a solidão porque não precisa “mascar despacio, beber
poco, limpiarme a menudo, no estornudar ni toser […] ni hacer otras cosas que la
soledad y la libertad traen consigo”. Por isso, finaliza suas razões e encerra dizendo
que tudo aquilo que lhe ofereceu Dom Quixote, ele “las renuncio para desde aquí al
sobre ele seu poder autoritário, dispondo do que lhe parece correto, e assim reage:
“Con todo eso, te has de sentar, porque a quien se humilla, Dios le ensalza […] Y,
2o DIÁLOGO:
229
Pode-se dizer o mesmo que do amor se diz: que a todas as coisas iguala (1, XI, p.59)
230
Tão bem e melhor comeria em pé e sozinho quanto sentado ao lado de um imperador. E ainda, para dizer a verdade, muito
melhor aprecio o que como em meu canto, sem melindres nem respeitos, mesmo que seja pão com cebola [Sancho...]
mastigar devagar, beber pouco, limpar com frequência, não espirrar nem tossir […] nem fazer outras coisas que a solidão es a
liberdade trazem consigo [Por isso...] renuncio a elas daqui para o fim do mundo (Ibidem)
231
Com tudo isso, deverás sentar, porque a quem se humilha, Deus elogia […] E, agarrando-o pelo braço, forçou-lhe que junto
dele se sentasse (1, XI, p.60)
De fato, há uma grande recorrência na cobrança de Dom Quixote de que se
reconheça que Dulcinea é a mais bela dama e que os seus inimigos derrotados
presentéis ante esta señora y le digáis lo que por vuestra libertad he fecho”232.
Seu radicalismo é tal que acaba lhe valendo um desafio para uma luta, por
parte “del vizcaíno” que por ali passava e ficara indignado com a prepotência do
vida”233.
chega ao extremo da luta física, com ameaça de morte, caso não seja acatada.
3o DIÁLOGO:
Um de “los cabreros”, vendo a orelha ferida de Dom Quixote, “le dijo que [...]
estómago”. Sentiu “ansias [...] del vómito”, “le dio un sudor copiosísimo” e “quedóse
232
Voltai a Toboso, e que de minha parte vos apresenteis diante desta senhora e lhe digais o que por vossa liberdade fiz
(1, VIII, p.50)
233
E atirando a lança no chão, puxou a espada e segurou seu escudo, e avançou sobre o biscainho com determinação de
tirar-lhe a vida (Ibidem)
234
Disse-lhe que [...] ele poria remédio com o qual facilmente sararia (1, XI, p.63)
dormido más de tres horas”235; mesmo tendo sido as conseqüências as mesmas em
sua validade, Dom Quixote firmou “la seguridad y confianza que llevaba en su
uma receita perfeita e eficaz: “y tomando algunas hojas de romero, de mucho que
por allí había, las mascó y las mezcló con un poco de sal, y, aplicándoselas a la
oreja, se la vendó muy bien, asegurándose que no había menester otra medicina; y
Uma delas é que a verdade é o que se mostra e não o que num dado
momento ficara comprovado como “claro e distinto”, assegurando seu lugar de única
había”238 __
mostra também que o bálsamo de Fierrabras não é o único, que as
possibilidades são infinitas, a cada passo as coisas pulsam em mistério para serem
revisitadas.
Com isso, põem-se por terra os esquemas sofisticados para dar realidade às
coisas. Não é preciso abstrações que lancem mão do mundo das idéias ou
235
Começou a vomitar de maneira que não lhe ficou nada no estômago [Sentiu] ânsias de vômito, deu-lhe um suor
copiosíssimo [e] ficou adormecido mais de três horas (1, XVII, p.89)
236
A segurança e confiança que tinha no bálsamo (1, XVII, p.90)
237
E pegando algumas folhas de alecrim, do muito que por ali havia, as masticou e as misturou com um pouco sal, e
aplicando-as à orelha, cobriu-a muito bem, assegurando-se que não havia necessidade de outra medicina; e assim foi a
verdade.
(1, XI, p.63)
238
De muito que por ali havia (Ibidem)
arranquem da mente racional abstrações que logo que descobertas serão
4o DIÁLOGO:
Pedro, “un cabrero”, rapaz sem estudos, mas cheio de conhecimento, sabia
Quixote. Era tudo o que o cavaleiro precisava e mais queria – saber com detalhes a
história de Grisóstomo, o rico pastor que se deixara morrer por amor. Sente-se essa
submissão quando “don Quijote rogó a Pedro le dijese qué muerto era aquél y qué
filósofo. Sem desarmar-se entra no diálogo como senhor absoluto, o dotado de todo
lo: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares mayores
da cevada ou do grão de bico, que isso era o mais importante da história, Dom
andamento, mas, para ele, primordial no cumprimento ético de seu “dever ser”.
“Astrologia”. “Esa ciencia se llama Astrología”241. Até aí, Dom Quixote não está
239
Dom Quixote rogou a Pedro que lhe dissesse que morto era aquele e que pastora era aquela (1, XII, p.64)
240
Eclipse se chama, amigo, que não cris*, o escurecimento dessos dois luminares maiores – disse Dom Quixote (Ibidem) __
*uma forma errada de falar “eclipse” (ex: “vi um clips da lua”).
241
Essa ciência chama-se Astrologia (Ibidem)
acessível ao diálogo. Embora na aparência estejam conversando duas pessoas, não
Até que, a menção do termo “sarna” significando, no contexto, algo que tem
longa duração de vida, faz Dom Quixote interferir mais uma vez: “Decid Sarra –
replicó don Quijote, no pudiendo sufrir el trocar de los vocablos del cabrero”. “No
habréis oído semejante cosa en todos los días de vuestra vida, aunque viváis más
años que sarna.”242 Nesse momento, Pedro, já irritado, lhe responde: “y si es, señor,
año.”243 Com pedido de perdão: “Perdonad, amigo” e com tanta delicadeza embutida
os lo dije; pero vos respondisteis muy bien, porque vive más sarna que Sarra”244.
limite máximo, quando renuncia à sua verdade para acatar a de Pedro: “vive más
sarna que Sarra”. E, como um último pedido de paz, diz: “proseguid vuestra historia,
5o DIÁLOGO:
Sancho sentar ou não à mesa para comerem juntos, quando estão com os cabreiros,
do mesmo modo, logo a seguir, Sancho exerce seu poder sobre Dom Quixote e este
assente.
242
Dizei Sara – replicou Dom Quixote, não podendo suportar a troca dos vocábulos do cabreiro (...) Não havereis ouvido
semelhante coisa em todos os dias de vossa vida, ainda que vivais mais anos que sarna (1, XII, p.65)
243
E se é, senhor, que me haveis de andar censurando a cada passo os vocábulos, não acabaremos em um ano (Ibidem)
244
Perdoai-me, amigo [e com (...) “amigo”] disse Dom Quixote – que por não haver tanta diferença de sarna a Sara vós o
dissestes; mas me respondestes muito bem, porque vive mais sarna que Sara (Ibidem)
245
Prossegui vossa história que não replicarei mais em nada (Ibidem)
O encontro de Dom Quixote com “los cabreros” termina amistosamente com
companheiro, e Antonio: “sin hacerse más de rogar [...] y templando su rabel [...]
comenzó a cantar”247. E assim, entraram pela noite, até que, diante da finalização do
músico, Dom Quixote rogou-lhe que cantasse mais; “no lo consintió Sancho Panza,
porque estaba más para dormir que para oír canciones”248. E por isso, assim, dando
ordens:
Dom Quixote que, a seu amo, acaba sucumbindo. Aqui é Sancho quem tem a última
palavra.
nem tenhamos selecionado os melhores. O cuidado que tivemos foi o de, tomando
246
Bem poderás fazer-nos o prazer de cantar um pouco (1, XI, p.61)
247
Sem se fazer rogar [...] e afinando sua rabeca [...] começou a cantar (1, XI, p.61-62)
248
Não o permitiu Sancho Panza, porque estava mais para dormir que para ouvir canções (1, XI, p.63)
249
Bem pode vossa mercê acomodar-se logo onde deve repousar esta noite, que o trabalho que estes bons homens têm todo
dia não permite que passem as noites cantando (Ibidem)
250
Já te entendo, não o nego (Ibidem)
“sanchificação de Dom Quixote” e “quixotização de Sancho”. O chegar a assumir
mesmo sendo a distância “entre” um e outro maior, ela é necessária, pois exige que
Em segundo lugar, a experiência dos diálogos também deixou claro que o diálogo é
o próprio “entre”, e que o outro pode acionar o movimento para que em nós ressoe,
limites do que eu sou, se mostra como possibilidade. Com isso, juntos e muito bem
de si, tudo saber: “yo sé quien soy”. E Nietzsche lhe revela agora que sequer de seu
intestino e de sua circulação o homem sabe!.251 E diz-lhe ainda mais: que além
Seria possível a verdade que lhe caía em cima; poderia haver algum não-
saber que Dom Quixote não soubesse? Mesmo transtornado pela dúvida, Dom
Quixote reluta, e insiste. Bem poderia aproveitá-la para dar uma guinada
considerável em seu modo de ser; mas prefere inscrever-se num modo de ser mais
confundiam com erro que deve ser evitado. Por isso, ainda confuso, Dom Quixote
quer saber como evitar o erro __ se ainda não sabia, nunca chegaria a saber tudo. A
251
C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a verdade no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979, p.53-60 (Coleção Os
pensadores).
mundo, ou da verdade, ou o sentido do ser em seu ser mais próprio; é o que lhe
responderia Heidegger.
Era de se esperar que não pudesse acatar tão facilmente verdades que nem
ele mesmo sabia se nelas poderia confiar. Precisava insistir e perguntar. Nessa
aquelas oposições com as quais se defrontara, assim que lhe foram apresentadas
as categorias da modernidade.
perfeitamente ajustado a esse novo contexto. A história de Dom Quixote, por sua
um cavalo, como os dois pés do cavaleiro, o que reforça essa perspectiva. Sem
252
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Cidades.1970, 42p.
253
Lembramos que “ek” significa o “lançar-se em direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o homem existe.
254
HEIDEGGER, loc. cit.
contar com a mudança radical que se processa no romance: a saída de um estado
de repouso em que vivia um fidalgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más
estática, e “irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y
típicos da errância.
Se Dom Quixote __ não apenas pela semelhança estrutural do errar __ erra, in-
em sua totalidade, e, por isso, ficando preso ao ente particular: o cavaleiro, essa
mesma errância poderá abrir-lhe a totalidade. Se existir é errar, quer lançar-se mais
errante do que a ousadia de Dom Quixote, um lançar-se sem saber aonde vai dar?
filósofo a impõe. Por não ter sido aprendiz de uma didática aberta ao “seriado
quase esquecida.
silenciosa pelo portão dos fundos do curral, até a derrota para o cavaleiro de “La
Blanca Luna” que o obriga a retornar à casa para finalmente morrer, ele in-siste no
255
Os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano. (1, I, p.18)
256
Ir-se pelo mundo com suas armas e cavalo a procurar aventuras e a praticar tudo aquilo. (1, I, p.19)
257
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.42
desde o engano mais comum, a inadvertência, o erro de cálculo até o mais radical:
rastreamento criterioso tornasse viável a tentação, mas por ora deixemos assim.
ente total (velado) é um dissimulador. Então esquece e se engana sempre uma vez
não se deixar levar pelo desgarramento. Quando Dom Quixote, no último capítulo
confessa: “vámonos poco a poco, pues ya en los nidos de antaño no hay pájaros
hogaño: yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui don Quijote de la Mancha, y soy agora,
como he dicho, Alonso Quijano el Bueno”260, e compara seu estado no passado com
o atual, vê-se, nesses pares, que a integração se restabelece. Dom Quixote prova,
com isso, não ter sucumbido, porque o homem não sucumbe no desgarramento se é
Espontâneo foi, porque, ao colocar seu projeto na vida, mesmo não sendo esse o
seu plano, mesmo oferecendo resistência ao seu mundo real, Dom Quixote, também
significação de “passos”.
258
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.43
259
Ibidem, p.43-44
260
Vamo-nos pouco a pouco, pois já nos ninhos de antes não há pássaros agora: eu fui louco, e já sou sensato; fui Dom
Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699)
261
C.f. HEIDEGGER, op.cit., p.44
Do mesmo modo que a euforia motivadora “da agitação inquieta” e do
em luta, correr de lá pra cá, nos caminhos de la Mancha, procurando topar, com os
olhos ávidos, com um “tuerto y agravio”; do mesmo modo que, vendo-os iguaizinhos,
dentro dos moldes da cavalaria, procura torná-los realidade, para sobre eles lançar-
se com ímpeto de cavaleiro, atividade que, se não lhe dava descanso, por outro
também para fazer nascer essa possibilidade que o homem pode tirar da ek-
Desse modo, finalmente, Dom Quixote provou que o homem não sucumbe no
mistério do ser-aí264.
acaba sucumbindo sempre que algo diferente, anunciando novos ares, ameaça
262
HEIDEGGER, Martin. O originário da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva, parágrafo
158 (mimeo).
263
Idem. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.44
264
C.f. Idem. Ibidem.
apresentar-se. Heidegger bem sabia, e já o vaticinara: “A pre-sença, de início e na
Estamos falando dos integrantes da Cura que, embora pareçam atuar contra,
cavaleiro, precisa ser reinterpretado sob o olhar de Heidegger: quanto mais Dom
então que, apesar do sofrimento que lhe custou dias na cama, essa experiência
modo originário, numa abertura de mundo que se abre em dado momento, ela é
265
Idem. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. Parte 1, § 41, p.237 (original,11.ed., p.176).
compreensão da co-pre-sença dos outros, é compreensão do próprio ser-em; refere-
mediana.
ser compreendido plenamente, sem que se chegue a compreender do que ele trata.
O que fica é muito mais o que já se está cansado de ouvir no falatório, a respeito e
sobre o ente, da coisa mesmo de que se está falando. Esta é compreendida só por
alto. Pode-se pensar que estão falando da mesma coisa, mas, na verdade, não
estão. Isso porque tanto emissor, como ouvinte não chegam a ter em mente o ente
Dessa maneira não há jamais uma re-ferência original com o ente referencial.
Fala-se uma fala comum, ocupa-se do falar como algo exigido pela convivência. O
objetividade do discurso, sem que se faça sentir a apropriação originária desse ente,
por parte do que fala nem do que ouve. Falar, falar, ouvir, ouvir, repetir, repetir e
se diz não exige comprensões profundas, “as coisas são assim como são, porque
delas se fala assim”266. Nada do que se diz no falatório tem solidez. E não há chance
de que a tenha, pois seria seu fracasso. Nem solidez nem autenticidade, o falatório
266
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 228.
transita por uma compreensibilidade indiferente só para, nessa indiferença, poder
abarcar tudo, nada deixando de fora. Sem uma compreensão autêntica maior se
se livre, permitir-se o contemplar aquilo que lhe vem ao encontro. É impossível, “tá
dado”, a pre-sença se encontra sem raízes, sem conexão qualquer que viabilize as
267
Este verso de música funk é retomado por Emmanuel Carneiro Leão: “Está dominado, está tudo dominado”, no artigo A
vigência do poético na regência do virtual, no livro organizado por Manuel Antonio de Castro: A construção poética do real.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-90.
Ainda que o ideal fosse o rastreamento do texto Dom Quixote, com vistas a
dali tirarmos os exemplos mais expressivos, por ora, pouco nos basta. Para
pela razão, basta que citemos Juan David García Bacca que nos oferece dados
quantitativos: “En casi todas las páginas irrumpe la razón [...] 5000 son las veces que
outro de Sancho, e outro ainda que torna indiscutível esse dado significativo na obra
– a falação.
Quixote sem importar-se com o “como” os noivos passaram pela dura experiência de
terem seu casamento desfeito, por intervenção de Basílio que, usando de má-fé,
decidiu usurpar a noiva de que ele tanto necessitava para satisfazer sua “vontade-
capricho”.
seus olhos se desenrolava, prefere cumprir seu compromisso de filósofo que está a
Dentre muitas coisas, diz: que “la necesidad y la pobreza” são os inimigos
máximos do amor, que “la mujer hermosa y honrada cuyo marido es pobre merece
ser coronada con laureles y palmas de vencimiento y triunfo”, que, caso lhe
268
Em quase todas as páginas irrompe a razão [...] 5000 são as vezes que Dom Quixote/Cervantes; Cide Hamete/Cervantes;
Sancho/Cervantes sentem-se forçados a dar expressão – expressa e palavrosa à razão. (BACCA, Juan David García. Sobre el
Quijote y don Quijote de la Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p. 45)
269
(2, XX, p.423)
pedissem, se “atreveria a dar consejo” sobre “el modo que había de buscar la mujer
con quien se quisiese casar”, que “la buena mujer no alcanza la buena fama
270
A necessidade e a pobreza [...] A mulher bela e honrada cujo marido é pobre merece ser coroada com louros e palmas de
vencimento e triunfo [...] atreveria a dar conselho [sobre] o modo que havia de buscar a mulher com quem se quisesse casar
[que] a boa mulher não alcança a boa fama apenas por ser boa, mas sim o parecendo (2, XX, p.423)
271
Também, Sancho, não deves misturar em suas falas a multidão de refrões que usas; que, visto que os refrões são
sentenças breves, muitas vezes os trazes tão pelos cabelos, que mais parecem disparates que sentenças [E que] carregar e
enfileirar refrões a torto e a direito torna a conversa entorpecida e vulgar [Ao (...) responde] porque sei mais refrões que um
livro [...] quando falo que brigam para sair uns com os outros, mas a língua vai atirando os primeiros que encontra
(2, XLIII, p.540)
272
Este meu amo, quando eu falo coisas de miolo e de substância costuma dizer que eu poderia tomar um púlpito nas mãos e
ir por esse mundo adiante predicando lindezas, e eu digo dele que quando começa a enfileirar sentença e a dar conselhos, não
apenas pode tomar púlpito nas mãos, mas dois em cada dedo, e andar por essas praças com boa acolhida. Valha-te o diabo
por cavaleiro andante, que tantas coisas sabes! Eu pensava em meu ânimo que so podia saber aquido que concernia a suas
cavalarias, mas não existe nada onde não opine e deixe de meter sua colher (2, XXII, p.436)
6.1.2.2 Entre curiosas ambigüidades
explícito, “visão”, essa é de outra natureza. A visão que dá abertura ao ser, nesse
caso, é puramente intuitiva. Só essa visão pode dar acesso à verdade originária.
Essa primazia do ver sobre os demais sentidos foi observada por S. Agostinho, ao
captado por outra via sensível, haverá sempre uma apropriação análoga ao esforço
precisa de movimento e renovação, daí não ser possível apreender um saber, nem
estar na verdade, já que o permanecer não a caracteriza. Quer mudar sempre; nem
o ócio nem a contemplação lhe servem para alimentar seu estado permanente de
que lhe permita esperar para compreender o não compreendido pelo espanto e
que vive desse modo, arrastada, “uma vida cheia de vida”, uma pretensão de
autenticidade.
Sancho Pança dizem: “ha de ser cosa muy de ver”273. Esteja onde estiver o
interessante, só para tomar conhecimento, ainda que a viagem seja longa, de tudo
são capazes: “no digo yo hacer tardanza de un día, pero de cuatro la hiciera, a
trueco de verle”274.
seus planos, que era dormir em uma ermida: “don Quijote [...] como él era algo
273
Deve ser coisa muito de ver (1, XII, p.64)
274
Não digo fazer tardança de um dia, mas de quatro eu faria, a troco de vê-lo (1, XIII, p.67)
momento se partiesen y fuesen a pasar la noche en la venta”275, lugar onde o
resistir à curiosidade, Dom Quixote não volta a tocar em dormir na ermida, seu
projeto inicial.
que se abre do que não se abre, tanto nas coisas, na convivência, como também no
ser da pre-sença.
em sua autenticidade; até o que, sem ter sido discutido, vê-se compreendido, com
tanta propriedade, que parece que foi. Nesses casos, do que se dispõe é do que
até o que ainda não aconteceu; é possível saber e discorrer sobre. É possível
vai acontecer, sobre o que deve ser feito. Considera-se estar de posse da verdade
275
Don Quixote [...] como ele era um tanto curioso e sempre o incomodavam desenos de saber cosas novas, ordenou que
logo partissem e fossem passar a noite na venda (2, XXIV, p.450)
276
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234.
277
Ibidem.
Esperar-se-ia que, aquilo que, mesmo impessoalmente, por todos é
“ouvir dizer” se dá em comum, fosse, logo que transformado em fato, por todos
retomado com igual interesse. Mas não é o que acontece; não há compromisso na
Tomaremos aqui o exemplo em que “el primo”, tocado pela simples referência
Quixote, sem que ele (“el primo”), sendo o que conhecia o caminho de “la cueva”,
necessidade e importância de ele mesmo descer ao interior de “la cueva” para viver
o que tinha vivido Dom Quixote. O que aconteceu é que “el primo” contentou-se com
a “comunicação e informação” que a “vida-vivida” tinha para lhe dar e Dom Quixote,
como sempre, foi “lá no fundo”, penetrou o mais perto que pôde do ser, para, só
assim, poder experienciar. “El primo” viveu, Dom Quixote experienciou. Para Dom
Quixote “la cueva” se abriu, para “el primo” não. Para ele, é tudo igual: na
278
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234.
279
Embaralhar, misturar, manipular.
primo” perceber e valorizar uma fala tão concentrada, como aquela dita por
Durandarte, “paciencia y barajar”, que, pelo curto e concentrado, além de ter sido a
única fala que expressou o morto Durandarte, exigia, no mínimo, alguma atenção e
interesse de valorizar o dito. Entretanto, “el primo” foi lançando logo mão de uma
sorte de calamidades interpretativas, imaginando, por sua própria conta, por puro
pressentimento, que os naipes do baralho são coisa muito antiga, eram do “tiempo
grande valia para a humanidade, principalmente tendo vindo de “autor tan grave y
primeiro é “el primo”, personagem que aparece no capítulo XXII da 2a parte, com a
licenciado” e muito dado a “leer libros”. Além disso, “sabía hacer libros para imprimir
y para dirigirlos a príncipes”. Todos os seus livros eram “de gran provecho y no
280
Tempo do imperador Carlos Magno [acreditando (...) vindo de] autor tão grave e tão verdadeiro como é o senhor
Durandarte (2, XXIV, p.448-449)
281
Sabia fazer livros para imprimie e para dirigi-los a príncipes [todos (...) eram] de grande proveito e não menos
entretenimento para a república (2, XXII, p.437)
__
publicados por “el primo” se enquadram nos moldes do cânon estilo novelas de
“imitando a Ovidio”, com “metáforas y translaciones [...] que alegran [...] y enseñan a
un mismo punto”; outro que chama “Suplemento a Virgilio Polidoro”, onde vai listar
as coisas que Virgilio esqueceu de declarar, como, por exemplo: “quien fue el
primero que tuvo catarro en el mundo”, acreditando que “ha de ser útil el tal libro a
todo el mundo”282.
surpreendente é a avaliação que faz do importante que foi Dom Quixote ter cruzado
seu caminho: uma é “haber sabido lo que se encierra en esta cueva de Montesinos,
con las mutaciones de Guadiana y de las lagunas de Ruidera, que me servirán para
el Ovídio español”284. A outra remete para o que lhe contou Dom Quixote sobre o
modo de falar de Durandarte, o morto sem coração que estava dentro de “la cueva”.
estar morto, permanecera o tempo todo calado, foi o suficiente para que “el primo”
associasse “barajar” a cartas de baralho, e que fizesse, por conta própria, a seguinte
interpretação: que Durandarte não poderia ter aprendido esse modo de falar
enquanto estava encantado, e, sim, o teria aprendido “en Francia y en tiempo del
282
Metáforas e translações [...] que alegram [...] e ensinam ao mesmo tempo [outro (...) exemplo] quel foi o primeiro que teve
catarro no mundo [acreditando que] deverá ser útil o tal livro para todo o mundo (2, XXII, p.438)
283
E eu o declaro ao pé da letra, e o autorizo com mais de vinte e cinco autores (ibidem)
284
Haver sabido o que se encerra nesta cova de Montesinos, com as mutações de Guadiana e das lagoas de Ruidera, que me
servirão para o Ovídio espanhol (2, XXIV, p.448)
285
Paciência e embaralhar (2, XXIV, p.449)
286
Na França e no tempo do referido Carlos Magno (Ibidem)
E conclui, agradecendo muito a colaboração de Dom Quixote, que, não só
aquela averiguação, como a de que lhe dera a “certidumbre [sobre] el nacimiento del
río Guadiana, hasta ahora ignorado de las gentes”, tudo lhe caíra como uma luva
para outro livro que estava escrevendo: “me viene pintiparada para el otro libro que
voy componiendo”287.
comprovação.
Dom Quixote, mesmo que de modo diferente do falatório, não chegamos a dar-lhe
escrever. Foram encontrados documentos escritos que, por sua vez, são copiados e
traduzidos. Tudo passa a ser registrado pela escrita. O mercado editorial incentiva a
desnecessários até.
concorrem para a Cura. Nessa travessia, Dom Quixote, no seu agir no mundo, nas
287
Certeza [sobre] sobre a nascente do Guadiana, até agora ignorada pelas pessoas [tudo (...) escrevendo] me vem de
bandeja para o ouro livro que vou compondo (2, XXIV, p.449)
muitas decadências do ser, já não lê romances de cavalaria. Ao optar por vivê-la,
ao sumo; que, não por coincidência, é curar. Dom Quixote está à procura do que lhe
7.1 O TÉDIO
tudo com o ócio? Até os objetos assim estavam, ociosos: “el famoso Caballero don
do livro para a vida se dá, no exato momento, em que Dom Quixote “subió sobre su
Por que, antes desse momento, a última referência que nos dá o texto é de
que Dom Quixote estava com a caneta na mão? Teria ele a intenção de escrever
288
O cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, deixando as ociosas plumas [No entanto (...) Quixote] subiu em seu famoso
cavalo Rocinante, e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (1, II, p.21)
algo? O que, afinal, pretendia escrever que a opção de sair para a vida o fez
desistir?
sustentação no tédio. Essa é a marca que o caracteriza: no tédio, resta sempre uma
com o vazio. Era agindo assim que Dom Quixote sempre lia, lia cada vez mais. Cada
livro que lia, cada vez que insaciável buscava novas histórias, era uma fuga só pelo
Que um dia cada um poderia também querer fazer a experiência de optar por
fuga diferenciada, isso é possível; mas a história que Cervantes vai contar é
É bem verdade que Dom Quixote já se diferencia dos demais, quando sai do
silenciosa que exige posição estática. Entretanto, mesmo entrando na vida real da
cavalaria, Dom Quixote ainda é tédio, porque o que houve foi somente uma
estabelecido. É possível que, de algum modo, sua leitura tenha sido diferenciada
É preciso atentar para o fato de que o ócio, que a todos imobilizava, estava
restrito às atividades ligadas à terra, talvez àquele agir que por tantos séculos
imobilizara o homem – o agir do trabalho, por exemplo, uma vez que “este [...]
hidalgo, los ratos que estaba ocioso – que eran los más del año [...] olvidó [...] el
realizações, desse sinais mais evidentes. Isso pode sugerir o dinamismo, no entanto
Com essa dinâmica, convive outra ainda. Essa mais afinada com a atividade
mover-se do pensamento.
Dom Quixote foi o único a fazer o trânsito cumulativo – era fidalgo leitor
dinâmico.
Talvez seja por isso que, mais adiante, Dom Quixote vai dizer que é louco em
suas ações. Seria esse agir de Dom Quixote um agir do pensamento, uma
XVI. Sua marca de tédio está referendada pelas novelas de cavalaria. É para esse
mundo que sempre escapa, é nesse mundo que sempre decai. Em afinadíssimo
289
Este [...] fidalgo, os momentos em que estava ocioso – que eram a maior parte do ano [...] esqueceu [...] o exercício da
caça e mesmo a adminstração de seus bens [...] vendeu muitos alquires de tierra de cultivo (1, I, p.18)
Como Dom Quixote, todos estão mergulhados no mundo fartamente
cavalaria, há reação tal, que ele precisa ser encaixado no rol dos loucos. Se
Dom Quixote não escapa do círculo do tédio nem da decadência. O que nele
porque substitui a leitura para onde todos e ele mesmo sempre escaparam, por viver
Não sai do circuito do tédio Dom Quixote, porque o tédio faz parte da Cura e
7.2 A ANGÚSTIA
colocar seu plano de ser cavaleiro em prática. Ainda que pela via da ficção,
290
Como as coisas humanas não são eternas, indo sempre em declínio de seus princípios até chegar a seu último fim.
(2, LXXIV, p.696)
Esse instrumental, seu velho conhecido, era o sustentáculo de todas as certezas de
que precisava para pôr em marcha seu projeto, cumprindo o ofício de “andar por el
mundo enderezando tuertos y desfaciendo agravios”291. Afinal, fora por esse mesmo
projeto formado.
Desse modo, dentre todos os de seu tempo, acreditava ocupar o mais alto
patamar na escala do saber. Para isso o formara a Paidéia, para estar habilitado a
conhecimento real do Bem, o único capaz de manejar o leme com total segurança,
para conduzir todos os demais. Para esse desempenho, só muita “certeza”, que não
não o perdoaria.
É com essa idéia que Dom Quixote quer dar conta do compromisso
assumido. E é, a partir dela, que seu declínio se dá. Não percebera, entretanto, com
intramundano da cavalaria.
processo é diametralmente oposto. Estava sim, sendo apropriado, sendo ele mesmo
tragado por tudo o que já existia no mundo, sem que dele precisasse participar.
291
Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)
Enquanto Dom Quixote é nutrido pela crença de estar de posse da verdade
absoluta, não abre mão de nenhuma de suas certezas. Ao lançar-se na vida, com a
realidade com a qual não contava, uma realidade sobre a qual, os livros nada lhe
haviam contado. É preciso não perder de vista que, além de nada terem lhe contado
aqueles livros, o mundo dos séculos XVI/XVII que remendou, superpondo sobre ele
afinavam.
por outra chamada “aprendizagem”. Essa mudança estratégica não foi planejada,
tendo em vista suas dificuldades e dissabores. Ela foi-se impondo por ela mesma, a
É a essa série de impasses que Dom Quixote vai reagindo em graus diversos,
com respostas que vão da mais radical rejeição de qualquer outra possibilidade de
É por isso que têm sentido as palavras do cavaleiro manchego. Parece que
antecipam os embates que deverá enfrentar até o combate final, em que o edifício
esvaziado. Tudo o que para ele, desde sua decisão de virar cavaleiro, ao longo de
muito caminhar, e até o momento final tivera sentido, tudo em que acreditara
modo, o percurso da cura entre vida e morte; trata do homem relacionando-se com
as coisas do mundo, o que sugere o “ser-no-mundo”; deixando bem claro cura como
sean eternas”292. Tudo concentra uma idéia maior: a idéia da finitude humana.
atritando os seus pontos mais seguros, sem que Dom Quixote disso se
Quando Dom Quixote se deu conta, sua tão prezada e firme rede, que lhe
assegurava tanta certeza a ponto de dizer “yo sé quien soy”, tinha todos os seus
pontos soltos, arrebentados, encolhidos, sem deixar vestígios, sem pistas que
Essa é a prova de que Dom Quixote passou pela angústia. A imagem figurada
pela rede reduplica o processo pelo qual passou o cavaleiro manchego, até
heideggeriana chamada tédio. Isso porque era o tédio que lhe concedia sempre uma
292
Seus princípios [...] seu último fim __ as coisas humanas __ as coisas [...] não sejam eternas (2, LXXIV, p.696)
brecha para fugir e não precisar encarar radicalmente o ser, a verdade do ser, a sua
máximo, imaginar o grau dos efeitos de experiência tão radical à fragilidade humana.
visto cair o último “véu de maia”, “se le arraigó una calentura que le tuvo seis días
en la cama”293. Dom Quixote teve uma febre altíssima que o colocou nocauteado
angústia. Experimentava nada, ex-perienciava, vivia o “ex” mais radical, vivia o que
Essa cena, além de estar no último capítulo, além dos termos “fin” e
Poderíamos ter dúvidas quanto a ser ou não ser a febre, manifestação física-
ôntica da angústia. Por isso, essa possível dúvida é eliminada a partir das
suposições do narrador; sobre o exato motivo que o levou àquele estado: “la
Bem sabemos que angústia não é depressão, bem sabemos que angústia
ôntico, ninguém nasce aos cinqüenta anos, ninguém deita um dia na cama e decide
293
Chegou seu fim e acabamento [por (...) maia”,] pegou-o uma febre que o manteve seis dias na cama (2, LXXIV, p.696)
294
Quando ele menos o pensava (Ibidem)
295
A melancolia que lhe causava ver-se vencido (Ibidem)
morrer. No espaço da obra de arte é preciso dar visibilidade, contando com o visível
deitar-se à cama, como “la melancolía” de Dom Quixote precisam ser des-
realizados.
projetemos para mais adiante: Heidegger diz que a radicalidade da angústia é tal
que uma de-cisão também radical é a sua contrapartida, daí sua grafia fora do
ficar “seis días en la cama”, depois de “la melancolía”, [e não percamos de vista que
mais contundente, depois de dizer essas palavras: “fuí don Quijote de la Mancha, y
soy agora, como he dicho, Alonso Quijano296”, deixando bem marcada a linha
soy. Depois de tudo isso, ainda não satisfeito, Dom Quixote apresenta a projeto mais
radical de todos: de-cide ser pastor. Há outro índice ainda, assinalando não serem
causa da febre não fora uma “gripe”, um “resfriado”, nem uma “virose”. De ôntico já
basta a febre da qual Cervantes não pôde abrir mão. A causa da febre é outra, é a
melancolia, mas não uma ôntica melancolia, ela está definida no seguinte fragmento:
melancolía que le causaba el verse vencido, o ya por la disposición del cielo, que así
lo ordenaba”297
296
Fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano (2, LXXIV, p.696)
297
Chegou seu fim e acabamento quando ele menos o pensava; porque, ou já fosse pela melancolia que lhe causava o ver-se
vencido, ou já pela disposição do céu, que assim ordenava (Ibidem)
Esse evento ainda desencadeia outros. Um deles é a de-cisão. Só a angústia
cisão de ser pastor “que tenía pensado de hacerse aquel año pastor”.298
será ao homem um retorno no mesmo nível de consciência. Isso porque lhe foi
revelado alguma coisa que, mesmo sendo-lhe essencial, ainda não descobrira.
Dom Quixote também volta ao impessoal. Se por um lado o lar está carregado
de significação do próprio mais íntimo, esse mesmo próprio que o fez tomar de-cisão
tão radical, por outro pode ser lido também como o máximo do cotidiano ordinário.
Visto assim, o voltar para casa significa reinício do ciclo, com nova decadência no
do intramundano para, só assim, poder seguir à pro-cura da Cura, num ciclo infinito
Seja qual for a mudança radical, tem prosseguimento a pro-cura. Ainda que
7.3 A MORTE
Quixote lhe reserva lugar bastante especial: além de exercer sua perfeita função de
298
Que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor (2, LXXIIII, p.695)
Percebe-se que a morte cresce em significação e sentido. Caso contrário, não
precisaria ter urgência para morrer. Na vida ordinária, jamais disso se falou: ter
urgência de morrer. No entanto, Dom Quixote tem: “que me voy muriendo a toda
priesa”299.
A bem da verdade, não é Dom Quixote quem tem pressa de morrer. Sua
pressa é outra, de tal modo que chega a impacientar-se com os que o rodeiam com
contingências civis.
conjeturaron se moría fue el haber vuelto con tanta facilidad de loco a cuerdo”302,
fica evidente aquilo que a todo o momento nos é informado – que na hora da morte
há como um flash back que sintetiza todo o vivido, sendo, por isso, o momento único
de plena lucidez. Esse flash back está presente na fala de Sancho que sintetiza o
oferece dois bons motivos que mais parecem coincidir com os pontos nevrálgicos de
sua travessia: um deles diz respeito à cavalaria, eixo centralizador de toda a sua
299
Vou morrendo a toda presa (2, LXXIV, p.698)
300
Deixem-me longe das burlas (Ibidem)
301
Tragam-me um confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (Ibidem)
302
Que em tais transes como este não deve brincar o homem com a alma [demonstrando (...) outro] e um dos sinais pelos
quais conjeturaram que morria foi o ter voltado com tanta facilidade de louco a são (Ibidem)
__
história “Si es que se muere de pesar de verse vencido, écheme a mi la culpa”303;
e outro, ao ponto que se desloca para Dulcinéa: “quizá tras de alguna mata
implicam mutuamente. Morrer naturalmente significa não só morrer sem ter-se, por
com a consciência de ter fechado o ciclo vital da Cura, com a consciência da missão
Foi por isso que pôde Dom Quixote morrer “en su lecho tan
Carrasco para a sepultura do atípico manchego: “yace aquí el Hidalgo fuerte / que a
ganhar “corpo”. Não o corpo material, que esse já o tinha desde o nascimento
biológico; não o corpo racional, porque o homem não é nem natureza nem razão;
303
Se é que morre de pesar por ver-se vencido, joguem em mim a culpa (2, LXXIV p.699)
304
Talvez atrás de alguma mata acharemos a senhora Dona Dulcinea desencantada (2, LXXIV p.700)
305
Morto naturalmente [e] houvesse morrido em seu leito são sossegadamente (2, LXXIV p.698)
306
Em seu leito são sossegadamente (2, LXXIV p.700)
307
Jaz aqui o Fidalgo forte / que a tanto extremo chegou / de valente, que se adverte / que a morte não triunfou (Ibidem)
mas o corpo-preenchimento: corpo-preenchimento do oco; corpo-preenchimento do
homem realiza; à medida que, ao mesmo tempo em que fazendo realiza, se faz
realizando-se.
Se o atípico Dom Quixote nasce de forma atípica, é justo que sua morte
também esteja coroada do atípico: fechado o circuito da Cura em sua forma mais
popularmente cunhado como “intuição”. Há, em Dom Quixote, algo que assim
Pronunciava em voz alta “Yo sé quien soy”, no momento exato em que tudo
Mais ainda extrapola sua medida, quando mais uma vez, ainda mais irritado
porque seu vizinho, insistindo para colocá-lo em seu lugar, o faz lembrar que ele não
308
Essa percepção a tivemos com a ajuda do professor Gilvan Volgel, por ocasião do evento organizado pelo titular em
Poética Manuel Antonio de Castro, realizado no I Encontro de Interdisciplinaridade Poética, na Faculdade de Letras da UFRJ,
em maio/2007, com o tema “Corpo, mundo, terra”.
pode ser o cavaleiro Dom Quixote porque é o bom fidalgo Alonso Quijano. Dom
Quixote, com a rapidez típica da intuição, que traz aquelas verdades emanadas, não
responde a seu vizinho Pedro Alonso: “y sé que puedo ser [...] los Doce Pares de
Francia”.309
circunstâncias. Por isso, nos “viene de molde”310 para nossa necessidade e objetivo.
Fechamos este capítulo, encostando uma ponta na outra: começamos com “yo sé
quien soy”, sem que, do mesmo modo que com Dom Quixote, nos fosse possível
atinar para o seu sentido. Encerramos com “Yo sé quien soy”, com a compreensão
de tanta confusão entre saber ou não saber quem era, Dom Quixote para verificar
afinal, onde estava a verdade, decide assumir outra persona. Entretanto, para tal
façanha, era preciso cruzar a linha de risco, a linha divisória entre todas as coisas,
linha há muito já presente no Ocidente, fincada com bases bem firmes. Ele teve a
coragem de ultrapassá-la e foi por isso que ficou estigmatizado como louco, estigma
acabou se encontrando, acabou descobrindo quem era afinal. É claro que na obra
esse ponto-chave, o ponto crucial que marca essa descoberta, aparece com uma
309
E sei que posso ser [...] os doze Pares de França. (1, V, p.35)
310
Vem bem a propósito (1, XXXI p.183)
visibilidade indiscutível, no que se refere a não deixar restar nenhuma dúvida sobre
o que caracteriza Cura: libertação de todo o impróprio para ser o próprio. Isso,
radical de uma coisa em outra: “fui don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he
dicho, Alonso Quijano el Bueno”;311 “Yo no soy don Quijote de la Mancha, sino
tempo: “Yo fui loco y ya soy cuerdo”; “ya soy enemigo de Amadís de Gaula y de toda
la infinita caterva de su linaje”; “ya me son odiosas todas las historias profanas del
haberlas leído”; “ya, por misericordia de Dios, escarmentando en cabeza propia, las
abomino”313.
relação que aqui tem lugar, assim está exposta por ter sido essa com a qual a obra
esteve jogando todo tempo: ser e não-ser cavaleiro, mundo da cavalaria e mundo da
não-cavalaria. É óbvio que seu fechamento só pode se dar nesse mesmo jogo.
