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Salgado
Prefácio para alertar gente grande
Esta pequena antologia do pensamento de Plínio Salgado, que Augusta Garcia R. Dorea
organizou com o objetivo confesso de fazer proselitismo, reúne alguns lampejos de uma
chama que não se apagou com a morte daquele que a acendeu, mas que ainda arde em
muitos corações e continua a abrasar os que dela se aproximam.
Estas páginas colhidas aqui e ali, ao longo de uma vida inteira de pregação apostolar,
testemunham a força de uma personalidade cuja energia moral conseguiu contagiar
multidões e suscitar no seio da sociedade brasileira uma escola de líderes e militantes que
se fez e ainda se faz presente nos mais diversos campos da vida social.
Se um frio espírito crítico quiser ver nestas páginas apenas o aspecto superficial da
expressão literária, poderá apontar facilmente lacunas na formulação sistemática das
idéias e até mesmo deficiências técnicas de uma terminologia por vezes imprecisa e
contraditória. Mas é preciso lembrar que Plínio Salgado jamais pretendeu ser um filósofo
puro e que a obra que realizou — o movimento integralista — não foi uma academia de
retórica, uma organização cultural e política formada ao sabor das circunstâncias e
navegando a favor da corrente. Pelo contrário, foi um fenômeno que desafiou a lógica dos
fatos materiais e realizou o que parecia impossível: criou uma nova consciência cívica em
nosso Pais e ergueu um dique contra a avalanche de desagregação dos valores da
nacionalidade, opondo-se ao mesmo tempo ao comunismo e ao capitalismo.
Quem não conhece Plínio Salgado ou dele só reteve uma imagem deformada, não dará
conta de que a força de sua mensagem provém justamente do fato de que ele foi um
revolucionário puro, um revolucionário radical, um homem que recusou os falsos dilemas
e teve a coragem de desmascarar as falsas antinomias, reagindo tanto contra a "direita"
como contra a "esquerda" e denunciando tanto o liberalismo como o socialismo, inclusive
o fascista.
Quem conheceu Plínio Salgado, quem leu os seus livros e ouviu sua palavra, quem
acompanhou os seus passos na vida pública, sabe que ele conseguiu despertar
consciências e queimar almas porque formou seu pensamento no calor das grandes
batalhas e viveu em plenitude as idéias que pregou. Por ser um pensamento acrisolado
pelo sofrimento e pela participação, vinha carregado de sinceridade, de experiência da
vida, de bom senso, mas sobretudo de uma coerência feita de contradições audaciosas,
atingindo o âmago dos problemas sociais e nacionais na essência de sua origem
espiritual.
Por isso, não é de surpreender que ele, adversário e alvo do ódio dos comunistas, tenha
liderado no Parlamento uma campanha para amparar material e moralmente a família de
um deputado comunista cassado pela Revolução de 64. Nem é de surpreender que ele
discursasse nestes termos:
— Os comunistas têm dignidade quando matam, quando oprimem, quando encarceram,
quando perseguem e instauram a mais feroz das ditaduras, porque agem em nome de um
princípio e são coerentes com ele. Enquanto nós, no Ocidente, nos proclamamos cristãos,
mas agimos como materialistas e ateus.
Sim, quem conhece Plínio Salgado sabe que, do princípio ao fim de sua vida, ele se fez
paladino da mais radical das revoluções —- aquela que ele chamava "a revolução
interior" — e todas as soluções práticas que em número, gênero e grau atestam a
fecundidade do programa integralista de edificação nacional, se projetam do foco de uma
afirmação de fé: só o Espírito é livre, ou por outra, "Deus dirige os destinos dos povos".
No cerne do pensamento de Plínio Salgado, desse pensamento que se fez sentimento e
ação, palpita a mesma opção fundamental do "Augustin", de Joseph Malègue: "Deus ou
terra".
Não admira, pois, que ele tenha sido uma figura desconcertante, um desses exemplares
raros da humanidade que exprimiu, na linhagem de um Dostoiewsky, o que um critico lú-
cido batizou de "conservadorismo revolucionário", ou seja, uma contestação radical da
força bruta e do jogo cego de instintos desordenados. A revolução, para Plínio Salgado,
como observou João Ameal, é "regresso constante à origem, volta ao ponto de partida".
Sua revolução se opõe tanto ao espírito da burguesia como ao revolucionarismo
mecanicista, e ele denuncia nessas expressões antagônicas a unidade originária da mesma
concepção de vida materialista.
