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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CHORAR POR DIDO É INÚTIL: SANTO AGOSTINHO, CONFISSÕES, LITERATURA

Hugo Langone Machado

2017
CHORAR POR DIDO É INÚTIL: SANTO AGOSTINHO, CONFISSÕES, LITERATURA

Hugo Langone Machado

Tese de Doutorado submetida ao


Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título
de Doutor em Teoria Literária.

Orientadora: Professora Doutora


Martha Alkimin de Araújo Vieira

Rio de Janeiro
Abril de 2017

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Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, Confissões, literatura
Hugo Langone Machado
Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor
em Teoria Literária.

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira

_________________________________________________
Prof. Doutor Bernardo Guadalupe dos Santos Lins Brandão – UFPR

_________________________________________________
Prof. Doutor Bruno Salviano Gripp – UFF

_________________________________________________
Prof. Doutor Carlos Frederico Calvet da Silveira – UCP/PUC-Rio

_________________________________________________
Prof. Doutor Renato José de Moraes – UFRJ

_________________________________________________
Prof. Doutor João Camillo Pena – UFRJ, suplente

_________________________________________________
Prof. Doutor Andrea Lombardi – UFRJ, suplente

Rio de Janeiro
Abril de 2017

3
Machado, Hugo Langone.
Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho,
Confissões, literatura/ Hugo Langone Machado. – Rio de
Janeiro: UFRJ/ FL, 2017.
viii, 154f.
Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira
Tese (Doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura, 2017.
Referências bibliográficas: f. 155-166.
1. Agostinho, Santo, 354-430. 2. Literatura. 3.
Patrística. I. Vieira, Martha Alkimin de Araújo. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura. III. Título.

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RESUMO

Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, Confissões, literatura

Hugo Langone Machado

Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação


em Ciência da Literatura, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Teoria Literária.

De todos os motivos que fazem das Confessiones de Agostinho um dos


clássicos incontestes do pensamento ocidental, um dos mais relevantes é a
multiplicidade de temas humanos universais ali presentes. A relação do
homem com a literatura e suas nuances (a ficção, a mentira, a beleza, o
período histórico e cultural, os estímulos sensitivos...) é decerto um deles, e o
objetivo deste trabalho consiste precisamente em explorar as muitas veredas
que a obra desvela nesse âmbito. Para isso, volta-se antes a alguns
momentos importantes da produção literária do santo, quais sejam: os
diálogos travados com seus discípulos quando no otium filosófico de
Cassicíaco, logo após sua conversão; e a obra De doctrina christiana, que
nos apresenta um projeto cultural novo, que exige a reconsideração de todo o
legado cultural clássico.

Palavras-chave: literatura; ficção; Santo Agostinho; Confissões; cultura

clássica.

Rio de Janeiro

Abril de 2017

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ABSTRACT

Wepting for Dido is useless: Saint Augustine, Confessions, literature

Hugo Langone Machado

Advisor: Martha Alkimin de Araújo Vieira

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação


em Ciência da Literatura, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Teoria Literária.

Of all the reasons that make Augustine’s Confessiones an undisputed classic


of Western thought, one of the most relevant comes from the variety of
universal human themes therein. Man’s relation with literature and its hues
(fiction, lying, beauty, historical and cultural contexts, sensitive stimuli...) is
certainly one of these themes, and the aim of this work is precisely to explore
the several trails Confessiones open up in this aspect. To make that possible,
it goes back to some importante moments of the saint’s literary production,
namely: the conversations held up during the philosophical otium of
Cassiciacum, short after his conversion; and the treatise De doctrina
christiana, which announces a new cultural project that requires the revision
of the old cultural legacy.

Keywords: literature; fiction; Saint Augustine; Confessions; classical culture.

Rio de Janeiro

Abril de 2017

6
Agradecimentos

A Camila, Bento, Benjamin e Catarina, dons de que sou indigno e

provavelmente sempre serei; e Maria, Otávio, Camila e Gustavo, Luiz, Olga,

Letícia e Kae, Jorge: arrimos discretos, com os quais posso partilhar, sempre,

todas as alegrias. A Martha Alkimin, enfim, pelos longos anos de

acompanhamento – prova de incomparável paciência e tolerância.

Gratias tibi, vera et una Trinitas,

una et summa Deitas, sancta et una Unitas.

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Sumário

Uma breve introdução

I. O homem de letras chega a Cassicíaco

I. 1. Percurso intelectual

I. 2. “Se amas a ordem, será preciso que retornes aos versos”: ócio,

literatura e verdade

I. 3. Mudança de rumos

II. O De doctrina christiana

II. 1. Nos passos do santo

II. 2. Uma “unidade independente”

II. 3. Estética cristã

III. As Confessiones

III. 1. Infância de um e de todos

III. 2. Fornicatio est abs te

III. 3. O vinho do erro

III. 4. No teatro

III. 5. Um pensamento revestido

Conclusão

Bibliografia consultada

8
Uma breve introdução

No que diz respeito ao tema a ser tratado neste trabalho, convirá

aplicar-lhe uma daquelas máximas a que muito bem se poderia dar o adjetivo

“chestertoniana”: somente algo há muito debatido, algo de tal maneira

presente nas idas e vindas do pensamento humano ao longo da história,

pode ser velho o suficiente para conservar vigor incessante.

A relação do homem com a literatura e suas nuances – a ficção, a

mentira, a beleza, o período histórico e cultural, os estímulos sensitivos... –

não será senão um desses temas perenes, tão perene quanto o é a própria

literatura. Os compêndios que o revelam abundam, todos o sabem; e sabem,

igualmente, que ao longo da história surgem sempre essas figuras isoladas,

de expressão enorme e intimidadora, a fomentar, renovar e ditar os rumos

dos debates.

Uma dessas figuras foi evidentemente Santo Agostinho, e de

modo especial porque, em sua obra magna, são tantas as reflexões cabíveis

sobre a arte literária que fugir-lhes é impossível mesmo sob o olhar do leitor

superficial. Entender, em alguma medida, os caminhos que as Confessiones

abrem nesse âmbito é portanto o objetivo das páginas que se tem em mãos.

As restrições impostas pelas limitações do pesquisador e pelos

matizes do pesquisado não tardarão a se revelar. E de uma delas o autor

pode procurar se resguardar de imediato, com uma breve ressalva: embora

ciente do possível pecado contra a precisão, ele não foi assaz escrupuloso

no uso do termo “literatura” e suas variações.

9
Com efeito, sabe-se que literatura “varia consideravelmente

segundo as épocas e as culturas” e que “a literatura ocidental, na acepção

moderna, aparece no século XIX com o declínio do tradicional sistema de

gêneros poéticos”; 1 nesse sentido, parecerá decerto anacrônico abordar a

relação de Agostinho com certo conceito de literatura que só é assim tratado

por nós hoje. Ao mesmo tempo, resta assaz claro que os sedimentos do

teatro e da epopeia presentes em sua obra, e que constituem os resquícios

aqui tratados como o “legado” ou a “herança” literária do mundo pagão,

embora classificados e interpretados de outra maneira ali, também estão

incluídos no que chamaríamos, modernamente, de “literatura”. Por

conseguinte, não se deve criar problemas práticos naquilo que poderia gerar

ramificações teóricas que não se encontram no escopo deste pobre trabalho.

Deve-se aceitar a crítica já prevista.

De todo modo, é evidente que tanto o emprego dessa literatura

quanto as reflexões sobre ela não têm início, na bibliografia do bispo doutor,

com a obra pela qual é majoritariamente reconhecido. Faz-se presente desde

o princípio de sua atividade escrita, e isso, que à primeira vista pareceria

oferecer problemas para a definição de seu posicionamento, acaba por

tornar-se chave de leitura importante. É sempre decisão de grande

relevância, por conseguinte, definir que recortes podem ser dados à

produção agostiniana a fim de melhor iluminar sua relação com a arte

literária.

Optou-se, neste trabalho, para além das Confessiones que

constituem seu cume, por dois momentos muito peculiares da vida do santo.

1 Antoine Compagnon, O demônio da teoria, p. 32.

10
O primeiro não há de causar controvérsia entre os comentadores: trata-se do

período mesmo dos diálogos de Cassicíaco, no qual um Agostinho recém-

convertido, isto é, com o coração recém-desperto no seio da cultura literária

latina, recolhe-se com certos discípulos pouco antes de serem batizados. São

essas mesmas circunstâncias que primeiro impõem a escolha: um homem

que acaba de largar um importante cargo como professor de retórica para

dedicar-se integralmente às coisas do alto deve ter alguma relação relevante

com a tradição cultural em que estivera imerso – e, em certo sentido, ainda

está – até há pouco. Mas não é só, por certo; existe, naquele ambiente e

naquelas discussões, um projeto ascético que confere ao legado cultural

pagão uma posição de tanto destaque, que é como se não houvesse modo

de escapar de seus esquemas e modelos. Nada lhe foge naquilo que não é

essencial à fé: o estilo do texto, os termos das discussões, as ambições...

Mescladas a isso, algumas considerações a respeito da literatura e sua

conveniência prática à percepção e conquista da verdade.

O segundo recorte poderia não ser unânime à primeira vista, mas

mostra-se um tanto esclarecedor quando se procura ler, em seguida, as

Confessiones. Em grande parte escrito paralelamente à obra magna, o De

doctrina christiana em tese só possuiria, como ponto de contato com o cerne

da cultura clássica, a ênfase que dá à retórica. Mas é precisamente essa falta

de pontos de contato – uma falta que revela um novo projeto de cultura e que

poderia intrigar o leitor desavisado que acabasse de ler os diálogos de

Cassicíaco, tamanha a diferença entre ambos os projetos – o que dá ao livro

o valor que possui aos olhos do comentador: nessa cultura que se anuncia,

toda ela bíblica, que papel devem desempenhar os escombros daquele

11
legado literário que pautara a educação de uma civilização inteira? Agostinho

nota a importância do problema, pois sabe que o cristão só deveria dedicar

seu tempo ao que lhe fosse reto e são.

O capítulo dedicado ao De doctrina christiana exigirá do leitor,

inicialmente, alguma paciência, e é preciso defender aqui a estratégia: o que

se desejou ao seguir cada raciocínio de Agostinho até o ponto fulcral em que

surge a literatura pagã foi conservar intacto, no contexto em que ganham

sentido pleno, conceitos empregados pelo santo que ajudariam a esclarecer,

no capítulo final e principal, certo uso que ele dá à herança literária clássica.

Tão coesa é a estrutura do De doctrina christiana que retalhá-la antes estorva

do que facilita o entendimento.

De modo geral, exceção feita a algumas pinceladas dadas a título

de contextualização histórico e biográfica, foi essa estratégia de só procurar

trazer à tona os conceitos e trechos passíveis de serem resgatados na

investigação “literária” das Confessiones aquela empregada como norte em

todo o trabalho com os dois capítulos iniciais, embora na certeza de que

nenhum deles seria capaz de esgotar a riqueza e a variedade do que se

extrai da leitura do clássico agostiniano. Diante do leitor mais crítico, o autor

reconhecerá de muito bom grado que já se falou consideravelmente sobre a

relação entre Santo Agostinho e a literatura, que abundam os artigos e

pululam os capítulos de livro, sobretudo no que diz respeito às Confessiones.

Que ao menos se reconheça a tentativa, nestas páginas, de reunir tanto

quanto lhe foi possível esse material, de modo a revelar um panorama mais

integrado de algo que, de outro modo, talvez só se apresentasse de maneira

esparsa, qual um quebra-cabeça.

12
I.

O homem de letras chega a Cassicíaco

Johannes Brachtendorf, no trabalho que dedicou às Confessiones

de Agostinho, identifica no livro primeiro da obra aquilo que chamou de

“moldura de pensamento” que lhe servirá de norte. 2 De fato, desde seu

Magnus es, Domine, et laudabilis valde, 3 Agostinho percorre tanto a

pequenez do homem quanto a grandeza divina, explicitando a partir de sua

reflexão biográfica a ânsia pelo repouso em Deus a que converge a

inquietude da alma humana: et inquietum est cor nostrum, donec requiescat

in te. Se Agostinho olha para trás e para o presente, não há dúvidas de que é

por ter a alma orientada para o alto.

Não seria tudo, porém, o que o então bispo de Hipona teria claro à

mente: sob a névoa dos primeiros anos de vida, quando “só o que sabia era

mamar, aquietar-me com os afagos, chorar ante as moléstias da carne e

nada mais”,4 resta-lhe, como fonte de seu relato, o testemunho posterior dos

“pais carnais”5 e das muliercularum,6 bem como a autoridade da observação

de outras crianças;7 nada, contudo, repleto do sabor adocicado com que hoje

descrevemos a infância. À menção da avidez infantil, do egoísmo e da

2 Johannes Brachtendorf, Confissões de Agostinho, p. 42.


3 Confessiones, I, 1, 1.
4 I, 1, 7.
5 I, 6, 7.
6 I, 6, 10.
7 I, 7, 11.

13
indignação contra os adultos, Agostinho não hesita: “Logo, dignas de

repreensão eram as coisas que fazia (...). O que é inocente nos pequenos é a

debilidade dos membros infantis, não sua alma.”8

Pouco demora para que Agostinho chegue à meninice e já possa

fazer mais do que seguir instintos elementares. Passa ele a assimilar a língua

de seus responsáveis, fazendo associações que permitem “dar a entender

meus desejos por meio dela”; 9 torna-se puer loquens; ingressa

“profundamente no mar proceloso da sociedade”. E, numa transição que

talvez soasse natural não fosse a recordação de sua resistência, é enfim

enviado à escola.10

Não estaríamos completamente equivocados ao afirmar que, nas

Confessiones, é em contexto escolar que surgem os primeiros pecados

relatados por Agostinho sem o recurso à autoridade de seus pais ou amas. 11

No propósito mesmo de seu ingresso na escola já é possível vislumbrar um

vício – um vício social que motivaria tanto os pais que enviavam os filhos às

letras quanto os meninos que adentravam o sistema de ensino: “brilhar neste

mundo e sobressair-se nas artes da língua, com as quais seria depois

possível lograr honras humanas e falsas riquezas.”12 Tratava-se, com efeito,

de um movimento coletivo: “Para homens assim, a educação clássica era um

dos únicos passaportes para o sucesso (...). Por trás da biografia particular

8 Ibid.
9 I, 8, 13.
10 I, 9, 14.
11 “Agostinho”, diz-nos G. Wills (Saint Augustine, p. 03), “praticamente nada relata sobre
sua vida antes dos onze ou doze anos, quando foi viver com seu pedagogo numa cidade vizinha
em que havia uma escola secundária”.
12 I, 9, 14.

14
de Agostinho, podemos também vislumbrar essa ‘biografia coletiva’”, qual

seja: “os destinos de um grupo notável de jovens determinados a escapar da

inércia de uma pequena cidade africana.” 13 Agostinho viveria toda a

juventude à luz desses objetivos, desse “apetite insaciável por uma escassez

abundante e uma glória ignominiosa”;14 e, mesmo em sua obra madura, será

possível identificar os resquícios da cultura literária em que o menino

retratado nos primeiros livros das Confessiones se inseria.

I. 1. Percurso intelectual

Henri Marrou estudou a fundo a educação da Antiguidade tardia e

colhe o mérito, desde a publicação de seu Saint Augustin et la fin de la

culture antique, de pautar os estudos agostinianos que se debruçam sobre a

formação do santo doutor. Nem mesmo as (justas) críticas revisionistas que

se ocuparam de sua tese 15 – e que por essa razão mesma lhe prestam

homenagem – parecem alterar de modo significativo o cerne do trabalho, e

portanto permanece ele como bom ponto de partida a todo o que deseja um

panorama geral da educação a que Agostinho se submetera.

De fato, o jovem de Tagaste não poderia ter sido escolha mais

acertada para o pesquisador interessado em retratar o contexto cultural da

Antiguidade Tardia: Agostinho é, como Marrou logo reconhece, 16

personagem amplamente documentada, talvez a mais documentada ao lado

13 Peter Brown, Augustine of Hippo: A Biography, pp. 9, 12.


14 I, 12, 19.
15 Cf. Karla Pollmann e Mark Vessey (orgs.), Augustine and the Disciplines: From
Cassiciacum to Confessions, Introdução.
16 Saint Augustin et la fin de la culture antique, p. x.

15
de Cícero. Sua obra é abrangente; sua vida possui as nuances essenciais da

evolução de sua civilização; e, de modo muito particular, sua evolução

intelectual é ampla e perceptível, passando em revista toda a tradição que lhe

preparara o caminho. Agostinho é, como recordam os estudos, exemplo do

homem de letras de seu tempo; sintetiza, sem no entanto deixar de

apresentar um grau peculiar de excelência, a cultura plenamente literária 17 a

que se submetiam os jovens romanos do século IV.

Trata-se, porém, de uma cultura muito mais antiga.18 Mapeando-a,

vemo-la chegar a Agostinho após ter nutrido nomes como Ambrósio,

Lactâncio, Mário Vitorino, Tertuliano, Apuleio, Plínio, Sêneca e Cícero, sua

figura exemplar; retrocedemos mais um pouco e a encontramos na Grécia,

cujo espírito seria apenas adaptado pelos latinos a um modo de vida mais

pragmático. É, portanto, uma cultura de progressão lenta, cujo objetivo

permanece mais ou menos constante: converter o jovem estudante num vir

eloquentissimus ac doctissimus. E como? Sobretudo pelas trilhas da

educação liberal. Ao atingir seus vinte anos, o aspirante à eloquência teria já

se submetido a dois ciclos sucessivos de ensino, cada qual a cargo de um

perito: primeiro, o ciclo do grammaticus; depois, o do rhetor.

O tempo de Agostinho foi um tempo especialmente fértil na esfera

gramatical: pertencem Sérvio e Donato ao período. 19 Ao gramático, cabia

sobretudo expor a língua e suas leis, tal como explicar os grandes autores;

cabia-lhe, portanto, a gramática propriamente dita e a tradição literária. Sob

sua tutela, estudavam-se as partes da oração (nomes, pronomes, verbos,

17 Cf. ibid., pp. 3-9.


18 Ibid., id.; cf. Brown, op. cit., p. 24.
19 Saint Augustin et la fin de la culture antique, p. 11.

16
advérbios etc.) em perspectiva morfológica; forneciam-se definições

generalizadas da língua (o que é a palavra, a letra, a sílaba, um pé, o

acento); expunham-se as falhas linguísticas (barbarismos, solecismos etc.);

exploravam-se os tropos e as figuras de linguagem; aprendia-se a métrica.20

Tratava-se, contudo, de um latim ainda antigo, artificial, perene como a

cultura escolar em que os alunos se achavam inseridos. Seu modelo advinha

de autores escassos, mas bem selecionados. O próprio Marrou o diz, em

citação ao mesmo tempo extensa e adequada, noutra obra de sua autoria:

No primeiro plano, Virgílio, que é, para os latinos, o


que Homero é para os gregos, o poeta por excelência, o
Poeta, simplesmente, aquele cujo estudo está na base
de toda a cultura liberal: de Higino a Sérvio e Filargírio é
ele objeto de comentários continuamente renovados e
aprofundados incessantemente.
Imediatamente depois dele vem Terêncio, (...)
regularmente comentado desde Valério Probo, nos
meados do século I, até Donato o Grande, no século IV,
e Evâncio, no V.
Os outros grandes poetas latinos, Horácio por
exemplo, não deixam de ser lidos nas escolas, porém
seu papel é mais apagado; quanto aos prosadores,
historiadores e oradores, não são, em princípio, da
competência do grammaticus (...).
A escolha feita pelos mestres antigos surpreende
aqui também, por seu exclusivismo. Entre os
historiadores, César, Tácito são ignorados; Tito Lívio, a
despeito do voto preferencial emitido por Quintiliano,
não parece haver conquistado seu lugar: o historiador

20 Ibid., pp. 12-13.

17
clássico por excelência, historiae major auctor, é
Salústio (...).
Entre os oradores, o mestre por excelência, o que
com Virgílio resume toda a cultura latina, é,
evidentemente, Cícero. Impera ele como monarca na
escola: conhece-se a regra de ouro formulada por Tito
Lívio e tomada por Quintiliano: estudar, além de Cícero,
os outros escritores na medida em que se assemelhem
a ele, ut quisque erit Ciceroni simillimus.21

Na obra de Agostinho em particular, encontraremos ainda

referências esparsas a Lucano, Persa, Ovídio, Catulo, Juvenal, Celso, Varão

e Aulo Gélio,22 mas sem dúvida nos equivocaríamos em atribuir à educação

da época a grande infusão do bispo de Hipona na obra de tais autores: nos

trabalhos escritos ao longo do período imediatamente posterior à sua

conversão, em que as sombras das artes liberais se faziam historicamente

mais próximas, é o cânone formado por Virgílio, Cícero, Salústio e Terêncio o

que Agostinho parece trazer consigo (excetuando-se apenas, talvez, umas

poucas referências a outros23).

De todo modo, a educação sob o grammaticus não se desenvolvia

sem etapas muito bem definidas: munido de um dos autores do cânone, o

jovem aluno passava pela lectio, fase da leitura do texto em voz alta, na qual

o futuro orador assimilaria instruções práticas da dicção. Não havia, nos

manuscritos, a pontuação qual hoje a conhecemos, e por isso a lectio era

mais do que uma simples leitura: “A leitura oral era exigida pelo formato dos

21 História da educação na Antiguidade, pp. 429-30.


22 Cf. Harald Hagendahl, Augustine and the Latin Classics, vol. 1.
23 Cf. Contra academicos, III, 2, 3; III, 5, 1. Do mesmo modo, De ordine, I, 3, 8.

18
pergaminhos e códices, que não eram pontuados. A fim de compreender uma

passagem longa em verso ou prosa, o aluno tinha de soletrar as palavras,

sílaba após sílaba.” 24 Ao mesmo tempo, quase formando uma só fase, o

aluno era instruído ainda na recitatio: com o auxílio da memória – na maioria

das vezes, o texto lido já o fora antes –, gravava ele na memória as melhores

passagens dos autores e as recitava de cor.

Os dois próximos passos a que teria se submetido Agostinho

recebiam o nome de enarratio e emendatio. Eram, sem dúvida, fases de

cunho mais interpretativo. A enarratio implicava o comentário literal e literário

do texto; concentrava-se sobretudo, bem ao estilo da tradição latina, na

análise de cada palavra. Visto não haver na Antiguidade dois textos

exatamente idênticos – ao que raras vezes atentamos –, fazia-se necessária

em seguida a crítica textual, a qual estabelecia e corrigia o texto, examinando

sua autenticidade, e a crítica estilística, em que as qualidades e os defeitos,

bem como o projeto e sua originalidade, eram avaliados. Coroando o ciclo do

gramático, os jovens eram convidados enfim ao judicium, passo em que o

conjunto de investigações era recordado e um juízo estilístico definitivo,

emitido.

O grego, cuja gramática foi no Império alçada ao patamar da

gramática latina, não conquistou a predileção de Agostinho. São famosas as

declarações nas Confessiones acerca de seu desgosto pela língua de

Homero.25 No entanto, se não estava à altura do que se esperava de um

futuro rhetor, o que ele sabia não era tão pouco como por aí vemos dizer:

24 Brian Stock, Augustine the Reader: Meditation, Self-Knowledge, and the Ethics of
Interpretation, p. 5.
25 Cf. I, 14, 23.

19
permitia-lhe ao menos o uso instrumental da língua, sendo ele capaz de

mencionar questões etimológicas, de explicar palavras, de corrigir a Bíblia

latina à luz da grega, de recorrer a termos próprios da vida cristã etc. Nada, é

bem verdade, que lhe possibilitasse conhecer muito mais do que lhe vinha às

mãos em traduções: “A carência do grego limitou-o gravemente no futuro –

muito embora até mesmo isso ele transformasse em vantagem parcial. Sua

profunda originalidade advém, em parte, de sua falta de dependência de

outra tradições.” 26

Terminada a formação gramatical de Agostinho, dada na cidade de

Madaura, o jovem retornou à vizinha Tagaste, sua terra natal, esperando ter

logo condições de prosseguir os estudos elementares e iniciar-se na retórica.

Quando enfim lhe é possível, viaja a Cartago: [v]eni Carthaginem, et

circumstrepebat me undique sartago flagitiosorum amorum.27 É esta cidade

de amores tempestuosos que Agostinho encontra assim que passa a viver de

modo mais característico sua adulescentia, e ali consome-o a busca das

satisfações carnais: “Amar e ser amado era para mim o que havia de mais

doce, sobretudo se me era possível desfrutar do corpo da amante. (...)

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, repletos de imagens de minhas

misérias e de estímulos ao fogo de minha paixão.” 28 Mas não é tudo.

Rivalizam-se-lhe ainda os vícios de sua cultura, o que mais uma vez nos

conduz às circunstâncias educacionais, mais especificamente à luz dos

26 Wills, op. cit., pp. 9-10.


27 Confessiones, III, 1, 1.
28 III, 1-2.

20
estudos retóricos – aqueles mesmos que “se chamavam honestos, voltados

para as contendas do foro e para a glória”.29

Sob o rhetor, Agostinho aprenderia o essencial à cultura do

letrado, da qual o gramático expusera tão somente os fundamentos. O jovem,

portanto, teria acesso à teoria e à prática da eloquência, as quais também

advinham de um helenismo remoto, estando já presentes entre os sofistas,

Isócrates e Hermágoras. Tratava-se, ainda, não apenas de um ensino de

longa data, mas também dogmático, formal, fixo.30 Repleto de classificações,

divisões e subdivisões, seu formalismo atribuía ao ensino um caráter estático

que os distanciava da realidade.

O desempenho de Agostinho nas aulas de retórica já prenunciava

o sucesso que teria como rhetor antes de sua conversão – sucesso que o fez

alcançar, no ponto mais alto de sua carreira, a incumbência de elaborar e

declamar um panegírico ao imperador ante toda a Corte Imperial, em Milão. 31

Com efeito, não obstante lamentasse o valor que à época atribuíra a seus

propósitos, 32 Agostinho fora “muito bem instruído em todas as letras

humanas, isto é, naquelas que se denominam artes liberais”;33 havia nisso,

contudo, enorme grau de méritos próprios: “Tu sabes, Senhor meu Deus,

29 III, 3, 5.
30 Brown, op. cit., p. 25: “Um homem assim seria capaz de comunicar sua mensagem a um
latino educado no outro lado do mundo romano, mencionando apenas uma figura clássica,
citando meio verso de um poeta clássico.”
31 Cf. Confessiones, VI, 6, 9.
32 Confessiones, IV, 16, 30: “De que me servia também o fato de ler e compreender por mim
mesmo todos os livros que tinha às mãos acerca das artes que se dizem liberais, sendo eu então
escravo tão perverso de minhas iníquas inclinações?”
33 Possídio, Sancti Augustini Vita Scripta a Possidio Episcope, 1.

21
como sem a ajuda de qualquer mestre entendia tudo quanto lia de retórica,

dialética, geometria, música e aritmética (...).”34

Em toda a sua extensão, consistia aquela, portanto, numa

educação profundamente literária, na qual todos os elementos do sistema

educacional convergiam à edificação de uma erudição que respaldasse o

ofício do doctus orator – incluindo, aí, as próprias disciplinas liberais que em

teoria constituíam o cerne da formação do jovem. Todavia, desde 373,

quando contava com dezenove anos, Agostinho deu um pequeno passo para

além desse objetivo. “Pequeno”, visto não ter ele abandonado por completo o

modo de vida do rhetor – continuará lecionando retórica e almejando a glória

do bom orador; um “passo”, não obstante, pois vira despertar então o amor

pela sabedoria. A ocasião desse despertar teve origem na leitura de um

manuscrito hoje perdido de Cícero, o Hortensius, obra na qual o grande

orador latino preconizara a vida voltada à filosofia. Foi esta a primeira

“conversão” agostiniana:

(...) estudava eu, em idade tão fraca, os livros de


eloquência, na qual desejava sobressair tendo em vista
o objetivo, condenável e vão, de satisfazer minha
vaidade humana. Todavia, seguindo a ordem utilizada
no ensino desses estudos, tive em mãos um livro de
certo Cícero, cuja linguagem quase todos admiravam
embora não fosse assim tão profunda. Este livro contém
uma exortação à filosofia e se chama Hortensius. Ele
modificou meus afetos e voltou a ti, Senhor, minhas

34 Confessiones, IV, 16, 30. Tratar Agostinho como produto trivial de sua cultura é um dos
erros em que pode incorrer o leitor de Marrou; cf. Karla Pollmann e Mark Vessey (orgs.), op. cit,
Introdução.

22
súplicas, fazendo com que meus votos e desejos
fossem outros. De repente vi vã toda esperança, e com
incrível ardor no coração suspirava pela imortalidade da
sabedoria (...).35

Entretanto, ao olhar para trás já como convertido, Agostinho

julgaria equivocados os rumos a que esta exortação ciceroniana

imediatamente o conduzira: “Desde que no décimo nono ano de minha vida li

na escola de retórica o livro de Cícero chamado Hortensius”, diz ele,

“inflamou-se minh’alma com tanto ardor e desejo pela filosofia que

imediatamente pensei em dedicar-me a ela. Entretanto, não me faltaram

névoas a impedir a navegação, e durante muito tempo vi submergirem no

oceano os astros que me extraviaram”.36 Durante nove anos, sua busca pela

sabedoria encontraria termo no dualismo materialista do maniqueísmo, seita

do Oriente que o persa Mani propagara pela África não tanto tempo antes.

Tinha ela como pressuposto a existência de duas substâncias rivais – a

primeira, essencialmente boa e luminosa; a outra, irremediavelmente má. Da

mistura de ambas resultava o mundo: o que nele há de bom, confunde-se

com Deus; o que de mal existe, cabe ao reino das trevas.37 Trata-se, assim,

de uma seita cuja cosmologia permite a seus seguidores “compreender o

cosmos” e, por meio dessa compreensão, “libertar-se do poder do mal”. Para

um impetuoso jovem de dezenove anos recém-instigado à sabedoria, uma

35 III, 4, 7.
36 De beata vita, 4.
37 Não se resume a isso, sem dúvida, a doutrina dos maniqueus. Uma exposição mais
detalhada encontramos na primeira parte de Prosper Alfaric, L’Évolution intelectuelle de Saint
Augustin.

23
explicação abrangente do mundo e das próprias motivações, abarcando

portanto os níveis teórico e prático, seria de fato encantadora.38

De modo mais específico, Portalié se dedicou a mapear, 39 nas

considerações de Agostinho sobre seu envolvimento com a seita maniqueia,

as razões que o próprio bispo de Hipona forneceria para sua atração: em

primeiro lugar, seu orgulho, o qual lhe permitira entregar-se às promessas de

uma filosofia avançada isenta das imposições da fé; em seguida, as supostas

contradições encontradas pelos maniqueus nas Escrituras; a esperança de

obter na seita uma explicação científica da natureza e de seus fenômenos

mais misteriosos; a possibilidade de solucionar o problema do mal, que

desde há muito ocupava sua mente; o materialismo latente de um sistema

que, por essa razão mesma, convinha a um espírito ainda incapaz de

conceber a existência de uma substância espiritual; e a imagem de

austeridade e virtude que ostentavam os iniciados, os quais seriam

posteriormente desmascarados nos escritos de Agostinho dedicados ao

combate do grupo.

A grande ênfase dada pelo autor ao seu período maniqueu –

durante o qual jamais deixou a posição de ouvinte, inferior na hierarquia

àquela dos “eleitos”, homens obrigados a observar regras ascéticas severas

– talvez nos leve a lançar a segundo plano o fato de que o maniqueísmo

jamais aplacou por completo as inquietações intelectuais e espirituais do

jovem, em especial aquelas referentes à natureza e origem do mal. Nem

mesmo Fausto, o eloquente bispo da seita, foi capaz de saná-las: “Quando

compreendi claramente que ele ignorava aquelas artes que para mim
38 Cf. Carl G. Vaught, The Journey Toward God in Augustine’s Confessions: Books I-VI, cap. 2.
39 Dictionnaire de théologie catholique, vol. 1, col. 2269.