Entretanto, essa relação é só aparente. O que nelas há de verdade está por trás. O
que não é possível perder-se de vista é o jogo. É no ser e não-ser que se configura
aquilo que a obra quer realmente dizer: que há sempre um espaço em aberto, que
natureza, que é o vazio mais pleno que se possa imaginar, que essa plenitude se
311
Fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699)
312
Eu não sou Dom Quixote de La Mancha, mas Alonso Quijano (2, LXXIV, p.697)
313
“Eu fui louco e já sou sensato”; “já sou inimigo de Amadís de Gaula e de toda a infinita caterva de sua linhagem”; “já são
para mim odiáveis todas as histórias profanas da andante cavalaria”; “já conheço minha necessidade e o perigo que me
puserem tê-las lido”; “já, por misericórdia de Deus, escarmentando em cabeça própria, as abomino” (2, LXXIV, p.697-699)
Poderíamos seguir num encadeamento de “quês” interminável. Afinal ele é
puro mistério. Entretanto, paremos aqui para explicar que essa evidência foi o que
Fama”314 __
, e se levarmos em conta que Dom Quixote deixa de ser uma coisa para
poder ser outra, só é possível, assim interpretar: nada na pre-sença é fixo nem
definitivo; a pre-sença pode, caso queira, mudar sempre; pode ser o que ela quiser,
Nesse caso, fica claro para Dom Quixote que ele é todas as possibilidades,
puro poder-ser.
Novamente a obra, tendo mais ainda para dizer, de forma magistral diz. Não
fica satisfeita, e deixa o máximo de portas abertas que permitam muitas entradas e
angústia ou, no auge mesmo da angústia, Dom Quixote toma uma grande de-cisão:
de-cide ser pastor. Com isso sai Dom Quixote do estreito limite ser e não-ser
outros também.
Uma sensibilidade aguçada percebe, nesse arranjo final da obra, uma espécie
de “caixa de surpresas infinitas” onde uma coisa está encondida dentro de outra. Na
__ __
caixa “ser pastor” “y que tenía pensado de hacerse aquel año pastor” , atividade
__ __
para a qual, em tom de súplica, Dom Quixote “les suplicaba” convocava seus
amigos e vizinhos dizendo que, “si no tenían mucho que hacer y no estaban
314
Os doze Pares da França [com (...) ser] e mesmo todos os Nove da Fama (1, V, p.35)
impedidos en negocios más importantes, quisiesen ser sus compañeros”,315
pastoriles [...] para que nos entretengamos por esos andurriales donde habemos de
mais. É quando Dom Quixote resolve sugerir, a cada um, seu nome de futuro pastor.
É nesse ponto em que o poético se ressalta, pelo fato de ser posto em discussão.
De um lado, o poético se evidencia nos nomes: “pastor Quijotiz”, dando nome para si
dando nome a “el cura”; e “pastor Pancino”, para Sancho Pança.317 De outro, a
com a de Dom Quixote __, algumas questões ligadas ao poético vêm à superfície. Na
os nomes das amadas dos pastores sejam retirados “de las estampadas e impresas,
315
E que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor [atividade (...) Quixote] Suplicava-lhes [convocava (...) que] se não tinham
muito que fazer e não estavam impedidos em negócios mais importantes, quisessem ser seus companheiros (2, LXXIII, p.695)
316
Comporei versos pastoris [...] para que nos entretenhamos por esses ermos onde havemos de andar (Ibidem)
317
(Ibidem)
318
Das estampadas e impressas de que está cheio o mundo (Ibidem)
Amarilis, Dianas, Fléridas, Galateas y Belisardas”.319 Eles são vendidos “en las
plazas” e, por isso, diz um deles, “bien las podemos comprar”.320 Mais uma vez fica a
A discussão acima traz à tona, sob o ponto de vista do fazer poeta, o vínculo
é a abertura com a qual Dom Quixote acena em sua despedida da obra: não só com
cavaleiro; que, por sua vez, vire pastor; que, por sua vez vire poeta; possibilidades
que permitem que Alonso Quijano disponha do tempo que quiser para mudar de
nome: “duró (...) ocho días”,321 deixando um rastro de dúvidas sobre chamar-se
Quesada ou Quijada, fixando em Quijote, finalmente, seu nome, como também com
Desse modo, fica claro que pastor e poeta não são duas possibilidades mais
para Dom Quixote ser. Significa que o leque de opções é imenso e abertíssimo;
significa muito mais: que não foi casual a escolha dessas duas especialidades
319
Fílidas, Amarilis, Dianas, Fléridas, Galateas e Belisardas (2, LXXIII, p.695)
320
Bem as podemos comprar (Ibidem)
321
Durou oito dias (1, I, p.20)
322
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1995, p.51
Com isso, se quer dizer que essa não é uma possibilidade a mais, essa é a
experiência pensante do ser que se vela, ao mesmo tempo que desvela significado.
como um pastor que segue seu rebanho, não sendo nunca um condutor voluntarista
afirmação firme e resoluta é ambígua. Do mesmo modo que parece ser pura
garante saber quem é, desse mesmo modo, parece contraditória mas não é. Pois,
Temos, então, que com Dom Quixote, tudo acontece assim: é a partir do que
já sabe que Dom Quixote pode chegar ao que não-sabe. É a partir do “outro” que
Mas, para ser ele mesmo autêntico, precisa submeter tudo o que o outro é ao
o mundo possibilita que não se imite o outro, que não se copie o outro, que não se
encarne o outro, mas que simplesmente se submeta aquela possibilidade do outro à
vida.
Dom Quixote abandonando o cículo vicioso e repetitivo da vida vivida, para ingressar
perienciar a vida, abre-se o espaço do “ex” que ultrapassa o limite estreito das
ao seu máximo.
alcança via renúncia, jogando fora tudo o que não lhe é próprio.
fazendo. Sabia e queria avisar estar consciente do seu agir. Porque precisava
mostrar e contar isso ao mundo. Logo, precisava fingir: fingir que era cavaleiro, fingir
ficar louco, e, como louco, sabedor da fragilidade de não ser acreditado, precisava
reforçar que sabia quem era. Travestido de cavaleiro, precisava que todos nele
acreditassem, sem correr o risco de ver seu plano posto por terra.
Se Dom Quixote tinha consciência do que fazia, se sabia quem era, quem era
avisar que tinha consciência de ser o fidalgo e não cavaleiro? Por trás desse aviso
tem de haver outro saber: o saber ser possibilidade. Na frase retumbante que abre a
assim também seja a obra: possibilidade. Essa tarefa fica, entretanto, para o 3o
realidade e Dom Quixote ficção, o cavaleiro sente que precisa ainda fazer outra
volta, precisa traçar outro círculo depois de constatar que seu ângulo de visão muito
ampliou o horizonte. Dessa ampliação participa agora o outro, seu olhar, antes tão
Participam do “pré” de Dom Quixote, três “prés”: um, dos séculos XVI/XVII,
por ele avaliado como ”detestables siglos”; o segundo “pré”, constituído pela leitura
das novelas de cavalaria como o mundo ideal de perfeição; o terceiro “pré” está
anteriores, dúvida que não é só sua, pertence ao tempo. Com tanto “pré”,
exatamente a força dos muitos “prés”, porque o “pré” é condição sine qua non para
novas possibilidades do ser. Esse é o movimento realizado por Dom Quixote. Para
pressentimento: de todos, o terceiro “pré” lhe parece aquele que permanece cheio
dúvida, uma necessidade de certeza. Sente que não está encerrada sua missão,
precisa ainda transitar, nesse “pré”; alguma grande verdade dali pode desvelar-se. É
só isso que capta Dom Quixote, é com essa bagagem que o cavaleiro, com os olhos
2º Périplo
Périplo. Ser porta-voz dos valores medievais, veiculados pela “república cristiana
insinuado como tarefa a cumprir, sem que lhe tivessem feito muito alarde. Trata-se
de algo que está planejado no futuro, por isso, desde então, o cavaleiro é só
expectativa.
tal modo que não foi informado diretamente sobre ela. Identificou-a, bastando para
isso que sua sobrinha lhe narrasse, com poucos detalhes, o incidente que dera fim à
sua biblioteca.
Disse que o autor do incidente tinha sido um encantador que “vino sobre una
Quando foram verificar, não tinham desaparecido somente os livros, como também
toda a biblioteca. Mandou recado para Dom Quixote “en altas voces que por
enemistad secreta que tenía al dueño de aquellos libros y aposento, dejaba hecho el
323
Veio sobre uma nuvem (1, VII, p.43)
324
Desmontou de uma serpente (ibidem)
325
Cheia de fumaça (ibidem)
daño en aquella casa que después se vería”.326 Dom Quixote o reconheceu
com quem ele, “andando los tiempos”,327 terá de “pelear en singular batalla”.328 E diz
mais: “que le tengo de vencer, sin que él lo pueda estorbar”.329 Dom Quixote conclui
que esse sábio encantador só age desse modo, por saber que será uma batalha
inevitável na qual ele não poderá interferir. E que, por isso, fica criando situações
que o desagradem, pois “procura hacerme todos los sinsabores que puede”. O que
ficamos sabendo ao final é que “mándole yo, que mal podrá él contradecir ni evitar lo
Na pressa, esquecemos uma informação. Pode ser que não seja importante,
mas é melhor não deixar nada escapar. Esse sábio encantador tem uma marca
acontece com Dom Quixote. Por sua cabeça começa a passar uma série de
Sem descobrir, ou, enquanto não descobre, o preocupa aquela outra missão que
326
Em altos brados que por inimizade secreta que tinha pelo dono daqueles livros e aposento, deixava feito o dano naquela
casa que depois se veria (1, VII, p.44).
327
Tempos depois (ibidem)
328
Combater em singular batalha (ibidem)
329
Que tenho de vencê-lo, sem que ele possa evitar (ibidem)
330
Mando-lhe eu, que mal poderá ele contradizer ou evitar aquilo que pelo céu está ordenado (ibidem)
não se sabe ser missão ou de-cisão, uma de-cisão a mais, desencadeada da de-
poder-ser.
da ignorância. Só que aqui há grandes diferenças, mas parece que Dom Quixote
Por enquanto, da única coisa que sabe é que, se pretende contar para todos
derrota para outro cavaleiro, com o compromisso de retorno ao lar, sem voltar a
exercer a velha função, a ponto de morrer sem jamais ter voltado a subir em seu
alazão. Logo, aquele cavaleiro louco desaparecera, sem quê nem porquê. E ainda
que, segundo o epitáfio de Sansón Carrasco, a morte não tivesse triunfado (“que la
viessem a acreditar.
Dom Quixote fica agora mais preocupado diante do desafio que precisa
enfrentar. Antes era só o contar, agora é o contar de modo a que todos acreditem. E
331
Depois de sair da caverna e de ter tido acesso à verdade maior, à Idéia do Bem, o homem recém saído da caverna, dotado
da prerrogativa de ser filósofo, é impelido a resgatar os demais homens que permanecem no interior da caverna, cativos da
ignorância da verdade.
332
Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700)
ainda mais, carregando o peso de ter tomado conhecimento da luta inevitável com
que tem parte com as “artes e letras”, o que lhe vale, por extensão, uma parcela de
parte com o diabo. A própria ama já o havia mencionado: “porque todo eso se lo
Diabos à parte, sua preocupação está voltada mesmo para o falar. Agora sim,
forma enviesada, a partir da motivação dos que o observavam. É preciso dar voz
verdad [...]?”335
Parece que há mais coisa para Dom Quixote descobrir. Até então, acreditara
sinais de que a história ainda não acabou, e que algo mais está no ar, para ser
desvendado.
333
Porque tudo isso o próprio diabo levou (1, VII, p.43)
334
Observado pelos olhos atentos de Tomé Cecial e de Dom Diego de Miranda, instala-se o paradoxo “loucura-lucidez” e a
perplexidade de todos. Dom Diego, intrigado, não compreendia porque Dom Quixote “lo que hablaba era concertado,
elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, temerario y tonto” * (2, XVII, p.410), deixando visível uma linha divisória
entre as ações (lo que hacía) e o falar (lo que hablaba); linha que igualmente separa “loucura” e “razão”. Sensível a tudo, Dom
Quixote responde com uma frase assim simulada por nós: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo” **
* o que falava era coerente, elegante e bem dito e, o que fazia era disparatado, temerário e doido.
** sou louco em minhas ações, mas não sou louco no que falo.
335
Haveriam de ser mentira, e ainda mais tendo tanta aparência de verdade [...]? (1, L, p.304)
Para Dom Quixote, por enquanto, é disso que necessita: fazer com que o
mundo nele acredite no que tem para contar-lhe. Lembra então Dom Quixote que
estivera, todo o tempo do 1º Périplo, muito voltado para si mesmo, e que será
preciso também flexibilizar seu olhar, descentrá-lo de si mesmo, para ter acesso ao
outro. Pressente que não basta contar sua experiência sem estar a par do mundo
real até então transformado, por ele mesmo, em outro mundo – o mundo da
Essa percepção faz Dom Quixote desconfiar de que precisará, mais uma vez,
ser porta-voz. Mas porta-voz do quê, afinal? Dom Quixote começa a dar sinais de
confusão, o que sempre nos preocupa a todos. Melhor deixar que ele vá
Dom Quixote se dá conta de que está sendo olhado também, e que, as pessoas que
perplexidade que o obrigou a responder com a seguinte frase: “soy loco en mis
acciones, pero no soy loco en lo que hablo”.336 Entretanto, quando se dá conta, ele
mesmo se põe perplexo, não com sua própria afirmação, mas com a perplexidade
sensibilizamos para esse dilema. Afinal, nos intrigam muito, também, as coisas que
nela encontramos. É claro que isso basta para que o cavaleiro sensível volte a
ocupar-se e pre-ocupar-se.
Ele mesmo nos alerta de que Cura não se esgota, que é para toda vida. Ele
decadência, porque para “estar lançado”, basta ser homem. Ele mesmo que, depois
336
Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.
do filtro doloroso da angústia, sabe não ter chegado ao fim sua jornada, a ponto de
não mais afirmar a velha frase retumbante com que abre o 1º Périplo: “Yo sé
quien soy”.337
como por exemplo, afirmar pela negação: “yo no soy el don Quijote impreso en la
primera parte”.338 Mais significativo ainda é: “no sé si soy bueno, pero sé decir que
no soy el malo”,339 onde a relação saber e não-saber, ser e não-ser vai ao limite
máximo.340 Dom Quixote deixa evidente a mudança radical entre um extremo “Yo sé
do “ser”.
encontrada para o 1º Périplo não pode fechar-se em si mesma. Ainda que tenha sido
Por mais que Dom Quixote tivesse insistido em contornar a natureza, fazendo
valer suas teorias e conceitos, a realidade era outra: a realidade é paradoxal. O que
vigia não se submetia aos limites impostos pelo que já era conhecido. Flutuavam
Périplo se impõe. Nesse Périplo, o impasse ser ou não ser louco nos obriga a
337
Eu sei quem sou (1, V, p.35)
338
Eu não sou o Dom Quixote impresso na primeira parte (2, LXXII, p.691)
339
Não sei se sou bom; mas sei dizer que não sou o mau (Ibidem)
340
“Bueno” e “malo” são epítetos dos dois Quixotes da obra: um deles, “El Malo”, corresponde ao personagem plagiado e
publicado por Avellaneda.
341
Eu sei quem sou (1, V, p.35)
342
Não sei se sou (2, LXXII, p.691)
retornar a Dom Quixote a questão, pedindo-lhe explicações: ninguém mais que ele
mesmo, para saber o que pretende nessa nova volta. Entre mentiras, verdades e
aparências, que nos diga ele mesmo qual a grande questão deste 2º Périplo. Ou,
enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura. [...] Con estas razones
da terceira página da obra, nem deixar de reconhecer, nele, nova contradição: razão
e perda do juízo.
Dom Quixote; sem tempo sequer para refletirmos, o parágrafo seguinte a apresenta
de chofre: “Con estas razones perdía el pobre caballero el juicio”.348 Temos então
choque contraditório não pára por aí. Antes mesmo de que nos alerte o cavaleiro
343
A razão da desrazão que a minha razão se faz, de tal maneira minha razão debilita, que com razão me queixo de vossa
formosura […] Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18).
344
E chegou a tanto sua curiosidade e desatino (ibidem)
345
Intrincadas razões (ibidem)
346
Floreios.
347
A clareza de sua prosa e aquelas intrincadas razões suas, que lhe pareciam de pérolas (1, I, p.18)
348
Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibidem)
sobre ser louco nas ações, mas não ser louco no que diz, a obra já nos lança em
taxados de desatino, por algo classificado como pérolas - “parecían de perlas”349 se,
ao mesmo tempo, com isso “perdía el pobre caballero el juicio”?350 E mais; a causa
referidas pérolas literárias que lia, pois Dom Quixote “desbelábase por entenderlas”,
deixando claro que o que lia não fazia nenhum sentido. Daí precisar o cavaleiro
interpretar essa opção de Dom Quixote, como um confronto entre a rigidez dos
dois personagens: Dorotea e Cardenio, como espelhos nos quais se possam ver.
349
Pareciam pérolas (1, I, p.18)
350
Perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibidem)
351
Para desentranhar-lhe o sentido (Ibidem)
352
Nisto, chegou a um caminho que em quatro se dividia, e logo lhe veio à mente as encruzilhadas onde os cavaleiros
andantes se punham a pensar qual dos caminhos tomariam, e, para imitá-los, esteve um momento quieto; e, após haver
pensado muito bem, soltou as rédeas de Rocinante, deixando à vontade do rocim a sua (1, IV, p.32).
Um deles, Cardenio, cujo perfil é o conflito evidenciado entre loucura e razão.
De tal modo que, quanto maior a razão, maior a loucura. Há muito Cardenio exercita
no pensar, pára, retrocede, se perde, volta à direção inicial, e acaba caindo em total
confusão. Todo seu agir mental se esgota em buscar argumentos, sem os quais
suas razões não se sustentam, e com os quais gasta um tempo infinito. Nesse
proceder, sua mente racional, que lhe prometera a garantia de certezas e verdades,
ou melhor, não se concretiza. Isso acaba por imprimir, em Cardenio, sua marca
Nessa corrida desenfreada que acaba sendo de si mesmo, Cardenio está sempre
desmaia, por não querer casar-se com o homem a quem estava prometida, mas que
não amava, Cardenio foge, assim dizendo: “en aquel punto me sobrase el
entendimiento que después acá me ha faltado; y así, sin querer tomar venganza de
ser volta-se contra ele mesmo, invertendo a vingança que deveria ser dirigida contra
seus inimigos, todos os que tinham contribuído para que seu projeto amoroso não se
aun quizá con más rigor del que con ellos se usara si entonces les diera muerte”354.
caso estivesse com a mente limpa, sem pensamento, caso não estivesse tão
comprometido com os “requiebros” mentais, medindo, avaliando, teria sido fácil pôr a
vingança em prática.
quebrada de la sierra”) fala “cosas que no podían ser entendidas de cerca, cuanto
353
Naquele ponto me sobrasse o entendimento que depois aqui me faltou, e assim, sem querer tomar vingança de meus
maiores inimigos (1, XXVII, p.157).
354
Quis tomá-la de minha mão e executar em mim a pena que eles mereciam, e ainda quiçá com mais rigor do que com eles
usasse se então lhes desse morte (ibidem)
355
Que, por estar tão sem pensamento meu, teria sido fácil tomá-la (ibidem).
356
Coisas que não podiam ser entendidas de perto, quanto mais de longe (1, XXIII, p.129).
cielo, hecho enemigo de la tierra que me sustentaba”.357 Ao lamentar-se, reconhece,
misteriosa lhe concedia; porque vivia no mundo racional contava somente com as
não querer receber. Parece não estar familiarizado com a entrega, com o deixar
artificial e violento: “porque cuando está con el accidente de la locura, aunque los
Tudo isso faz de Cardenio uma presa fácil do outro. Entre acatar o desejo
interesseiro de seu pai, indo servir a um “un grande de España”359 e lutar por seu
amor, acaba optando pelo que dita o estabelecido, demonstrando, com isso, que
ficar totalmente dominado pela razão o imobiliza a um agir espontâneo diante dos
357
Fiquei carente de conselho, desamparado, a meu ver, de todo o céu, tornado inimigo da terra que me sustentava
(1, XXVII, p.157).
358
Porque quando está com o ataque de loucura, mesmo que os pastores o ofereçam de bom grado, não o aceita, em vez
disso o toma a socos (1, XXIII, p.129).
359
Um grande de Espanha (1, XXIV, p.131).
procura do traidor: “y me puse en camino de la ciudad a pie, llevada en vuelo del
deseo de llegar”.360 Dorotea é movida, não só pela razão, mas também pelo querer.
Além disso, seu destaque está em, assumindo papel relevante no projeto “del
cura” e “del barbero”, repatriar Dom Quixote, pois sua atuação é quase totalmente de
atriz. Assim, seu desempenho revela claramente um jogo entre a realidade e o fingir:
[...] sé que me fue forzoso tener cuenta con mis lágrimas y con la
compostura de mi rostro, por no dar ocasión a que mis padres me
preguntasen que de qué andaba descontenta y me obligasen a buscar
mentiras que decilles. Pero todo esto se acabó en un punto, llegándose uno
donde se atropellaron respectos y se acabaron los honrados discursos, y
adonde se perdió la paciencia y salieron a plaza mis secretos
361
pensamientos.
sempre um rol de palavras para expressar sua rapidez de compreensão das coisas
que vão lhe aparecendo pelos caminhos do diálogo. Joga com idéias, tem facilidade
de expressão, faz jogos de palavras como ninguém; é feliz na escolha dos melhores
“Mas, por acabar presto con el cuento, que no le tiene, de mis desdichas,”
“no hallé derrumbadero ni barranco de donde despeñar y despenar al amo
[...] Digo, pues, que me torné a emboscar, y a buscar donde” “En fin, señor,
lo que últimamente te digo es que, […] si ya es que te precias de aquello por
que me desprecias” [conversando com Clara] “Habláis de modo, señora
362
Clara, que no puedo entenderos: declaraos más y decidme”
360
E pus-me a caminho da cidade a pé, alçada em vôo pelo desejo de chegar (1, XXVIII, p.166).
361
Sei que fui obrigada a conter minhas lágrimas e manter a compostura de meu rosto, para não dar oportunidade de que
meus pais me perguntassem por que andava triste e me obrigassem a inventar mentiras que contar. Mas tudo isto se acabou
de repente, chegando ao ponto onde se atropelaram os respeitos e acabaram os discursos honestos, e onde se perdeu a
paciência e saíram à praça meus secretos pensamentos (1, XXVIII, p.165).
362
“Mas para acabar logo com o conto, que não lhe concerne, de minhas desditas,” (1, XXVIII, p.162) “não encontrarei
penhasco nem barranco de onde despencar e despenar o amo […] Digo, portanto, que voltei a emboscar, e a buscar onde”
(1, XVIII, p.167) “Enfim, senhor, o que ultimamente te digo é que, […] se já é que te apraz daquilo por que me desprezas”
(1, XXXVI, p.221) [conversando com Clara] “Falais de modo, senhora Clara, que não vos posso entender: declarai-vos mais e
dizei-me” (1, XLIII, p.265)
Pode-se ver, em Dorotea, semelhanças com Sancho, no seu desvario de
repetição estéril praticada pelo escudeiro que, para cada situação, força e distorce
seu conteúdo, para fazer nela caber algum velho conhecido refrão, a ponto de,
deles, desencadear uma avalanche, sem lhes dar nenhum sentido. A Dom Quixote,
conveniente, entretanto, deixar claro que Dorotea não é louca. Todo seu
loucura-razão permanece.
São tantas as provocações do par loucura - razão que o tema não se esgota.
A loucura pode, ainda aparecer, desde a superposição com a razão, até o confronto
Sabe-se que Dom Quixote era “cuerdo” e que, depois, fica louco. Sabe-se
caracterizados: além de Dom Quixote, há o outro; ele tem o seu duplo; “Dom Quixote
parte, para plagiar. Pois é, Dom Quixote tinha um duplo, mas esse duplo a ele se
opunha radicalmente, era Dom Quixote “El Malo”, cognome que lhe coube para
marcar a diferença. O verdadeiro Dom Quixote era “El Bueno”. Com a inclusão
desse novo personagem, ficam marcados os limites entre bom e mau, delimitam-se
adequada é lançado para fora do terreno da verdade, não é verdadeiro, é falso. Mais
fizera, fora capaz de ficar louco; sabe mais do que ninguém que é preciso ter
atenção, e tem. De tal modo que, assim que lhe entregamos material de nossa
pesquisa, apresentando-lhe o quadro que opõe loucura à razão, logo percebe haver
dissonâncias.
Logo de início, Dom Quixote fica surpreso com uma personagem até então
por ele desconhecida, pelo menos com esse nome. Não é tanto pelo nome, mas
muito mais pela novidade que sua presença marcante insinuava, acenando-lhe com
algo novo.
patrocinado “por la república cristiana”. Por mais que se esforce, não consegue
por onde o leva essa nova personagem. Para ele não é possível que loucura esteja
363
Homem de entendimento (1, XX, p.103)
convencem. O que se pretende nesse jogo loucura-razão, se não é possível definir
seus liames? Pelo que se pôde observar, o fator determinante para definir o limite
“louco” – “não louco” é a relação que as coisas mantêm com a realidade. Por ora,
“Loco [...] por no poder menos”.364 O fragmento sugere uma oposição radical.
Parece que Dom Quixote optou pela loucura, tendo consciência do inevitável de tal
decisão. Diz-se que a loucura sempre esteve entre os homens; tem-se assegurado
desde Platão, que não chega a ser um mal, “mas, na verdade, porém [...] inspirada
pelos deuses”365. Desde Eros e Afrodite até as Musas, a loucura é sempre uma
espécie de delírio comum aos adivinhos, àqueles que têm o dom de prever o futuro,
superando, em, grau qualquer sabedoria dos homens: “o delírio que provém dos
deuses é mais nobre que a sabedoria que vem dos homens”,366 com o homem
inspiradora é a das Musas. Ai daquele que ouse aproximar-se “dos umbrais da arte
364
Louco [...] por falta de alternativa. (2, XV, p.397)
365
PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.79-80.
366
Ibidem, p.80.
367
C.f. Ibidem, p.81.
368
Ibidem, p.81.
Caso creia ser possível algum êxito nessa arte, contando apenas com o
Toda essa grandeza sempre tivera a loucura. Entretanto, por muito tempo
como coisa proibida ou, no mínimo, perigosa. Caso contrário, essa opção tão radical
não exigiria de Dom Quixote a justificativa de não ter ele outra alternativa (“loco por
no poder menos”). Essa seria uma das explicações, mas falta ainda aquela que,
nomeado “loucura”. Dom Quixote, sem outra alternativa, opta por esse espaço e não
consciente, Dom Quixote lança o olhar para o horizonte e vê toda realidade cindida.
rigorosamente em oposição.
pela loucura e virou cavaleiro louco; pois se não havia opção, sem outro jeito, opta
pela loucura. Essa decisão, entretanto, põe em cena um dilema. A situação que se
esforçou para cumprir com perfeita diligência, a sua face razão acabou,
contraditoriamente, tendo de conviver com sua face loucura. Esse convívio deveria,
por si só, desfazer o paradoxo ou, no mínimo, convocar a pensar. No entanto, não
isso acaba sendo impossibilitado por outra aparente cisão. Não satisfeitos em
separar loucura e razão, ao primeiro sinal de, com sua sensibilidade, Dom Quixote
Na verdade, não se trata de outra cisão, ela é a mesma que separa loucura
esta estava irremediavelmente doente. Todas as vezes que Dom Quixote tem
percebido e elogiado. Junto com o elogio, não se deixa de fazer menção, entretanto,
à sua faceta que extrapola os limites do racional, faceta por onde transita,
En los que escuchado le habían sobrevino nueva lástima de ver que hombre
que, al parecer, tenía buen entendimiento y buen discurso en todas las
cosas que trataba, le hubiese perdido tan rematadamente en tratándole de
369
su negra y pizmienta caballería.
369
Naqueles que o escutaram, sobreveio nova lástima de ver que homem que, ao que parecia, tinha bom entendimento e
discurso em tudo de que tratavam, o houvesse perdido tão rematadamente, em se tratando da negra e obscura cavalaria
andante (1, XXXVIII, p.233).
Assim, o paradoxo permanece. Mesmo que Dom Quixote tivesse provado ser
possível a dupla atuação, ela parece ser inviabilizada porque uma delas é rejeitada,
Voltemos a Platão: dos quatro tipos de loucura que descreve; uma é a loucura
Platão considera a loucura também divina e a caracteriza como liberação divina dos
módulos ordinários dos homens: “liberación divina de los módulos ordinarios de los
hombres”370.
Seria essa liberação do ordinário, o espaço da imaginação que, por seu turno,
coincide com a loucura? E, por que representaria perigo? Localizada para além do
ordinário, parece dividir espaço com o “ex”, aquele mesmo espaço do “experienciar”
Pois bem, essa informação talvez sirva para mais adiante. Por ora, o que está
Essa oposição se desdobra infinitamente, haja vista as duas zonas em que está
370
Liberação divina dos módulos comuns dos homens (ARÊAS, James. O delírio dos deuses e a loucura dos filósofos.
Comum. Rio de Janeiro, Facha, v.11, n.25, p.5-24, jun-dez 2005. [impresso])
selecionarmos os comentários decorrentes da avaliação feita pelos que observavam
à cavalaria da Idade Média; essa era a zona doente, essa era a zona louca.
É claro que Dom Quixote não é o primeiro a receber esse diagnóstico: doença
Unamuno em Vida de don Quijote y Sancho, retomado por Stephen Gilman371, foi
tido como louco pelos habitantes da cidade de Abdera e acabou nas mãos de
Hipócrates que, da Ilha de Coos, partiu com a urgente missão de curar o ilustre
todos os demais que assim o tinham diagnosticado porque, no breve tempo que
não de imaginação. Concluiu-se, assim, que a lesão estava localizada num único
Se, do mesmo modo que Demócrito, também filósofo, Dom Quixote tinha
concluíssem ter ele o mesmo mal: ser a lesão de Dom Quixote da mesma natureza.
371
Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
372
Ponderou.
entretanto, parece que sua mente dá saltos constantes da razão à imaginação,
oferecendo uma gama imensa desses trânsitos, que vai desde a opinião de
Nessa avaliação, fica patente que a mente não funciona porque não é
fantasia: “yo imagino que todo lo que digo es así, sin que sobre ni falte nada; y
que, pela razão ou pelo discurso, é possível alcançar-se, tanto nas ciências e na
arte, como em qualquer área. Acatar esse significado como possível, torna-se
simples, também. Tanto Dom Quixote, como todos os do seu tempo estão voltados
daquele momento. Nosso herói sabe tudo, sabe tanto, a ponto de Sancho, um dia,
Dom Quixote tem muito bem delineado o perfil do homem das letras, o
suficiente para provar já estar configurado esse homem em sua época: para que um
homem daquela época fosse eminente nas letras, “le cuesta tiempo, vigilias, hambre,
373
Eu imagino que tudo que digo é assim, sem que sobre ou falte nada; e pinto-a e minha imaginação tal como a
desejo (1, XXV, p.142).
374
Digo de fato que é vossa mercê o próprio diabo e que não há nada que não saiba (1, XXV, p.143)
desnudez, vaguidos de cabeza, indigestiones de estómago, y otras cosas”.375 Se
como título “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”,376 em oposição radical
à sua temática. Por que Cervantes denomina, com tanta seriedade, seu louco
protagonista de “ingenioso”?
conhecimento. É preciso estar atento, entretanto, para o que alertou Dom Quixote: a
loucura. Mesmo sem querer preocupar-se com isso, no momento, Dom Quixote
precisa chamar a atenção para o cuidado que se deve ter a esse respeito. Nesse
fragmento, por exemplo, não se percebe relação razão - loucura, a relação parece
ser de outra ordem. Embora nossa interpretação declare estar a poesia restrita
uma certa ambigüidade, apontando para um possível jogo entre ciência e poesia,
375
Custa-lhe tempo, noites em claro, fome, nudez, tonturas de cabeça, indigestões de estômago, e outras coisas
(1, XXXVIII, p.232).
376
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha.
377
Muito elevado engenho.
378
A poesia, senhor fidalgo, em minha opinião, é como uma donzela compassiva e de pouca idade, e em tudo bela em
extremo; a quem têm o zelo de valorizar, polir e adornar as outras ciências, e ela há de servir-se de todas, e todas hão de
abonar-se nela (2, XVI, p.402).
Digam o que digam: se por excesso de leitura, se por “calentura” lhe secaram
os miolos, não importa. Importa sim, que sua imaginação é que acabou ficando
comprometida. Na aparência é isso que a obra indica; mas seria possível levantar
saúde? Dom Quixote não é um ente da vida real que necessite comprovar sua
existência civil, logo, essa saúde se refere a algo bem maior do que está previsto
dentro dos limites ônticos. Essa saúde é extensiva a todos os homens. Isso porque,
Dom Quixote é uma imagem que abarca todos os homens em todos os seus
problemas e questões.
Nesse caso, se a imaginação pode ser abertura para a saúde, isso significa
que Dom Quixote tem razão quando desconfia não se restringir a razão ao par
loucura. É possível que a razão jogue, também, com outros pares; a imaginação, por
exemplo.
saibamos serem suas possibilidades muito amplas, seguimos, nós e Dom Quixote,
intrigados. É inegável a visibilidade com que aos poucos vai ganhando forma a cisão
que põe em confronto loucura e razão, sem que o justifiquem motivos plausíveis. Na
verdade, com que está mais preocupado Dom Quixote, não é com a razão, e sim
com algo mais que sua sensibilidade sonda no ar. Esse algo mais talvez seja o
responsável pela a cisão que traz o mundo todo contornado dentro de limites. De tal
modo que já estão se tornando perceptíveis a todos que para esse fenômeno olham
explicações: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo”.379 O
problema mais ainda se agrava, porque, diante do olhar de todos, é o próprio Dom
busca de glória e fama, Dom Quixote, sem deixar escapar a mínima oportunidade,
desafia “el leonero”, o homem que conduz uma carroça com bravos e famintos
leões, um presente do Marechal de Orán ao rei, a abrir a jaula para que possa
provar sua coragem a todos os que puderem testemunhar seu ato de bravura e,
leva seu propósito adiante. É salvo pelo rebate falso: aberta a porta, o leão,
“después de haber mirado a una y otra parte [...] volvió las espaldas y enseñó sus
Don Diego de Miranda que nada havia proferido, observava o fato e anotava
“pareciéndole que era un cuerdo loco y un loco que tiraba de cuerdo”;381 intrigava-lhe
o gênero de sua loucura; por isso em alguns momentos “ ya le tenía por cuerdo”,382
em outros o tirava “por loco”. E tudo porque “lo que hablaba era concertado,
379
Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.
380
Depois de olhar de um lado a outro [...] virou-se de costas e mostrou suas partes posteriores a Dom Quixote
(2, XVII, p.408).
381
Parecendo-lhe que era um sensato louco e um louco que parecia sensato (2, XVII, p.410).
382
Já o considerava sensato (ibidem)
383
O que falava era ajustado, elegante e bem dito, e o que fazia, disparatado, temerário e tolo (ibidem)
Mesmo que Dom Diego de Miranda não as tivesse anotado, Dom Quixote
¿Quién duda, señor don Diego de Miranda, que vuesa merced no me tenga
en su opinión por un hombre disparatado y loco? Y no sería mucho que así
fuese, porque mis obras no pueden dar testimonio de otra cosa. Pues, con
todo esto, quiero que vuesa merced advierta que no soy tan loco ni tan
384
menguado como debo haberle parecido.
É possível que Dom Quixote, tocado pelo rigor da ordem discursiva que a
384
Quem duvida, senhor dom Diego de Miranda, que vossa mercê não me tenha em sua opinião como homem disparatado e
louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar testemunho de outra coisa. Pois, com tudo
isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)
385
Eu não esperava nada menos que uma grande magnificência vossa, senhor meu – respondeu Dom Quixote; __ e assim vos
digo que o dom que vos pedi e que a vossa liberalidade me outorgou é que amanhã vós me armareis cavaleiro, e esta noite, na
capela do vosso castelo, velarei as armas; e amanhã, como já disse, cumprir-se-á o que tanto desejo, para poder, como é o
correto, ir por todas as quatro partes do mundo, buscando as aventuras em prol dos necessitados, como está a cargo da
cavalaria e dos cavaleiros andantes, como eu sou, cujo desejo a semelhantes façanhas é inclinação. (1, III, p.25)
Amadís fue el norte, el lucero, el sol de los valientes y enamorados
caballeros, a quien debemos de imitar todos aquellos que debajo de la
386
bandera de amor y de la caballería militamos.
pelo poder da lógica racional. Juan David García Bacca registra evidência do
exercício está registrado, com gráficos, e tudo o mais que uma pesquisa quantitativa
Añádase que en casi todas las páginas irrumpe la razón [...] y no será
exagerado mas sí ilustrativo y sugerente afirmar que; la dosis total de razón
distribuida a lo largo de la obra es 2.500 X 2, es decir: unas 5.000 o
expresado en otra forma: 5.000 son las veces que Don Quijote/Cervantes,
Cide Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes se sienten forzados a dar
388
expresión –expresa, palabrera – a la razón [...]
386
Amadís foi o norte, o luzeiro, o sol dos valentes e apaixonados cavaleiros, a quem devemos imitar todos aqueles que sob a
bandeira do amor e da cavalaria militamos (1, XXV, p.137)
387
“’Raciocinância’ objetiva”; “’Raciocinância’ e racionalidade”; “’Raciocinância’, refrões”; “Aventura e ‘raciocinância’”;
“’Raciocinância’ e argumentação”; até “Desconexão de ‘porquês’ e ‘paraquês’”.
388
Acrescente-se que em quase todas as páginas irrompe a razão [...] e não será exagerado, mas sim ilustrativo e sugestivo
afirmar que; a dose total de razão distribuida ao longo da obra é 2.500 X 2, ou seja: umas 5.000 ou expresso de outra forma:
5.000 são as ocasiões nas quais Dom Quixote/Cervantes, Cide Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes vêem-se obrigados a
dar expressão – expressa, palavrosa – à razão (GARCÍA BACCA, Juan David. Sobre el Quijote y Don Quijote de La
Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p.45)
cadeias discursivas em mais ou menos lógicas: “[...] no hay refrán que no sea
Depois de tanto atuar como cavaleiro louco, precisava desfazer a imagem que
exercício da ficção, e já era, não só conhecido de todos, mas era também lido: “que
era disparate leer tales disparates”. Sua fama de louco corria no rastro de sua
própria criação, o que possibilitava ser ele avaliado, não só a partir do olhar dos que
com os leões seria submetida à avaliação do rei, é lícita sua precaução: “Pues si
Leones [...]”.391
Era preciso estar atento ao que falava: Tomé Cecial participara da luta
conta de que, ao contrário do que estava previsto, ele e Sansón Carrasco, os dois
389
Não há refrão que não seja verdadeiro, porque todos são sentenças tiradas da própria experiência, mãe das ciências
todas (1, XXI, p.111).