Não conhece Plínio Salgado nem o integralismo quem se prende a um ou outro aspecto
fragmentário de sua obra. Ele foi o orquestrador genial de um conjunto de forças,
mobilizadas desde a base popular até o nível das elites, às quais imprimiu um sentido
construtivo e ecumênico em torno do ideal que se resumia em "Deus, Pátria e Família".
Ele viveu e transmitiu uma paixão. Sua paixão foi o Brasil. E foi uma paixão que
conciliou racionalmente o nacionalismo e a universalidade.
O integralismo estudou e projetou, à luz de uma pura espiritualidade, os mais diversos
problemas nacionais — a autonomia dos municípios e o equilíbrio ecológico, as
prioridades do sistema de transportes e a nacionalização dos produtos energéticos, a
reforma agrária e a autenticidade da representação política, o planejamento econômico e
a estrutura jurídica de um Estado ético — e tudo isso se subordinava a uma concepção de
vida voltada para a busca de valores transcendentes, ou seja, numa palavra, uma
concepção cristã, aberta a todos os que crêem no primado do Espírito e rejeitam,
portanto, o exclusivismo ideológico, o reducionismo interpretativo, o unilateralismo
sectário.
A rigor, Plínio Salgado fascinou, irritou e atraiu sobre si muito amor e muito ódio porque
se conservou fiel a uma Verdade maior, negando o endeusamento do Homem que conduz
ao totalitarismo democrático e à idolatria do Estado. O que ele propõe aos homens é
"algo mais", é a procura de um Absoluto que transcende deste mundo e permanece
irredutível a um conhecimento meramente pragmático, utilitário, tecnocrático.
Justamente por ser um desses grandes espíritos revolucionários, Plínio Salgado não se
ateve a particularismos e receitas mágicas. Seu papel foi o de lançar os grandes rumos de
uma Pátria, as grandes linhas de um pensamento capaz de somar, unir, integrar toda a
vasta e diferenciada gama de valores humanos interdependentes.
Eu me lembro de uma longa conversa que tive com Paulo Emílio Sales Gomes, o grande
crítico de cinema, ateu e socialista, ferrenho adversário do integralismo e de seu chefe,
quando há muitos anos atrás o convidei para pronunciar uma palestra no Grêmio Cultural
Jackson de Figueiredo, órgão que aglutinava a juventude integralista na década de 50.
Depois de trocarmos muitos argumentos sobre o nosso movimento, eu lhe observei que
ele não fazia justiça nem às idéias nem ao ideal de Plínio Salgado. Ele redarguiu, naquele
momento, quase num repelão, como quem receava parecer intelectualmente desonesto:
— Não me entenda mal. Eu não ignoro que Plínio Salgado está longe de ser um homem
medíocre. Ele é um homem complexo...
Essa recordação se associa agora em meu espírito a uma outra conversa que tive com
Almeida Salles, outro grande crítico de arte, que abandonou as fileiras integralistas para
aderir a um vago e circunstancial "socialismo democrático". Eu o encontrei, certa vez, no
Clubinho dos Artistas de São Paulo, e entre um uísque e outro ele argumentou:
— O integralismo não me satisfaz mais porque Plínio Salgado não passa de um grande
sedutor. Ele fica na periferia do problema social, não entra no problema e não o resolve.
É um grande escritor, mas seu pensamento permanece na aura do problema.
Eu respondi, então, que para mim a "aura do problema" era mais importante do que o
próprio problema. E ainda hoje penso assim.
Plínio Salgado foi um político, um poeta, um profeta.
Nele, o gênio literário que criou as páginas imortais de "O Estrangeiro", "Trepandé" e a
"Vida de Jesus", é inseparável do pensador másculo de "Psicologia da Revolução", do
pensador maduro de "Conceito cristão da democracia" e do visionário que antecipou em
tantas páginas, como as do presente volume, a catástrofe e a esperança dos dias de hoje.
Fundamentalmente, é certo, ele foi um político, pois toda a sua vida foi dominada pela
preocupação com o bem comum e com a participação nas lutas pela organização da
sociedade e do Estado, preconizando uma democracia orgânica, baseada na representação
de categorias econômico-culturais que hoje encontra correspondência no sindicalismo de
Lech Walesa e no pensamento político de Alexandre Solzhenitsyn. Dir-se-ia, porém, que
a política, que ele praticou desde a mais tenra juventude, em São Bento do Sapucaí, até a
idade mais avançada, na Câmara Federal, essa política que ele viveu em tantos lances
decisivos da História do Brasil, era também uma obra de arte, uma obra de criação
poética, no sentido mais nobre em que não se circunscreve à arte de tomar e exercer o
poder, mas exprime a arte de buscar a legitimidade e ordenamento das relações de poder
em todos os níveis da vida social.