24
dominava, comecei a desesperar de que me fosse possível esclarecer e

resolver as dificuldades que me haviam preocupado.”40 Os livros maniqueus,

já conclui Agostinho à época, “estão repletos de fábulas sobre o céu e as

estrelas, o sol e a lua, as quais não cria mais que me pudessem explicá-las

sutilmente como desejava”. 41 Seu entusiasmo, portanto, encontrava assim

seu termo, mas o jovem ainda não se julgava capaz de separar-se

definitivamente da crença, uma vez que “por ora não achava algo melhor”.42

O futuro bispo de Hipona acharia esse algo em pouco tempo. Após

ter trocado Cartago por Roma, buscando fugir dos eversores a que lecionava;

após ter se decepcionado com os alunos romanos, ardilosos em seus

estratagemas para não pagar os mestres; após aportar em Milão, onde

conseguira, com a aprovação de Símaco, praefectus urbi de Roma, um cargo

para si no professorado; após ter travado breve contato com o bispo

Ambrósio e flertado com o ceticismo da Nova Academia, que o levara a

“duvidar de todas as coisas”, 43 finalmente cai-lhe às mãos certos

platonicorum libros “traduzidos do grego ao latim”:44

Neles li – não com estas palavras, mas


substancialmente, respaldado em ponderações muitas e
diversas – que no princípio era o Verbo e o Verbo

40 Confessiones, V, 7 ,12.
41 Portalié também sintetiza, a partir da obra de Agostinho, as causas de sua frustração
com o maniqueísmo: o terrível vazio de sua filosofia, que a tudo destruía mas nada edificava; a
real imoralidade de seus seguidores, oculta sob sua fachada de virtude e austeridade; a
inferioridade de seus doutores nas disputas com os católicos; e, por fim, a falta de ciência entre
seus seguidores (Cf. op. cit., cols. 2270-2271).
42 Confessiones, V, 7, 12.
43 V, 14, 25.
44 VII, 9, 13.

25
estava em Deus. E Deus era o Verbo, o qual estava
desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram
feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito. O que está feito
é vida nele; e a vida era luz dos homens, e a luz
resplandece nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam. Do mesmo modo, a alma do homem,
embora dê testemunho da luz, não é a luz; a luz é,
antes, o Verbo, Deus, a luz verdadeira que ilumina todo
homem que vem a este mundo. Ele estava no mundo, o
mundo foi feito por Ele, mas não o reconheceu.45

O impacto do primeiro contato de Agostinho com o neoplatonismo

é recordado ainda no período imediatamente posterior à sua conversão:

E eis que certos livros bem cheios (...) espalharam


sobre nós os bons perfumes da Arábia, e, destilando
sobre a pequena chama algumas poucas gotas de
preciosíssimo unguento, provocaram um incêndio
incrível, (...) mais incrível do que eu mesmo podia
suspeitar de mim. Já não me importavam as honras, as
pompas humanas, o desejo de vanglória, enfim, os
incentivos e as amarras desta vida mortal. Rapidamente
me concentrei todo em mim mesmo.46

Sobretudo, o que o neoplatonismo ofereceu a Agostinho foi a

possibilidade de conceber um Deus espiritual que não se encerrava nas

formas materiais proclamadas pelo maniqueísmo. Porém, como o próprio

santo recordaria, ali ele ainda não encontrara “que Ele veio para os seus e os

seus não o receberam”, que “a todos os que o receberam Ele deu o poder de
45 VII, 9, 14.
46 Contra academicos, II, 2, 5.

26
se tornarem filhos de Deus, pois haviam crido nele”; que “o Verbo se fez

carne e habitou entre nós”; que “esvaziou-se a si mesmo e assumiu a

condição de servo, sendo semelhante aos homens e reconhecidos como tal

por seu modo de ser”; “que se humilhou e fez-se obediente até a morte, e

morte de cruz”; que por isso “Deus elevou-lhe dentre os mortos e deu-lhe um

nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre

nos céus, nas terras e no inferno e toda língua confesse que o Senhor Jesus

está na glória de Deus Pai”; que “no devido tempo morreu pela mão dos

ímpios e que não perdoa[ra] [s]eu Filho único, entregando-lhe por todos nós”.

Faltava a Agostinho, portanto, certas verdades fundamentais da fé, bem

como uma exortação à humildade que não encontrara nos escritos

orgulhosos dos neoplatônicos.47

O passo derradeiro se concretizaria ao final de um curto processo

de assimilação de exemplos de vida cristã, diante dos quais ficavam claras as

máculas que o revestiam jovem. 48 Agostinho trava novo contato com as

Escrituras, outrora desprezadas por não se equipararem aos escritos de

Cícero; 49 descobre a história da conversão de Mário Vitorino, 50 o modo de

vida monástico de Santo Antão. 51 Ao mesmo tempo, a angústia por

compreender seu orgulho e vaidade sem, porém, conseguir substituí-los pela

dedicação total a Deus o desnorteia e o volta cada vez mais para si. Do alto

de sua angústia, jorram de seu rosto torrentes de lágrimas, “sobrepujado

47 Cf. Confessiones, VII, 20, 26.


48 Cf. VIII, 7, 16.
49 Cf. III, 5, 9.
50 Conta-lhe Simpliciano: VIII, 2, 4.
51 Conta-lhe Ponticiano: VIII, 6, 14-15.

27
como me encontrava pela dor amargurada do coração”.52 Eis então que, à

sombra de uma figueira, uma longínqua voz infantil advém de casa vizinha;

seu ritmo, repetitivo, se assemelha a uma cantilena: Tolle, lege! Tolle, lege!

Agostinho, que tinha à mão o livro do apóstolo Paulo, recorda a conversão de

Santo Antão e decide cumprir o que lhe é ordenado. Ao abri-lo, eis que se lhe

desvela aos olhos: “Não em orgias e bebedeiras, em devassidão e

libertinagem, em rixas e ciúmes, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus

Cristo e não busqueis saciar os desejos da carne.”53 Então

não quis ler mais, tampouco me era necessário; afinal,


tão logo cheguei ao final da frase, era como se me
houvesse adentrado o coração uma luz de certeza que
dissipou todas as trevas de minhas dúvidas. (...) Pois de
tal modo me converteste a ti, que já não me apetecia
esposa nem qualquer esperança do mundo, estando já
naquela regra de fé que tanto anos antes a ela [Santa
Mônica, sua mãe] havias revelado.54

I. 2. “Se amas a ordem, serás preciso que retornes aos versos”: ócio,

literatura e verdade

A conversão de Agostinho se deu em 386; os jovens

companheiros com quem convivia também o acompanharam. Tendo como

subterfúgio a fadiga que lhe acometera os pulmões, o futuro bispo de Hipona

52 VIII, 12, 29.


53 Rm 13, 13-14.
54 Confessiones, VIII, 12, 29-30.

28
aproveita para abandonar a cadeira de retórica que ocupava em Milão:

chegara enfim o momento de colocar em prática a dedicação total à filosofia

que vislumbrara anos antes, quando da leitura do Hortensius. Desse modo,

quando Verecundo, professor milanês, ofereceu-lhe sua villa em Cassicíaco,

Agostinho retirou-se com seus companheiros para uma vida de otium

filosófico que precederia seu batismo e em que ser-lhes-ia possível investigar

os problemas que ali se faziam mais prementes.55

É nesse período, e em comunhão com Alípio, Licêncio, Trigécio e

Navígio, tal como com sua mãe Mônica, seu filho Adeodato e seus primos

Lartidiano e Rústico, que são escritas as primeiras obras de Agostinho

legadas à posteridade. Trata-se, ao todo, de quatro diálogos: Contra

academicos, De ordine, De beata vita e Soliloquia – este último, entre

Agostinho mesmo e sua própria razão. A forma dialógica nos é muito

significativa por remeter diretamente a Platão e Cícero, 56 e de modo geral

coroa um esforço conjunto que lhe proporcionou enormes progressos

teóricos: 57 os jovens ali reunidos examinam a verdade e concluem que é

55 Sobre a natureza do ócio de Santo Agostinho e seus companheiros, cf. Dennis E. Trout,
“Augustine at Cassiciacum: Otium honestum and the Social Dimensions of Conversion”.
56 Catherine Conybeare, “The Duty of a Teacher: Liminality and disciplina in Augustine’s De
Ordine, p. 50: “Por que Agostinho escolheu (...) escrever na forma do diálogo filosófico? Embora
algumas tentativas tenham sido feitas para ‘cristianizar’ o diálogo, a verdade é que, em latim, ele
ainda estava majoritariamente associado ao ensino secular que Agostinho tentava rever. (...) Sob
essa perspectiva, a escolha de interlocutores jovens e vigorosos (...) traz à tona a ideia de uma
filosofia em produção, como uma tradição viva sujeita a revisões e reconsiderações.”
57 Diz-nos o cardeal Joseph Ratzinger (Natureza e missão da teologia, p. 29): “Mas desta
forma se abre uma nova dimensão do diálogo, do seu ouvir e do seu falar, à qual o Agostinho dos
primeiros tempos atribuía um valor especial, ele cuja história de conversão está documentada de
forma palpável e concreta nos diálogos com os amigos, quando a pequena academia de
Cassicíaco, como que às apalpadelas, encaminhava-se para aquele momento em que por fim
poderia cair em seu meio uma palavra nova, desconhecida de Platão, que poderia se transformar

29
possível conhecê-la; descobrem que a felicidade repousa tão somente no

conhecimento e posse de Deus (e, no futuro, Agostinho complementaria com

maior grau de ortodoxia que um tal conhecimento pleno só se faz possível na

vida futura); e discorrem sobre o papel do mal no plano da Providência.

De todo modo, Agostinho chega a Cassicíaco após ter caminhado

sobre um fecundo solo intelectual. A influência platônica, mais recente,

deixaremos de lado; apenas uma leitura insincera poderia afirmar, como

muitos se propuseram a fazer, que no período pós-conversão Agostinho é

mais platônico que cristão: dificilmente um não batizado dissertaria sobre os

dogmas e as Escrituras, e há referências suficientes aos fundamentos do

cristianismo para não haver dúvidas de que temos ali um cristão brilhante.58

De qualquer forma, há além do platonismo recebido pelas traduções latinas –

e cuja importância, a despeito dos exageros, não pode de modo algum ser

desprezada – a cultura escrita em latim propriamente dito, fundamentada

como era sobre as artes liberais e sobre os objetivos retóricos a que

Agostinho tão bem servira antes de deixar sua cátedra em Milão.

A presença das artes liberais é marcante nos escritos da época.

Entre as tarefas dos jovens solitários ali reunidos, Agostinho complementaria

a educação de seus pupilos com lições sobre Virgílio, e não são escassas,

em mudança de vida. Analisando retrospectivamente essas conversas, Agostinho chega ao


resultado de que a comunidade de amigos podia se ouvir e se compreender mutuamente porque
todos eles escutavam o mestre interior, que é a verdade.” Sobre o “mestre interior”, cf. De
magistro, diálogo entre Santo Agostinho e seu filho, Adeodato.
58 Com Marrou (Saint Augustin et la fin de la culture antique, pp. 177-8), podemos
questionar como alguém seria capaz de afirmar ser Agostinho platônico, e não verdadeiramente
cristão, após ler a enorme oração que dá início aos Soliloquia (I, 1, 2-6).

30
nesses primeiros trabalhos do santo doutor, as referências a tais atividades. 59

Todavia, não é aí que as disciplinas se inserem com maior relevância.

Mesclando-as com a estrutura platônica de seu pensamento, e tendo em

vista as finalidades cristãs que já o pautavam, Agostinho integra as artes

liberais a um plano ascético que prepararia todo aquele que se dispusesse a

contemplar as verdades eternas e a conquistar o saber metafísico.

À luz desse projeto, Agostinho concebeu uma série de escritos

dedicados a cada disciplina, mas destes apenas seus De musica e De

dialectica foram finalizados. Não obstante, já é possível vislumbrar o

entusiasmo do converso na proposição mesma do projeto que encontramos

no De ordine. 60 Como seria de se esperar, entrevê-se aí a dificuldade de

qualquer letrado da época em esquivar-se dos instrumentos de articulação da

verdade encontrados na cultura antiga: “E a principal causa desse erro está

no fato de o homem não conhecer a si mesmo. Para que se conheça, é

mister afastar-se da vida dos sentidos, refugiar-se em si e viver em contato

com a voz da razão. E isto só conseguem aqueles que cauterizam com a

solidão as chagas das opiniões que o curso da vida ordinária imprime ou

aqueles que as curam com a medicina das artes liberais.”61 Com efeito, dirá

adiante, “a erudição moderada e racional das artes liberais nos torna mais

ágeis e perseverantes, mais limpos e belos para abraçarmos a sabedoria,

59 Como exemplo, em Contra academicos, II, 4, 10: “Após a discussão anterior, que
apresentamos no primeiro livro, fizemos uma pausa de quase sete dias, repassando os três livros
de Virgílio que seguem o primeiro, estudando-os segundo a conveniência.”
60 Cf. II, 11, 30.
61 I, 1, 3.

31
para gozá-la mais ardentemente, para persegui-la com mais afinco,

abraçando a vida bem-aventurada”.62

Se a nossos olhos modernos um tal exercício parece de certa

forma arbitrário, é preciso recordar, a todo momento, que as disciplinas são

antes “uma forma de expressar e alcançar a verdade de que derivam: Deus é

unidade, ordem, harmonia, simplicidade, arquétipo e fonte da verdade que dá

forma às disciplinas e para o qual elas conduzem. E, dado que Deus é a

verdade eterna, o exercício da razão, parte mais elevada da alma, é menos

uma questão de exercício e argumentação racional do que uma busca

religiosa e mística do autoconhecimento e do conhecimento de Deus”.63 As

artes liberais, portanto, quando submetidas a esse fim e associadas a um

modo de vida virtuoso,64 permitem que a alma se volte para dentro e para o

alto; ela da multiplicidade alcança a unidade, encontrando a simplicidade

divina na fragmentação do mundo; consegue, ainda, expressar as verdades

que encontra. “Aquele”, arremata Agostinho,

que não se deixa seduzir pelas imagens das coisas e


que unifica e reduz a um organismo sólido e verdadeiro
tudo quanto acha de disperso nas várias disciplinas
merece o nome de erudito, mostrando-se bem disposto
a consagrar-se ao estudo das coisas divinas – não
somente para nelas crer, mas também para contemplá-
las, entendê-las e conservá-las. Ao contrário, aquele
que vive escravizado pelos apetites e sedento pelas

62 I, 8, 24.
63 Harrison, 2006, p. 43.
64 Cf. De ordine, II, 28, 25. Trata-se, em última análise, de uma purificação ao mesmo tempo
racional e moral.

32
coisas transitórias, ou então aquele que já se libertou de
tal cativeiro e vive em continência, mas desconhece o
que é o nada, a matéria informe, o corpo e a forma do
corpo, os seres inorgânicos, o espaço e o tempo, a
localização e a temporalidade; aquele que ignora o que
é o movimento local e a mudança, o movimento estável
e a imortalidade; aquele que não tem ideia do que é
transcender todo lugar e tempo e existir para sempre, o
que é não estar em parte alguma, o que é ser imenso, o
que não é estar encerrado em limite de tempo algum,
sendo eterno; quem nada disso sabe e se põe a
investigar não sobre a natureza de Deus, a qual melhor
se conhece ignorando, mas a natureza da mesma alma,
cairá em toda sorte de erros. Mais facilmente
responderá a essa classe de problemas aquele que tiver
conhecimento dos números abstratos e inteligíveis, para
cuja compreensão se exige um engenho vigoroso, uma
idade madura, ócio, bem-estar e um entusiasmo vivo
que lhe possibilite recorrer à ordem indicada pelas artes
liberais.65

Agostinho tem plena ciência de que um projeto de vida como esse

não é para todos; sabe também que tais exercícios não constituem condição

essencial para a vida cristã: tudo aquilo de que se necessita para a boa vida

pode ser aceito pela autoridade, isto é, pela fé, uma vez que a Sabedoria

divina se fizera carne no Cristo. Ainda assim, como deixam claro suas

próprias Confessiones, Agostinho era mente inquieta e desejava

“impacientemente compreender a verdade não somente pela fé, mas também

65 II, 16, 44.

33
pela inteligência”. 66 E, se um tal projeto pode e deve ser alcançado pelas

disciplinas liberais, é de se esperar que encontremos nesse ímpeto inicial a

presença da literatura: é ela, afinal, parte integrante das artes, uma vez que

fornece textos básicos e modelos. Quanto a isso Agostinho não nos deixa

dúvidas – são muitas, já comentamos, suas referências a obras clássicas nos

diálogos de Cassicíaco. Mas de que modo essa relevância se articula à

finalidade ascética do jovem cristão?

Vemo-lo na prática, no retrato mesmo da realização desse projeto:

basta apenas, de início, que nos voltemos para o ambiente do retiro pós-

conversão, mais especificamente ao primeiro de seus diálogos, o Contra

academicos. Estão ali Agostinho e os jovens Alípio, Trigécio e Licêncio, este

último de enorme importância para nós, pois é também poeta, e um poeta

entusiasmado. Desejando entrever o Deus secretíssimo como “que através

de nuvens transparentes [as artes liberais]”,67 o trio se dedicará a discussões

de alto nível e investigará a possibilidade de se conhecer a verdade, a

condição do sábio, a sabedoria mesma e a doutrina acadêmica.

No início do segundo livro, quando Agostinho tece algumas

considerações a Romaniano, benfeitor a quem a obra é oferecida e que já

recebera longa dedicatória no início do livro primeiro, a exortação à filosofia

ali formulada o conduz a uma breve observação acerca do vínculo existente

entre filosofia e filocalia: “Pois filocalia e filosofia são quase sinônimos e

querem parecer termos da mesma família, e de fato o são. Pois, o que é

filosofia? O amor da sabedoria. Que é filocalia? O amor da beleza. Pergunta

66 Contra academicos, III, 20, 43.


67 I, 3.

34
aos gregos. E o que é a sabedoria? Por acaso não é a verdadeira beleza?”68

São, portanto, “filhas do mesmo pai”, diz ele, que logo procura uma imagem

que exprima o que pretende: “Mas a filocalia, arrancada de seu céu pelo

engodo da volúpia e presa na gaiola do vulgar, conservou todavia a

semelhança do nome para advertir o passarinheiro a não desprezá-la. Sua

irmã, que voa livremente, muitas vezes a reconhece, ainda que sem asas,

suja e miserável, mas raramente a liberta, pois a filocalia não conhece sua

origem, a filosofia sim”. Então: “Licêncio poderá contar-te esta fábula – pois

de repente virei Esopo – mais agradavelmente num poema” (grifo nosso).

É possível, portanto, que o poema se mostre veículo muito mais

eficaz de expressão: fá-lo suavius, mais do que a linguagem que Agostinho

emprega – e talvez nos baste mesmo a menor experiência com a poesia para

fazer-nos prescindir de qualquer explicação: sabemos a força expressiva do

poema bem composto. Não obstante, ao “poeta perfeito” que é Licêncio não

caberá somente elogios. Quase sete dias após a discussão que Agostinho

conduzira no primeiro livro do Contra academicos – ao longo dos quais três

cantos de Virgílio foram examinados –, o santo doutor precisa reprimi-lo por

sua avidez no estudo da poesia: tratando-a como fim em si, Licêncio

afastava-se do verdadeiro objetivo. A poesia é também, portanto, causa de

distração, e foi preciso que Agostinho exaltasse “o quanto p[ô]de a luz da

filosofia” para que o jovem consentisse “em retomar a questão dos

Acadêmicos que havíamos adiado”.69

O poder distrativo da poesia encontra ainda outros exemplos no

mesmo diálogo. Logo no início de seu terceiro livro, Agostinho recorda com
68 II, 2, 7.
69 II, 4, 10.

35
os jovens o que cada qual teria feito no dia anterior. Tanto Trigécio quanto

Licêncio se haviam ocupado da arte poética: o primeiro, deleitando-se com os

poemas de Virgílio; o outro, compondo versos. Embora, porém, tenhamos aí

dois “prazeres literários”, é apenas com Licêncio que Agostinho deve se

preocupar: a “paixão que o inflama” é tamanha que aquilo que deve ser

buscado não o é: “foi precisamente por causa dele que julguei necessário

instituir este discurso, para que a filosofia ocupe e reclame no seu espírito

(...) um espaço maior que a poesia e qualquer outra disciplina.” 70 Que

perseverança pode subsistir em alguém que ao primeiro sinal de um prazer

inferior esquece por completo seu sumo objetivo?

Tal advertência, no entanto, não basta, e as admoestações devem

se intensificar. No terceiro livro, quando Agostinho, Trigécio e Alípio retornam

do almoço do dia, “encontra[m] Licêncio, cuja sede nem Hélicon poderia

matar, todo ocupado em compor versos”.71 O jovem saíra no meio da refeição

– “tão rápida que mal começou já terminou” – sem sequer beber algo.

Agostinho se resigna:

Desejo que enfim possuas plenamente a arte poética


que tanto desejas, não que esta perfeição me agrade
muito, mas vejo que é tamanho o seu ardor que só a
saciedade poderá libertar-te dessa paixão, o que
costuma acontecer depois de atingida a perfeição. Além
disso, como tens uma bela voz, eu preferiria ouvir-te
declamar os teus versos a ouvir-te cantar, como aves
presas em gaiolas, as palavras das tragédias gregas
que não compreendes. Entretanto, aconselho que vás
70 III, 1 ,1.
71 III, 4, 7.

36
beber, se quiseres, e depois voltes à nossa escola, se
ainda tens alguma estima de Hortênsio e da filosofia
(...). Ela efetivamente já te havia inflamado mais
ardentemente que a tua arte poética para a ciência das
coisas grandes e realmente frutíferas. Mas, ao desejar
trazer-vos às disciplinas com as quais se cultiva o
espírito, receio introduzir-vos num labirinto e quase me
arrependo de ter freado o teu ímpeto poético.72

Licêncio então cora e retira-se para beber, aproveitando o ensejo

“para evitar que eu lhe dissesse coisas mais duras”. Parece-lhe claro,

contudo, quão grande inversão de valores é colocar a poesia no lugar das

magnarum et vere fructuosarum rerum scientiam.

Eis então que, também no livro terceiro, quando Agostinho e Alípio

dialogam sobre a possibilidade de o sábio conhecer a sabedoria, o futuro

bispo se volta ao tema da verdade a fim de conduzir o debate à derradeira

conclusão de que ela é cognoscível e, portanto, passível de receber nosso

assentimento. Agostinho:

Quem pode mostrar-nos a verdade? Explicaste-o tu,


Alípio, e preciso esforçar-me muito para não discordar
do que disseste. Com efeito, disseste de modo não
somente conciso, mas também e sobretudo
religiosamente, que só uma divindade pode mostrar ao
homem a verdade. Ao longo desta nossa discussão não
ouvi nada mais agradável, mais profundo, mais provável
e, se esta divindade, como espero, nos assiste, nada
mais verdadeiro. Com que elevação de espírito e
atenção ao que há de melhor em filosofia evocaste o

72 Ibid., id.

37
célebre Proteu. Proteu – e aqui notai, jovens, que os
poetas não devem ser totalmente desprezados pela
filosofia – (...) é a imagem da verdade. Nos poemas,
Proteu assume e representa o papel da verdade, que
ninguém pode alcançar, se enganado pelas falsas
aparências (...).73

Se, há pouco, o deleite na poesia era fonte de afastamento da

filosofia, Agostinho agora nos traz um poema (pagão!) como portador eficaz

da verdade! Que dizer de sua postura? Deveríamos atribuir ao Agostinho do

Contra academicos uma posição contraditória?

Cassicíaco veria outros exemplos dessa ambivalência. Tão logo

nos voltamos para o De ordine, percebemo-lo.

O diálogo se inicia certa noite, quando Agostinho, revolvendo na

mente algumas reflexões, conservava-se em vigília. O ruído de uma corrente

d’água chama-lhe a atenção: “fluía entre as pedras com um ruído alternante e

desigual, que me admirava”.74 Licêncio, que Agostinho cria dormindo, estava

por ali, “aos golpes com ratos molestos que não o deixavam adormecer”;

Trigécio também se encontrava desperto. O santo doutor, então, vislumbra a

possibilidade de ensinar-lhes algo.

Instigando Licêncio a dizer-lhe a causa da alternância do som que

ouviam, o jovem oferece uma resposta satisfatória: seriam as folhas de

outono levadas pela água, prendendo-se às pedras, sendo enfim carregadas

para dar lugar a outras. 75 Nada daquilo, porém, parece admirável ou

73 III, 6, 13, grifo nosso.


74 I, 3, 6.
75 Cf. I, 3, 7.

38
promissor ao jovem interlocutor; diante do entusiasmo de Agostinho em

suscitar um debate, pede-lhe: “Deixa-me agora em paz, peço-te, pois outras

coisas me roubam a atenção.”76 A reação de Agostinho é dura e remete-nos

imediatamente às admoestações do Contra academicos:

Eu, temendo que a poesia o arrebatasse por inteiro


dos estudos filosóficos, disse-lhe:
– Sinto ver-te andar cantando e lamentando nesses
teus versos de tantos metros, os quais levantam entre ti
e a verdade um muro mais grosso do que aquele que
separava os amantes da fábula que cantas, pois estes
se comunicavam por uma pequena fenda. (Ele
poetizava sobre os amores de Píramo.)77

Licêncio parece não ter aprendido as lições da investigação

anterior: continua invertendo suas prioridades e corrompendo o projeto

ascético em que os jovens se viam envolvidos. E, mais uma vez, Agostinho

não nos deixa dúvidas de que a poesia é sedução que encerra grandes

riscos.

Entretanto, basta que avancemos um pouco no diálogo para que o

santo doutor nos deixe novamente confortáveis com relação a nossos

prazeres poéticos. Ainda no primeiro livro do De ordine, Licêncio consegue

deixar Trigécio contra a parede ao discorrer, na discussão que travam, sobre

a justiça divina e a existência do mal na ordem do mundo.78 Tratava-se de um

momento significativo da interlocução, e Agostinho o reconhece: “Vejo que

76 I, 3, 8.
77 Ibid.
78 Cf. I, 7, 19.

39
um novo entusiasmo se apoderou de ti.”79 Ao que afirma Licêncio: “(...) pois

que sinto arder uma luz muito diferente [da que o levara ao verso poético],

muito superior. Mais bela é a filosofia que Tisbe e Píramo, que Vênus, Cupido

e os demais amores.”80 E, como Agostinho continuasse a discorrer na manhã

seguinte sobre essa “conversão”, ele concorda: “Grande e verdadeiro é o que

dizes. Pois me comove pensar que há pouco me era tão árduo deixar as

ninharias dos versos, e agora sinto aversão e vergonha de a eles retornar,

pois me arrebatam por completo coisas grandes e maravilhosas. Não é isto

converter-se a Deus?”81 Curiosamente, porém, o futuro bispo de Hipona não

deseja que Licêncio se afaste daquilo que tantas vezes declarara pernicioso.

“Se amas a ordem”, diz, “será preciso que retornes aos versos”, e o motivo é

aquele que já citamos antes: “pois a erudição moderada e racional das artes

liberais nos torna mais ágeis e perseverantes, mais limpos e belos para

abraçarmos a sabedoria, para gozá-la mais ardentemente, para persegui-la

com mais afinco, abraçando a vida bem-aventurada”.82

Há, portanto, espaço para os versos, e um espaço que parece

definido. Vem o próprio Agostinho a mostrá-lo na prática:

Quando Píramo e sua amante se lançam sobre o corpo


do moribundo, na mesma dor que encherá tua poesia
de tons mais emotivos tu encontrarás grande
oportunidade. Maldize e execra leviandades tão feias,
tal como seu incêndio mortal; em seguida, eleva-te para

79 I, 7, 20.
80 I, 7, 21.
81 I, 8, 23.
82 I, 8, 24.

40
cantar o amor puro com que as almas adornadas pelas
artes liberais e embelezadas pela virtude desposam o
entendimento pela filosofia, e não apenas evitam a
morte, mas também gozam de vida ditosíssima.83

Outra perspectiva aplicada à análise dos diálogos de Cassicíaco

ajuda a esclarecer esse mesmo movimento. Fê-lo sobretudo Harald

Hagendahl, sendo nisso acompanhado de pesquisadores relevantes. Trata-

se do mapeamento das apropriações – verbatim ou em formas de alusões

mais ou menos evidentes – do legado literário clássico, por Agostinho

convertido em instrumento seu. O diálogo a que aludimos por último é bom

ponto de partida e traz, já em seu primeiro livro, um dos momentos mais

significativos da estratégia do neoconverso. Concentremo-nos, ademais,

apenas em certos empregos da Eneida, evitando desviar, desse modo, um

caminho que já começamos a trilhar.

Recuemos ao momento em que os jovens reunidos se voltam para

o “ruído alternante e desigual” 84 de uma corrente d’água. Tão logo é

admoestado por Agostinho em virtude de seu gosto pela poesia, Licêncio cai

em si e opta por consagrar-se “à investigação da verdade pela filosofia”;85

muito em breve, algo de divino começa a insinuar-se em seu espírito e

abrasá-lo. Agostinho, como se espera, é tomado pelo arrebatamento ante o

que diz o pupilo. Manifesta-se:

83 Ibid., id.
84 I, 3, 6.
85 I, 3, 9.

41
Aqui, transbordando também eu de uma alegria
superior à que poderia almejar, deixei jorrar da boca
este verso: “Assim o permita Deus pai, assim o grande
Apolo!” [Sic pater ille deus, sic altus Apollo!].86

O classicista experiente identificará, de imediato, a referência ao

livro décimo (vv. 875-876) da Eneida, em que Eneias exorta: “Assim o

permita o pai dos deuses, assim o grande Apolo!” [sic pater ille deum faciat,

sicut altus Apollo!]. A citação é suficientemente manifesta para ser

negligenciada, bem como a sutil alteração que o mestre impõe ao verso

virgiliano: o deum de Eneias, no genitivo plural, converte-se no deus

nominativo singular de Agostinho, e assim os deuses pagãos de Virgílio se

retificam: há apenas um Deus, o Deus-Pai dos cristãos.

O que diz Agostinho em seguida –

Conduzir-nos-á a bom termo, contanto que sigamos


para onde nos envia e manda fixar morada, ele que nos
concede bons augúrios e desce a nosso espírito
[perducet enim ipse, si sequimur quo nos ire jubet atque
ubi ponere sedem, qui dat modo augurium nostrisque
illabitur animis]. Não se trata já do grande Apolo que,
nas grutas, montes, bosques, instigado pelo olor dos
incensos e pela oferta dos animais, invade os insanos;
trata-se (...) da Verdade mesma (...)87 –

segue estratégia semelhante, remetendo e respondendo à prece

de Eneias a Apolo em Eneida, III, 88-89: “A quem seguir como guia? Para

86 I, 4, 10.
87 Ibid., id.

42
onde nos mandas ir? Onde mandas que construamos nossa morada? Dá-

nos, ó Pai, um presságio, e desce a nosso espírito [quem sequimur? quove

ire iubes? ubi ponere sedes? da, pater, augurium atque animis inlabere

nostris].”

E há mais: o segmento traz enfim alusão clara a uma súplica do

herói virgiliano ao deus em Eneida, XI, 787-788, na qual se lê: “Ó, Apolo, (...)

por quem, fortes por causa da nossa piedade, caminhamos por meio do fogo

e apoiamos nossos passos sobre muitas brasas [et medium freti pietate per

ignem cultores multa premimos vestigia pruna].” Dá-se a alusão nos

seguintes termos: “Adiante, Licêncio: fomentemos com confiança a piedade e

suprimamos com os pés o fogo pernicioso de nossas concupiscências [freti

pietate cultores, et vestigiis nostris ignem perniciosum fumosarum cupiditatum

opprimamus].” E, ao cabo do diálogo, é também Virgílio quem expressa o que

Agostinho estivera querendo manifestar: o futuro bispo de Hipona acha no

poeta, que à ocasião (Eneida, VII, 586) tratara da impassividade do rei Latino

quando no meio de uma turba furiosa, o que define a postura do sapiens.

