Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2017
CHORAR POR DIDO É INÚTIL: SANTO AGOSTINHO, CONFISSÕES, LITERATURA
Rio de Janeiro
Abril de 2017
2
Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, Confissões, literatura
Hugo Langone Machado
Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira
_________________________________________________
Prof. Doutor Bernardo Guadalupe dos Santos Lins Brandão – UFPR
_________________________________________________
Prof. Doutor Bruno Salviano Gripp – UFF
_________________________________________________
Prof. Doutor Carlos Frederico Calvet da Silveira – UCP/PUC-Rio
_________________________________________________
Prof. Doutor Renato José de Moraes – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor João Camillo Pena – UFRJ, suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Andrea Lombardi – UFRJ, suplente
Rio de Janeiro
Abril de 2017
3
Machado, Hugo Langone.
Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho,
Confissões, literatura/ Hugo Langone Machado. – Rio de
Janeiro: UFRJ/ FL, 2017.
viii, 154f.
Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira
Tese (Doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura, 2017.
Referências bibliográficas: f. 155-166.
1. Agostinho, Santo, 354-430. 2. Literatura. 3.
Patrística. I. Vieira, Martha Alkimin de Araújo. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura. III. Título.
4
RESUMO
clássica.
Rio de Janeiro
Abril de 2017
5
ABSTRACT
Rio de Janeiro
Abril de 2017
6
Agradecimentos
Letícia e Kae, Jorge: arrimos discretos, com os quais posso partilhar, sempre,
7
Sumário
I. 1. Percurso intelectual
I. 2. “Se amas a ordem, será preciso que retornes aos versos”: ócio,
literatura e verdade
I. 3. Mudança de rumos
III. As Confessiones
III. 4. No teatro
Conclusão
Bibliografia consultada
8
Uma breve introdução
aplicar-lhe uma daquelas máximas a que muito bem se poderia dar o adjetivo
não será senão um desses temas perenes, tão perene quanto o é a própria
dos debates.
modo especial porque, em sua obra magna, são tantas as reflexões cabíveis
sobre a arte literária que fugir-lhes é impossível mesmo sob o olhar do leitor
abrem nesse âmbito é portanto o objetivo das páginas que se tem em mãos.
ciente do possível pecado contra a precisão, ele não foi assaz escrupuloso
9
Com efeito, sabe-se que literatura “varia consideravelmente
por nós hoje. Ao mesmo tempo, resta assaz claro que os sedimentos do
conseguinte, não se deve criar problemas práticos naquilo que poderia gerar
quanto as reflexões sobre ela não têm início, na bibliografia do bispo doutor,
literária.
constituem seu cume, por dois momentos muito peculiares da vida do santo.
10
O primeiro não há de causar controvérsia entre os comentadores: trata-se do
latina, recolhe-se com certos discípulos pouco antes de serem batizados. São
está – até há pouco. Mas não é só, por certo; existe, naquele ambiente e
pagão uma posição de tanto destaque, que é como se não houvesse modo
de escapar de seus esquemas e modelos. Nada lhe foge naquilo que não é
de pontos de contato – uma falta que revela um novo projeto de cultura e que
o valor que possui aos olhos do comentador: nessa cultura que se anuncia,
11
legado literário que pautara a educação de uma civilização inteira? Agostinho
no capítulo final e principal, certo uso que ele dá à herança literária clássica.
quanto lhe foi possível esse material, de modo a revelar um panorama mais
12
I.
in te. Se Agostinho olha para trás e para o presente, não há dúvidas de que é
Não seria tudo, porém, o que o então bispo de Hipona teria claro à
mente: sob a névoa dos primeiros anos de vida, quando “só o que sabia era
nada mais”,4 resta-lhe, como fonte de seu relato, o testemunho posterior dos
de outras crianças;7 nada, contudo, repleto do sabor adocicado com que hoje
13
indignação contra os adultos, Agostinho não hesita: “Logo, dignas de
repreensão eram as coisas que fazia (...). O que é inocente nos pequenos é a
fazer mais do que seguir instintos elementares. Passa ele a assimilar a língua
enviado à escola.10
vício – um vício social que motivaria tanto os pais que enviavam os filhos às
dos únicos passaportes para o sucesso (...). Por trás da biografia particular
8 Ibid.
9 I, 8, 13.
10 I, 9, 14.
11 “Agostinho”, diz-nos G. Wills (Saint Augustine, p. 03), “praticamente nada relata sobre
sua vida antes dos onze ou doze anos, quando foi viver com seu pedagogo numa cidade vizinha
em que havia uma escola secundária”.
12 I, 9, 14.
14
de Agostinho, podemos também vislumbrar essa ‘biografia coletiva’”, qual
juventude à luz desses objetivos, desse “apetite insaciável por uma escassez
I. 1. Percurso intelectual
se ocuparam de sua tese 15 – e que por essa razão mesma lhe prestam
portanto permanece ele como bom ponto de partida a todo o que deseja um
15
de Cícero. Sua obra é abrangente; sua vida possui as nuances essenciais da
cujo espírito seria apenas adaptado pelos latinos a um modo de vida mais
sobretudo expor a língua e suas leis, tal como explicar os grandes autores;
16
advérbios etc.) em perspectiva morfológica; forneciam-se definições
17
clássico por excelência, historiae major auctor, é
Salústio (...).
Entre os oradores, o mestre por excelência, o que
com Virgílio resume toda a cultura latina, é,
evidentemente, Cícero. Impera ele como monarca na
escola: conhece-se a regra de ouro formulada por Tito
Lívio e tomada por Quintiliano: estudar, além de Cícero,
os outros escritores na medida em que se assemelhem
a ele, ut quisque erit Ciceroni simillimus.21
jovem aluno passava pela lectio, fase da leitura do texto em voz alta, na qual
mais do que uma simples leitura: “A leitura oral era exigida pelo formato dos
18
pergaminhos e códices, que não eram pontuados. A fim de compreender uma
das vezes, o texto lido já o fora antes –, gravava ele na memória as melhores
emitido.
futuro rhetor, o que ele sabia não era tão pouco como por aí vemos dizer:
24 Brian Stock, Augustine the Reader: Meditation, Self-Knowledge, and the Ethics of
Interpretation, p. 5.
25 Cf. I, 14, 23.
19
permitia-lhe ao menos o uso instrumental da língua, sendo ele capaz de
latina à luz da grega, de recorrer a termos próprios da vida cristã etc. Nada, é
bem verdade, que lhe possibilitasse conhecer muito mais do que lhe vinha às
muito embora até mesmo isso ele transformasse em vantagem parcial. Sua
outra tradições.” 26
Madaura, o jovem retornou à vizinha Tagaste, sua terra natal, esperando ter
satisfações carnais: “Amar e ser amado era para mim o que havia de mais
Rivalizam-se-lhe ainda os vícios de sua cultura, o que mais uma vez nos
20
estudos retóricos – aqueles mesmos que “se chamavam honestos, voltados
o sucesso que teria como rhetor antes de sua conversão – sucesso que o fez
Com efeito, não obstante lamentasse o valor que à época atribuíra a seus
contudo, enorme grau de méritos próprios: “Tu sabes, Senhor meu Deus,
29 III, 3, 5.
30 Brown, op. cit., p. 25: “Um homem assim seria capaz de comunicar sua mensagem a um
latino educado no outro lado do mundo romano, mencionando apenas uma figura clássica,
citando meio verso de um poeta clássico.”
31 Cf. Confessiones, VI, 6, 9.
32 Confessiones, IV, 16, 30: “De que me servia também o fato de ler e compreender por mim
mesmo todos os livros que tinha às mãos acerca das artes que se dizem liberais, sendo eu então
escravo tão perverso de minhas iníquas inclinações?”
33 Possídio, Sancti Augustini Vita Scripta a Possidio Episcope, 1.
21
como sem a ajuda de qualquer mestre entendia tudo quanto lia de retórica,
quando contava com dezenove anos, Agostinho deu um pequeno passo para
além desse objetivo. “Pequeno”, visto não ter ele abandonado por completo o
do bom orador; um “passo”, não obstante, pois vira despertar então o amor
“conversão” agostiniana:
34 Confessiones, IV, 16, 30. Tratar Agostinho como produto trivial de sua cultura é um dos
erros em que pode incorrer o leitor de Marrou; cf. Karla Pollmann e Mark Vessey (orgs.), op. cit,
Introdução.
22
súplicas, fazendo com que meus votos e desejos
fossem outros. De repente vi vã toda esperança, e com
incrível ardor no coração suspirava pela imortalidade da
sabedoria (...).35
oceano os astros que me extraviaram”.36 Durante nove anos, sua busca pela
do Oriente que o persa Mani propagara pela África não tanto tempo antes.
com Deus; o que de mal existe, cabe ao reino das trevas.37 Trata-se, assim,
35 III, 4, 7.
36 De beata vita, 4.
37 Não se resume a isso, sem dúvida, a doutrina dos maniqueus. Uma exposição mais
detalhada encontramos na primeira parte de Prosper Alfaric, L’Évolution intelectuelle de Saint
Augustin.
23
explicação abrangente do mundo e das próprias motivações, abarcando
combate do grupo.
compreendi claramente que ele ignorava aquelas artes que para mim
38 Cf. Carl G. Vaught, The Journey Toward God in Augustine’s Confessions: Books I-VI, cap. 2.
39 Dictionnaire de théologie catholique, vol. 1, col. 2269.
24
dominava, comecei a desesperar de que me fosse possível esclarecer e
estrelas, o sol e a lua, as quais não cria mais que me pudessem explicá-las
definitivamente da crença, uma vez que “por ora não achava algo melhor”.42
ter trocado Cartago por Roma, buscando fugir dos eversores a que lecionava;
40 Confessiones, V, 7 ,12.
41 Portalié também sintetiza, a partir da obra de Agostinho, as causas de sua frustração
com o maniqueísmo: o terrível vazio de sua filosofia, que a tudo destruía mas nada edificava; a
real imoralidade de seus seguidores, oculta sob sua fachada de virtude e austeridade; a
inferioridade de seus doutores nas disputas com os católicos; e, por fim, a falta de ciência entre
seus seguidores (Cf. op. cit., cols. 2270-2271).