390
O eclesiástico, que ouviu falar de gigantes, de estrepolias e de encantos, caiu em si que aquele devia de ser dom Quixote
de la Mancha, cuja história lia o duque ordinariamente, E ele o repreendera muitas vezes, dizendo-lhe que era disparate ler tais
disparates; e interando-se ser verdade o que suspeitava, com muita cólera [...] (2, XXXI, p.486)
391
Pois se por acaso Sua Majestade perguntar quem a fez, dizei-lhe que o Cavaleiro dos Leões (2, XVII, p.409).
que premeditaram a ação, saíram feridos, sem resistir, lançou ele a pergunta
sintomática:
Dom Quixote percebe que a verdade já não depende dele somente; dela
participa também o olhar do outro. A certeza e segurança com que abre o 1º Périplo:
“Yo sé quien soy”,393 agora, já lhe parece ameaçada. Não é mais possível sair pelo
mundo, dizendo o que lhe vem à cabeça; Dom Quixote precisa mostrar a face que
apresentadas, pelo menos, por enquanto: tanto Dom Quixote já percebia o incômodo
como possível; como também Dom Quixote conhecia os rigores da ordem discursiva
ter peso maior que seu conteúdo. “Soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo
que hablo”394. Por isso, optaremos por ficar com a terceira possibilidade: o aviso de
Dom Quixote está dirigido ao leitor; provavelmente, quer anunciar o papel que
392
Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moído e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o
mais louco: o que é por falta de alternativa ou o que é por sua própria vontade? (2, XV, p.397)
393
Eu sei quem sou (1, V, p.35).
394
Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.
desempenhará em sua nova jornada. Um papel que exige muito mais que “el
Esse cuidado de Dom Quixote não pode ser gratuito; parece sugerir atenção
ao outro. Por isso, do mesmo modo que o linear da escrita só permite que uma coisa
se apresente de cada vez, aguardemos alguma surpresa que pode nos estar
reservando Dom Quixote, surpresa embutida na forma como ele insiste em explicar-
se para os demais, explicar-se para os olhos ordinários: “soy loco” e “no soy loco”,
como verdade; à medida que trazia para si, a consciência, cada vez maior do ser
que, desde sempre fora; à medida que o não-querer ia dando espaço ao querer, e
ser.
Passada a experiência de Cura, seu olhar divisa horizonte mais amplo. Sente
agora uma necessidade de outra loucura que não reconhece ainda, em todas as
suas sutilezas, mas que sabe não ser aquela que a todo momento lhe sinalizam
existir. Tem a impressão de que todos em Espanha estão loucos. E, por mais que se
mais um novo item do lado da razão – abrindo a possibilidade de ela jogar não
somente em par opositivo com a loucura, mas também com a imaginação, agora
surge outro item do lado da loucura, mostrando que há um novo tipo de loucura.
Esta parece ser a mais complicada de todas, pois parece estar respaldada pelo que,
melhor, a loucura vista pelos olhos sensíveis de Dom Quixote é que é assim
avaliada. Para o senso comum, entretanto, isso não tem nada de loucura, todos os
que são por ela acometidos a consideram normal, do mesmo modo que também se
O que terá acontecido para que o mundo esteja dando todos esses sinais?
395
É preciso dar-lhes exemplos palpáveis, fáceis, intelegíveis, demonstrativos, indubitáveis, com demonstrações matemáticas
que não se possa negar (1, XXXIII, p.193).
se impõe a razão, mais insidiosa se torna a loucura: sua presença é constante,
disfarça, dribla, engana, confunde; parece aquele cavaleiro que se submete a muitos
ciclo da Cura, tanto na obra como em nossa pesquisa. Foi assim que a deixamos no
1º. Périplo, dela recolhemos o que foi possível, sabedores de que não a tínhamos
esgotado.
Triunfando ou não a morte, neste 2º. Périplo, o foco estará na consciência que
ela traz ao homem. Melhor ainda, o foco estará na consciência que adquiriu Dom
Quixote, por Cura tê-lo lançado a outro patamar mais alto. Desse ponto de vista, sua
visão está ampliada e, por isso, recolhe novos dados, dados que concorrerão para
396
Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700).
Esclarecemos que, neste 2º. Périplo, o lugar de centro não é ocupado pela
morte, mas que à morte estaremos dando outro foco. Ter Dom Quixote
experienciado a morte e por isso ter adquirido mais consciência de que viver é
O que contribuiu para que aquele cavaleiro que entrou na história como um
louco tenha conquistado degrau tão alto de onde lançar um novo olhar? Não
saberes e capta uma mensagem que lhe é enviada do futuro: pela voz de
morte, só se pode esperar uma valorização mais essencial da vida. E é para isso
mesmo que Heidegger dá destaque à morte. Como dissemos antes, a morte não
interessa a Heidegger em nada que aponte para o pós-morte. Dela, só lança mão,
Heidegger a redimensiona, e sobre ela projeta luz, iluminando a sua outra face. Dom
Quixote, antes de morrer, toma todas as providências civis em relação à morte. Para
isso, mais uma vez, precisa exercitar os desdobramentos impostos à sua condição
de ser ficcional: ao mesmo tempo em que “vive” a morte como “morte” ontológica,
desdobra-se para exercer o papel de falecido ou finado, nos moldes de morto ôntico.
semelhante à morte, no perecer, aquilo que pode assemelhar-se à morte nada mais
variadas maneiras. Até o próprio Dom Quixote parece que se deu o direito de tratar
Dom Quixote sabe que esse final já se instituiu em seu mundo compartilhado,
definindo algumas regras. É por isso que é tão diligente em seu testamento, como
fúnebre, com direito a acompanhamento de choro e tudo mais que o compõe e que
levou Sancho a chorar pela morte de seu querido amo; a presença dos vizinhos e
sua condição. Sabida ou não, sentida ou não, desejada ou não, é únicamente por
homem um valor maior para a vida. Existir não se resume a estar na vida em
final e determinar o fim. Assim, como a morte, a existência ganha também outra
numa encruzilhada de sua travessia e faz uma escolha consciente do caminho que
Mostrada em sua nova face, a morte e tudo o que ela representa funciona
como o alerta máximo para Dom Quixote. É a voz da consciência que ele ouve.
que o poder perdido está voltando ao normal; surpreendido em sua loucura, pela
que se anunciam, é preciso responsabilidade; por isso não deseja a ela entregar-se
cavaleiresco. Do novo horizonte que divisa, sem dúvida, muito já viu, muito já
conhece. Entretanto reconhece a urgência, não só de decifrar melhor os sinais que
lhes compreensão.
Conclui ser necessário também fazer uma retrospectiva que lhe dê mais
subsídios para o seu “falar”, tarefa que precisará realizar, a seu ver, de modo
começar pelo que já ‘vi’; isso é ‘viver’”. Com ajuda da memória empreende
confirmatória da beleza de sua amada: “Si os la mostrara, replicó don Quijote, ¿qué
hiciéredes vosotros en confesar una verdad tan notoria? La importancia está en que
comprovação do “ver”. Era a velha crença que cedia espaço ao “saber certo” e
397
Se eu a mostrasse a vós, replicou Dom Quixote, que mérito teríeis em confessar uma verdade tão notória? A importância
está em que, sem ver, deveis crer, confessar, afirmar, jurar e defender (1, IV, p.32).
racional que entra pelos olhos. Até então, era negação total dos sentidos, mas
A respeito de Dulcinea, não seria preciso ir tão longe; Dom Quixote assim
preferiu: A questão ser Dulcinea fruto de encantamento, dado que lhe confere ou
E as posições se invertem, sem que o problema nem ganhe outra cara, nem seja
resolvido. Por isso Dom Quixote decide ampliá-lo, estendendo aos outros sua
bacia e um elmo. Mais um desafio se insinua: até onde vão os limites que definem
no cotidiano do homem daquela época que estava com a batuta nas mãos,
sido fartamente exibida na fronteira que divide o tempo de Dom Quixote do tempo da
cavalaria andante.
Tudo isso, sem contar com o que fora capaz de fazer, movido pela urgência
Mais adiante, novo embate: primeiro são ovelhas que seus olhos definem
como exército; depois vêm os moinhos. Esses são os que lhe exigem tempo maior
Ali, aparentemente inerte, tanto vigor emana, que é capaz de produzir tal impulso
menos, nisso estão os moinhos de acordo com todo resto: tudo insinua movimento
De tudo isso, duas coisas se podem tirar: primeiro que Dom Quixote já havia
visto aquela mesma cena em outros momentos históricos. A Idade Média já tinha ido
compreensões. Havia mais para saber, o contexto era por demais contundente.
Não há mais como fugir; Dom Quixote sente que um mandato, muito superior
aos que recebera antes, cobrava-lhe participação. Que ele assumisse o leme. É
claro que isso o deixou inseguro e desconfiado; afinal no 1º. Périplo já estivera no
comando uma vez, até que a falácia, de tão cruel, virasse angústia. Já estivera
nessa posição de comando: por muito tempo, fora o filósofo, por muito tempo,
acreditara ter sido, dentre muitos homens, o único preparado para conduzir os
demais.
intuição, como em outras vezes o fizera, o dilema de retomar uma situação que lhe
que já ouvira muito falar. E, com esse desejo “pidió don Quijote al diestro licenciado
le diese una guía que le encaminase a la cueva de Montesinos, porque tenía gran
mão, “un primo suyo, famoso estudiante y muy aficcionado a leer libros de
É possível que, na falta de orientação, Dom Quixote tenha feito essa escolha,
desse item de seu manual: voltar à caverna para libertar os prisioneiros que em seu
interior deixara. Estamos somente arriscando, até porque, sabemos que Dom
Quixote, depois que saiu da caverna e cumpriu sua missão como cavaleiro, acabou
confundindo-se mais uma vez, tenha voltado a acreditar que era ainda filósofo e
Mesmo orientado pela intuição, Dom Quixote não consegue abandonar sua
não deixa de dar uma última olhada ao redor: parece que o mundo dá sinais de nova
Aproveita então para avaliar a crise anunciada por Pierre Vilar, já descrita
anteriormente, no 1º. Périplo. Enquanto isso, Dom Quixote também sinaliza, do seu
398
Pediu Dom Quixote ao hábil licenciado que lhe desse um guia que o conduzisse á caverna de Montesinos, porque tinha
grande desejo de nela entrar (2, XXII, p.437).
399
Um primo seu, célebre estudante e fanático pela leitura de livros de cavalaria, o qual com muito prazer o poria na boca da
própria caverna (ibidem)
400
Homem do entendimento (1, XX, p.105)
modo, essa surpreendente mudança. Mudanças que não se deram na linha real do
tempo, mas que, em fração mínima, se tornaram sensíveis de forma muito radical e
ancoragem na memória.
duas épocas, mas dois tempos: tempo em que, fundamentalmente, o vestir só tinha
compromisso com o que “la honestidad quiere y ha querido siempre que se cubra”,
sem os “adornos de los que ahora se usan”, produzidos graças ao sacrifício de “la
con la verdad”, em que não havia o “artificioso rodeo de palabras”, em que “la justicia
se estaba en sus propios términos, sin que la osasen turbar ni ofender los del favor y
Foi esse mesmo tempo que justificou a cavalaria: “para cuya seguridad [...] se
instituyó la orden de los caballeros andantes”.404 Agora tudo indica que com
cavalaria não é sentida só por Dom Quixote. A mola propulsora do tédio que jogava
a todos no mundo da leitura não podia ser gratuita. Tinha de haver alguma
expectativa por trás dessa mania inocente. Teriam todos a mesma capacidade
401
A honestidade quer e sempre quis que se cubra [sem os] adornos desses que agora se usam [produzidos (...) de] a
martirizada seda (1, XI, p.60).
402
Não havia fraude, o engano, nem a malícia, misturados com a verdade [...] artificioso rodeio de palavras [...] a justiça
funciona dentro de seus próprios termos, sem que ousassem turvar nem ofender por favores e interesses (Ibidem)
403
Nossos abomináveis tempos (1, XI, p.61).
404
Para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (ibidem)
Talvez não, porém, em diferentes graus, o desejo cavaleiresco se justifica na
voz de Dom Quixote que, dispondo com clareza de todos os elementos necessários
para justificá-la, bem como para deixar evidente a seriedade do tempo que estão
povo espanhol: “cavaleiros” e “quixotes” havia muitos, até porque a rigidez das
No 2º. Périplo, com o que já sabe, Dom Quixote projeta seu olhar para o novo
Quixote vai negociar o valor de cada coisa que se mostra no viver. Desse lugar, ao
mesmo tempo em que interpreta, vai traçando o perfil histórico de seu tempo, para
anunciá-lo ao mundo.
quadro acima proposto. Nesse quadro, Dom Quixote atento, muito mais ouvido que
modernidade.
vicissitudes históricas que, no mundo de Dom Quixote, tinham lugar e, além disso, o
fato de ser ele dotado fundamentalmente de um modo de “falar” que estava à altura
charlatã consciência”405 __
, Dom Quixote não encontra alternativa, senão cumprir o
mandato que ele, confuso, e desconfiado, sem atinar ainda sobre sua nova
condição, acredita ser ainda de Platão: voltar à caverna para finalizar a sua missão.
Dom Quixote ascende no plano da consciência, mas, sem saber o que fazer
com o que tinha nas mãos, movido, entretanto, pelos resquícios que ainda lhe
Pode parecer que nos estamos perdendo, que a consciência conquistada por
Dom Quixote descrita acima não é compatível com o mandato de Platão, e nisso
vemos sentido. No entanto, é só com isso que pode contar Dom Quixote. Nessa
circunstância, sem outra alternativa, acaba acatando o levar boas novas para o
“cueva-caverna” para dar aos prisioneiros, que estavam em seu interior, a chave da
É preciso dizer que esse conflito de cavernas não nasceu da mente fértil de
poderia ter acesso qualquer homem, que tivesse o requisito especial de ser movido
405
NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a verdade no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979 p.54 (Coleção Os
pensadores)
pelo querer. Isso é tão verdade que “el primo”, grande estudioso e conhecedor de
Se neste périplo, o propósito era saber de seu tempo, qual o primeiro lugar
“pretio”; o valor das coisas do mundo? Não se pode esquecer que dessa negociação
o chamamos por sua caracterização atípica de estar num nível onde o acesso não é
se no fundo da terra.
e conta sua experiência. É claro que nos estamos reportando a “la cueva de
voltar à caverna para com eles compartilhar a “boa nova”, Dom Quixote se investe
de filósofo e vai tentar retomar a ponta do fio, dizendo: “Yo voy a despeñarme, a
mundo.
margem do original que continha a história de Dom Quixote, uma história contada
pelo tradutor: diz a anotação que o autor do documento encontrado pede desculpas,
por não ter a mínima condição de provar ser essa aventura verdadeira, de tal modo
dizendo não dispor de nada convincente que possa imprimir em Dom Quixote o
impossível. Mais desconcertado fica Cide Hamete, quando revela ter Dom Quixote,
na hora da morte, confessado ter sido essa história realmente uma mentira. Cide
406
Eu vou precipitar-me, meter-me no poço e afundar no abismo que aqui a mim se representa, apenas para que o saiba o
mundo [...] que aqui me representa (2, XXII, p.439).
Hamete, diante desse impasse, se rende à sua incapacidade de julgar, e solicita ao
leitor que o faça; “esta aventura parece apócrifa, yo no tengo la culpa; y así, sin
afirmarla por falsa o verdadera, la escribo. Tú, letor, pues eres prudente, juzga lo que
te pareciere”.407
Vemos que, com outra roupagem, retorna o jogo mentira-verdade. Dessa vez,
de forma mais sofisticada, Cide Hamete, seu autor, se arrisca quanto à fixação do
no que mais se poderia aproximar “la cueva” ao mito, é exatamente onde a ele se
contrapõe.
Dom Quixote desce a uma cova que tem a profundidade de “doce o catorce
Isso indicia estar, tudo o que ali vai desenrolar-se, comprometido com a questão
encontra alguns seres – homens e mulheres que ali estão presos, encantados por
Quixote teve foi tão forte que chegou a imaginar ser sonho, dúvida que logo
descartou: “Despabilé los ojos, limpiémelos, y vi que no dormía, sino que realmente
407
Esta aventura parece apócrifa, e não sou o culpado; portanto, sem a declarar falsa ou verdadeira, a escrevo. Tu, leito, visto
que és prudente, julga o que te parecer (2, XXIV, p.448)
408
Doze ou treze vezes a altura de um homem.
estaba despierto; con todo esto, me tenté la cabeza y los pechos, por certificarme si
Ao mesmo tempo que, ao sair “de la cueva”, descarta ter sido sonho, logo que
desperta do transe, a primeira frase que diz é: “En efecto: ahora acabo de conocer
que todos los contentos desta vida pasan como sombra y sueño, o se marchitan
como la flor del campo”.410 Extremamente intrigante essa avaliação geral de “la
cueva” feita por Dom Quixote. Parece apresentar o real, sob dois pontos de vista:
sua criação. O que se apresenta é uma valorização do sensível porque ele traz em si
alguma verdade. Essa verdade, o homem a tem, sendo possível, assim, pela análise
de si mesmo extraí-la.
Embora a verdade para Descartes esteja, do mesmo modo que para Platão,
também no inteligível, este não se encontra separado do sensível, motivo pelo qual
homem pensante lhe parece que nada existe, tudo se corrompe e acaba,
amigos, dos quais um está morto. Além de primo e amigo, coube a Montesinos
409
Abri os olhos, esfreguei-os, e vi que não dormia, antes estava realmente desperto; com tudo isto, toquei minha cabeça e
tronco, para certificar-me se era eu mesmo quem ali estava, ou algum fantasma (2, XXIII, p.441).
410
De fato: agora acabo de conhecer que todos os contentamentos desta vida passam como sombra e sonho, ou murcham
como a flor do campo (ibidem)
arrancar-lhe o coração grande, típico coração dos valentes, atendendo a pedido do
próprio morto que lhe encarregou de entregá-lo à sua amada. Parece haver um
exaltar o valor do coração. É possível que seja uma intenção de deslocar do lugar
Poderia também o coração ser um símbolo a mais para ser tensionado com a razão,
onde Dom Quixote passa por experiência originária é o seguinte: seu interior não é
escuro, cheio de trevas, iluminado pela luz artificial do fogo, como o é o interior da
caverna. Apesar de que, na superfície “Éntrale una pequeña luz por unos resquicios
o agujeros”,411 a luz de fora entra sim, mas de forma muito modesta (pequeña luz) e
por pequenos buraquinhos (resquicios o agujeros). Isso fica claro, quando diz que
pouquíssima relevância à luz exterior. Dentro de “la cueva” há palácios com muros e
paredes transparentes de claro cristal. O cavaleiro morto está deitado num sepulcro
osso que se mantém o morto, permitindo que se anteveja a morte mantida em vida,
ou, ao contrário, a vida mantida em morte. É claro que tudo bem justificado pelo
encantamento de Merlín, que “no fue hijo del diablo, sino que supo, como dicen, un
punto más que el diablo”.412 Quem encanta en “la cueva” é mais que o “diablo”.
411
Entra uma pequena luz pelas fendas e buracos (2, XXIII, p.441)
412
Não foi filho do diabo, mas sim soube, segundo dizem, um pouco mais que o diabo (2, XXIII, p.442).
Se nos reportamos à fala de ama, no início da obra, no episódio do
ela deixa registrado o seu equívoco de referir-se ao sábio encantador Frestón como
“encantador”: “No era diablo –replicó la sobrina–, sino un encantador que vino sobre
una nube una noche, después del día que vuestra merced de aquí se partió.”413
com o diabo e sim com um simples sábio-encantador, que, além de tudo, pertence
interior de “la cueva”, - ao qual estão submetidos todos os que estão em seu interior,
encantamento que os faz prisioneiros a todos, nesse caso, para caracterizá-lo, não
basta o ser filho do diabo (“no fue hijo del diablo”), mas, do encantador, lhe é exigido
mais que isso, é exigido que saiba “un punto más que el diablo”. Tudo parece
remete ao diabo e o outro não. Se essa gradação está relacionada a algum juízo de
valor, se um encantamento é bom e o outro é mau, não nos cabe sequer arriscar,
brinda com a resposta “El como o para qué nos encantó [...] dirá andando los
talvez já tenha chegado, sem que um perfil se tivesse ainda definido, uma vez que
“no está(n) muy lejos” (brevemente) uma novidade que revolucionará o modo de o
413
Não era diabo – respondeu a sobrinha –, mas sim um encantador que veio sobre uma nuvem, depois do dia que vossa
mercê daqui partiu (1, VII, p.43)
414
O como ou para que nos encantou [...] dirá andando os tempos, que, segundo imagino (2, XXIII, p.442)
provoca encantamento, mais que isso, só o avançar do tempo poderá revelar. Essa
revelação é também o que a obra reserva para que o tempo, ele mesmo e só ele
em pleno século XXI, o que na obra está em obra da verdade. Não é em vão que,
por motivos semelhantes, Dom Quixote descarta uma observação superficial feita
mundo mágico medieval. Entretanto, em “la cueva”, não era necessário nenhum
esforço para ver as coisas. A transparência era tal que a visão a tudo alcançava;
naquele espaço cabia tudo; cabia até o “pedir dinheiro emprestado e é o que fazem
Quixote. Sancho, além de não crer na história, chama o lugar visitado por Dom
Quixote de “otro mundo”. “Outro mundo” sugere que há um mundo além daquele em
que vivemos. Esse “outro mundo”, ao mesmo tempo em que anuncia um novo
mundo que marca, pela ausência, ou quiçá por superposição, um mundo diferente
que também já existiu. Este pode ser o mundo das idéias platônicas às quais, para
caso do real filósofo, centrar o olhar diretamente no sol. De qualquer forma, platônico
sensível e inteligível em seu interior se concentram, sem que seja necessário fazer
415
[sua] averiguação não é de importância, nem turva nem altera a verdade e o contexto da história (2, XXIII, p.442)
416
Sonho.
Para Dom Quixote, entretanto, é um lugar maravilhoso: assim o descreve
para Sancho; que Montesinos lhe havia mostrado “entre otras infinitas cosas y
épocas: “estaban otras muchas señoras de los pasados y presentes siglos [...] la
que seu amo encontrou e viveu no interior de “la cueva”. Chega a reclamar, dizendo
que Dom Quixote estava tão bem enquanto fora de “la cueva”, “con su entero juicio,
tal cual Dios se lo había dado, hablando sentencias y dando consejos a cada
paso”.419 Diz que, bastou ele entrar “en la cueva” para sair “contando los mayores
disparates que se pueden imaginarse”.420 Isso indicia ter “la cueva” o dom de
produzir alterações no juízo. Além disso, são todos imortais, os que dentro de “la
Nesse lugar cabe tudo, não falta nada; todas as realidades do tempo e do
Dentro de “la cueva” todas as coisas são eternas e imutáveis. Na abstração, até uma
flor pode ser eterna, mesmo que, para arrancar-lhe significado, para torná-la eterna,
interior de “la cueva”, Sancho mais se sente no direito de não crer nos disparates de
417
Entre outras infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446)
418
Estavam outras muitas senhoras dos passados e presentes tempos [...] a rainha Guinevere e sua ama Quintanhona,
servindo o vinho a Lancelot (2, XXIII, p.441).
419
Com seu inteiro juízo, tal qual Deus lhe concedera, falando ditames e dando conselhos a cada passo (ibidem).
420
Contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446)
421
E nenhum dos nossos morreu (2, XXIII, p.443).
seu amo; afinal ele mesmo tinha participado do fingido encantamento da “sin par”
Dulcinea. Dom Quixote, porém, o compreende, dizendo que sua descrença se deve
a não estar ele muito familiarizado com as coisas do mundo, negando, por isso,
como possível, qualquer realidade que indique qualquer esforço de dificuldade. Mais
uma vez, é sinalizado, agora pelo próprio Dom Quixote, mais experimentado nas
coisas do mundo do que Sancho, que o que viu dentro “de la cueva” é verdade:
estás experimentado en las cosas del mundo todas las cosas que tienen algo de
centrar a visão para com os olhos da alma alcançar a essência de todas as coisas,
que quer provar Dom Quixote é ser ou não verdade o que aconteceu “en la cueva”.
Com isso, é bem possível que nos esteja querendo falar da radicalidade dessa
metafísica, dando-lhe nova cara, a verdade única e última que não admite
contestação. Além dessa verdade, poderia estar falando de outra? É possível, mas
fiquemos atentos: essa verdade não admite réplica nem disputa. O que não admite
réplica nem disputa: a experiência que teve Dom Quixote no interior de “la cueva”,
Dom Quixote e todos os que ali estavam, não havia nenhuma dificuldade, porque
tudo estava ali, disponível, sem que fosse preciso nenhum esforço que
representasse dificuldade. Por que essa verdade vivida dentro de “la cueva” era
vivida sem dificuldade por todos dentro, mas não era para os que estavam fora?
Parece que não é bem assim. Todos os que estavam dentro e fora a viviam
sem dificuldade, esse era o acesso que lhes dava o encantamento, o encantamento
confundir a “não dificuldade” com verdade. Sancho era um dos que estavam fora de
“la cueva” vivendo sem dificuldade, e nem por isso, deixava de estar encantado. Por
isso Dom Quixote afirma que ele não está experimentado nas coisas do mundo: “y
Parece que o que nos está querendo falar Dom Quixote é do “experienciar”.
Isto, sim, é o que Sancho não tem, nem ele nem todos os que estão aprisionados
pelo encantamento da metafísica que, como um recorte para pesquisa, tem lugar
imaginar que haja outras realidades, além da realidade metafísica pela qual, como
todos os demais, também está encantado. O que pode parecer difícil para Sancho é
supor que as coisas do mundo, nas quais não está ele experimentado, não são
meros objetos em suas mãos de sujeito dominador e controlador. O que não sabe
Sancho, e por isso é para ele difícil, é que dentro de todas as coisas do mundo há
sempre mistério passível de tornar-se sempre nova realização, porque, nas coisas
Dom Quixote “los cuatro reales” que pedira sua ama Dulcinea: “en lugar de hacerme
una reverencia, hizo una cabriola, que se levantó dos varas de medir en el aire”,425
acrobacia também realizada por Dom Quixote quando estava em “Sierra Morena”:
[...] luego, sin más ni más, dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas, la
cabeza abajo y los pies en alto, descubriendo cosas que, por no verlas otra
vez, volvió Sancho la rienda a Rocinante y se dio por contento y satisfecho
426
de que podía jurar que su amo quedaba loco.
outro lugar deste texto, fez-se referência a movimentos circulares que, ultrapassando
onde cada coisa tem seu devido lugar, com a devida correspondência no mundo,
um preço alto que vale a pena pagar, pela garantia da certeza absoluta que o
esforço pode trazer. Nessa mesma medida, o contexto de “la cueva”, sendo de
425
Em lugar de fazer-me uma reverência, fez uma cambalhota, que se ergueu duas varas de medir no ar (2, XXIII, p.447).
426
Depois, sem mais nem menos, deu dois saltos no ar e duas piruetas, de ponta cabeça, mostrando coisas que, para não as
ver outra vez, Sancho deu volta às rédeas de Rocinante e deu-se por contente e satisfeito de que podia jurar que seu amo
estava louco (1, XXV, p.144)
verdades eternas e imutáveis, de correspondência retilínea, não é compatível com o
perfeita representação; tudo isso se revela impróprio, por seu caráter diametralmente
extrapolar os limites, numa dinâmica que lembra a physis-zoé, aquela que nos
da vida. Não seria essa uma das dificuldades de Sancho, o ver, nessa forma atípica
Durandarte, seu primo e amigo, dizendo que ela não era feia, que feia assim
obrigava a ficar noites em claro, como também por seu pesar pelo destino do marido
que teve seu coração arrancado. Dom Quixote mesmo, estando nesse contexto de
mensil, ordinario en las mujeres, porque ha muchos meses, y aun años, que no le
mundo” é tão perfeita e equilibrada que nele não pode faltar sequer o mal da
a esposa de Durandarte.
Com relação à Belerma, outra leitura é possível, tanto para a palidez (la
amarillez) como para sua falta de menstruação: a elas pode somar-se aquela em
denunciam falta de vigor, revelando que, aquele modo de viver dentro de “la cueva”,
não permite renovação, que ali, nem a vida, nem o homem, nem a linguagem se
renovam.
erro de compará-la à Dulcinea; dizendo que, se não fora por tudo o que já tinha
passado, Belerma igualar-se-ia “en hermosura, donaire y brío la gran Dulcinea del
Toboso.428 Isso foi o suficiente para Dom Quixote demonstrar uma ponta de irritação,
como é comum no romance, em temas semelhantes, e lhe responder: “no hay para
qué comparar a nadie con nadie. La sin par Dulcinea del Toboso es quien es, y la
correspondência, cada coisa com o seu devido correspondente, uma é uma e outra
é outra, isso, nem Dom Quixote deixa escapar. Aliás, há muito, já está dito e redito
no codinome de Dulcinea: “la sin par”, acentuando, com isso, o limite da identidade
427
Em seu mal menstrual, normal nas mulheres, porque há muitos meses, e mesmo anos, que não o tem nem aparece às
suas portas! (2, XXIII, p.444).
428
Em beleza, donaire e brio a grande Dulcinea del Toboso! (Ibidem).
429
Não há para que comparar a ninguém com ninguém. A incomparável Dulcinea Del Toboso é quem é, e a senhora Belerma
é quem é [...] e paremos por aqui (Ibidem)
Embora as referências feitas a Dom Quixote recebam o adjetivo “claríssimo”:
escuridão do negro e com as lágrimas que remetem para o fechamento um, e para a
buscada pelo Ocidente é uma falácia. Nesse caso, desfaríamos aqui a relação
necessário que conviva o escuro do não-ser, mas nunca o luto nem as lágrimas do
esquecimento do ser.
Durandarte nas mãos: “todas vestidas de luto, con turbantes blancos sobre las
cabezas.”431 Fechava o cortejo, Belerma; esta vestia toucas também brancas, que,
turbantes que vão da cabeça até o arrastar no chão, uma conexão terra/negra –
430
Claríssimos ouvintes (2, XXIII, p.441).
431
Todas vestidas de luto, com turbantes brancos sobre as cabeças (2, XXIII, p.444).
432
Beijavam a terra (ibidem)
luz/branca, chamando a atenção para o risco da fragmentação, sugerindo o diálogo
necessário céu-terra.
Se por um lado, Dom Quixote defende a verdade do que viu “en la cueva”,
opondo-se a Sancho, que em nada acredita; ao finalizar sua defesa, se refere a uma
verdade que “ni admite réplica ni disputa”. Percebe-se o poder com que a verdade
confessa sua fé total em Dom Quixote como o único que poderá salvá-los da prisão
e do encantamento: “[...] don Quijote de la Mancha [...], por cuyo medio y favor
podría ser que nosotros fuésemos desencantados”,433 por outro, o convoca a ser o
porta-voz de tudo o que viu dentro de “la cueva” “para que des noticia al mundo de lo
que encierra y cubre la profunda cueva [...] de Montesinos”434. Essas notícias são
“las maravillas que este transparente alcázar solapa, de quien soy alcaide y guarda
“boa nova” de fora da caverna, local onde a luz do absoluto fora evidenciada por
Platão, para seu interior; deverá ser, na realidade, a de levar para fora o que viu
sugestão.
que ali acontecem: ao mesmo tempo que aquela “cueva” é uma maravilha, é
também uma prisão. Essa contradição pode ser desfeita com a extensão do
433
Dom Quixote [...] por cujo meio e favor poderia ser que nos desencantássemos (2, XXIII, p. 444)
434
Para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a profunda cova [...] de Montesinos (2, XXIII, p. 442) .
435
As maravilhas que este transparente castelo encobre, do qual sou alcaide e guarda maior perpétuo, porque sou o próprio
Montesinos, de quem a cova toma nome (ibidem)
“nosotros”, todos os que estão dentro de “la cueva”, ao homem em geral: tanto os
que estão dentro de “la cueva”, como os de fora. É possível que, com o alerta de
Dom Quixote, o homem do exterior, sabedor da “boa nova”, fique atento e não se
deixe cair nas malhas da sedução de “la cueva”: uma caverna que maravilha para
aprisionar.
Vista desse modo, a tarefa de Dom Quixote é dupla e deverá estar embutida
numa só ação: maravilhar e aprisionar são opostos radicais. Juntar os dois, para
deles dar conta é tarefa dificílima, mas Dom Quixote precisará encontrar um modo
com o “falar” tem sentido. Talvez pudéssemos, aí mesmo, encontrar leve contradição
mas não é. O falar é típico de sua condição de filósofo e o dizer, de sua nova
performance de hermeneuta. “Não sou louco no que falo” requisita do leitor atenção;
atenção ao liame entre falar e dizer, [ou ao falar a voz do logos] porque será no
dizer, (ou ao falar a voz do logos) que as grandes verdades vão se mostrar. Há duas
pareçam contraditórios, não os são. Falar e dizer, embora aparentem não indicar
contar ao mundo um evento tão significativo, que descreve de forma tão oblíqua as
vicissitudes históricas daquele momento, seja o dizer da obra de arte. Nesse caso,
quem está sendo convocado, não é o personagem Dom Quixote, mas a obra de arte
está mostrando no fundo de “la cueva”, como a obra garantirá, para todos os
desgraça foi convertido em rio, e quando saiu de “la cueva” “y vio el sol del otro cielo,
fue tanto el pesar que sintió de ver que os dejaba, que sumergió en las entrañas de
la tierra”.436
Aquele que, sob a forma de rio sai de “la cueva” e vê o sol, não desfruta nem
demais dentro de “la cueva” foi tamanho que preferiu meter-se no fundo da terra, só
sol y las gentes le vean”,437 para formar lagoas. Ademais, o escudeiro, que teve o
privilégio de sair de “la cueva” e ver o sol, “por dondequiera que va muestra su
Por mais que se assemelhe essa passagem com o mito de Platão, insinuam-
se controvérsias, uma vez que, no mito, quem sai da caverna fica encantado com o
privilégio de ver o sol do “otro cielo” - sol exterior que metaforiza o Bem, onde estão
diferente do céu interior de “la cueva”, é um céu sombrio e sem luz. A situação
436
E viu o sol do outro céu, foi tanto o pesar que sentiu de ver que os deixava, que submergiu na entranhas da terra.
(2, XXIII, p.443)
437
De quando em quando sai e se mostra onde o sol e as pessoas o vejam (ibidem)
438
Por onde quer que vá, mostra sua tristeza e a melancolia, e não aprecia criar, em suas águas, peixes saborosos e
estimados, mas, sim, grosseiros e sem sabor (ibidem)
No que se refere ao sentimento de pesar, este o reconhecemos familiar,
descer, voltando ao interior de “la cueva” – caverna para contar a nova – para levar a
visão do Bem e da verdade, aos que ficaram dentro de “la cueva”, cativos do falso.
Ao contrário, Guadiana os olha com pesar, o “pesar que sintió de ver que os dejaba.”
Nesse caso, é possível que o convidado para essa missão não seja
Guadiana, mas seja Dom Quixote, não em sua versão cavaleiro louco, mas como “el
gran caballero de quien tantas cosas tiene profetizadas el sábio Merlín”.439 Parecem
estar reservadas ainda muitas realizações para Dom Quixote. Como obra de arte,
talvez. Quem, dirigindo-se a seu primo Durandarte o alerta sobre o porte de Dom
se ao primo Durandarte, lhe avisa que “unas nuevas os quiero dar ahora”,440 que lhe
tranqüiliza dizendo que essa boa nova pode servir de “alivio a vuestro dolor” ou, pelo
menos, contribuirá para não aumentar a dor, “de ninguna manera”. É Montesinos
“aquel don Quijote de la Mancha”, o mesmo que já havia feito uma aparição no
cenário do Ocidente “en los pasados siglos”, por isso usa a expressão “de nuevo” e
que “ha resucitado” agora, “en los presentes siglos”. É Montesinos que conclui
dizendo duas coisas: que “por cuyo medio y favor podría ser que nosotros fuésemos
desencantados”, e que “las grandes hazañas para los grandes hombres están
guardadas”.
439
Grande cavaleiro de quem tantas coisas tem profetizadas o sábio Merlín (2, XXIII, p.444)
440
Umas notícias, quero dar-vos, agora. (ibidem)
Vê-se, pois, que, embora se refira Montesinos ao homem Dom Quixote, para
estranho “silencio, sin hablar más palabra”,441 mais ainda reforça a suspeita de que a
de “la cueva”. Mete-se no fundo da terra tomando a forma de rio e se mostra sob a
tudo saber e de a tudo dominar. Sua tristeza transparece nos peixes que alimenta:
denunciando limites, na imagem de “ilhas”, das sete ilhas que estão no curso do rio.
A circularidade fechada das ilhas pode sugerir a ressonância do tom que reinava em
“la cueva”. Toda e qualquer verdade presente naquele mundo, para ser assim
rigorosamente dentro de limites, tudo precisava ser “claro e distinto”, evitando que,
para além de seus limites, algum resquício trouxesse a dúvida. Assim, para cada
coisa do mundo da luz, um correspondente no mundo das trevas ou, para cada
441
Silêncio, sem falar mais palavra (2, XXIII, p.444)
compreender porque estão intimamente ligados à rigidez dos conceitos fechados,
com a fixação estática no que se refere ao passar do tempo. Dentro de “la cueva”, o
tempo não passa. Ao perguntar a Sancho quanto tempo passara desde que estivera
dentro de “la cueva” e este lhe responder “Poco más de una hora”, surpreendeu-se
Dom Quixote, parecendo-lhe impossível: “Eso no puede ser [...] porque allá me
não há ser – o ser se dá no tempo. Em “la cueva” o tempo não passa, em “la cueva”
velamento, o “entre” velado que se desvela. Entretanto, o vigor misterioso do rio não
limitação com que, de ilhas fechadas, o rio se abre grande e pomposo, anunciando
novas terras. A contradição está tanto na tristeza melancólica de suas águas, como
nos peixes que, nem na abertura, entrando em Portugal, ganham delicadeza e sabor
esperar que Guadiana exultasse com essa potência espetacular. Sua manifestação
dia, mais avançava pelo tempo e pelo espaço, na ânsia de reinar absoluta. Leiamos
442
Isso não pode ser [...] porque lá anoiteceu e amanheceu e tornou a anoitecer e amanhecer três vezes (2, XXIII, p.445)
a seguinte citação, pois ela nos dirá a personagem que a cada dia mais intrépida
totalizante. Desse modo, sem o “entre” não há águas que operem o milagre do vigor
o povo explica o percurso e configuração do rio. Com essa mesma narração, a obra
que lhe dá certa relevância frente a outros órgãos. Por isso chegamos a pensar ser
levou Durandarte a ter o seu coração arrancado estivesse pautada no amor “que
contar que era um rito monocórdio, repetitivo e igual de todos os dias; sem novidade,
443
CASTRO M. A. Interdisciplinaridade, dimensões poéticas. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
n.164, p.8-9, 2006
444
Que leveis meu coração / aonde Belerma estava” (2, XXIII, p.443).
A própria Belerma, a quem foi dedicado o coração de seu apaixonado ou era
feia, ou as olheiras e deformidades que apresentava seu rosto eram resultado das
Vê-se que, nem as homenagens tão sublimes a seu amado, que têm como
deformidades de seu rosto; esse quadro pode ser lido como um aniquilamento total
da vida: em primeiro lugar, porque o jogo contraditório que, ao mesmo tempo, num
coração, o símbolo da vida, aquele homem, ainda que em carne e osso, estando
sem coração, está sem vida. É assim também, sem vida, que transcorre a cena em
“la cueva”: sem vigor, sem mistério; as coisas daquele mundo são estáticas,
perderam o dinamismo da physis. Pode essa vida ser, no máximo, vida vivida, mas
alocar novas experiências, não existe na vida de Belerma. Nada mais existe em sua
vida, além da repetição monocórdia, a repetição daquela experiência única que tem
445
Más noites e piores dias que naquele feitiço passava (2, XXIII, p.444)
446
Não pretendemos descartar outras possibilidades. Esse quadro apresenta contornos medievais. Pode remeter-nos para a
vassalagem amorosa e ao amor legado como prisão, componentes todos dos preceitos poéticos e teóricos medievais: o
“morrer de amor”, a vivência da coita amorosa, caracterizada, inclusive, pela insônia. Entretanto, a insônia e as olheiras são
somente imagem que possivelmente esconde uma questão, único motivo que pode justificar o espaço conquistado na obra.