“Pois somente do sábio”, afirma, “pode-se dizer, verdadeiramente: ‘Resiste

ele, qual uma rocha imóvel no mar’ [ille velut pelagi rupes immota resistit]’”.88

Se já são significativos os exemplos acima, há outros em

Cassicíaco a demonstrarem o quão regular foi o uso desse tipo de

ornamentação e apropriação. No Contra academicos são de quantidade

considerável as ocorrências. Logo no livro primeiro (I, 5, 14), Trigécio dirige a

Licêncio uma definição de sabedoria que o interlocutor se vê obrigado a

refutar por meio daquilo que a mãe de Eneias dissera ao herói: “Segue

88 II, 20, 54.

43
adiante e, para onde te leva o caminho, dirige teus passos [perge modo et,

qua te ducit via, derige gressum].”89 No segundo (II, 2, 6), Agostinho descreve

o efeito dos libri platonicorum sobre si: “Então, qual se banhado por esta débil

luz, manifestou-se tão radiante a face da filosofia” [Tunc vero

quantulocumque iam lumine asperso, tanta se mihi philosophiae facies

aperuit]; Hagendahl vê aí ecos da Eneida, VII, 448: tantaque facies aperit. Um

pouco adiante, o mestre estimula um dos partícipes com as palavras de

Turno no Livro XI do épico virgiliano (v. 424): “Por que o tremor se apodera

de nossos membros quando do som da trombeta? [Cur ante tubam tremor

occupat artus?]” Quanto aos acadêmicos, eles “não se fiam do testemunho

dos olhos humanos, nem dos mil olhos fantásticos da fama, segundo fingem

os poetas [ne oculis quidem credant humanis, nedum famae mille quidem, ut

poetae fingunt]”, ao que recordamos a Fama virgiliana, “monstro horrendo e

ingente, que tantas plumas no corpo tem quanto são seus muitos olhos

vigilantes [monstrum horrendum, ingenos, cui, quot sunt corpore plumae, tot

vigiles oculi subter].” Ante o problema da verdade, é preciso instigar Alípio, e

a Agostinho vem à mente o Arma acri faciendo viro da Eneida, VIII, 441,

proferido por Vulcano: “Há de se fabricar armas a um valente guerreiro.” O

mesmo livro da Eneida ajuda a qualificar os argumentos dos acadêmicos,

que são arma (...) invicta et quasia Vulcania videantur,90 isto é, armas que

aparentam ser invencíveis e forjadas por Vulcano; e a caracterizar o

acadêmico Carnéades, que se esconde sob a afirmação de que nada pode

ser conhecido: em tal caverna, porém, sufocá-lo-á um Hércules do mesmo

modo como foi sufocado o Caco de Eneida, VIII, 193ss.


89 Eneida, I, 401.
90 Contra academicos, II, 1, 1; cf. Eneida, VIII, 535.

44
Mais encontrará o leitor que tomar um volume do Beata vita: não

precisará ir além do Prólogo dedicado a Mânlio Teodoro para recordar o herói

de Virgílio. Robert O’Connell91 mais aproxima o segmento à Odisseia do que

à Eneida, sobretudo por tratar-se Mânlio de neoplatônico instruído, que

decerto conheceria as interpretações alegóricas dadas por Plotino ao épico

homérico. 92 De todo modo, o que se encontra ali é o recurso à imagem

genérica – e, aqui, em estado puro, sem fusões com imagens e passagens

bíblicas – do peregrino que, viajando por mar revolto, deve retornar à pátria.

Agostinho deseja saber, de início, se no porto da filosofia, onde se encontra a

vida feliz, é possível desembarcar mediante o emprego desassistido da razão

e da vontade.93 Com efeito – e isso o desconcerta –, de algum modo fomos

lançados no oceano proceloso [procellosum salum] que é este mundo, e

“quão poucos sabem para onde devem esforçar-se por chegar, ou como

retornar (...)!”.94 Qual no caso de Odisseu, trata-se de uma viagem de retorno;

e, também qual Odisseu, que é levado por uma tempestade à ilha daqueles

feácios que acabariam por conduzi-lo de volta à Ítaca, também Agostinho

sabe que é necessária “certa tempestade, que os insensatos têm por

adversidade”, para levar-nos à terra de nossas aspirações.

O recém-converso formula, ainda, uma tipologia dos navegantes

que enfrentam o problemático mar deste mundo, e no terceiro deles há,

segundo Courcelle e outros, 95 insinuações claras de que trata-se de sua

categoria: é esta a classe dos que, no umbral da adolescência ou depois de

91 Soundings in St. Augustine’s Imagination, pp. 184-190.


92 Cf. Jean Pépin, “The Platonic and Christian Ulysses”, e Plotino, Enéadas, I, 6, 8.
93 De beata vita ,I, 1.
94 Ibid., id.
95 Recherches sur les Confessions de Augustin, apud Robert J. O’Connell, op. cit., cap. 5.

45
muito tempo no meio das ondas, recordam a dulcíssima pátria, sem porém se

desviarem ou hesitarem. Tampouco eles iniciam diretamente o retorno,

errando às vezes por entre as névoas ou observando estrelas que se afogam

no mar, presos quiçá pelas doçuras do percurso e perdendo, assim, a

oportunidade do bom retorno. Muitas vezes, a estes uma infelicidade – uma

tempestade, por exemplo – conduz de volta à pátria. Os ecos da peregrinatio

épica são um tanto claros: “Encontramo-nos nós, pelo que se entende nossas

almas, no mar tempestuoso deste mundo, vagando para longe da pátria,

enfrentando um risco de naufrágio imposto por névoas, estrelas afogadiças e

tempestades; esquecemo-nos da pátria que deixamos, mas não obstante

guardamos dela uma nostalgia vaga, que nos força a ‘olhar para trás’ quando

diante de sinais que no-la trazem à memória.”96

Até aqui, qualquer reflexão sobre o que denominaríamos

ficcionalidade, a relação do texto poético com o verdadeiro e o falso, não

poderia ser obtida sem forçadas extrapolações da reflexão a que Agostinho

se dedica com os companheiros. Quando se torna, a seu modo, foco de

investigação, ela o faz nos Soliloquia, diálogo limitado ao recém-converso e

sua razão e que tem por objetivo compreender as realidades metafísicas

fundamentais: Deus e a alma. Não se trata, agora, da apropriação ou

adaptação de um legado, mas de um dilema teórico que deixará marcas

entre o que de mais relevante o santo produziria.

Em determinado momento do livro segundo, Agostinho e sua

companheira devem definir verdade e falsidade. O processo, como era de se

esperar, comporta diversos passos. Agostinho cogita a possibilidade de a

96 O’Connell, op. cit., p. 192.

46
veracidade consistir em ser o objeto tal qual parece. Vincular, porém, a

verdade à percepção humana é atitude que a Razão logo nota falsa: pedra

nenhuma haveria se não a víssemos, o conteúdo de um armário fechado

também não existiria, em nada consistiria o miolo de um tronco de árvore etc.

Agostinho retifica-se: “Parece-me que a verdade é o que é” [Nam verum mihi

videtur esse, id quod est].97 Assim, se “verdadeiro é tudo o que é, (...) o

falsum é o que se mostra diferente do que é, mas enquanto tal é privado de

existência, pois apenas o verdadeiro existe (...). Não há, portanto, realidade

falsa, mas juízos equivocados sobre coisas verdadeiras”.98 O verdadeiro, por

conseguinte, não se encontra na esfera subjetiva, mas, nesse caso, como

poderia algo ser falso, uma vez que é veraz tudo o que é?

Voltando-se para a natureza da falsidade, Agostinho acredita que

ela, sim, pode depender da subjetividade, isto é, de um percipiente: falso, diz,

é aquilo que “não é tal como parece” [quod non ita est ut videtur]. Entre o que

existe e o que inexiste, há certo espaço em que o sujeito, que conhece o

verdadeiro, julga ser determinada coisa algo que lhe é apenas semelhante. O

homem visto em sonho, por exemplo, não é verdadeiro homem, mas

somente parecido com um; o mesmo com a árvore pintada, com o rosto que

se reflete sobre o espelho, com o movimento das torres que vemos quando

da navegação, com a ruptura dos remos na água: “Tudo isso se diz falso por

ser verossímil.” 99 Ou ainda: “A semelhança das coisas (...) é a origem da

falsidade.”100

97 Soliloquia, II, 5, 8.
98 Maria Bettetini, Figure di veritá : la finzione nel Medioevo occidentale, p. 40.
99 Soliloquia, II, 6, 10.
100 Ibid., id.

47
A respeito das semelhanças, há aquelas que são obras da

natureza e outras, para nós relevantes, que constituem expressão e ficção de

seres dotados de alma; entre estas, diz Agostinho,101 estão as “pinturas” e

outras ficções [figmenta] do mesmo gênero. A razão toma outro rumo e faz

seu interlocutor notar que talvez não seja a semelhança a fonte da falsidade,

mas a diferença: se “as figuras humanas que vemos nos sonhos vivessem,

falassem e pudessem ser tocadas pelos despertos, sem que houvesse nisso

diferença entre eles e aqueles que vemos e com quem conversamos, (...)

porventura os tomaríamos por falsos?”102 Tanto mais semelhantes, declara a

razão, mais verdadeiros; por conseguinte, não será a dessemelhança a real

fonte de ilusões? Para Agostinho, a indiscernibilidade da causa do falso é

aflitiva:

Se digo eu que é em virtude da dessemelhança,


todas as coisas podem ser declaradas falsas, pois nada
há que não seja diferente de outra coisa que é tomada
como verdadeira. E, se digo que o falso é assim
denominado em razão da semelhança, não apenas
protestarão os ovos, que são verdadeiros sendo
semelhantes entre si, mas também não poderei replicar
a quem me obriga a afirmar que é tudo falso, pois entre
todas as coisas há algum laço de semelhança.103

À parte a dúvida acima, a razão propõe que o falso seja “aquilo

que finge ser o que não é ou aquilo que tende integralmente a ser e não é”

101 II, 6, 11.


102 II, 7, 13.
103 II, 8, 15.

48
[quod aut se fingit esse quod non est, aut omnino esse tendit et non est]. De

todo modo, o falso não precisa necessariamente enganar para que seja falso:

a razão distingue o falaz [fallax] do mentiroso [mendax] a partir do desejo de

enganar que caracteriza aquele. “Todo o que é falaz quer enganar”, diz, “mas

nem todos os que mentem desejam fazê-lo”. Os mimos e comédias, afinal,

bem como os muitos poemas, não estão repletos de mentiras cujo objetivo é

antes o deleite do que o logro?104 A fabulação, portanto, está desonerada sob

esse aspecto; noutro, porém, é censurável – mais particularmente, em ser, de

uma só vez e por necessidade, tanto falsa quanto verdadeira:

Assim, aquelas obras de mãos humanas, como as


comédias e tragédias, ou os mimos e outras do mesmo
gênero, podemos unir às obras dos pintores e
escultores. Pois é tão impossível que seja verdadeiro o
homem pintado (...) quanto aquilo que está escrito nos
livros dos cômicos. Estes não tencionam serem falsos
ou o são por anseio próprio, mas por certa necessidade
de seguir o arbítrio de quem representa. Assim, Róscio
era falsa Hécuba por vontade própria e, por natureza,
verdadeiro homem; mediante tal vontade, porém, fez-se
verdadeiro ator trágico, pois representou bem seu papel;
ao mesmo tempo, era falso Príamo por parecer-se com
ele sem, porém, sê-lo de fato. (...) De onde resulta que
todas essas coisas são, de um lado, verdadeiras e, de
outro, falsas. (...) Como o ator mencionado seria
verdadeiro ator trágico se não consentisse em ser falso
Heitor, falsa Andrômaca, falso Hércules etc.?105

104 Cf. Ibid., II, 9, 16.


105 II, 10, 18.

49
A mescla de veracidade e falsidade, ademais, dá-se mesmo

quando não há parâmetro real a que se possa medir determinado elemento

de uma narrativa inventada. Agostinho recorre ao exemplo de Medeia:

quando diz alguém que ela voou numa serpente alada, não há réptil com

asas que nos permita caracterizar a declaração como falsa por

verossimilhança. Além disso, a razão complementa que também não se

poderia denominá-la falsa porque o que não existe não o pode ser. Todavia,

há algo que pode ser dito falso, e a razão mesma o percebe: o enunciado.

Quando assim, ele “imita” o enunciado veraz, ou seja, “reproduz as

características exteriores do que é verdadeiro, ao qual se assimila, vindo à

tona como se fosse transmissor da verdade”.106

Qualquer que seja o âmbito, porém, em que se dê a dinâmica

entre verdade e falsidade, sobre uma natureza assim contraditória não

poderia jamais se deter o jovem que, por meio das artes liberais, almejava

alcançar com visão cristalina a simplicidade da Verdade.

I. 3. Mudança de rumos

Os diálogos de Cassicíaco não figuram propriamente entre as

obras mais lembradas do bispo de Hipona. Do ponto de vista estilístico, não

obstante tragam linguagem “simples”, “polida” e “pura”, 107 dificilmente são

comparáveis às Confessiones, cujo poder de atração é inigualável. Além

disso, esses primeiros diálogos foram por muito tempo associados a

106 Giovanna Ceresola, Fantasia e illusione in s. Agostino: dai Soliloquia al De mendacio, p.


53.
107 Portalié, op. cit., col. 2288.

50
discussões desnecessárias e enfadonhas, do que dá mostras aquela que

procurou definir se havia neles um Agostinho cristão ou neoplatônico: como

consequência, às obras do período pós-conversão foi naturalmente atribuído

um caráter confuso que não possuem. Para piorar, se cotejadas com as

mesmas Confessiones, tais problemas parecem multiplicar-se em virtude das

possíveis discrepâncias teológicas e, sobretudo, históricas que saltam aos

olhos: por que, logo após um acontecimento de tão grande relevância,

Agostinho não mencionaria, por exemplo, sua dramática conversão no jardim

milanês, ou ainda a crucial leitura dos escritos paulinos?

Carol Harrison, na obra em que afirma a continuidade entre a

teologia inicial e a teologia madura de Agostinho, evoca não somente esses

motivos para explicar o desdém com que são tratados os diálogos de

Cassicíaco, mas também sublinha um dado crucial que, para ela, seria causa

de afastamento “mais forte e sério das primeiras obras do que o lugar

ocupado pelas Confessiones, as questões de historicidade ou as dúvidas

sobre a natureza e a sinceridade [do] cristianismo [de Agostinho]”.108 Trata-se

da “revolução da década de 390” que passou a ser dada como certa nas

discussões sobre a obra agostiniana:

Acredita-se que, para compreender Agostinho, é preciso


avaliar a revolução por que passou seu pensamento no
início da década de 390, como resultado de sua leitura e
sua reflexão sobre a obra de Paulo, de modo especial
as cartas aos romanos e gálatas. Numa série de obras
dedicadas a esses escritos paulinos, dizem, vemos
Agostinho elaborando sua teologia madura do pecado

108 Rethinking Augustine’s Early Theology, p. 6.

51
original, da Queda, da graça e do livre-arbítrio – cuja
síntese será formulada pela primeira vez no Ad
Simplicianum, de 396.109

Encontramos essa proposição na emblemática biografia de

Agostinho que Peter Brown publicou em 1967. 110 Trata-se de obra

indispensável, crucial, de escrita um tanto comovente; não à toa, integra o rol

de leituras obrigatórias ao estudioso do santo doutor. Para explicar o

momento por que passava Agostinho no período da suposta revolução,

Brown afirma que “Agostinho descobriu-se incapaz de alcançar aquilo que lhe

fora prometido pelo platonismo cristão”: “Ele jamais conseguiria realizar

sozinho a vitória da mente sobre o corpo, jamais alcançaria a contemplação

derradeira do filósofo ideal.” 111 Ademais, para além de meros elementos

biográficos, teologicamente Agostinho se aprofundava na doutrina paulina

para desenvolver as teorias da Queda, do pecado original, do livre-arbítrio, da

graça, da predestinação. Passaria a notar, assim, a iniquidade dos homens,

sua incapacidade de alcançar por si sós o bem, a tensão entre carne e

espírito: passaria, em suma, a uma teologia mais negativa.

Essa visão é equivocada, como Étienne Gilson muito antes já

percebera: “Houve uma evolução psicológica em Santo Agostinho; houve

muitas variações de detalhe, que assimilamos em grande número, mas

jamais obtivemos êxito em descobrir a menor variação propriamente filosófica

em qualquer de suas teses essenciais. Santo Agostinho fixou suas ideias

109 Ibid., id.


110 Na análise do aproveitamento dos clássicos pagãos por Santo Agostinho, vemo-lo
também, por exemplo, em John J. Gavigan, “St. Augustine’s Use of the Classics”.
111 Op. cit., p. 140.

52
mestras desde sua conversão (...).”112 Carol Harrison detalha de que modo se

dá a continuidade dessas ideias mestras, com especial ênfase na

transcendência do Criador, na criação ex nihilo, na Queda, na vontade e na

necessidade da graça. Brown, ao notá-lo, seria obrigado a render-se aos

fatos na segunda edição de sua obra: não há elementos que dividam Santo

Agostinho em dois; as linhas mestras são as mesmas: “certos elementos do

pensamento de Agostinho”, reconhece, “se mostraram notavelmente

estáveis. Eles parecem apresentar pouca descontinuidade”. E continua:

“Como pensador, talvez Agostinho tenha sido mais um homem aus einem

Guss, inteiro, menos acometido por descontinuidades decisivas do que

pensei.”113

Não obstante, há certas observações necessárias para quem, ao

contrário de Harrison, se debruça sobre elementos “menos teológicos” do

pensamento de Santo Agostinho. Os esquemas ascéticos não somem de

suas obras posteriores, mas de fato se tornam menos proeminentes; de

modo particular, aquele centrado nas artes liberais desaparece por completo.

Isso, sem dúvida, não joga contra o argumento da continuidade, passível de

ser provado por intermédio de qualquer cotejo cauteloso, mas intriga-nos

quanto ao papel capaz de ser desempenhado pelas disciplinas como um todo

e, segundo nosso interesse, pela literatura imaginativa em particular. Por

quaisquer razões – circunstanciais, visto que logo deveria entregar-se a

trabalhos pastorais inteiramente diversos daquele ócio inicial?; teológicas,

forçadas pelo amadurecimento das sementes que já estavam plantadas em

Cassicíaco? –, a ascensão pelas artes liberais deixa de existir, mas as


112 Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 449, n. 50.
113 Apud. Harrison, op. cit., pp. 16-17.

53
referências e reflexões que de alguma forma dizem respeito à produção e

recepção literárias não desaparecem. Que função desempenharia ou

impediria a literatura aos olhos de um cristão que não poderia explicar sua

presença apenas com base num projeto cujo fundamento é um grupo de

disciplinas que a inclui?

Tendo fim o período de retiro em Cassicíaco, Santo Agostinho viu

seus planos serem desarticulados em velocidade impressionante. Dali, ele

partiu para Milão e foi batizado; seguiu então para Óstia, de onde planejava

voltar a Tagaste e cuidar das propriedades da família. Seus projetos são em

seguida adiados em virtude do bloqueio marítimo imposto por Máximo. No

mesmo período, sua mãe falece e ele vai para Roma; quando finalmente

retorna a Tagaste, inicia uma comunidade de leigos (os servi Dei) semelhante

à de Cassicíaco. Parte então para Hipona a fim de fundar um mosteiro junto à

casa episcopal, mas a comunidade local o indica ao sacerdócio. Logo, o

bispo Valério o elevaria também ao episcopado. É nesta época, segundo os

defensores da descontinuidade, que se dá a ruptura entre o Agostinho de

Cassicíaco e o Agostinho maduro. E, para que nos atenhamos à herança

clássica, mesmo os proponentes da continuidade já podem perceber aí o já

citado descarte do projeto de ascensão pelas artes liberais.

A obra de Agostinho reflete bem as circunstâncias de sua vida;

modelam-na suas preocupações e interesses, o público a que se destina,

seus objetivos pastorais ou teológicos. É válido questionar, portanto, o que

diz ou revela sobre o que denominamos hoje literatura o Agostinho que

adentra seu período maduro e que, muito embora não tenha passado por

uma revolução e uma ruptura, recorre à herança literária clássica mesmo

54
sem ter nas artes liberais uma promessa de ascensão. Também seria

possível declarar, quanto ao uso dela, a mesma continuidade que as

afirmações teológicas tardias estabelecem com as afirmações teológicas dos

diálogos de Cassicíaco? Ou haveria, ao menos aí, uma ruptura? As

referências à poesia e ao teatro abundam na obra de Agostinho, mas

serviriam aos mesmos propósitos sempre?

A pergunta é relevante, mas exige esforço de pesquisa

descomunal. Talvez Hagendahl, ao mapear e interpretar as fontes das

citações pagãs da bibliografia de santo Agostinho, 114 já tenha indicado o

caminho a seguir. Entretanto, por reunirem as Confessiones, se não a maior

gama de reflexões sobre a arte literária (e teatral) pagã, ao menos a maior

variedade de pontos de vista a serem aplicados ao tema, bem como

importantes considerações acerca dos vícios do sistema educacional de

então – trata-se, com efeito, de um “bazar bem abastecido”, 115 fonte de

objetos de reflexão fecundíssimos a quase toda disciplina –, é possível tomá-

las como amostra representativa de seu pensamento sobre o assunto. Como

acréscimo, isso possibilita que o interessado na história da cultura ocidental

possa dimensionar o grau de influência desse pensamento em particular

nalgum recorte temporal que venha a ser de seu interesse; afinal, a influência

das Confessiones foi extraordinária desde o princípio. No entanto, a

valoração do que diz Agostinho em sua obra magna parece obrigar-nos a

uma outra parada; voltemo-nos, portanto, a um texto contemporâneo a elas

que, embora de influência comparativamente menor, teve também enorme

impacto sobre certo segmento da cultura subsequente.


114 Op. cit.
115 Introdução de William E. Mann a Augustine’s Confessions, p. 2.

55
II.

O De doctrina christiana

À fama de que já desfrutava Agostinho – fama decerto notável, se

lembrarmos sua atuação como rhetor –, somou-se a crescente reputação do

apologeta cristão. Nada disso vinha sem riscos: ao menos para aquele que

desejava dar continuidade a uma vida de otium, cada igreja local por que

passava poderia dar fim a seu projeto contemplativo. Garry Wills o lembra:

“as igrejas da época obrigavam os líderes que por lá passavam a serem seus

padres e bispos.” Não era fácil resistir a um tal consenso, e o jovem recém-

batizado bem o sabia.

Talvez esse conhecimento viesse também de Ambrósio, que fora

assim recrutado. Agostinho não imaginava, todavia, que uma diocese já

ocupada, aquela de Hipona, seria responsável por outro episódio a mudar o

rumo de sua vida. Ali, naquela cidade costeira em que desejava fundar um de

seus mosteiros, um bispo de latim fraco, mas desejoso de ver em sua

comunidade uma pregação refinada, encontrou em Agostinho a solução de

seus anseios. Não bastaria a este dizer que era cristão novo e ainda pouco

estudado, que sua missão era tão somente a de fundar um mosteiro e cuidar

de seus monges: Valério lhe concedeu o terreno adjacente à Sé e, ainda

mais importante, o tempo de que necessitava para estudar as Escrituras e

preparar as pregações. 116 Seria inconcebível não ceder. Por conseguinte,

116 Cf. Garry Wills, Saint Augustine, pp. 66-7. A diocese de Valério teve de ser autorizada a
ter dois pregadores.

56
naquele ano de 391, em Hipona, Agostinho começa a tornar-se “aquele que,

na memória da Igreja universal, será enfim o santo Agostinho”.117

Não nos detenhamos em demasia nos pormenores da vida

pessoal do santo. Basta-nos acrescentar que Agostinho, cinco anos mais

tarde, seria mais uma vez vítima da prática que o fizera presbítero: aquele

mesmo Valério, indisposto a perder orador tão eloquente, convenceria o

primaz em Cartago a conservar em sua diocese dois bispos – prática que o

Concílio de Niceia já condenara, sem que ainda o soubessem, porém, os

clérigos africanos. Agostinho ascenderia então ao episcopado e, quando da

morte Valério, de bispo auxiliar a ordinário.

Em menos de uma década, o santo passara de catecúmeno a

bispo. Não obstante, é possível que a ascensão na hierarquia fosse a menos

radical de todas as suas mudanças. O contato com o povo a que sua posição

o obrigava deve ter desconcertado aquele homem que almejara com tanto

afinco a vida contemplativa; Agostinho conhecia ali a dimensão horizontal da

vida religiosa: descobre, como diz Marrou, “o povo cristão, suas

necessidades, seus problemas”; viverá doravante “mais em função de seu

povo do que do ambiente intelectual”; preocupar-se-á menos com “o

progresso de sua perfeição interior” e mais com “a salvação do povo fiel”, isto

é, com a preservação da fé dos que lhe foram confiados.118 Os refinamentos

de seus estudos e de sua formação se encontrarão com o vigor da realidade

comunitária.

Tratou-se, de fato, de um encontro, e não de um aniquilamento.

Toda a sua cultura teve de modelar-se às novas atuações: em lugar de


117 Henri-Irenée Marrou, Saint Augustin et la fin de la culture antique, p. 333.
118 Ibid., p. 337.

57
submissa ao studium sapientiae de outrora, submeter-se-ia agora aos

exercícios do exegeta e do teólogo, do apologeta e do pregador. E os

primeiros resultados desse movimento já se fazem visíveis imediatamente

após seu ingresso no episcopado: em 396, Agostinho inicia a redação de um

de seus trabalhos mais notáveis, um objetivo tratado cuja importância

histórica não deve ser jamais menosprezada e cujo valor para a cultura

ocidental lhe assegura justo destaque.

II. 1. Nos passos do santo

Falamos do De doctrina christiana, trabalho cuja conclusão só se

daria após um intervalo de trinta anos, sem porém ter sofrido quaisquer

alterações substanciais em seu projeto original. 119 Pollmann 120 se mostra

intrigada ante o fato de seu autor, ao contrário do que faz em muitas de suas

obras, evitar “alusões concretas e históricas que pudessem afastá-la da

validade universal de seus preceitos”, mas Isabelle Bouchet 121 parece ter

mais segurança ao afirmar que é a controversa maniqueísta o que constitui o

pano de fundo do tratado. Stock é ainda mais minucioso quando assevera

que o De doctrina christiana nasce de um pedido realizado pelo primaz de

119 Cf. Retractationes, IV, 1-2; Tamro Toom, Thought Clothed with Sound: Augustine’s
Christological Hermeneutics in De doctrina christiana, p. 74; James J. Murphy, “The Debate about a
Christian Rethoric”, p. 214; David W. Tracy, “Charity, Obscurity, Clarity: Augustine’s Search for a
True Rhetoric”, p. 271.
120 “Augustine’s Hermeneutics as Universal Discipline!?”, p. 209.
121 “Le cercle herméneutique dans le De doctrina christiana d’Augustin”, p. 19.

58
Cartago, que desejava um manual que servisse à instrução dos jovens

clérigos.122

Impasse semelhante permeia a valoração, por parte dos

pesquisadores, da real relevância do tratado na história das ideias e da

cultura. Em perspectiva mais ampla, foi considerado mapa fundamental da

cultura cristã, esboço de uma paideia do cristianismo; foi também tratado

como defesa sistemática de uma “ciência da leitura”,123 ou ainda elevado a

texto responsável por dar ímpeto à defesa da “obscuridade” como valor

cultural, do que se teriam beneficiado Petrarca, Erasmo, Boccaccio e outros,

incluindo românticos e modernos; 124 tomaram-no como manual de ensino

cristão ou como o primeiro guia de retórica ou homilética do cristianismo, bem

como seu primeiro esboço de currículo educacional,125 logrando para alguns

“uma ruptura integral com [a] elaborada tradição pedagógica”.126 E, se vemo-

lo tratado como guia de estudo da Bíblia, 127 não é esse seu traço mais

comentado: predomina entre os estudiosos sua relação com a tradição

cultural legada pela Antiguidade clássica.128

Demos, porém, um passo menos ambicioso, que não procura

mensurar a obra a partir de sua influência histórica; tenhamos em mente a

122 Brian Stock, Augustine the Reader: Meditation, Self-Knowledge, and the Ethics of
Interpretation, pp. 190-91.
123 Brenda Deen Schildgen, “Augustine’s Answer to Jacques Derrida in the De doctrina
christiana”, p. 383.
124 David W. Tracy, p. 273.
125 Thomas L. Amos, “Augustine and the Education of the Early Medieval Preacher”, p. 23;
Gerald A. Press, “Doctrina in Augustine’s De doctrina christiana”, p. 98.
126 C. S. Baldwin, Medieval Rhetoric and Poetic (to 1400), p. 51.
127 Sabine MacCormack, The Shadows of Poetry: Vergil in the Mind of Augustine, p. 63.
128 Cf. Michael Roberts, The Jeweled Style: Poetry and Poetics in Late Antiquity, p. 130; Peter
Brown, Augustine of Hippo: A Biography, pp. 260-61.

59
distinção, de que nos recorda Toom, 129 entre a relevância diacrônica do

tratado e seu objetivo original; e ouçamos, enfim, o próprio Agostinho a falar-

nos. Quanto à importância do que diz no De doctrina christiana para o

estudioso da literatura e da história da cultura, ela surgirá em meio às

considerações a que a obra se dedica. É preciso, portanto, que sigamos

pacientemente os passos do santo.

Diz-nos o bispo de Hipona, já no Prólogo: “Existem certas normas

para o manejo das Escrituras. Creio que possam ser comunicadas sem

dificuldades aos que se dedicam ao seu estudo (...). Propus-me comunicar

estas normas aos que desejam e são capazes de aprendê-las (...).” Sunt

praecepta quaedam tractandarum Scripturarum: eis o escopo que o autor

anuncia. Debruçar-se-á sobre as Escrituras, fornecerá preceitos para seu

tratamento. É, como diz Pollmann,130 um Lehrbuch: introdutório, sistemático,

utilitário, um instrumento direcionado e objetivo de ensino. O primeiro livro

propriamente dito da obra o reitera: “Dois são os fundamentos em que se

alicerça toda a exposição das divinas Escrituras: o modo de encontrar as

coisas que devem ser entendidas e o modo de explicar o que se entendeu.

Primeiro dissertaremos sobre o modo de encontrar; depois, sobre o modo de

expor.” 131 Está aí contida a estrutura geral do texto, correspondendo ao

movimento feito pelo próprio hermeneuta cristão: o modus inveniendi, isto é,

da descoberta, será tratado antes, e a ele Agostinho dedica os três primeiros

129 Op. cit., p. 72.


130 Apud Toom, op. cit., p. 73.
131 I, 1.

60
livros; ao modus proferendi, forma de expor as riquezas apreendidas no texto

sagrado, cabe o quarto.132

Uma divisão ulterior é enunciada no segmento imediatamente

seguinte: “Toda doutrina se reduz a coisas e signos, mas as coisas são

conhecidas por meio dos signos.” Esta é a primeira vez em que a palavra

doctrina, presente em seu título mesmo, figura no corpo da obra, até então

apresentada como tractatio scripturarum. E, uma vez que Agostinho afirma

que o debruçar-se sobre as coisas e os signos será tarefa dos livros I, II e III,

certa confusão pode ser feita quanto a se a doctrina que dá nome ao texto se

referiria tão somente à inventio, isto é, aos três livros iniciais. Gerald Press

antepõe essa questão à sua análise do sentido da palavra, mas não parece

oferecer resposta muito elaborada. De todo modo, não se pode prescindir do

esclarecimento de um conceito que surge quando do anúncio da estrutura

principal do tratado e que, segundo logo se depreende, pressagia toda a sua

relevância cultural.