42 Confessiones, V, 7, 12.
43 V, 14, 25.
44 VII, 9, 13.
25
estava em Deus. E Deus era o Verbo, o qual estava
desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram
feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito. O que está feito
é vida nele; e a vida era luz dos homens, e a luz
resplandece nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam. Do mesmo modo, a alma do homem,
embora dê testemunho da luz, não é a luz; a luz é,
antes, o Verbo, Deus, a luz verdadeira que ilumina todo
homem que vem a este mundo. Ele estava no mundo, o
mundo foi feito por Ele, mas não o reconheceu.45
santo recordaria, ali ele ainda não encontrara “que Ele veio para os seus e os
seus não o receberam”, que “a todos os que o receberam Ele deu o poder de
45 VII, 9, 14.
46 Contra academicos, II, 2, 5.
26
se tornarem filhos de Deus, pois haviam crido nele”; que “o Verbo se fez
por seu modo de ser”; “que se humilhou e fez-se obediente até a morte, e
morte de cruz”; que por isso “Deus elevou-lhe dentre os mortos e deu-lhe um
nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre
nos céus, nas terras e no inferno e toda língua confesse que o Senhor Jesus
está na glória de Deus Pai”; que “no devido tempo morreu pela mão dos
ímpios e que não perdoa[ra] [s]eu Filho único, entregando-lhe por todos nós”.
dedicação total a Deus o desnorteia e o volta cada vez mais para si. Do alto
27
como me encontrava pela dor amargurada do coração”.52 Eis então que, à
sombra de uma figueira, uma longínqua voz infantil advém de casa vizinha;
seu ritmo, repetitivo, se assemelha a uma cantilena: Tolle, lege! Tolle, lege!
Santo Antão e decide cumprir o que lhe é ordenado. Ao abri-lo, eis que se lhe
I. 2. “Se amas a ordem, serás preciso que retornes aos versos”: ócio,
literatura e verdade
28
aproveita para abandonar a cadeira de retórica que ocupava em Milão:
Navígio, tal como com sua mãe Mônica, seu filho Adeodato e seus primos
55 Sobre a natureza do ócio de Santo Agostinho e seus companheiros, cf. Dennis E. Trout,
“Augustine at Cassiciacum: Otium honestum and the Social Dimensions of Conversion”.
56 Catherine Conybeare, “The Duty of a Teacher: Liminality and disciplina in Augustine’s De
Ordine, p. 50: “Por que Agostinho escolheu (...) escrever na forma do diálogo filosófico? Embora
algumas tentativas tenham sido feitas para ‘cristianizar’ o diálogo, a verdade é que, em latim, ele
ainda estava majoritariamente associado ao ensino secular que Agostinho tentava rever. (...) Sob
essa perspectiva, a escolha de interlocutores jovens e vigorosos (...) traz à tona a ideia de uma
filosofia em produção, como uma tradição viva sujeita a revisões e reconsiderações.”
57 Diz-nos o cardeal Joseph Ratzinger (Natureza e missão da teologia, p. 29): “Mas desta
forma se abre uma nova dimensão do diálogo, do seu ouvir e do seu falar, à qual o Agostinho dos
primeiros tempos atribuía um valor especial, ele cuja história de conversão está documentada de
forma palpável e concreta nos diálogos com os amigos, quando a pequena academia de
Cassicíaco, como que às apalpadelas, encaminhava-se para aquele momento em que por fim
poderia cair em seu meio uma palavra nova, desconhecida de Platão, que poderia se transformar
29
possível conhecê-la; descobrem que a felicidade repousa tão somente no
cristianismo para não haver dúvidas de que temos ali um cristão brilhante.58
e cuja importância, a despeito dos exageros, não pode de modo algum ser
a educação de seus pupilos com lições sobre Virgílio, e não são escassas,
30
nesses primeiros trabalhos do santo doutor, as referências a tais atividades. 59
aqueles que as curam com a medicina das artes liberais.”61 Com efeito, dirá
adiante, “a erudição moderada e racional das artes liberais nos torna mais
59 Como exemplo, em Contra academicos, II, 4, 10: “Após a discussão anterior, que
apresentamos no primeiro livro, fizemos uma pausa de quase sete dias, repassando os três livros
de Virgílio que seguem o primeiro, estudando-os segundo a conveniência.”
60 Cf. II, 11, 30.
61 I, 1, 3.
31
para gozá-la mais ardentemente, para persegui-la com mais afinco,
modo de vida virtuoso,64 permitem que a alma se volte para dentro e para o
62 I, 8, 24.
63 Harrison, 2006, p. 43.
64 Cf. De ordine, II, 28, 25. Trata-se, em última análise, de uma purificação ao mesmo tempo
racional e moral.
32
coisas transitórias, ou então aquele que já se libertou de
tal cativeiro e vive em continência, mas desconhece o
que é o nada, a matéria informe, o corpo e a forma do
corpo, os seres inorgânicos, o espaço e o tempo, a
localização e a temporalidade; aquele que ignora o que
é o movimento local e a mudança, o movimento estável
e a imortalidade; aquele que não tem ideia do que é
transcender todo lugar e tempo e existir para sempre, o
que é não estar em parte alguma, o que é ser imenso, o
que não é estar encerrado em limite de tempo algum,
sendo eterno; quem nada disso sabe e se põe a
investigar não sobre a natureza de Deus, a qual melhor
se conhece ignorando, mas a natureza da mesma alma,
cairá em toda sorte de erros. Mais facilmente
responderá a essa classe de problemas aquele que tiver
conhecimento dos números abstratos e inteligíveis, para
cuja compreensão se exige um engenho vigoroso, uma
idade madura, ócio, bem-estar e um entusiasmo vivo
que lhe possibilite recorrer à ordem indicada pelas artes
liberais.65
não é para todos; sabe também que tais exercícios não constituem condição
essencial para a vida cristã: tudo aquilo de que se necessita para a boa vida
pode ser aceito pela autoridade, isto é, pela fé, uma vez que a Sabedoria
divina se fizera carne no Cristo. Ainda assim, como deixam claro suas
33
pela inteligência”. 66 E, se um tal projeto pode e deve ser alcançado pelas
presença da literatura: é ela, afinal, parte integrante das artes, uma vez que
fornece textos básicos e modelos. Quanto a isso Agostinho não nos deixa
basta apenas, de início, que nos voltemos para o ambiente do retiro pós-
34
aos gregos. E o que é a sabedoria? Por acaso não é a verdadeira beleza?”68
São, portanto, “filhas do mesmo pai”, diz ele, que logo procura uma imagem
que exprima o que pretende: “Mas a filocalia, arrancada de seu céu pelo
irmã, que voa livremente, muitas vezes a reconhece, ainda que sem asas,
suja e miserável, mas raramente a liberta, pois a filocalia não conhece sua
origem, a filosofia sim”. Então: “Licêncio poderá contar-te esta fábula – pois
emprega – e talvez nos baste mesmo a menor experiência com a poesia para
poema bem composto. Não obstante, ao “poeta perfeito” que é Licêncio não
caberá somente elogios. Quase sete dias após a discussão que Agostinho
mesmo diálogo. Logo no início de seu terceiro livro, Agostinho recorda com
68 II, 2, 7.
69 II, 4, 10.
35
os jovens o que cada qual teria feito no dia anterior. Tanto Trigécio quanto
preocupar: a “paixão que o inflama” é tamanha que aquilo que deve ser
buscado não o é: “foi precisamente por causa dele que julguei necessário
instituir este discurso, para que a filosofia ocupe e reclame no seu espírito
– “tão rápida que mal começou já terminou” – sem sequer beber algo.
Agostinho se resigna:
36
beber, se quiseres, e depois voltes à nossa escola, se
ainda tens alguma estima de Hortênsio e da filosofia
(...). Ela efetivamente já te havia inflamado mais
ardentemente que a tua arte poética para a ciência das
coisas grandes e realmente frutíferas. Mas, ao desejar
trazer-vos às disciplinas com as quais se cultiva o
espírito, receio introduzir-vos num labirinto e quase me
arrependo de ter freado o teu ímpeto poético.72
“para evitar que eu lhe dissesse coisas mais duras”. Parece-lhe claro,
assentimento. Agostinho:
72 Ibid., id.
37
célebre Proteu. Proteu – e aqui notai, jovens, que os
poetas não devem ser totalmente desprezados pela
filosofia – (...) é a imagem da verdade. Nos poemas,
Proteu assume e representa o papel da verdade, que
ninguém pode alcançar, se enganado pelas falsas
aparências (...).73
filosofia, Agostinho agora nos traz um poema (pagão!) como portador eficaz
por ali, “aos golpes com ratos molestos que não o deixavam adormecer”;
38
promissor ao jovem interlocutor; diante do entusiasmo de Agostinho em
não nos deixa dúvidas de que a poesia é sedução que encerra grandes
riscos.
76 I, 3, 8.
77 Ibid.
78 Cf. I, 7, 19.
39
um novo entusiasmo se apoderou de ti.”79 Ao que afirma Licêncio: “(...) pois
que sinto arder uma luz muito diferente [da que o levara ao verso poético],
muito superior. Mais bela é a filosofia que Tisbe e Píramo, que Vênus, Cupido
dizes. Pois me comove pensar que há pouco me era tão árduo deixar as
deseja que Licêncio se afaste daquilo que tantas vezes declarara pernicioso.
“Se amas a ordem”, diz, “será preciso que retornes aos versos”, e o motivo é
aquele que já citamos antes: “pois a erudição moderada e racional das artes
liberais nos torna mais ágeis e perseverantes, mais limpos e belos para
79 I, 7, 20.
80 I, 7, 21.
81 I, 8, 23.
82 I, 8, 24.
40
cantar o amor puro com que as almas adornadas pelas
artes liberais e embelezadas pela virtude desposam o
entendimento pela filosofia, e não apenas evitam a
morte, mas também gozam de vida ditosíssima.83
admoestado por Agostinho em virtude de seu gosto pela poesia, Licêncio cai
83 Ibid., id.
84 I, 3, 6.
85 I, 3, 9.
41
Aqui, transbordando também eu de uma alegria
superior à que poderia almejar, deixei jorrar da boca
este verso: “Assim o permita Deus pai, assim o grande
Apolo!” [Sic pater ille deus, sic altus Apollo!].86
permita o pai dos deuses, assim o grande Apolo!” [sic pater ille deum faciat,
de Eneias a Apolo em Eneida, III, 88-89: “A quem seguir como guia? Para
86 I, 4, 10.
87 Ibid., id.
42
onde nos mandas ir? Onde mandas que construamos nossa morada? Dá-
ire iubes? ubi ponere sedes? da, pater, augurium atque animis inlabere
nostris].”
herói virgiliano ao deus em Eneida, XI, 787-788, na qual se lê: “Ó, Apolo, (...)
por quem, fortes por causa da nossa piedade, caminhamos por meio do fogo
e apoiamos nossos passos sobre muitas brasas [et medium freti pietate per
poeta, que à ocasião (Eneida, VII, 586) tratara da impassividade do rei Latino
ele, qual uma rocha imóvel no mar’ [ille velut pelagi rupes immota resistit]’”.88
refutar por meio daquilo que a mãe de Eneias dissera ao herói: “Segue
43
adiante e, para onde te leva o caminho, dirige teus passos [perge modo et,
qua te ducit via, derige gressum].”89 No segundo (II, 2, 6), Agostinho descreve
o efeito dos libri platonicorum sobre si: “Então, qual se banhado por esta débil
Turno no Livro XI do épico virgiliano (v. 424): “Por que o tremor se apodera
dos olhos humanos, nem dos mil olhos fantásticos da fama, segundo fingem
os poetas [ne oculis quidem credant humanis, nedum famae mille quidem, ut
ingente, que tantas plumas no corpo tem quanto são seus muitos olhos
vigilantes [monstrum horrendum, ingenos, cui, quot sunt corpore plumae, tot
a Agostinho vem à mente o Arma acri faciendo viro da Eneida, VIII, 441,
que são arma (...) invicta et quasia Vulcania videantur,90 isto é, armas que
44
Mais encontrará o leitor que tomar um volume do Beata vita: não
bíblicas – do peregrino que, viajando por mar revolto, deve retornar à pátria.