Não é possível que insônias e olheiras que continuam ainda ocupando os espaços pós-modernos como referenciais ainda
ligados também ao amor, mas ao amor em sua significação de verdade (basta viajar num trem da Rede Ferroviária Federal às
4.00h da manhã para comprová-lo), não é possível que assim permaneçam: simples imagens. Se as olheiras e a insônia
persistem até os nossos dias, significa que não podem estar presentes na obra como uma simples referência a um modo de
viver daquela época, pois se persistem em outras épocas [...]. Nesse caso, pressentimos nesse par-referência – olheiras e
insônia, um pulsar vigoroso, insistente, insistindo em passar de simples referência-realização à imagem-questão. Como
imagem, o par se desdobra em amor, este bem mais imagem que referência, ou melhor, por ter mais vigor que o par anterior,
mais nos aproxima da resposta, a ponto de trazer-nos à memória o fragmento 123 de Heráclito “Physis kryptestai philei”: Ainda
que consideremos a cena de Belerma, expressão impregnada de um viver medieval, vemos que nele se concentra uma
questão que clama ainda por resposta. E é essa resposta que tem estado resguardada na obra (a salvaguarda da obra) para
anunciar o que, por trás dessa prosaica imagem olheira-insônia, na obra está em obra da verdade. E é essa verdade que
amplia, não só a imagem olheira-insônia aos tempos pós-modernos, mas a imagem-questão do amor, para além de “una
cueva”, para além do casal Durandarte e Belerma, para além dos preceitos teóricos e poéticos da Idade Média. Só não está a
questão, para além do homem. A natureza ama esconder-se – o desvelante ama o velante – o desvelante apropria-se do
velante – o desvelar apropria-se do velar. Essa é uma questão do homem, estar cheio de olheira e insônia, não de amor, mas
de tanto “consumir-se”, de tanto “fazer” sem amor, de tanto se esquecer do ser.
lugar diariamente em sua vida – o rito-lembrança, representado pela revisitação de
símbolo, o coração não tem sentido em “la cueva”. Apartado do corpo o coração,
perde-se o elo vigoroso do “entre”. E não vai adiantar; ainda que se repita
eternamente o ritual, por mais que esteja o coração estabelecido como o “centro da
vida”, sem a conexão do “entre”, não há espaço para que a dis-puta ganhe seu
próprio Dom Quixote, acometido ainda por suas crises de cavaleiro-filósofo, exige
que Montesinos não confunda sua amada com mais ninguém, estabelecendo limites
estritos para cada coisa que, como a sua Dulcinea, “sin par”, tem lugar no mundo.
processo que possa ter lugar no “inter”: começando pela proximidade maior que
uma palavra; com esse discurso, Dom Quixote anula qualquer possibilidade de
ambigüidade.
de renúncia: “cuatro días en la semana” Belerma “con sus doncellas [...] hacían
vivida por Dom Quixote: enquanto fora de “la cueva” tudo se passou em “poco más
447
Quatro dias na semana [Belerma] com suas donzelas [...] faziam aquela procissão (2, XXIII, p.444)
de una hora”, dentro “anocheció y amaneció, y tornó a anochecer y a amanecer tres
veces”, sem que precisasse comer nem dormir. Esse estranho, mais para o
Dulcinea vai, em nome de sua ama, pedir “seis reales” emprestados a Dom Quixote,
foi tal que o próprio Dom Quixote dela duvidou: “¿Es posible, señor Montesinos, que
crítica que precisa extrapolar pelo exagero, não deixando escapar nenhum ente nem
um ente tão prosaico escapa; até o dinheiro com suas ingerências tem no
pensamento seu lugar reservado e prova seu poder de ganhar forma como
que ali se configurou está dentro da lógica mais ordinária: perdido o “entre” onde o
Todo o capítulo está montado entre a mentira e a verdade, sem que nada se
defina. Novamente caberia a pergunta circular de Dom Quixote: “¿Puede ser eso
mentira?”450
Finalizaremos, portanto, a viagem de Dom Quixote, pois tudo o que mais aqui
448
Sua palavra de devolvê-los com muita brevidade (2, XXIII, p.447)
449
É possível, senhor Montesinos, que os encantados principais padeçam necessidade? (ibidem)
450
Pode isso ser mentira.
que Cide Hamete se encarregara de, antes mesmo de iniciá-lo, alertar o leitor, não
hora da morte, o que aumenta ainda mais em importância a mentira daquela história.
“por parecerle que convenía y cuadraba bien con las aventuras que había leído en
sus historias”451. Entretanto, o verbo “cuadrar” parece ter sido selecionado, tendo em
adecuado”. Além disso, Cide Hamete, mesmo depois da confissão de ser mentirosa
a história inventada por Dom Quixote, lança argumentos para não acreditar em dita
confissão: diz ter sido a história contada, muito detalhada, com todas as
circunstâncias muito bem explicadas; que Dom Quixote não poderia fabricar uma
história caiu como uma luva para a situação da verdade, podemos interpretá-la como
“fazer”. Trata-se de uma verdade, acima de tudo, útil, do mesmo modo que os livros
que publicava “el primo”, o homem que conduziu Dom Quixote a “la cueva” e que se
451
Por parecer-lhe que convinha e encaixava bem com as aventuras que havia lido em suas histórias (2, XXIV, p.448)
ter a certeza de que “ha de ser útil el tal libro a todo el mundo”,452 o primo sentia-se
seguro o suficiente para publicar. Sente-se, também, nessa história, uma intenção
de utilidade.
publica matéria útil. Isso nos coloca, mais uma vez, diante da verdade-adequação.
Foi assim que Aristóteles deu com a essência das coisas. Dentre todas, “a finalis”
vários pontos de vista, e abri-lo ao máximo de questões. A validade aqui está, não
farto e aberto, incidências que remetem a uma única questão. Não há dúvida de que
O episódio está dentro dos moldes de Platão. Apesar de dizer que descrevia
foi capaz de trazer a questão à atualidade. Só desse mesmo modo, poderá ser
o que nos vem de imediato é a célebre caverna de Platão; com isso já tínhamos
acenado desde o início, onde se diz: “Voltemos à caverna, onde tudo começou”.
452
Há de ser útil o tal livro a todo mundo (2, XXII, p.432)
Sem contar com a declaração de Dom Quixote de que “todos los contentos desta
a saída: “no respondía palabra don Quijote; y sacándole del todo, vieron que traía
cerrados los ojos, con muestras de estar dormido [...] volvió en si [...] como si de
com a comprovação de todo dito. E com Cide Hamete não é diferente, sua estratégia
restrição ao episódio de “la cueva” dizendo: “no le hallo entrada alguna para tenerla
fuera de los términos razonables”.456, para logo a seguir, entretanto, não desfazê-la
por completo, mas acenar com um dado que, segundo ele, faz Dom Quixote
levantando, inclusive, a única situação que poderia dar margem a esse deslize – a
mentira: só se o provocassem seria possível mentir, mas, como não era esse o caso,
Cide Hamete não acredita que Dom Quixote tivesse tanta imaginação para, não
tendo vivido realmente aquelas situações dentro de “la cueva”, pudesse “fabricar en
453
Todas as alegrias desta vida passam como sombra e sonho (2, XXII, p.440)
454
Sobreveio me um sono profundíssimo (2, XXIII, p. 441)
455
Não respondia nada Dom Quixote e puxando-o de todo, viram que trazia os olhos fechados, com mostras de estar
adormecido [...] voltou a si [...] como s de algum grave e profundo solo despertasse (2, XXII, p.440).
456
Não acho entrada alguma para tê-la como verdadeira (2, XXIV, p.448)
457
Por ser tão fora dos termos razoáveis (ibidem)
tan breve espacio tan grande máquina de disparates”458. Consideranto que, sem ter
de Dom Quixote tamanha invenção, como se justifica o que ele conta, como
contudo, é o jogo de mentira e verdade com que provoca Cide Hamete o leitor. O
fatos, para garantir a realidade da obra de arte. Se Dom Quixote mentiu ou não
mentiu, se a história que inventou está ou não está cheia de disparates, se isso a
torna falsa ou não, se a mudança da versão de Dom Quixote na hora da morte altera
ou não a verdade da obra, nada disso é da alçada de Cide Hamete, e nem a ele
compete dar conta. Sabedor disso, ele confessa: “que yo no debo”.459 Confessa não
só que não deve, como também confessa seu esgotamento nessa empresa
Por outro lado, não será a verdade da obra franqueada pelos esquemas
racionais. Ainda que Cide Hamete assim julgue a aventura de “la cueva”: “no me
hallo entrada alguna para tenerla por verdadera, por ir tan fuera de los términos
leitor. É a esse que acaba sucumbindo, entregando-lhe nas mãos aquilo que a ele
compete: “Tu lector, pues eres prudente, juzga lo que te pareciere [...]”.461 Cabe ao
leitor, do mesmo modo que, como louco, tentava Dom Quixote no início da obra,
458
Fabricar em tão breve espaço tão grande máquina de disparates (2, XXIV, p.448)
459
Que eu não devo (Ibidem)
460
Nem posso mais (Ibidem)
461
Tu leitor, visto que és prudente, julga o que te parecer (Ibidem)
enquanto lia “los requiebros”462 de Feliciano de Silva, tentando “desentrañarles el
dos fatos; só é verdade o que é passível de evidência. E quando isso não acontece,
o esforço é ainda maior, no que se refere a garantir a confiança: chega-se até a jurar
com essa intenção, e quando isso não é suficiente, convocam-se autoridades que
dêm garantias. Essa tendência chega a tal ponto que, ao reconhecer, numa taberna,
cervantino, Dom Quixote o aborda. É Dom Álvaro de Tarfe. Este, diante da pressão
do cavaleiro e de seu escudeiro, declara jamais ter estado envolvido nas histórias
também que “no era aquel que andaba impreso en una historia intitulada: “Segunda
parte de don Quijote de la Mancha”465 não basta para Dom Quixote. Ele quer
garantias e testemunhas. Para isso chegam “el alcalde del pueblo [...], con un
escribano, ante el cual alcalde pidió don Quijote, por una petición, de que a su
derecho convenía que don Álvaro de Tarfe [...]”466 ali, na presença de todos,
462
Floreios.
463
Desentranhar-lhes o sentido (1, I, p. 37)
464
E volto a dizer e afirmo que não vi o que vi nem passou por mim o que passou (2, LXXII, p.691)
465
Não era aquele que andava impresso em uma história intitulada: ‘Segunda Parte de Dom Quixote de La Mancha’ (Ibidem)
466
O alcaide do povoado [...], com um escrivão, diante do dito alcaide pediu dom Quixote por uma petição de que a seu direito
convinha que dom Álvaro de Tarfe (2, LXXII, p.692)
Chegamos até a verdade, a primeira e grande questão pela qual, mesmo sem
perceber, Dom Quixote foi tomado. Bem se sabe o que o mobilizou a esse
empreendimento do 2º. Périplo - sondar o seu tempo, para dele arrancar a verdade.
tamanha confusão? Que verdade tão crucial persegue Dom Quixote que, de tanto
acabo de conocer que todos los contentos desta vida pasan como sombra y sueño,
todos os que dentro de “la cueva” ficaram: “¡Oh desdichado Montesinos! ¡Oh mal
ferido Durandarte! ¡Oh sin ventura Belerma! ¡Oh lloroso Guadiana, y vosotras hijas
de Ruidera, que mostráis en vuestras aguas las que lloraron vuestros hermosos
ojos.468
Em sua primeira fala está, tanto o resumo da constatação do que afligia Dom
Quixote desde o início deste Périplo, bem como sua consciência de como isso
Para viver todos “los contentos” da vida, todas as coisas boas da vida, tudo
aquilo a que tem acesso o homem na relação com o mundo (e não esqueçamos,
para ser é preciso ser-no-mundo), todas essas coisas só podem ser vividas ou
falsamente, considerando que são sombras e que, por serem sombras, não são
verdadeiras. Para viver, também, todos “los contentos de esta vida”, as coisas boas
da vida no mundo, aquilo a que tem acesso o homem na relação com o mundo, só
porque se supôs serem duvidosas, essas coisas boas da vida também não podem
ser vividas porque, enquanto são sonho, não são verdade, passando a ser verdade,
467
Agora acabo de conhecer que todas as alegrias desta vida passam como sombra e sonho, ou se murcham como a flor do
campo (2, XXII, p.440).
468
Oh, desditado Montesinos! Oh, mal ferido Durandarte! Oh, desventurada Belerma! Oh, choroso Guadiana, e vós folhas de
Ruidera, que mostrais em vossas águas as que choraram vossos formosos olhos (ibidem)
somente quando lhe extraem todo o sumo irreal, todo o suco falso, toda mentira, até
fazê-la murchar, do mesmo modo como murchou “la flor del campo”. Para viver “los
contentos de esta vida”, não importa se fica murcha a flor do campo, desde que dela
verdade será, então, aquilo que a mente pode arrancar do sumo do real, que por
considerou mentira.
que não seja a clara e distinta, mesmo que, para isso, ela seja impalpável e abstrata;
mesmo que, para isso, ela arranque todo o vigor das coisas do mundo.
A única coisa que não pode restar é resquício qualquer de dúvida que
Joga também “la cueva” com mundos da lucidez e da loucura. Nesse caso, há
uma inversão:
Bien se estaba vuestra merced acá arriba con su entero juicio, tal Dios se lo
había dado, hablando sentencias y dando consejos a cada paso, y no
469
agora, contando los mayores disparates que pueden imaginarse [...] que
hayan trocado el buen juicio de mi señor en una tan disparatada locura [...]
que vuestra merced mire, y vuelva por su honra, y no de crédito a esas
470
vaciedades que le tienen menguado y descabalado el sentido
469
Bem estava vossa mercê aqui encima com seu inteiro juízo, como Deus o concedeu, falando ditames e dando conselhos a
cada passo, e não agora contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446)
470
Que tenham mudado o bom juízo de meu senhor em um tão disparatada loucura [...] que vossa mercê olhe, e volte por sua
honra, e não de crédito a essas vacuidades que lhe têm minguado e descarrilhado o sentido (ibidem)
Fora de “la cueva”, mundo da lucidez; dentro de “la cueva”, mundo da loucura.
cueva”, esteve em contato com o mais profundo do ser que lhe deu acesso à
Quixote pode dar andamento às coisas de sua vida, só assim pode prosseguir para
esse é para Sancho, o mundo da lucidez. Já o que aconteceu em “la cueva”, fugindo
espaço ao tempo.
de “la cueva”, Dom Quixote não insiste e lhe consola dizendo compreender sua
algunas de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aqui he
contado”.471
Não é a primeira vez que Dom Quixote faz menção ao tempo, “como otra vez
he dicho”; disso já falara outras vezes, indicando uma espera necessária que só no
471
Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que
aqui contei (2, XXIII, p.448)
futuro esclarecerá pontos difusos, ampliando assim o espectro da verdade: “he
contado, cuya verdad ni admite réplica ni disputa”,472 essa verdade que, ainda em
referindo Dom Quixote é, de tal monta, que seu poder é anunciado com a seguinte
Sancho. A reprimenda de Dom Quixote anuncia a sua causa: “todas las cosas que
compreender não o que aconteceu dentro de “la cueva”, pois isso é só superfície. A
“Cueva de Montesinos”:
[...] porque lo que he contado lo vi por mis propios ojos y lo toqué con mis
mismas manos. Pero ¿qué dirás cuando te diga yo ahora cómo, entre otras
472
Contei, cuja verdade nem admite resposta nem desculpa (2, XXIII, p.448)
473
Todas as coisas que têm alguma dificuldade parecem-te impossíveis (Ibidem)
474
Creio – respondeu Sancho – que aquele Merlin ou aqueles encantadores que encantaram toda chusma que vossa mercê
diz que viu e com quem falou lá embaixo, encaixaram-lhe na imaginação ou na memória toda essa máquina que nos contou e
tudo aquilo que ficou por contar (2, XXIII, p.446).
infinitas cosas y maravillas que me mostró Montesinos, las cuales despacio
475
y a sus tiempos te las iré contando en el discurso de nuestro viaje.
E mais:
[...] pero andará el tiempo, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas
476
de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado”
Mancha. Os dois exemplos deixam marcado o tempo. No tempo diz Dom Quixote
Essa viagem já fora realizada no 1º. Périplo, é verdade479. Mas, se cura não
não importa. Importa é o que diz Guimarães Rosa, identificando a travessia com o
percurso do “entre”.
tempo ôntico, “poco más de una hora”, tempo que se desdobra em múltiplas
ampliações. Essas ampliações vão, desde três dias: “porque allá me anocheció y
cruzou dezenove séculos. Embarcou como filósofo e, no final da viagem, quase não
475
Porque o que contei eu vi com meus próprios olhos e toquei com minhas próprias mãos. Mas, que dirás quando te diga eu
agora como entre outras infinitas coisas e maravilhas, que me mostrou Montesinos, as quais devagar e a seu tempo irei
contando no decurso de nossa viagem (2, XXIII, p.446)
476
Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que
aqui contei (2, XXIII, p.448)
477
Infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446)
478
Não percamos de vista que o ser se dá no tempo.
479
Afinal, não esqueçamos que os Périplos são viagens cíclicas, empreendidas nos círculos hermenêuticos que nunca se
esgotam.
desembarca. Agora compreendemos o aviso que nos tinha dado Manuel Antonio de
Castro:
Seriam esses dezenove séculos, “los detestables siglos” a que se refere Dom
temeroso de ter perdido seu amo, “lloraba amargamente”, até o momento de seu
regresso de “la cueva” quando disse: “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor
o temor de Sancho não encontra sustentação: Como era possível não se libertar de
homens, não só aos do interior de “la cueva”, mas a todos os que também fora se
encontram na mesma condição – são a casta dos homens encantados pelo poder da
O modo como Dom Quixote regressou de “la cueva” nos obriga a deixar um
sacudieron y menearon, que al cabo de un buen espacio volvió a sí”,482 Dom Quixote
480
CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto:
Veredas, 1999, p.327.
481
Seja vossa mercê muito bem retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficava lá para casta (2, XXII, p.440)
482
Tanto o viraram e reviraram, sacudirem e mexeram que ao fim de um bom tempo, voltou a si (Ibidem)
voltou afinal, conseguiu libertar-se de “la cueva”. Depois de experiência tão radical,
Ao desvendar a verdade de seu tempo, Dom Quixote percebe que tudo tinha
possível que o filósofo, que ao interior da caverna voltara, para resgatar os que ali
ficaram, não mais conseguisse sair. Não se tratava mais, entretanto, da velha
caverna, a viagem fora mais profunda, Dom Quixote fora ao mais profundo de si
hermeneuta, essa passagem, uma simples transformação não realiza, porque não
seja aqui, o início do 2º. Périplo, só agora as mutações pelas quais passou Dom
ela não se manifesta de “chofre”; ela vem aos poucos, por isso só agora a
uma pré-compreensão, como um simples “pegar no ar”, até seus níveis mais
483
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326
profundos. À medida que se vai investigando, vai-se compreendendo e
aprofundando cada vez mais. O mais importante é saber que ela sempre existe; por
motivadora do 1º. Périplo, retomada neste, e que traz à pauta mentira e verdade?
rever o “com” do 1º. Périplo; e verifica que não se trata do mesmo “com”
exatamente. Esse “com” foi percebido por Dom Quixote lá mesmo, dentro de “la
Luengos tiempos ha, valeroso caballero don Quijote de la Mancha, que los
que estamos en estas soledades encantados esperamos verte, para que
des noticia al mundo de lo que encierra y cubre la profunda cueva por
donde has entrado, llamada la cueva de Montesinos: hazaña solo guardada
484
para ser acometida de tu invencible corazón y de tu ánimo estupendo”
Mas que encantamento é esse que em “la cueva” os mantém? Por que “la cueva” é
esperam? A prisão dos que estão em “la cueva” é diferente da prisão da “outra”, uma
célebre, a caverna sobre a qual nos conta Sócrates, no mito485. De que tipo de
aprisionamento encantado se trata este? E por que eles esperavam, presos neste
encantamento, por Dom Quixote? Por que deve Dom Quixote levar a verdade sobre
484
Longo tempo há, valoroso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, que os que estamos nestas solidões encantados
esperamos ver-te, para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a profunda cova por onde entraste, chamada cova
de Montesinos: façanha reservada apenas para ser tentada por teu invencível coração e por teu ânimo estupendo.
2, XXIII, p. 442)
485
PLATÃO. A República. Livro VII. São Paulo: Martin Claret, 2001 (Coleção A Obra Prima de cada autor).
Fica evidente a responsabilidade de Dom Quixote, no tocante a seu papel
frente aos outros homens. Não se trata, como no 1º. Périplo, de dar conta do seu
próprio; já não é o seu ser que está em jogo. O que está exigindo atenção de Dom
É preciso ficar atento ao concurso e dele participar. Para isso, a função de intérprete
concorrência. Se não é o seu ser que está em jogo, nada mais razoável que
interprete “com”.
Seu trabalho de intérprete consta de checar, no que circula pelo mundo, o seu
valor. Isso só pode ser visto nas relações com os homens. Nessas relações
acontece a grande negociação: o que fica e o que cai; o que permanece e o que
onde, depois de observação atenta e avaliação criteriosa, são tirados os valores que
poderão traçar o perfil do que para o homem tem, realmente, importância e valor no
individualidade para o coletivo. Ter ouvido a voz da consciência fez de Dom Quixote
um homem comprometido não só com os homens de seu tempo, mas com o homem
que o teria levado a essa mudança de rumo se, uma vez descoberta a sua essência,
partir do eu singular porque, desse modo, a passagem para explicar o que é história
acaba não se construindo. Daí a errância assumir também outra dimensão – é
para o homem como pre-sença histórica. E o existir singular do homem perde para a
existência histórica.
já encontrou da forma que é, e que compartilha com os demais seres humanos. Esta
cada vez mais, o tom que ganha o acento. Agora já não é um só homem particular,
errando no mundo; é “com”, é com toda cultura, com toda uma existência histórica.
alemão Heidegger é famosa por uma estranha reviravolta (Kehre), ou seja, uma
nosso 1º. Périplo ao 2º. Périplo reflete, aqui, de certo modo, as mudanças no
busca por sua própria singularidade, mas Dom Quixote como hermeneuta, como
486
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2.
487
Ibidem.
aquele que quer entender seu mundo e seu momento histórico: Dom Quixote como
hermeneuta da modernidade.
questão do ser a partir do único ente para quem há ser – o homem, entendido como
virada por que passa sua obra em meados da década de 30,489 a questão passa a
ser posta de forma mais ampla, agora em confronto com a tradição e a história, na
no 2º. Périplo, veremos que a disposição com que Dom Quixote compreendeu,
seu tempo, precisa estar atento a esse falar. Sabe que é importante sua nova
missão: o hermeneuta, aquele que por saber interpretar e predicar, está autorizado a
Quixote. Os exemplos são claros: ainda que partam todos da loucura por oposição,
488
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2.
489
Cf. INWOOD, Michael, Dicionário Heidegger. Trad. Luisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Do mesmo modo que nos surpreendeu a descoberta do verdadeiro mal de
__ __
Dom Quixote a privação da habilidade do questionar , surpreende, agora,
Com esse instrumental, fica definida a obra como o transitar de um louco que, sem
que só lhe serão acessíveis, graças à força de seu braço e ao manejo de sua
espada.
Essa é a versão, cavaleiro de Dom Quixote: o louco que precisa ficar louco,
“por no poder menos”;490 o louco que é pura ação - “soy loco en mis acciones”;491 o
louco que precisa alistar-se na cavalaria para “andar por el mundo enderezando
filósofo.
490
Por falta de alternativa. (2, XV, p.397)
491
Sou louco em meus atos.
492
Desfazer agravos.
Nesse caso, Dom Quixote, pelas características mais evidentes na obra, em
sua versão cavaleiro, ocupa o nível mais superficial; atua somente na superfície. E é
nessa superfície que transita, ora movido por seus próprios passos, ora trotando nas
patas de Rocinante. Nesse nível, quem atua é o cavaleiro espanhol que tem, nos
universal, ideal do Renascimento, homem sem pátria; aquele a quem lhe cabe
filósofo.
mobilidade, a começar por aquela que dava acesso ao exterior. É bem verdade que
também o exterior imobiliza, o simples sair de “la cueva” não libera do estático.
Basta lembrar do escudeiro Guadiana, que sai de “la cueva” sem nenhum
alterar sua trajetória: fazer seu curso afundado na terra, esperando, quem sabe, se,
seus peixes.
O dinamismo de “la cueva” é reduzido ao estático, e o homem é
contrapartida: a liberdade.
letras: quem enfeitiçou o homem foi o próprio homem.493 E disse mais: disse que
esse homem que ao próprio homem submeteu, de nada sabe: afinal ele não saberia
funcionam seus intestinos nem seu sistema sangüíneo.494 Mas como se deu esse
paralisado. Afinal, estava no ponto crucial de sua história; chegara ao ponto zero da
dirigir a mente na busca da verdade e como garantia válida para toda possibilidade
conhecimento. A partir daí, a metafísica moderna acaba por ganhar nova face: a da
compreender para bem-dizer. Para alertar o homem que com ele divide espaço no
mundo, elevando-o à categoria de ser histórico, além de saber, precisa saber dizer.
493
C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: Livro do filósofo. Porto: Rés, 1984.
494
C.f. Ibidem.
Como foi possível chegar-se a esse ponto crucial? Quem alimentou o Ideal
metafísico que, mesmo de dentro de “la cueva”, reuniu força e poder, para avançar
causalidade.495
Ainda que não quisesse, assumira em “la cueva” o compromisso: “que las grandes
hazañas para los grandes hombres están guardadas”496. É com essas palavras que
“el alcaide” Montesinos, o prefeito encantado de “la cueva” de mesmo nome, louva o
nobre e comprometedora é a outra tarefa: “[...] para que des noticia al mundo de lo
que encierra y cubre la profunda cueva por donde has entrado, llamada la cueva de
feérico onde Dom Quixote sonha e, sonhando, parece enxergar mais longe.
Conversa com diferentes seres que dão conta da geografia da Espanha e dão conta
495
C.f. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan
Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
496
Que as grandes façanhas para os grandes homens estão guardadas (2, XXIII, p.444)
497
Para que a notícia ao mundo do que encerra e cobre a profunda cova por onde entraste, chamada “cova de Montesinos”:
façanha só reservada para ser realizada pelo teu coração invencível e do teu ânimo estupendo (2, XXIII, p.442)
sonho, do qual a humanidade encantada precisa ser desperta. Como pode Dom
convocação especial para a qual Dom Quixote é chamado. Era convocado para ler e
criação”, “as várias situações” [...] de uma experiência histórica nova”, e das
situações. Só os grandes podem desempenhar tal tarefa; ler uma realidade cifrada,
captar diferenças sutis que, ao mesmo tempo que mostra, escapa na ponta das asas
do pássaro. A partir do que já viu, a partir do que já foi, Dom Quixote precisa ver e,
de alcance mais amplo: a escuta que, por sua vez, também dispensa o ouvido.
não sabe com que propósito ali entrara. Não pretende retirar ninguém do interior, e
ninguém o solicita. Sair de “la cueva” - caverna, além de não ser solução, não é essa
498
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Caderno de Letras n.11. Rio de Janeiro: Fac. de Letras, Depto de Letras
Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17.
diferença”, com a diferença do destino; e não ir “atropelando a diferença”499 O
ligada a um poder humano que sem medida foi tomando conta do mundo: a
abrindo espaço para uma relação mais direta entre homem e mundo.
Ao sair de “la cueva”, “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor mío; que ya
pensábamos que se quedaba allá para casta. Pero no respondía palabra don
Quijote; y sacándole del todo, vieron que traía cerrados los ojos, con muestras de
cueva” estivera atento: além da rígida formação da Paidéia que lhe exigia um ajuste
do olhar: que olhasse com os olhos da alma, era a lei. Além disso esteve atento à
Guadiana. Parece que ele também dispensa o ver. Quando chega à superfície de “la
cueva” não quer ver o sol, rejeita a claridade e se mete “en las entrañas de la
tierra”501, se nega a olhar “el sol del otro cielo”502. Mesmo submerso, porque não é
499
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Caderno de Letras n.11. Rio de Janeiro: Fac. de Letras, Depto de Letras
Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17.
500
Seja vossa mercê muito bem retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficaria lá para casta. Mas não respondia
palavra Dom Quixote, e tirando-o de todo, viram que trazia fechados os olhos, com mostras de estar adormecido
(2, XXII, p.440).
501
Nas entranhas da terra (2, XXIII, p.443)
502
O sol do outro sol (ibidem)
503
Voltar a seu estado normal (ibidem)
504
A determinação da nascente do Guadiana é um pouco polêmica (Rio Guadiana. Enciclopédia Virtual WIKIPÉDIA.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki /Rio-Guadiana>. Acesso em: 22 jun 2007). Alguns pensam que este grande rio brota
depois nos lagos conhecidos como “Los Ojos del Guadiana”, a cerca de 600 m de altitude, na zona de Villarrubia (Ciudad
Real), mas não é verdade. Este rio espanhol nasce antes, nas lagoas de Ruidera, a uma altitude de 1700 m, na região de La
Mancha onde, de fato, se situam suas cabeceiras mais recuadas – a pouco mais de oitocentos quilômetros da foz, na fronteira
com Portugal. Os Olhos do Guadiana são, então, na verdade, um regresso à superfície de águas de sua bacia que, infiltrando-
se em terrenos calcários, muito propícios à circulação subterrânea, vinha já correndo desde antes. Não pode ser gratuita,
portanto, a denominação “Olhos do Guadiana” integrada a esse contexto mítico.
cuando en cuando sale y se muestra”505, mais uma vez descarta a visão, não são
seus olhos que vêem, ele é que se deixa ver “donde el sol y las gentes le vean”506.
sol, Guadiana o rejeita, tanto se afundando na terra, como não mais enfrentando
claros sinais de limitação. No exterior platônico, o sol que, por mais de um milênio
se refere à sua ação segura e totalizadora. Parece que a confiança está abalada. Já
não se quer encará-lo, olhá-lo de frente. O sol e o céu que sempre estiveram à
disposição, eram insuficientes, não nutriam seus peixes, lhes faltava um “quê”, um
absoluta. É preciso sombras e meios tons para definir contornos, é preciso contraste
505
De quando em quando sai e se mostra (2, XXIII, p.443)
506
Onde o sol e as pessoas o vejam (ibidem).
cegam tanto quanto as trevas absolutas. Quando se busca um conhecimento pleno,
O que Dom Quixote está insinuando é que, para Sancho, o único mundo
ao qual só a metafísica dá acesso. É por isso que Dom Quixote diz: “como no estás
experimentado en las cosas del mundo, todas las cosas que tienen algo de dificultad
te parecen imposibles”.507
Com isso, Dom Quixote quer ampliar os limites do mundo. Sancho não ter
ser especial para tal privilégio, que Sancho não faz parte do grupo de privilegiados,
É óbvio que não. Isso fica claro na abertura que imediatamente Dom Quixote
dá ao tema, quando diz: “pero andará el tiempo [...] y yo te contaré [...] que te harán
creer”. Com essa abertura, Dom Quixote está dando o passaporte a Sancho para
que ele também embarque nesse mundo e com ele possa também fazer a viagem.
Uma viagem-presente dos deuses a todos os homens. Para terem esses homens
essa busca de uma verdade e uma clareza absolutas. A sabedoria do rio, na medida
507
Como não estás experimentado nas coisas do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade parecem-te impossíveis
(2, XXIII, p.447)
pode se mostrar. Mas apesar dos contrastes entre esses momentos, o caminho do
Por isso, se esconde, por isso precisa alternar a exposição à luz com o
esconder-se dela. Não há, nesse proceder, uma imposição, um tentar arrancar nada
do ser: o ser se dá na espontaneidade, do mesmo modo que o rio que, seguindo seu
curso natural, só se mostra por pura determinação natural, uma vez que “no es
posible dejar de acudir a su natural corriente”. Deixar-se iluminar pela luz “de cuando
que o mistério se abra e venha à luz ”donde el sol y las gentes le vean”; atitude
que vê: “Viajante dos dias e das noites, o cientista só tem olhos para os dias e para
a claridade dos dias nas disciplinas”509. Na ânsia de esclarecer, não percebe que é
Não percebe que essa falsa aparência é o sol, no máximo de seu retraimento,
“embora seja mais presente do que as presenças que parecem ser os dias”510.
508
Porém, como não é possível deixar de atender à sua corrente natural, de vez em quando sai e se mostra onde o sol e as
pessoas o vejam (2, XXIII, p.443)
509
CASTRO M. A. Interdisciplinaridade, dimensões poéticas. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
n.164, p.21, 2006
510
Ibidem.
Guadiana, entretanto, não fica o tempo todo na luz, porque reconhece, no
Não é ele quem esforça o olhar, expondo-o à sua intensa luminosidade. Guadiana,
simplesmente, deixa que “el sol y las gentes le vean” e que sua luz ilumine. Talvez,
Guadiana, no final das contas, é quem liga as duas pontas. E o faz pela
negação, negando a luz exterior da caverna, não lhe dirigindo o olhar, rejeita a
demais que ali seguem, dentro da caverna, prisioneiros das trevas. Por outro lado,
em sua segunda versão, “la cueva”, toda iluminada em seu interior, representando a
também não a acolhe; caso contrário, de seu interior nem teria saído. A prova de
que rejeita também a segunda versão de “la cueva”, aquela que, por seu poder de
sedução a todos aprisionou em seu interior, é que Guadiana dela se retira, com
muito pesar. Não por ter conquistado a liberdade, mas porque em seu interior
permaneciam todos os homens seus semelhantes: “fue tanto el pesar que sintió de
encantamento, Guadiana, no máximo, retoma seu lugar mítico, sem, contudo, além
de muito lamentar, a nada mais se dispor. Não era a Guadiana que lhe cabia
dois mundos; mundos que permanecem separados, sem relação um com o outro.
Um é o mundo onde se encontram todas as verdades, e que deve ser acionado para
dali retirá-las, mesmo que desse mundo as verdades saiam murchas, como “la flor
marchita”, não importa, desde que sejam claras e evidentes. O outro mundo é o
mundo real, o mundo das realidades concretas. Há um mundo essencial, onde está
“outros mundos”.
descobre que um desses “outros mundos”, aquele pelo qual tanto lutara no 1º.
Périplo para preservar, esse mundo está fora do homem; como o comprova
do olhar, para que se captasse, com a alma, o que cada coisa trazia e oferecia de
511
Foi tanto o pesar que sentiu de ver que os deixava (2, XXIII, p.448)
sua essência, embora de forma meio velada, e que nessa essência captada estava
tomar a “coisa” e submetê-la aos esquemas do seu tão poderoso pensamento, para
dela arrancar o que nela há de essencial. Isso acontece porque, só esse “arrancado”
será a sua verdade. E que desse arrancado, pode-se sempre arrancar mais e mais
essa realidade acaba sendo descartada. Até porque, depois de submetida aos
Essa lição que obteve na prática, no interior de “la cueva”, a viveu enquanto
foi possível sair de “la cueva”-caverna com essa grande verdade. Entretanto, faltava-
lhe ainda checar como toda aquela verdade encontrava ressonância fora da
caverna.
não pode “atropelar a diferença”, mas dela precisa falar aos homens. Parece que
acertamos na opção interpretativa contida no alerta de Dom Quixote: “no soy loco en
lo que hablo”,512 Pelo menos nesse primeiro estágio, está contemplada nossa
interior de “la cueva”, merece cuidado especial. Afinal, é preciso que todos nele
acreditem.
Aquele temor somente aventado como hipótese, no 1º. Périplo, que o motivou
compreender o que na verdade era. Não era temor, mas angústia, esta também
apresentada no 1º. Périplo como a experiência mais radical vivida pelo homem. Para
morte, mas sim do horror do nada, aquele nada sobre o qual o ser do homem se
fundamenta. Pode parecer estranho que Dom Quixote tenha experienciado duas
Cura jamais se esgota, o viver a radicalidade da angústia não pode ser único entre a
vida e a morte. Além disso, a mudança empreendida por Dom Quixote, que lhe deu
origem como ser ficcional, é radical o suficiente que mereça ser classificada como
de-cisão.
512
Não sou louco naquilo que falo.
513
HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Editado por Medar Boss. Trad. Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida
Prado. Petrópolis: Vozes, 2001.
A experiência do “nada” encontra parâmetro no taoísmo que diz estar a
essência da roda, não em seus raios, mas sim no “nada”, de onde se distribuem os
na aparência”.514 Seu significado mais comum abre para uma melhor compreensão:
mais pleno, no entanto, é “doxo” – “ensino e conhecimento do [...] ‘para’ – entre, que
está junto”.
mundo e achando que poderia dispor dele a seu bel-prazer. Na condição nascente
verdade.
Acontece que precisou que muito tempo passasse para dar-se conta de que
estivera equivocado: esse não era ainda o seu lugar. E, fora do lugar, não há como
514
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1494
viver a maior grandeza em sua plenitude. A menos que se queira viver uma mera
“vida vivida”. Desse modo, só se vive a vida, enquanto pura ânsia de preenchimento,
E por que não é viável? Em primeiro lugar, não é viável porque o homem está
sequer lhe sobra espaço livre para ser preenchido. Esse espaço, por sua vez, na
um fazer.
Mas de onde vem essa entrega, de onde vem esse fazer irrefreado?
pensar metafísico engessa o mundo, o mundo engessado, por sua vez, engessa o
515
Este jogo de paradoxos será retomado no 3o Périplo, quando abordaremos a questão da obra de arte.
516
Quem tudo isso está compreendendo é o homem do Ocidente que está em crise, homem do qual Dom Quixote é imagem-
questão. Dom Quixote um homem que, atendendo ao apelo do ser, está traçando um caminho possível, um modo de
responder à pergunta essencial que a ele está sendo lançada, pergunta que só a ele cabe responder, pois se a ele lhe
corresponde a abertura, porque só a ele cabe o lugar de “entre-ser”. Como Dom Quixote, outros homens, ao longo da história
do Ocidente também se movimentaram nessa direção. Muitos homens, em momentos de crise, movidos pela disposição, ou
seja, pelo modo como o mundo se apresentava em determinado momento, encontravam, nessa disposição, a abertura que os
impeliria em direção ao ser, a abertura que era o próprio chamado do ser, chamado que atenderam todos, respondendo à
questão que os tomou, cada um à sua maneira. Momentos de crise são sempre movidos pela disposição que o homem de
cada época, estando desde sempre na abertura, vai abrir mundo, pois a crise já é o próprio apelo do ser.
“entre-ser”. Dispensado de seu lugar de “entre-ser”, perde sentido sua humanidade,
O “entre” não é nada a priori, é espaço aberto, vazio entre conceitos e teorias,
originário. É isso que nele guarda todo vigor, fazendo possível que realidades do
tem nada do que ficou velado, por isso é o grau máximo do velado, o grau máximo
“entre do conhecer só tem, como meta, o “sendo”, o que já é conhecido. Ser, acaba
sendo o ser que é conhecido. No “entre” do pensar, entretanto, o ser se deixa atrair
517
Esses textos são, em sua maioria, os publicados por Manuel Antonio de Castro, como suporte para as aulas. A
concentração maior está, no entanto, em: CASTRO, M. A. de. Interdisciplinaridade poética: o “entre”, Revista Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.164, p.7-37, 2006.