Marrou equipara doctrina a scientia como termos que designam a

cultura cristã;133 Brown 134 faz o mesmo. Erickson, 135 por sua vez, abre seu

estudo sobre a relevância do termo declarando ser ele a ideia que une todos

os quatro livros do tratado e que esclarece cada um de seus conceitos – e,

muito embora também aponte para a solução segundo a qual doctrina remete

a cultura, paideia, fá-lo assinalando a variedade de sentidos que a expressão

também recebia, o que lhe permite inserir a obra no contexto da Igreja dos

132 O pesquisador clássico encontrará aí os ecos da retórica antiga e sua divisão entre
inventio e elocutio.
133 Op. cit., p. 350.
134 Op. cit., p. 327.
135 “The Significance of ‘Doctrina’ in Augustine’s De doctrina christiana”, p. 105.

61
séculos IV e V.136 No entanto, é no já mencionado Press que a multiplicidade

de conotações parece exposta com maior clareza:137 tendo no verbo docere

sua origem, doctrina refere-se inicialmente ao ato de ensinar, instruir, educar;

um desdobramento lógico faz com que abarque também o conteúdo das

instruções, da educação – ou seja, daquilo que ensinam as artes e a ciência,

tanto de maneira específica (as doutrinas da filosofia, da retórica, da religião,

do direito etc.) quanto em seu conjunto, como na enkuklios paideia grega;138

em seguida, temos a “fácil transição de doctrina como ‘conteúdo’ de uma arte

ou ciência a doctrina como a arte ou ciência propriamente dita”; abrangendo

todos os outros, o sentido quarto é aquele que representa os resultados e

efeitos subjetivos do ensino das artes e ciências: usamo-lo para nos referir ao

conhecimento, à erudição, de modo especial no que toca a educação nas

artes liberais. Essa gama de sentidos, encontrada já no vocabulário

intelectual clássico, adentra o mundo dos cristãos primitivos, que então

atribuem a doctrina aos apóstolos, bispos, abades, papas etc.: “Para um não

cristão de língua latina, doctrina evocaria as artes e ciências tradicionais junto

com o conteúdo doutrinal e a qualidade intelectual de alguém versado nessas

disciplinas e doutrinas. Para os cristãos de língua latina da mesma época,

contudo, doctrina sugeriria sobretudo os ensinamentos, as doutrinas ou os

dogmas de sua religião, e talvez também, mas muito menos do que entre os

não cristãos, a estimada qualidade intelectual de uma pessoa versada

nesses dogmas.”

136 Cf. o arremate de seu raciocínio em ibid., p. 106.


137 “Doctrina in Augustine’s De doctrina christiana”, pp. 101ss.
138 Cf. Marshall McLuhan, O trivium clássico, cap. 1.

62
Agostinho bem conhece a pluralidade de sentidos de doctrina, e

como bom retórico sabe utilizá-la: segundo o exame de Verheijen,139 quinze

das vinte ocorrências do termo na obra remetem a “doutrina” ou

“ensinamento”, enquanto as restantes evocam a noção de “cultura”. Fixar um

sentido único e inflexível que se aplique a todo o tratado, portanto, é tarefa

infrutífera e redutora. De todo modo, é ao redor de doctrina que, vimos nós,

Agostinho enuncia a divisão dos livros I, II e III: Omnis doctrina vel rerum est

vel signorum. Como prenunciado pelo segmento imediatamente anterior,

essa introdução de I, 2 é aquela que esperaríamos encontrar num Lehrbuch:

“Agostinho não estava fazendo uma declaração metafísica ou ontológica

exaustiva, mas tão somente uma divisão utilitária adequada ao exame dos

tópicos selecionados por um manual. As ‘coisas’ são examinadas no Livro I e

as ‘palavras’, nos Livros II e III. Em suma, o Livro I é sobre a res.”140

Não se demora muito Agostinho na definição do que seria

propriamente a coisa: é aquilo que não é empregado para significar algo

mais.141 Trata-se da vara, da pedra, do animal selvagem, contanto que não

sejam como aqueles que muitas vezes traz a Bíblia – a vara de Moisés, por

exemplo – para indicar, por meio deles, outra coisa. “De algumas dessas

coisas”, diz-nos o bispo, “nós devemos fruir; outras, devemos usar; de outras,

fruir e usar”. E completa: “Aquelas das quais fruímos nos tornam felizes; as

que usamos nos ajudam a tender à bem-aventurança e servem como suporte

para lograrmos a união com as que nos fazem felizes.”142 Fruir, portanto, “é

139 Apud Press, op. cit., p. 100.


140 Toom, op. cit., p. 83.
141 I, 2.
142 I, 4.

63
aderir a uma coisa por amor dela mesma”, ao passo que “usar é empregar o

que está ao nosso alcance para conseguir o que se ama”.143 O bom retórico

sabe valer-se das metáforas:

Suponhamos que somos peregrinos, que não podemos


viver senão na pátria e que ansiamos, miseráveis na
peregrinação, por dar fim ao infortúnio e retornar a ela;
para tanto seria necessário um veículo terrestre ou
marítimo, por meio do qual pudéssemos chegar à pátria
em que haveríamos de fruir. Se, porém, a amenidade do
caminho e o uso do veículo nos deleitassem de tal
maneira que acabássemos por fruir das coisas que
apenas deveríamos utilizar, ver-se-ia que não
desejávamos terminar logo a viagem; comprometidos
com uma perversa aprazibilidade, nós nos afastaríamos
da pátria cuja doçura nos tornaria felizes.144

Que encontra-se aí a imagem do peregrino e da peregrinatio

animae, tomada pelo neoplatonismo da Odisseia de Homero e reproduzida,

entre os latinos, também no épico virgiliano, já nos é fato significativo.

Ademais, que Deus – ou, ainda, a Trindade – é a pátria, aquilo de que

devemos fruir, é ideia corrente e central entre os pensadores cristãos, e

Agostinho já a enunciara em Cassicíaco valendo-se de imagem

semelhante. 145 Além de articular a incontestável consequência de que

devemos usar do que dispomos no mundo para alcançar essa finalidade,

Agostinho aproveita a exposição da dinâmica do uti/frui para tecer uma série

143 Ibid.
144 Ibid.
145 Cf., por exemplo, De beata vita, I, 1-3.

64
de considerações teológicas e dogmáticas importantes para o leitor cristão,

dentre as quais parece oportuno assinalar o singular papel que assume

Cristo: Caminho, Verdade e Vida, como nos dizem as Escrituras, 146 sem o

qual ninguém vai ao Pai, Ele é pessoa que devemos usar por sua

humanidade e da qual ansiamos fruir por sua divindade. Convém destacá-lo,

dentre todas as considerações que se depreendem da distinção entre usar e

fruir, porque, como já se demonstrou, 147 a Encarnação pode nos ajudar a

reconhecer o que de fato são os textos sagrados: se a realidade finita do

Corpo de Cristo é “útil” por remeter à sua divindade, a realidade finita e

significante da linguagem, nas Escrituras, é “útil” porque também nos remete

à pátria a que ruma o peregrino: Deus.

Subjaz ao raciocínio de Agostinho a ideia que já fora enunciada no

De magistro: as coisas gozam de primazia sobre a linguagem porque

constituem aquilo a que a linguagem mesma se refere, conferindo-lhe

sentido. Não se faz necessária grande extrapolação para que a importância

do livro primeiro do De doctrina christiana se afigure aos olhos do leitor:

Deus, como res a ser fruída, res que é fonte única de bem-aventurança,

possui primazia sobre todas as coisas; por conseguinte, deve haver um lugar

especial para os signos que remetem a esse fim último e que foram por Ele

mesmo inspirados. O Livro I, com as considerações que se seguem à

afirmação de Deus como fonte de beatitude e que reiteram a ortodoxia que

Agostinho herdara da tradição, estabelece as rei que deve ter presentes

146 João 14, 6.


147 Toom, op. cit., p. 85.

65
consigo o leitor da Bíblia; é seu papel asseverar, portanto, o horizonte

normativo do hermeneuta bíblico.148

Agostinho, todavia, sabe que a linguagem humana, veículo de que

Deus se vale nas Escrituras, é o fardo que os seres manchados pela Queda

tiveram de desenvolver para fins de comunicação; sabe, ainda, que a

mediação dessa realidade finita é incapaz de exprimir adequadamente a

realidade infinita a que anseia o homem, não obstante sua posição de

prestígio na ordem das coisas:

Uma vez que a alma racional é o ponto excelente


dentre as criaturas, uma ontologia da significação teria
seu ápice na linguagem humana, lugar de uma
eloquência especialmente capaz de mover os espíritos
do visível ao invisível. Porém, não é bem isso o que
acontece; de alguma maneira parece que a linguagem
humana não está à altura dessa ontologia. Embora a
afirmação de uma ontologia da significação, na filosofia
de Agostinho, pudesse sugerir um destaque para a
linguagem, a notável importância da análise da
linguagem em Agostinho deve-se a determinados
problemas na relação entre a ontologia e a linguagem, e
não a uma aproximação evidente por si mesma.149

Toda linguagem, de modo especial a das Escrituras, estará

suscetível a ambiguidades e obscuridades, ainda quando não intencionais.

148 Brenda Deen Schildgen (op. cit., p. 384): “Agostinho, portanto, ao elencar a existência de
um ser infinito em seu exame, circunscreve sua própria atividade interpretativa. Para ele, é esse o
limite incontingente que circunda o território das possiblidades de interpretação. Sair desses
parâmetros é mover-se para o local do possível erro (...).”
149 Moacyr Novaes, A razão em exercício: ensaios sobre a filosofia de Agostinho, p. 29.

66
Debruçar-se sobre os signos, portanto, aprofundar-se numa scientia

signorum, não pode ser algo dispensável. Se Agostinho utiliza o livro primeiro

para oferecer-nos a espécie de pré-entendimento que se faz necessária à

interpretação ortodoxa dos signos bíblicos, no Livro II dedicar-se-á às

tecnicidades da comunicação linguística e da semiologia, de onde se

desdobrará, inesperadamente, uma digressão sobre o manejo da cultura

clássica – digressão que, não obstante sua concisão, algo nos pode indicar

acerca do que pensa o santo sobre a atividade de poetas e dramaturgos. É

este o nosso foco.

Não devemos, porém, nos deixar enganar. Agostinho se conserva

fiel ao objetivo de fornecer precepta, e portanto seu objetivo é limitado:

“investigar a significação linguística apenas na medida em que é útil à

interpretação das Escrituras.” 150 Cada um de seus passos é calculado;

procede ele por meio de desdobramentos sutis, mediante uma

sistematização que parece, a todo momento, ter em vista o clero africano mal

formado que deseja instruir. Desse modo, é preciso retomar a definição mais

fundamental de signo, anunciada já no Livro I.

Agora, ao tratar dos signos, que ninguém atente


àquilo que em si são, mas tão somente àquilo de que
são signos, isto é, àquilo que simbolizam. Signo é toda
coisa que, além do aspecto que tem e apresenta a
nossos sentidos, faz com que nos venha ao
pensamento algo mais. Desse modo, quando vemos
uma pegada pensamos que esteve ali um animal que a
imprimiu; ao ver fumaça, sabemos que há abaixo fogo;

150 Toom, op. cit., p. 162.

67
ouvindo a voz de um animal, conhecemos a disposição
de seu ânimo; quando soada a corneta, sabem os
soldados se devem avançar, bater em retirada ou
realizar outro movimento que a batalha exige.151

Pegadas, fumaça, voz, o som da corneta. Agostinho estabelece

para os signos duas categorias amplas: “Alguns signos são naturais e outros,

instituídos pelos homens.” 152 Diferenciam-nos a presença ou ausência de

intencionalidade, de desejo. Os primeiros se produzem naturalmente: o fumo

que assinala o fogo, do qual suspeitamos à luz de experiências passadas; a

pegada que evoca o animal que ali passara; o semblante triste que revela,

sem que o indivíduo o queira, a disposição de seu espírito. Que o mundo é

signo de seu criador é concepção que Agostinho ratificaria;153 no entanto, não

é de admirar que um tratado como o De doctrina christiana passe ao largo

dela: interessa ao bispo de Hipona sobretudo os signos humanos, meio por

que se nos fez conhecer a Escritura sacra.

“Os signos convencionais [signa data]”, diz-nos, “são os que se

dão mutuamente todos os viventes para manifestar, tanto quanto possível, os

movimentos da alma (...). Não há outra razão para assinalar, isto é, para

empregar um signo, senão a de comunicar à alma de outrem o que há na

daquele que o transmitiu”. 154 Muito embora entre os próprios animais

encontremos o uso dos signos convencionais, pelos quais comunicam, de

modo rudimentar, as inclinações de seus ânimos, é nos homens que eles

151 II, I, 1.
152 II, 1, 2.
153 Cf. Novaes, op. cit., cap. I.
154 II, 2, 3.

68
alcançam seu uso mais singular e complexo. E, dos signos que

convencionaram os homens em seus afazeres cotidianos, gozam as palavras

– não apenas quantitativamente, mas sobretudo em qualidade – de posição

de destaque. Todos os signos do olfato, do tato, da vista e do ouvido podem

ser comunicados por ela, mas o que assinalam as palavras não pode ser

sempre transmitido pelos signos dos outros sentidos.155

A palavra, portanto, esse signum datum, possui intencionalidade

subjetiva: está “incluída no verbo dare, que sublinha claramente a voluntas

significandi e constitui o elemento que a distingue do signum naturale”. 156

Não será possível exagerar a importância de uma tal intencionalidade quando

se trata do texto sagrado: se a palavra escrita, como Agostinho recorda, 157 é

signo da palavra falada que ela ajuda a conservar na memória; se a palavra

falada é signo que aponta para a alma de quem a profere; se, por fim, aquele

que a profere tem a vontade afim à vontade divina, a investigação dessa

voluntas é passo de que o hermeneuta não poderia prescindir.

Agostinho julga necessário tecer ainda, antes de debruçar-se

sobre os signos literais desconhecidos, algumas advertências

complementares às suas subdivisões iniciais. Entre elas, torna presente um

conceito importante: “Para os Pais, a interpretação das Escrituras jamais se

limitava a um exercício teórico/intelectual. No final das contas, era (e ainda é)

a vida diária do cristão o que mostrava se a Bíblia fora compreendida da

155 Cf. II, 3, 4.


156 Graziano Ripanti, “L’allegoria o l’‘intellectus figuratus’ nel De doctrina christiana di
Agostino”, p. 221.
157 II, 4, 5.

69
maneira certa ou não.”158 É preciso, então, que ao trabalho do intelecto se

associe o trabalho do asceta, ideia que não soará de todo estranha ao que

conheceu o Agostinho de Cassicíaco.159 No entanto, há aqui novos degraus:

“é preciso que o temor de Deus nos leve a conhecer sua vontade, e assim

saibamos o que nos manda apreciar e do que nos manda fugir”; “é

necessário que este temor infunda na alma o pensamento de nossa

mortalidade e da morte futura, (...) logo é mister amansar-se com o dom da

piedade”; “depois desses dois graus (...) sobe-se ao terceiro, que é o da

ciência, (...) no qual se exercita todo estudioso das divinas Escrituras”; em

seguida, “a fortaleza, pela qual se tem fome e sede de justiça”; depois, “o

conselho da misericórdia”, em que purifica sua alma atormentada pelos gritos

da consciência; então “o sexto grau, em que de tal forma purifica o olho de

sua alma que não prefere nem compara o próximo com a verdade”; e, por

fim, “a sabedoria, sétimo e último grau, no qual gozará tranquilo e em paz”. 160

Que o leitor recorra ao texto para as minúcias: as linhas gerais já

demonstram, e bem o percebeu Marrou, que se reconfigura a importância do

progresso intelectual no projeto ascético.

Conjuga-se, portanto, a disposição da alma com o manejo do texto

sagrado: o hermeneuta, em seu trato com as Escrituras, deve buscar a

vontade divina. Precisa, em primeiro lugar, conhecer os livros; ainda que não

158 Toom, op. cit., p. 185.


159 Marrou, op. cit., p. 345: “A cultura agostiniana não estará subordinada à vida religiosa
apenas em virtude de seu objeto, seu programa, mas antes pelo espírito que a anima: não basta a
ele consagrar o esforço de sua inteligência a um objeto de essência religiosa, em especial ao
estudo das santas Escrituras. O estudo não deve ser procurado por si mesmo, mas (...)
subordinado ao progresso da alma rumo à perfeição.”
160 II, 7, 9-11.

70
os compreenda de início, não deve ignorá-los, mas conservá-los na memória

tanto quanto possível. 161 Buscará os preceitos do bem viver que são

expostos com clareza: já conhecerá ali as disposições “que dizem respeito à

fé e aos costumes, à esperança e à caridade”, ou seja, às rei que constituem

o horizonte normativo da hermenêutica bíblica e que tiveram, no Livro I, sua

primazia destacada. Valendo-se das passagens claras, ver-se-á capaz de

elucidar as obscuras.

Sobre a compreensão do texto – e assim tem fim toda e qualquer

consideração que preceda os pormenores da scientia signorum propriamente

dita –, diz o hiponense que “os signos são próprios ou são figurados [vel

propria, vel translata]”. 162 Quanto aos próprios, exigem de nós o caminho

mais simples do entendimento; significam aquilo mesmo para o que foram

instituídos: quando pronuncia alguém bovem, boi, entendemos o que todos

os que falam nossa língua também entendem. Quando se trata do signo

figurado, porém, as coisas que os nomes denominam significam ainda algo

mais. O mesmo animal nos serve de exemplo: significa bovem o ser vivo que

imediatamente nos vem à mente, decerto, mas também “o pregador do

Evangelho tal qual se nos remete as Escrituras segundo a interpretação do

apóstolo, que diz: Bovem triturantem non infrenabis [1 Cor 9, 9]”.163 Todavia,

nem todo signo bíblico é de fácil entendimento; não haveria sequer

necessidade de um De doctrina christiana caso o fosse. Mediante novo

desdobramento, Agostinho estabelece os motivos dessa incompreensão:

“Por duas causas não se entende o que está escrito: pelo desconhecimento

161 II, 9, 14.


162 II, 10, 15.
163 Ibid., id.

71
ou pela ambiguidade dos signos.” É esta, inclusive, a divisão geral dos Livros

II e III: lidará aquele com os signos desconhecidos e este, com os ambíguos.

Uma vez que, além da mediação dos signa data, as Escrituras

eram (e em grande medida ainda são e serão) lidas pela mediação de

tradutores, Agostinho antepõe o conhecimento das línguas hebraica e grega

a qualquer outra consideração técnica. É conselho, este, que nos soa

próximo em tempos de teorias de tradução, sobretudo aos que se dedicam às

letras e devem lidar com a importância dos originais e a influência das

nuances interpretativas do tradutor. 164 É positiva, portanto, a variedade de

traduções latinas da Bíblia que se verificava já na época do bispo de Hipona:

o cotejo de cada uma é de grande utilidade para o esclarecimento dos

trechos obscuros.165 Nada se compare, porém, ao conhecimento das línguas

originais.

Caso o desconhecimento de um signo literal não provenha da

língua estrangeira, circunstância em que a assimilação do idioma original é

solução, o que se faz necessário em muito se assemelha ao nosso processo

de aquisição da língua materna: “Se ignoramos as palavras e locuções de

nossa própria língua, viremos a conhecê-las mediante o costume de ouvir e

ler.”166 E a memória desempenha nisso seu papel, pois é preciso legar-lhe o

que desconhecemos para que o contexto no-lo esclareça em tempo

oportuno, ou ainda outra pessoa que esteja em condições de fazê-lo.

É mais delicado o caso dos signos figurados desconhecidos.

Também exige ele o conhecimento das línguas originais – a interpretação

164 II, 11, 16.


165 II, 12, 17.
166 II, 14, 21.

72
dos nomes hebraicos, por exemplo, é de grande valia ao hermeneuta.

“Muitos homens instruídos na língua hebraica”, diz o texto, “prestaram

enorme serviço à posteridade, destacando nas sacras Escrituras os nomes

desta classe e interpretando-os; desse modo nos disseram o que significam

Adão, Eva, Abraão, Moisés; o mesmo fizeram com os topônimos, revelando-

nos o sentido de Jerusalém, Sião, Jericó, Sinai, Líbano, Jordão (...), os quais,

quando esclarecidos e interpretados, dão-nos a conhecer muitas locuções

figuradas das Escrituras.”167 Entretanto, é preciso sublinhar que a ignorância

das coisas, referência dos signos convencionados, é causa importante de

falha interpretativa. São as rei que fornecem os objetos de comparação no

processo de interpretação do signo figurado. Muito nos esclarece, ao lermos

Deus ordenando-nos a sermos prudentes como a serpente, saber que este

réptil expõe todo o corpo àqueles que desejam ferir-lhe a cabeça:

“ofereçamos nosso corpo aos que nos perseguem antes de oferecer-nos

nossa cabeça, que é Cristo, impedindo assim que morra em nós a fé cristã

quando, conservando o corpo, negamos o Senhor.” 168 O mesmo quando

desconhecemos as características (ou mesmo a existência) de certas pedras

e vegetais, o significado dos números e certas noções de música (a estes

dois últimos, Agostinho dá considerável destaque em II, 16, 25 e II, 16, 26).

Se porventura houvesse dúvida quanto às razões de o bispo conferir

tamanha ênfase às coisas no Livro I, ela se esvanece quando do

aprofundamento da scientia signorum: “O bispo deseja que o exegeta

conheça a natureza e as características de várias coisas (animais, pedras,

ervas, números etc.) porque isso permitira, em primeiro lugar, que os autores
167 II, 16, 23.
168 II, 16, 24.

73
bíblicos empregassem tais características para construir formulações

figuradas e criativas. A familiaridade com as coisas auxilia na emissão de

juízos comparativos e na percepção do sistema de associações com que a

linguagem figurada opera (...).”169

II. 2. Uma “unidade independente”

Todavia, não poderia haver, para Agostinho e qualquer um de

seus contemporâneos, conhecimento das coisas fora do âmbito da educação

secular e suas disciplinas. Desse modo, a própria interpretação do texto

sagrado obriga o De doctrina christiana a um ponto de interseção que exigirá

enorme cautela de quem dele se ocupa. Como conjugar as exigências

morais, os princípios éticos, a doutrina salvífica e os pressupostos teóricos do

cristianismo com a longa história da cultura pagã, em que elementos tão

positivos e tão daninhos se mesclam de maneira quase inextricável? Que

essa foi questão premente nos primeiros séculos de cristianismo qualquer

história do pensamento e da cultura deverá sublinhar. Ao problema,

Agostinho dá sua contribuição:

Porém, esteja certo ou não o que contou Varão, nós


não devemos recusar a música (...) sempre que
pudermos tirar dela alguma utilidade para entender as
santas Escrituras. (...) Tampouco devemos deixar de
aprender a ler porque, segundo dizem, foi Mercúrio
quem inventou as letras. Do mesmo modo, não temos
de fugir da justiça ou da virtude porque os gentios

169 Toom, op. cit., p. 195.

74
edificaram para ambas templos e preferiram adorá-las
em pedras em vez de as terem no coração. Antes, o
cristão bom e verdadeiro deve entender que, em
qualquer parte em que se ache a verdade, ela é coisa
própria do seu Senhor (...).170

O que Agostinho afirma acima se encontra já num contexto que

parece desconcertar quem dele se ocupa com atenção. Doravante, e de certa

forma já desde II, 17, 27, que não obstante possui certo vínculo com a seção

imediatamente precedente, o bispo de Hipona parece perder-se em

digressões que só raras vezes evocam a scientia signorum de que até então

tratava; trata-se, como disse o crítico, duma “unidade independente”.171 Se o

conhecimento de determinadas coisas estivera em análise graças à sua

utilidade para a interpretação bíblica dos signos figurados, o escrutínio da

sabedoria pagã anunciada já na citação faz uma interpretação da cultura

geral em que Agostinho estivera submerso. Somos-lhe gratos por esse

desvio: estão nessas digressões, enfim, o que talvez mais interesse ao

estudioso que deseja extrair de Agostinho alguma consideração genérica

sobre o papel da literatura imaginativa para o cristão.

O método por que procede Agostinho é o que caracteriza a obra;

eis as subdivisões: entre as doutrinas que se encontram entre os gentios, há

aquelas que os homens instituíram e aquelas por eles encontradas (as

naturais, instituídas por Deus). “O que foi instituído pelos homens é em parte

supersticioso e, em parte, não é.”172 Sobre as doctrinarum173 supersticiosas

170 II, 18, 28, grifos nossos.


171 Toom, op. cit., p. 196.
172 II, 19, 29.

75
não nos debrucemos sem necessidade. Trata-se daquelas “que os homens

instituíram para fazerem e adorarem ídolos ou para prestarem culto a uma

criatura ou parte dela como se fosse Deus”:174 adivinhações, artes mágicas, a

genetliologia, o uso supersticioso de objetos, entre outras. Mais fecunda é a

classe das instituições que não possuem caráter de superstição.

As institutis humanis non superstitiosis englobam as convenções

humanas que se fazem úteis e necessárias e as convenções que não

passam de superficialidades. Atentemos, primeiro, ao que santo Agostinho

elenca entre as instituições supérfluas –

[n]as pinturas, nas estátuas e em outras obras


semelhantes que imitam o original, se se devem
sobretudo a artífices hábeis, ninguém erra ao ver a
semelhança, de modo que por elas conhece a quem
representam. Toda essa classe deve ser contada entre
as instituições supérfluas dos homens, a não ser que
interesse algum destes signos por seu fim, lugar e
tempo, bem como pela autoridade de quem mandou
fazê-los. Ademais, as mil fábulas falsas e fictícias com
cujas mentiras se deleitam os homens também são
instituições humanas. E, na verdade, nada havemos de
julgar mais próprio dos homens que as falsidades e
mentiras, pois lhes pertencem por direito175

– e, em seguida, ao que considera instituições úteis:

173 Das vinte ocorrências de doctrina que Verheijen encontrou, as cinco que o autor crê
significarem “cultura” ocorrem na digressão (entre II, 19, 29 e II, 42, 63), sempre no plural. Cf.
nota 23, acima.
174 II, 20, 30.
175 II, 25, 39.

76
As instituições dos homens que são úteis e
necessárias, estabelecidas de mútuo acordo, são o
vestido e o adorno corporal, cuja distinção se fez
necessária para diferenciar as dignidades e o sexo;
também se contam entre elas todos os inumeráveis
gêneros de signos, sem os quais ou não haveria em
absoluto, ou seria menos cômoda, a sociedade humana;
acrescentamos os signos próprios de cada cidade e
povo que se referem aos pesos e medidas, às efígies e
valor das moedas, bem como todos os outros desta
classe que, não fossem estabelecidos pelos homens,
não seriam tão variados nos diferentes povos, nem se
alterariam em cada um deles ao arbítrio dos respectivos
príncipes.176

E tem fim o capítulo: “Toda esta parte de instituições humanas que

são convenientes para as necessidades da vida, jamais deve evitá-la o

cristão; antes, enquanto lhe seja necessário, deve dedicar-se a seu estudo e

aprendê-las de cor.”177

Agostinho, lemos, tem entre as instituições supérfluas não

somente as pinturas e esculturas, mas sobretudo as fictarum fabularum et

falsitarum que deleitam os homens. Vemos pelo menos em Toom178 e em

MacCormack 179 a sugestão de que, não obstante se afastem das

considerações a respeito da interpretação dos signos figurados

desconhecidos, o conhecimento secular a que Agostinho alude ainda diria

176 Ibid., id.


177 II, 25, 40.
178 Op. cit., id.
179 Op. cit., p. 65.

77
respeito à hermenêutica bíblica. Nesse caso, para a compreensão das

Escrituras seriam desnecessárias as instituições humanas superficiais, mas

as convenientes deveriam ser “estudadas” e conservadas na memória; a

censura às “mil fábulas falsas e fictícias”, por conseguinte, não se resumiria a

nada além de um conselho ao aspirante a exegeta.

Seremos obrigados, se não a discordar, ao menos a levantar

ressalvas e apontar certas nuances que tornam essa especificidade

questionável. Nesse aspecto, certas considerações ulteriores da lavra de

Agostinho nos parecem não somente cruciais para a valoração da posição da

literatura nas entrelinhas de seu pensamento, mas também

surpreendentemente negligenciadas.

Admitamos que a citação reproduzida acima possa ser lida como

conselho dado ao hermeneuta cristão, mas valendo para ele apenas na

atividade em que lhe é própria. Com efeito, as instituições humanas úteis ali

listadas estão em harmonia com o tipo de recomendação que apregoa o

conhecimento das coisas na interpretação do texto sagrado: “vestido e

adorno corporal”, “os signos (...) próprios de cada cidade e povo”, “o que se

refere aos pesos e medidas”, “efígies e valor das moedas” – tudo isso é de

fato munição interpretativa no sentido que até então Agostinho sublinhava.

Ademais, parece reforçada essa perspectiva pela recomendação de “dedicar-

se a seu estudo e aprendê-las de cor”.

Eis, porém, o que observa o doutor da Igreja no capítulo

imediatamente subsequente, que no original se desdobra sob o título,

suficientemente genérico, Quae hominum instituta fugienda, et quae

amplectenda sint:

78
As que pertencem à sociedade com os demônios,
como dissemos, devem em absoluto ser repudiadas e
detestadas; e as que os homens usam entre si devem
ser aceitas na medida em que não são supérfluas e de
puro luxo – sobretudo a forma das letras, sem as quais
não poderíamos ler, e também a diversidade de línguas,
na medida em que seja suficiente a cada um, sobre o
que já falamos acima. (...) Todos estes signos são úteis
e não é coisa ilícita sabê-los; tampouco nos enredam
em superstição, nem enfraquecem com o luxo, contanto
que não nos ocupem de tal modo que cheguem a ser
impedimentos para dedicarmo-nos a outras coisas de
mais importância (...).180

“Sobre o que já falamos acima”: o advérbio certamente delimita a

aplicação do comentário a seu uso hermenêutico, inclusive na prática, mais

específica, da interpretação dos signos desconhecidos: como vimos, o bispo

de Hipona mais de uma vez sublinhou a importância do conhecimento de

línguas como o grego e o hebraico para a compreensão e o esclarecimento

de passagens obscuras. No entanto, o mesmo poderia ser dito acerca da

sociedade com os demônios? Sua censura diria respeito apenas à sua (não)

importância como recurso de interpretação? Ninguém o dirá: o próprio santo

emprega o advérbio penitus. Do mesmo modo com a afirmação de que “as

que os homens usam entre si devem ser aceitas na medida em que não são

supérfluas e de puro luxo”: não poderia ter ela aplicação genérica? Se

interpretarmos as “coisas de mais importância”, ao final do trecho, como algo

mais do que o mero sucesso na interpretação das Escrituras, a resposta a

180 II, 26, 40.

79
essa pergunta pode ser positiva. Lembremo-nos de como Agostinho

repreende a Licêncio no Contra academicos: “[A filosofia] efetivamente já te

havia inflamado mais ardentemente que a tua arte poética para a ciência das

coisas grandes e realmente frutíferas.”181

A dúvida se agrava – ou pode dar a impressão de resolver-se –

quando Agostinho trata das ciências que não foram instituídas pelos homens:

toda a sua abordagem se desdobra tendo como norte a utilidade de tais

disciplinas à compreensão das Escrituras. Tomemos a história: ela “nos ajuda

muito a entender os Livros santos, ainda que seja assimilada fora da Igreja,

na instrução escolar da meninice”. 182 Por exemplo: “Com efeito, pelas

olimpíadas e pelo nome dos cônsules averiguamos, não poucas vezes,

muitas coisas; assim a ignorância do cônsul sob o qual nasceu e morreu o

Senhor levou muitos ao erro; julgaram que Ele padeceu aos quarenta e seis

anos de idade porque haviam dito os judeus que foi esse o tempo da

edificação do templo, o qual era imagem do corpo do Senhor.”183 Do mesmo

modo com as árvores, os animais, as ervas, os astros e as artes

mecânicas.184

O mesmo Agostinho aplica às “artes e ciências que não pertencem

ao sentido do corpo, mas à razão ou à potencia intelectiva da alma”. 185 A

utilidade das disciplinas liberais para a hermenêutica bíblica é o que lhe

permite redimensionar a relevância que elas têm para a formação do cristão.