“quão poucos sabem para onde devem esforçar-se por chegar, ou como
e, também qual Odisseu, que é levado por uma tempestade à ilha daqueles
45
muito tempo no meio das ondas, recordam a dulcíssima pátria, sem porém se
épica são um tanto claros: “Encontramo-nos nós, pelo que se entende nossas
guardamos dela uma nostalgia vaga, que nos força a ‘olhar para trás’ quando
46
veracidade consistir em ser o objeto tal qual parece. Vincular, porém, a
verdade à percepção humana é atitude que a Razão logo nota falsa: pedra
videtur esse, id quod est].97 Assim, se “verdadeiro é tudo o que é, (...) o
falsum é o que se mostra diferente do que é, mas enquanto tal é privado de
existência, pois apenas o verdadeiro existe (...). Não há, portanto, realidade
poderia algo ser falso, uma vez que é veraz tudo o que é?
é aquilo que “não é tal como parece” [quod non ita est ut videtur]. Entre o que
verdadeiro, julga ser determinada coisa algo que lhe é apenas semelhante. O
somente parecido com um; o mesmo com a árvore pintada, com o rosto que
se reflete sobre o espelho, com o movimento das torres que vemos quando
da navegação, com a ruptura dos remos na água: “Tudo isso se diz falso por
falsidade.”100
97 Soliloquia, II, 5, 8.
98 Maria Bettetini, Figure di veritá : la finzione nel Medioevo occidentale, p. 40.
99 Soliloquia, II, 6, 10.
100 Ibid., id.
47
A respeito das semelhanças, há aquelas que são obras da
outras ficções [figmenta] do mesmo gênero. A razão toma outro rumo e faz
seu interlocutor notar que talvez não seja a semelhança a fonte da falsidade,
mas a diferença: se “as figuras humanas que vemos nos sonhos vivessem,
falassem e pudessem ser tocadas pelos despertos, sem que houvesse nisso
diferença entre eles e aqueles que vemos e com quem conversamos, (...)
aflitiva:
que finge ser o que não é ou aquilo que tende integralmente a ser e não é”
48
[quod aut se fingit esse quod non est, aut omnino esse tendit et non est]. De
todo modo, o falso não precisa necessariamente enganar para que seja falso:
enganar que caracteriza aquele. “Todo o que é falaz quer enganar”, diz, “mas
bem como os muitos poemas, não estão repletos de mentiras cujo objetivo é
49
A mescla de veracidade e falsidade, ademais, dá-se mesmo
quando diz alguém que ela voou numa serpente alada, não há réptil com
poderia denominá-la falsa porque o que não existe não o pode ser. Todavia,
há algo que pode ser dito falso, e a razão mesma o percebe: o enunciado.
poderia jamais se deter o jovem que, por meio das artes liberais, almejava
I. 3. Mudança de rumos
50
discussões desnecessárias e enfadonhas, do que dá mostras aquela que
Cassicíaco, mas também sublinha um dado crucial que, para ela, seria causa
da “revolução da década de 390” que passou a ser dada como certa nas
51
original, da Queda, da graça e do livre-arbítrio – cuja
síntese será formulada pela primeira vez no Ad
Simplicianum, de 396.109
Brown afirma que “Agostinho descobriu-se incapaz de alcançar aquilo que lhe
52
mestras desde sua conversão (...).”112 Carol Harrison detalha de que modo se
fatos na segunda edição de sua obra: não há elementos que dividam Santo
“Como pensador, talvez Agostinho tenha sido mais um homem aus einem
pensei.”113
modo particular, aquele centrado nas artes liberais desaparece por completo.
53
referências e reflexões que de alguma forma dizem respeito à produção e
impediria a literatura aos olhos de um cristão que não poderia explicar sua
partiu para Milão e foi batizado; seguiu então para Óstia, de onde planejava
mesmo período, sua mãe falece e ele vai para Roma; quando finalmente
retorna a Tagaste, inicia uma comunidade de leigos (os servi Dei) semelhante
adentra seu período maduro e que, muito embora não tenha passado por
54
sem ter nas artes liberais uma promessa de ascensão. Também seria
nalgum recorte temporal que venha a ser de seu interesse; afinal, a influência
55
II.
O De doctrina christiana
apologeta cristão. Nada disso vinha sem riscos: ao menos para aquele que
desejava dar continuidade a uma vida de otium, cada igreja local por que
passava poderia dar fim a seu projeto contemplativo. Garry Wills o lembra:
“as igrejas da época obrigavam os líderes que por lá passavam a serem seus
padres e bispos.” Não era fácil resistir a um tal consenso, e o jovem recém-
rumo de sua vida. Ali, naquela cidade costeira em que desejava fundar um de
seus anseios. Não bastaria a este dizer que era cristão novo e ainda pouco
estudado, que sua missão era tão somente a de fundar um mosteiro e cuidar
116 Cf. Garry Wills, Saint Augustine, pp. 66-7. A diocese de Valério teve de ser autorizada a
ter dois pregadores.
56
naquele ano de 391, em Hipona, Agostinho começa a tornar-se “aquele que,
tarde, seria mais uma vez vítima da prática que o fizera presbítero: aquele
radical de todas as suas mudanças. O contato com o povo a que sua posição
o obrigava deve ter desconcertado aquele homem que almejara com tanto
progresso de sua perfeição interior” e mais com “a salvação do povo fiel”, isto
comunitária.
57
submissa ao studium sapientiae de outrora, submeter-se-ia agora aos
histórica não deve ser jamais menosprezada e cujo valor para a cultura
daria após um intervalo de trinta anos, sem porém ter sofrido quaisquer
intrigada ante o fato de seu autor, ao contrário do que faz em muitas de suas
validade universal de seus preceitos”, mas Isabelle Bouchet 121 parece ter
119 Cf. Retractationes, IV, 1-2; Tamro Toom, Thought Clothed with Sound: Augustine’s
Christological Hermeneutics in De doctrina christiana, p. 74; James J. Murphy, “The Debate about a
Christian Rethoric”, p. 214; David W. Tracy, “Charity, Obscurity, Clarity: Augustine’s Search for a
True Rhetoric”, p. 271.
120 “Augustine’s Hermeneutics as Universal Discipline!?”, p. 209.
121 “Le cercle herméneutique dans le De doctrina christiana d’Augustin”, p. 19.
58
Cartago, que desejava um manual que servisse à instrução dos jovens
clérigos.122
lo tratado como guia de estudo da Bíblia, 127 não é esse seu traço mais
122 Brian Stock, Augustine the Reader: Meditation, Self-Knowledge, and the Ethics of
Interpretation, pp. 190-91.
123 Brenda Deen Schildgen, “Augustine’s Answer to Jacques Derrida in the De doctrina
christiana”, p. 383.
124 David W. Tracy, p. 273.
125 Thomas L. Amos, “Augustine and the Education of the Early Medieval Preacher”, p. 23;
Gerald A. Press, “Doctrina in Augustine’s De doctrina christiana”, p. 98.
126 C. S. Baldwin, Medieval Rhetoric and Poetic (to 1400), p. 51.
127 Sabine MacCormack, The Shadows of Poetry: Vergil in the Mind of Augustine, p. 63.
128 Cf. Michael Roberts, The Jeweled Style: Poetry and Poetics in Late Antiquity, p. 130; Peter
Brown, Augustine of Hippo: A Biography, pp. 260-61.
59
distinção, de que nos recorda Toom, 129 entre a relevância diacrônica do
para o manejo das Escrituras. Creio que possam ser comunicadas sem
estas normas aos que desejam e são capazes de aprendê-las (...).” Sunt
60
livros; ao modus proferendi, forma de expor as riquezas apreendidas no texto
conhecidas por meio dos signos.” Esta é a primeira vez em que a palavra
doctrina, presente em seu título mesmo, figura no corpo da obra, até então
que o debruçar-se sobre as coisas e os signos será tarefa dos livros I, II e III,
certa confusão pode ser feita quanto a se a doctrina que dá nome ao texto se
referiria tão somente à inventio, isto é, aos três livros iniciais. Gerald Press
antepõe essa questão à sua análise do sentido da palavra, mas não parece
relevância cultural.
cultura cristã;133 Brown 134 faz o mesmo. Erickson, 135 por sua vez, abre seu
estudo sobre a relevância do termo declarando ser ele a ideia que une todos
muito embora também aponte para a solução segundo a qual doctrina remete
também recebia, o que lhe permite inserir a obra no contexto da Igreja dos
132 O pesquisador clássico encontrará aí os ecos da retórica antiga e sua divisão entre
inventio e elocutio.
133 Op. cit., p. 350.
134 Op. cit., p. 327.
135 “The Significance of ‘Doctrina’ in Augustine’s De doctrina christiana”, p. 105.
61
séculos IV e V.136 No entanto, é no já mencionado Press que a multiplicidade
efeitos subjetivos do ensino das artes e ciências: usamo-lo para nos referir ao
atribuem a doctrina aos apóstolos, bispos, abades, papas etc.: “Para um não
dogmas de sua religião, e talvez também, mas muito menos do que entre os
nesses dogmas.”
62
Agostinho bem conhece a pluralidade de sentidos de doctrina, e
Agostinho enuncia a divisão dos livros I, II e III: Omnis doctrina vel rerum est
exaustiva, mas tão somente uma divisão utilitária adequada ao exame dos
sejam como aqueles que muitas vezes traz a Bíblia – a vara de Moisés, por
exemplo – para indicar, por meio deles, outra coisa. “De algumas dessas
coisas”, diz-nos o bispo, “nós devemos fruir; outras, devemos usar; de outras,
fruir e usar”. E completa: “Aquelas das quais fruímos nos tornam felizes; as
para lograrmos a união com as que nos fazem felizes.”142 Fruir, portanto, “é
63
aderir a uma coisa por amor dela mesma”, ao passo que “usar é empregar o
que está ao nosso alcance para conseguir o que se ama”.143 O bom retórico
143 Ibid.
144 Ibid.
145 Cf., por exemplo, De beata vita, I, 1-3.
64
de considerações teológicas e dogmáticas importantes para o leitor cristão,
Cristo: Caminho, Verdade e Vida, como nos dizem as Escrituras, 146 sem o
qual ninguém vai ao Pai, Ele é pessoa que devemos usar por sua
Deus, como res a ser fruída, res que é fonte única de bem-aventurança,
possui primazia sobre todas as coisas; por conseguinte, deve haver um lugar
especial para os signos que remetem a esse fim último e que foram por Ele
65
consigo o leitor da Bíblia; é seu papel asseverar, portanto, o horizonte
Deus se vale nas Escrituras, é o fardo que os seres manchados pela Queda
148 Brenda Deen Schildgen (op. cit., p. 384): “Agostinho, portanto, ao elencar a existência de
um ser infinito em seu exame, circunscreve sua própria atividade interpretativa. Para ele, é esse o
limite incontingente que circunda o território das possiblidades de interpretação. Sair desses
parâmetros é mover-se para o local do possível erro (...).”