Por sua localização subterrânea e escondida, “la cueva” sugere o máximo de
velamento que, cheio de vigor, esconde a verdade. Muita verdade ali se escondia;
inclusive a identidade do cavaleiro com quem deveria travar batalha final. É por isso
grande rito de passagem que há muito aguardava Dom Quixote e, pelo qual sabia
fugir, porque não haverá como “evitar lo que por el cielo está ordenado”518.
poder da técnica. A época atual determina para os homens uma forma própria de
configurações na Idade Média e na modernidade até sua face final. Mas como
oferece?
também tem seus encantos. Aquela legião que há muito fazia suas aparições tinha
poderes superiores, semelhantes aos identificados como mágicos pela Idade Média,
que vino sobre una nube una noche [...] apeándose de una sierpe”, saía “volando
por el tejado”, e, quando saía, deixava a casa que era pura fumaça, “llena de humo”.
Num passe de mágica, dera fim à biblioteca e, “cuando acordamos a mirar lo que
518
Evitar o que pelo céu está ordenado (1, VII, p.44)
dejaba hecho, no vimos libro ni aposento alguno”. A ama de Dom Quixote a esse
mundo meio desapercebido. Nunca se sabia exatamente onde estava; agia sempre
através dos outros: sábios, gênios, etc. Quem sabe não eram todos [gênios e
em “la cueva”, está a seguinte: Dom Quixote descobre que, em seu interior, há
também um sábio; não ainda com muita precisão, mas já consegue identificá-lo em
biblioteca. Ficara sabendo que teria de lutar com um cavaleiro, “andando los tiempos
[...] en batalla singular” que não poderá ser evitada porque “por el cielo está
ordenado”.520 Se é verdade que em “la cueva” há também um sábio, quem sabe não
atribuição da identidade do cavaleiro singular com quem deverá lutar: pode ser a
todos os demais. O que fica claro e que, realmente é significativo é o tempo em que
essa batalha já está marcada: aquele inocente “mal viejo”, com que a ama identifica
platonismo.
519
Um feiticeiro que veio sobre uma nuvem certa noite [...] desmontando de uma serpente [saía] voando pelo telhado [e (...)
pura fumaça,] cheia de fumaça. [Num (...) biblioteca e,] quando lembramos de olhar o que havia feito, não vimos livro nem
aposento algum. [A ama (...) como um] velho ruim. (1, VII, p.43)
520
Andando os tempos [...] em singular batalha [que não (...) porque] pelo céu está ordenado (1, VII, p.44)
Deixemos que o tempo, que antecede a batalha, isso decida. Como não
sabem sequer o motivo pelo qual estão encantados, em “la cueva”, tanto Montesinos
assim também sugere: que só no tempo, isso será dito “y ello dirá andando los
regência do virtual, publicado por Emmanuel Carneiro Leão, no livro organizado por
“Está dominado, está tudo dominado”. Com esse verso, Emmanuel Carneiro
com aparência radicalmente diferente da técnica, por já ter “se apoderado e haver
Nesse artigo, o centro está no virtual com o qual a técnica tem também
dominado o homem “de alto a baixo”, afetando a Linguagem. É claro que esse é
521
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A
construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-84.
salvador”, na medida que “nos poderá advertir para a originalidade de todas as
Embora fosse nossa intenção cobrir todos os setores onde a técnica nos
passo, Dom Quixote se depara com uma verdade que o obriga a refletir. Se estamos
Leão mostra como ela está intimamente ligada ao agir do homem no mundo e de
522
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.).
A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.84.
interferindo na concepção ética: “Está dominado, está tudo dominado”;523 em todos
dominador de objetos, vira também objeto, em suas próprias mãos de algoz. Com a
Não tão irremediável parece a Heidegger, que propõe uma reversão: alerta o
homem para a falácia de uma ação pautada na razão e no fazer técnico; diz que ,
muito antes de o homem perseguir um agir irrefreado que sustentasse uma também
irrefreada vontade de querer afirmar-se com seu fazer sobre o real, muito antes
permanece, com a vitória estonteante do “antropos”, “em que o homem não se sente
apenas amo e senhor da natureza, mas se entende, sobretudo, como mestre e dono
Todos estavam ansiosos por novidade sem se darem conta de que o evento,
prosaico que saem as grandes revelações. Foi Emmanuel Carneiro Leão quem, na
emergência, socorreu Dom Quixote. Por seu intermédio, contaremos uma história.
Diz Aristóteles que aconteceu com Heráclito, quando num inverno, alguns turistas o
visitaram.
vítimas todos da decadência. É claro que ali, a identidade se dera mais intimamente
ambigüidade. Do mesmo modo que no 1º. Périplo, todos estavam movidos pelo
523
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.).
A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.73.
524
Idem. Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157, p. 70, abr-jun, 2004
demasiadamente interessante para ser barrado pela curiosidade. Assim, correram
cotidiano. Assim se encontrava Heráclito, perto de seu forno à lenha, assando pães.
Dom Quixote, entretanto, ficara atento a uma parte do relato, aquela que diz:
como exemplo, o quadro apresentado por Emanuel Carneiro Leão que traça o perfil
da ética na Idade Moderna: “Ao longo dos últimos cinco séculos, os modernos
textual, podemos pensar que um retorno empreendido por Dom Quixote deveu-se a
uma sinalização quanto aos riscos da nova ética que mostra sua redução quase
exclusiva ao interesse.
delas, decisões têm sido tomadas e atos praticados. Além disso, a ética também é
sua dimensão originária. Ainda que pareça distante, a ética está relacionada com o
ser e a verdade. Em seu posto metafísico, a ética vira a fonte-raiz que se localiza
525
LEÃO, Emmanuel Carneiro – Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157,
p. 73, abr-jun, 2004
526
Ibidem, p.65
num lugar próprio do qual somos apenas caminho. Desse modo, antes de significar
experiência da vida”. Ser ético então, parece simples; basta viver a verdade do ser, e
Não precisamos buscar caminhos para chegarmos à fonte, uma vez que,
e ações. Isso porque a ação não foi ainda pensada de modo decisivo. O agir só é
conhecido como produtor de efeito; efeito esse efetivo e utilitário. Heidegger, então,
Consumar o quê? Píndaro já o tinha dito: consumar o que já é e está sendo, e isso
se faz com o pensar. O pensamento não faz nem reproduz nada; o pensamento
simplesmente restitui ao ser a referência do ser que lhe foi entregue pelo próprio ser.
Esse processo conta com dois ilustres sentinelas: o pensador e o poeta. Eles
primam pela vigilância, são os grandes vigias, são pastores; são os que levam a
Não há dúvida de que, do mesmo modo que Dom Quixote, todos na Espanha
sabe que é uma dessas faces que, por tantos “detestables siglos”, obstaculiza os
527
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
caminhos da cura. Ele conhece a diferença - “Soy loco en mis acciones, pero no soy
loco en lo que hablo”528 e, por isso, quer avisar que sabe ser vítima do agir
Foi um olhar ao redor; foi um diálogo com o outro; foi, na verdade, o outro que
tornou possível essa consciência. Dom Quixote saiu por Espanha e pôs-se em
esposa e seu melhor amigo: só sabia que sua esposa era boa porque esta não
Parecendo-lhe não ser isso suficiente, crê precisar dela arrancar529 mais
conhecimento. Propõe então que seu melhor amigo a seduza, para que se possa
dela extrair mais verdade. Submetendo-a a laboratório, seria possível verificar sua
faceta de traidora pérfida, ou não. Isso lhe parecia fundamental. E assim fez,
análise, o mesmo que, segundo Dom Quixote, murchou “la flor del campo”, refazer o
Poderiam todos ter voltado atrás: a Anselmo não foram suficientes os alertas
528
Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.
529
O verbo arrancar é usado intencionalmente para marcar a necessidade ansiosa com que o homem, equivocadamente, na
condição de sujeito, acredita poder lançar-se sobre o objeto. De tal modo que sequer respeita o “outro”, seu semelhante,
submetendo-o também à condição de objeto.
que no se pueden negar, como cuando dicen: “Si de dos partes iguales
quitamos partes iguales, las que quedan también son iguales”; y, cuando
esto no entiendan de palabra, como, en efecto, no lo entienden, háseles
demostrar con las manos y ponérselo delante de los ojos, y, aun con todo
esto, no basta nadie con ellos a persuadirles las verdades de mi sacra
religión. Y este mesmo término y modo me convendrá usar contigo, porque
el deseo que en ti ha nacido van tan descaminado y tan fuera de todo
aquello que tenga sombra de razonable, que me parece que ha de ser
tiempo gastado el que ocupare en darte a entender tu simplicidad, que por
ahora no le quiero dar otro nombre, y aun estoy por dejarte en tu desatino,
en pena de tu mal deseo; mas no me deja usar deste rigor la amistad que te
tengo, la cual no consiente que te deje puesto en tan manifiesto peligro de
530
perderte
não resistiram e se apaixonaram, sem que Alselmo, o marido soubesse, traição nada
falácia do plano, e foram todos tão infelizes que, não sendo possível recompor a
unidade plena de afeto que dava a tonalidade da relação entre o trio amoroso, que
até então, nada tinha de “triângulo”, acabaram todos com suas vidas.
em dele livrar-se, acreditando que lhe basta colocar em movimento o seu agir,
suas mãos, como também das pessoas, tornando-as, de algum modo, objetos
também.
Decide que Marcela, a mulher mais bela das redondezas, deverá retribuir o
amor que ele nutre por ela, acreditando ser o bastante para realizar sua vontade, pôr
família riquíssima, mas vira pastor. É preciso deixar claro que essa decisão só se
deve a ter feito, também, igual opção, Marcela, a mulher amada. A decisão de
para aproximar-se de Marcela. A opção pela atividade de pastor que podia sugerir
relação íntima consigo mesmo, considerando ser o pastor, aquele que cuida da
Casa da Linguagem, onde habita o Ser. Entretanto, esta também foi movida por um
igualmente na mesma situação do rico e intelectual pastor: sobre todos eles “libre y
entretanto, o estigma de “la pastora homicida”, alcunha com que acaba ficando
531
E herdou grande quantidade de bens, sejam bens móveis ou terras, [...] e grande quantia em dineiro (1, XII, p.63-64).
532
Havia sido estudante muitos anos em Salamanca [...] muito sábio e lido (1, XII, p.64).
533
Livre e despreocupadamente triunfa a formosa Marcela (1, XII, p.66)
Marcela é também “muchacha y rica [...] con tanta belleza”. Ainda que todos
labradores”,534 sempre respondia que “no quería casarse”.535 Enquanto isso, seu tio
aguarda pacientemente que “entrase algo más en edad”536 para decidir casar-se
afinal. Mas Marcela, sem ter essa intenção, surpreende o tio e a todos, de-cidindo
ganado”.538 Desse modo, fica mais livre para renegar todos os pretendentes e seguir
seu caminho, caminho com claros sinais de travessia à pro-cura da Cura. Aliás de
estar bem próxima ou, quiçá em momento bem avançado nessa pro-cura.
Vê-se, então, que Marcela toma tal de-cisão, com total integridade, a mesma
que não permite que, nem saia procurando um homem para dele apropriar-se, nem
ceda às paixões doentias que todos os rapazes da redondeza alimentam por ela.
Dentre todos, Marcela é a única que está atenta ao caminho da Cura, cuidando para
seu objeto, o objeto que iria completá-lo, o plano não vingou e, acreditando ter caído
em perdição, ele acaba com a vida: “ha muerto de amores de aquella endiablada
simples, todos estão empenhados em ter e, por isso, seu agir é também da ordem
534
Ricos mancebos, fidalgos e lavradores (1, XII, p.66)
535
Não queria casar-se (ibidem)
536
Entrasse um pouco mais em idade (ibidem)
537
Aparece um dia a melindrosa Marcela feita pastora (Ibidem)
538
Pastorear seu próprio gado (Ibidem)
539
Morreu de amores daquela endiabrada moça de Marcela (1, XII, p.63)
540
Não se menciona suicídio nesse episódio. Entretanto, há sinal de que foi assim que Grisóstomo acabou com a vida. O
cuidado em apresentar o lugar onde seria enterrado é sintomático: “que mandó en su testamento que le enterrasen en el
campo, como si fuera moro”. Diz-se, no entanto, ser esse procedimento comum aos casos de suicídio __ enterrar no campo __,
embora apareça na obra de modo escamoteado: Grisóstomo escolhera aquele lugar para ser enterrado porque “aquel lugar es
adonde él la vio la vez primera”*.
* Aquele lugar é onde ele a viu pela primeira vez (1, XII, p.64)
do fazer, do industriar, do direcionar as ações aos interesses próprios. Normalmente
são pessoas mais sagazes, seus planos são mais mirabolantes. Uma grande porta
que os pais sempre cuidam que aconteça para suas filhas. Esse preenchimento
todas com destino trágico, também como Marcela, tomam a de-cisão da libertação.
contrapartida ficará sempre por conta daquele que, sentindo-se lesado, crê poder
reverter a situação, arquitetando saídas. Não importa que, nesse caso, a causa
possa ser considerada justa, o que importa é que todos estão em igualdade
realizarem o que irá locupletá-los, como fez Basílio que, no dia do casamento de sua
conta de que, de todos os que estão ao seu redor, o único que aparece como
consomem a natureza sugando “la flor del campo” até murchá-la, consomem o outro
até então estava oculto, se essa marca essencial era para o pensar grego adequada
moderna?
os modos a liberar suas forças com vistas a dela tirar toda energia e riqueza.
cuidar”. O camponês “en la siembra del grano, entrega la sementera a las fuerzas de
541
No plantio do grão, entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu prosperar. (HEIDEGGER, Martin.
La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p. 17)
542
Suas aspas movem-se ao vento, ficam confiadas de um modo imediato ao sopro deste. (Ibidem)
usina hidroelétrica jamais revelará o rio, como o moinho o faz com o vento.
homem disponha. O real e efetivo não está à mercê do poder do homem [entenda-
submissão, porque sua própria condição humana o provoca do modo mais originário.
Alguns autores são mais dramáticos, quando afirmam que nem mesmo o
de energias543. Do mesmo modo que a usina e o avião, o homem também faz parte
Entretanto, esse mesmo dado, visto por outro prisma, o promove porque, ao
mesmo tempo, ainda que de um modo menos visível, o real também provoca o
homem participa. Essa é de tal forma a sua marca que “[...] el hombre sólo puede
ser hombre en cuanto que interpelado así”.544 Vê-se então que esse provocar é
543
C.f. HEIDEGGER, Martin. La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p.20.
544
O homem só pode ser homem quando é assim interpelado. (Ibidem, p.21)
constatação se deve aos três “monstros” que já vinham represando força titânica
novidade do mundo, e não podia ser de outra maneira; as existências, mesmo sem
por exemplo, tudo está pronto para ser posto à disposição no momento mesmo da
intencional de utilidade.
de repor suas energias e em pouco tempo ela se transforma num grande torrão
não escapa. Também explorado como fundo de reserva, ele agora é “massa”,
totalmente indiferenciado e desfigurado de seu ser real, “Este homem, [...] é aquele
545
MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São Paulo: Annablume, 1999, p.164.
546
Ibidem, p.166.
547
Ibidem, p.169.
5 DO ENCANTAMENTO DA TÉCNICA AO ENCANTAMENTO POÉTICO
conduzir.
vento. Se, por um lado, não passavam de inocentes moinhos, exemplares daquela
Quem registra a inocência é o olhar de Sancho, que assim diz a Dom Quixote:
“que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que
en ellos parecen brazos son las aspas que, volteadas del viento, hacen andar la
piedra del molino”;548 entretanto, sob o olhar de Dom Quixote, são gigantes, seres
descomunais, “mala simiente”549 que Dom Quixote precisa “quitar [...] de sobre la faz
enquanto para Dom Quixote significavam bem mais, tinham outro sentido, e esse
sentido está localizado na cabeça de Dom Quixote. É o que diz Sancho: “¡Válame
Dios! – dijo Sancho. - ¿No le dije yo a vuestra merced que mirase bien lo que hacía,
que no eran sino molinos de viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros
tales en la cabeza?”551
548
Que aqueles que ali se parecem não são gigantes, mas sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as aspas
que, giradas pelo vento, fazem andar a mó do moinho (1, VIII, p.46).
549
Semente ruim (ibidem)
550
Arrancar [...] de sobre a face da terra (Ibidem)
551
Valha-me Deus! – disse Sancho – Não disse a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de
vento, e eu não podia ignorar isso, a não ser carregasse outros tantos na cabeça? (1, VIII, p.47)
Os “treinta o pocos más”552 moinhos-gigantes-desaforados dão sinais de
desdobramentos do cavaleiro com quem deverá lutar Dom Quixote: “que yo pienso,
y es así verdad, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha
uma vez, Dom Quixote reforça que esse sábio encantador Frestón tem relação com
as artes: “mas al cabo al cabo, han de poder poco sus malas artes contra la bondad
técnica, fica algo intrigante no ar – o estar esse sábio, que protege seus inimigos,
ligado às artes.
tão bem nesse processo, a ponto de mostrá-lo por dentro, invertido como num
inocente moinho, se, entretanto, não é nessa imagem que está o essencial e sim
nas questões que de seu vigor podem emanar, como atesta o exemplo de que
Quixote algo extremamente digno de pensar, logo é digno também de contra ele
lutar. Se o desdobramento exige luta, é claro que é no mundo ordinário que se vão
buscar os elementos que cumprem tal finalidade, e esse elemento entra na obra
como um cavaleiro, com o qual, desde o início da obra, tanto Dom Quixote como
552
Trinta ou pouco mais (1, VIII, p.46)
553
Que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes
gigantes em moinhos, para tirar-me gloria de vencê-los (1, VIII, p.47)
554
Mas ao fim e ao cabo, poderão pouco suas artes más contra a bondade de minha espada (Ibidem)
nós, leitores, ficamos sabendo que ele deverá lutar uma luta singular. Entretanto, na
hora da luta se efetivar, no momento exato em que Dom Quixote poderia usufruir o
êxito e a glória que lhe poderiam conferir a vitória sobre aquele cavaleiro, nesse
prosaico e ordinário, volta a ser moinho real, um mero instrumento que Sancho
ordinariamente descreve dizendo que possui “aspas, que, volteadas del viento,
gloria de su vencimiento”.
largos, que los suelen tener algunos de casi dos léguas”,556 mostra o alcance por
onde pode estender-se esse mal: “dándole una lanzada en el aspa, la volvió el
viento con tanta furia, que hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al
de Sancho.
Além disso, Dom Quixote é radical. Afirma que entrará em “fiera y desigual
batalla”, mostrando o poder desigual que vai acumulando-se na técnica, sendo por
555
Pás, que, giradas ao vento, movimentam as pedras de moinho. (1, VIII, p.46)
556
Os braços longos que costumam ter alguns de quase duas léguas (Ibidem)
557
Dando-lhe um golpe de lança na aspa, girou-a o vento com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando consigo o
cavalo e o cavaleiro que foi rodando muito maltratado pelo campo (1, VIII, p.47)
558
Tirar-lhes a todos as vidas (1, VIII, p.46)
Nossa escolha da técnica para incorporar o cavaleiro com quem Dom Quixote
precisa travar uma batalha singular se deve a uma intensa marcação à técnica na
obra.
fazendo uma crítica voraz ao fabrico da seda que sacrifica os casulos – seres vivos,
Quixote é muito mais duro e veemente: referindo-se aos instrumentos de guerra diz:
duras ofensas: “a cuyo inventor tengo para mí que en el infierno se le está dando el
Veja-se que Dom Quixote, referindo-se ao homem, iguala pensamento com vida. E
volta a repetir que os tempos em que vive são uma “edad tan detestable”,562
encerrando seu discurso dramaticamente, falando da covardia que significa uma luta
que tanto molesta Dom Quixote, em relação ao seu compromisso assumido com
559
Benditos tempos que careceram da espantosa fúria desses endiabrados instrumentos da artilharia (1, XXXVIII, p.232).
560
A cujo inventor tenho para mim que no inferno se está dando o prêmio de sua diabólica invenção (Ibidem).
561
Acaba em um instante os pensamentos e a vida de quem a merecia gozar longos séculos (1, XXXVIII, p.233)
562
Época tão abominável (ibidem)
563
Mesmo que nenhum perigo me dê medo, ainda assim me dá receio pensar se a pólvora e o estanho me roubarão a
oportunidade de tornar-me famoso, pelo valor de meu braço e o fio de minha espada (ibidem)
Hay muchas maneras de encantamentos, y podría ser que con el tiempo se
hubiesen mudado de unos en otros, y que agora se use que los encantados
564
hagan todo lo que yo hago, aunque antes no lo hacían
para o futuro; neste caso, é visível o sinal da essência da técnica. Por outro lado, se
Do ponto de vista dos amigos e vizinhos que o levam enjaulado, há também o sinal
Quixote, além de que a sua marca de loucura inviabiliza qualquer produzir. Leia-se
564
Há muitos modos de encantamentos, e poderia ser que com o tempo houvesse mudado de uns para outros e que agora se
use que os encantados façam tudo o que eu faça, mesmo que antes não o fizessem. (1, XLIX, p.300).
565
Eu sei e tenho para mim que vou encantado, e isto me basta para a segurança de minha consciência que a formaria muito
grande se eu pensasse que não estava encantado e me deixasse estar nesta jaula preguiçoso e covarde, sonegando o socorro
que poderia dar a muitos necessitados que de minha ajuda e amparo devem ter neste momento de precisa e extrema
necessidade (Ibidem).
566
Carentes e necessitados (Ibidem)
produzir serventia e produtivo é quem produz serviço. Produzir é necessariamente
fundo de reserva que não poupa sequer o homem, desde sua atuação no fazer
manual, como no mental. Parece que não satisfeito de utilizá-la nos artefatos, seu
capítulo El curioso impertinente, onde o poder mental de Anselmo é tal que vai às
hacía mal rostro a Lotario”.569 Uma história de amor que, tendo tudo para dar certo e
em tanta infelicidade que todos os nela envolvidos, não se suicidaram, mas “se le
ao lar, armam um plano com atores de uma companhia de teatro, para fingirem uma
tempo que davam “las gracias a la buena intención”571, porque tinham consciência
“carretero de bueyes que acertó a pasar por allí, para que lo llevase en esta forma:
hicieron una como jaula de palos enrejados, capaz que pudiese en ella caber
567
JARDIM, A. A dimensão poética no contexto hegemônico da técnica, p.12 (mimeo)
568
O fabricador de sua desonra (1, XXXV, p.214).
569
De propósito, fazia cara feia para Lotario (ibidem).
570
E acabou em poucos dias a vida (1, XXXV, p.217).
571
As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283)
holgadamente don Quijote”,572 além de todos, por ordem “del cura”, cobrirem o rosto
com capuzes, “de modo que a don Quijote le pareciese ser otra gente de la que en
aquel castillo [que não era castelo, era somente uma venda, um armazém] había
Tocado ainda pelo que era valor medieval, além de ser a cena realizada por
verse ayuntados en santo [...] matrimonio con su querida Dulcinea del Toboso”.575
Quixote se põe a falar com Sancho, refletindo sobre o acontecido: diz já ter lido
muitas histórias de cavaleiros andantes, mas que jamais soubera que assim
como animal: “desta manera y con el espacio que prometen estos perezosos y
naquele tempo: “siempre lo suelen llevar por los aires, con estraña ligereza,
572
Carreteiro de bois que [...] acertou passar por ali, para levá-lo dessa forma: fizeram como se fosse uma jaula de madeira
gradeada [...] na qual poderia caber folgadamente Dom Quixote (1, XLVI, p.287).
573
De modo que para Dom Quixote parecesse que era outra gente que não a do castelo que havia visto (ibidem)
574
Agarrando-o firmemente, amarraram muito bem suas mãos e pés (Ibidem).
575
Prometiam-lhe ver-se reunido em santo matrimônio com sua querida Dulcinea del Toboso (Ibidem).
576
Desta maneira e com o vagar que prometem esses preguiçosos e tardos animais (1. XLVI, p.288)
577
Sempre costumam levá-lo pelos ares, com estranha rapidez, metidos em alguma parda e escura nuvem, ou em algum
carro de fogo, ou então sobre algum hipogrifo ou outra fera semelhante (Ibidem)
Começa a ficar, então, confuso (“que me lleven a mi agora sobre un carro de
tiempos deben de seguir otro camino que siguieron los antiguos”579. Segue dizendo
que era possível que “se hayan inventado otros géneros de encantamentos y otros
Sancho, que percebera toda trama, só lhe diz que aquelas coisas que tinha
presenciado não lhe pareciam ser “del todo católicas”, comentário com o qual
concorda Dom Quixote dizendo-lhe “¿Cómo han de ser católicas si son todos
demonios que han tomado cuerpos fantásticos para venir a hacer esto y a ponerme
en este estado?”.581 E acrescenta ser tudo aquilo, que tem parte com o demônio,
pura aparência, e que se Sancho quiser nessas coisas tocar, “verás como no tienen
cuerpo [...]”582 que não são feitas de outra coisa “sino de aire”.583
essência da técnica.
localiza nas formas antigas em que, os cavaleiros encantados eram levados “por los
aires [...] en un carro de fuego [...] sobre algún hipogrifo”.584 Justifica sua
578
Que me levem agora sobre uma carroça de bois, vive Deus que me pões em confusão! (1. XLVI, p.288)
579
Talvez a cavalaria e os encantos destes nossos tempos devessem seguir outro caminho que seguiram os antigos (Ibidem)
580
Tenham inventado outros gêneros de encantamentos e outros modos de levar os encantados (1, XLVII, 288-289)
581
Como haverão de ser católicas se são todos demônios que tomaram corpos ilusórios para vir fazer isso e deixar-me neste
estado (1, XLVII, p.289)
582
Verás como não têm corpo (ibidem)
583
A não ser de ar (ibidem)
584
Pelos ares [...] em um carro de fogo [...] sobre algum hipogrifo (1, XLVII, p.288)
olvidado ejercicio de la caballería aventurera”,585 é possível que se estejam
encantados”. Acrescenta ainda que “los encantos destos nuestros tiempos deben de
Por outro lado, Sancho dá sinais de que percebera o jogo num nível mais
profundo, embora tudo esteja dirigido à superfície do diálogo que mantém com “el
encantamentos”.586 Depois desmascara “el cura”: “por más que se encubra el rostro
daquele fato da vida ordinária, Sancho, ao fazer essa referência, a está remetendo
encantamento da arte-ficção.
com o encantamento de estar preso numa jaula, por acreditar ser esse
descobrisse não estar encantado por um tipo de encantamento que, de tal modo lhe
los rostros y se disfrazaron”.590 Todos participaram da trama do fingir: “de modo que
585
O esquecido exercício da cavalaria andante (1, XLVII, p.288)
586
E adivinho para onde se encaminham esses novos encantamentos (1, XLVII, p.292)
587
Por mais que se cubra o rosto [...] por mais que dissimule seus embustes (ibidem)
588
E isso me basta para a segurança de minha consciência (1, XLIX, p.300)
589
Aquela ilustre companhia (1, XLVI, p.286)
590
Cobriram seus rostos e se disfarçaram (1, XLVI, p.287)
a don Quijote le pareciese ser otra gente”.591 Se tivermos isso em conta, o
de bois em que é conduzido, faz com ele o seguinte comentário: “yo te obedeceré en
todo y por todo; pero tú, Sancho, verás como te engañas en el conocimiento de mi
desgracia.”592
nada mais é do que o modo como foi ele encantado, violentamente amarrado,
convencimento de sua necessidade foi tal que imobilizou o rebelde cavaleiro, como
se tivesse assim agido, por sua própria vontade. É como se Dom Quixote, ao fingir,
Talvez encontremos, aqui, o ponto de conexão que liga este fato, com o
episódio de “la cueva”: ali, no fundo de “la cueva de Montesinos”, estão todos
591
De modo que a Dom Quixote lhe parecesse ser outra gente (1, XLVI, p.287)
592
Eu te obedecerei em tudo e por tudo; mas tu, Sancho, verás como te enganas no conhecimento de minha desgraça.
(1, XLIX, p.300).
que as diferencia é que “o homem não sai da caverna”593. Antes de abandonar a
É essa dicotomia que separa o mundo interior de “la cueva”, de outro mundo;
a separação que tem lugar nesse episódio, na verdade, é entre dois “outros
homem em seu interior, e dela não mais se libertar. E não podia ser de outro modo;
fundo, explorando cada vez mais o poder de seu pensamento, que culminou com a
afirmação de que fora da caverna, fora de seu pensamento, nada existe, pois, se a
condição básica para o existir é a clareza absoluta, essa só existe dentro do homem.
tiempos”595.
593
CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto:
Veredas, 1999, p.327.
594
CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto:
Veredas, 1999, p.327.
595
Desses nossos tempos (1, XLVII, p.288)
Reaparece a palavra “máquina” para corroborar essas possibilidades
apresentadas. Isso porque, é com esse próprio pensamento, que também a ciência
busca, cada vez mais e mais, clareza no conhecimento. E é com seus novos
conhecimentos que cresce com ela, também, cada vez mais, a performance de criar
de uma ingênua brincadeira sim, uma providência que deixara todos os envolvidos
compungidos sim, mas cheia de propósitos tão “dignos”596 que os fazia agradecer a
Deus, “las gracias a la buena intención”597. Essas artimanhas que aprisionavam não
de animal, Dom Quixote é submetido por outros homens, seus vizinhos e amigos até
reserva a obra de arte, é possível encontrarmos, aqui, uma abertura para outro nível
de interpretação.
“falar”
596
Desse modo, os que assim agiam com Dom Quixote, de forma tão baixa, justificavam seu procedimento: além de ser uma
ação-providência cheia de propósitos, também os deixava compungidos de terem que assim proceder. Por isso consideravam
seus propósitos dignos. As aspas talvez sejam para chamar a atenção para uma possível ironia.
597
As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283).
Se formos juntando agora as peças desse longo e complicado quebra-
acontecera; o dilema que permanece sem solução: o não saber como contar ao
mundo que “soy loco en mis acciones, pero no sou loco en lo que hablo”598; e,
dilemática em intrigante.
cresce também o que salva” –, com a palavra de Maria José Rago Campos, em
“Arte e verdade”:
598
Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.
599
CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Loyola, 1992, p.125. (Coleção Filosofia)
Acrescentemos, ainda, a imbatível força do daimon que estrutura o modo de
ponto de fazer-se valer sobre Dom Quixote, a vontade dos demais – o regresso ao
lar. Por outro, está presente na mesma cena, o dado ficção, se considerarmos que
tudo só pôde ser realizado pela providência de uma companhia de teatro que
Esses dois dados estão tão misturados, que não é possível detectar se o que
moveu Dom Quixote a acreditar na farsa e a ela aceder foi a trama maliciosa e
Visto assim, parece que vamos nos encaminhando para a solução, ou, pelo
obra, ainda permanecem. Não teria isso, alguma coisa a ver com a mentira que tanto
Não estaria aí, a chave que desvendaria o enigma perseguido por Dom
Quixote a respeito de seu modo especial de “falar”, para atender da maneira mais
sentido do agir humano, promovendo, ela mesma, a grande “virada” que possibilitará
Não estaria tudo isso que somamos, nos conduzindo, a nós e a Dom Quixote,
à chave para abrir as portas do 3o Périplo, onde a pro-cura andará na trilha da obra
de arte?
Não terá Dom Quixote descoberto a grande diferença que há entre falar e
“falar”, e assim encontrado a sua forma própria e apropriada de falar para contar,
buscando outro modo de encantar, buscando, na arte, o único e libertador
encantamento?
Capítulo III
3o Périplo
“Quién duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la
“[...] pero andará el tiempo, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas
de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado, cuya
apresentando uma obra de arte. Ele mesmo informa ter dado esse aviso mais de
uma vez: “como otra vez he dicho”. Apesar de o personagem introduzi-las com o
tempo.
encantador” que penetra na casa com todas as peripécias que sempre caracterizam
retirar-se, depois do estrago de dar fim à biblioteca de Dom Quixote, deixa recado:
600
Quem duvida que nos séculos vindouros, quando venha à luz a história verdadeira de meus célebres feitos (1, II, p.21)
601
Mas andará o tempo, como já disse, e eu te contarei algumas das que lá embaixo vi, que te farão acreditar nas que aqui
contei, cuja verdade não admite réplica nem disputa (2, XXIII, p.448)
602
A impossibilidade de localizar a frase, que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue
procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos.
603
diabo – um encantador – nuvens – serpentes – dano – dono daqueles livros
604
Deixava feito o dano naquela casa que se veria (1, VII, p.44)
Mais uma vez, com “vería”, aparece o tempo jogado para “depois”, como um
referente de peso, referente corroborado pelo próprio Dom Quixote: “Se llama
Frestón”, esse sábio encantador é seu inimigo, porque tem guardado o segredo de
seu destino, um destino que não é só seu, mas também do outro cavaleiro com
quem deverá lutar. É um destino inevitável que Dom Quixote sabe que “mal podrá él
contradecir ni evitar” 605. O destino de Dom Quixote está para acontecer no tempo.
ilusão de ter cumprido seu destino no 1o Périplo, dando conta talvez do enigma que
numa segunda, diferentemente de Édipo, ele sabe que “nem por isso deixa de ser
humano e de continuar a viver e a sofrer”. Dom Quixote está alerta para isso, sabe
que há ainda outro saber: “o destino confronta o ser humano constantemente com o
saber e o conhecer”606.
Com relação ao que o destino tem-lhe ainda reservado, Dom Quixote só está,
por hora, tentando identificar o par com o qual deverá ter acesso a “um outro saber”.
opositor, um enigma ainda permanece: ser ele protegido por um encantador que
Se essa luta prevista para o futuro está mais para dis-puta608 do que para
que lhe seja mais conveniente: a obra de arte. Que melhor espaço há para que se
605
Mal poderá ele contradizer ou evitar o que pelo céu está ordenado (1, VII, p.44)
606
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15.
607
Artes e letras (1, VII, p.44)
608
A presença dos termos “combate” e “dis-puta” se deve ao uso de duas traduções de Heidegger: “combate” __ tradução de
Maria da Conceição Costa [A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2000]; e “dis-puta” __ tradução de Manuel Antonio
de Castro e Idalina Azevedo da Silva [O originário da obra de arte, 2006 (não publicado)].
Contudo segue, ainda, o tempo cheio de poder. Em que momento, essa dis-
puta vai acontecer? Não nos esqueçamos de que, nisso, cabe uma aproximação
entre a luta que deverá configurar-se em batalha singular, e o pacto que Dom
Quixote fez com Montesinos dentro de “la cueva”. Dom Quixote assumiu, ali, dois
partir dos conceitos filosóficos, estes sofrem uma transformação: “além dos limites
definidos, passa a ser exigido deles exatidão”609, depois de tudo isso, precisa
empenhar-se e trabalhar.
interferências desse novo pensar, que Dom Quixote se assegurou, do que até então
de um agir estranho ao agir do homem, acabavam sem ver mais sentido na vida: “se
chegaram a descobrir que, para ser ético, basta estar à pro-cura, basta perguntar,
basta acatar a convocação para a escuta das grandes questões, pois a fonte-raiz já
desde sempre e para sempre está lá. Falamos daqueles seres que vagam pelos
609
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15
610
Acabou sua vida (1, XXXV, p.217)
caminhos de Espanha, falamos do homem empenhado no “ter” o que não tem,
sentimentos e pessoas.
revelando a causa de sua desgraça, diz ter sido preso “por enamorado”611, que se
tinha enamorado de tal modo de um cesto cheio de roupas que o abraçou, com tanto
metê-lo na cadeia.
apropriar-se. E também de Anselmo. Este difere um pouco em seu querer. Quer “ter”
investigação, joga sua esposa num tubo de ensaio, submetendo-a aos rigores de um
laboratório, até dela extrair toda a vitalidade, até extrair a vitalidade de todos aqueles
fin que tuvieron todos, nacido de un tan desatinado principio”612, o mesmo princípio
Falamos, enfim, de todos aqueles cujo querer, a essência mais original que
Dom Quixote observa de que modo a nova crença está afetando o homem,
611
Por estar tão apaixonado (1, XXII, p.118)
612
De tristezas e melancolias, Este foi o fim que tiveram todos, nacido de um tão desatinado princípio (1, XXXV, p.217)
613
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.19.
candidatos ao lugar do “cavaleiro misterioso”, com quem Dom Quixote deveria travar
batalha singular.
Mais de uma vez isso acontece: “pero [...]; basta que en la narración del no se salga
indícios são de que algo deverá ser narrado com verdade, deixando implícitos, além
da obra, seu compromisso com a verdade. Com isso também se explicita um critério
no que tange a essa verdade da obra. Ao dizer que “esto importa poco a nuestro
cuento”615, Dom Quixote está dando as diretrizes de que da obra é preciso descartar
verdade. Outro exemplo ainda “-¿Quién duda [...] cuando salga a la luz la verdadera
historia de mis famosos hechos”616, confirma, não só que há uma história para ser
contada, mas também que há relação quase de dependência entre obra e verdade.
regresso final à casa já não era cavaleiro, tentam dissuadi-lo dizendo que, ficando
ao relento como pastor, correrá o risco de adoecer, e Dom Quixote assim reage:
“Callad hijas – les respondió don Quijote; - que yo sé bien lo que me cumple”617. E
acrescenta, deixando claro, a todos, que tem uma missão a cumprir, que seja o que
for que na obra ele decida fazer, necessitando ou não enfrentar as oposições, que
sua missão se cumprirá. E essa missão aparece com todas as letras: “[...] Y tened
por cierto que, ahora sea caballero andante o pastor por andar, [...] lo veréis por la
614
Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade (1, I, p.18)
615
Isto importa pouco à nossa história (Ibidem)
616
Quem duvida [...] quando for exibida a verdadeira história de meus famosos feitos (1, II, p.21)
617
Calai, filhas – respondeu-lhes Dom Quixote: – que bem sei o que me cabe (2, LXXIII, p.696)
obra”.618 Reaparece a obra, agora bem aproximada do sentido, não só da
“sé bien lo que me cumple” e “no dejaré siempre de acudir a lo que hubiéredes
menester”.619
momento final tudo isso se conjuga com o ser pastor - o guardião da casa do Ser, da
conduzir os homens, do mesmo modo que Cristo veio, como linguagem, conduzir
seu rebanho.
Nesse caso, com o exemplo acima, Dom Quixote se despoja até da atribuição
cavaleiro ou pastor, para dar relevo à outra missão: a missão de ser obra. Com isso,
não torna insignificante sua tarefa de pastor, só chama a atenção para outro
significado maior dessa missão. Por isso acrescenta: “por andar”, quer, na realidade,
des-realizar o pastor, para que possa preenchê-lo de algo que lhe dê outro sentido.
possível que seja simplesmente “por andar” pelos campos. Sua orientação ao
Há ainda outro exemplo em que não faz menção ao termo obra, mas deixa
nas entrelinhas: quando Dom Quixote desafia à luta, os leões que em carro fechado
são conduzidos à corte, como presente do general de Orán, e um fidalgo que a tudo
618
E tende por certo que, agora seja cavaleiro andante ou adiante pastor, [...] o vereis pela obra. (2, LXXIII, p.696)
619
Sei muito bem o meu compromisso, e não deixarei de atender ao que for necessário (Ibidem)
responde: “Váyase vuesa merced, señor hidalgo [...] a entender con su perdigón
manso [...] y deje a cada uno hacer su oficio. Este es el mío [...]”.620 Quer alertar para
sim, é digno de atenção: a obra que, já é quase certo, Dom Quixote terá de escrever.