É curioso notar, em especial se tivermos em mente o Agostinho de

181 III, 4, 7.
182 De doctrina christiana, II, 28, 42.
183 Ibid., id.
184 Cf. II, 29; e II, 30.
185 II, 31, 48.

80
Cassicíaco, como apenas a dialética e a aritmética têm grande destaque e

relevância, mas não sem uma longa lista de ressalvas. 186 Marrou

compreende bem a diferença entre os dois períodos quando afirma que “o

programa do De doctrina christiana se opõe ao do De ordine. Tanto um

quanto o outro sem dúvida abarcam um pouco das mesmas rubricas, mas o

espírito que os anima é assaz diferente; enquanto o De ordine se prende à

tradição da filosofia helenista, o programa do De doctrina christiana se inspira

nos métodos em uso na escola literária”.187 E antes, inserindo os esforços do

bispo de Hipona no campo da hermenêutica: “Santo Agostinho realiza um

vasto inventário da cultura antiga (...) e obtém daí um programa de formação

em que só entra aquilo que servirá à alma cristã que busca, pelo estudo das

Escrituras, melhor proceder ao tesouro da fé.”188

Entretanto, Agostinho desejou tecer novas considerações

genéricas mihi studiosis et ingeniosis adolescentibus. Estamos já ao final do

livro segundo, e as observações têm caráter compendioso. Diz ele:

Pelo exposto, parece-me que é saudável


admoestar, aos jovens engenhosos, estudiosos e
tementes a Deus que buscam a vida bem-aventurada, a
que não se dediquem temerariamente a seguir
quaisquer doutrinas praticadas fora da Igreja de Cristo,
como se com elas alcançassem a vida bem-aventurada;
pede-se antes que as examinem com esmero e grande
cuidado. (...) Afastem-se, do mesmo modo, das
instituições humanas supérfluas e de puro luxo. Aquelas

186 II, 31ss.


187 Op. cit., p. 409.
188 Ibid., p. 398.

81
outras estabelecidas pelos homens e que servem para a
convivência da sociedade, não as descuidem enquanto
o exige a necessidade da vida. Quanto às demais
ciências que se acham entre os gentios, exceção feita
às informações sobre as coisas passadas ou presentes
que pertencem aos sentidos corporais – entre as quais
se incluem também as conjecturas e os experimentos
das artes mecânicas –, bem como à lógica e à
matemática, julgo que nada têm de útil. Em todas estas
ciências se há de observar a máxima ne quid nimis [de
Terêncio], sobretudo no que toca aquelas que
pertencem aos sentidos corporais, se desenvolvem no
tempo e ocupam lugar no espaço.189

Ainda que se fale em utilidade, tanto o contexto da bem-

aventurança quanto (e sobretudo) a referência à “necessidade da vida”

parecem apontar para uma recomendação de âmbito geral, dada a todo

cristão “engenhoso, estudios[o] e tement[e] a Deus que busc[a] a vida bem-

aventurada”. Se se trata de algo útil ou não, decerto Agostinho não pensa

apenas no ato interpretativo. Ao mesmo tempo, há ali o poeta e dramaturgo

Terêncio a dar-lhe respaldo na exposição; não teria sido ele assimilado após

o jovem Agostinho ter dedicado seu tempo a uma instituição humana

supérflua?

O bispo volta a recordar que o cristão deve ver a sabedoria de

Cristo naquilo que os pagãos disseram de verdadeiro. É feita aqui a famosa

alusão à pilhagem dos egípcios:

189 II, 39, 58, grifos nossos.

82
Porque assim como os egípcios não apenas tinham
ídolos e cargas pesadíssimas, das quais fugia e
detestava o povo de Israel, mas também vasos, aljavas
de ouro e de prata e vestes que o povo escolhido, ao
sair do Egito, levou consigo ocultamente para dar-lhes
melhor uso – mas não por autoridade própria, e sim por
ordem de Deus (...); assim também, todas as ciências
dos gentios não apenas contêm fábulas [figmenta]
fingidas [simulata] e supersticiosas, (...) mas também
(...) as ciências liberais, muito aptas para o uso da
verdade, e certos preceitos morais utilíssimos;
encontram-se até entre elas algumas verdades a
respeito do culto do único Deus. Tudo isso é como o
ouro e a prata deles, mas que não instituíram eles
mesmos; antes, extraíram-na de certas minas da divina
Providência (...).190

Westra vê, nesse ponto, “Agostinho em seu momento mais liberal,

desejoso de salvar da cultura pagã, inclusive de sua literatura, tudo aquilo

que ela possuía em termos de utilitas”;191 outros já o haviam feito antes: o

próprio bispo menciona Cipriano, Lactâncio, Vitorino, Optato e Hilário. 192 Chin

acredita que essa utilitas é estabelecida em relação à hermenêutica; segundo

ela, a

ideia de compilar “fontes” de conhecimentos passíveis


de serem aplicados às Escrituras sugere o
deslocamento e a recontextualização completa do
conhecimento: Agostinho, a exemplo de seus

190 II, 40, 60.


191 Op. cit., p. 19.
192 II, 40, 61.

83
gramáticos contemporâneos, está interessado em
mudar a significação de signos pré-existentes ao
removê-los “literalmente” de seus contextos simbólicos
de significação.

E continua: “O tractatio scripturarum, seguindo esse método de

leitura, é apenas outro tipo de pilhagem; e o estilo de pilhagem de Agostinho

é aquele do gramático da antiguidade tardia.”193

Quisemos sublinhar que em Agostinho essa utilidade talvez se

refira a algo mais amplo – ou ao menos que há indícios de que ele pode não

se ater, na digressão do livro segundo, apenas aos preceitos hermenêuticos.

Subjaz a ela toda a distinção entre uti e frui que o santo apresentara no Livro

I; e, do mesmo modo como esta distinção dizia respeito ao uso e à fruição

das coisas, também sua aplicação ao conhecimento secular pode importar à

peregrinação da alma até seu destino final – sua pátria.

II. 3. Estética cristã

Quando, três décadas depois, Agostinho se põe a redigir o quarto

e último livro do De doctrina christiana, precisa ainda resolver-se quanto à

aplicação de certa prática pagã aos propósitos cristãos. Trata-se agora,

contudo, do âmbito da eloquência, da exposição do que fora assimilado da

doctrina.

Com efeito, a faculdade do bem falar é uma arte média, capaz do

bem e do mal; e, se pode ser empregada à comunicação da virtude, não se

193 Catherine M. Chin, “The Grammarian’s Spoils: De doctrina christiana and the Contexts of
Literary Education”, p. 176.

84
deve deixá-la apenas a cargo dos mentirosos, que muito bem sabem se valer

dos adornos, da clareza, de argumentos falsos, da verossimilhança etc. 194

Sim, o orador a expor a ciência das Escrituras deve

ensinar o bem e desensinar o mal, conciliar os


contrários, motivar o tíbio e, aos néscios, expressar do
que se trata e o que devem esperar. Tendo feito ou
encontrado benévolos, atentos e dóceis seus ouvintes,
haverá de levar a cabo o assunto segundo pede-lhe a
causa. Caso os ouvintes que o escutam devam ser
instruídos, deve proceder por meio da exposição, a fim
de dar a conhecer o assunto de que se trata. Todavia,
para que o duvidoso chegue à certeza, deverá o orador
aduzir provas. Caso os ouvintes devam ser antes
estimulados do que instruídos, no intuito de que não
sejam negligentes no cumprimento do que já sabem e
de que deem assentimento às coisas que confessam
verdadeiras, então serão necessários maiores arroubos
de eloquência.195

A tripartição que já se entrevê acima é retomada adiante e vem do

De oratore de Cícero. “Ensinar é da necessidade; deleitar, da amenidade; o

mover, da vitória”: ensinar, deleitar e mover, eis os deveres possíveis do

orador tal qual apregoados no seio da retórica antiga. No entanto, já se

vislumbra aqui o tipo de desenvolvimento que faria Baldwin 196 exclamar que

Agostinho “começa a retórica do zero” e Auerbach, 197 que provoca ele um

194 De doctrina christiana, IV, 2, 3.


195 IV, 4, 6.
196 Medieval Rhetoric and Poetic (to 1400), p. 51.
197 “Sermo humilis”, in Ensaios de literatura ocidental, p. 40.

85
“desvio tão marcante da tradição retórica e literária que chega quase a

destruir seus fundamentos”.

À tradição, sabe-se, fora de fundamental importância a harmonia

entre tema, modo e o objetivo da elocução; vem o próprio bispo, aqui, a

recordá-lo: “(...) ao que parece, quis o mesmo orador da romana eloquência

referir-lhe quando, no mesmo local, declarou: ‘Será eloquente o que puder

dizer as coisas pequenas com simplicidade, as coisas medianas com

moderação e as coisas grandes com sublimidade.’”198 E, à correspondência

entre modo e matéria, associar-se-ia o propósito retórico: “(...) será eloquente

o que, para ensinar, puder dizer as coisas pequenas com simplicidade; para

deleitar, as medianas com moderação; e, para mover, as grandes com

grandiloquência.”199

Nada mais monstruoso, portanto, que dar a temas elevados um

estilo baixo, por exemplo, ou a temas corriqueiros um tratamento sublime.

Inescapável como era, no entanto, o modelo clássico deveria impor ao

pregador sua dificuldade: como transferi-lo à realidade retórica cristã quando

não há, na exposição das Escrituras sagradas, tema que se possa dizer

baixo ou corriqueiro, quando tudo remete à saúde eterna? 200 Inexistem, de

fato, graus absolutos entre os objetos. A solução agostiniana é precisamente

o que impõe, à retórica clássica, a transformação fundamental que a fizeram

caracterizar como começo novo da retórica e desvio marcante: com

Agostinho, o parâmetro a guiar o emprego de cada estilo passa a ser, em

lugar da matéria da elocução, o propósito do orador e suas circunstâncias.

198 De doctrina christiana, IV, 17, 34. O romano em questão é Cícero, mais uma vez.
199 Ibid., id.
200 Cf. IV, 18, 35.

86
“Deus é grande sempre”, diz Agostinho. Não poderia, contudo, ser matéria de

instrução, recebendo portanto, de quem se expressa, estilo simples, baixo,

expositivo?201 Assim,

não obstante deva dizer coisas grandes, nem


sempre há de dizê-las em estilo elevado; para instruir,
valer-se-á do estilo plano; para louvar ou censurar, do
moderado; ao tratar de algo que deve ser feito, no caso
de falarmos com quem deve e se nega a fazê-lo, as
coisas grandes devem ser ditas em estilo sublime, que
sirva para dobrar os ânimos.

O critério, nota-se, vem da eficácia, e não de uma concordância de

dignidade entre forma de expressão e objeto do enunciado. Ademais, o bispo

sabe os riscos da ênfase clássica na persuasão – e, por conseguinte, no uso

do estilo sublime – como objetivo fundamental da retórica, em detrimento da

instrução e do deleite. 202 No entanto, o fórum do orador cristão não é o

tribunal, e portanto exige prática distinta: numa inversão de propósitos, o fim

determinante do orador cristão deve ser instruir. Com efeito, ninguém pode

ser persuadido a determinado assentimento ou ação se ignorante daquilo de

que se trata.

É manifesto que os estilos médio e sublime terão suas respectivas

funções no caso de a articulação da verdade não bastar para os propósitos

do orador e ser ainda necessário enaltecer ou apregoar o que se ensina.

Entretanto, a elevação da instrução – da enunciação da verdade – ao

patamar de objetivo fundamental do orador acaba por também reabilitar a

201 IV, 20, 38.


202 Cf. Harrison, op. cit., p. 218.

87
retórica aos olhos dos filósofos, que jamais cessaram de criticar a arte da

eloquência pela prática, legada a Agostinho pela segunda sofística 203 (ele

fora, ademais, rhetor de destaque!), de prejudicar a expressão da verdade

em benefício dos floreios e deleites verbais, tomados como eram na condição

de fim em si. O cristão deverá prezar pela clareza e inteligibilidade, e de tal

modo que convir-lhe-á substituir qualquer palavra obscura ou ambígua por

outra compreensível, não obstante se trate de vulgarismo. 204 O cristianismo,

portanto, poderia muito bem reivindicar, para si, o posto de “verdadeira

retórica filosófica”.205

Sob essa perspectiva, a Harrison deve ser dada razão: com

Agostinho, formaliza-se enfim uma “estética cristã”, uma “nova cultura

literária”, na qual “a retórica ocupa posição central tanto quanto na cultura

clássica, mas (...) é transformada de prática cujo objetivo primeiro é agradar e

persuadir em prática que deseja inspirar o amor e o exercício da verdade”. 206

A dinâmica da vontade e do deleite o explica: a vontade não se sentirá

motivada a algo se não houver o que a atraia, isto é, o que lhe propicie

deleite. “Meu amor, meu peso”,207 diz a famosa expressão do santo; somos

arrastados àquilo que escolhemos amar, e só podemos escolher o que nos

atrai porque belo.208 O orador cristão, por conseguinte, deve ser instrumento

divino que almeja apresentar a verdade, a qual tem o fulgor da beleza e,

como tal, move a vontade: “A vontade mesma não terá motivação a menos

203 Cf. Baldwin, op. cit.


204 Cf. De doctrina christiana, IV, 8, 22; e IV, 10, 24.
205 Harrison, op. cit., p. 219.
206 Ibid., p. 221.
207 Confessiones, XIII, 9, 10.
208 Cf. O’Connell, Robert J., Imagination and Metaphysics in St. Augustine, p. 9.

88
que algo se apresente para deleitar e instigar o espírito.”209 O uso dos floreios

retóricos e dos arroubos de expressão, portanto, deve ter como fim a

potencialização da verdade. As técnicas retóricas devem torná-la mais digna

do amor, isto é, de uma adesão livre do arbítrio. Eis porque Agostinho se

esforça também, no livro quarto do De doctrina christiana, por defender as

Escrituras das acusações de que lhes careceria eloquência: sua beleza vem

da inspiração por Deus nos autores sacros, que jamais procuraram o floreio

retórico como fim em si. Harrison assim o resume: 210 “Há uma espécie de

círculo hermenêutico aqui: o amor é o princípio hermenêutico das Escrituras;

o deleite é o que inspira o amor; a beleza é o que inspira o deleite; a verdade

é o que inspira beleza; e é a verdade o que o homem ama.”

Não surpreende, portanto, que seja esse o modelo a ser seguido

pelo orador cristão. Qual a forma literária das Sagradas Escrituras, a

capacidade artística do orador deve se valer dos meios retóricos a fim de

apontar para além dela, isto é, para a verdade que é sua fonte e fim: o

próprio Deus. Quem, ao ler as Confessiones, não verá Agostinho colocando

em prática, em seu mais alto grau e desde a primeira linha, essa estética

nova, a destreza verbal como meio de condução a Deus?

209 Harrison, op. cit., p. 222.


210 Ibid., p. 223.

89
III.

As Confessiones

“Colombo de um novo continente”: 211 eis como qualificará o

Agostinho das Confessiones o crítico literário que mede a obra magna do

santo segundo os parâmetros da literatura ocidental. De fato, cega-nos em

maior ou menor grau que as Confessiones tenham se tornado de tal maneira

um clássico que, parte já de nossa bagagem comum, acaba por ser julgada à

luz de parâmetros puramente contemporâneos.212

Deve-se, entretanto, corrigir o crítico: Agostinho é verdadeiramente

um Colombo, mas não um Colombo que desbrava um só continente; suas

descobertas são de terras muitas e variadas, das mais distintas geografias.

Já se assinalou como não possuímos obra com estrutura paralela à das

Confessiones e como cada um de seus elementos subverte nossas

expectativas;213 também já se disse que Agostinho foi o primeiro a perceber a

real plenitude da vida interior, reconhecendo na variedade de processos

mentais não somente “elementos de um anseio sistemático por um objetivo

religioso”, mas sobretudo objetos de interesse filosófico e reflexão objetiva.214

Trata-se de um caminho novo, que se afasta daquele itinerário passado que

encontramos não somente no pensamento antigo, mas também nas

primeiras obras do Agostinho cristão – nas de Cassicíaco, sobretudo: o

caminho “objetivo” que caracterizava a filosofia antiga, no qual se falava de

211 Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental, vol I. , p. 138.


212 Cf. Brown, op. cit., p. 202.
213 Cf. Philip Burton, “Alternative Comedy: the Language of the Theatre”, in Language in the
Confessions of Augustine, p. 36.
214 Georg Misch, A History of Autobiography in Antiquity, vol. II, p. 635.

90
Deus em terceira pessoa e o conhecimento de si e do Criador consistia num

conhecimento sobre a origem e a natureza da alma, dá agora lugar a um

método subjetivo desde a vital relação de um “eu” e um “Tu”.215 Ao mesmo

tempo, como bom retórico, Agostinho não deixa de ser “o mesmo artista

filosófico” 216 que os velhos Platão e Plotino, não obstante suas censuras à

arte da eloquência. Sua obra, diria certo especialista, é, “desde suas notas

iniciais (...), uma sinfonia”, com sonoridades que inflam, diminuem, oscilam e

ecoam...217 Dirá o biógrafo que os “antigos leitores não deixariam de notar

que esse ex-professor de retórica, alguém que descreveu sua conversão

como uma renúncia à secularidade da eloquência vazia, jamais compôs

prosa tão bela quanto aquela”. 218 De fato, “um homem do baixo império

romano que abrisse pela primeira vez seu exemplar das Confessiones

haveria de julgá-las um livro espantoso: as formas tradicionais de expressão

literária tidas por ele como presumíveis se introduziram no livro, mas

transformadas a ponto de se tornarem irreconhecíveis”. 219

III. 1. Infância de um e de todos

No entanto, para além de quaisquer continentes históricos, culturais

ou estilísticos, foi preciso que Agostinho começasse a partir de um terreno

muito mais próximo: sua própria alma, sua própria biografia. Com efeito, os

dez primeiros livros das Confessiones dão, em grande parte, expressão

215 Ibid., p. 629.


216 Robert J. O’Connell, Soundings in St. Augustine’s Imagination, p. 02.
217 Robert J. O’Connell, Art and Christian Intelligence in St. Augustine, p. 91.
218 Brown, op. cit., p. 93.
219 Ibid., p. 202.

91
artística ao itinerário de sua alma até e após a conversão. Trata-se de um

Agostinho que olha para a própria vida com os olhos da fé e uma nova

sensibilidade para a graça. Sua obra magna é “o ápice para o qual seus

escritos anteriores são como montanhas ascendentes”, diz Chadwick 220 – e

com razão. E a obra alça voo mais alto porque a percepção da ação divina

fá-lo se dirigir a Deus “em adoração e união mística”.221 A estética cristã, cuja

teoria já se vislumbrava no De doctrina christiana, alcança aqui seu ponto

mais elevado, unindo a arte do ex-retórico à força de um espírito sensível ao

que é do céu. Qualquer coisa abaixo disso parece imediatamente incapaz de

explicar o fascínio exercido pelas Confessiones, e portanto devem soar

ridículas as insinuações de Brown segundo as quais a obra teria sido

motivada por um ato de “terapia”: o Agostinho que chegava à meia-idade

viveria, por essa razão mesma, momento oportuno para a redação de um

texto autobiográfico.222

Como explicar, no entanto, que um texto cujo horizonte está na

alma e história de um só homem sobreviva por séculos a fio com intensidade

sempre renovada? Dizer que seu vigor advém dos problemas filosóficos que

levanta é reduzi-lo: Agostinho faz mais. Já na oração que abre sua obra e

que tornar-se-ia “modelo para as autobiografias espirituais”223 do futuro está

claro que a alma agostiniana, marcada como é por toda sorte de paixões, é

também a alma de cada um de nós. Também nós experimentamos o coração

inquieto de quem ainda não encontrou o termo de sua peregrinação, o anseio

220 Augustine of Hippo: A Life, p. 90.


221 Ibid., id.
222 Op. cit, pp. 200, 202.
223 Misch, op. cit., p. 646.

92
pela totalidade, a distância que nos separa do Criador. Se, qual nos épicos, o

que abre as Confessiones resume toda a história do autor e suas intenções,

resume também a condição de nossa vida terrestre.

A universalidade que subjaz ao trajeto de Agostinho se materializa,

antes de mais nada, na impessoalidade da narrativa de sua infância. De fato,

não encontraremos ali qualquer determinação temporal ou espacial; não há

data ou local de nascimento, não há grandes circunstâncias definidas; nesse

aspecto, quem trata as Confessiones como autobiografia se encontrará em

apuros. As informações dos primeiros anos de Agostinho no mundo não

apenas se fundamentam exclusivamente nos relatos de outras pessoas;

trata-se também das realidades mais elementares dos primeiros anos de

cada um de nós: “Que tenciono dizer-te, Senhor, senão que desconheço

desde onde cheguei aqui, nesta vida mortal ou, antes, nesta morte vital? Não

o sei. Todavia, receberam-me os consolos de tua misericórdia, segundo

meus pais carnais; de um me tiraste e da outra me formaste no tempo. De

nada recordo-me.”224

Causaria espanto, não há dúvidas, que um retórico experiente como

Agostinho empregasse algo tão relevante sem nenhum fundamento. É

evidente que uma narrativa sem as particularidades de seu berço e seus

primeiros anos oferece aquilo de que o bispo necessitava para lograr o que

trazia em mente. Todos os indícios que lhe serão úteis são expostos, a

começar pelo ato mais basilar da vida do bebê:

224 Confessiones, I, 6, 7.

93
Receberam-me, digo, os consolos do leite humano,
do qual nem minha mãe, nem minhas amas, enchiam
seus seios; antes, eras Tu quem, por meio delas, dava-
me o alimento da infância, segundo tua ordem e os
tesouros que dispuseste no mais profundo das coisas.
Também eras tu quem me levava a não desejar mais do
que me davas e minhas amas a não desejarem dar-me
mais do lhes concedias, uma vez ser ordenado o afeto
com que queriam dar-me aquilo em que, por Ti,
abundavam.225

É de tal modo natural a cena descrita, de tal modo corriqueira, que

demoramos a entender a relevância e o espanto que Agostinho lhe dedica. O

contraste, porém, da harmonia que a cena evoca com o restante do livro

deixa evidente que a importância da passagem acima está na demonstração

de que, após o nascimento, a criança responde a uma ordem natural

perfeitamente disposta segundo a lei divina. Caso sentisse fome, estava lá a

mãe de Agostinho dando-lhe o peito, oferecendo-lhe um leite que era

produzido exatamente quando passava a ser necessário. O recém-nascido

apenas se encaixava numa dinâmica harmônica, perfeita e positiva, sendo

satisfeito tão logo uma exigência surgia. O bebê “acrescenta sua própria nota

à harmonia universal apenas ao cumprir suas finalidades particulares, as

quais não podem se opor ao bem do todo porque são informadas por ele”. 226

Tudo recende a paz, a concórdia.

Todavia, o que se disse sobre o bebê poderia muito bem ser dito

de qualquer animal. Por outro lado, uma pequena nota, que poderia muito

225 Ibid., id.


226 Colin Starnes, Augustine’s Conversion: A Guide to the Argument of Confessions I-IX, p. 03.

94
bem passar despercebida, começa a diferenciar aquele serzinho das outras

criaturas: “Depois, comecei também a rir – primeiro, dormindo; logo depois,

desperto.”227 Sabe-se que só o homem é capaz do riso; e, se o bebê ri, já se

diferencia dos que não têm as características racionais humanas. A

diferenciação, é claro, tem de ir além – e vai:

Pouco a pouco, comecei a me dar conta de onde


estava e a querer expressar meus desejos a quem os
poderia satisfazer, mas nada disso conseguia, pois
aqueles estavam dentro e estes, fora, e de modo algum
poderiam penetrar em minha alma. Assim, agitava-me e
gritava, dando sinais semelhantes aos meus desejos, os
poucos que podia e da maneira que podia, embora na
realidade não lhes fossem parecidos. Se, porém, não
era atendido – fosse porque não me entendessem,
fosse porque tratava-se de algo daninho –, indignava-
me.228

O que desejava o pequeno Agostinho, no fundo, era que os mais

velhos o obedecessem, que os livres lhe servissem como escravos; como

vingança a não ser atendido, chorava. 229 Também era choro o que lhe

causava a avidez pelo seio da mãe – um desejo que, se replicasse hoje ante

os alimentos dos adultos, soaria inteiramente repreensível. 230 Agostinho sabe

também que, passados alguns meses, a criança demonstra desejos que a

ordem natural não poderia explicar, desejos por coisas que lhe seriam

227 I, 6, 8.
228 I, 6, 9.
229 Cf. ibid. id.
230 Cf. I, 7, 11.

95
prejudiciais e que merecem a reprimenda de pais e amas. É possível

observar o bebê que, mesmo sem ainda falar, sente inveja do irmão de leite

mesmo tendo, para si, uma fonte de alimento que bastaria para saciá-lo. Ao

contrário dos outros animais, há no homem paixões que estão além daquelas

suscitadas pelas necessidades de seus corpos – em certa medida, portanto,

está ele fora da ordem natural e não é ordenado a seu fim. Sua inocência,

isto é, sua falta de nocividade (in-nocens), encontra-se antes na fragilidade

física do que na alma.231

Não surpreenderá, à luz da importância que se dava à retórica na

Antiguidade romana, que Agostinho dê primazia à aquisição da linguagem e

das letras ao tratar de seu desenvolvimento da infância à meninice. Em I, 8,

13, lemos que, não sendo mais infans, incapaz de falar, tornou-se menino, e

menino conversador: “Disto me lembro”, diz. Junto, portanto, da aquisição da

linguagem, a meninice se aproxima com a capacidade da memorização:

doravante, a vida narrada ali é sua em maior grau do que os fatos de sua

primeira infância.

Todavia, mesmo esse novo momento do menino Agostinho pode

tomar a dimensão universal que o santo deseja para as Confessiones.

Primeiro, porque ainda se trata de um marco que diz respeito a todas as

crianças; segundo, porque ainda mantém relação com a ordem natural a que

cada um, em certo grau, responde. Eis o bispo:

Mas, de como aprendi a falar, só viria a tomar


conhecimento depois. Decerto não mo ensinaram os
adultos, apresentando-me as palavras com certo

231 Cf. Ibid., id.

96
método ordenado, qual no futuro me ensinariam as
letras. Fora antes eu mesmo, com o entendimento que
Tu me deste, meu Deus, e ao querer manifestar meus
sentimentos com gemidos, vozes e muitos movimentos
de meus membros, no intuito de que fossem satisfeitos
meus desejos (...). Por conseguinte, quando davam
nome a algo, fixava-o eu na memória; e, se ao
pronunciarem mais uma vez tal palavra, moviam-se na
direção do objeto, entendia eu e lembrava que tal objeto
era denominado pela palavra pronunciada (...). Portanto,
das palavras, colocadas em várias frases e em seus
lugares, bem como ouvidas repetidas vezes, ia eu
entendendo aos poucos os objetos que significavam; e,
transposta a dificuldade de minha língua, comecei a dar
a entender meus desejos mediante elas.232

Comparemos o infante ao menino: o quão necessária seria a

linguagem ao primeiro? A mãe e as amas reconheceriam suas exigências

apenas pelo choro – saberiam quando estava com fome pois os seios

maternos se enchiam, saberiam se sentia dor. O bebê só deseja e quer evitar

o que apreendem os sentidos.233 Quando, porém, é preciso expressar algo

que se relacione à apreensão racional do mundo, as velhas artimanhas já

não bastam. Há, no bebê, uma capacidade implícita ao animal racional que

se vai desenvolvendo como consequência natural de suas aptidões. “A

linguagem transforma os particulares do mundo sensível em palavras e,

assim, dá-lhes forma racional adequada à razão.” 234 Noutros termos, “a

criança adquire uma identidade fora e além do sensível”, isto é, ela “chega a

232 I, 8, 13.
233 Cf. Starnes, op. cit., p. 09.
234 Ibid., p. 10.

97
uma autoconsciência racional”, o que “lhe dá certa liberdade com relação ao

mundo natural e um domínio correspondente sobre ele, uma vez que pode

dispor da natureza para que se adeque a seus desejos racionais”.

Dá-se, em suma, um afastamento mais completo da ordem

natural, da ordem do instinto. E, porque a ordem racional lhe pode ser agora

comunicada, o menino é inserido na vida social, que por ela se pauta.

“Comecei assim a empregar, aos que me cercavam, os sinais que

comunicavam meus desejos”, diz Agostinho, “e destarte adentrei o proceloso

mar da sociedade, submisso à autoridade de meus pais e dos mais

velhos”.235 Teve, portanto, de passar aos estudos das primeiras letras, a fim

de granjear as honras e glórias que dela se prometiam e que formavam o

sumo objetivo da educação. Fora do âmbito meramente racional, a sociedade

deve usar de valores que não estão de todo controlados pela natureza: ela

exige que criemos e mantenhamos nossa própria ordem e valores, e a estes

Agostinho deveria se submeter. Preferindo a preguiça e os prazeres aos

estudos – como também os adultos os preferiam muitas vezes às obrigações

–, era “castigado à vara”.236 O menino se reunia com os amigos para brincar,

refugiava-se nos espetáculos teatrais – buscava, como pôde dizer Starnes,237

“uma comunidade natural” que fugisse aos bens universais a que a escola

servia. Em retrospecto, portanto, podia afirmar que pecava238 ao agir contra

seus pais e mestres: traía os conhecimentos de uma ordem racional superior,

235 Confessiones, I, 8, 13.


236 I, 9, 14.
237 Op. cit., p. 12.
238 Cf. Confessiones, I, 9, 10.

98
de que “poderia no futuro fazer bom uso”:239 “Suas capacidades racionais

eram tanto um bem quanto sua existência e sua vida, e os três se deviam à

ordem divina, pois ele mesmo não fizera nenhuma. Ele já assinalou que não

carecia nem de memória, nem de inteligência”, e portanto “prejudicar ou

impedir o desenvolvimento adequado dessas capacidades ao fugir da escola

não era mais inocente do que quando, ainda infante, almejava coisas que

prejudicariam seu corpo”.240 Se antes pecava Agostinho ao perverter a ordem

natural desejando o que era concebido por sua natureza racional, fazia agora

o inverso: pervertia a ordem racional desejando certos prazeres de uma

existência puramente natural.