149 Moacyr Novaes, A razão em exercício: ensaios sobre a filosofia de Agostinho, p. 29.
66
Debruçar-se sobre os signos, portanto, aprofundar-se numa scientia
signorum, não pode ser algo dispensável. Se Agostinho utiliza o livro primeiro
clássica – digressão que, não obstante sua concisão, algo nos pode indicar
sistematização que parece, a todo momento, ter em vista o clero africano mal
formado que deseja instruir. Desse modo, é preciso retomar a definição mais
67
ouvindo a voz de um animal, conhecemos a disposição
de seu ânimo; quando soada a corneta, sabem os
soldados se devem avançar, bater em retirada ou
realizar outro movimento que a batalha exige.151
para os signos duas categorias amplas: “Alguns signos são naturais e outros,
pegada que evoca o animal que ali passara; o semblante triste que revela,
movimentos da alma (...). Não há outra razão para assinalar, isto é, para
151 II, I, 1.
152 II, 1, 2.
153 Cf. Novaes, op. cit., cap. I.
154 II, 2, 3.
68
alcançam seu uso mais singular e complexo. E, dos signos que
ser comunicados por ela, mas o que assinalam as palavras não pode ser
falada é signo que aponta para a alma de quem a profere; se, por fim, aquele
69
maneira certa ou não.”158 É preciso, então, que ao trabalho do intelecto se
associe o trabalho do asceta, ideia que não soará de todo estranha ao que
“é preciso que o temor de Deus nos leve a conhecer sua vontade, e assim
sua alma que não prefere nem compara o próximo com a verdade”; e, por
fim, “a sabedoria, sétimo e último grau, no qual gozará tranquilo e em paz”. 160
vontade divina. Precisa, em primeiro lugar, conhecer os livros; ainda que não
70
os compreenda de início, não deve ignorá-los, mas conservá-los na memória
tanto quanto possível. 161 Buscará os preceitos do bem viver que são
elucidar as obscuras.
dita –, diz o hiponense que “os signos são próprios ou são figurados [vel
propria, vel translata]”. 162 Quanto aos próprios, exigem de nós o caminho
mais. O mesmo animal nos serve de exemplo: significa bovem o ser vivo que
apóstolo, que diz: Bovem triturantem non infrenabis [1 Cor 9, 9]”.163 Todavia,
“Por duas causas não se entende o que está escrito: pelo desconhecimento
71
ou pela ambiguidade dos signos.” É esta, inclusive, a divisão geral dos Livros
originais.
72
dos nomes hebraicos, por exemplo, é de grande valia ao hermeneuta.
nos o sentido de Jerusalém, Sião, Jericó, Sinai, Líbano, Jordão (...), os quais,
nossa cabeça, que é Cristo, impedindo assim que morra em nós a fé cristã
dois últimos, Agostinho dá considerável destaque em II, 16, 25 e II, 16, 26).
ervas, números etc.) porque isso permitira, em primeiro lugar, que os autores
167 II, 16, 23.
168 II, 16, 24.
73
bíblicos empregassem tais características para construir formulações
74
edificaram para ambas templos e preferiram adorá-las
em pedras em vez de as terem no coração. Antes, o
cristão bom e verdadeiro deve entender que, em
qualquer parte em que se ache a verdade, ela é coisa
própria do seu Senhor (...).170
forma já desde II, 17, 27, que não obstante possui certo vínculo com a seção
digressões que só raras vezes evocam a scientia signorum de que até então
naturais, instituídas por Deus). “O que foi instituído pelos homens é em parte
75
não nos debrucemos sem necessidade. Trata-se daquelas “que os homens
173 Das vinte ocorrências de doctrina que Verheijen encontrou, as cinco que o autor crê
significarem “cultura” ocorrem na digressão (entre II, 19, 29 e II, 42, 63), sempre no plural. Cf.
nota 23, acima.
174 II, 20, 30.
175 II, 25, 39.
76
As instituições dos homens que são úteis e
necessárias, estabelecidas de mútuo acordo, são o
vestido e o adorno corporal, cuja distinção se fez
necessária para diferenciar as dignidades e o sexo;
também se contam entre elas todos os inumeráveis
gêneros de signos, sem os quais ou não haveria em
absoluto, ou seria menos cômoda, a sociedade humana;
acrescentamos os signos próprios de cada cidade e
povo que se referem aos pesos e medidas, às efígies e
valor das moedas, bem como todos os outros desta
classe que, não fossem estabelecidos pelos homens,
não seriam tão variados nos diferentes povos, nem se
alterariam em cada um deles ao arbítrio dos respectivos
príncipes.176
cristão; antes, enquanto lhe seja necessário, deve dedicar-se a seu estudo e
aprendê-las de cor.”177
77
respeito à hermenêutica bíblica. Nesse caso, para a compreensão das
surpreendentemente negligenciadas.
atividade em que lhe é própria. Com efeito, as instituições humanas úteis ali
adorno corporal”, “os signos (...) próprios de cada cidade e povo”, “o que se
refere aos pesos e medidas”, “efígies e valor das moedas” – tudo isso é de
amplectenda sint:
78
As que pertencem à sociedade com os demônios,
como dissemos, devem em absoluto ser repudiadas e
detestadas; e as que os homens usam entre si devem
ser aceitas na medida em que não são supérfluas e de
puro luxo – sobretudo a forma das letras, sem as quais
não poderíamos ler, e também a diversidade de línguas,
na medida em que seja suficiente a cada um, sobre o
que já falamos acima. (...) Todos estes signos são úteis
e não é coisa ilícita sabê-los; tampouco nos enredam
em superstição, nem enfraquecem com o luxo, contanto
que não nos ocupem de tal modo que cheguem a ser
impedimentos para dedicarmo-nos a outras coisas de
mais importância (...).180
sociedade com os demônios? Sua censura diria respeito apenas à sua (não)
que os homens usam entre si devem ser aceitas na medida em que não são
79
essa pergunta pode ser positiva. Lembremo-nos de como Agostinho
havia inflamado mais ardentemente que a tua arte poética para a ciência das
quando Agostinho trata das ciências que não foram instituídas pelos homens:
muito a entender os Livros santos, ainda que seja assimilada fora da Igreja,
Senhor levou muitos ao erro; julgaram que Ele padeceu aos quarenta e seis
anos de idade porque haviam dito os judeus que foi esse o tempo da
mecânicas.184
181 III, 4, 7.
182 De doctrina christiana, II, 28, 42.
183 Ibid., id.
184 Cf. II, 29; e II, 30.
185 II, 31, 48.
80
Cassicíaco, como apenas a dialética e a aritmética têm grande destaque e
relevância, mas não sem uma longa lista de ressalvas. 186 Marrou
quanto o outro sem dúvida abarcam um pouco das mesmas rubricas, mas o
em que só entra aquilo que servirá à alma cristã que busca, pelo estudo das
81
outras estabelecidas pelos homens e que servem para a
convivência da sociedade, não as descuidem enquanto
o exige a necessidade da vida. Quanto às demais
ciências que se acham entre os gentios, exceção feita
às informações sobre as coisas passadas ou presentes
que pertencem aos sentidos corporais – entre as quais
se incluem também as conjecturas e os experimentos
das artes mecânicas –, bem como à lógica e à
matemática, julgo que nada têm de útil. Em todas estas
ciências se há de observar a máxima ne quid nimis [de
Terêncio], sobretudo no que toca aquelas que
pertencem aos sentidos corporais, se desenvolvem no
tempo e ocupam lugar no espaço.189
Terêncio a dar-lhe respaldo na exposição; não teria sido ele assimilado após
supérflua?
82
Porque assim como os egípcios não apenas tinham
ídolos e cargas pesadíssimas, das quais fugia e
detestava o povo de Israel, mas também vasos, aljavas
de ouro e de prata e vestes que o povo escolhido, ao
sair do Egito, levou consigo ocultamente para dar-lhes
melhor uso – mas não por autoridade própria, e sim por
ordem de Deus (...); assim também, todas as ciências
dos gentios não apenas contêm fábulas [figmenta]
fingidas [simulata] e supersticiosas, (...) mas também
(...) as ciências liberais, muito aptas para o uso da
verdade, e certos preceitos morais utilíssimos;
encontram-se até entre elas algumas verdades a
respeito do culto do único Deus. Tudo isso é como o
ouro e a prata deles, mas que não instituíram eles
mesmos; antes, extraíram-na de certas minas da divina
Providência (...).190
próprio bispo menciona Cipriano, Lactâncio, Vitorino, Optato e Hilário. 192 Chin
ela, a
83
gramáticos contemporâneos, está interessado em
mudar a significação de signos pré-existentes ao
removê-los “literalmente” de seus contextos simbólicos
de significação.
refira a algo mais amplo – ou ao menos que há indícios de que ele pode não
Subjaz a ela toda a distinção entre uti e frui que o santo apresentara no Livro
doctrina.
193 Catherine M. Chin, “The Grammarian’s Spoils: De doctrina christiana and the Contexts of
Literary Education”, p. 176.
84
deve deixá-la apenas a cargo dos mentirosos, que muito bem sabem se valer
vislumbra aqui o tipo de desenvolvimento que faria Baldwin 196 exclamar que
85
“desvio tão marcante da tradição retórica e literária que chega quase a
o que, para ensinar, puder dizer as coisas pequenas com simplicidade; para
grandiloquência.”199
não há, na exposição das Escrituras sagradas, tema que se possa dizer
198 De doctrina christiana, IV, 17, 34. O romano em questão é Cícero, mais uma vez.
199 Ibid., id.
200 Cf. IV, 18, 35.
86
“Deus é grande sempre”, diz Agostinho. Não poderia, contudo, ser matéria de
expositivo?201 Assim,
determinante do orador cristão deve ser instruir. Com efeito, ninguém pode
que se trata.
87
retórica aos olhos dos filósofos, que jamais cessaram de criticar a arte da
eloquência pela prática, legada a Agostinho pela segunda sofística 203 (ele
retórica filosófica”.205
motivada a algo se não houver o que a atraia, isto é, o que lhe propicie
deleite. “Meu amor, meu peso”,207 diz a famosa expressão do santo; somos
atrai porque belo.208 O orador cristão, por conseguinte, deve ser instrumento
como tal, move a vontade: “A vontade mesma não terá motivação a menos
88
que algo se apresente para deleitar e instigar o espírito.”209 O uso dos floreios
Escrituras das acusações de que lhes careceria eloquência: sua beleza vem
da inspiração por Deus nos autores sacros, que jamais procuraram o floreio
retórico como fim em si. Harrison assim o resume: 210 “Há uma espécie de
apontar para além dela, isto é, para a verdade que é sua fonte e fim: o
em prática, em seu mais alto grau e desde a primeira linha, essa estética
89
III.