Entretanto, esse político e esse artista que viveu o que pregou e deu testemunho da
Verdade, acabou por se afirmar, em última análise, como o profeta de uma nova
civilização.
O fermento revolucionário de sua mensagem está presente agora no que a imprensa
convencionou chamar de "a Nova Igreja", na qual se misturam o joio e o trigo. Fez bem a
responsável por essa antologia em fazer preceder os artigos de Plínio Salgado por trechos
dos mais recentes pronunciamentos do Papa João Paulo II. A despeito da ambigüidade
que caracteriza o chamado "progressismo católico", não há dúvida que existe uma
legítima revolução cristã em marcha e que esse cristianismo militante, ainda que truncado
ou desvirtuado por espíritos despreparados ou malintencionados, não pode parar e há de
concorrer com as correntes revolucionárias materialistas para a transformação do mundo
em que vivemos.
Porque nenhum homem digno desse nome pode se conformar com este século, com este
mundo. Que os burgueses se escandalizem com o processo de sua transformação, é
compreensível. Mas não os que aprenderam com Plínio Salgado que a única alternativa
para a barbárie é a revolução do Espírito.
Mais uma vez, quem tiver ouvidos, ouça.
Às vezes me lembro do grande dramaturgo Nelson Rodrigues quando dizia que "só os
profetas enxergam o óbvio". Um de seus personagens é um velho profeta que perambula
no meio das multidões, bradando:
— Ai de ti, se esqueceres o Espírito.
Plínio Salgado não fez outra coisa em sua vida.
Alfredo Leite
Nota:
[1] Extraído de: O pensamento revolucionário de Plínio Salgado, 2ª Ed., pág. IX, Voz do
Oeste, São Paulo, 1988.
Os Editores
I . ESPÍRITO BURGUÊS
Marcha Fúnebre
(1931)
O mundo moderno perdeu o senso puro da alegria. Porque confundiu a alegria com o
prazer. E tendo esgotado todos os prazeres, caminhou para a morte e o aniquilamento.
A liberdade política transformou-se em liberdade moral e essa criou a liberdade dos
instintos. O subconsciente cresceu sobre o consciente e clamou pelos seus direitos. Era o
mundo ignorado, o segundo plano confuso e impreciso que se transportava ampliando-se
como uma escuridão que avulta sobre a inteligência.
Proclamada a libertação de todos os limbos desconhecidos, entrou pela alma do homem
moderno o tropel alucinante das formas de pensamento, em estado de elaboração,
fantasmal e trágico. O mundo subconsciente (caos gerador ensaiando as expressões em
lineamentos disparatados como fetos informes e monstruosos) veio dominar o sentido da
vida contemporânea com a violência de forças brutais desencadeadas.
Forças sem governo, forças desordenadas, heterogêneas, sem direção. Forças telúricas do
mundo interior, amorfas, nebulosas, de ritmos fragmentários, dissociantes.
***
O fenômeno que se dera com as antigas civilizações arrasadas pelos bárbaros repetiu-se
de maneira inversa, dentro do próprio homem. Pois todo esse caos que a consciência
disciplinava era contido pela pressão de uma força exterior dominadora. O século da
máquina virou a alma pelo avesso, porque, tendo-se esta libertado do que se denominou o
"terror cósmico", que mantinha o equilíbrio contendo a deflagração das energias
interiores, viu-se, subitamente, dominada pelos estranhos duendes larvais, dos instintos
desenfreados.
A alma foi invadida pelos hunos dos seus próprios recessos...
A isso fora o homem levado pela sede de liberdade. Essa liberdade chegou às suas
últimas conseqüências. E de tal forma, que o pobre títere humano perdeu o sentido dela.
O homem já não sabe exatamente o que significa ser livre.
Pugnando pela progressão infinita do direito de se afirmar e de agir, acaba negando a
própria personalidade e adotando o senso do coletivismo, aceita a subordinação do
indivíduo à feição de um grande todo social.
Esse mesmo homem, que ergueu audaciosamente a cabeça para negar a metafísica, e
substituiu a teologia pela crítica, o espiritualismo pelo materialismo, o sentimento da
disciplina pela utilidade da disciplina, foi prosseguindo de tal forma que acabou por
aceitar uma nova metafísica, criando o deus-coletividade, o misticismo da negação, o
cativeiro social em nome de uma coisa tão vaga como o paraíso sonhado e uma
humanidade mecânica.