III. 2. Fornicatio est abs te

Todavia, eis que, se porventura eram-lhe custosas as lições pelas

quais deveria aprender a ler e a escrever, bem como o estudo da língua

grega, davam-lhe deleite a literatura e a oratória, sobretudo, como sabemos,

na forma das andanças de Eneias; 241 eram a antítese ideal do caráter

aborrecido e árido dos estudos elementares. O trecho deve ser reproduzido

por inteiro: trata-se, com efeito, daqueles dois ou três que em geral forjam o

que se costuma dizer da relação entre o santo e o que se entende hoje por

literatura. Suas consequências são muitas e se intercalam:

239 Ibid., id.


240 Starnes, op. cit., p. 12.
241 Cf. Confessiones, I, 13, 21.

99
Qual a causa de odiar eu as letras gregas em que
me imbuíam quando menino, desconheço. As latinas,
adorava, mas não as que ensinavam os primeiros
mestres, e sim as lecionadas pelos que se denominam
gramáticos. Com efeito, aquelas primeiras, em que se
aprende a ler, escrever e contar, não me foram menos
pesadas e repulsivas do que as gregas. Mas donde
poderia vir isso senão do pecado e da vaidade de vida,
sendo eu carne e vento que caminha e não volta?
Pois decerto as primeiras letras, mediante as quais
poderia chegar, como de fato o posso hoje, tanto a ler o
que há escrito quanto escrever o que desejo, eram
melhores, porque mais úteis, àquelas outras em que me
via obrigado a conservar os errores de um tal Eneias,
esquecendo-me porém dos meus, e a chorar a morte de
Dido, que se suicidara por amores, enquanto eu,
miserabilíssimo, sofria com olhos enxutos e morria para
ti, meu Deus, minha vida!
Que há, com efeito, que seja mais miserável do que
um miserável não ter misericórdia de si enquanto,
chorando a morte de Dido, pelo amor de Eneias
causada, não chora a morte que vem por não amar-te,
Deus meu, luz do meu coração, pão interior de
minh’alma, virtude fecundante da minha mente e seio
amoroso de meu pensamento? Não te amava e
fornicava longe de ti, e fornicando ouvia de todas as
partes: “Bravo! Bravo!”, uma vez que a amizade deste
mundo é adultério contra ti (...). E, não chorando por
isto, chorava Dido morta, que “buscou sua hora
derradeira no ferro”. Abandonava-te; era terra e tendia
para a terra, e a tal ponto que, se me proibissem ler tais
coisas, causar-me-iam dor por não me permitirem ler o
que queria. Não obstante, uma demência tal é tida por

100
coisa mais nobre e proveitosa que as letras pelas quais
se aprende a ler e escrever.
Mas agora, Deus meu, brade em minh’alma tua
verdade e diga: não é assim, não é assim; antes,
aqueles primeiros estudos são absolutamente melhores,
uma vez que eu preferiria esquecer todas as aventuras
de Eneias, bem como as demais fábulas do gênero, do
que não saber ler e escrever. Bem sei que, da porta das
escolas dos gramáticos, pendem certos véus ou
cortinas, mas não servem eles tanto para velar o
segredo quanto para encobrir o erro.
(...) Não clamem contra mim os comerciantes de
gramática, pois se lhes pergunto se é verdade que
Eneias chegara um dia, como diz o poeta, a Cartago, os
néscios me dirão não saber e os entendidos, que é
falso. Se lhes pergunto, porém, com que letras se
escreve o nome de Eneias, todos os que as estudaram
me responderão o mesmo, segundo o acordo e a
conveniência pelos quais os homens estabeleceram tais
signos entre si.
De igual maneira, se lhes perguntarem o que seria
mais daninho à vida humana: esquecer-se de como se
lê e escreve ou esquecer-se de todas as ficções dos
poetas, ninguém ignora o que responderiam aqueles
que não perderam de todo o juízo. Logo, Deus meu,
pecava eu naquela idade ao antepor o que era vão ao
que era proveitoso, movido tão somente pelo gosto. Ou
melhor: ao amar aquelas coisas e odiar estas, pois
repugnava-me a mim aquele “um mais um são dois,
dois e dois são quatro” que entoávamos, ao passo que
era-me espetáculo dulcíssimo o relato do cavalo de
madeira repleto de gente armada, bem como o incêndio
de Troia e “sombra de Creúsa”.

101
A concomitância da elaboração da Doctrina christiana e das

Confessiones não nos permitirá estranhar o primeiro movimento que faz o

santo nesta que é a primeira crítica, na sua obra magna, às belezas que lhe

eram apresentadas em seus primeiros estudos. Explica-o o que O’Connell diz

ser “o pano de fundo antropológico contra o qual quase todas as observações

de Agostinho sobre a função e o valor da arte se tornam imediatamente

compreensíveis”; 242 na Doctrina christiana, vimos nós, esse pano de fundo

engendra a distinção entre uti e frui: sendo Deus o sumo e único bem de que

se deve fruir, exige, portanto, que tudo o mais seja empregado em vista

desse fim. Não é de surpreender, portanto, que a escrita e a leitura sejam

mais úteis do que as ficções de Virgílio.

Busquemos outra chave na mesma Doctrina christiana: Agostinho

já anunciara – e o citamos – que há instituições humanas “úteis e

necessárias, estabelecidas de mútuo acordo”; entre elas, “todos os

inumeráveis gêneros de signos, sem os quais ou não haveria em absoluto, ou

seria menos cômoda, a sociedade humana”. 243 São, todos eles,

“convenientes para as necessidades da vida” e “jamais deve evitá-l[os] o

cristão; antes, enquanto lhe seja necessário, deve dedicar-se a seu estudo e

aprendê-l[o]s de cor”.244

A voz do bispo de Hipona – voz a retificar aquela da puerícia, que

subjaz à narrativa das Confessiones – tanto o sabe que emprega utilmente

suas capacidades de escrita e leitura. Desse modo, pode auxiliar a si e ao

próximo a despertarem para o estado fundamentalmente deslocado de suas

242 Art and Christian Intelligence in St. Augustine, p. 113.


243 De doctrina christiana, II, 25, 39. Veja-se capítulo anterior.
244 Ibid., II, 25, 40.

102
respectivas almas neste mundo. E é precisamente o contrário disso, sugere

Agostinho, o que realizam as ficções poéticas.

Basta que se recorde, uma vez mais, a Doctrina christiana: se há

as instituições convencionais úteis, há também as supérfluas, entre as quais

contam-se as pinturas, as estátuas e “as mil fábulas falsas e fictícias com

cujas mentiras se deleitam os homens”.245 Eneias, aqui, é a materialização do

conceito: “Seguir o caminho de Eneias em suas viagens míticas tende a fazer

a alma esquecer sua real situação de peregrina.”246 Eis, portanto, um desvio:

não basta, segundo Agostinho, para suprimir as necessidades da vida nem

para auxiliar o homem naquilo a que a própria satisfação das necessidades

vitais deve se voltar: o gozo em Deus. Trata-se de ato que se encerra neste

mundo; portanto, uma “fornicação” contra Ele, a Quem se antepunha o que

era “vão”.247

Todavia, não servirão as primeiras letras, os elementos linguísticos

fundamentais, apenas como o ponto em oposição ao qual se pode salientar o

caráter supérfluo dessa literatura; antes, representam a veracidade e a

certeza em contraposição ao caráter fictício das “aventuras de Eneias” e

“demais fábulas do gênero”. Agostinho – e pior: o sistema educacional a que

era obrigado a se submeter – privilegiavam a falsidade em detrimento da

veracidade ao dedicar-se mais à vida de Eneias e Dido do que à sua.

245 Ibid., II, 20, 39.


246 Robert O’Connell, op. cit., p. 113.
247 Diz Starnes (op. cit., p. 16): “Na linguagem de Agostinho, a expressão fornicatio abs te
sempre significa virar as costas para Deus e perder-se na natureza. À época, ele o fazia ao ignorar
o que a razão lhe pedia, contentando-se apenas em usá-la para deleites irracionais, naturais,
como aqueles encontrados na literatura. Ele os almejava (...) enquanto evitava as exigências
realíssimas da ordem racional a que sua razão pertencia.”

103
Miller 248 nota que a perspectiva do Agostinho maduro torna-o

“capaz de identificar a qualidade da ‘ficção’ e sua verdade relativa, de

distinguir histórias verdadeiras de histórias fictícias”, e de tal sorte que, “de

sua juventude, Agostinho conserva apenas a certeza dos elementos

linguísticos, os fundamentos de uma realidade narrativa”: “A tradição clássica

da narrativa e a alegria engendrada pela leitura de seus produtos são

desvalorizadas”, continua, “por serem uma espécie de insanidade [insania]”,

ao mesmo tempo que “Agostinho afirma seu compromisso, num nível mais

elementar, com a veracidade da linguagem, com a certeza das letras e

palavras anteriores a seu emprego e às unidades mais longas de

discurso”.249

Deve-se reconhecer, todavia, que o esforço por fazê-lo é

demonstração de que há profunda semelhança formal entre verdade e ficção.

Aqui, Agostinho nada mais faz do que recordar algo que, vimos, 250 já

articulara nos Soliloquia anos antes: o enunciado falso imita o veraz, mas é

verdadeiro como enunciado tanto quanto o ator trágico é verdadeiro ator

trágico ao ser, porém, falso Príamo. Não se trata nas Confessiones, portanto,

de rejeitar os meios de representação em prol de uma veracidade platônica

das Ideias, mas de isolar “o caráter fictício das narrativas da certeza que vem

dos elementos linguísticos”.251

De todo modo, ao Agostinho da meninice pouco importaria

qualquer distinção entre veracidade e falsidade: esquecia-se de si e

248 “St. Augustine, the Narrative Self, and the Invention of Fiction”, p. 55.
249 Ibid., p. 58.
250 Cf. Capítulo 01.
251 Miller, op. cit., p. 58.

104
importava-se mais com a vida de “um tal Eneias” e Dido do que com a sua –

e de tal maneira que vinha a confundir consigo a vida emocional de ambos. O

motivo para tanto deve ser levantado: relação natural entre um garoto e os

dois personagens entoados pelo poeta não há. Ao mesmo tempo, vemos que

chorara ele a morte de Dido, “a qual se suicidara por amores”.

A chave, o próprio Agostinho maduro nos oferece – está na morte

mesma, pois tanto a rainha ficcional quanto o jovem leitor se encontravam

mortos: “a chorar a morte de Dido (...) enquanto eu, miserabilíssimo, sofria

com olhos enxutos e morria para ti”; e também: “um miserável (...) chorando a

morte de Dido (...) não chora a morte que vem por não amar-te, Deus meu

(...)”. Há, na condição mesma daquele rapaz – na condição mesma da

humanidade? –, algo que o unia à rainha abandonada, certo anseio por um

objeto amoroso de que se via privado. Agostinho não poderia sabê-lo quando

estudante. Era miserável e tinha misericórdia de Dido, mas não de si mesmo,

que se afastava da “luz do [s]eu coração” sob o aplauso de seus mestres.

Qual Eneias, tinha também seus próprios errores. As reações do menino, por

conseguinte, “se destinavam à veracidade do retrato virgiliano da saudade

amorosa e das peregrinações”,252 isto é, àquilo que os figmenta continham e

contêm de verdadeiro.

Pegamo-nos, uma vez mais, na esfera do que discutira Agostinho

e sua razão nos Soliloquia e daquilo que assaltara Licêncio no De ordine:

aquele emaranhado de verdade e ficcionalidade característico do tipo de

literatura que cá nos interessa. O Agostinho das Confessiones é leitor já

formado, tem o olhar que a graça lhe conferira: é, a seu ver, evidente que o
252 Camille Bennett, “The Conversion of Vergil: The Aeneid in Augustine’s Confessions”, p.
56.

105
menino que um dia havia carecido do esclarecimento necessário para

identificar o que havia de verdadeiro em suas leituras. Ele chorava por si

mesmo, distante de Deus, ao chorar por Dido; mas também chorava por Dido

como Eneias e, assim, “sem querer reconhecia não ser o abandonado, mas o

abandonador, cujos errores para longe de seu Amor o levavam”.253

O bispo Agostinho, olhando para um trecho de sua biografia de

que não se recordava, mas cuja universalidade era-lhe evidente, identificara

o momento em que tivera de adequar seus desejos aos signos convencionais

da linguagem – os signa data do De doctrina christiana – a fim de se fazer

capaz de expressá-los: “Portanto, das palavras, colocadas em várias frases e

em seus lugares (...), ia eu entendendo aos poucos os objetos que

significavam; e, transposta a dificuldade de minha língua, comecei a dar a

entender meus desejos mediante elas.” 254 As convenções linguísticas, por

conseguinte, são tão necessárias a uma expressão mais precisa do desejo

quanto o remodelam. Desloquemos o modelo ao plano das ficções literárias e

chegaremos à conclusão, já por Bennett enunciada,255 de que é desastrosa a

“incapacidade do leitor de diferenciar verdade e falsidade”, uma vez que as

ficções podem dar forma à experiência humana. Diante de Eneias e Dido, o

Agostinho da meninice é prova disso.

III. 3. O vinho do erro

253 Ibid., id.


254 Confessiones, I, 8, 13.
255 Op. cit., p. 57.

106
A relação entre literatura e experiência vem à tona, mais uma vez,

ainda no livro primeiro das Confessiones; agora, quando Agostinho se

recorda da célebre passagem do Eunuco em que, pela pena de Terêncio,

lemos sobre o rapaz que viola uma jovem depois de ver representado, sobre

um muro, uma cena em que Júpiter se lança sobre Dânae, derramando-se

como chuva de ouro em seu regaço.256 A citação, longa, se justifica:

Mas ai de ti, torrente dos costumes humanos! (...)


Porventura não foi em ti que li a fábula de Júpiter
tonante e adúltero? Certo é que não podia ser ambas as
coisas, mas de tal modo se fingiu a fim de respaldar a
imitação de um verdadeiro adultério a partir do engano
de um falso trovão. No entanto, que mestre há que
ostente a pênula e permaneça sóbrio ao ouvir um seu
colega clamar: “Fingia Homero essas coisas e atribuía
aos deuses coisas humanas, mas eu quisera que nos
houvesse trazido as coisas divinas”? No entanto, mais
verdadeiro seria dizer que fingiu Homero estas coisas,
atribuindo as divinas a homens corrompidos, para que
os vícios não fossem tidos por vícios e aquele que os
comete pareça simular antes deuses celestes do que
homens perdidos.
No entanto, torrente infernal, em ti são lançados os
filhos dos homens juntos com os honorários que pagam
para aprender tais coisas, tem-se por algo grande poder
fazê-lo no foro, em público, sob o amparo das leis (...).
E contra as rochas ressoas, dizendo: “Aqui se
aprendem as palavras; aqui se adquire a eloquência,
indispensável para explicar as sentenças e persuadir
das coisas”. Como se não pudéssemos aprender as

256 Cf. Eunuco, III, cena V.

107
palavras chuva, dourado, regaço, templo, celeste, bem
como outras mais que lá se encontram, se Terêncio não
nos apresentasse um jovem perdido que se propõe a
tomar Júpiter como modelo de estupro, contemplando
uma pintura mural “na qual se representava o mesmo
Júpiter no momento em que, segundo dizem, enviou
uma chuva de ouro sobre o regaço de Dânae,
enganando com semelhante truque a pobre mulher”.
Veja-se como se estimula ele diante de tão celestial
mestre: “Que deus”, disse, “que faz retumbar os templos
do céu com tamanho estrondo! E eu, homenzinho, não
poderia fazer o mesmo? Fi-lo já, sim, e com mui gosto.”
De modo algum, portanto, com tamanha torpeza se
aprendem tais palavras, que porém perpetram a
torpeza. Não condeno eu as palavras, que são como
vasos seletos e preciosos, e sim o vinho do erro que os
mestres ébrios neles nos apresentavam (...).257

Que aqui Agostinho se volta mais para certa dimensão social do

problema, para a disseminação das “torpezas” mediante o sistema

educacional e cultural, é evidente, e na Civitate Dei, anos depois, o ataque se

veria completo. Não era indispensável, a Agostinho, que as primeiras letras

fossem lecionadas a partir de modelos que poderiam ser corruptores, não

obstante tais modelos oferecessem uso concreto da língua e, portanto,

servissem ao propósito; a torpeza, portanto, não precisaria expor as

realidades linguísticas básicas, enquanto certas realidades linguísticas têm a

força de fomentar a torpeza. Miller, portanto, carece de razão quando afirma

que o exemplo de Terêncio seria oferecido apenas “no intuito de separar as

257 I, 16, 25-26.

108
palavras do conteúdo licencioso da narrativa”;258 antes, é precisamente por

ser possível uma tal separação que poder-se-ia expressar também o desejo,

como sugere Agostinho, de que se expurguem os procedimentos educativos,

ou mesmo as obras clássicas, antes de chegarem às mãos dos jovens.

Soa decerto fanático, aos ouvidos atuais, que a representação dos

desregramentos dos deuses autorizaria o mesmo desregramento por parte

dos homens; a possibilidade de supressão de Homero e Virgílio, então, de

um currículo escolar com base nisso parece mesmo acinte. “Afinal”, comenta

Starnes, 259 assumindo a voz do leitor moderno, “qual a importância de

algumas contradições ou indiscrições numa literatura tão gloriosa, tida então,

como agora, na condição de obra-prima?” O homem moderno que assim se

espante, porém, estará se esquecendo de que também algo se perdeu em

nossa visão das grandes obras. Homero, Virgílio e os outros grandes eram

tidos como inspirados no mundo antigo; suas obras gozavam de autoridade

divina. Agostinho os conhecera assim; por meio deles, os meninos aprendiam

não apenas as primeiras letras, mas noções da natureza dos deuses e de

nossa relação com eles. A autoridade do que tomamos, hoje, como “meras

histórias” poderia autorizar comportamentos.

Pouco em seguida, outro episódio leva adiante o tema da

associação entre a herança literária clássica, a desordem do currículo

educacional – reflexo, é evidente, de uma desordem de nível cultural mais

amplo – e a experiência do jovem estudante. Por desejo daquele mesmo

prestígio vazio que a sociedade almejava, ou temendo a desonra e os açoites

que viriam em caso de malogro seu, os estudantes deveriam reformular em


258 Op. cit., p. 59.
259 Op. cit, p. 17.

109
prosa a cólera que Juno demonstra no livro primeiro da Eneida,260 quando se

vê incapaz de afastar da Itália o rei dos teucros. “Obrigavam-nos a seguir os

passos errados das ficções poéticas [figmentorum poeticorum] e a manifestar

em prosa algo do que o poeta dissera em verso”; maior elogio receberia

quem, “segundo a dignidade da personagem representada, lograsse retratar

com mais vivacidade e verossimilhança, revestindo com palavras mais

adequadas, seus afetos de ira e dor”. 261 Tudo, porém, em vista de algo

transitório, de aplausos de conterrâneos e colegas, de uma dissipação do

próprio engenho em fumus et ventus. 262 É indispensável, não obstante as

considerações relativas à vida interior, levar em consideração o vínculo entre

o legado literário pagão, tal qual empregado pelo sistema educacional dos

tempos antigos, e as glórias vãs a que ele era intimamente associado: “Se

coisas do gênero poderiam figurar no palco romano (...), era só porque,

segundo Agostinho, todos eram complacentes com relação a um tal

comportamento em si, uma vez que os deuses faziam o mesmo.”263

III. 4. No teatro

Quando, no livro III das Confessiones, relata sua chegada a

Cartago, onde ao seu redor crepitavam os amores ilícitos, 264 Agostinho já

demonstrara preferir os próprios desejos saciados a seguir as exigências da

ordem racional, vivendo na ilusão de que sua vontade serviria como

260 Cf. Eneida, I, 38.


261 Confessiones, I, 17, 27.
262 Ibid., id.
263 Starnes, op. cit., p. 17.
264 Cf. Confessiones, III, 1, 1.

110
parâmetro a determinar o que era bom e o que era mau. Jovem, “amar e ser

amado” era para si “a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar do corpo da

pessoa amada”; maculava as amizades com “as imundícies da

concupiscência” e “obscurecia sua candura com os vapores tartáricos da

libidinosidade”; torpe e desonesto, “apresentava-me elegante e cortês,

transbordando de vaidade”.265

À aura de êxtase sensitivo que o início do livro terceiro sugere, soa

conveniente que se associe o relato do arrebatamento sentido pelo jovem

nos spetacula theatrica.266 Local em que o bispo maduro identifica o espelho

de sua miséria, o palco é o cadinho que funde e o permite expressar cada um

dos três “paradoxos da tragédia” 267 – expressão esta, contudo, que é

vigorosa o suficiente para nos impedir de dividi-la já nesta reprodução:

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, repletos


de imagens de minhas misérias e alimentando o fogo de
minha paixão. Por que, entretanto, deseja o homem

265 Ibid., id.


266 Em Donnalee Dox, “The Idea of Theater in Late Antiquity, pp. 12-13: “Ele está reagindo
ao ludi representado numa das estruturas permanentes ou (o que era mais frequente)
temporárias que foram construídas em todo o Império Romano (...) e aos espetáculos dos circos e
anfiteatros. Embora os aspectos religiosos do teatro romano, sobretudo suas associações com os
festivais, tenham se reduzido durante o império, as estátuas, efígies e altares que mantinham os
deuses à vista nos teatros claramente demarcavam o teatro como domínio dos deuses pagãos. O
teatro figura com destaque, nas Confissões de Agostinho, como local de depravação moral e física,
enquanto a Cidade de Deus interpreta o teatro como prática social inadequada à participação
cristã. (...) Agostinho compreendeu o teatro como realidade social de uma maneira que aos
cristãos posteriores seria impossível. (...) Os teatros eram locais físicos; as apresentações, eventos
regulares. Os atores constituíam presenças visíveis nas cidades romanas, e seu poder afetivo nos
palcos atraíam tanto cristãos como pagãos. O teatro, portanto, era uma das demonstrações mais
visíveis da cultura pagã a que um cristão zeloso poderia tecer crítica.”
267 Cf. William E. Mann, “The Life of Mind in Dramas and Dreams”, p. 109.

111
sentir dor ali, ao assistir fatos trágicos e tristes que não
gostaria de padecer? No entanto, o espectador quer
senti-la, e essa dor mesma é seu deleite. Que é isso
senão espantosa loucura? Pois tanto mais se comove
com tais cenas quanto menos se é livre de semelhantes
afetos, não obstante sejam denominados misérias
quando delas padecemos e misericórdia quando delas
nos compadecemos nos outros.
Que misericórdia, porém, pode haver em coisas
fictícias e cênicas [rebus fictis et scenicis]? Pois ali não
se provoca o espectador a socorrer ninguém, mas tão
somente a condoer-se, e tanto mais exalta o autor
quanto maior é a dor que experimenta. De modo que, se
essas calamidades humanas, sejam remotas ou falsas,
são representadas sem causarem dor, retira-se o
espectador aborrecido e queixoso; se, por outro lado, é
dor o que lhe causam, permanece ele atento e contente.
Amadas, portanto, são as lágrimas e as dores?
Decerto, todo homem deseja alegrar-se. Mas, não
agradando a ninguém ser miserável e dando-lhe gosto
ser misericordioso; e não podendo ser ele
misericordioso sem sentir dor, não será esta a causa de
amarmos as dores? (...)
Por conseguinte, deve-se rechaçar a compaixão?
De modo algum. Preciso será, pois, que nalguma
ocasião sejam amadas as dores; mas resguarda-te,
minh’alma, da impureza, sob a tutela de meu Deus (...).
Mas então comprazia-me nos teatros com os amantes
quando eles gozavam uns dos outros em suas torpezas,
não obstante fossem praticadas imaginariamente nos
jogos cênicos. E assim, quando um deles se perdia,
contristava-me quase misericordioso; e tanto aqueles
quanto este me deleitavam.

112
Hoje, entretanto, nutro mais compaixão pelo que se
compraz nos seus flagícios do que daquele que padece
pela carência de um deleite pernicioso ou a perda de
uma felicidade miserável. Esta misericórdia é decerto
mais verdadeira, mas nela a dor não deleita. Pois, se é
certo que merece aprovação quem, por razões de
caridade, se compadece do miserável, o
verdadeiramente compassivo preferiria que não
houvesse do que se compadecer. Com efeito, assim
como não é possível que exista uma benevolência
malévola, tampouco é possível que haja alguém
verdadeira e sinceramente misericordioso que deseje a
existência de miseráveis a fim de que haja de quem se
condoer.
Há, pois, certa dor que merece aprovação, mas
nenhuma que mereça ser amada. (...) Porém eu,
desventurado, amava então a dor e buscava motivos de
experimentá-la quando, naquelas desgraças alheias,
falsas e teatrais, tanto mais comprazia-me na ação do
histrião, e mais me via suspenso, quanto mais lágrimas
me fazia derramar. Que maravilha era eu, infeliz ovelha
desgarrada do rebanho, que por opor-me à tua guarda
era acometido por sarna tão asquerosa! Daí nasciam,
sem dúvidas, os desejos daqueles sentimentos de dor
que eu não queria, no entanto, penetrados tão no meu
íntimo; rejeitava, afinal, padecer coisas como as
representadas, mas tão somente as que, ouvidas ou
fingidas, tocassem-me só a superfície.268

268 Confessiones, III, 2, 2-4.

113
Mann 269 debruçou-se sobre o mesmo excerto para identificar os

três movimentos. Atribuiu-lhes nomes respectivos, que ajudam a articular,

precisa e claramente, as ideias fundamentais por trás do que se diz nas

Confessiones III, 2 acerca do teatro e seu impacto sobre o indivíduo.

Em primeiro lugar, o fenômeno psicológico anômalo, segundo o

qual desejamos experimentar sofrimento pela observação de acontecimentos

pesarosos e trágicos no teatro – os mesmos acontecimentos de que, na vida,

fugiríamos sem pestanejar. Tanto maior é a aprovação dada ao ator quanto

maior for a dor que causa: “Há certos tipos de sentimentos desagradáveis,

como angústia, medo, ira e pesar, que as pessoas em geral tentam evitar.

Não obstante, muitas dessas mesmas pessoas buscam ativamente e

assistem avidamente a espetáculos que, creem, evocarão em si tais

sentimentos.” Além disso, “não buscam esses espetáculos ‘a despeito’ dessa

crença, mas ‘em virtude’ dela”.270

Certas emoções, entretanto, trazem intimamente associadas

consigo uma reação correspondente. O medo e a compaixão, por exemplo:

“Pessoas que se veem perto de um animal perigoso tenderão a fugir;

pessoas que encontram outras em perigo tenderão a vir em seu auxílio. No

entanto, apenas um grosseirão assistindo a uma apresentação de Romeu e

Julieta invadiria o palco para tirar o veneno das mãos de Romeu.” 271 Trata-se

de uma “dissociação entre os sistemas afetivo e motor”: se é convidado a

padecer certa paixão, mas não a levar a cabo a reação natural

correspondente – “[q]ue misericórdia, porém, pode haver em coisas fictícias e

269 Op. cit.


270 Ibid., p. 105.
271 Ibid., p. 110.

114
cênicas? Pois ali não se provoca o espectador a socorrer ninguém, mas tão

somente a condoer-se”. A compaixão “permanece alojada na alma do

observador, sem vazão nenhuma além do deleite na própria emoção e sem o

reforço da exigência ética (...) por parte do cristianismo”.272 Tem-se, portanto,

o fenômeno da reação diminuída.

Por fim, a tradução conceitual da desconcertante experiência de se

deixar afetar pelo que não existe: o fenômeno da não existência. 273

Agostinho, vimos nós, assim o diria: “De modo que, se essas calamidades

humanas, sejam remotas ou falsas, são representadas sem causarem dor,

retira-se o espectador aborrecido e queixoso; se, por outro lado, é dor o que

lhe causam, permanece ele atento e contente.” Entretanto, não se trata

apenas do impacto de algo fictício sobre a plateia, mas do impacto de algo

fictício sobre uma plateia que tem pleno conhecimento de estar diante de

uma realidade que jamais existiu.

Que não há a intenção do logro nesse tipo de trabalho artístico,

isto é, que não há a mendacidade, mas tão somente a falácia, já vimos

declarado no segundo livro dos Soliloquia. 274 Sabemos que a opinião de

Agostinho não terá mudado porque, em texto do mesmo período das

Confessiones dedicado à mentira, o mesmo é insinuado.275 De todo modo, no

que diz respeito aos paradoxos do bispo de Hipona, Mann recorre a Kendall

Walton para interpretá-los segundo o “estado psicológico de quem vai ao

272 Dox, op. cit., p. 17.


273 Ibid., id.
274 Cf. o capítulo primeiro deste trabalho. E ainda Soloquia, II, 9, 16.
275 Cf. De mendacio, II, 2.

115
teatro”.276 Diria Walton, pela voz de Mann, que, “quando Agostinho afirma ter

experimentado sofrimento diante da encenação da morte de Dido, ou está

equivocado, ou não fala literalmente”. 277 Em caso de equívoco, “mal

identificou ou descreveu seu estado mental: a emoção que experimentara no

teatro não era um sofrimento ordinário, não se assemelhava ao sentimento

que sentiu, e que descreveu de maneira assaz eloquente nas Confessiones,

quando da morte de seu amigo inominado e, depois, de sua mãe”.278

De fato, os espectadores que sabem tratar-se de encenação

sabem, também, que o que experimentam não é o que vai ocorrendo

verdadeiramente. Nada disso, porém, faz com que o estado deles seja o de

incredulidade . Antes,

os espectadores evocam deliberadamente suas


capacidades imaginativas. Essa participação por meio
da imaginação é uma espécie, ou espécime, de “faz de
conta”. O termo “faz de conta” pode enganar. Os
espectadores não fabricam uma série de crenças. As
crenças não são manipuladas pela vontade com a
mesma facilidade com que manipulamos nossa
imaginação. (...) Imaginar é diferente de crer e não crer.
O envolvimento mental dos espectadores é um
exercício de imaginação, interpretado não como uma
espécie de especulação contrafactual imparcial, e sim
como uma atividade que mobiliza suas emoções.279

276 Mann, op. cit., p. 112.


277 Ibid., id.
278 Ibid., id.
279 Ibid., p. 114.

116
Por conseguinte, o sofrimento daquele jovem não é o sofrimento

ordinário, mas algo que dele se aproxima: “A experiência de um sofrimento

comum teria gerado confusão entre as atitudes cognitiva e afetiva de

Agostinho. Ele sabe que ninguém morreu. Não Dido, que nunca existiu;

tampouco a atriz.”280

O fenômeno psicológico anômalo, desse modo, não parecerá tão

desconcertante, uma vez que a paixão suscitada não é o sofrimento ordinário

que, se desejado, constituiria loucura; trata-se mesmo de um sofrimento

noutro plano, fundamentado sobre as disposições que a imaginação cria e

que acaba por mobilizar os afetos.

É essa também a via que pode ajudar a esclarecer o fenômeno da

reação diminuída: “A não intervenção dos espectadores que assistem ao

assassinato de Banquo em Macbeth não é como a inação das testemunhas

do assassinato de Kitty Genovese em Nova York, no ano de 1964”. Com

efeito, “nenhum estigma moral paira sobre a cabeça de quem vai ao teatro;

nenhuma teoria sociológica especial se faz necessária para explicar seu

comportamento em grupo. Ao contrário das testemunhas, os espectadores

sabem que nenhuma violência real está ocorrendo. Antes, são espectadores

cujas imaginações estão absorvidas na apreciação de uma história de

violência ficcional bem forjada”.281

E, se uma tal apreciação fomenta um estado de sofrimento que

não é o sofrimento comum, trata-se de um sofrimento que corresponde ao

fato de um acontecimento como a morte de Dido não ter se dado na

realidade. Agostinho sofre uma emoção que se assemelha à emoção


280 Ibid., id.
281 Ibid., p. 115.

117
“original” por algo que sabe não ter acontecido; caso se desdobrasse o ato

verdadeiramente diante de si, sem a ciência da ficcionalidade, expressaria o

bispo a emoção “original”, isto é, experimentaria o sofrimento de ver alguém

morrendo à sua frente, com todas as atitudes e reações que ele acarretaria.

Desse modo, o fenômeno da não existência deveria ser menos

desconcertante do que parece à primeira vista.

Não são poucos os comentadores que, diante das considerações

de Agostinho sobre o palco e a reação dos espectadores diante dos

espetáculos, recordam Platão e Aristóteles em reflexões semelhantes. Seria

menosprezar a capacidade de qualquer leitor assinalar algo tão óbvio quanto

o fato de que o diálogo entre os três é prova inequívoca tanto da estatura dos

comentários de Agostinho sobre o tema como da vitalidade de sua discussão.

Vale, nestas páginas, não querer à exaustão os pontos de contato

e divergência; é bem provável que se encontre isso alhures, e ademais seria

deslocar Agostinho a um plano subjacente a certo comparativismo. No

entanto, alguns comentadores fazem realçar o que pensa o bispo de Hipona

mediante breves contrapontos com ambos os gregos.