As Confessiones
um clássico que, parte já de nossa bagagem comum, acaba por ser julgada à
90
Deus em terceira pessoa e o conhecimento de si e do Criador consistia num
tempo, como bom retórico, Agostinho não deixa de ser “o mesmo artista
filosófico” 216 que os velhos Platão e Plotino, não obstante suas censuras à
arte da eloquência. Sua obra, diria certo especialista, é, “desde suas notas
iniciais (...), uma sinfonia”, com sonoridades que inflam, diminuem, oscilam e
prosa tão bela quanto aquela”. 218 De fato, “um homem do baixo império
romano que abrisse pela primeira vez seu exemplar das Confessiones
muito mais próximo: sua própria alma, sua própria biografia. Com efeito, os
91
artística ao itinerário de sua alma até e após a conversão. Trata-se de um
Agostinho que olha para a própria vida com os olhos da fé e uma nova
sensibilidade para a graça. Sua obra magna é “o ápice para o qual seus
com razão. E a obra alça voo mais alto porque a percepção da ação divina
fá-lo se dirigir a Deus “em adoração e união mística”.221 A estética cristã, cuja
texto autobiográfico.222
sempre renovada? Dizer que seu vigor advém dos problemas filosóficos que
levanta é reduzi-lo: Agostinho faz mais. Já na oração que abre sua obra e
claro que a alma agostiniana, marcada como é por toda sorte de paixões, é
92
pela totalidade, a distância que nos separa do Criador. Se, qual nos épicos, o
desde onde cheguei aqui, nesta vida mortal ou, antes, nesta morte vital? Não
nada recordo-me.”224
primeiros anos oferece aquilo de que o bispo necessitava para lograr o que
trazia em mente. Todos os indícios que lhe serão úteis são expostos, a
224 Confessiones, I, 6, 7.
93
Receberam-me, digo, os consolos do leite humano,
do qual nem minha mãe, nem minhas amas, enchiam
seus seios; antes, eras Tu quem, por meio delas, dava-
me o alimento da infância, segundo tua ordem e os
tesouros que dispuseste no mais profundo das coisas.
Também eras tu quem me levava a não desejar mais do
que me davas e minhas amas a não desejarem dar-me
mais do lhes concedias, uma vez ser ordenado o afeto
com que queriam dar-me aquilo em que, por Ti,
abundavam.225
satisfeito tão logo uma exigência surgia. O bebê “acrescenta sua própria nota
quais não podem se opor ao bem do todo porque são informadas por ele”. 226
Todavia, o que se disse sobre o bebê poderia muito bem ser dito
de qualquer animal. Por outro lado, uma pequena nota, que poderia muito
94
bem passar despercebida, começa a diferenciar aquele serzinho das outras
vingança a não ser atendido, chorava. 229 Também era choro o que lhe
causava a avidez pelo seio da mãe – um desejo que, se replicasse hoje ante
ordem natural não poderia explicar, desejos por coisas que lhe seriam
227 I, 6, 8.
228 I, 6, 9.
229 Cf. ibid. id.
230 Cf. I, 7, 11.
95
prejudiciais e que merecem a reprimenda de pais e amas. É possível
observar o bebê que, mesmo sem ainda falar, sente inveja do irmão de leite
mesmo tendo, para si, uma fonte de alimento que bastaria para saciá-lo. Ao
contrário dos outros animais, há no homem paixões que estão além daquelas
está ele fora da ordem natural e não é ordenado a seu fim. Sua inocência,
13, lemos que, não sendo mais infans, incapaz de falar, tornou-se menino, e
doravante, a vida narrada ali é sua em maior grau do que os fatos de sua
primeira infância.
crianças; segundo, porque ainda mantém relação com a ordem natural a que
96
método ordenado, qual no futuro me ensinariam as
letras. Fora antes eu mesmo, com o entendimento que
Tu me deste, meu Deus, e ao querer manifestar meus
sentimentos com gemidos, vozes e muitos movimentos
de meus membros, no intuito de que fossem satisfeitos
meus desejos (...). Por conseguinte, quando davam
nome a algo, fixava-o eu na memória; e, se ao
pronunciarem mais uma vez tal palavra, moviam-se na
direção do objeto, entendia eu e lembrava que tal objeto
era denominado pela palavra pronunciada (...). Portanto,
das palavras, colocadas em várias frases e em seus
lugares, bem como ouvidas repetidas vezes, ia eu
entendendo aos poucos os objetos que significavam; e,
transposta a dificuldade de minha língua, comecei a dar
a entender meus desejos mediante elas.232
apenas pelo choro – saberiam quando estava com fome pois os seios
não bastam. Há, no bebê, uma capacidade implícita ao animal racional que
criança adquire uma identidade fora e além do sensível”, isto é, ela “chega a
232 I, 8, 13.
233 Cf. Starnes, op. cit., p. 09.
234 Ibid., p. 10.
97
uma autoconsciência racional”, o que “lhe dá certa liberdade com relação ao
mundo natural e um domínio correspondente sobre ele, uma vez que pode
natural, da ordem do instinto. E, porque a ordem racional lhe pode ser agora
velhos”.235 Teve, portanto, de passar aos estudos das primeiras letras, a fim
deve usar de valores que não estão de todo controlados pela natureza: ela
“uma comunidade natural” que fugisse aos bens universais a que a escola
98
de que “poderia no futuro fazer bom uso”:239 “Suas capacidades racionais
eram tanto um bem quanto sua existência e sua vida, e os três se deviam à
ordem divina, pois ele mesmo não fizera nenhuma. Ele já assinalou que não
não era mais inocente do que quando, ainda infante, almejava coisas que
natural desejando o que era concebido por sua natureza racional, fazia agora
por inteiro: trata-se, com efeito, daqueles dois ou três que em geral forjam o
que se costuma dizer da relação entre o santo e o que se entende hoje por
99
Qual a causa de odiar eu as letras gregas em que
me imbuíam quando menino, desconheço. As latinas,
adorava, mas não as que ensinavam os primeiros
mestres, e sim as lecionadas pelos que se denominam
gramáticos. Com efeito, aquelas primeiras, em que se
aprende a ler, escrever e contar, não me foram menos
pesadas e repulsivas do que as gregas. Mas donde
poderia vir isso senão do pecado e da vaidade de vida,
sendo eu carne e vento que caminha e não volta?
Pois decerto as primeiras letras, mediante as quais
poderia chegar, como de fato o posso hoje, tanto a ler o
que há escrito quanto escrever o que desejo, eram
melhores, porque mais úteis, àquelas outras em que me
via obrigado a conservar os errores de um tal Eneias,
esquecendo-me porém dos meus, e a chorar a morte de
Dido, que se suicidara por amores, enquanto eu,
miserabilíssimo, sofria com olhos enxutos e morria para
ti, meu Deus, minha vida!
Que há, com efeito, que seja mais miserável do que
um miserável não ter misericórdia de si enquanto,
chorando a morte de Dido, pelo amor de Eneias
causada, não chora a morte que vem por não amar-te,
Deus meu, luz do meu coração, pão interior de
minh’alma, virtude fecundante da minha mente e seio
amoroso de meu pensamento? Não te amava e
fornicava longe de ti, e fornicando ouvia de todas as
partes: “Bravo! Bravo!”, uma vez que a amizade deste
mundo é adultério contra ti (...). E, não chorando por
isto, chorava Dido morta, que “buscou sua hora
derradeira no ferro”. Abandonava-te; era terra e tendia
para a terra, e a tal ponto que, se me proibissem ler tais
coisas, causar-me-iam dor por não me permitirem ler o
que queria. Não obstante, uma demência tal é tida por
100
coisa mais nobre e proveitosa que as letras pelas quais
se aprende a ler e escrever.
Mas agora, Deus meu, brade em minh’alma tua
verdade e diga: não é assim, não é assim; antes,
aqueles primeiros estudos são absolutamente melhores,
uma vez que eu preferiria esquecer todas as aventuras
de Eneias, bem como as demais fábulas do gênero, do
que não saber ler e escrever. Bem sei que, da porta das
escolas dos gramáticos, pendem certos véus ou
cortinas, mas não servem eles tanto para velar o
segredo quanto para encobrir o erro.
(...) Não clamem contra mim os comerciantes de
gramática, pois se lhes pergunto se é verdade que
Eneias chegara um dia, como diz o poeta, a Cartago, os
néscios me dirão não saber e os entendidos, que é
falso. Se lhes pergunto, porém, com que letras se
escreve o nome de Eneias, todos os que as estudaram
me responderão o mesmo, segundo o acordo e a
conveniência pelos quais os homens estabeleceram tais
signos entre si.
De igual maneira, se lhes perguntarem o que seria
mais daninho à vida humana: esquecer-se de como se
lê e escreve ou esquecer-se de todas as ficções dos
poetas, ninguém ignora o que responderiam aqueles
que não perderam de todo o juízo. Logo, Deus meu,
pecava eu naquela idade ao antepor o que era vão ao
que era proveitoso, movido tão somente pelo gosto. Ou
melhor: ao amar aquelas coisas e odiar estas, pois
repugnava-me a mim aquele “um mais um são dois,
dois e dois são quatro” que entoávamos, ao passo que
era-me espetáculo dulcíssimo o relato do cavalo de
madeira repleto de gente armada, bem como o incêndio
de Troia e “sombra de Creúsa”.
101
A concomitância da elaboração da Doctrina christiana e das
santo nesta que é a primeira crítica, na sua obra magna, às belezas que lhe
engendra a distinção entre uti e frui: sendo Deus o sumo e único bem de que
se deve fruir, exige, portanto, que tudo o mais seja empregado em vista
cristão; antes, enquanto lhe seja necessário, deve dedicar-se a seu estudo e
aprendê-l[o]s de cor”.244
102
respectivas almas neste mundo. E é precisamente o contrário disso, sugere
vitais deve se voltar: o gozo em Deus. Trata-se de ato que se encerra neste
era “vão”.247
103
Miller 248 nota que a perspectiva do Agostinho maduro torna-o
ao mesmo tempo que “Agostinho afirma seu compromisso, num nível mais
discurso”.249
Aqui, Agostinho nada mais faz do que recordar algo que, vimos, 250 já
articulara nos Soliloquia anos antes: o enunciado falso imita o veraz, mas é
trágico ao ser, porém, falso Príamo. Não se trata nas Confessiones, portanto,
das Ideias, mas de isolar “o caráter fictício das narrativas da certeza que vem
248 “St. Augustine, the Narrative Self, and the Invention of Fiction”, p. 55.