***
De sorte que o homem moderno retornou ao estado de espírito anterior ao monoteísmo e
à revelação cristã, para viver apavorado diante dos elementos. Pois, se hoje já não treme
diante dos trovões e dos raios começa a tremer e vai até ao delírio, sentindo o rumor
"freudiano" do seu subconsciente em tropel, que ele procura decifrar através da
psicanálise, como outrora os povos primitivos procuravam conhecer o mundo exterior
através dos seus sortilégios e superstições.
E, do mesmo modo que o troglodita recuava apavorado diante de uma tempestade, o
"gentleman" recua hoje atordoado diante do seu próprio complexo, que é tão grande ou
tão pequeno, ou pelo menos tão incondicional à inteligência, como
as complexas nebulosas no infinito do tempo e do espaço.
***
Quem ouvir um marxista, dos mais conhecedores da sua doutrina, discorrer sobre a teoria
dos movimentos e das relações da matéria, sobre os processos dialéticos, sobre a
concepção evolucionista da natureza, ficará pasmado diante das abstrações a que a sua
inteligência é conduzida e dos planos metafísicos em que o raciocínio vai agir, usando da
mesma força criadora com que o homem da caverna, perdida a luz da graça, idealizava os
seus primeiros deuses. E quem atentar melhor sobre os sentimentos que animam o
prosélito de Marx, verificará que esse sentimento, analisado à luz crua da crítica, tem
muito de misticismo e até de feiticismo.
É o homem, de novo, sob o domínio do terror, que precedeu o monoteísmo e o
cristianismo e de onde se originou todo o pavor do infinito.
Tal é o fundo espiritual desta civilização, que finge desdenhar do problema da causa e do
fim. Essa a expressão do burguesismo libertário, do capitalismo científico, do anarquismo
e do socialismo.
***
O equilíbrio do Homem e do seu "sentimento do Universo" provinha exatamente do
equilíbrio entre as duas forças, uma que está dentro, outra que está fora de si.
Anulada uma, desaparecida a pressão exterior, rompe-se o equilíbrio e efetiva-se o
desdobramento dos planos interiores. É o mundo dos instintos, são as formas larvares do
pensamento, que passara a dominar sobre o homem moderno.
Esses espectros de idéias conduzem o homem contemporâneo à interpretação errônea da
alegria e do sentimento do prazer e da dor.
Tudo se indefine. O prazer passa a ser uma forma de sensação, sem limites bem traçados
com a dor. É uma dor bastarda, como afirmaria um notável escritor brasileiro. E, como
todos os planos morais, estéticos e políticos se baseiam na concepção do bem e do mal do
agradável e do desagradável, do útil e do inútil, do feio e do belo, e uma vez que o mundo
caótico dos instintos estabeleceu o tumulto crítico, a Humanidade vai hoje caminhando
sem disciplina, entregue a essas forças bárbaras que arrastam a todas as degradações e a
todos os crimes.
***
Não admira que se afirme que a moral é um ponto de vista. Não admira que se dê hoje ao
amor entre o homem e a mulher uma finalidade puramente egoísta. Não admira que se
queira anular a personalidade em nome do individualismo. Nem que se queira fazer uma
coletividade infeliz, em holocausto a uma pura idéia abstrata, a uma pura concepção ideal
de coletividade feliz. Nem, ainda, que se persigam as religiões em nome da liberdade.
Que se venham mais tarde a perseguir os próprios indivíduos que clamarem pela
liberdade, em nome dessa própria liberdade. Que se atente contra a afirmação integral do
amor entre o homem e a mulher, em nome da liberdade do prazer. Que se negue o direito
dos pais, em nome da justiça social e dos interesses de uma ideal coletividade. Não
admira ainda que se suprima a propriedade em nome dos próprios direitos da
propriedade, como faz o capitalismo, como pretende fazer o comunismo. Nem espanta
que desapareçam todas as garantias da lealdade e da honra, quando todos estão certos que
a moral não passa de um ponto de vista.
É que o Homem perdeu o senso do equilíbrio. E, perdendo esse equilíbrio, torna-se um
instrumento imperfeito de interpretação do Universo e dos seus fenômenos.
***
Estamos vivendo o grande período humano da confusão. E, nesse estado de espírito, o
Homem é triste. Profundamente triste. Todas as suas barulhentas expressões exteriores
não passam de dissimulações.
O mundo pagão, o mundo ocidental, o mundo livre, libertado de todos os terrores
religiosos, de todos os preconceitos morais, o mundo opulento, que criou o arranha-céu e
o "jazz", que proclamou todas as liberdades, caminha soturno e trágico, como uma
marcha fúnebre...
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Madrugada do Espirito, 1946, in Obras Completas, Editora das
Américas, São Paulo, 1954 - VoL. 7, pág. 369.