Todos esses sinais indiciam o destino. Dom Quixote tem ainda coisa por
realizar. Dom Quixote é ainda o mesmo, aquele mesmo que fora fidalgo, que fora
cavaleiro, que fora filósofo e que agora está a ponto de conjugar seu agir de
Na terceira citação que abre este capítulo, “Desde el siglo XVII, Cervantes
Quixote, deixando, em aberto, quatro séculos para que o leitor da obra de Cervantes
dela se aproxime.
o faz por livre e espontânea vontade, como no primeiro exemplo que abre este
capítulo, outras, se sente obrigado a fazê-lo, quando algum acontecimento, por não
segundo exemplo, Sancho é seu interlocutor e confessa não acreditar nos contos de
Dom Quixote sobre “la cueva de Montesinos”. E este, assim lhe responde:
__
Como me quieres bien, Sancho, hablas desa manera – dijo don Quijote ;
y, como no estás experimentado en las cosas del mundo, todas las cosas
622
que tienen algo de dificultad te parecen imposibles [...].
Não falaria desse modo, Dom Quixote, caso não estivesse vendo-se como
620
Vá-se, vossa mercê, senhor fidalgo, a entender-se com seu perdigão manso [...] e deixe a cada qual fazer o seu ofício
(2, XVII, p.406)
621
A impossibilidade de localizar a frase, que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue
procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos.
622
Como me queres bem, Sancho, falas dessa maneira – disse Dom Quixote; – e, como não estás experimentado nas coisas
do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade te parecem impossíveis. (2, XXIII, p.447-448)
guardar, por isso não tem pressa. Com toda paciência, aguarda que Sancho mais
personagem mais mundano, o que está mais afinado com o cotidiano ordinário, com
estabelecidas, é contraditório, repetimos, que seja ele, aquele que é visto por Dom
Quixote, como o que menos coisas do mundo sabe. Ao referir-se a mundo, Dom
Quixote está tratando mundo na sua relação de tensão com terra, não mundo na sua
fundamental para o ser. Por isso, acrescenta: “pero andará el tiempo, como otra vez
he dicho, y yo te contaré algunas de las que allá abajo he visto, que te harán
creer”623. Sancho precisa ter ainda outras experiências, ou melhor, precisa viver e
experienciar muitas situações, para que ele e mundo se ampliem, o necessário para
obra de arte. É claro que, com essa fala, Dom Quixote quer dizer também que esse
experienciar pode dar-se, também ao longo do tempo, tanto na vida, como na leitura
da própria obra, fazendo, com isso, desdobrar-se esse tema, em outros a ele afins: a
623
Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que
aqui contei. (2, XXIII, p.448)
624
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51
Os avisos de Dom Quixote remetem a um tempo futuro; tempo em que,
de encontrar, na obra, respostas. Vale dizer, a título de alerta, que não se deve
propriamente resposta, o que faz é recolocar novas questões sempre, num ciclo
adequada, no que tange a interpretações no tempo. Bem sabia Dom Quixote que
bastante para preencher os quatro séculos, ao longo dos quais se declara estar
Cervantes aguardando seu leitor. Agora, no entanto, estamos num tempo; um tempo
que sugere ter Cervantes encontrado, mais do que nunca, seu leitor, pacientemente
625
HEIDEGGER, M. O originário da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva, 2006,
parágrafo 158 (mimeo)
emparentadas. Las dos grandes etapas de la historia moderna están en
626
ellas captadas del mismo modo.
Esse tempo há muito vem anunciando-se. Octavio Paz vem acrescentar mais
caracterizam a modernidade, “todos ouviram, não lá fora e sim dentro deles próprios
manifestação que expressa essa “outra voz”, uma clara transgressão: “a maneira
espontânea. Isso porque, o poeta não prevê, não fabrica nem submete seu poetar, a
possibilidade, há uma muito significativa. Em seu tempo, Dom Quixote não sabia
emparedam a biblioteca, sua ama lhe informa ter sido, o desaparecimento, obra de
Montesinos, apresentando-se como “Yo soy el alcaide”,631 seu modo de vestir lembra
há o sono que fechou as duas pontas de seu estar ali. Tanto sua entrada como a
629
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51
630
Sábio encantador (1, VII, p.44)
631
Eu sou prefeito (2, XXIII, p.442)
632
Um venerável ancião, vestido com um capuz de baeta roxa, que pelo chão se arrastava: cingia-lhe nos ombros e no tronco
uma beca de colegial, de tecido sedoso verde; cobria-lhe a cabeça um gorro negro à moda italiana, e a barba, muito grisalha,
passava da sua cintura; não levava arma alguma, mas sim um rosário de contas na mão, maiores que nozes comuns, e cada
décima conta tal como ovos medianos de avestruz; a conduta, o andar, a imponência e imensa presença, cada coisa de por si
e todas juntas, deixaram-se suspenso e admirado. (2, XXIII, p. 441)
saída são marcadas por um dormir e despertar. O sentido dessas experiências está
do nascimento do mundo para muitos povos, é o que contém o germe [...] a partir do
têm como germe o ovo são variados, mas estão intimamente relacionados à
O sábio de “la cueva” também tem um rosário com “huevos”, o que desfaz
qualquer dúvida quanto a ter tido Dom Quixote, uma experiência originária, tendo
coincidência de serem, as duas, orquestradas por seres especiais, seres que, além
que, por sua vez e, ao mesmo tempo, traça os contornos da modernidade, alertando
obra de arte.
2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO
modernidade, de uma razão absoluta, estreitando-se cada dia mais dentro dos
rigor do método e nas certezas matemáticas, que pouco a pouco expurga do homem
seu caráter instintivo, irracional e bárbaro; nada disso é mais sustentável. Antes, se
mais capaz, hoje, de dar conta do jogo que compõe a relação do homem com o
Nessa transição, poderá Dom Quixote travar a grande batalha prometida para
Esse futuro que usamos não se refere a um tempo determinado, fixo que
possa esgotar-se. Tempo aqui significa qualquer tempo, qualquer tempo em que
Cervantes espontaneamente ache seu leitor. Nesse caso, considerando que nós
somos agora seus últimos e mais recentes leitores, supomos que essa batalha
estaria prevista para agora, para este momento que, casualmente é o tempo pós-
moderno onde, talvez, haja leitores tocados e sensíveis pela predisposição que abre
Talvez esse tempo previsto por Dom Quixote, com o qual estamos, nós,
atuais leitores, afinados, seja esse o que viria ao encontro do tempo do verso de
Holderlin: “Pero donde está el peligro, crece también lo que salva”,635 verso que
633
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.13
634
Tenho de vir, andando os tempos, a pelejar em singular batalha com um cavaleiro (1, VII, p.44)
635
Onde mora o maior perigo, está a maior possibilidade de salvação (HEIDEGGER, M. La pregunta por la técnica.
Conferencias y Artículos. Barcelona: Serbal, 1994, p.30).
fazendo-a perder o caráter mito-poético. Chegamos ao ponto mais dramático
para onde a essência da técnica poderia nos conduzir. Desde que o pensar
humano saiu de seu elemento e se esgotou, esse vazio foi compensado como
techné, e os mesmos processos utilizados em relação à natureza foram
estendidos à linguagem.
O homem é o único ser capaz de palavra. É enquanto ser falante que o
homem é homem. Entretanto, é fundamental que se estabeleça aqui o sentido
radical de falar e dizer. Língua não é um simples instrumento de troca e de
comunicação. Entretanto, é exatamente essa concepção corrente da língua que se
vê avivada pela dominação da técnica moderna.
Entretanto, uma outra língua experienciada pelos pensadores originais
abre-se à totalidade porque deixa livre o ser de todas as coisas, ao mostrar-se.
Tudo isso nos leva a desconfiar tratar-se de um alerta no que se refere ao
esvaziamento da linguagem que prolifera rápido por toda parte, ameaçando a
essência do homem.
É a metafísica avançando a passos largos. A intervenção técnica atinge até
o nível lingüístico, com a virtuosidade do virtual que na globalização da Internet
se estende numa escala planetária, reduzindo a comunicação à informatização.
Enquanto o virtual fala de muitas coisas, quer e pode falar de tudo, e
mesmo que o virtual tenha tudo armazenado, o dizer não pode tudo dizer. Mas o
não poder dizer tudo não significa não dizer nada; significa que todo dizer, para
dizer, resguarda sempre em si o que não pode ser dito. Essa é a vigência do
poético, onde a linguagem protege, cultiva o mistério, o mesmo mistério que,
segundo Emmanuel Carneiro Leão, pulsa escondido no coração do virtual. O
mistério da linguagem que se retrai naturalmente para ser sempre doação e força
de ser do dizer.
de submetê-la a um preço; o próprio mercado com ela não pode, porque, rebelde, ao
espírito, “uma lufada de ar”, o sopro vital. Na verdade, seu lugar é, com toda
rebeldia, estar correndo daqui pra ali, rolando de boca em boca, flutuando como ar,
daquele que, dentro do seu raio de ação, não escapa do conjuro verbal que ela é. É
verdade irrefutável: “poesia é pra quem diz”. Enquanto escrita e guardada, nada é;
esse é seu grande mistério: “o poema contém poesia sob a condição de não guardá-
é som e é silêncio. Octavio Paz assim a resume: “suas imagens são criaturas
O mais intrigante está nesse mais um paradoxo: por mais que a modernidade
Do mesmo modo que em “la cueva”, Octavio Paz também nos fala de um
“outro mundo”, de onde é possível ouvir uma “outra voz”. Explica não se tratar de
mera faculdade, e resume dizendo ser uma voz que soa no mais íntimo do ser sem,
contudo, ser sua somente. Quem ouve a outra voz, sendo ele mesmo, é outro. A
vazio.638
Teria ouvido, Dom Quixote, essa voz? Para um louco, nada mais adequado. É
bem verdade que, sua formação de filósofo o preparara mais para ver do que para
escutar. Entretanto, é impossível que não ouvisse vozes, sintoma tão característico
de seu estado de louco. É bem possível que sim. Com a energia com que se deixa
636
PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143.
637
Ibidem, p.136.
638
Ibidem, p.140.
tomar sempre em suas atuações, só pode ser movido por algo que lhe venha de
dentro, algo que lhe sussurre coisas tão empolgantes que o encham de entusiasmo.
logos é linguagem. Dialética significa dois que procuram a verdade. Essa verdade,
entretanto, não está nos dois, ela está no logos; a verdade está na linguagem.
significado de “dia” é: “através de” e “entre”. “Diá-logos” não é, pois, nem um nem
dialogante profere o seu dizer, a partir da escuta do logos. Em “la cueva”, Dom
“entre”.
que hoje está fixado como estilos; tudo voltado para a estética do Belo. Lança-se
mão do estilo como muleta que permite percorrer a obra pinçando, aqui e ali, aquele
modelar que o método demarca como correto. Dos caminhos de Parmênides, perde-
argumentação para o destaque dos mais inteligentes, a partir dos seus pontos de
puídos, a trama não se impunha, inevitável era o abismo. Sendo assim, nada mais
chance do experienciar.
todos, realidade com verdade. E o diálogo que mantêm, para dar conta dessa
realidade, se dá no nível do código, da representação. Lidam com o mundo de
um viver, pautados no ter e na vontade de poder ter. Por isso estão todos voltados
seu poder. E, mesmo que não conquistem a felicidade, conquistam todo o resto;
“entre”; este sim, o outro, o verdadeiro “Tu”. Para isso, entretanto, é preciso silêncio,
verdade, “entre” o “Eu” que somos e o “Tu” que não somos, a partir da escuta do
logos. Um diálogo entre o que somos e o que não somos é abertura ao ser; é
escutando vozes. Ser homem é ser Cura, ser Cura é ser questão. Por isso, quem
mais escuta vozes, mais é questão, mais é Cura, mais é homem. Para Dom Quixote,
vozes e murmúrios (que) saem de todos os cantos, das rachaduras das paredes,
dos cômodos trancados, dos sulcos da terra”.639 Desse mesmo modo, Dom Quixote
escuta a outra voz em “la cueva”, do mesmo modo, que é o modo da obra de arte
Descrito desse modo, parece que Dom Quixote não está em sintonia com o
esquema da época, pois suas decisões eram por demais atípicas; funcionava
mundo, vai viver a cavalaria; enquanto estão todos lúcidos, Dom Quixote
enlouquece e ouve vozes. Quer ente mais impróprio, quer ente mais “outro”
que esse?
filósofo; haja vista o critério com que Dom Quixote formatou o mundo da cavalaria,
aprendizado platônico metafísico, seu ingresso real nesse mundo, com ele não está
em sintonia.
639
MATTOS, Celia Regina de Barros. Pedro Páramo, vida e morte em remontagem. Revista Matraga, Rio de Janeiro: UERJ:
IFL, v.1, n.2/3, p.58-62, mai-dez 1987.
No 1º Périplo, confirmou-se a previsão metafísica da tendência humana à
imitação; tendência que acabou vitimando Dom Quixote com a perda de sua
contornos.
Quixote pôde ser tocado pelo “querer-ser” o que não era. Foram esses livros, lidos
na solidão da leitura silenciosa, que sinalizaram a Dom Quixote ser ele possibilidade.
Sem o suporte dos livros de cavalaria, sem a decisão de assumir-se cavaleiro, Dom
[...] sin que nadie le viese, una mañana, antes del día, que era uno de los
calurosos del mes de julio, se armó de todas sus armas, subió sobre
Rocinante, puesta su mal compuesta celada, embrazó su adarga, tomó su
640
lanza, y por la puerta falsa de un corral salió al campo
homem rústico __ “un labrador vecino suyo, hombre de bien __ si es que este título se
puede dar al que es pobre __, pero de muy poca sal en la mollera”641 __ a acompanhá-
ainda, no aparato com o qual configurou o mundo da cavalaria andante, uma peça
640
Sem que ninguém o visse, uma manhã, antes do dia, que era um dos calorosos do mês de julho, armou-se de todas suas
armas, subiu em Rocinante, posta sua mal composta celada, segurou sua espada, tomou sua lança, e pela porta falsa de um
curral saiu ao campo (1, II, p.21)
641
Um lavrador seu vizinho, homem de bem (se é que este título se pode dar a quem é pobre), mas de pouquíssimo
entendimento. (1, VII, p.44)
e armaduras, quem acionaria o diálogo? Alguns teóricos reconhecem que a obra só
[...] después de los seis primeros capítulos, la cual abarca la Primera Salida
que Don Quijote emprende solo: es decir, durante el resto de la Primera
parte (la Segunda Salida), cuando la llegada de Sancho le da a su amo
alguien con quien hablar. A partir de entonces, cada “acontecimiento” o
aventura por separado se vuelve, progresivamente, más conciente de sí
misma. Como permanecen juntos, los dos hombres se sienten “existir” en lo
642
que acontece.
Sem o bronco escudeiro não seria possível que Dom Quixote pusesse o
andante medieval no liame do século XVII, condição que lhe valeu o diagnóstico de
louco por perda de identidade. Foi assim que entrou na vida: como um louco à pro-
cura da Cura. Tanto leu, tanto imitou, e só assim pôde por-se a pro-curar Cura. É
claro que essa é a loucura tratada dentro dos limites necessários à compreensão do
conquista, Dom Quixote alça outro patamar que permite, tanto a ele como aos que,
com olhos curiosos, o avaliam, ampla visão. Pontos sombrios de sua história se
642
Depois dos seis primeiros capítulos, que compreende a primeira saída que Dom Quixote empreende sozinho: quer dizer,
durante o resto da primeira parte (a segunda saída), quando a chegada de Sancho dá ao seu amo alguém com quem falar. A
partir de então, a cada acontecimento ou aventura, se torna, progressivamente, mais consciente de si mesmo. Como
permanecem juntos, os dois homens se sentem existir no que acontece. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993, p.30)
contundente: dotados de alguma falta, anseiam todos por preenchê-la;
preenchimento não muito simples, dado o radicalismo que pontua suas histórias.
conhecimento ou pela posse física, isso são nuances sem pertinência. O que se
com o outro; procedimento comum a todos os infelizes que, mesmo fora de “la
Dom Quixote, no entanto, não se enquadra nesse esquema. Por mais louco
que pareça, seu agir parece estar no limite do saudável. Porque estava no liame da
pro-cura, sem que soubesse exatamente o “outro” que lhe correspondia, Dom
mais um dentre os tantos inventados por aquela ficção. Entretanto, ao dizer o herói
que os livros de cavalaria não podem ser mentira, porque contam tudo, está
tom de dúvida: “¿habían de ser mentira?; y más llevando tanta apariencia de verdad,
pues nos cuentan el padre, la madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar, las
hazañas, punto por punto y día por día, que el caballero hizo, o caballeros
643
Havia de ser mentira e ainda mais tendo tanta aparência de verdade, pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a
idade, o lugar e as façanhas, detalhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)
além da maliciosa correção de “el caballero hizo” para “caballeros hicieron”, tornando
Com isso, Dom Quixote deixa claro sua realização diferenciada. Os cavaleiros
das novelas são resultado de esquemas onde cabia e se encaixava qualquer herói,
bastava querer entrar na fôrma. Dom Quixote, entretanto, não é um herói enformado,
refere à idade, sem nascimento biológico, Dom Quixote só começa a ganhar corpo
aos cinqüenta anos, quando cruza o liame da ficção. Quanto ao lugar, apesar de
nomear-se. Seu cavaleiro, além de ter nome próprio, mantém vínculo com a
iam compor o mundo da cavalaria. Fica comprovado, com isso, que Dom Quixote,
ciência, caso não tivesse a malícia de não admitir que o contorno se fechasse
um aprendizado da aprendizagem.
pode ganhar, na medida em que, alguma mínima abertura o fez intuir o “entre”.
644
Em um lugar de la Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me (1, I, p.17)
1.1.1.1.1 5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ?
Dom Quixote enfrenta o dilema de ser conhecedor dos limites em que todos
lidam com o viver, e precisa encontrar a melhor forma de dizer isso a todos. Sabe
não ser possível usar qualquer linguagem. Ainda que criasse um sistema sofisticado
de arte é obra na medida que abre e institui mundo, mas esse só é mundo no operar
da obra”645
“falar”. Revela, com isso, estar inquieto, buscando, ele mesmo, a forma que deve dar
a seu falar. Tem que ser um “falar” de tal modo que possibilite que todos o escutem,
do mesmo modo como ele também um dia, também já escutara. Desse modo,
Dom Quixote, ele mesmo sinaliza não se ter sujeitado ao fechamento do mero
645
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 41
No 3o Périplo, sua função parece ser outra. Quer-nos dizer que, apesar da
aparência de abertura nos limites do mero conceito, ele não chegou a aprisionar-se
impropriedade mais radical. Desse modo, parece que Dom Quixote, ao contrário de
obra que deixam claro uma necessidade de traçar perfis de personalidade: “que no
Circula pela obra uma dinâmica que tem, no ver e no pensar, a função de
observar, avaliar, definir, descrever, saber. É claro que esse sentimento também se
apoderou de Dom Quixote que queria também ser e saber-se alguma coisa que não
sabia, mas que, contraditoriamente, bradava dizendo saber: “Yo sé quien soy”.
era de saber a sua verdade; tudo abria à possibilidade de acercá-lo à Cura, tudo
indicava que o que procurava Dom Quixote era Cura. Sem nenhum remorso, por
mesmo, recuperando sua personalidade, etc, etc: “yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui
don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano el Bueno”.647
646
Que nem todos são corteses nem bem vistos: há alguns fanfarrões e descomedidos. (2, VI, p.353)
647
Já fui louco e já sou sensato; fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o
Bom. (2, LXXIV, p.699)
Convém lembrar que as novelas de cavalaria têm diferentes funções na obra:
verdade ter sido, ele mesmo, a primeira vítima da ficção poética do século XVI. Se
assim for, que leitura podemos fazer dessa mensagem? Seria um alerta para não
Deve haver algo que individualize Dom Quixote no quadro geral dos leitores
do seu tempo. Dizer que só por ser louco ouvia vozes, tem sentido, mas, sem
ter sido a voz que ouvia, a responsável por ele, mesmo sem consciência, ter-se
novelas que lia. É bem verdade que Dom Quixote demonstra ter lá suas preferências
e que toma como referência Amadis de Gaula, para ele o melhor de todos; mas
cavalaria, ter-lhe sido, esse sim, o modelo de imitação do qual se apropriou, ainda
fração de segundos.
ou não estava de posse de uma leitura satisfatória que o estivesse plenificando, nem
o fazendo feliz, nem produzindo nele os efeitos que uma verdadeira leitura, os
efeitos que uma verdadeira obra de arte deve produzir e, assim se sentindo, o “pobre
fidalgo”, dela quis escapar, saltando para fora e indo viver aquela mesma vida para
experimentá-la na realidade e verificar até que ponto tudo aquilo que lera era
mentira ou verdade. E, nesse caso, muito bem se adapta o estranho gestual: “sus
labios aún se movían mientras sus manos se contraían”,648 mais afinado com a
sendo produtiva, tornando-o de tal modo pleno e feliz, a ponto de não resistir e
precisar torná-la vida e experimentá-la. Nesse caso, de tão excitado, o já nem tão
“pobre fidalgo” entra na vida cavaleiresca para adotá-la em sua vida, para
experienciá-la.
aficcionados por novelas de cavalaria que, do mesmo modo que o fidalgo, como
en claro [...] de turbio en turbio”;650 de todos, Dom Quixote foi o único que saiu para
pôr a cavalaria em prática. E foi assim que, submetendo-a à realidade de seu tempo,
É preciso, no entanto, estar-se atento: não foi assim, como num passe de
mágica, não foi querer simplesmente ser obra e virar obra. Há muito ainda a
a titulo de esclarecimento: Dom Quixote relutou um pouco em optar por ser obra de
arte. Se bem pensado, é justo seu preocupar-se. Já se ouvia na época, “por todos
648
Seus lábios ainda se moviam, enquanto suas mãos se contraíam. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18)
649
Ratos de biblioteca.
650
Dia após dia, noite após noite (1, I, p.18)
los rincones”,651 murmúrios sobre serem as novelas de cavalaria mentiras. Ora, caso
optasse por ser um ser de ficção, o simples fato de fazer ele parte daquele estilo
literário tão perseguido, poderia tirar-lhe a paz. E nada pior do que ser uma mentira,
Caso não estivesse apto a alcançar a essência da verdade pela luz da razão, estaria
à mercê do engano, cairia no território do “falso”. Quem, afinal, quer ser mentira,
quem se contenta em ser falso? Estaria Dom Quixote, ele mesmo, uma imagem-
Foi por isso que Dom Quixote acabou fazendo essa escolha apressada sim,
poder ser a amplitude dessa escolha, bem mais generosa? Só para adiantar, no que
se refere à sua preocupação em ser ou não falso, só mais adiante, Dom Quixote vai
Voltemos à “outra voz”; é preciso descobrir desde quando Dom Quixote ouve
vozes. Sobre o modo como as escutava, a obra oferece três grandes momentos em
faz Quixote na Floresta de “Sierra Morena”: “Preguntónos que cuál parte desta sierra
era la más áspera y escondida; dijímosle que era esta donde ahora estamos; y es
ansí la verdad, porque si entráis media legua más adentro, quizá no acertaréis a
651
Por todos os cantos (2, XVI, p.402)
salir”,652 local para onde se retiravam os cavaleiros, na busca de compreensão dos
Não deixemos que se perca de vista a floresta, não por acaso presente na
obra, para tentarmos aproximá-la daquela que também Heidegger utiliza como
seu encolhimento; encolhimento que é, por sua vez, o entregar-se à renúncia do ser.
puta ferrenha entre ser e não-ser; o espaço do “entre”; o espaço do logos, onde se
colhe e recolhe o que é para o ser; espaço onde o ser, no colher e recolher, trata de,
que as aproxima. Ali, no escuro e no silêncio, Dom Quixote vai, como os demais
para alguma injúria ou lenitivo causado por mal de amor. Normalmente na floresta se
sofrimento.
Comecemos dizendo que não fora bem esse o motivo que tinha levado Dom
Quixote a “la Sierra Morena”. Na verdade, para ali nem iria, não fosse a insistência
facilitando a fuga daqueles priosioneiros, alerta Dom Quixote para o risco que
652
Perguntou-nos qual parte desta serra era a mais áspera e escondida; dissemos-lhe que era esta, onde agora estamos; e
assim é de verdade, porque, se entrardes meia légua mais adentro, talvez não consigais sair. (1, XXIII, p.128)
Entretanto, mesmo não fora esse o propósito, ali acabou colocando-se Dom
cada vez, era provocado a renunciar àquelas verdades que lhe eram de todo
impróprias. Ali, também se deu um diálogo em que uma outra voz lhe sussurrou não
ter nenhum sentido o que ali estava a ponto de realizar. Também, o cavaleiro
aquele cavaleiro tão ridícula, que decide não realizá-la. Não vê sentido porque,
como aquele cavaleiro que tentava imitar, não passara por nenhuma traição de
amor; logo, não havia porque repetir suas ações, só pela necessidade de copiá-las.
em que ouve a “outra voz” joga, ao mesmo tempo, com dois elementos: a casa e o
sono. Será preciso falar, tanto dos regressos ao habitar de Dom Quixote, como do
Embora este terceiro seja o mais difícil no definir, não só o grau de escuta,
surpresas. Saber exatamente em que medida o regresso e o sono de per si, a cada
parece querer dizer que a voz é só um chamado, uma leve convocação, um apelo,
Chamamos a atenção, mais uma vez, para o valor simbólico dos referentes:
“casa”, “aldeia”, “cidade”, “pátria”, pois eles, nada mais são que aberturas de acesso
à questão do ser e do logos. São lugar, são linguagem, são a casa do ser, onde o
homem habita.
casa, pouco é apresentado; muito mal se fala das relações afetivas que preenchem
relação que estabelecem com Dom Quixote, observa-se que sua presença é sentida
como preocupação sim, mas uma preocupação que mais se restringe ao escrutínio,
fidalgo. Diz a ama: “estos libros [...] les queremos dar echándolos del mundo [...];
abrid la ventana y echadle al corral”653; diz a sobrinha: “no hay para que perdonar a
ninguno [...], todos han sido los dañadores”654. As duas: “tal era la gana que las dos
livros. O clima familiar só volta a aparecer, no final, quando regressa Dom Quixote
De sua casa, de seu lar ôntico, a obra dá conta, no pequeno espaço das duas
primeiras páginas que registram o seguinte: situada em “la Mancha”, tinha animais:
criatividade alguma, comia: “más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos
653
Estes livros [...] queremos dar arrojando-os do mundo [...] abri a janela e atirai-o ao curral (1, VI, p.37)
654
Não há por que perdoar nenhum [...]; todos têm sido danosos (Ibidem)
655
Tal era a vontade que as duas tinham de matar aqueles inocentes (Ibidem)
656
Rocim magro e galgo corredor (1, I, p.17)
y quebrantos los sábados, lantejas los viernes”.657 Nisso consumia quase todos os
seus ganhos mensais. E, assim, arremata, logo na segunda página: “El resto”; e o
resto é todo o seu pouco vestuário: “un sayo de velarte, calzas de velludo para las
fiestas [...] pantuflos”.658 Com ele moravam “una ama que pasaba de los cuarenta, y
identificar um personagem. O que mais significativo tem a casa com o viver de Dom
Trata-se das saídas e regressos que Dom Quixote faz nos seus primeiros
arroubos de cavaleiro: a cada regresso do herói à sua aldeia, cai ele em sono
profundo com duração de dias, o que, de certa forma, restabelece seu juízo. Até em
“la cueva”, a experiência está amarrada pelo sono nas duas pontas – na entrada e
na saída. O sono lhe resulta balsâmico até a hora da morte. Dom Quixote, antes de
morrer, deita-se para dormir e parece ser, esse, o seu último sono; é nesse sono que
Orfeu: nesse mito, Eros, Arte e Sabedoria nascem de um ovo posto pela Noite. O
recolhimento originário.
657
Mais vaca que carneiro, guisado a maioria das noites, ovos com torresmo aos sábados, lentilhas às sextas (Ibidem)
658
Uma capa de gala, calças de veludo para as festas [...] pantufos (Ibidem)
659
Uma ama que passava dos quarenta, e uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço de campo e praça (Ibidem)
seqüência, sinaliza superficialidade: o sono não fora duradouro nem profundo o
suficiente. Foi preciso duração bem maior, para assinalar profundidade também
maior: só quando dormiu um longo sono recuperador – dois dias: “Hiciéronlo así:
diéronle de comer, y quedóse otra vez dormido, y ellos, admirados de su locura [...]
De allí a dos días se levantó don Quijote, y lo primero que hizo fue ir a ver sus
surra de uma comitiva e, mais uma vez é levado de volta à sua aldeia. Em casa, sua
acordar, sua verdadeira identidade: “el ama y sobrina de don Quijote le recibieron, y
Entretanto, nem esse longo sono resistiu: “el Cura”, em conversa, voltou ao
grau maior de profundidade que lhe fez até recobrar a identidade. Foi, no entanto,
Quixote é obrigado a voltar para sua aldeia, com o compromisso de, durante um
660
Fizeram isso assim: deram-lhe de comer, e ficou outra vez adormecido, e eles admirados de sua loucura [...] Daí a dois dias
levantou-se Dom Quixote, e a primeira coisa que fez foi ir ver seus livros(1, VII, p.43)
661
A ama e a sobrinha de Dom Quixote o receberam, despiram, e estenderam em seu antigo leito. Olhava para elas com os
olhos atravessados, e não conseguia entender em que lugar estava. (1, LII, p.317)
a tu lugar por tiempo de un año, donde has de vivir sin echar mano a la
662
espada, en paz tranquila y en provechoso sosiego
Quijote”, o plágio publicado por Avellaneda. Entre a primeira e a segunda parte, esse
personagem transita livremente numa “taberna”, saindo fora dos limites da ficção,
um ao outro, o destino para onde os levavam aqueles caminhos: “A una aldea que
está aquí cerca, de donde soy natural”, respondeu um; e “Voy a Granada, que es mi
imagem-questão desse mergulho profundo. Todos são um só, são o próprio logos,
no qual Dom Quixote mergulha, ao mesmo tempo que nos convida à escuta daquela
Agora já não resta dúvida; o falar, a que se referia Dom Quixote, não era tão
louco, esse falar: o falar do logos do qual há muito estava na escuta. O mesmo falar
662
Se tu pelejares e eu te vencer, não quero outra satisfação senão que, deixando as armas e abstendo-te de buscar
aventuras, te recolhas e retires a teu lugar pelo tempo de um ano, onde deves viver sem lançar mão da espada, em paz
tranqüila e em proveitoso sossego. (2, LXIV, p.659)
663
A uma aldeia que está aqui perto, de onde sou natural [...] Vou a Granada, que é minha boa pátria (2, LXXII, p.690)
característico do terceiro nível do diálogo;664 o mesmo falar que faz, da obra, um
que o mistério, na salvaguarda da obra, com todo vigor, abriria novas clareiras para
novos combates. O rigor da verdade metafísica, reinante por muitos séculos, alcança
avassaladora; reivindica-se que se libere uma zona que não era nem conhecida nem
as questões a responder.
que é Dom Quixote: essa foi a zona considerada doente; e não podia ser de outro
modo: acatá-la, seria abrir a guarda para incertezas num tempo em que só se
nada havia de claro nem distinto. É por isso que Cervantes, desde o século XVII,
continua buscando seu leitor; uma longa espera que precisou cruzar toda
modernidade, para mostrar novas facetas, já que não há leitura que dê conta da
excede, que está fora e além de todo e qualquer limite, vê-se que só o transitar no
imaginário que é o logos, num tempo em que essa zona ainda não estava
664
CASTRO, Manuel Antonio de. A configuração da obra como diálogo e escuta. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2007, p.2.
franqueada, tornou possível que Dom Quixote fizesse a travessia da vida vivida para
Los libros que están impresos con licencia de los reyes y con aprobación de
aquellos a quien se remitieron, y que con gusto general son leídos y
celebrados de los grandes y de los chicos, de los pobres y de los ricos, de
los letrados e ignorantes, de los plebeyos y caballeros, finalmente, de todo
género de personas, de cualquier estado y condición que sean, ¿habían de
665
ser mentira?; y más llevando tanta apariencia de verdad.
enviesada; encontrou seu real lugar, está frente a frente com a obra, e quer saber
Inicialmente, não cabendo a arte nos limites ideais do Belo, esta fica à mercê
Mas essa providência parece não ser suficiente para dar à arte a liberação
665
Os livros que estão impressos com licença dos reis e com aprovação daqueles a quem se dirigem, e que com gosto geral
são lidos e celebrados pelos grandes e pelos pequenos, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e pelos ignorantes, pelos
plebeus e cavaleiros, finalmente, por todo o gênero de pessoas, de qualquer estado e condição que sejam, haviam de ser
mentira? E mais, levando tanta aparência de verdade (1, L, p.304)
de tão bem treinado no exercício das coisas do mundo, para só captar o essencial,
essa capacidade especial, sua total autonomia no ato da criação. Sua genialidade
está em ter conseguido eliminar a eterna desconfiança de que a arte não passava
“demiurgo”, aquele que, por seu poder criador, com Deus se identifica. Para esse
necessária e fundamental: “las letras humanas, las cuales tan bien parecen en un
caballero de capa y espada, y así le adornan, honran y agradecen como las mitras a
que se esconde por trás de todas as coisas. Nesse caso, tanto “cavaleiros de capa e
pela bela formação que arranca das coisas do mundo a verdade essencial.
Estando nesse caminho, não tem porque se preocupar, o pai, com o destino
de seu filho: “señor hidalgo, que vuesa merced deje caminar a su hijo por donde su
cuidaria do resto: “que el natural poeta (aquele que nasceu com essa “estrella”, com
essa aptidão) que se ayudare del arte será mucho mejor y se aventajará al poeta
666
As letras humanas, as quais tão bem parecem em um cavaleiro de capa e espada, e assim o adornam, honram e
agradecem como as mitras aos bispos, ou como as togas aos jurisconsultos (2, XVI, p.404)
667
Senhor fidalgo, que o senhor deixe caminhar seu filho por onde sua estrela o chama (2, XVI, p.403)
que solo por saber el arte quisiere serlo”.668 Vê-se a importância da aptidão, mas que
só dará bons frutos, caso a ela seja associada a formação “que se ayudare del arte”.
que, nessa eterna repetição, nada de novo traz ao mundo, ficando a produção
contempla. A origem da obra de arte fica à mercê de seu criador. A arte em si, já não
conta; desloca-se a arte para aquilo que o sujeito pode dela arrancar, a partir de
homem – o único que tem acesso à totalidade do real, e que passa a dela dispor
Com essa capacidade de cálculo e previsão, o seu poder é tal que domina
todo o universo da arte: julga, classifica, avalia, caracteriza, define os espaços que a
acolherão, abre um imenso leque de ocupações que vão cuidar e proteger a obra.
arte, é possível que nos deparemos com as obras em si mesmas. Esse foi, também,
668
Que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que só por saber a arte quiser sê-lo.
(Ibidem)
A comemoração dos 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, obra de Miguel
de Cervantes, é a prova mais cabal de que o histórico da obra não está em ela já ter
passado no tempo. Nesse caso, a obra Dom Quixote não seria considerada
que tenha sido criada no passado, tendo já passado o “sendo”, pode cair na
tecnológicos que a preservem. Entretanto, isso não significa que ela não esteja
impregnada do mesmo vigor que a criou, não significa que nela algo não esteja
ainda preservado.
tempo, parece que a obra fica também sem mundo. Esse parecer é o que explica a
O que permanece é a obra. Nos diz Heidegger: “Perdemos o mundo, mas não
ali ficara latente; só ela pode recuperar a experiência histórica que a obra assinala.
que na obra está em obra da verdade. Como a obra é sempre dis-puta terra-mundo,
669
NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.113.
mundo, ele é bem claro: “o que passou foi o mundo que os utensílios constituíram
Entretanto, a obra de arte “detém uma historicidade efetiva [...] na medida em que
Não é por magia que essa recuperação pode acontecer. Para isso é preciso,
a princípio, que, tanto o tempo faça o jogo retrospectivo, indo, do presente, buscar
lançando-o para o futuro. Dom Quixote, a todo momento sinaliza isso: “–¿Quién
duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la verdadera historia de
mis famosos hechos”.672 É preciso também dar lugar ao jogo das interioridades,
inaugural que na obra opera, impossível deixar-se tomar pelo vibrar da arte, pelo
Sem que se dê importância excessiva ao homem, por não ser ele maior que
sua tarefa, “o fato de o ser-criado provir da obra não significa que se deva
reconhecer que a obra foi feita por um grande artista”.673 Tira-se do centro o autor,
670
Ibidem.
671
Ibidem.
672
Quem duvida que nos séculos vindouros, quando venha a luz a história verdadeira de meus célebres feitos. (1, II, p.21)
673
HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. 3ªp. Kriterium. Revista de Filosofia, n.86, p.125. Apud. NUNES, Benedito.
Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.
redimensiona-se a obra que “possui mais perfeição do que aqueles que a(s)
produzem”. 674
quadro foi colocada, partícipe dos mesmos processos de todas as demais coisas
conhecidas.
podemos procurá-la?
O que é a arte? E sua proveniência, onde fica? Qual a relação entre obra de
arte e verdade? São perguntas que, caso não as respondamos agora, inútil será
todo esforço empreendido. Apesar da origem grega da arte ser techné, Heidegger
fazer, techné é um modo do saber essencial que suporta e dirige toda a relação com
essencial do saber que não se restringe à obra de arte, mas que se estende a todo e
qualquer ente.
como acontecer.
674
VERNANT. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Paris: La Dècouverte, 1989. p.73-74. Apud. NUNES, Benedito. Hermenêutica
e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.
Para os gregos, o poeta provocado pelas musas era o porta-voz dos deuses,
graças à sua realização de ente que fala. Por ser sua essência, a poiesis, e por ser
mundo, a voz dos deuses. Isto é manifestar mundo. Assim procedendo, está o
Aletheia significava, então, não esquecer a palavra dos deuses, porque essa palavra
Sendo o que fala, tendo como essência a poiesis, o homem é aquele que é
possuído pela linguagem, como algo originário, o logos. Isso significa que será
sempre o homem que poderá, pela linguagem, originar, dar origem a novas coisas
momento mesmo quando, como originária, seu ser se tornou o mundo, virou ente,
entes, cabendo ao homem, por cumprir o mandato divino, não permitir que se
esconda, não deixar velado, não permitir que se cale a palavra do deus.
Sob todo o ente desvelado pulsa sempre um vigor originário. É esse vigor que está,
novos “mostrar-se”.
do chamado do ser. Nesse caso, o que faz o homem é não se abrir, optando pelo
No âmbito da obra de arte, acontece o mesmo: primeiro que sua essência não
é o instrumental concreto que a torna visível e palpável; por que guardar, então,
livros que não foram aprovados pelo escrutínio, se deles, o que sobra é somente
papel com sinais tipográficos encadernados? Depois, do mesmo modo que aos
demais entes, à obra de arte também é vedado o velamento. Isso significa que ela
também guarda o mistério, vigoroso o suficiente para cobrar que lhe dêem espaço
sua essência aí está: ser obra da obra. Ser obra da obra exige que se dê lugar à dis-
puta.
dividir em três Périplos foi a solução mínima encontrada para o pulsar de tanto vigor
preciso mais; é preciso despertar e fazer acontecer o ser da obra. Onde está
o mais?
da verdade.
Transferindo esse processo para a obra, sabe-se que ela reserva uma dis-
puta. O responsável pelo desafio à batalha, Dom Quixote já sabia, mas não contou
nem quando nem como essa batalha foi planejada, para que ele a tivesse anunciado
verdade, e que Dom Quixote deve fazê-lo em grande estilo. Deve realizá-lo
é; a partir do ente que é. Só o ente que é, nutrido de vigor, tem o poder de provocar
o não-ser a ser. O processo é ininterrupto: “Eu sou”, o ser constitui o ser do “eu”.