249 Ibid., p. 58.
250 Cf. Capítulo 01.
251 Miller, op. cit., p. 58.
104
importava-se mais com a vida de “um tal Eneias” e Dido do que com a sua –
motivo para tanto deve ser levantado: relação natural entre um garoto e os
dois personagens entoados pelo poeta não há. Ao mesmo tempo, vemos que
com olhos enxutos e morria para ti”; e também: “um miserável (...) chorando a
morte de Dido (...) não chora a morte que vem por não amar-te, Deus meu
objeto amoroso de que se via privado. Agostinho não poderia sabê-lo quando
Qual Eneias, tinha também seus próprios errores. As reações do menino, por
contêm de verdadeiro.
formado, tem o olhar que a graça lhe conferira: é, a seu ver, evidente que o
252 Camille Bennett, “The Conversion of Vergil: The Aeneid in Augustine’s Confessions”, p.
56.
105
menino que um dia havia carecido do esclarecimento necessário para
mesmo, distante de Deus, ao chorar por Dido; mas também chorava por Dido
como Eneias e, assim, “sem querer reconhecia não ser o abandonado, mas o
106
A relação entre literatura e experiência vem à tona, mais uma vez,
lemos sobre o rapaz que viola uma jovem depois de ver representado, sobre
107
palavras chuva, dourado, regaço, templo, celeste, bem
como outras mais que lá se encontram, se Terêncio não
nos apresentasse um jovem perdido que se propõe a
tomar Júpiter como modelo de estupro, contemplando
uma pintura mural “na qual se representava o mesmo
Júpiter no momento em que, segundo dizem, enviou
uma chuva de ouro sobre o regaço de Dânae,
enganando com semelhante truque a pobre mulher”.
Veja-se como se estimula ele diante de tão celestial
mestre: “Que deus”, disse, “que faz retumbar os templos
do céu com tamanho estrondo! E eu, homenzinho, não
poderia fazer o mesmo? Fi-lo já, sim, e com mui gosto.”
De modo algum, portanto, com tamanha torpeza se
aprendem tais palavras, que porém perpetram a
torpeza. Não condeno eu as palavras, que são como
vasos seletos e preciosos, e sim o vinho do erro que os
mestres ébrios neles nos apresentavam (...).257
108
palavras do conteúdo licencioso da narrativa”;258 antes, é precisamente por
ser possível uma tal separação que poder-se-ia expressar também o desejo,
um currículo escolar com base nisso parece mesmo acinte. “Afinal”, comenta
nossa visão das grandes obras. Homero, Virgílio e os outros grandes eram
nossa relação com eles. A autoridade do que tomamos, hoje, como “meras
109
prosa a cólera que Juno demonstra no livro primeiro da Eneida,260 quando se
adequadas, seus afetos de ira e dor”. 261 Tudo, porém, em vista de algo
o legado literário pagão, tal qual empregado pelo sistema educacional dos
tempos antigos, e as glórias vãs a que ele era intimamente associado: “Se
III. 4. No teatro
110
parâmetro a determinar o que era bom e o que era mau. Jovem, “amar e ser
amado” era para si “a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar do corpo da
transbordando de vaidade”.265
111
sentir dor ali, ao assistir fatos trágicos e tristes que não
gostaria de padecer? No entanto, o espectador quer
senti-la, e essa dor mesma é seu deleite. Que é isso
senão espantosa loucura? Pois tanto mais se comove
com tais cenas quanto menos se é livre de semelhantes
afetos, não obstante sejam denominados misérias
quando delas padecemos e misericórdia quando delas
nos compadecemos nos outros.
Que misericórdia, porém, pode haver em coisas
fictícias e cênicas [rebus fictis et scenicis]? Pois ali não
se provoca o espectador a socorrer ninguém, mas tão
somente a condoer-se, e tanto mais exalta o autor
quanto maior é a dor que experimenta. De modo que, se
essas calamidades humanas, sejam remotas ou falsas,
são representadas sem causarem dor, retira-se o
espectador aborrecido e queixoso; se, por outro lado, é
dor o que lhe causam, permanece ele atento e contente.
Amadas, portanto, são as lágrimas e as dores?
Decerto, todo homem deseja alegrar-se. Mas, não
agradando a ninguém ser miserável e dando-lhe gosto
ser misericordioso; e não podendo ser ele
misericordioso sem sentir dor, não será esta a causa de
amarmos as dores? (...)
Por conseguinte, deve-se rechaçar a compaixão?
De modo algum. Preciso será, pois, que nalguma
ocasião sejam amadas as dores; mas resguarda-te,
minh’alma, da impureza, sob a tutela de meu Deus (...).
Mas então comprazia-me nos teatros com os amantes
quando eles gozavam uns dos outros em suas torpezas,
não obstante fossem praticadas imaginariamente nos
jogos cênicos. E assim, quando um deles se perdia,
contristava-me quase misericordioso; e tanto aqueles
quanto este me deleitavam.
112
Hoje, entretanto, nutro mais compaixão pelo que se
compraz nos seus flagícios do que daquele que padece
pela carência de um deleite pernicioso ou a perda de
uma felicidade miserável. Esta misericórdia é decerto
mais verdadeira, mas nela a dor não deleita. Pois, se é
certo que merece aprovação quem, por razões de
caridade, se compadece do miserável, o
verdadeiramente compassivo preferiria que não
houvesse do que se compadecer. Com efeito, assim
como não é possível que exista uma benevolência
malévola, tampouco é possível que haja alguém
verdadeira e sinceramente misericordioso que deseje a
existência de miseráveis a fim de que haja de quem se
condoer.
Há, pois, certa dor que merece aprovação, mas
nenhuma que mereça ser amada. (...) Porém eu,
desventurado, amava então a dor e buscava motivos de
experimentá-la quando, naquelas desgraças alheias,
falsas e teatrais, tanto mais comprazia-me na ação do
histrião, e mais me via suspenso, quanto mais lágrimas
me fazia derramar. Que maravilha era eu, infeliz ovelha
desgarrada do rebanho, que por opor-me à tua guarda
era acometido por sarna tão asquerosa! Daí nasciam,
sem dúvidas, os desejos daqueles sentimentos de dor
que eu não queria, no entanto, penetrados tão no meu
íntimo; rejeitava, afinal, padecer coisas como as
representadas, mas tão somente as que, ouvidas ou
fingidas, tocassem-me só a superfície.268
113
Mann 269 debruçou-se sobre o mesmo excerto para identificar os
maior for a dor que causa: “Há certos tipos de sentimentos desagradáveis,
como angústia, medo, ira e pesar, que as pessoas em geral tentam evitar.
Julieta invadiria o palco para tirar o veneno das mãos de Romeu.” 271 Trata-se
114
cênicas? Pois ali não se provoca o espectador a socorrer ninguém, mas tão
deixar afetar pelo que não existe: o fenômeno da não existência. 273
Agostinho, vimos nós, assim o diria: “De modo que, se essas calamidades
retira-se o espectador aborrecido e queixoso; se, por outro lado, é dor o que
fictício sobre uma plateia que tem pleno conhecimento de estar diante de
que diz respeito aos paradoxos do bispo de Hipona, Mann recorre a Kendall
115
teatro”.276 Diria Walton, pela voz de Mann, que, “quando Agostinho afirma ter
verdadeiramente. Nada disso, porém, faz com que o estado deles seja o de
incredulidade . Antes,
116
Por conseguinte, o sofrimento daquele jovem não é o sofrimento
Agostinho. Ele sabe que ninguém morreu. Não Dido, que nunca existiu;
tampouco a atriz.”280
efeito, “nenhum estigma moral paira sobre a cabeça de quem vai ao teatro;
sabem que nenhuma violência real está ocorrendo. Antes, são espectadores
117
“original” por algo que sabe não ter acontecido; caso se desdobrasse o ato
morrendo à sua frente, com todas as atitudes e reações que ele acarretaria.
o fato de que o diálogo entre os três é prova inequívoca tanto da estatura dos
saber, que ela não possui “uma esfera e um valor propriamente autônomos”,
non datur”282 – poderia ser dito, de certa forma, também sobre Agostinho:
Deus é tudo o que lhe interessa e será seu parâmetro no juízo de sua relação
118
com os textos e representações literárias; vimo-lo nos diálogos do
bispo. Não é a paixão suscitada pelo teatro o que perturba Agostinho, e sim
e sofrer com os atores, mas não ajudá-los. Agostinho não vê culpa nas
119
inerentemente tolo. As emoções não precisam de
repressão, mas de elevação e purificação, as quais são
encontradas quando o ser do homem é orientado a seu
verdadeiro destino na fé e na obediência. Apenas o
Criador confere forma e ordem ao caos, seja no cosmos
ou em nossas almas.
verdadeiramente o afetaram”.291
288 Robert O’Connell, Art and Christian Intelligence in St. Augustine, p. 126.
289 Ibid., id.
290 IV, 16, 28.
291 O’Connell, op. cit., p. 126.
292 Confessiones, III, 2.
120
“instinto mais profundo a dar origem à atividade verdadeiramente criativa da
mimese artística”:
pragmática e voltada à ação (por mais nobre que seja ela) o critério segundo
121
Deus – o espírito de todos nós. Já se comentou (rapidamente, decerto) que
dizer, é capaz de refutar qualquer que seja sua teoria da arte. Agostinho
brincar, quanto a este último caso, que “há páginas inteiras que poderiam
122
Ramage,301Knauer302 e Courcelle,303 citando poucos, fizeram-no de maneira
respeito. Uma breve retomada de uns poucos exemplos, portanto, deverá ser
Agostinho pelas viagens esteve longe daquilo que nos vendem hoje as
ecoa com certa frequência: em I, 15, 24 (viis meis pessimis), por exemplo,
bem como em II, 1, 1 (vias meas nequissimas); III, 3, 5 (amans vias meas et
non tuas); VI, 14, 24 (ad sequendas latas et tritas vias saeculi); VI, 16, 26 (O
123
Confessiones, perdurará a associação, oportuníssima, desse estado nosso
o Odisseu cristão que é Agostinho (e todos nós) surge também como o Filho
306 Cf. Confessiones, I, 19, 30; II, 3, 5; III, 6, 11; III, 11, 19; IV, 13, 20; VI, 1, 1; VII, 3, 5; VIII, 4,
9; XI, 2, 3; XIII, 8, 9.
307 Cf. Mateus 18, 10-4; Lucas 15, 1-7.
308 Cf. Mateus 8, 23-27; Lucas 8, 22-25; Marcos 4, 35-41.
309 Cf. Lucas 10, 30-37.
310 Cf. Jean Pépin, “The Platonic and Christian Ulysses”.
124
veja? Avance e adentre quem é capaz, deixando do
lado de fora a visão dos olhos e sem mais voltar-se para
as antigas fulgências dos corpos. Pois, vendo as
belezas nos corpos, de modo algum se deve persegui-
las, mas, entendendo que são imagens e traços e
sombras, fugir para aquilo de que estas são imagens.
Pois se alguém as persegue, desejando apanhá-las
como algo verdadeiro, acontecerá com ele o mesmo
que com aquele que quis apanhar sua bela imagem
corrente sobre a água – como me parece enigmar um
certo mito por aí – e sumiu abismando-se na profundeza
do rio; do mesmo modo, aquele que se apega à beleza
dos corpos e não a abandona se abisma, não com o
corpo, mas com a alma, nas profundezas tenebrosas e
funestas para o intelecto, onde, permanecendo cego no
Hades, conviverá com sombras por toda parte.