O que Reale diz sobre a posição de Platão acerca da arte – a

saber, que ela não possui “uma esfera e um valor propriamente autônomos”,

valendo “somente e na medida em que possa ou saiba pôr-se a serviço da

verdade”, isto é, quando “submetid[a] aos preceitos imutáveis do logos

verdadeiro (...): ou a arte serve ao verdadeiro, ou serve ao falso, e tertium

non datur”282 – poderia ser dito, de certa forma, também sobre Agostinho:

Deus é tudo o que lhe interessa e será seu parâmetro no juízo de sua relação

282 História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão, p. 174.

118
com os textos e representações literárias; vimo-lo nos diálogos do

Cassicíaco, vimo-lo nas classificações do De doctrina christiana. No entanto,

e nota-o Miller,283 que a representação se volte para as partes menos nobres

da alma,284 consistindo num “jogo ou uma brincadeira” 285 se vista desde a

perspectiva do conhecimento do verdadeiro, é menos problemática para o

bispo. Não é a paixão suscitada pelo teatro o que perturba Agostinho, e sim

que a ficção nos instigue a experimentá-la e, ao mesmo tempo, a falsifique.

“É apenas no peculiar espaço do teatro que vemo-nos instigados a simpatizar

e sofrer com os atores, mas não ajudá-los. Agostinho não vê culpa nas

reações apaixonadas porque a misericórdia e a compaixão pelo sofrimento

são reações completamente adequadas.” O risco, arremata o comentador,

“está em que podemos converter-nos em ficções”. 286 De certa forma,

Chadwick287 compreende a compatibilidade agostiniana entre, de um lado, o

Verbo tomado como parâmetro e fim último e, do outro, as paixões:

Os moralistas da Antiguidade muitas vezes parecem


esperar que o homem cultive de tal maneira a razão fria
que tornar-se-ia incapaz de comover-se. Agostinho
sabe, é claro, que nossas emoções são desordenadas.
Os sentimentos mesmos, porém, não são a causa da
desordem (...). Os constituintes mais poderosos da
natureza humana são as emoções. Elas não precisam
ser reprimidas, e a insensibilidade é, de todo modo,
impossível. Colocar de lado a razão e a emoção é

283 Op. cit., p. 59.


284 Cf. Reale, op. cit., p. 173.
285 Ibid., id.
286 Miller, op. cit., p. 8.
287 Augustine of Hippo: A Life, p. 93.

119
inerentemente tolo. As emoções não precisam de
repressão, mas de elevação e purificação, as quais são
encontradas quando o ser do homem é orientado a seu
verdadeiro destino na fé e na obediência. Apenas o
Criador confere forma e ordem ao caos, seja no cosmos
ou em nossas almas.

Se, portanto, como já se reconheceu, há em Agostinho “ecos das

censuras por vezes impiedosas de Platão à mimese”, 288 há também, nas

palavras de O’Connell, “indícios da teoria aristotélica da catarse por meio da

compaixão e da tragédia – indícios e ecos solidamente forjados segundo a

teoria pessoal do próprio Agostinho”. 289 Agostinho, sabemos nós, tivera

contato com algo de Aristóteles – mesmo as Confessiones o dizem;290 com a

Poética, porém, não. Portanto, diante do tratamento que o bispo dá às

experiências poéticas e teatrais – tratamento, ao menos neste ponto,

negativo –, é inevitável a nós modernos pensar que sua “rejeição mesma

força o leitor a especular se um Aristóteles não daria descrição mais justa de

como as experiências poéticas e teatrais do jovem Agostinho

verdadeiramente o afetaram”.291

Com efeito, não dirá o aristotélico, como Agostinho, que “tanto

mais se comove com tais cenas quanto menos se é livre de semelhantes

afetos”;292 seu foco estaria, antes, nesse refinamento da catarse teatral, no

288 Robert O’Connell, Art and Christian Intelligence in St. Augustine, p. 126.
289 Ibid., id.
290 IV, 16, 28.
291 O’Connell, op. cit., p. 126.
292 Confessiones, III, 2.

120
“instinto mais profundo a dar origem à atividade verdadeiramente criativa da

mimese artística”:

Precisamente por transportar-nos para o reino da


“ficção”, (...) o artista, poético ou dramático, concede-
nos visão mais ampla e grave da realidade – não da
realidade cotidiana e repleta de banalidades, turvada
por irrelevâncias distrativas, e sim daquela realidade
reduzida a suas linhas essenciais, levada àquela escala
mais majestosa que permite que Dido subitamente
represente todas as mulheres em pranto, que um
Eneias ou Ulisses simbolize a dor, o pathos, a nobre
bravura que o homem pode levar às provações da
peregrinação humana. (...) Não se trata de falsidade,
mas da vida tornando-se (...) mais real que a realidade –
tornando-se “poeticamente verdadeira”, objeto da
atenção solene do homem, de seu deleite estético,
levando-o ao (...) mundo do espanto trágico. 293

Portanto, dirá o partidário de Aristóteles, não deverá ser a bondade

pragmática e voltada à ação (por mais nobre que seja ela) o critério segundo

o qual se deve julgar o impacto da literatura e das representações teatrais.

No entanto, deve-se dar, a Agostinho, ao menos o crédito de vislumbrar o

potencial das letras para condensar a realidade em “suas linhas essenciais”,

naquela “escala mais majestosa que permite que Dido subitamente

represente todas as mulheres em pranto, que um Eneias ou Ulisses simbolize

a dor, o pathos, a nobre bravura que o homem pode levar às provações da

peregrinação humana”: o próprio autor das Confessiones incorpora a

inquietude, a profundidade e os errores do espírito do homem afastado de

293 O’Connell, op. cit., id.

121
Deus – o espírito de todos nós. Já se comentou (rapidamente, decerto) que

a própria narrativa de sua infância aponta para essa universalidade. Assim, é

sempre oportuno e fundamental recordar a observação que o grande

Romano Guardini teceu ao comentador: fosse ele a estudar a teoria estética

do bispo de Hipona, “concentrar-se-ia antes no que o artista Agostinho faz do

que naquilo que ele diz fazer”.294

Com efeito, e não obstante o que declara, o santo se aproxima de

Platão também nisso: é um artista filosófico, investindo contra os riscos do

pensamento imagístico, mas com uma destreza poética que, poder-se-ia

dizer, é capaz de refutar qualquer que seja sua teoria da arte. Agostinho

conhece o poder do mito e manifesta “inveterada tendência a revestir seus

pensamentos e sentimentos de exemplos retirados de fontes literárias – trate-

se de poesia, da filosofia e das Escrituras”,295 e de tal maneira que pôde-se

brincar, quanto a este último caso, que “há páginas inteiras que poderiam

render um processo de plágio” contra ele.296

III. 5. Um pensamento revestido

Ao uso que Agostinho dá às imagens clássicas e a elementos que

inequivocamente remetem à tradição literária pagã, muitos já se dedicaram:

O’Connell, 297 Hagendahl, 298 MacCormack, 299 Bennett, 300

294 O’Connell, op. cit., p. 04.


295 Ibid., p. 182.
296 Moacyr Novaes, “Linguagem e verdade nas Confissões”, p. 49.
297 Cf. Art and Christian Intelligence in St. Augustine, Soundings in St Augustine’s Imagination
e St. Augustine’s Confessions: The Odyssey of Soul.
298 Cf. Augustine and the Latin Classics.
299 Cf. The Shadows of Poetry: Vergil in the Mind of Augustine.

122
Ramage,301Knauer302 e Courcelle,303 citando poucos, fizeram-no de maneira

explícita, e muitos outros se viram inevitavelmente levados a dizer algo a

respeito. Uma breve retomada de uns poucos exemplos, portanto, deverá ser

o bastante; assegura-nos disso a certeza de haver, alhures, fundamentos

sólidos. A essas outras obras deverá recorrer o interessado nas minúcias.

O’Connell sabia – e facilmente o intuímos – que o sentimento de

Agostinho pelas viagens esteve longe daquilo que nos vendem hoje as

empresas de turismo. Os perigos que já eram inerentes aos longos

deslocamentos; a saúde frágil do jovem; seu sotaque africano, que em Roma

e Milão o faziam alvo de zombarias 304 – tudo contribui para que as

peregrinações na terra se revistam de caráter hostil.

Se devemos nos restringir às Confessiones, a figura do caminho

ecoa com certa frequência: em I, 15, 24 (viis meis pessimis), por exemplo,

bem como em II, 1, 1 (vias meas nequissimas); III, 3, 5 (amans vias meas et

non tuas); VI, 14, 24 (ad sequendas latas et tritas vias saeculi); VI, 16, 26 (O

tortuosas vias!). O próprio comentador lista as passagens – e a todas subjaz

a ideia de que o peregrino, aquele que percorre essas trilhas, padece do

desconforto que é encontrar-se longe de casa, de sua cidade, sua pátria.

É precisamente esta, sabemos, a condição de nossa vida. Já se

assinalou a pureza com que a imagem de Odisseu figura no prólogo do De

beata vita 305 e revela as circunstâncias de nossa trajetória terrena. Nas

300 Cf. “The Conversion of Vergil: The Aeneid in Augustine's Confessions”.


301 Cf. “The Confessions of St. Augustine: The Aeneid Revisited”.
302 Cf. “Peregrination animae: Zur Frage der Einheit der augustinischen Konfessionen”.
303 Cf. Recherches sur les “Confessions” de Augustin.
304 Cf. Confessiones I, 18, 29; De ordine, II, 17, 45.
305 Cf. o capítulo primeiro.

123
Confessiones, perdurará a associação, oportuníssima, desse estado nosso

com a realidade do viajante marítimo, que deve deparar-se com as

profundezas, a nebulosidade, as trevas, os turbilhões e as ondas que

ameaçam o afogamento.306 Ao mesmo tempo, entrelaça-se com uma série de

imagens que, de tão unidas, chegam por vezes a se tornarem indistinguíveis:

o Odisseu cristão que é Agostinho (e todos nós) surge também como o Filho

Pródigo do Evangelho de São Lucas, a ovelha extraviada da parábola,307 os

apóstolos em meio à tempestade,308 o homem que descia de Jerusalém a

Jericó e, agredido, é também resgatado pelo samaritano... 309 Deve-se,

portanto, concordar com O’Connell em que, nessa fusão da imagem do

Odisseu com outras que giram igualmente ao redor do conceito da

peregrinatio, encontramos um Odisseu batizado.

É pouquíssimo provável, entretanto, que um homem da formação

do bispo de Hipona pudesse ignorar a linhagem platônica310 do uso dado ao

viajante grego – demonstra-o, sabemos, o prólogo da Beata vita, dedicada a

um platônico amigo e permeada pelas mesmas imagens –, ao menos naquilo

que vem do Plotino da Enéada I, 6, 8:

Então, qual o modo? Qual a concepção? Como


alguém contemplará uma “beleza inconceptível” que,
por assim dizer, guarda-se no íntimo dos sacros áditos e
não se adianta afora para que mesmo um profano a

306 Cf. Confessiones, I, 19, 30; II, 3, 5; III, 6, 11; III, 11, 19; IV, 13, 20; VI, 1, 1; VII, 3, 5; VIII, 4,
9; XI, 2, 3; XIII, 8, 9.
307 Cf. Mateus 18, 10-4; Lucas 15, 1-7.
308 Cf. Mateus 8, 23-27; Lucas 8, 22-25; Marcos 4, 35-41.
309 Cf. Lucas 10, 30-37.
310 Cf. Jean Pépin, “The Platonic and Christian Ulysses”.

124
veja? Avance e adentre quem é capaz, deixando do
lado de fora a visão dos olhos e sem mais voltar-se para
as antigas fulgências dos corpos. Pois, vendo as
belezas nos corpos, de modo algum se deve persegui-
las, mas, entendendo que são imagens e traços e
sombras, fugir para aquilo de que estas são imagens.
Pois se alguém as persegue, desejando apanhá-las
como algo verdadeiro, acontecerá com ele o mesmo
que com aquele que quis apanhar sua bela imagem
corrente sobre a água – como me parece enigmar um
certo mito por aí – e sumiu abismando-se na profundeza
do rio; do mesmo modo, aquele que se apega à beleza
dos corpos e não a abandona se abisma, não com o
corpo, mas com a alma, nas profundezas tenebrosas e
funestas para o intelecto, onde, permanecendo cego no
Hades, conviverá com sombras por toda parte.
“Fujamos para a pátria querida”, alguém exortaria
com maior verdade. Então, que fuga é essa? Como?
Navegaremos como Odisseu, diz ele – enigmando,
penso eu –, que fugiu da feiticeira Circe ou de Calipso,
não contente em permanecer, embora tivesse prazeres
para os olhos e se unisse a muita beleza sensível.
Nossa pátria é donde viemos e nosso pai está lá. Que
jornada e que fuga são essas, portanto? Não devemos
perfazê-la com os pés: os pés nos levam a todo lugar,
da terra para terra; e não precisas preparar urna
carruagem de cavalos ou uma embarcação, porém
deves te afastar de tudo isso e não olhar, mas, como
que cerrando os olhos, substituir essa visão e despertar
uma outra, que todos têm, mas poucos usam. 311

311 Trad. José Carlos Baracat Júnior, em tese sua: Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de
Plotino: Introdução, tradução e notas (volume I), pp. 316-17.

125
E, uma vez que impera a convicção enunciada na Doctrina

christiana, segundo a qual aquilo que há de veraz na cultura pagã pertence

invariavelmente à cristã, Agostinho pode remeter-nos de modo imediato à

interpretação plotiniana da peregrinação de Odisseu, embora em clara

referência ao Filho Pródigo: “Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor,

buscarei, pois longe está do teu rosto quem em afeto tenebroso, dado não

ser com os pés do corpo, nem perfazendo distâncias, que de ti nos

aproximamos ou afastamos. Porventura aquele teu filho menor buscou

cavalos, carros ou embarcações, ou mesmo voou com asas invisíveis ou

deslocou-se a pé, ao ir-se para a região longínqua em que dissipou o que lhe

havias dado (...)?”312

A metodologia de O’Connell não o levará a procurar, salvo raras

exceções, dissociar da imagem da viagem marítima aqueles elementos

próprios à Eneida dos elementos próprios à Odisseia. Não obstante, é sobre

a epopeia virgiliana que a maioria dos comentários diretos de Agostinho

sobre a tradição literária recaem, e portanto seria inevitável que o caminho

dos comentadores fosse precisamente este: identificar, se não a “traição” –

entre aspas, por certo: seria menosprezar tão bom retórico julgá-lo

plenamente inconsciente – de Agostinho às críticas tecidas contra sua

relação com Dido e Eneias, ao menos o modo como ele dá nova significação

ao conjunto de imagens virgilianas.

312 Confessiones, I, 18, 28.

126
Praticamente toda a obra do santo resvalará nas imagens e

citações do poeta romano.313 Atenhamo-nos às Confessiones e percebamos

“a ruptura na continuidade” a que se referirá MacCormack quando diz que

Virgílio ainda era lido e citado; comentários sobre


ele ainda eram compilados, copiados e estudados.
Havia, portanto, uma profunda e duradoura continuidade
entre aqueles que liam Virgílio no auge do Império
Romano e aqueles que o liam quando já findo o Império.
No entanto, houve uma profunda ruptura na
continuidade e na compreensão quando os versos de
Virgílio foram integrados ao raciocínio cristão. Às vezes,
a interpretação cristã seguia a erudição virgiliana
existente (...). O que essas reutilizações (...) estavam

313 Diz MacCormack (The Shadows of Poetry, p. xviii-xix): “Em alguns casos, Agostinho citou
Virgílio como parte de um pensamento ou de uma linha de raciocínio, referindo-se ao célebre
poeta no intuito de convencer seus leitores. Noutras ocasiões, contudo, ele citou versos ou
semiversos de Virgílio de modo um tanto intencional, como parte de seu aparato mental. Noutras
palavras, Virgílio tinha parte na realidade do próprio Agostinho porque descrevia a realidade de
maneiras que Agostinho cria decisivas. Os motivos pelos quais a realidade virgiliana se fazia
decisiva diferia para o jovem estudioso da filosofia e o converso ao cristianismo. (...) Durante os
meses de reflexão que se seguiram à sua conversão, Agostinho escreveu diálogos à maneira de
Cícero, nos quais citações de Virgílio enriquecem e adornam seus argumentos. Uma vez ordenado
padre e bispo, Virgílio saiu da alçada de sua consciência, e seu tratado Da doutrina cristã, iniciado
em 396, mas colocado de lado e retomado mais de trinta anos depois, contém poucas
reminiscências virgilianas (...). As Confissões, no entanto, escritas na virada do século IV ao século
V, estão profundamente embebidas em temas e sentimentos virgilianos. Por fim, nos livros que
dão início à Cidade de Deus, cuja redação ocupou Agostinho entre 413 e 427, Virgílio se deslocou
para o centro do palco, na condição de porta-voz da cultura romana pagã que Agostinho buscava
refutar.
Virgílio ajudara a forjar a língua latina que Agostinho e seus contemporâneos usavam.
Agostinho, portanto, não estava sozinho ao expressar uma boa quantidade de pensamentos em
termos virgilianos. Além de dar forma à língua, porém, Virgílio escrevera sobre temas que se
tornaram o foco da atenção de Agostinho: o nascimento de uma criança messiânica, a destruição
de uma grande cidade, a relação entre alma e corpo, bem como entre a natureza da emoção e a
morte, o foco do culto e da piedade, a natureza do divino.”

127
propensas a negligenciar, porém, era o contexto em que
tais ideias figuravam na obra do poeta como um todo.314

Ramage 315 não precisará ir além do parágrafo inicial da obra

magna para traçar uma primeira relação: dirá que o verbo circunferens, por

duas vezes ali (“e o homem carrega consigo [circumferens] sua mortalidade,

carrega consigo [circumferens] o testemunho de seu pecado”), é

“marcadamente virgiliano”:

Virgílio usa circum constantemente, dentro e fora de


compostos, como um dos vários artifícios pelos quais
amplia nossa concepção da viagem de Eneias,
estendendo-a para além do Mediterrâneo – na verdade,
para além do concreto. O clássico ícone de Eneias é o
homo ferens. Ele carrega seu pai e os “deuses
conquistados” de Troia nas costas. De modo menos
literal, carrega também seu filho, bem como o miserabile
vulgus de Troia e o futuro de Roma.316

O mesmo com o célebre repouso do coração humano com que

Agostinho inicia sua obra: et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in

te.317 É nosso fim último o repouso em Deus do coração, ao que Ramage318

recordará Heleno e sua profecia no terceiro livro da Eneida, em cujas páginas

surge a Itália como “local da tua cidade, repouso [requies] fixo de teus

314 Op. cit., p. 38.


315 “The Confessions of Augustine: The Aeneid Revisited”, p. 54.
316 Ibid., p. 55.
317 Confessiones, I, 1, 1.
318 Op. cit., p. 55.

128
trabalhos”.319 O herói de Virgílio, portanto, carregando um passado em que é

morto tudo o que lhe fora caro, buscando novo lar e império, já parece

assomar como espécie de protótipo do homem segundo Agostinho: sem casa

e distante da pátria.

Por conseguinte, o trecho célebre das Confessiones I, 13, 20-21,

no qual o bispo reconhece que nada havia, sob o olhar do crítico hostil, digno

de imitação nos errores de Eneias, não deve levar o leitor a achar que se

perderia em Agostinho o pathos virgiliano. Foi também na esteira do poeta

que, lembra-nos a comentarista, o santo recorda ter se inflamado com

amores diversos e resvalado em dores, confusões e erros: Exarsi enim

aliquando satiari inferis in adulescentia,320 dirá o latim do santo, que expressa

ainda: tetigisti me, et exarsi in pacem tuam. 321 Ao fundo, ecos do poeta:

exarsere igens animo; 322 tam vero exarsit iuveni dolor ossibus ingens; 323

Talibus Allecto dictis exarsit in iras;324 hic vero Alcidae furiis exarserat atro;325

Talibus exarsit dictis violentia Turni.326 MacCormack observará, ainda, de que

modo o “turbilhão do coração de Agostinho – o aestus cordis – ecoava o

turbilhão de cuidados – o aestus curarum – que acometeu Eneias, e a ânsia

de Agostinho por fugir dos embaraços terrenos era experimentada, na esteira

das emoções virgilianas,327 qual uma ardência interior”.328 Dada ao bispo a

319 III, 393.


320 Ibid., II, 1,1.
321 Ibid., X, 27, 38.
322 Eneida, II, 575.
323 Ibid., V, 172.
324 Ibid., VII, 445.
325 Ibid., VIII, 219.
326 Ibid., XI, 376.
327 No livro primeiro da Eneida, 513-14 e 580-81.

129
palavra: “O quanto ardia, meu Deus, o quanto ardia em desejos de revoar

desde a terra até Ti”.329

Pode-se permanecer no mesmo livro terceiro das Confessiones;

ao lado da herança bíblica, nova expressão de origem virgiliana: “Pois que

maravilha era eu, infeliz ovelha [infelix pecus] desgarrada de tua grei

[aberrans a grege tuo].” Vem da terceira Écloga a infelix pecus, mas também

Dido é infelix no épico e vaga como animal sem rumo: “Dido infeliz [infelix

Dido] arde e pela cidade erra fora de si, qual cerva por flecha ferida”.330 O

que ferira a rainha fora Eneias relatando seus dissabores; a Agostinho,

porém, ferem as histórias que buscava no palco cartaginês. Ferida um tanto

menor, porém, que a do épico: o futuro bispo não era cervo acometido por

seta, mas ovelha desgarrada, distante do rebanho.

De igual maneira se formos às imagens da peregrinação marítima,

uma daquelas a que O’Connell se dedicou e, vimos nós, fê-lo tratar Agostinho

como Odisseu batizado. Ramage331 é mais específica: verifica que o bispo de

Hipona desloca as imagens da água e do mar que Virgílio emprega nos livros

I e III da Eneida; nela, eram elementos que indicavam obstáculos à viagem

do herói, ao passo que, após o “batismo”, “o locus das imagens” é levado

“um pouco mais para o interior”, isto é, “se as imagens marítimas de Virgílio

muitas vezes elucidam situações políticas ou sociais, Agostinho

invariavelmente representa relações entre aspectos de si mesmo”. E de que

modo?

328 The Shadows of Poetry, p. 97.


329 Confessiones, III, 4, 8.
330 Eneida, IV, 68-9.
331 Op. cit., p. 55-6.

130
Ele fala do fluctus temptationum e do modo como
“[o amor e a concupiscência] abrasavam e arrastavam
minha fraca idade pelo precipício de meus desejos e me
submergiam num mar de torpezas”.332 Alhures, escreve:
exaestuarent fluctus aetatis meae. 333 Em certo
momento, volta-se para o flumen moris humani, 334
questionando por quanto tempo ainda arrastaria – o
verbo é volvere – os filhos de Eva até o mare magnum
et formidulosum que representa a vida desordenada
pelas paixões. A qualidade altamente retórica dessa
passagem em particular, as imagens do rio e o emprego
do volvere remetem ao célebre O terque quaterque
beati..., fala que Eneias conclui com: Simois correpta
sub undis scuta virum galeasque et fortia corpora
volvit!335

No entanto, é possível chegar a graus mais elementares de

ressignificação, para além do páthos e de qualquer vocabulário sentimental

que ecoam em maior ou menor intensidade. Vamos ao plano da história

mesma, pela pena do bispo:

Todavia, o verdadeiro porquê de me ir daqui e partir


a sós tu o sabias, ó Deus, sem dá-lo a conhecer nem a
mim, nem à minha mãe, que chorou atrozmente minha
partida e me seguiu até o mar. Tive, no entanto, de
enganá-la, pois com violência me retinha, obrigando-me
ou a desistir de meu propósito, ou a levá-la comigo, ao

332 Confessiones, II, 2, 2.


333 Ibid., II, 2, 3. Ramage se equivoca ao dar a referência.
334 Ibid., I, 16, 25.
335 Eneida, I, 94-101.

131
que fingi ter de despedir-me de um amigo que não
queria abandonar até que, soprando o vento, inflasse as
velas. Desse modo, enganei minha mãe – e que mãe! –
e fugi, e tu perdoaste tal pecado misericordiosamente,
protegendo-me, repleto de imundícies execráveis, das
águas do mar para que chegasse às águas de tua
graça; com elas lavado, secariam os rios dos olhos de
minha mãe, com os quais, diante de ti, todos os dias
regava a terra sob seu rosto.
Porém, como recusasse ela a regressar sem mim,
pude apenas convencê-la a permanecer, ao longo
daquela noite, em lugar próximo à nossa embarcação,
em memória ao bem-aventurado Cipriano. Na mesma
noite parti às escondidas e sem ela, deixando-a em
oração e prantos. (...)
Soprou o vento, inflou nossas velas e desapareceu
de nossa vista a praia, em que minha mãe, na manhã
próxima, enlouquecia de dor, enchendo de queixas e
gemidos os ouvidos teus, que não os atendia (...). 336

Agostinho está partindo: vai de Cartago a Roma. De imediato, vem

à mente o outro que se despediu da mesma Cartago para fundar “o reino da

Itália e a terra romana”. 337 Também Eneias devera ouvir o vento que

empurraria sua frota; também Eneias arriscara-se a convencer Dido de que

seria melhor sua partida. 338 Os troianos, a caminho da Itália, voltariam os

olhos para trás a fim de contemplar a pira que consumiria o corpo de Dido;

Agostinho, em busca de dias melhores em Roma, deixa para trás um local de

336 Confessiones, V, 8, 15.


337 Eneida, IV, 275-6.
338 Cf. Eneida, IV, 562; IV, 331-61.

132
morte: o oratório e o túmulo do mártir Cipriano, onde uma inconsolável

Mônica verte suas lágrimas.

A justaposição é tão evidente que dispensa especialistas: o leitor

curioso e com alguma bagagem a notará de imediato.339 Porém, é igualmente

manifesto que os desdobramentos dos personagens de cada quadro dão

mostras de algo mais: “Neste ponto, entretanto, sua história [de Agostinho]

divergia do protótipo virgiliano, uma vez que, se Dido fora enredada e,

depois, abandonada por deuses traiçoeiros, as orações de Mônica foram

ouvidas e atendidas (...) pelo Deus cristão quando Agostinho, tal qual

expressou em Cassicíaco, adentrou o porto da filosofia”.340

Bennett 341 nota esse “algo mais”: trata-se de certa falsidade

presente na autoconcepção de Agostinho como herói de Virgílio. A

justaposição do episódio da Eneida e o episódio das Confessiones revela,

com efeito, algum abismo: “Eneias fugia da amante, a irada rainha de

Cartago, em missão divina para construir um império; Agostinho escapou à

noite de sua mãe em busca de alunos mais dóceis [em Roma].” E o desfecho

o escancara: “O melodrama da cena se esvai abruptamente no final; a

extravagância a que se pretendia perece em virtude de sua própria tolice e o

incidente se torna apenas comum (...). Não há suicídio; nenhuma pira;

339 E pouco em virtude da linguagem utilizada, como já se insinuou: “É ainda mais


desconcertante, portanto, encontrar relativamente poucas coincidências na linguagem usada por
Agostinho e Virgílio ao descreverem as duas cenas. Raízes como navigare (Eneida, II, 237), dolor
(547), insania (595), gemitus (667, 685), querela (677), crudelis (308) e lacrimae (370) são
comuns a ambas, mas nenhuma dessas palavras é especialmente incomum por si só, e tampouco
Agostinho as justapõe de maneira que evoque em especial o Livro 4 da Eneida” (Burton,
“Alternative Comedy: The Language of the Theatre”, pp. 49-50).
340 MacCormack, op. cit., p. 99.
341 “The Conversion of Vergil: The Aeneid in Augustine’s Confessions”, p. 61.

133
Mônica, que segue outro enredo, vai para casa rezar.” 342 O bispo de Hipona,

portanto,

julgava-se qual uma pessoa fictícia de uma forma


que não era, incapaz de reconhecer o modo em que o
era de fato. Achava que ia da miséria à felicitas, mas na
verdade ia da vera miseria à falsa felicitas. 343 Ao
contrário de Eneias nesse aspecto (ao menos segundo
Virgílio), era-lhe igual noutro aspecto de que não fazia
ideia: estava divinamente orientado. 344 Não se
equivocava em achar que se aproximava da felicitas –
embora nutrisse falsa ideia do que se tratava – e,
soubesse ou não, estava indo em direção a uma patria.
Sua viagem para Roma era uma imagem da verdadeira
viagem da miséria para a felicidade e parte dessa
viagem. Como disseram os Solilóquios, o falso só o era
por força de sua semelhança com a verdade; mais uma
vez, Agostinho não poderia ter se equivocado a respeito
do sentido de sua experiência caso não houvesse um
paradigma preciso que a ficção tanto usara quanto
pervertera em seu uso.345

Esse processo de identificação, embora impreciso, representa

progresso: “ler a própria vida à luz dos figmenta só poderia (...) revelar suas

inadequações”. 346 Agostinho busca, ao partir para Roma, uma patria, mas

sua chegada ali é completamente contrária ao heroísmo da estada de

342 Ibid., id.


343 Cf. Confessiones, V, 8, 14.
344 Cf. ibid., id.
345 Bennett, op. cit., pp. 61-2.
346 Ibid., id.

134
Eneias: “Aqui, fui eu recebido com o flagelo de uma enfermidade corporal que

esteve a ponto de mandar-me ao sepulcro.” 347 A patria a que Agostinho

estava destinado não era aquela a que poderiam levar-lhe navios e

embarcações.

Mas há, ainda, a figura de Mônica, que surge, na cena que divide

com Agostinho na praia de Cartago, qual nova Dido, a chorar de amor. Sofre

com sua perda do mesmo modo como a rainha o fizera. No entanto, deve

trair seu modelo; Mônica não consegue se conformar à personagem do épico

e outra a suplanta:

Pois, também como as demais mães, e ainda muito


mais que a maioria, desejava ter-me junto a si,
desconhecendo os grandes gozos que tu lhe
preparavas com minha ausência. Não os conhecia, e
por isso chorava e se lamentava, acusando com tais
lamentos a herança que havia nela de Eva, ao buscar
com gemidos o que com gemidos parira.348

Eis um amor que, reconhece Agostinho, é ainda carnal; trata-se,

porém, de amor mais puro que a de Dido, cuja reação à partida do amado é a

maldição do herói e sua raça: Mônica, repetimos, vai para casa rezar. É justo,

portanto, afirmar com Bennett349 que, na costa de Cartago quem morre é o

“eu-Dido de Mônica”, uma vez que, em sua próxima aparição, dada em

Confessiones VI, 1, 1, ela é “forte em sua piedade”: mater pietate fortis.

Não, entretanto, sem outra congênere épica com a qual a

justaposição se frustra:

347 Confessiones, V, 9, 16.


348 Ibid., V, 8, 15.
349 Op. cit., p. 63.

135
A mãe de Euríalo seguira seu filho até a Itália; não
obstante, ele morre, ao que ela o censura e implora a
morte, evocando a pietas: “hoc mihi de te,/ nate, refers?
hoc sum terraque marique secuta?/ figite me, si qua est
pietas, in me omnia tela/ conicite, o Rutuli, me primam
absumite ferro;/ aut tu, magne pater divum, miserere,
tuoque/ invisum hoc detrude caput sub Tartara telo...”
[Eneida, IX, 491-96] (...) Se o amor materno tivera início
do mesmo modo, terminou de maneira completamente
distinta. A fé, no mundo de Virgílio, era em vão (...). A
pietas, na mãe de Euríalo, só poderia ansiar pela vida
corporal de seu filho e, na falta dela, por sua própria
morte – ambas imploradas em vão; seus deuses eram
incapazes de ajudá-la. Mônica, por sua vez, é
transformada diante de nossos olhos em personagem
diferente, a viúva de Lucas 7. O filho de Mônica já
passara da enfermidade à saúde física mediante
orações que a primeira ignoravam 350 (...); agora, essa
mulher em pietas deseja também sua saúde espiritual e
poderia confiar sem receios na benevolência do Deus
em quem buscava ambas.351

Eis, de fato, Mônica não como personagem do épico, mas

convertida na viúva do Evangelho: “Entretanto, quando lhe revelei que já não

era maniqueu, embora tampouco cristão católico, não deu saltos de alegria

como quem escuta algo inesperado, por estar já tranquila quanto àquela

parte de minha miséria. Diante de ti, chorava como sobre um morto que devia

350 Confessiones, V, 16: “E, agravando-se as febres, quase estive a ponto de perecer. (...) Não
sabia disto minha mãe, mas rezava por mim ausente, escutando-a tu, presente em todas as partes
(...) e exercendo misericórdia para comigo (...).”
351 Bennett, op. cit., p. 64.