Mas eu só posso ser, porque Eu não-sou. Logo, o ser que o eu é, só, é pelo impulso
do não-ser.
mostra é um “sendo” que apaga não-ser e ser, deixando-os invisíveis, até que, ao
675
HEIDEGGER, Martin. A doutrina de Platão sobre a verdade. Tradução de Antonio Jardim, 2002 (mimeo)
A obra já nos oferece de cara um enigma instigante: o trânsito ficção-
desdobramentos.
aos quatro ventos: “Yo sé quien soy”, Dom Quixote dava a todos o sinal de que,
sendo fidalgo e também cavaleiro, não tinha sentido sua declaração. Ao agir assim,
Dom Quixote imitava ou fingia? E ainda, resoluto e cheio de certeza, dizia poder ser
todos os demais cavaleiros; quando assim procedia, Dom Quixote imitava ou fingia?
Buscando a essência do humano, foi assim que Dom Quixote pôde ser
homem, dentro do esquema piramidal dos conceitos; o homem como ser fixo,
tal pretensão.
Por isso, foi descartada a tradução “forma”, para a modelagem realizada por
Cura, exatamente para não permitir a contaminação que esse conceito poderia
Estamos perfeitamente de acordo com esse sentido de Cura. E não podia ser
diferente, depois de termos realizado com Dom Quixote a grande travessia, que teve
impessoal que, de tão pesadas, tanto fizeram decair o cavaleiro da Triste Figura,
da vida, quando, por sua conta e risco, opta claramente por abandonar uma ficção,
não é tão simples, nem pára por aí. Quando decide abandonar a leitura, abandona
só a leitura dos livros que entupiam sua biblioteca, mas não abandona aquele
universo ficcional; tanto que o traz consigo para a vida. Vemos aí uma ficção em
__
primeiro grau a ficção da cavalaria ingressa na realidade da vida do pacato fidalgo
que está no liame do século XVI. Dom Quixote não é o cavaleiro enformado, que se
Mas a sede de fingir é tal que aquela realidade da vida é também uma ficção
__
a história de um louco cavaleiro que tinha seus registros nos anais de La Mancha,
história que se pretendia história comprometida com o verdadeiro, uma história toda
cuidadosa para não fugir um triz dos fatos, “Pero esto importa poco a nuestro
dizendo que o que importa para a história é não sair um ponto sequer da verdade,
mas que, de tanto cuidado e critério, acabou contada por muitas vozes.
controle e virou ficção. Virou ficção por causa do jogo verdade X não-verdade. Mas o
que a caracteriza como ficção não é o controle no tocante à realidade e, sim, o jogo.
Uma solução eficaz foi o acolhimento de muitas vozes: o ser contado por
muitas vozes é a estratégia mais eficaz para que se deixem sempre espaços abertos
676
Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade. (1, I, p.18)
precisa o homem moderno para viver sem o risco de ser tragado pelo desconhecido. Nesse capítulo, não só Dom Quixote, como todos nós
experimentamos um mundo que transpira fragmentos de aparência esquálida, sem vigor; fragmentos que foram submetidos a amputações do
que neles havia de diferente, em nome de uma uniformidade sem precedentes. Loucura de um lado, razão de outro, impossíveis submetendo-
se ao possível, mentira/verdade, realidade/ficção, fantasia e imaginação, opondo-se à razão.
Tomemos essa oposição que já nos tinha sido apresentada desde que ficara
louco Dom Quixote. Foi exatamente na imaginação que fora localizado seu mal.
__
Com seu oposto a razão, entretanto, não se preocuparam médicos nem
diagnóstico: do mesmo modo que Demócrito, os belos discursos que proferia Dom
imaginário, a que está afetada, dando sinais de doença. Achavam que, se a zona do
por oposição, na zona do imaginário, por estar doente, nela não residia a verdade.
ficcional e não real, porque nele opera o imaginário. Acontece que o imaginário é o
Temos então que Dom Quixote, deixando que operasse o imaginário, estava
no mais pleno exercício de sua humanidade, permitindo que nele fluísse a mais real
677
CASTRO, Manuel Antonio de. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).
realidade. Estando no imaginário, Dom Quixote - “só por ser homem é que também
é arte”.678
Parece que o círculo nos colocou outra vez diante da questão inicial: a
voltemos a Quixote.
uso da imagem poética para além do liame da loucura, propondo-a, assim, como
“metiê”.
De todos os heróis que, na época, com ele conviviam, Dom Quixote foi o
único a superar suas circunstâncias. O que teria permitido tal façanha? Constata-se
que: “É só por ser homem é que também é arte. Mas é por força da ficção poética
que o sonho e a utopia eclodem. É por força da arte que o homem ultrapassa as
a ficção poética. Só movido pela força da arte, pôde Dom Quixote ultrapassar as
meras circunstâncias e colocar os pés naquele espaço dinâmico que vai além da
razão. Só assim, pôde Dom Quixote liberar o vigor que, por si só, é capaz de
678
Ibidem.
679
CASTRO, Manuel Antonio de. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).
edifício sólido e estabelecido das meras circunstâncias, desimpedindo assim o fluido
trânsito realidade-ficção.
portada dos livros de cavalaria e não se sabe bem se entrando ou saindo. Não é
possível delimitar o momento exato da loucura de Dom Quixote. Por isso, também,
não é possível determinar qual foi o primeiro trânsito: se da ficção para a realidade;
atirava longe o livro, tomava da espada e lutava até o suor pingar como as gotas de
sangue que ele mesmo descrevia. Não estaria, nesse momento, saindo por curtos
Dom Quixote sai da realidade e entra na ficção; Dom Quixote sai da ficção e entra
Eis que cruzamos, então, a tênue linha divisória; adentramo-nos, cada vez
conceder espaço à figura mais digna de tanta nobreza. Todas as experiências do ser
Diante da cena que ama e sobrinha de Dom Quixote armaram, assim que se
deram conta da desgraça que sobre aquela casa caíra: “[...] malditos libros de
desventuras”681; outra coisa não se poderia esperar, senão o veredito final: “[...] que
no se pase el día de mañana sin que dellos no se haga acto público, y sean
tratamento rigoroso, atendendo a uma necessidade profilática, para que não “den
ocasión a quien los leyere de hacer lo que mi buen amigo debe de haber hecho”683 __
assim falou “el cura”, tentando evitar que outros casos pudessem se repetir: ficar
680
Malditos livros de cavalaria [...] encomendados sejam a Satanás e a Barrabás tais livros. (1, V, p.35)
681
Aconteceu a meu senhor tio estar lendo nestes desalmados livros de desventura (1, V, p.36)
682
Que não passe o dia de amanhã sem que deles não se faça ato público, e sejam condenados ao fogo (Ibidem)
683
Dêem oportunidade a quem os ler de fazer o que meu bom amigo deve ter feito (Ibidem)
O capítulo do escrutínio, anunciado no início, aponta para algumas reflexões
disponibilizados os livros que na época faziam parte do rol dos que contribuíram
efetivamente para enlouquecer o fidalgo manchego. Dentre “los libros autores del
de Dom Quixote; “tal era la gana que las dos tenían de la muerte de aquellos
inocentes”.686 Para elas todos os livros devem ir para a fogueira. Não é, no entanto,
cavalaria – Los cuatro de Amadís de Gaula. Apesar de, na opinião “del barbero”,
sendo o livro, por sua condição de pioneiro, o “dogmatizador de una secta tan
motivo exato e justo para que fosse poupado; tanto por ser o primeiro “de todos los
libros que de este género se han compuesto”,688 como por ser avaliado o “único en
su arte”689.
porque me parece que, cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa, y
no tiene más éste que aquél, ni estotro que el otro”;690 temos também uma
684
Os livros autores do dano (1, VI, p 37)
685
[Não] merecessem o castigo do fogo (Ibidem)
686
Tal era a vontade que as duas tinham da morte daqueles inocentes (1, VI, p.37)
687
Como dogmatizador de uma seita tão má (Ibidem)
688
De todos os livros que deste gênero foram compostos (Ibidem)
689
(Ibidem)
690
Jamais pude acomodar-me a ler nenhum do princípio ao fim, porque me parece que, uns mais, outros menos, todos eles
são a mesma coisa, e não tem mais este que aquele, nem é outro senão o outro (1, XLVII, p.293)
Amadis seja preservado como único em sua arte. Contradição maior está no
segundo seus conteúdos. Nesse caso, Amadis de Gaula era o protótipo do romance
à concretude que está nos limites do livro. Fica ainda algo no ar, na decisão de
perdoar o livro pioneiro de Amadis de Gaula - “por esa razón se le otorga la vida por
ahora”.691 Acrescenta “el cura” ser tal decisão temporária; o que nada acrescenta, a
não ser, um mero disfarçar do propósito real, aliviado pelo “por ahora”.
saciam a gana dos guardiões da sanidade de Dom Quixote; vão para a fogueira
todos. Dentre eles, aparecem tipos variados: dois que disputam o lugar dos menos
mentirosos; outros por não passarem de disparates; outros por seu estilo seco;
alguns por não apresentarem nada de fabuloso que mereça louvor; e até aqueles
que também não escapam porque nem o nome santo lhes dá garantias: “tras la cruz
sugerindo haver “por trás” alguma marca sutil significativa, nessas obras
juízes do escrutínio crêem que, por mais habilidade que tenham os tradutores,
aqui discutido é a própria arte. Essa questão se torna concreta, ao querer Dom
Quixote “realizar” esse mundo inaugural. Dessa realização é que surge o próprio
691
Por essa razão se lhe concede a vida por agora (1, VI, p 37)
692
Atrás da cruz está o diabo; vai para o fogo (1, VI, p.39)
Dom Quixote de la Mancha, como obra. Quando se trata de cópia, no copiar, é
variadas: um por ser considerado autoridade, não só por ter sido composto por um
discreto rei de Portugal, como também “porque él por sí es muy bueno”.693 Vemos
que a obra é avaliada como boa, porque escrita por um rei e, principalmente, porque
“las razones [...] guardan y miran el decoro del que habla con mucha propiedad y
entendimiento”.694 Ser bom, por si mesmo, não é critério para avaliar-se uma obra.
Entretanto, é bom, o que escrito com clareza tal que facilite igualmente “el
entendimiento” de todos. Esses livros primam pela clareza – “las razones” que não
livro, um elemento que falta a todos os demais de cavalaria: nele “comen los
madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por punto y día
Não é sem motivo que essa frase fique martelando na cabeça de Dom
Quixote que, volta e meia, a ela retorna. “Y más llevando tanta apariencia de
Quixote na vida cavaleiresca, haja vista o critério escrupuloso com que insere todos
693
Porque ele, por si mesmo, é muito bom (1, VI, p.39)
694
As razões [...] guardam e olham o decoro de quem fala com muita propriedade e entendimento (Ibidem)
695
Comem os cavaleiros, e dormem e morrem em suas camas, e fazem testamento antes de sua morte (1, VII, p.40)
696
Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas detalhe ponto por ponto e dia a dia, que
o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)
697
E mais levando tanta aparência de verdade (Ibidem)
Além disso, embora comesse e dormisse pouco, mesmo já estando no final
de sua travessia, Dom Quixote não deixa faltar os mesmos ingredientes para
tendo ouvido do “escribano” “que nunca había leído en ningún libro de caballerías
que algún Caballero andante hubiese muerto en su lecho tan sosegadamente y tan
cristiano como don Quijote”,700 Dom Quixote não dispensa esses dados da realidade
“apariencia de verdad”701.
com a realidade ordinária. Para falar da vida ordinária, seguindo rigorosamente seus
comuns a esses livros. Em nota de rodapé, esclarece-se que o autor dessa obra, só
por esse feito, não merecia nunca ter ido parar na prisão. A crítica aqui fica por conta
698
Tragam-me confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (2, LXXIV, p.698)
699
Estendeu-se de ponta a ponta na cama (2, LXXIV, p.700)
700
Que nunca havia lido em nenhum livro de cavalaria que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão
sossegadamente e tão cristão como Dom Quixote (Ibidem)
701
(1, L, p.304)
702
(1, VI, p.40)
Aparecem também outros livros de pequeno porte que não “deben de ser de
muito admirado por Cervantes. Esses livros não recebem a atenção dos homens do
prejuízo de terceiros, porque não contêm más ações a serem imitadas. A menção a
esses livros [que não são perigosos, que não produzem danos], entretanto, ressalta
Por outro lado, é interessante que, neste ponto, nos primeiros capítulos,
queimar também aqueles livros de histórias pastoris; quem sabe poderia seu tio,
que seria ainda pior: “hacerse poeta; que, según dicen, es enfermedad incurable y
pegadiza”.706
__ __
Essa caracterização poesia pastoril pode remeter também para uma
reflexão: serem ficção e poesia meramente retóricas, uma doença que “pega”,
doença contagiosa e incurável, considerando que, nesse nível, não sobra espaço
para a cura. A poesia e ficção retóricas trabalham com os esquemas prontos, com
os modelos fixos que definem e determinam estilos e gêneros no tempo. Nesses não
703
Não devem ser de cavalaria e sim de poesia (Ibidem)
704
(1, VI, p.40)
705
Havendo curado [...] da doença cavaleiresca, lendo estes lhe ocorresse tornar-se pastor e andar pelos bosques e prados
cantando e tangendo (Ibidem)
706
Tornar-se poeta, que, segundo dizem, é doença incurável e contagiosa (Ibidem)
há espaço para o jogo verdade e não-verdade. Isso basta para justificar o incurável
Por outro lado, o ser poeta pode também ter o real sentido de poiesis. Nesse
caso, a doença (“enfermedad”) está aqui aplicada em seu sentido figurado: ser poeta
é uma “enfermedad incurable y pegadiza”, considerando que ser poeta não é uma
de-cisão. Aquele que produz arte não o faz porque quer, não há nem consciência
ordinário porque há sempre um poder outro, sempre algo que move o poeta, algo
sempre arrebatador que o toma irremediavelmente. Ser, pela poesia, tomado é “mal”
(enfermedad) que pega (pegadiza) e não larga (incurable). O poeta é movido pelos
deuses, por isso é sempre puro entusiasmo. Cheio de deus dentro, o poeta é puro
vigor. Ser tomado pelos deuses é a loucura mais divina. Talvez seja esse o destino
de Dom Quixote.
da sobrinha, tomam providências para que Dom Quixote não corra nenhum risco. Do
livro em questão, decidem tirar quase todos os versos, deixando somente a prosa,
Homero. E decidem poupá-lo, orientados pelo mesmo motivo que os levara a poupar
dentro dos estreitos limites que dimensionam o livro, além do cuidado com a
manutenção do cânon.
707
(1, VI, p.41)
É por isso que Dom Quixote perde a paciência com o canónigo, falando-lhe
experiencie com o “outro” que é a obra de arte; sugerindo-lhe a escuta do que a obra
diz. Não a escuta da obra, mas a escuta do que em nós ressoa, porque só a escuta
quando o “outro” que é a obra, o ouvimos ressoar em nós. A voz que escutamos na
Não há cânon, não há modelo, não há base possível para se tomar como guia
da obra de arte. Quando Dom Quixote diz: “léalos”, está dizendo que o que identifica
a obra de arte é o que na obra está em obra da verdade e isso se apresenta através
das questões.
parâmetros da obra de arte: ou porque “su autor es amigo mío”709 ou porque seus
versos soam bem “tal es la suavidad de la voz con que los canta, que encanta”; ou
como joya preciosa”710 “guárdense como las más ricas prendas de poesía que tiene
España”;711 mesmo que a recomendação fosse de tê-los fechados a sete chaves “en
vuestra casa, mas no los dejéis leer a ninguno”.712 Essa contradição, entretanto, por
mais inocente, deixa claro nenhum grau de consciência do acima apresentado: que
essencializa como obra: as questões que permitem que se desvele o que nelas está
708
Lê-los (os livros de cavalaria) (1, L, p.304)
709
(1, VI, p.41)
710
(Ibidem)
711
Que sejam guardadas como as mais ricas prendas de poesia que tem na Espanha (1, VI, p.42)
712
Em vossa casa; mas não deixai que ninguém os leia (1, VI, p.40)
__ __
Callad, hijas les respondió don Quijote , que yo sé bien lo que me
cumple. Llevadme al lecho, que me parece que no estoy muy bueno, y
tened por cierto que, ahora sea caballero andante o pastor por andar, no
dejaré siempre de acudir a lo que hubiéredes menester, como lo veréis por
713
la obra.
lamento que expressa a dureza biográfica do autor, mas que indicia muito mais seu
realmente o fenômeno chamado arte: “tiene algo de buena invención; propone algo,
encontrar a chave, o ponto certo que lhe permita alcançar “la misericordia que ahora
se le niega”.715 Essa menção nos serve para confirmar que o seu próprio fazer
Esse “no concluye nada”, ponto nevrálgico aos olhos de escrutínio é, ele
Refere-se à abertura infinita que é a obra. Uma grande obra só “propone”, sem
nunca fechar “y no concluye nada”. Para dar conta desse item, basta remetê-lo à
“obra aberta” de Umberto Eco e ao “labirinto”, com o qual Borges caracteriza a obra
que perguntas que, respondidas, geram novas perguntas em movimento sem fim.
deles ressalta-se nos limites do fragmento: “Los libros que están impresos con
713
Calem-se, filhas __ respondeu-lhes Dom Quixote __, que eu sei bem o que me cabe. Levem-me ao leito, pois me parece que
não estou muito bem, e tenham, por certo, que agora, sendo cavaleiro andante ou pastor só por andar, não deixarei de atender
sempre ao que for necessário, como vocês verão pela obra. (2, LXXIII, p.696)
714
Tem boa invenção, propõe alguma coisa e não conclui nada (1, VI, p.42)
715
A misericórdia que agora lhe é negada (Ibidem)
licencia de los reyes y con aprobación de aquellos a quien se remitieron”.716 Trata-se
que dão o aval, porque têm o poder de avaliar e julgar; aqueles que detêm o
Por outro lado vemos estabelecer-se uma grande contradição: aquelas obras
que passavam pelo rigor de autoridades políticas e da arte, não esqueçamos, foram
homens, leitores que detinham o poder do conhecimento __ “el cura” e “el barbero”__,
__
dando-lhes, por isso, o devido destino a fogueira. Ao ressaltarmos esse tema, a
publicadas a respeito da obra e, sim, as questões com as quais ela pode nos
provocar.
Dom Quixote, muito mais que vítima do expurgo dos livros de sua biblioteca,
ficara impedido de sequer transitar por ela. Por medida de precaução, a melhor
solução, tanto para “el barbero” como para “el cura”, foi “que le murasen y tapiasen
certo, é verdade; mas sem ter sido assimilada pelo cavaleiro. Tanto que, além de
716
Os livros que estão impressos com licença e com aprovação daqueles a quem foram dedicados [os mecenas] (1, L, p.304)
717
Que se emparedassem e encobrissem o aposento dos livros, para que quando se levanta não os achasse. (1, VII, p.43)
718
Um encantador havia levado, o aposento e tudo (Ibidem)
Dom Quixote ter ficado como louco procurando o dito aposento, e de terem ama e
imediatamente como inimigo que tinha em sua história o firme propósito de impedir o
não será possível “él contradecir ni evitar lo que por el cielo está ordenado”.719 É
graças a esse estar molesto de Dom Quixote que o texto se enriquece, porque
arte. Dom Quixote sustenta sua questão, a partir da aparência de verdade que ele
reconhece nos livros de cavalaria, e essa aparência está bem definida: os livros de
cavalaria parecem conter a verdade “pues nos cuentan el padre, la madre, la patria,
los parientes, la edad, el lugar y las hazañas punto por punto y día por día, que el tal
república – “yo hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que
é o da discussão num âmbito mais amplo. Seu alcance é muito maior, atinge, acima
de tudo, a obra de arte. É impossível que o querer de Dom Quixote seja um mero
719
Ele contradizer nem evitar o que pelos céus está ordenado (1, VII, p.44)
720
Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas detalhe, ponto por ponto e dia a dia, que
o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)
721
E acho por minha conta que são prejudiciais na república estes que chamam livros de cavalaria (1, XLVII, p.293)
capricho. Ainda que pareça capricho, no avançado desta pesquisa, não há como
acreditar naquilo que parece. Com tanto parecer, Dom Quixote só pode querer
Temos em resumo que arte andava, por aqueles tempos, misturada com tudo
o que dissesse respeito ao fazer. Estava na hora de o homem, assumindo seu lugar
Se estamos próximos da dis-puta, é hora de delegar. Dom Quixote escolhe tanto o espaço onde terá lugar a batalha-dis-puta com o
cavaleiro desconhecido, como, ao mesmo tempo define quem são os contendores.
722
Tem sentido nossa hipótese inicial, a partir do fragmento: “porque sabe por sus artes y letras” . Estavam corretas as suspeitas.
Essa batalha era, sem dúvida, aquela travada entre terra e mundo, entre não-ser e ser, no espaço “entre”, onde tudo pode ser.
Dom Quixote delega, porque, se o sábio protetor do cavaleiro com quem irá lutar pertence ao universo das letras e das artes,
também ele precisará contar com protetores do mesmo nível. Para dis-puta desse porte, Dom Quixote quer contar com quem tem
familiaridade com a arte.
Se desde os primeiros capítulos, até com a própria sombra lutava Dom Quixote, como desperdiçar manadas de ovelhas que
poderiam ser exércitos, como evitar moinhos que bem pareciam gigantes? Era preciso exercitar-se. Não o exercício do braço nem da espada.
O exercício que precisava exercitar era o do “fingir”. Essa foi a única arma escolhida por unanimidade pelos contendores para a batalha final.
Agora compreendemos; desde seu agir até o seu falar. Sabia a missão que o aguardava no futuro; por isso, desde os primeiros
capítulos lutava até com a sombra, esmerando-se, insistindo em seguir com manadas de ovelhas e moinhos, precisava exercitar-se para essa
batalha-dis-puta final. Quanta responsabilidade, quanto compromisso!
O tempo é pouco, muito há ainda a fazer. Dom Quixote começa, então, a lançar mão do que já dispõe: por reivindicação de
Hermes, a ele entrega a tarefa do “despistar”; em melhores mãos não poderia cair. Pois se até a nós mesmos conseguiu enganar. Nós, que há
tanto tempo estamos nessa lida “quixotesca”.
Tanto nos enganou o astuto Hermes que, para driblá-lo, foi preciso inventar a estratégia dos Périplos. Se íamos por um caminho,
quando seguros de que nos conduzia para onde as pistas indicavam; onde estavam as pistas? Sumiam, desapareciam sem explicação. Dele,
tudo se pode esperar, considerando que é capaz até de amarrar galhos de árvore no rabo de animais para, apagando os rastros, desorientar os
viajantes. E não nos enganemos, porque os viajantes somos nós mesmos, leitores que, como loucos, de Périplo em Périplo, pro-curamos o
caminho que leva à verdade.
Isso custou muito trabalho, exigindo um “ir e vir” exaustivo e molesto, mas necessário e inevitável. A solução encontrada no “ir e
vir” são os três Périplos em que está dividida esta pesquisa.
Na urgência, Dom Quixote também entrega a Hermes o “fingir”, atribuição a qual se dedica o deus, com desvelo, tal era sua
maestria. Embora Dom Quixote não tenha delegado a Hermes o quinhão da loucura, pois desse era cioso, o estarem tão juntas loucura e
ficção, no final, ele também dela participou. O resultado que se vê é perfeito, conseguem os dois – Hermes e Dom Quixote –, promover a
maior festa do fingir na ficção de que já teve notícia o Ocidente.
Com respeito à autoria, ainda que encontrasse em Hermes competência para perfeito desempenho, Dom Quixote não pode deixar
de pagar tributo a Octavio Paz. Foi o escritor mexicano que lhe deu o sinal essencial: “a outra voz”.
722
Porque sabe por suas artes e letras (1, VII, p.44)
Deixemos, aqui registrada, a parte que a Paz cabe. Deixamos este item nas mãos de Octavio Paz, por se tratar das vozes que
contam a história de Dom Quixote. A ele, que introduziu a “outra voz”, delegaremos essa mesma atribuição.
O ouvir a “outra voz” que não é nem do “eu” nem do “outro”, é aqui contemplado porque na obra, a outra voz não é só outra, é
outras. É claro que, também aqui, foi impossível a Octavio Paz livrar-se da influência de Hermes.
anotamos alguns dados que mais ainda enriquecem o tema: muitas são as
__
anotações encontradas nas margens “Está, [...], aquí en el margen escrito esto:
‘Esta Dulcinea del Toboso [...] que tuvo la mejor mano para salar puercos [...]’”.723
ao longo da obra, todos contados por diferentes vozes, vozes que não se restringem
necessidade de um tradutor que seja capaz de tirar uma dúvida, de desfazer mal-
entendidos: “y puesto que aunque los conocía no los sabía leer, anduve mirando si
em grande parte, responsáveis pela veiculação da história. Sendo eles, por origem,
mentirosos [é o que diz a obra], novas aberturas põem em jogo novas verdades: “su
autor arábigo, siendo muy propio de los de aquella nación ser mentirosos”726.
723
Está, [...], aqui na margem, escrito isto: “Esta Dulcinea del Toboso [...] que teve a melhor mão para salgar porcos [...]”
(1, IX, p.53)
724
Visto que ainda que os conhecesse não os sabia ler, andou olhando se aparecia por ali algum mourisco intérprete que os
lesse (1, IX, p.53)
725
Ainda que por conjecturas verossímeis, se deixa entender que se chamava Quejana (1, I, p.18)
726
Seu autor arábico, sendo muito próprio dos daquela nação serem mentirosos (1, IX, p.54)
Esse dado da autoria é de fundamental importância. É ele que enriquece a
obra com o ingrediente “mentira”, essencial para acionar o jogo de dobraduras. Esse
indiretamente, é verdade, por sua origem e casta, o que nos leva a repetir o
exemplo: “su autor arábigo, siendo muy propio de los de aquella nación ser
do poder-ser possibilidades.
Essa marca da obra está comprometida com duas questões. Como passa por
o fazem da seguinte maneira: mesmo que a história passe de mão em mão, de boca
nada”727; e, ainda: “Pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la
727
Sem lhes tirar nem acrescentar nada (1, IX, p.53)
728
Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade. (1, I, p.18)
729
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.58
11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO
CONTRAPONTO
Desde o 1o Périplo nos instigam situações que teimam em confundir vida com
ficção. A tal ponto que o texto denota essa marca intrigante e ambígua em relação a
preocupante percorre toda obra e, embora não pareça, é orquestrada por uma
seus derivados: “Por ser todo lo que he contado tan averiguada verdad”.730 Vão, no
registros:
[...] una petición, de que a su derecho convenía de que don Álvaro Tarfe,
aquel caballero que allí estaba presente, declarase ante su merced como no
conocía a don Quijote de la Mancha, que asimismo estaba allí presente, y
que no era aquél que andaba impreso en una historia intitulada: Segunda
731
parte de don Quijote de la Mancha, compuesta por un tal de Avellaneda.
fotografar para garantir os detalhes necessários à sua comprovação. Uma luta que é
interrompida faz cessar também a narrativa, para ser retomada no capítulo seguinte:
730
Por ser tudo o que contei tão averiguada verdade (1, XII, p.66)
731
Uma petição, de que a seu direito convinha que Dom Álvaro Tarfe, aquele cavaleiro que ali estava presente, declara-se
diante de sua mercê como não conhecia Dom Quixote de La Mancha, que também estava presente, e que não era aquele que
andava impresso na história intitulada: Segunda parte de Dom Quixote de La Mancha, composta por um tal de Avellaneda.
(2, LXXII, p.692)
“que en este punto y término deja pendiente el autor desta historia esta batalla,
disculpándose que no halló más escrito destas hazañas de don Quijote de las que
deja referidas”.732
O narrador, para não fugir ”un punto de la verdad”, como recomendara Dom
Quixote, desde o início da história, para que não se perdesse um ponto sequer do
como a luta acontecera, põe-se a procurar um documento que lhe desse a garantia
da seqüência. Acaba encontrando uma pintura da cena onde a luta tinha cessado:
escritor “arábigo” aparecerem na obra, não por excesso, mas por falta. Tal é sua
performance de mentiroso, que o simples omitir, por faltar com a verdade, pode
constituir uma mentira irreparável. Alega-se que essa falta, esse deixar de dizer, se
deve a que, sendo inimigos dos espanhóis, os árabes preferem esconder: “antes se
732
Que neste ponto e termo deixa pendente o autor desta história esta batalha, desculpando-se que não achou mais escrito
destas façanhas de Dom Quixote do que as que deixa referidas. (1, VIII, p.51)
733
Estava, no primeiro calhamaço, pintada muito ao natural, a batalha de Dom Quixote com o biscainho, postos na mesma
postura que a história conta (1, IX, p.53)
734
Devendo ser [...] pontuais, verdadeiros e nada apaixonados, e que nem o interesse, nem o medo, o rancor e a simpatia,
não os façam torcer o caminho da verdade, cuja mãe é a história, rival do tempo, depósito das ações, testemunha do passado,
exemplo e advertência do porvir (1, IX, p.54)
735
Antes se pode entender haver ficado nela lacuna que excesso (Ibidem)
Nesse parecer, há índices de significativa comparação entre o modo de ser
encontra Dom Quixote. Mesmo sabendo dos riscos, mesmo sabendo que o
manicômio pode reservar-lhe um triste fim, porque ele também sabe aquilo que, por
medo, ninguém quer enfrentar, mesmo assim, Dom Quixote de-cide e enfrenta o
território espanhol do século XVI? Talvez não, porque, de todos, era Dom Quixote o
Muitos não sabem: nem todos nascem hermeneutas. Muitos sabem e, pelo
medo do risco, não querem saber, mas Dom Quixote sabe. É possível que tema o
736
Parece que, de propósito, as passa em silêncio (1, IX, p.54)
visco, mas ao risco se sobrepõe; não há outra saída: se quer ser, só sendo “entre-
Dom Quixote nessa palavra temida e amaldiçoada por todo aquele que do molde
perfilado pela loucura se aproxime: a “mentira”. É por isso que Dom Quixote precisa
estar, a todo o momento, com ela lidando, mostrando, com isso, que o ameaça o
Por que procurar caminhos tão tortuosos? Para ingressar no mundo da ficção
nossa suspeita. O que pretende, na verdade, é aproximar vida vivida e vida ficcional,
torná-las muito próximas, tão próximas que os liames se confundam. Esta parece ser
a missão primordial de Dom Quixote, uma missão que ele garante só ser possível
Imaginação.
Sem a loucura, Dom Quixote não poderia ter aberto o espaço necessário para
Dom Quixote? É ela que dá entrada ao “loco por no poder menos”. Foi ela que737
deslocado no tempo, convivendo paralelamente com o seu mundo real. Foi a loucura
que permitiu que Dom Quixote àquela realidade se apegasse, defendendo com
mostrarem por si mesmas que não eram tão verdade como pareciam.
737
Aproveitamos o espaço que nos está sendo concedido, para um comentário interessante: o pronome “quem” dá à loucura
atribuições humanas. Isso se deve ao gosto de deixar registrada a contrapartida erasmista ou erasmiana ao ritual __ prova
contundente da soberania da razão, ou melhor, com todo o respeito da deusa Razão, título que Sergio Paulo Rouanet dá ao
artigo em que narra o ritual substitutivo, consagrando a vitória da razão sobre o cristianismo. Aconteceu em 10 de novembro de
1793, na Catedral de Notre-Dame: “Onde ficava o altar-mor, fora construída uma montanha de madeira pintada. Sobre o
rochedo havia um templo da Razão, iluminado pelo archote da Liberdade. Em torno do templo, os bustos de Voltaire,
Rousseau e Franklin. Os membros da Comuna, escoltados por um coro de meninas vestidas de branco e coroadas com folhas
de carvalho, tinham se instalado na base da montanha. A porta do templo se abriu, dando passagem a uma figura feminina,
com um vestido branco e um manto azul. Era a deusa Razão, representada por uma atriz, Thérèse-Angélique Aubry. Ela se
sentou num banco de verdura, enquanto o coro cantava o ‘Hino à Liberdade’, com música de Gossec e letra de Joseph-Marie
Chénier: ‘Desce, ó Liberdade, filha da Natureza; / O povo reconquistou seu poder imortal; / Sobre os pomposos destroços da
antiga impostura / Suas mãos reergueram teu altar’”. (ROUANET, Sergio Paulo. Crise da razão. Tradução de Adauto de
Novaes. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p.287). Muitos anos antes, entretanto, Erasmo já concedera igual lugar de destaque
à Senhora Loucura que ascende em sua obra à categoria de personagem. Em Elogio da loucura, ela se reconhece a mais
apropriada para falar de si mesma: “Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo: [...] de fato, que mais poderia convir à
loucura do que ser arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores?” (ROTTERDAM, Erasmo
de. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.16.). Se pensamos que quis essa Senhora receber alguma vez as
mesmas honrarias que recebera a deusa Razão, estamos enganados. Ela já o dispensara dizendo: “Até agora, é voz geral,
ninguém pensou em prestar à Loucura honras divinas; ninguém lhe consagrou um templo; ninguém a nutriu com vapores das
vítimas. Para falar-vos com franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa grande surpresa; mas pouco me
importa isso e, de acordo com a minha natural facilidade, não levo a coisa a mal. Eu cheiraria à sabedoria e seria indigna de
ser Loucura se reclamasse essas honras divinas. Que é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco de incenso, um
pouco de farinha, um bode, um porco. Poderia eu permitir que se degolassem esses inocentes animais para deleitar-me o
olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me
prestam, e os próprios teólogos o consolidam pelo exemplo. Não tenho a bárbara e cruel ambição de Diana, que vê com prazer
as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servida e venerada quando me vejo esculpida em cada
coração e representada em cada coração e representada pelos costumes e conduta”. Além de revelar o alcance na linha do
tempo do poder da razão, além de ser este um espaço propício para fazer justiça e reverenciar aquela que, até então, não
recebera nenhuma homenagem, vemos que há um confronto entre as dimensões de razão e loucura.
Sancho, por mi vida, porque te desengañes y veas ser verdad lo que te
digo: sube en tu asno y síguelos bonitamente, y verás cómo, en alejándose
de aquí algún poco, se vuelven en su ser primero, y, dejando de ser
738
carneros, son hombres hechos y derechos, como yo te los pinté primero...
Não pode ser gratuito que Dom Quixote, designado arauto da verdade, tão
mentira?”739
acontecer porque tudo depende de como uma experiência da vida vivida é mais que
vivida, uma mera experiência do cotidiano, como aquela em que Heráclito está em
seu prosaico forno à lenha assando pães ganha sentido e ganha a dimensão de
experienciação.
Nesse imenso ginásio de Hermes, seria possível dar mais folga à loucura.
reconhece na loucura a chancela que é sua. Isso parece que lhe dá, sobre ela,
alguma ascensão. Por isso, acredita ser possível cumprir todos os compromissos
que à loucura digam respeito. Sabe não se tratar de qualquer loucura: só ele a
do ser, não economizou em investimentos para vivê-la como obra, ou melhor, para,
por ser louco, ser obra. Tudo isso, a ponto de um só “loco por no poder menos”,
738
Sancho, por minha vida, para que te desiludas e vejas ser verdade o que te digo: monta no teu asno e siga-os bonitamente,
e verás como se afastando daqui, um pouquinho, volta a ser primeiro e, deixando de ser carneiros, são homens e direitos,
como eu os pintei para ti antes [...] (1, XVIII, p.96)
739
Haviam de ser mentira? (1, L, p.304)
desdobrar-se em três. Desdobrou-se louco para tornar real o mundo da cavalaria
andante. Desdobrou-se louco para fazer frente à razão que avançava a passos
ente aprisionado em conceitos. Agora, mais uma vez, Dom Quixote é, mais do que
novamente louco. Na verdade, nada disso experimentou Dom Quixote, pois tudo o
redimensiona. Aqui, ela mostra ser de outra natureza. Não é a loucura estabelecida
manicômio, “Netuno”: “No tenga vuestra merced pena, señor mío, ni haga caso de lo
que este loco ha dicho; que si él es Júpiter y no quisiere llover, yo, que soy Neptuno,
el padre y el dios de las aguas, lloveré todas las veces que se me antojare y fuere
que querem usar até o amor como álibi aparente para o exercício do poder
apoderar-se do outro, seja pela ingênua malícia de ser simplesmente pastor, seja
pelo estratagema técnico, tanto de artefatos como da própria linguagem, seja pelo
querer mais conhecer para mais dominar, usando o poder do pensamento que
também Lotario e até Anselmo murcharam até a morte. Todos “sin poder acabar la
740
Não tenha Vossa Mercê, pena, senhor meu, nem faça caso do que este louco disse, pois se ele é Júpiter e não quiser fazer
chover, eu que sou Netuno, o pai e o deus das águas e choverei todas as vezes que me der na telha e que for necessário
(2, I, p.331)
razón, se le[s] acabó la vida [...] y acabó en breves días la vida”741. A vida “se le[s]
Así que, es razón concluyente que el intentar las cosas de las cuales antes
nos pueda suceder daño que provecho es de juicios sin discurso y
temerarios, y más cuando quieren intentar aquellas a que no son forzados ni
compelidos, y que de muy lejos traen descubierto que el intentarlas es
manifiesta locura.
742
locura”.
Dom Quixote não é nenhum dos loucos “galeotes” que não resistem ao objeto
externo, querendo com eles locupletar-se, nem é a loucura de “el cautivo” eterno
prisioneiro que, mesmo que, no espaço por onde transitava, lhe tivesse passado
diante dos olhos, o único dentre todos os igualmente prisioneiros, um somente livre –
um poeta:
Pedro de Aguilar [...] tenía particular gracia en lo que llaman poesía [...] al
cabo de dos años que estuvo en Constantinopla se huyó [...] Pues lo fue –
respondió el caballero -, porque ese don Pedro es mi hermano, y está ahora
743
en nuestro lugar, bueno y rico, casado y con tres hijos.
Mesmo assim, o cativo não foi capaz de fazer a devida leitura. Sequer sabia
dizer bem os poemas: “Dígalos, pues, vuestra merced -dijo el cautivo-, que los sabrá
decir mejor que yo”.744 Esses eram os versos que Pedro Aguilar compôs, cantando o
heroísmo dos soldados que jamais conseguiam a glória pelo vigor de seus braços,
741
Sem poder acabar sua razão, acabou-se sua vida [...] e acabou em breves dias (1, XXXVI, p.217)
742
Assim que, é razão geral que, tentar as coisas das quais é mais provável perdas que ganhos, é mais ajuizado não fazer
discursos temerários, quanto mais quando se quer tentar coisas a que não se é forçado ou compelido, que de longe se
perceba que o simples tentá-las é oura loucura. (1, XXXIII, p.193)
743
Pedro de Aguilar [...] tinha particular graça no que chamam poesia [...] ao fim de dois anos que esteve em Constantinopla
fugiu [...] Por foi isso – respondeu o cavaleiro –, porque esse Dom Pedro é meu irmão, e está agora em nosso lugar, bom e
rico, casado e com três filhos (1, XXXIX, p.238)
744
Diga-os, pois, vossa mercê – disse o cativo, – que saberá dizê-los melhor que eu (Ibidem)
porque eram todos consumidos pela guerra, todos morriam sem que chegassem a
[...] primero que el valor faltó la vida, / en los cansados brazos, que,
muriendo / [...] por el suelo echados, / las almas santas de tres mil soldados
/ subieron vivas a mejor morada / siendo primero, en vano, ejercitada / la
fuerza de sus brazos esforzados, / hasta que, al fin, de pocos y cansados, /
745
dieron la vida al filo de la espada
corpo morre, porque as almas sobem vivas, indicando que todos foram consumidos
sem que experimentassem o seu próprio vigor de “poder-ser”. Todos, mesmo os que
de allí a pocos meses murió mi amo”)746, acabam dando a vida, sinal de que não
viveram vida experienciada e sim vida vivida por uma determinada causa
questão que se estende a todos os demais prisioneiros. Mas não o viu “el cautivo”,
não o viu ninguém. Ninguém enxergou o poeta que ali estava à disposição, livre para
ser visto, livre para ser escutado. Ninguém nada lhe perguntou. Recitaram e ouviram
seus versos sem que os tenha mobilizado nenhuma questão. Imagem de mesma
entanto, também não fizeram a leitura devida. Tiveram, os dois, o pastor ao seu
alcance: Cardenio quis dele arrancar aos bocados, não aceitando a forma sutil e
delicada como fazia sua doação, o pastor. Grisóstomo, sem compreender que o ser
pastor era uma prerrogativa da sua espécie, um privilégio de sua condição humana,
buscar, fora, o que dentro sempre fora seu, forja uma situação falsa, fabrica um
nem a de todos aqueles que dele mesmo (Dom Quixote) se apropriam. Tanto os
seu lugar na ficção, por estratégia de seu plagiador, como o próprio Avellaneda que
Dom Quixote, depois de atento olhar ao redor, percebe que sua loucura é
loucura permite que Dom Quixote desça a “la cueva”, coisa que os demais, divididos
em dois grupos __ um representado por Sancho, outro representado por “el primo” __,
não realizam. Graças à loucura, pôde Dom Quixote experienciar tudo o que
olhos de todos sobre a terra. Só a loucura permite que Dom Quixote penetre em
isso seria o suficiente para desmontar o projeto de Dom Quixote. Ele não se dirigira
“que le venía de molde”, estratégia que sempre adotara para reviver as aventuras da
cavalaria. Aproveita para eliminar aquele item constante do manual das novelas de
Morena”. Ali estando, quer repetir os ritos realizados por “Roldán el furioso”747 e/ou
roupa e mantendo-se nus como penitência ou dando açoites nas árvores para livrar-
coloca:
¿para qué quiero yo tomar trabajo agora de desnudarme del todo, ni dar
pesadumbre a estos árboles, que no me han hecho mal alguno? Ni tengo
para qué enturbiar el agua clara destos arroyos, los cuales me han de dar
748
de beber cuando tenga gana.
imitando Amadis de Gaula naquilo que soubera ser um de seus hábitos finais, rezar,
“lo más que el hizo fue rezar y encomendarse a Dios.” Dom Quixote lamenta, mas
final é simples e irônica: não pode imitar Amadis porque não tem rosário.
somente impróprio.