“Fujamos para a pátria querida”, alguém exortaria
com maior verdade. Então, que fuga é essa? Como?
Navegaremos como Odisseu, diz ele – enigmando,
penso eu –, que fugiu da feiticeira Circe ou de Calipso,
não contente em permanecer, embora tivesse prazeres
para os olhos e se unisse a muita beleza sensível.
Nossa pátria é donde viemos e nosso pai está lá. Que
jornada e que fuga são essas, portanto? Não devemos
perfazê-la com os pés: os pés nos levam a todo lugar,
da terra para terra; e não precisas preparar urna
carruagem de cavalos ou uma embarcação, porém
deves te afastar de tudo isso e não olhar, mas, como
que cerrando os olhos, substituir essa visão e despertar
uma outra, que todos têm, mas poucos usam. 311
311 Trad. José Carlos Baracat Júnior, em tese sua: Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de
Plotino: Introdução, tradução e notas (volume I), pp. 316-17.
125
E, uma vez que impera a convicção enunciada na Doctrina
referência ao Filho Pródigo: “Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor,
buscarei, pois longe está do teu rosto quem em afeto tenebroso, dado não
deslocou-se a pé, ao ir-se para a região longínqua em que dissipou o que lhe
entre aspas, por certo: seria menosprezar tão bom retórico julgá-lo
relação com Dido e Eneias, ao menos o modo como ele dá nova significação
126
Praticamente toda a obra do santo resvalará nas imagens e
313 Diz MacCormack (The Shadows of Poetry, p. xviii-xix): “Em alguns casos, Agostinho citou
Virgílio como parte de um pensamento ou de uma linha de raciocínio, referindo-se ao célebre
poeta no intuito de convencer seus leitores. Noutras ocasiões, contudo, ele citou versos ou
semiversos de Virgílio de modo um tanto intencional, como parte de seu aparato mental. Noutras
palavras, Virgílio tinha parte na realidade do próprio Agostinho porque descrevia a realidade de
maneiras que Agostinho cria decisivas. Os motivos pelos quais a realidade virgiliana se fazia
decisiva diferia para o jovem estudioso da filosofia e o converso ao cristianismo. (...) Durante os
meses de reflexão que se seguiram à sua conversão, Agostinho escreveu diálogos à maneira de
Cícero, nos quais citações de Virgílio enriquecem e adornam seus argumentos. Uma vez ordenado
padre e bispo, Virgílio saiu da alçada de sua consciência, e seu tratado Da doutrina cristã, iniciado
em 396, mas colocado de lado e retomado mais de trinta anos depois, contém poucas
reminiscências virgilianas (...). As Confissões, no entanto, escritas na virada do século IV ao século
V, estão profundamente embebidas em temas e sentimentos virgilianos. Por fim, nos livros que
dão início à Cidade de Deus, cuja redação ocupou Agostinho entre 413 e 427, Virgílio se deslocou
para o centro do palco, na condição de porta-voz da cultura romana pagã que Agostinho buscava
refutar.
Virgílio ajudara a forjar a língua latina que Agostinho e seus contemporâneos usavam.
Agostinho, portanto, não estava sozinho ao expressar uma boa quantidade de pensamentos em
termos virgilianos. Além de dar forma à língua, porém, Virgílio escrevera sobre temas que se
tornaram o foco da atenção de Agostinho: o nascimento de uma criança messiânica, a destruição
de uma grande cidade, a relação entre alma e corpo, bem como entre a natureza da emoção e a
morte, o foco do culto e da piedade, a natureza do divino.”
127
propensas a negligenciar, porém, era o contexto em que
tais ideias figuravam na obra do poeta como um todo.314
magna para traçar uma primeira relação: dirá que o verbo circunferens, por
duas vezes ali (“e o homem carrega consigo [circumferens] sua mortalidade,
“marcadamente virgiliano”:
Agostinho inicia sua obra: et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in
surge a Itália como “local da tua cidade, repouso [requies] fixo de teus
128
trabalhos”.319 O herói de Virgílio, portanto, carregando um passado em que é
morto tudo o que lhe fora caro, buscando novo lar e império, já parece
e distante da pátria.
no qual o bispo reconhece que nada havia, sob o olhar do crítico hostil, digno
de imitação nos errores de Eneias, não deve levar o leitor a achar que se
ainda: tetigisti me, et exarsi in pacem tuam. 321 Ao fundo, ecos do poeta:
exarsere igens animo; 322 tam vero exarsit iuveni dolor ossibus ingens; 323
Talibus Allecto dictis exarsit in iras;324 hic vero Alcidae furiis exarserat atro;325
129
palavra: “O quanto ardia, meu Deus, o quanto ardia em desejos de revoar
maravilha era eu, infeliz ovelha [infelix pecus] desgarrada de tua grei
[aberrans a grege tuo].” Vem da terceira Écloga a infelix pecus, mas também
Dido é infelix no épico e vaga como animal sem rumo: “Dido infeliz [infelix
Dido] arde e pela cidade erra fora de si, qual cerva por flecha ferida”.330 O
menor, porém, que a do épico: o futuro bispo não era cervo acometido por
uma daquelas a que O’Connell se dedicou e, vimos nós, fê-lo tratar Agostinho
Hipona desloca as imagens da água e do mar que Virgílio emprega nos livros
“um pouco mais para o interior”, isto é, “se as imagens marítimas de Virgílio
modo?
130
Ele fala do fluctus temptationum e do modo como
“[o amor e a concupiscência] abrasavam e arrastavam
minha fraca idade pelo precipício de meus desejos e me
submergiam num mar de torpezas”.332 Alhures, escreve:
exaestuarent fluctus aetatis meae. 333 Em certo
momento, volta-se para o flumen moris humani, 334
questionando por quanto tempo ainda arrastaria – o
verbo é volvere – os filhos de Eva até o mare magnum
et formidulosum que representa a vida desordenada
pelas paixões. A qualidade altamente retórica dessa
passagem em particular, as imagens do rio e o emprego
do volvere remetem ao célebre O terque quaterque
beati..., fala que Eneias conclui com: Simois correpta
sub undis scuta virum galeasque et fortia corpora
volvit!335
131
que fingi ter de despedir-me de um amigo que não
queria abandonar até que, soprando o vento, inflasse as
velas. Desse modo, enganei minha mãe – e que mãe! –
e fugi, e tu perdoaste tal pecado misericordiosamente,
protegendo-me, repleto de imundícies execráveis, das
águas do mar para que chegasse às águas de tua
graça; com elas lavado, secariam os rios dos olhos de
minha mãe, com os quais, diante de ti, todos os dias
regava a terra sob seu rosto.
Porém, como recusasse ela a regressar sem mim,
pude apenas convencê-la a permanecer, ao longo
daquela noite, em lugar próximo à nossa embarcação,
em memória ao bem-aventurado Cipriano. Na mesma
noite parti às escondidas e sem ela, deixando-a em
oração e prantos. (...)
Soprou o vento, inflou nossas velas e desapareceu
de nossa vista a praia, em que minha mãe, na manhã
próxima, enlouquecia de dor, enchendo de queixas e
gemidos os ouvidos teus, que não os atendia (...). 336
Itália e a terra romana”. 337 Também Eneias devera ouvir o vento que
olhos para trás a fim de contemplar a pira que consumiria o corpo de Dido;
132
morte: o oratório e o túmulo do mártir Cipriano, onde uma inconsolável
mostras de algo mais: “Neste ponto, entretanto, sua história [de Agostinho]
ouvidas e atendidas (...) pelo Deus cristão quando Agostinho, tal qual
noite de sua mãe em busca de alunos mais dóceis [em Roma].” E o desfecho
133
Mônica, que segue outro enredo, vai para casa rezar.” 342 O bispo de Hipona,
portanto,
progresso: “ler a própria vida à luz dos figmenta só poderia (...) revelar suas
inadequações”. 346 Agostinho busca, ao partir para Roma, uma patria, mas
134
Eneias: “Aqui, fui eu recebido com o flagelo de uma enfermidade corporal que
embarcações.
Mas há, ainda, a figura de Mônica, que surge, na cena que divide
com Agostinho na praia de Cartago, qual nova Dido, a chorar de amor. Sofre
com sua perda do mesmo modo como a rainha o fizera. No entanto, deve
e outra a suplanta:
porém, de amor mais puro que a de Dido, cuja reação à partida do amado é a
maldição do herói e sua raça: Mônica, repetimos, vai para casa rezar. É justo,
justaposição se frustra:
135
A mãe de Euríalo seguira seu filho até a Itália; não
obstante, ele morre, ao que ela o censura e implora a
morte, evocando a pietas: “hoc mihi de te,/ nate, refers?
hoc sum terraque marique secuta?/ figite me, si qua est
pietas, in me omnia tela/ conicite, o Rutuli, me primam
absumite ferro;/ aut tu, magne pater divum, miserere,
tuoque/ invisum hoc detrude caput sub Tartara telo...”
[Eneida, IX, 491-96] (...) Se o amor materno tivera início
do mesmo modo, terminou de maneira completamente
distinta. A fé, no mundo de Virgílio, era em vão (...). A
pietas, na mãe de Euríalo, só poderia ansiar pela vida
corporal de seu filho e, na falta dela, por sua própria
morte – ambas imploradas em vão; seus deuses eram
incapazes de ajudá-la. Mônica, por sua vez, é
transformada diante de nossos olhos em personagem
diferente, a viúva de Lucas 7. O filho de Mônica já
passara da enfermidade à saúde física mediante
orações que a primeira ignoravam 350 (...); agora, essa
mulher em pietas deseja também sua saúde espiritual e
poderia confiar sem receios na benevolência do Deus
em quem buscava ambas.351
era maniqueu, embora tampouco cristão católico, não deu saltos de alegria
como quem escuta algo inesperado, por estar já tranquila quanto àquela
parte de minha miséria. Diante de ti, chorava como sobre um morto que devia
350 Confessiones, V, 16: “E, agravando-se as febres, quase estive a ponto de perecer. (...) Não
sabia disto minha mãe, mas rezava por mim ausente, escutando-a tu, presente em todas as partes
(...) e exercendo misericórdia para comigo (...).”
351 Bennett, op. cit., p. 64.
136
ser ressuscitado, oferecendo-me a ti no féretro de seu pensamento, para que
outro encontro derradeiro nas praias da Itália, onde Eneias fora ter com seu
Eneias, “uma longa viagem jaz às suas costas e outra, mais uma longa, à
137
seu pai olharam por sobre uma planície verde no Hades”. 355 Os dois
coração em direção aos caudais soberanos de tua fonte, da fonte de vida que
se encontra em ti (...)”.356
Anquises; mas que glória será essa se comparada àquela que aguarda mãe
quanto nos outros episódios em que figura a mãe, leva a cabo certa
por isso, chama-o “novo Virgílio”; e, porque é também sua história, “novo
Eneias”.357
355 Bennett, op. cit., p. 65. Cf. Eneida, VI, 679ss, 703ss.
356 Confessiones, IX, 10, 23.
357 Op. cit., p. 58.
138
Não obstante, pode-se seguir outros caminhos – mais “novos”,
139
“Bravo! Bravo!” 363 [euge, euge]. Notará o comentador que a exclamação
obras de outros gêneros é algo que Burton nos recorda;366 na própria Eneida
episódios que explora gira em torno do velho (e, aqui, também injustiçado)
140
Ao meio-dia, repassava no fórum o que havia de
recitar, segundo o costume dos estudantes, e foi preso
qual ladrão pelos guardas [aeditimis] dali (...).