136
ser ressuscitado, oferecendo-me a ti no féretro de seu pensamento, para que

dissesses ao filho da viúva: ‘Jovem, a ti digo: levanta-te!’”352

No livro nono, podemos vê-la pela última vez – e também pela

última vez ao lado do filho:

Estando já iminente o dia em que havia de deixar


esta vida (...), sucedeu (...) que nos achássemos a sós
apoiados sobre uma fenestra, da qual se contemplava
um horto dentro de casa, ali em Óstia Tiberina, onde,
afastados das turbas, após as fadigas de uma longa
viagem, recolhíamos forças para a navegação.
Sozinhos, ali conversávamos dulcissimamente; e,
esquecendo as coisas passadas, ocupados do que
estava por vir (...).353

O episódio culminará na já conhecida “visão de Óstia”, onde

ambos elevam suas almas a fim de chegarem “à região da abundância

indeficiente, onde tu apascentas eternamente Israel com o pasto da verdade”

– e logram, de fato, “tocá-la um pouco com todo o ímpeto de nosso

coração”.354 A beleza do trecho comove, mas também evoca, como acima,

outro encontro derradeiro nas praias da Itália, onde Eneias fora ter com seu

pai. A semelhança é assegurada por certos detalhes que Agostinho dispõe:

“Para ambos os pares”, o Eneias original e o Agostinho que se põe como

Eneias, “uma longa viagem jaz às suas costas e outra, mais uma longa, à

frente. Mãe e filho, conversando, olham para além de um jardim; Eneias e

352 Confessiones, IV, 1, 1.


353 Ibid., IX, 10, 24.
354 Ibid., id.

137
seu pai olharam por sobre uma planície verde no Hades”. 355 Os dois

personagens da epopeia também avistam o Lete, rio do esquecimento, e ali

contemplam as almas reunidas, à espera de beberem da água antes de

retornarem à vida. Agostinho e Mônica abriam “anelantes a boca de nosso

coração em direção aos caudais soberanos de tua fonte, da fonte de vida que

se encontra em ti (...)”.356

No entanto, o que veem ambos os pares ao olharem para o futuro?

Os descendentes, a glória terrena, o governo de Roma, no caso de Eneias e

Anquises; mas que glória será essa se comparada àquela que aguarda mãe

e filho no futuro eterno? Na realidade, a glória que Mônica e Agostinho

contemplam é a única digna desse nome. É manifesto: o bispo, tanto neste

quanto nos outros episódios em que figura a mãe, leva a cabo certa

purificação da experiência literária; as cenas arquetípicas, cuja origem é o

épico que o fascinara quando jovem, não se sustentam ante a realidade. É

preciso reescrever, por conseguinte, a história; Agostinho o faz e Ramage,

por isso, chama-o “novo Virgílio”; e, porque é também sua história, “novo

Eneias”.357

Tudo, portanto, e sobretudo os movimentos mesmos do bispo,

leva-nos a crer que é a Eneida o principal candidato secular a intertexto

capaz de fazer-nos compreender as Confessiones. As referências são

explícitas de diversas maneiras, e não se poderia esperar nada além de que

os comentadores se dedicassem maciçamente ao cotejo com o épico.

355 Bennett, op. cit., p. 65. Cf. Eneida, VI, 679ss, 703ss.
356 Confessiones, IX, 10, 23.
357 Op. cit., p. 58.

138
Não obstante, pode-se seguir outros caminhos – mais “novos”,

sempre complementares, embora menos frutuosos. Burton 358 o tomou e

trouxe, para a leitura das Confessiones, o ambiente do teatro antigo. Lembra,

em primeiro lugar, o episódio em que o Agostinho estudante deveria, em

competição, adaptar à prosa o monólogo de Juno, cabendo o prêmio a quem,

como se viu, “segundo a dignidade da personagem representada

[adumbratae personae], lograsse retratar com mais vivacidade e

verossimilhança, revestindo com palavras mais adequadas, seus afetos de

ira e dor”;359 passa, depois à referência do bispo à Eneida como “espetáculo

de vaidade”360 [spectaculum vanitatis]: “No latim, tanto spectaculum quanto

persona são encontrados, com maior frequência, em referência ao teatro, o

que em prática consiste na comédia romana tradicional de Plauto e Terêncio,

bem como no gênero, presente na cultura popular, do mimo”.361

Terêncio, já se comentou, é mencionado quando da descrição da

realidade de Agostinho em sala de aula, onde aprendia certas palavras em

contato com uma história corruptora; mas há ainda mais: Agostinho

empregaria expressão que remete a outra dos Adelfos ao descrever sua

experiência escolar incipiente: “Deus meu, Deus meu, que misérias e

enganos experimentei ali!” [quas ibi miserias expertus sum et

ludificationes].362 Não deve ser coincidência, portanto, que o bispo declare,

no relato de sua vida, que ao “fornicar” longe de Deus ouvia do mundo:

358 “Alternative Comedy: The Language of the Teatre”, pp. 35-62.


359 Confessiones, I, 17, 27.
360 Ibid., I, 13, 22.
361 Burton, op. cit., p. 38.
362 Confessiones, I, 9, 14. Em Terêncio, nos Adelfos, 867: quam ibi miseriam vidi!.

139
“Bravo! Bravo!” 363 [euge, euge]. Notará o comentador que a exclamação

grega euge, no latim clássico, “é muito mais frequente na comédia” que

alhures; todavia, quando a buscamos nos salmos, 364 vemo-la sempre em

caráter negativo, qual exclamação de desaprovação: “Como jovem

protagonista na comédia humana, Agostinho é aplaudido; mas as mesmas

palavras trazem algo de irônico quando citadas a partir das Escrituras.”365

De que temas do teatro ocorrem frequentemente no interior de

obras de outros gêneros é algo que Burton nos recorda;366 na própria Eneida

figuram referências a Eurípides (Hipólito, Medeia e Bacantes) e Ésquilo

(Oresteia), enquanto Petrônio e Apuleio assimilam traços do mimo e da

comédia. Ao pesquisador, impõe-se uma forma de investigação mais “certa”,

voltada à linguagem teatral e, sobretudo, aos arcaísmos: naquelas

passagens em que há, além do resgate de uma expressão do velho teatro,

toques da comédia e do mimo, Burton declarará possível encontrar novas

fontes a terem inspirado as Confessiones e a revelarem o modo como o

bispo de Hipona viu e empregou a literatura ficcional. E o primeiro dos

episódios que explora gira em torno do velho (e, aqui, também injustiçado)

amigo Alípio, em período no qual foi aluno de Agostinho em Cartago:

363 Ibid., I, 13, 21.


364 No Salmo 34, 21: et dilataverunt super me os suum dixerunt euge euge ([Meus inimigos]
escancaram para mim a boca, dizendo: Ah! Ah!”); no Salmo 39, 16: ferant confestim confusionem
suam qui dicunt mihi euge euge (“Fiquem atônitos, cheios de confusão, os que me dizem: Bem
feito! Bem feito!”; e no Salmo 69, 4: avertantur retrorsum et erubescant qui volunt mihi mala
avertantur statim erubescentes qui dicunt mihi euge euge (“Afastem-se, cobertos de vergonha, os
que me dizem: Ah! Ah!”).
365 Burton, op. cit., p. 40.
366 Op. cit., pp. 41-2.

140
Ao meio-dia, repassava no fórum o que havia de
recitar, segundo o costume dos estudantes, e foi preso
qual ladrão pelos guardas [aeditimis] dali (...).
Passeava Alípio diante do tribunal apenas com as
tabuinhas e o estilete, quanto um jovem dentre os
estudantes, mas também verdadeiro ladrão, que portava
às escondidas [clanculo apportans] um machado,
chegou sem ele perceber às grades de chumbo que
davam para a rua dos prateiros e se pôs a cortá-las.
Ao ruído dos golpes, confabularam
[submurmuraverunt] os prateiros que se encontravam
abaixo e guardas enviaram para prendê-lo, fosse ele
quem fosse. Este, porém, porque ouviu suas vozes,
pôs-se em fuga, abandonando nisso o instrumento de
ferro por recear ser apanhado com ele. Alípio, que não o
vira entrar, viu-o porém sair precipitadamente e escapar;
desejando saber a causa, adentrou o local e,
encontrando-se com o machado, pôs-se a contemplá-lo.
Eis, contudo, que entraram os enviados e o
surpreenderam a sós com o ferro em mãos (...).
Prendem-no então e o levam à força, enquanto gloriam-
se os inquilinos do fórum por terem encontrado o
verdadeiro ladrão, que é conduzido dali a fim de ser
julgado.367

Mas não tem fim desta maneira a história: enquanto era carregado,

encontraram o arquiteto responsável pelos edifícios públicos. O homem

conhecia Alípio por tê-lo visto muitas vezes em casa de um senador;

chamando-o à parte, desejou saber o que houve, escutou o que se havia

passado e fez com que a multidão raivosa o seguisse. Levou-a à casa do

367 Confessiones, VI, 9, 14.

141
verdadeiro ladrão, onde um escravo, ainda menino (um pedisequus), se

encontrava à porta, tendo mais cedo acompanhado o ladrão ao fórum.

Quando o arquiteto revela ao escravo, tão ingênuo!, o machado e lhe

pergunta de quem é, escuta a confissão inconsciente: Nostra. 368

Burton insere numa nobre tradição o uso do machado como

elemento a desencadear confusão de identidade. Menciona o Escudo de

Menandro e Vidulária de Plauto; e, quanto ao tema do inocente arrastado a

julgamento, o livro terceiro do Asno de ouro, de Apuleio. 369 Interessa-lhe

mais, porém, os indícios linguísticos: aeditimis é arcaísmo identificado por

Aulo Gélio e Varrão, sendo Aeditumis título de mimo idealizado por um

dramaturgo que o próprio Agostinho cita na Civitate Dei: Pompônio;

submurmuro, ao que parece, não é encontrado alhures, mas apresenta

formação característica do latim antigo, tendo um prefixo sub- especialmente

associado a Plauto e outros autores ainda mais antigos; em Plauto,

pedisequus surge sete vezes, enquanto ocorre numa só em Terêncio e

começa a mostrar-se raro no primeiro século a. C.; também em Terêncio e

Plauto é particularmente comum o verbo apportans. Por fim, clanculo,

arcaísmo dito “mais problemático”: 26 vezes surge em Plauto; sete, em

Terêncio, entre elas na passagem a que Agostinho se refere no livro primeiro

das Confessiones; após período em desuso no latim clássico, retorna em

Apuleio, notório por seus arcaísmos, com oito ocorrências. 370 Vale mais,

porém, ao pesquisador que pouco se inclina a minúcias da filologia, a

conclusão que tirará Burton: “De maneira mais geral”, dirá antes de passar ao

368 Cf. ibid., VI, 9, 15.


369 Cf. Burton, op. cit., pp. 44-5.
370 Cf. op. cit., pp. 45-6.

142
segundo de seus episódios, “a história ilustra como Alípio, a exemplo de

Agostinho, é levado por seus estudos literários a um mundo irreal”. Ao que

continua: “Não é expresso o tema que caberia a Alípio recitar; tratava-se, de

todo modo, de algo fictício e cativante. Contudo, é essa obsessão por um dos

gêneros literários ‘superiores’ da retórica o que subitamente o faz decair

vários gêneros até o mundo da farsa, onde seus estudos forenses (...) não

têm utilidade alguma”.371

É curioso notar, ademais, que o episódio da partida de Agostinho

desde Cartago a Roma, no qual Mônica recorda imediatamente a figura de

Dido em prantos pela partida de Eneias, tem identificadas aqui suas notas

cômicas.372 Ampliemos o trecho já reproduzido alhures –

Porém, como recusasse ela a regressar sem mim,


pude apenas convencê-la a permanecer, ao longo
daquela noite, em lugar próximo à nossa embarcação,
em memória ao bem-aventurado Cipriano. Na mesma
noite parti às escondidas [clanculo] e sem ela, deixando-
a em oração e prantos. (...)
Soprou o vento, inflou nossas velas e desapareceu
de nossa vista a praia, em que minha mãe, na manhã
próxima, enlouquecia de dor, enchendo de queixas e
gemidos os ouvidos teus, que não os atendia; antes,

371 Op. cit., p. 48.


372 Que também se encontrariam no próprio épico: “Sérvio, contemporâneo de Agostinho,
observa no prefácio a seu comentário sobre o Livro 4 da Eneida que o livro é ‘completamente
perpassado por planos sutis’, uma vez que o estilo beira o cômico [paene comicus stills est], como
se esperaria quando o tema é o amor. Temos o testemunho de Macróbio (Saturnalia 5. 17. 5),
segundo o qual a história de Dido era tema prestigiado pela escultura e pela pintura, ‘e não
menos enaltecida nos gestos e cantos constantes da profissão dramática’”. Em Burton, op. cit., p.
50.

143
levavas-me para longe, a fim de que desse fim à
concupiscência por meio da concupiscência e
castigasse [vapularet], com o justo flagelo da dor, o
anseio carnal de minha mãe por mim. Pois, também
como as demais mães, e ainda muito mais que a
maioria, desejava ter-me junto a si, desconhecendo os
grandes gozos que tu lhe preparavas com minha
ausência. Não os conhecia, e por isso chorava e se
lamentava [flebat et eiulabat], acusando com tais
lamentos a herança que havia nela de Eva, ao buscar
com gemidos o que com gemidos parira.
Por fim, após ter-me acusado de falácia [fallaciarum]
e ser mau filho, e após rogar por mim a ti, voltou-se à
sua vida ordinária e eu, a Roma.373

– e nos furtemos a paráfrases; é simples o exame dos resquícios

linguísticos em Burton:

No plano linguístico, a passagem é forjada em


linguagem que pode remeter ao mundo do teatro
cômico. Agostinho parte “às escondidas”, clanculo;
como se viu, essa palavra pode marcar uma guinada
rumo ao modo cômico. Mônica se vai reclamando da
fallacia do filho, comportamento típico do adolescens da
Comédia Nova, muito mais frequente em Plauto e
Terêncio que alhures na literatura latina; há ainda o
testemunho de Cícero, segundo quem as fallaciae são
tema característico do mimo. Mônica se lamenta – eiulat
– ante a traição. Também aí pode-se ter um toque
cômico: no latim clássico, o verbo é encontrado em

373 Confessiones, V, 8, 15.

144
Plauto em número esmagadoramente superior ao de
qualquer outro autor (...). Seu “anseio carnal” pelo filho é
castigado [vapularet] pelo verdadeiro Mestre mediante o
“justo flagelo da dor” . Mais uma vez, podemos suspeitar
de um dado originado na linguagem da comédia, uma
vez que Plauto e Terêncio trazem praticamente todos os
indícios clássicos do verbo.374

Mais do que abrir nova linha de interpretação para o episódio, a

presença de notas cômicas ali reforça o que o tom épico nas Confessiones, o

tom da Eneida, já permitia vislumbrar, a saber: que ambos os protagonistas

do episódio na obra do santo não conseguem estar à altura do modelo

virgiliano, frustrando-o sempre. Com os resquícios linguísticos de Plauto e

Terêncio, resta claro: trata-se dum épico de certa forma “escarnecido”;

Agostinho é o herói-cômico.

Novamente à mãe, porém: agora no livro nono, Mônica retorna em

flashback que nos leva à sua infância. Uma decrépita serva (famulae

cuiusdam decrepitae), de “ótimos costumes” e respeitada, é quem lhe oferece

boa parte de sua educação; proíbe a jovem, entretanto, bem como outras, de

tomar sequer água fora das refeições, receando fomentar maus hábitos:

“Agora bebeis água pois não tendes vinho; quando casadas e donas da

adega, porém (...)”.375 Ao mesmo tempo, seguindo os costumes de então, os

pais de Mônica mandavam-na buscar o vinho no tonel da família; aos poucos,

cresce na moça o gosto pela bebida, por ela sorvida antes de ser despejada

na garrafa: passado o tempo, chegaria a beber quase a xícara cheia.

374 Op. cit., pp. 51-2.


375 Confessiones, IX, 8, 17.

145
Certa feita, Mônica discute com a escrava que costumava

acompanhá-la ao tonel; a sós ambas, a acompanhante joga-lhe na cara o

vício: chama-a meribibula, isto é, beberrona particularmente inclinada ao

vinho. Eis o que basta para que a futura santa, ferida pelo insulto,

abandonasse seu hábito.376

Reproduzindo Burton, 377 mais uma vez:

Novamente, a linguagem da história possui vínculos


com o mundo da comédia. A velha é decrépita,
decrepitus [sic], adjetivo raro, no latim clássico, fora da
comédia; há certo indício de seu resgate no latim pós-
clássico, mas é provável que tenha perdurado, em
parte, ao menos como arcaísmo consciente. A velha,
entretanto, carregara o pai de Agostinho nos ombros, a
exemplo de outras jovens (grandiusculae) – palavra
que, no latim clássico, só encontramos uma única vez,
em Terêncio (...). As ações de Mônica são atribuídas
por Agostinho a uma ebulição de “hábitos lúdicos”
(ludicris moribus) – todavia, a expressão latina poderia
ser igualmente interpretada como “personalidade
teatral”. A escrava tenta atacar a senhorita
secretamente (clanculo, mais uma vez). Duas das
principais dramatis personae, a velha (anus) e a própria
escrava (ancilla), são figuras que surgem regularmente
na comédia romana. Por fim, há a acusação de
meribibula por parte da serva. O adjetivo, em particular,
não aparece alhures na literatura latina; porém,
encontramos em Plauto (Curculio, 77) referência a uma

376 Cf. ibid., IX, 8, 18.


377 Op. cit., p. 53.

146
velha alcoviteira que bebia muito, e vinho puro
(multibiba atque merobiba).

Nesse ponto, já não se poderia esperar outra coisa senão que o

conteúdo do episódio acabasse por frustrar o modelo a que a linguagem

remete: “Os personagens femininos de baixo prestígio na Comédia Nova,

sobretudo as velhas, muitas vezes se notabilizam por seu gosto pela bebida;

aqui, a velha busca ativamente impedir que Mônica desenvolva esse gosto, e

mesmo a escrava, sem saber, contribui para isso.”378

***

São muitas as veredas que tanto os comentários quanto a forja

retórica de Agostinho revelam: o que diz e o que faz parecem divergir de tal

maneira que uma palavra capaz de definir a posição do bispo ante a tradição

literária pagã soa impossível – para um veredito positivo ou para outro

negativo, não haverá sempre algum argumento bem fundamentado em suas

linhas? Algumas observações a título de conclusão talvez deem melhor visão

do que se viu nestes capítulos, e é igualmente possível que uma visão assim

geral revele o lugar de cada artimanha do bispo no emprego e juízo da

literatura que circulava em seu tempo.

378 Ibid., p. 54.

147
Conclusão

Que nas Confessiones venham entretecidas imagens, alusões e

citações vindas da tradição literária antiga não surpreenderá quem souber o

mais mínimo que seja da educação herdada por santo Agostinho. Já se

mencionou o currículo que lhe chegara às mãos, já se assinalou a ênfase nas

letras; sobretudo, já se apontou tudo aquilo a que sua educação o preparava.

Constitui essa tradição, vimos, o núcleo mesmo do sistema literário de Roma,

e assim há de se encarar a intertextualidade, por si só, como certa

consequência natural desse ambiente.

No entanto, uma “naturalidade” tal não deve fomentar ingenuidade

nenhuma a respeito das vantagens retóricas do artifício:

Recordar-se de um modelo, no sentido de citá-lo,


serve para reproduzir na escrita a paixão, o apelo,
produzidos pela leitura. O escritor, graças à arte alusiva,
apresenta-se como leitor que ama certos textos (ou que
por eles prova uma paixão qualquer, ainda que fosse
ambivalente ou hostil). Não nos ocultemos, porém, que
nessa paixão pode haver uma conveniência: e não
somente porque assim fazendo o poeta se apresenta
sob o sinal reassegurador de uma tradição e se
autolegitima: (...) o poeta que ama seus predecessores
a ponto de a eles oferecer a palavra quer, na realidade,
ser ao menos amado o mesmo tanto pelos seus
leitores.379

379 Gian Biagio Conte e Alessandro Barchiesi, “Imitação e arte alusiva. Modos e funções da
intertextualidade”, p. 87.

148
Desculpemos Conte e Barchiesi, pois decerto não teriam em

mente um santo. Ainda assim, para além do fator da vaidade, procede a

utilidade da estratégia em suscitar no leitor sensação de admiração e,

sobretudo, confiabilidade.

Kotzé, 380 em seu esforço por demonstrar que as Confessiones

foram sobretudo um protréptico ou parênese, e não obra cujo objetivo seria

“analisar e compreender a si mesmo, nem criar, para a posteridade, um

retrato de si ou sua conversão”, teve o mérito de recordar-nos o que deveria

ser evidente e já se chegou mesmo a comentar: que Agostinho, ao contrário

da opinião de alguns modernos, não escreve mal; retórico de primeira linha

que era, jamais poderia violar “o primeiro cânone da composição: a unidade”

– erro pelo qual, “quando estudante, seria açoitado”.381

Portanto, ao menos segundo a comentadora, a aparente falta de

coesão entre seus livros ditos “autobiográficos” e seus livros de exegese,

bem como uma notável lista de artifícios estilísticos, estaria explicada à luz da

comunidade discursiva a que as Confessiones se destinariam:

Se o principal objetivo de um protréptico é


influenciar nada menos do que todo o modo de vida (...)
de um indivíduo específico ou um grupo deles, segue-se
que todo o tecido do protréptico deve estar precisa e
especificamente sintonizado para alcançar seu público
da maneira mais eficaz possível. Isso significa que o
conteúdo, o tom e as estratégias do autor dependerão
totalmente do tipo de público que ele ou ela tem em
mente, fator que por óbvio é infinitamente variável, e a

380 Communicative Purpose and Audience in Augustine’s Confessions, p. 03.


381 Ibid., p. 22.

149
relação entre o autor e seu público, que também pode
variar.382

Kotzé fundamentará a opinião de que seriam os maniqueus esse

público-alvo, ou ao menos o principal. Todavia, embora se admita que o

objetivo dos protrépticos confere ao autor a liberdade de usar elementos dos

mais diversos gêneros,383 conserva-se a dúvida quanto à contribuição que a

tradição literária antiga, sobretudo a Eneida, poderia oferecer a essa

finalidade exortatória particular. A herança clássica, nas Confessiones,

também figuraria como mais um fator a envolver o leitor maniqueu e, assim,

fomentar nele o desejo de uma mudança radical de vida? Seja esse o caso,

como explicar o que Hagendahl 384 identificou, a saber: que, nos panfletos

contra os maniqueus, donatistas e pelagianos, “com relativamente poucas

exceções, Virgílio se faz notar por sua ausência”?

De todo modo, resta o fato de que o uso pelo santo da herança

literária clássica encontra-se inevitavelmente inserido numa tradição

longuíssima de leitura e ensino e, portanto, deve travar com ela alguma

dinâmica íntima que permite a Agostinho, em diversos momentos de sua

obra, valer-se do depósito literário do passado, enaltecê-lo ou criticá-lo,

transformá-lo ou descartá-lo. E já não se pode duvidar de que são as

Confessiones o momento de sua bibliografia em que a dinâmica se apresenta

mais palpitante.

Nos diálogos de Cassicíaco, já a vislumbramos. Hagendahl teve o

mérito de quantificar os sedimentos da tradição que Agostinho conservaria ao

382 Ibid., p. 53.


383 Cf. ibid., p. 59.
384 Augustine and the Latin Classics, p. 454.

150
longo de sua atividade. Fora Cícero, cujo impacto imediato sobre as

discussões era evidente, Virgílio é o mais citado; encontram-se também

Terêncio e Ovídio ali. A maioria das citações, entretanto, é ornandi causa,

isto é, utilizada com fins de ornamentação. Decerto a opção estilística vinha

reforçada pelo fato de a leitura conjunta de Virgílio ser corrente naquele

ambiente, entre os participantes das primeiras obras posteriores à conversão;

nem mesmo isso, entretanto, consegue disfarçar que tanto os testemunhos

registrados por Hagendahl quanto as próprias declarações sobre a arte

poética, em Cassicíaco, encontram-se submetidos a um rígido projeto de

ascese pelas artes liberais. Assim – vimo-lo –, Licêncio pode usar a poesia

como meio de comunicar uma verdade agradavelmente; mas, se os versos

ocupam em seu espírito lugar maior que a filosofia, devem ser eles

censurados: nesse caso, qual declara o De ordine, a poesia tornar-se-ia muro

entre o entusiasta e a verdade.

Quem se pusesse a ler, em sequência, os diálogos de Cassicíaco

e o De doctrina christiana não chegaria, é evidente, a duvidar nem da

continuidade doutrinária de Agostinho, nem do fim último a que todos os

esforços do santo sempre se destinaram após sua conversão. Não obstante,

deve-se admitir que algo muda, que desde o segundo plano não ecoam já as

vozes de uma cultura antiga e conhecida, e sim o movimento de um

desbravador que se vê diante de um bosque cerrado, vasculhando sua

bagagem em busca dos instrumentos que lhe poderiam ser úteis para abrir

as trilhas de uma cultura bíblica que ele já vislumbra possível.

Os instrumentos, sabemos, não poderiam ser outros: o ouro

mesmo do Egito, isto é, os tesouros de um conhecimento pagão que agora

151
encontra sua real utilidade. Colocados em seu lugar, ordenam-se para o alto,

para um conhecimento superior a que toda a tradição clássica não poderia

chegar – entrevê-lo, talvez, mas jamais tocá-lo. Nesse contexto, a distinção

entre o usar e o fruir é particularmente útil, uma vez que já se possui a meta

de que se deve gozar.

O problema com o legado literário clássico em especial, no De

doctrina christiana, vimos que está em saber se é daninho somente à

hermenêutica ou se à alma do cristão propriamente dita. Não obstante,

acontece com ele o que se dá com todo o conjunto de saberes recebidos

pelas mãos dos antigos: por mais que se conservem valiosos a seu modo,

torna-se claro que encontram-se na parte de baixo de um desnível; acima, ao

menos segundo o bispo de Hipona, jaz esta nova civilização, esta nova

cultura, que se encontra à espreita e que Agostinho ajudará a fundar.

É tudo isso o que se materializará, recebendo grau artístico dos

mais elevados, em todo o tecido de imagens e declarações com que

Agostinho elabora suas Confessiones. Que a tradição filosófica, mesmo o

platonismo, era incapaz de dar conta dessa grande novidade que era a

Verdade revelada, a Verdade encarnada, e portanto da cultura nova que dela

nascia – muito já se falou disso, sabemos, e quase à exaustão. No entanto, o

olhar direcionado revelará: também a tradição literária será incapaz de lográ-

lo.

Agostinho já perceberia tudo isso ao tentar desvendar a psicologia

daquele menino que nascera e fora educado no ambiente literário romano.

Excitado ante os errores de Eneias e as mazelas de Dido, vimos que

esquecia-se de si próprio e de seu fim; pelo contato com o Eunuco de

152
Terêncio, podia assimilar tanto noções proveitosas ao estudante quanto

imoralidades; diante do palco, mediante ficções, tinha os afetos estimulados

de maneira desordenada, desejando experiências sem, porém, conseguir dar

adequada vazão às reações que lhe seriam moralmente convenientes. Não

obstante as faltas a que Agostinho foi levado pela rudeza, ao menos nesse

aspecto, de uma análise psicológica em geral precisa, é esse o tipo de

reflexão a que ele se veria conduzido ao olhar para um estudante que era

fruto exemplar da educação levada a cabo na Antiguidade Tardia.

É claro: poder-se-ia dizer – e com razão – que as objeções

“explícitas” do Agostinho maduro à experiência literária de juventude só

dizem respeito a uma cultura inteira num grau diminuto, estando sobretudo

voltada, antes, a uma experiência com a literatura e a ficção que vivenciamos

ainda hoje, todos nós. Tanto é isso verdadeiro que seus comentários sobre a

experiência escolar com a Eneida em Confessiones I, bem como sobre sua

vivência diante do palco no livro terceiro, são presenças constantes e

obrigatórias nos estudos que buscam estudar a relação da literatura com a

verdade, o problema da ficção, a relação entre literatura e mentira, entre

outros muitos temas caros à teoria literária de hoje.

É preciso, no entanto, ir além e reconhecer que o Agostinho das

Confessiones é, antes de mais nada, um leitor maduro, com o olhar

plasmado por uma graça da qual seu próprio processo artístico, como sói

acontecer, não conseguiu escapar. É bem verdade que o legado literário

clássico estaria gravado em sua alma, e a tal ponto que seria compreensível

a impossibilidade de suprimi-lo mesmo com um projeto cultural novo e

consciente; todavia, o rhetor que se destacava pela excelência – e também o

153
filósofo rigoroso – não poderia jamais ter utilizado tantos elementos do épico

e do teatro clássicos sem um propósito premeditado. As próprias

modificações a que submetia os trechos citados, as alusões e imagens

revelam que há algo, naquela herança, que não dá conta da nova experiência

de Agostinho – uma experiência que só mui remotamente o mundo antigo

poderia conhecer.

É o que se pode depreender a partir da segunda metade do

capítulo destinado às Confessiones. O bispo possui, é evidente, domínio

completo das imagens e do vocabulário épico e dramático; consegue fundi-

los com as imagens e o vocabulário dos Evangelhos, permite que

complementem aquela beleza dos salmos que perpassa a narrativa de sua

obra-prima. Sobretudo, utiliza-as de modo a criar, no leitor que decerto as

conhecia com semelhante familiaridade, alguma expectativa: extraídas de

uma cultura baseada em modelos, as referências de Agostinho traziam-nos

logo à memória.

Quando, portanto, é frustrado cada um dos parâmetros da herança

recebida; quando, por exemplo, a realidade torna Mônica incapaz de seguir o

exemplo de Dido ou dos arquétipos do teatro antigo; quando Agostinho

recebe destino diferente do herói virgiliano – tudo isso, bem como todas as

situações semelhantes, só podem anunciar algo que o artista Agostinho

agora expressa bem, mas que sabemos que o filósofo Agostinho já

percebera com clareza: que cultura nenhuma consegue dar conta da alma

que foi tocada pelo Espírito, que somente um leitor transformado por esse

quê inexplicável que é a graça tem a capacidade de ler e interpretar

corretamente um arsenal que lhe chega do passado e que, se útil, só pode

154
sê-lo por ajudar-nos a lograr um Fim. Que injustiça seria pôr, nos lábios de

Agostinho, qualquer crítica leviana à cultura que de certa forma o formara;

seu coração é maior do que isso, seu pensamento também; o que Agostinho

tem diante de si é aquele caminho que poderia aquietar o coração que busca

repouso perene e que, um dia, o buscara em tudo o que prometia fazê-lo,

mas em vão. Dido, Enéias, o teatro, a eloquência – tudo em vão, mas não por

razões rasteiras; antes, por causa do tamanho desse rombo que o homem

traz no peito, desse rombo que por vezes julga passível de ser preenchido

por uma série de gozos, mas que só Deus mesmo consegue saciar.

155
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