Só a loucura faz Dom Quixote sair dos parcos limites do viver para alcançar o
patamar mais alto, digno e nobre. Tudo isso só foi possível porque sua loucura lhe
permitiu andar solto e livre pelos caminhos de Hermes, para livre poder encontrar
747
Roldão, o furioso (1, XXVI, p.145)
748
Para que quero eu tomar trabalho agora de despir-me de todo, nem dar desgosto a estas árvores, que não me fizeram
nenhum mal? Nem tenho que sujar a água clara destes arroios, que me dão de beber quando tenho vontade (Ibidem)
749
O que mais fez foi rezar e encomendar-se a Deus [Dom Quixote (...) mesmo] mesmo o que farei de rosário, que não tenho
(Ibidem)
todos os que estão pelos caminhos perdidos e desorientados, mas que, sem a
estratégias lúdicas de Hermes. Imaginem, amarrar galhos no rabo dos animais, para
desfazer as trilhas e colocar os viajantes tontos à pro-cura. Esse, sim, sabe brincar
de “esconde-esconde”, de “entrou por uma porta saiu pela outra”, sabe jogar o jogo
irônico da vida, jogo que só amplia e plenifica. Ao contrário da razão que desorienta,
um triz, não chegara a cair na esparrela do “outro”. Foi quase, o cavaleiro foi só uma
escolha dentre muitas, com a qual foi-lhe possível, no diálogo com o mundo, entrar
como Entre-ser”.750
conceitos e teorias, pelos quais tanto lutara para fixar e eternizar no mundo as suas
verdades. Bem que tentaram apagar-lhe o daimon, mas não conseguiram. Dom
heróica.
Foi assim que, mesmo aos cinqüenta anos, Dom Quixote resistiu. Entrou no
deixando espaço vazio para que o nada virasse assédio, virasse apelo do ser. Só à
750
CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
medida que ia sendo Dom Quixote ia adquirindo corpo porque o oco ia consumando-
ser. E, nesse atendimento, Dom Quixote descobre que tem daimon, percebe que
tem impulso para a vida, percebe ser o daimon impulso tal para a vida, capaz de
da morte como tensão é Eros. É aí onde está o problema que Sócrates tenta
se sabe ser voz que vem das entranhas, um alerta, talvez, “manifestou-se o sinal
costumeiro [...] pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá de dentro”751, o que obriga o
personagem a ficar atento para não se deixar levar pelas profecias que não sejam
porta aberta para os deuses, uma porta que só pode ser franqueada aos deuses.
daimon, foi dessa mesma maneira que Sócrates o percebeu. Embora o amor-paixão
tenha o estigma de louco e perigoso, também essa loucura é santa, porque, como
diz Sócrates, “obtemos bens de uma loucura inspirada pelos deuses”.752 São os
“delírios” que inspiram os homens nas profecias, profecias que protegem o homem
751
PLATÃO. Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 75-76
752
PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 79-80
das expiações, que o induzem aos ritos misteriosos de purificação para livrá-lo de
todos os males.
de seu filho seja ambíguo, parece que o fragmento seguinte, no que se refere a não
intervenção das Musas: “También digo que el natural poeta que se ayudare del arte
será mucho mejor y se aventajará al poeta que sólo por saber el arte quisiere
serlo”.753 Comparado com o que nos diz Sócrates sobre o ser fundamental a
provocação das Musas, que aquele que se aproximar da arte poética, “julgando que
apenas pelo intelecto será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra poética
poético orientado, conduzido por normas e teorias apriorísticas e pelo intelecto, sem
Quixote a “el canónigo”. Tão brusca que marca definitivamente a mudança de rumo
Ao mesmo tempo que parece sair das entranhas de Dom Quixote uma voz
que exorciza um demônio, parece também que a voz é o próprio demônio alertando-
o, não permitindo que se cometa nenhuma impiedade contra os deuses, “uma voz
que vinha cá de dentro e que não me permitia ir embora antes de oferecer aos
753
Também digo que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que somente por saber
a arte quiser ser poeta (1, XVI, p.403)
754
PLATÃO, op.cit., p.81
755
Haviam de ser mentira? (1, L, p.304)
deuses uma expiação, como se houvesse cometido uma impiedade”.756 Nesse caso,
estaria Dom Quixote sendo o emissário desse alerta, através de seu daimon? É bem
novelas de cavalaria, é, também, o “cânon” que está embutido em seu próprio nome.
tantos equívocos que se estão cometendo contra a arte, um mar de golpes que se
desferem sobre a arte que, de tão visíveis, já ultrapassam todos os limites, exigindo
uma expiação, “uma voz que vinha cá de dentro e que não me permitia ir embora
alguma impiedade”.757
É bem possível que o “léalos” ganhe sentido como uma grande intervenção
possível.
saberemos num próximo item, quando, provocado por alguma força, Dom Quixote
Com a loucura experimental, foi possível a Dom Quixote driblar até a morte.
Basta que se conheça o “buen morir”, basta que se descubra, da morte, sua
acepção de “buena muerte”. Com a loucura, até a morte ganha mais espaço, sai do
756
PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.76
757
Ibidem.
Aquela bem-vinda e até desejada, pois revela a gratuidade do ser. E Dom Quixote
pôde ter acesso a todas as mortes. Basta que se descubra que, mesmo ausente, fria
e sombria, é a terra quem guarda todo o vigor no velamento, enquanto aguarda que
o céu venha com ela dialogar, aquecendo o frio, iluminando o sombrio, promovendo
Isso parece instigante. Se não participa a razão do diálogo céu-terra, onde fica a
luz? Se substituirmos os níveis terra – céu por divindades, teremos “Lúcifer” como a
Por mais estranho o caminho percorrido por Dom Quixote, intui-se quem o
direção a si mesmo, avançava: foi o logos, a sua voz e luz interior. Todo o estranho
espaço maior, espaço que parece estarmos agora identificando com o espaço da
lucidez e da sabedoria. Assim, Dom Quixote, no parecer o mais louco, foi o mais
lúcido cavaleiro que o Ocidente já produziu. Por ter-se entregue a um modo de viver
É por isso que ele entra na vida e essa vida é, ao mesmo tempo, ficção, para
a obra é mentira ou verdade, não há nada, nenhum modelo, nenhuma “escola” que
manter-se no “entre”, único espaço onde, por uma bela e digna dis-puta, o poético
pode acontecer, só o vigor do vazio do não-ser pode irromper. Por isso, por mais
que Dom Quixote insista em perguntar, não receberá resposta. A resposta só virá do
preciso a disposição da renúncia porque tanto para dar o salto, como para fazer a
travessia, é preciso leveza. A obra só pode dizer aquilo que puder ser escutado. Se
muito cheia de ruído, se muito interferida de sons, não haverá voz que possa ser
aprendendo. Foi com Hermes que aprendeu a fingir tão bem, tão bem que ninguém
desconfiava. Não desconfiava até certo ponto. Até que chega a um ponto que não
os que o observavam, o próprio Dom Quixote, ainda que não fosse essa sua
intenção, sob o olhar inquiridor de todos, responde: “Soy loco en mis acciones, pero
no soy loco en lo que hablo”,759 o que reforça a perplexidade de todos que não
podem imaginar ser possível tamanha contradição. Só então, Dom Quixote vai
758
Haviam de ser mentira? (1, L, 304)
759
Sou louco em minhas ações, mas não sou louco no que falo.
acrescentar o “tan”: “no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle
Primeiro, foi Tomé Cecial, “Don Quijote loco, nosotros cuerdos: él se va sano
y riendo; vuesa merced queda molido y triste. Sepamos pues, ahora: cuál es más
loco: ¿el que lo es por no poder menos, o el que lo es por su voluntad?”.761 Trata-se
Depois é a vez de Dom Diego de Miranda a quem, de tão intrigado, não basta
Primeiro responde:
760
Não sou tão louco nem tão mentecapto quanto devo haver-lhe parecido (2, XVII, p.410)
761
Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moída e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o
mais louco: o que é por falta de alternativa ou o que é por sua própria vontade? (2, XV, 397)
762
Todo atento, observando e anotando atos e palavras de Dom Quixote, parecendo-lhe que era um sensato louco ou um
louco que parecia sensato [...] [Dom Diego de Miranda] ora o tomava por sensato, e ora por louco, porque o que falava era
concertado, elegante e bem dito, e o que fazia, disparatado, temerário e tolo. (2, XVII, p.410)
763
Quem duvida, senhor Dom Diego de Miranda, que vossa mercê não me tenha em sua opinião como homem disparatado e
louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar testemunho de outra coisa. Pois, com tudo
isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)
Depois faz um resumo de sua situação no seguinte discurso, “Soy loco en mis
por todos vivido. Preocupado, é verdade, mas com uma pontinha de alegria pelo que
via acontecer, Dom Quixote resolve oferecer-lhe um refrigério para amenizar o seu
conflito, com o cuidado de avisar que sua resposta é uma advertência, “quiero que
Com o “tan”, Dom Quixote instala a zona do “entre”. Com essa afirmação,
suaviza a primeira resposta: “Soy [...] no soy”, esta também perfeitamente ajustada
ao “entre”, sou e não-sou. Entretanto, como parece que ainda não ficara claro,
reforça a advertência acrescentando o “tan” que deixa claro que há, “entre” os
Com isso, quer nos dizer Dom Quixote que opostos radicais não se
loucura, é claro que tampouco não deve descartar a razão. Não se trata de ler a
obra como um tratado contra a ciência, o que ele quer chamar a atenção para a
arrogância da razão.
Embora seja a partir do falar que Dom Quixote anuncia e abre este Périplo, é
ao pensar que ele irá dedicar-se. Até então, só o conhecíamos como falar-falatório.
não é a esses falares que nos referíamos e sim ao falar-pensar, aquele falar do que
é digno de ser pensado. Custou ao cavaleiro descobrir o melhor falar para a tarefa
do contar e desencantar.
Falta ainda outro cuidado. Se há fala é porque há escuta. Nesse caso, para a
escuta, o sentido correto seria a audição. Ledo engano, porque o sentido que inclui
os termos com ela afins não depende do aparelho auditivo, em seu sentido ôntico,
seu alcance é muito mais amplo. Quando é a escuta que se quer convocar,
discurso verdadero a quien podría ser que no llegasen los mentirosos”.764 Para isso,
haver silêncio.
logos, o único que, assediado pelo ser e para atender a esse assédio, percebe o
mistério velado para torná-lo linguagem. No preparar-se para falar a fala poética,
Dom Quixote se lembra, quase no último minuto, de que a batalha com o cavaleiro
busca na memória agora é nossa. Em que ponto da obra acontece o combate tão
capítulo onde o título anuncia que vão acontecer “[...] discretas altercaciones que
764
E assim, estejam vossas mercês atentas, e ouvirão um discurso verdadeiro ao qual poderia ser que não chegassem os
mentirosos (1, XXXVIII, p.233)
765
Disse que todos se acomodassem e lhe prestassem um grande silêncio (Ibidem)
don Quijote y el Canónigo tuvieron, con otros sucesos”.766 E lá está ele, novamente
brusca, sem tempo sequer de pensar, “Calle vuestra merced, no diga tal blasfemia,
(y créame que le aconsejo en esto lo que debe de hacer como discreto), sino
responder Dom Quixote a “el canónigo”, a resposta é para o leitor, a resposta é para
si mesmo, ler é a resposta. A resposta era para todos.Todos liam na Espanha, todos
resolver o impasse registrando sua vida em um livro. Um livro que já está começado,
não deixando dúvidas sobre “sua pessoa”, porque é onde ele “dice verdad”.768
Quando Dom Quixote lhe pergunta se já está terminado, ele assim lhe responde:
“¿Como puede estar acabado [...] si aun no está acabada mi vida?”.769 O autor do
livro revela ter clareza do percurso de Cura. Primeiro, porque, estando vivo, há vida
para contar. Depois, porque assim o explica: “lo que está escrito es desde mi
nacimiento hasta el punto que esta última vez me han echado en galeras”.770
766
Atinadas altercações que Dom Quixote e o Canónigo tiveram, com outros acontecimentos (1, L, p.304)
767
Cale vossa mercê, não diga tal blasfêmia, e creia-me que lhe aconselho no que deve fazer como atinado, senão leia-os.
(Ibidem)
768
Diz verdade. (1, XXII, p.120)
769
Como pode estar acabado [...] se ainda não está acabada a vida? (1, XXII, p.121)
770
O que está escrito é desde o meu nascimento até o ponto que esta última vez me atiraram nas galés (1, XXII, p.121)
vemos, nesse movimento do contar o “galeote” a sua história, um pulsar de
ambigüidades que exigem, talvez, vê-lo como imagem-questão. É claro que Ginés
acontecimentos de cada dia, dia por dia, “lo que está escrito es desde mi nacimiento
hasta el punto que esta última vez”. O termo “punto” nos remete à descrição de
como eram narradas as novelas de cavalaria: “punto por punto y día por día”.771
Assim, por mais que lhe pareça ser essa forma o que vai garantir a verdade de sua
no mundo, eliminando qualquer dúvida a seu respeito, nos preocupa que sua
intenção seja a de contar rigorosamente toda a sua vida com todos os detalhes,
ali, pelo menos, ele pode contar com a tranqüilidade necessária para escrever bem o
que precisa escrever, “Y no me pesa mucho de ir a ellas, porque allí tendré lugar de
acabar mi libro, que me quedan muchas cosas que decir”.772 Entretanto, algumas
questões já nos provocam. Primeiro, porque Ginés de Pasamonte faz parte daqueles
possibilidade. Desse modo, impossível será fazer-se obra, o “fingir” estará fora de
ainda, não lhe passar pela cabeça contar aquilo que seguramente é digno de ser
771
Ponto a ponto e dia a dia (1, L, p.304)
772
E não me pesa muito ir a elas, porque ali terei lugar de acabar meu livro, que me restam muitas coisas que
dizer (1, XXII, p.121)
__ __
contado. Ao dizer que sabe tudo o que vai contar de cor “me lo sé de coro”773 ,
o quê? Ler os livros de cavalaria? Não importa. O que importa é que nessa resposta
está a intenção de tomar a palavra para revelar o grande segredo. E seu grande
história nos deparamos com eles “cuando el famoso caballero don Quijote de la
Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante y
encerravam. O incômodo era tal que “muchas veces le vino deseo de tomar la pluma
Por duas vezes, Dom Quixote teve contato com “la pluma”. Numa delas
entretanto, sua relação com um objeto, que lhe parecera tão significativo, é menos
claro que a intenção é, ao contrário, de não escrever. O que à sua frente estava
eram “plumas” ociosas, “plumas” que não escrevem e que jamais escreverão.
773
O sei de cor (1, XXII, p.121)
774
Mesmo que não seja preciso muito mais para o que tenho de escrever, por que o sei de cor (Ibidem)
775
Quando o famoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, deixando as ociosas plumas, subiu sobre seu famoso cavalo
Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (1, II, p.21)
776
Muitas vezes lhe veio desejo de tomar a pluma e dar-lhe fim ao pé da letra. (1, I, p.18)
Com relação ainda ao escrever e contar-se, é interessante mencionar outro
espaço. No entanto, se estamos nos limites da obra de arte, tudo é possível. Visto
que ela deixaria de ficar ociosa? Não significaria que, daquele momento em diante
ela deixaria de ser ociosa, ou, mais ainda, que não seria sequer necessária porque a
partir daquele momento era ele quem começaria a escrever-se? E, nesse caso, a
da Tese. Ler-se, escrever-se, contar-se. Unem-se as pontas entre vida vivida e vida
experienciada, entre Dom Quixote fidalgo e Dom Quixote cavaleiro, entre Dom
que el temeroso lago estás mirando, si quieres alcanzar el bien que debajo destas
entrar no lago se dirige a um cavaleiro que parece ser ele mesmo. Isso só reforça
nossa desconfiança de que está, na verdade, dirigindo a sua fala a si próprio. Nesse
777
Tu, cavaleiro, quem quer que sejas, que o temeroso lago estás olhando, se queres alcançar o bem que debaixo dessas
negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito e lança-te na metade do seu negro e aceso licor (1, L, p.304-305)
para si mesmo. Dom Quixote exulta ao descrever o fascínio que exerce o lago,
¿hay mayor contento que ver, como si dijésemos: aquí ahora se muestra
delante de nosotros un gran lago de pez hirviendo a borbollones, y que
andan nadando y cruzando por él muchas serpientes, culebras y lagartos, y
778
otros muchos géneros de animales feroces y espantables.
parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por punto y día por día que el tal
verdade da obra de arte. É ele quem rege e administra todo processo, com sua
discurso, parece querer defender. Essa atitude seria previsível a um aficcionado que,
778
Há maior contentamento que ver, como se disséssemos, aqui agora se mostra diante de nós um grande lago de peixe
fervente em ebulição, e que andam nadando e cruzando por ele muitas serpentes, cobras e lagartos, e outros muitos gêneros
de animais ferozes e espantosos. (1, L, p.304)
779
Contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, detalhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal
cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (Ibidem)
Quixote, o referencial medieval que será posto à prova, naquele ambiente em que
aparente caos de uma obra de arte com a ordem extrema das novelas modelo que
são o grande referencial para a multiplicação num sem número de cópias. Nesse
caso, ao apresentar o conto do lago, parece estar Dom Quixote lançando mão de
da obra de arte.
referência para preservar a idéia de ser, o personagem que vai mergulhar no lago, o
próprio cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, indicando que será sua a história que
será contada.
cavalaria. É nesse rompante brusco que imaginamos ter sido Dom Quixote tomado
pelo daimon com a missão de descartar-se tudo o que até então participara do
horizonte da arte sem, contudo, à arte pertencer, tudo o que fosse alheio e que só
o espaço dos deuses, o delírio é também imediato, e Dom Quixote é possuído pelas
antes de ficar tentando falar, avaliar, julgar”; é como se dissesse a si mesmo, “Leia-
se! Seja você mesmo, obra!” Nesse momento, já estava, sem dúvida, possuído.
igualmente ferozes também ameaçam, só nomeia esses animais que, por acaso,
transitam entre a terra e a água. Parece que, ainda que pareçam perigosos, sua
freqüentam água e terra são seres ambíguos. Relação semelhante faz Octavio Paz,
entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são idéias e são formas, são
Das entranhas desse lago sai uma voz triste que convida o cavaleiro, o
próprio Dom Quixote, a entrar no lago: “si quieres alcanzar el bien que debajo destas
meio, que vem a voz. Mais uma vez, aparece a “voz”: a outra voz, o daimon, o
logos? Uma voz-convite com a promessa do “bem”: “Si quieres alcanzar el bien”, que
onde o escuro das águas está em oposição contrária e radical ao sol que “luce con
780
Ferozes e assustadores (1, L, p.304)
781
Serpentes, cobras e lagartos (Ibidem)
782
PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143.
783
Se queres alcançar o bem que debaixo destas negras águas se encobre (1, L, P.305)
784
Mostra o valor de teu forte peito e arroja-te no meio de seu negro e aceso licor (Ibidem)
claridad”.785 Entretanto, a inversão com que eles são dispostos [escuro na superfície,
sentido. Sem contar com o aparente da superfície. Além de quente, ela borbulha,
indicando haver ali muito vigor, indicando haver uma relação de troca, a superfície
licor”786 o que, pelo significado de licor, pelos processos por que passam as
substâncias naturais para delas tirar-se o máximo da essência, pode remeter para
“vigor”, além do adjetivo “encendido” que também indica força, poder, logo vigor. Só
apresentadas em número de “7”, “los siete castillos de las siete fadas”787, talvez
ponerse a considerar el peligro a que se pone”,788 nem pensa nos perigos que
poderá enfrentar; mas, ainda assim, não largando o peso da arma que carrega, nem
aventura, a de uma nova experiência que poderá abrir-lhe novos mundos. Quando
com os quais os “los Elíseos no tienen que ver en ninguna cosa”789, indicando,
785
Brilha com claridade (1, L, p.305)
786
Aceso licor (Ibidem)
787
Os sete castelos das sete fadas (Ibidem)
788
Entrar mais em considerações consigo mesmo, sem se por a considerar o perigo ao qual se expõe (Ibidem)
789
Os Elíseos não têm a ver com coisa nenhuma (1, L, p.305)
Dos elementos apresentados, um merece atenção: os símbolos de força e de
espada são deslocados para o peito, “fuerte pecho”, a parte do corpo requisitada
acompanham a arma, sua amada e Deus. Essa referência parece ser também uma
forma de marcar o liame entre “novelas de cavalaria” e o “conto do lago”, feito nos
forma sutil, talvez pela necessidade de deixar marcado que a verdade não está nem
numa nem noutra, mas sim, no meio, no trânsito. A passagem ritualística tanto se
poeta, como, ainda, à obra de arte que dispensa qualquer aparato, a obra de arte
livre na frescura do seu vigor, sem definições, sem teorias, sem conceitos, tudo
maravilhas que se pode encontrar na obra-de-arte sob o brilho de outro sol, um sol
diferente porque “el cielo es más transparente, y [...] el sol luce con claridad más
nueva”.790
A cada momento, uma coisa nova vai sendo descoberta: “se le descubre un
aparência e, sim, o modo como são feitas, sua “feitura” (“es de más estimación su
hechura” ).792
modo de contarle”, percebe-se que ambos os personagens citados dão relevo, não à
mas ao modo de contar que dá a cada uma das novelas sua marca própria.
Logo a seguir, a pergunta formulada: “Y ¿hay más que ver [...]?”,794 anuncia
que o que vai ser descrito é tão maravilhoso que não deixará nenhuma dúvida sobre
790
O céu é mais transparente, e [...] o sol brilha com claridade mais nova (1, L, p.305)
791
Ele descobre um forte castelo ou vistoso palácio (Ibidem)
792
É mais preciosa a sua feitura (Ibidem)
793
Essa novela me parece ser boa, mas não posso convencer-me, disse o padre, [...] de que isto seja verdade; e, se tiver
fingido, fingiu mal o autor, porque não é possível imaginar que haja marido tão idiota que queira fazer experiência tão
complicada como Anselmo. Se este caso acontecesse entre um galã e uma dama, se podia tolerar, mas entre marido e mulher,
tem algo de impossível; e, no tocante ao modo de contar-lhe, não me desagrada. (1, XXXV, p.217)
794
E há mais para ver? (1, L, p.305)
A partir daí, insinuam-se “aberturas” que se sucedem: 1) Primeiro vê sair, pela
__
porta de um castelo, um bom número de donzelas “ver salir por la puerta del
colocando-o como sua mãe o pariu. Dão-lhe banho, passam óleos perfumados em
seu corpo e o vestem com camisa de um tecido finíssimo, 3) outra donzela coloca
sobre os ombros do cavaleiro um manto que dizem valer uma cidade ou até mais,
4) Abre-se outra sala, onde há uma mesa posta, com água perfumada, ele senta-se
que seu apetite não sabe qual escolher, ouve música sem saber quem canta nem de
onde vem, e ainda mais, no final se recosta na cadeira palitando os dentes, em sinal
começa a contar-lhe que castelo é aquele em que está e de como ela está ali
encantada.
À proporção que vai narrando, a donzela vai dando a ele ciência de muitas
admiran a los leyentes que van leyendo su historia”796. Aqui parece que se chama a
atenção para o que é contado, para a história em si, para a obra, afinal. Tira-se o
cosas”, ou seja, não ao que está escrito, mas àquilo que está além do que está
795
(Ibidem)
796
Suspendem o cavaleiro e admiram os leitores que vão lendo sua história (1, L, p.305-306)
“Otras cosas” é abertura máxima ao máximo de possibilidades. Essa abertura
absoluto silêncio, o que parece coincidir com essas “otras cosas” que no texto,
muito pouco. As expressões “qué castillo es aquel” e “como está encantada” são
imediatamente substituídas por “otras cosas”, o que, por sua vez, parecem remeter à
verdade.
que, depois, ao definir melhor esse silêncio, esclarece que tal silêncio não chega a
ser ausência total de palavras e sim a verdade dita com poucas palavras até chegar
à não-palavra, ao silêncio como plenitude do falar. E muito mais que isso, quer dizer
que se deve sempre procurar “outras coisas”, coisas que não estão ditas, mas que
que tem o silêncio é tal que, quando o narrador percebe que está cada vez mais se
Caballero”) para dar relevo à voz das ninfas e não à voz do narrador, talvez insira a
de Minemósine, voz que ecoa tanto na obra, como no leitor, acionada pelo logos. É
797
Sem dizer palavra (1, L, p.305)
798
Guardando um maravilhoso silêncio (Ibidem)
narrador, deve-se suspeitar que uma voz encarnada no feminino seja Minemósine.
“no quiero alargarme más en esto”.799 Essa estratégia faz-nos lembrar de Jorge Luis
Borges que, ao tentar falar de sua experiência com “el aleph”, recorre ao expediente
sua totalidade.
O narrador, que ilustra com o conto do lago o que é uma novela de cavalaria,
sabe também que essa totalidade é impossível, inalcançável e utiliza como saída
de causar gusto y maravilla a cualquiera que la leyere”.800 Aqui parece que não está
ficção literária. Mais ainda, à poiesis. Quer dizer que o problema não está em ser
uma ficção de cavaleiros ou não de cavaleiros. O que está em questão são outras
coisas. Não será a obra, a qual esteja se referindo, a própria obra Dom Quixote de la
dúvida se aqui a obra está sendo vista como detonador de prazer, aquela tal fruição
799
Não quero estender-me nisso (1, L, p.306)
800
Deve causar gosto e maravilha a quem quer que a leia (Ibidem)
801
Desterram a melancolia que tiver e melhoram sua condição, se por acaso estiver ruim. (Ibidem)
A relação arte-bem-estar pode ser também resultante das reais benesses da
abertura, sendo o próprio “entre”, vai possibilitar ao homem, além de estar no pleno
possibilita, estar em contato com o ser, não esquecer do ser, não esquecer de ouvir
a palavra dos deuses que se renova sempre, desde que respeitada a lei da aletheia:
hay hombres en el mundo que toman en arrendamiento los estados de los señores, y
les dan un tanto cada año, y ellos se tienen cuidado del gobierno, y el señor se está a
804
pierna tendida, gozando de la renta que le dan, sin curarse de otra cosa.
Como esta conversa está implícita na discussão sobre a obra de arte/novelas de cavalaria, pensamos também poder ler o
arrendamento, no mesmo tema. É o que Borges faz, eliminando o conceito de autoria (propriedade) da obra de arte. Feita a obra, a
salvaguarda é a própria obra que guarda o vigor da “historicidade efetiva” e o leitor, por sua vez, aquele que arrenda a terra __ “estado” __ e
dela cuida com o seu governo (a ética do cuidado). O autor, este desaparece. De “pierna tendida, gozando la renta que le dan, sin curarse de
802
Penso, pelo valor de meu braço, favorecendo-me o céu (1, L, p.306)
803
Em poucos dias ver-me rei de algum reino (Ibidem)
804
Há homens no mundo que tomam em arrendamento os estados dos senhores, e lhes dão um tanto cada ano, e eles tomam
cuidado do governo, e o senhor está com a perna esticada, gozando da renda que lhe dão, sem cuidar de outra
coisa. (1, L, p.306)
805
otra cosa”. O autor sai de cena, fica com as pernas esticadas, refestelado, só “recebendo a renda”, sem meter-se em mais nada. Feita a
obra, ela não mais pertence ao autor, é propriedade do leitor.
quem cabe o produzir obras, o coloca em oposição ao homem medieval, para quem,
só restava ter fé, pois sequer havia o conceito de autoria. Ao mesmo tempo, ainda,
Dom Quixote, só ele pôde fazer a travessia porque não se deixou manipular,
como foi vítima Cervantes. Dom Quixote entra na vida e, ao viver a vida
experienciada, acumula viver com arte. É por isso que o seu viver cavaleiro é vida e
permitindo que no diálogo o “tu” do outro seja preponderante e pleno. Viver como
poiesis é não permitir que o “entre” – aquele espaço que está reservado para que o
homem exerça a sua maior “grandeza”, a grandeza de ser entre-ser, o que o faz
diálogo, já que, preenchido assim o “entre”, não é mais diálogo. Viver. Viver como
ter chegado a escutar a voz do logos, é ter permitido que o dizer do outro se faça
805
Perna estendida, gozando a renda que lhe dão, sem cuidar de outra coisa (Ibidem)
806
É morta a fé sem obras (Ibidem)
807
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p.949
“clarão rápido”, se faça fulguração. Viver como poiesis é viver sendo abertura plena
e eterna para ser “linguagem”, tornando possível que aquele “verbo” que era lá “no
início”, seja.
Tem todo o sentido que Dom Quixote, depois do tormento que querer saber-
__ __
se ser da realidade e ser da ficção posição por ele mesmo acumulada tenha
sido no último momento, iluminado e recebido o “clarão rápido” da resposta. Foi tudo
muito rápido, instantâneo. Tão instantâneo que sequer houve tempo de resposta.
CONCLUSÃO
Provocados pela voz de Dom Quixote que inicia seu caminhar cavaleiresco
excelência, para nos liberar do peso sempre presente nas grandes obras: o estigma
do caos.
mesmo caos instigados, foi-nos possível optar pelo método hermenêutico que tem,
decidimos respeitar a obra, enquanto natureza também, permitindo que faça ela
mesma o jogo.
808
Eu sei quem sou.
Bastou ficarmos atentos e teve início a abordagem: lenta, despojada de
Se com tanta delicadeza, ainda assim, traquejada que está em dissimular, a obra
não se entrega facilmente, com ela é preciso todo cuidado. O próprio Cervantes dera
Bem sabíamos ser necessário muita calma e muita espera. A cada volta, muita dis-
introdução: para libertar Aletheia dos séculos de cativeiro, só com muito jeito.
quando menos sabe, o que anuncia Dom Quixote é seu “querer-saber”, seu “querer-
disponível no mundo, atento que estava ao “ser-em” de Heidegger. Tão atento, fiel e
diligente que acabou ultrapassando a medida. Não satisfeito com seu mundo, criou
809
Mesa de truques.
810
Os doze Pares da França.
dois mundos para “ser”. Superpôs, ao seu, o mundo da cavalaria para nele poder
outro mundo.
Ao mesmo tempo em que era cavaleiro e, com a força do seu braço e o fio de
verdade, por exigência absoluta da missão que lhe fora confiada, de perpetuar os
Enquanto assim agia, Dom Quixote não se dava conta de que seu mundo e
velhas e gastas, de tão repetidas. Tudo era conhecido, tudo já publicado, tudo
tornado público, exposto na galeria morta dos significados estabelecidos e por todos
pelas novelas de cavalaria em constante repetição. E não podia ser diferente pois se
tudo o que havia sobre todas “las ordenanzas y leyes de la caballería andante”813 só
811
Consertando injustiças e desfazendo desacertos.
812
Entendê-las e arrancar-lhes sentido.
813
As regras e leis da cavalaria andante.
814
No peito.
archivo”815 das verdades da cavalaria, único depósito das verdades da república
cristã.
constante: decaía como fidalgo, retornando, como todos, insistentemente aos livros
de cavalaria. Feito cavaleiro, decaía reatando com a prática cavaleiresca, tão logo se
segurança e estabilidade.
usa a liberdade, e faz a escolha: sai da leitura e vai viver a cavalaria na vida
não lhe estava permitindo a leitura. Ou foi pela leitura que desejou viver a
815
Depósito e arquivo.
Enquanto Dom Quixote somente lia as novelas de cavalaria como fuga do
tédio, repetindo o mesmo modelo, sem que nenhum espaço de provocação exigisse
dúvida abria espaço para que Descartes a ela se lançasse. Há anseio de segurança
verdade.
cada momento Dom Quixote esbarra com outras realidades que o obrigam, ainda
tudo o que conhecia e em que acreditava se fragiliza de tal modo que cai o último
Quixote vive a angústia mais radical, marcada ficcionalmente por uma febre
altíssima e inexplicável que define a linha divisória – antes e depois. Dom Quixote,
recupera sua identidade. Dom Quixote que antes era louco toma consciência do
impróprio de sua loucura e recupera a lucidez. Mas, não é só a linha divisória antes
e depois que a angústia estabelece. Além dessa, a de-cisão de ser pastor revela a
Como Cura não tem fim, Dom Quixote sabe do risco de novas decadências,
do mesmo modo que sabe do fluxo de novas questões. A posição em patamar mais
elevado, o abrir da consciência tem seu preço: quanto mais amplo o horizonte, mais
se vê, quanto mais se vê, mais questões, quanto mais questões, mais escuta, e
quanto mais se escuta, mais o logos responde. É preciso, portanto, silenciar para
Dom Quixote, depois de descobrir que uma voz há muito já lhe falava, mesmo
quando ele, ainda louco cavaleiro, sequer a percebia e, a cada regresso à casa, caía
em sono profundo, foi assim que, reconhecendo a voz, dela tornou-se familiar.
por um “querer” incontido que o faz desejar conhecer uma cova – “La cueva de
816
A morte não triunfou.
817
Sobre a essência da Verdade. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades,1970, p.42.
Aproveitando, concorrerem, nessa “cueva”, os dois responsáveis pela
Percebe então que fora, ele mesmo, partícipe daquele estado de coisas, que
Percebe que o agir verdadeiro não está na ação desmedida e irrefreada. Quando
assim agia, estava louco em “sus acciones”. Mas agora Dom Quixote, consciente de
impunham ao mundo. Agora, mais maduro, já está apto à reflexão. E é o que vai
fazer no 2o Périplo.
seu interior que lhe desvendou alguns mistérios, mas, ao mesmo tempo, é também
de “la cueva-caverna” lhe mostra que, além do Platão de todos os platonismos que
__
trouxeram uma verdade, havia outra verdade era Descartes inaugurando um novo
modo de pensar, igualmente fragmentado e portanto metafísico, mas que lhe dava a
Esse pensar traz consigo uma figura chamada “sujeito” que, por conhecer as
estratégias mentais de um modo de extrair das coisas tudo o que de verdade elas
contêm, esse sujeito aprisiona todo o real, colocando-o sob o poder de seu
Neste Périplo não há ação, não há o agir do fazer. É como se Dom Quixote
escuta do sagrado.
Eram todas dedicadas, empenhadas num viver calcado no fazer, no fabricar, num
fazer que já tomava conta até do pensamento. Era um tal de “elaborar”, “industriar”,
“arquitetar”, “fabricar”, verbos assim usados literalmente na obra, verbos com uma
realidade, que ele o exercita de forma tão natural, sem dar-se conta de que está
conta do viver no Ocidente. De tal modo isso se dá, que é identificado como uma
ética aceita e compartilhada por todos. Dom Quixote sensível já consegue identificar
o cavaleiro com quem precisa travar a luta singular. Se antes tinha algumas dúvidas
Essa batalha é anunciada no início da obra quando, ao mesmo tempo que Dom
Quixote descobre terem dado fim à sua biblioteca, o mesmo sábio encantado
responsável por tal ato lhe anuncia, agendando para o futuro a luta inevitável.
ou morrem. Isso corrobora o aviso de Sileno: “É na vida que o homem tem que
buscar a felicidade, o único lugar onde ela não está”. Nenhum deles, entretanto,
encontra na vida um alento que os anime a viver porque, com o modo de pensar
sem que houvesse nenhuma possibilidade do novo. Esgotada toda a natureza pelo
certezas, nada mais havia, caía-se num abismo sem fim. E, como seguir vivendo
verdade do seu tempo, verdade que precisa contar a todos os homens. Com isso
posto no mundo como mera oposição é, nele mesmo que se encontra toda a
Essa possibilidade não está fora do homem que, desde o 1o Périplo, muito
corre, muito fala, muito escreve, num fazer descontrolado, agindo um agir sobre o já
Sabe o que dizer, mas o estigma da loucura o inibe, teme não acreditarem.
Por isso sua atenção se volta para o como contar. Afinal, “para contar e
Só então, Dom Quixote elabora tudo em seu coração. Por amor precisa falar,
contar a boa nova. Ainda mais que se lembra do compromisso assumido com
todos os que estão encantados dentro de “la cueva” e que dali não podem sair,
libertá-los do encantamento.
A viagem não acabou. Outro Périplo, outra volta no círculo. O que falta ainda
tempo: Dom Quixote a todo o momento lança essa questão do tempo como algo que
verdade”, Dom Quixote decide resolver tudo de uma só vez. Com uma só cajadada,
quer matar todos os incômodos “coelhos” da modernidade. “Coelhos” não, o que vai
enfrentar de verdade, Dom Quixote, são outros animais simbólicos que trazem à
Só quando Dom Quixote resolve aceitar a ordem, ordem essa que, embora
pareça vinda “del canónigo”, com quem estava dialogando sobre serem as novelas
Dom Quixote, ele mesmo quem responde. Responde a si, a sua própria pergunta.
Descobre e põe fim ao dilema que, atormentando a si e a todos, cruzou toda obra:
“¿habían de ser mentira?” Descobre que, o que essa pergunta estivera todo tempo
resposta nas mãos. É Dom Quixote quem vai responder definitivamente: “léalos”.
início da obra.
contar algo que viveu, leia-se a si mesmo, no processo de estar lendo o mundo;
Dom Quixote percebe, então, que a batalha que precisa travar está mais para
dis-puta do que para batalha. A batalha a ser travada no futuro, é chegada, enfim, a
sua hora. E a dis-puta será travada na clareira que se abre em nosso tempo, no
Com isso fica posta a questão da essência da obra de arte. Só então Dom
Quixote se dá conta de que esse é o “falar” ideal que há muito o preocupava. Para
que todos o compreendessem, era preciso falar como obra, era preciso ser obra, era
preciso ser, ele mesmo, um experienciar. Era preciso ser auto-diálogo e consigo
mesmo dialogar __ deixar falar, dentro de si, a voz do logos, atento, todo escuta, para
da verdade.
Quixote convoca todos os homens a com ele saírem à pro-cura de si mesmos, à pro-
cura de sua verdade, à pro-cura de sua essência que é ser Cura também.
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