Passeava Alípio diante do tribunal apenas com as
tabuinhas e o estilete, quanto um jovem dentre os
estudantes, mas também verdadeiro ladrão, que portava
às escondidas [clanculo apportans] um machado,
chegou sem ele perceber às grades de chumbo que
davam para a rua dos prateiros e se pôs a cortá-las.
Ao ruído dos golpes, confabularam
[submurmuraverunt] os prateiros que se encontravam
abaixo e guardas enviaram para prendê-lo, fosse ele
quem fosse. Este, porém, porque ouviu suas vozes,
pôs-se em fuga, abandonando nisso o instrumento de
ferro por recear ser apanhado com ele. Alípio, que não o
vira entrar, viu-o porém sair precipitadamente e escapar;
desejando saber a causa, adentrou o local e,
encontrando-se com o machado, pôs-se a contemplá-lo.
Eis, contudo, que entraram os enviados e o
surpreenderam a sós com o ferro em mãos (...).
Prendem-no então e o levam à força, enquanto gloriam-
se os inquilinos do fórum por terem encontrado o
verdadeiro ladrão, que é conduzido dali a fim de ser
julgado.367
Mas não tem fim desta maneira a história: enquanto era carregado,
141
verdadeiro ladrão, onde um escravo, ainda menino (um pedisequus), se
Apuleio, notório por seus arcaísmos, com oito ocorrências. 370 Vale mais,
conclusão que tirará Burton: “De maneira mais geral”, dirá antes de passar ao
142
segundo de seus episódios, “a história ilustra como Alípio, a exemplo de
todo modo, de algo fictício e cativante. Contudo, é essa obsessão por um dos
vários gêneros até o mundo da farsa, onde seus estudos forenses (...) não
Dido em prantos pela partida de Eneias, tem identificadas aqui suas notas
143
levavas-me para longe, a fim de que desse fim à
concupiscência por meio da concupiscência e
castigasse [vapularet], com o justo flagelo da dor, o
anseio carnal de minha mãe por mim. Pois, também
como as demais mães, e ainda muito mais que a
maioria, desejava ter-me junto a si, desconhecendo os
grandes gozos que tu lhe preparavas com minha
ausência. Não os conhecia, e por isso chorava e se
lamentava [flebat et eiulabat], acusando com tais
lamentos a herança que havia nela de Eva, ao buscar
com gemidos o que com gemidos parira.
Por fim, após ter-me acusado de falácia [fallaciarum]
e ser mau filho, e após rogar por mim a ti, voltou-se à
sua vida ordinária e eu, a Roma.373
linguísticos em Burton:
144
Plauto em número esmagadoramente superior ao de
qualquer outro autor (...). Seu “anseio carnal” pelo filho é
castigado [vapularet] pelo verdadeiro Mestre mediante o
“justo flagelo da dor” . Mais uma vez, podemos suspeitar
de um dado originado na linguagem da comédia, uma
vez que Plauto e Terêncio trazem praticamente todos os
indícios clássicos do verbo.374
presença de notas cômicas ali reforça o que o tom épico nas Confessiones, o
Agostinho é o herói-cômico.
flashback que nos leva à sua infância. Uma decrépita serva (famulae
boa parte de sua educação; proíbe a jovem, entretanto, bem como outras, de
tomar sequer água fora das refeições, receando fomentar maus hábitos:
“Agora bebeis água pois não tendes vinho; quando casadas e donas da
cresce na moça o gosto pela bebida, por ela sorvida antes de ser despejada
145
Certa feita, Mônica discute com a escrava que costumava
vinho. Eis o que basta para que a futura santa, ferida pelo insulto,
146
velha alcoviteira que bebia muito, e vinho puro
(multibiba atque merobiba).
sobretudo as velhas, muitas vezes se notabilizam por seu gosto pela bebida;
aqui, a velha busca ativamente impedir que Mônica desenvolva esse gosto, e
***
retórica de Agostinho revelam: o que diz e o que faz parecem divergir de tal
maneira que uma palavra capaz de definir a posição do bispo ante a tradição
do que se viu nestes capítulos, e é igualmente possível que uma visão assim
147
Conclusão
379 Gian Biagio Conte e Alessandro Barchiesi, “Imitação e arte alusiva. Modos e funções da
intertextualidade”, p. 87.
148
Desculpemos Conte e Barchiesi, pois decerto não teriam em
sobretudo, confiabilidade.
bem como uma notável lista de artifícios estilísticos, estaria explicada à luz da
149
relação entre o autor e seu público, que também pode
variar.382
fomentar nele o desejo de uma mudança radical de vida? Seja esse o caso,
como explicar o que Hagendahl 384 identificou, a saber: que, nos panfletos
mais palpitante.
150
longo de sua atividade. Fora Cícero, cujo impacto imediato sobre as
ascese pelas artes liberais. Assim – vimo-lo –, Licêncio pode usar a poesia
ocupam em seu espírito lugar maior que a filosofia, devem ser eles
deve-se admitir que algo muda, que desde o segundo plano não ecoam já as
bagagem em busca dos instrumentos que lhe poderiam ser úteis para abrir
151
encontra sua real utilidade. Colocados em seu lugar, ordenam-se para o alto,
entre o usar e o fruir é particularmente útil, uma vez que já se possui a meta
pelas mãos dos antigos: por mais que se conservem valiosos a seu modo,
menos segundo o bispo de Hipona, jaz esta nova civilização, esta nova
platonismo, era incapaz de dar conta dessa grande novidade que era a
lo.
152
Terêncio, podia assimilar tanto noções proveitosas ao estudante quanto
obstante as faltas a que Agostinho foi levado pela rudeza, ao menos nesse
reflexão a que ele se veria conduzido ao olhar para um estudante que era
dizem respeito a uma cultura inteira num grau diminuto, estando sobretudo
ainda hoje, todos nós. Tanto é isso verdadeiro que seus comentários sobre a
plasmado por uma graça da qual seu próprio processo artístico, como sói
clássico estaria gravado em sua alma, e a tal ponto que seria compreensível
153
filósofo rigoroso – não poderia jamais ter utilizado tantos elementos do épico
revelam que há algo, naquela herança, que não dá conta da nova experiência
poderia conhecer.
logo à memória.
recebe destino diferente do herói virgiliano – tudo isso, bem como todas as
percebera com clareza: que cultura nenhuma consegue dar conta da alma
que foi tocada pelo Espírito, que somente um leitor transformado por esse
154
sê-lo por ajudar-nos a lograr um Fim. Que injustiça seria pôr, nos lábios de
seu coração é maior do que isso, seu pensamento também; o que Agostinho
tem diante de si é aquele caminho que poderia aquietar o coração que busca
mas em vão. Dido, Enéias, o teatro, a eloquência – tudo em vão, mas não por
razões rasteiras; antes, por causa do tamanho desse rombo que o homem
traz no peito, desse rombo que por vezes julga passível de ser preenchido
por uma série de gozos, mas que só Deus mesmo consegue saciar.
155
Bibliografia consultada
Agostinho, Santo. A doutrina cristã. Trad. Ir. Nair de Assis Oliveira. São
Paulus, 2002.
los Diálogos. Los Soliloquios. El libro De la Vida feliz. Los libros Del
C.), 1946.
_____________. Obras de San Agustín, tomo III: Contra los académicos. Del
Del Génesis contra los maniqueos. Del Génesis a la letra, incompleto. Del
156
Alfaric, Prosper. L’Évolution intelectuelle de Saint Augustin. Paris: E. Nourry,
1918.
Unicamp, 2006.
Basílio, São. Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã. Campinas,
157
Bettetini, Maria. Breve historia de la mentira: de Ulises a Pinochio. Madri:
Cátedra, 2002.
Laterza, 2007.
Einaudi, 2004.
Loyola, 2008.
158
Leya, 2011.
Press, 2009.
Fund, 2003.
Boccard, 1950.
Curtius, Ernest Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. São Paulo:
Edusp, 1996.
159
De Labriolle, Pierre. History and Literature of Christianity from Tertullian to
Doody, John; Kennedy, Robert P.; Paffenroth, Kim (orgs.). Augustine and
Dox, Donnalee. The Idea of the Theater in Latin Christian Thought: Augustine
2004.
Finaert, Joseph. Saint Augustin Rhéteur. Paris: Société d’Édition & Les Belles
Lettres, 1939.
AnnaBlume/Fapesp, 2011.
Gavigan, John J. “St. Augustine’s Use of the Classics”, The Classical Weekly,
160
Griffiths, Paul J. Lying: An Augustinian Theology of Duplicity. Michigan:
2011.
Hughes, Kevin L.; Paffenroth, Kim. Augustine and Liberal Education. Oxford:
Kato, Shinro. “‘Great art thou’: An Interpretation of the Opening Chapter of the
2012.
Lima, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
161
MacCormack, Sabine. The Shadows of Poetry: Vergil in the Mind of
Mann, William E. “The Life of the Mind in Dramas and Dreams”. In: Mann,
2008.
1973.
De Boccard, 1983.
Seuil, 2003.
Matthews, Gareth B. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
McCabe, Joseph. St. Augustine and his Age. Nova York: G. P. Putnam’s
Sons, 1902.
Menn, Stephen. “The Desire for God and the Aporetic Method in Augustine’s
Miller, Isaac. "St. Augustine, the Narrative Self, and the Invention of Fiction”,
162
Murphy, James J. “The Debate about a Christian Rhetoric”, Quarterly Journal
Pépin, Jean. “The Platonic and Christian Ulysses”. In: O’Meara, Dominic J.
163
Neoplatonism and Christian Thought. Nova York: State University of New
Philip, Cary. Augustine’s Invention of the Inner Self: The Legacy of a Christian
2007.
2268-2561.
Paolo, 2006.
2012.
164
Ripanti , Graziano. “L’allegoria o l’‘intellectus figuratus’ nel De doctrina
219-32.
Roberts, Michael. The Jeweled Style: Poetry and Poetics in Late Antiquity,
1990.
165
Stock, Brian. Augustine the Reader: Meditation, Self-Knowledge, and the
_____________. To Know God and the Soul: Essays on the Thought of Saint
2008.
2012.
Doctrina Christiana & the Search for a Distinctly Christian Rhetoric. Waco:
Tscholl, Josef. Dio & il bello in sant’Agostino. Milão: Edizioni Ares, 1996.
166
Vaught, Carl G. The Journey Toward God in Augustine’s Confessions: Books
167