Duplicidade e transação
O "espírito burguês", que não é o de uma classe e sim o de uma época, deve ser
procurado pelos que pretendem examiná-lo, não em categorias econômicas ou sociais,
porém nas categorias das almas.
Distingue-se esse espirito, como ficou assinalado no capitulo anterior, por uma
preocupação constante dos bens materiais e da satisfação dos sentidos além dos limites
traçados pelo equilíbrio moral.
Essa psicologia específica da enfermidade social contemporânea devemos filiá-la, não
propriamente à concepção materialista da existência, uma vez que, em muitos casos, o
indivíduo atacado pelo mal do século conserva a crença religiosa, mas à interpretação
materialista da mesma existência no que se relaciona com o gozo das coisas efêmeras.
O "espírito burguês" caracteriza-se, portanto, por um processo mental mediante cujos
efeitos a criatura humana pretende viver, concomitantemente, duas vidas distintas e sem
nenhuma relação de uma com a outra. Assim, enquanto o "burguês" (e por este nome não
designamos apenas os possuidores de bens ou riquezas) confessa a fé num Deus e na
imortalidade da alma humana e chega mesmo a aderir, até certo ponto, a alguma
disciplina religiosa, estabelece, ao mesmo tempo, uma linha paralela de ação, a qual se
funda, exclusivamente, na posse e gozo dos prazeres terrenos.
Uma sociedade puramente materialista não produziria as contradições do mundo burguês.
Negando, de modo absoluto, a sobrevivência do homem depois da morte, e restringindo o
destino humano aos estritos limites do processo biológico, a sociedade materialista
encontraria a forma de equilíbrio num sistema de distribuição dos bens e de satisfação
dos desejos, segundo normas decorrentes de postulados científicos assentes nas
convicções gerais. Tal distribuição, que feriria de morte a liberdade das pessoas, se a
considerássemos do ponto de vista de uma interpretação espiritualista, seria perfeitamente
compreendida e aceita por todos os membros da sociedade materialista, como uma
intervenção legítima da inteligência humana preocupada em racionar as utilidades e
também os prazeres no duplo sentido de dar o máximo aos indivíduos dentro das pos-
sibilidades gerais e da manutenção saudável da coletividade em que eles se integram.
E mesmo que a sociedade materialista fuja ao tipo da que acabamos de apresentar,
abstendo-se da preocupação ética de distribuir com justiça as delícias da terra, ainda
assim ela encontraria outra forma de equilíbrio, justificando o domínio dos mais fortes ou
mais aptos, consoante as leis seletivas inerentes à evolução das espécies, pois outro não
foi o critério dominante na composição das estruturas sociais e econômicas assinaladoras
do período do desenvolvimento industrial no século XIX.
Esses tipos de sociedades materialistas (o da expansão da coletividade com forçosas
restrições ao indivíduo, e o da expansão do indivíduo em detrimento de outros indivíduos
e da coletividade) são mais lógicos e menos inquietadores do que o
tipo da sociedade burguesa, indefinido e instável.
***
A instabilidade, a angústia, as aflições do nosso tempo originam-se do "espírito de
transação" que é uma das características mais notáveis do "espírito burguês".
A burguesia, que começou a florescer no século XVI, mas que adquiriu prestígio politico
e social depois da Revolução Francesa, trouxe consigo, para o século XIX, dois mundos
separados e nos quais ela, incoerentemente, quis viver ao mesmo tempo: o mundo da fé
religiosa e o mundo das realizações práticas.
Todo o esforço burguês foi o de isolar, de extremar esses dois mundos para em ambos
comparecer com carta de cidadania.
Uma das provas mais eloqüentes do que acabamos de dizer está nesta coisa que só
achamos extraordinária e bizarra por estarmos também influenciados pelo "espírito
burguês": — a classificação de duas categorias de católicos: os simplesmente católicos e
os "católicos práticos".
Quero crer, também, que à proporção que o progresso técnico, o teor de vida industrial e
comercial, social e política, e os costumes pertinentes a isso que chamaremos civilização
ocidental, foram se estendendo a todas as regiões do globo, começaram do mesmo modo
a coexistir "maometanos práticos", "budistas práticos", "xintoístas práticos" e os
simplesmente maometanos, budistas ou xintoístas...
Entenderemos por "práticos" os que crêem numa religião e cumprem seus mandamentos,
e por "não-práticos", ou "simples", os que apenas crêem mas não cumprem o que lhes
ordena o seu credo. Esses "não-práticos" ou "simples" comparecem eventualmente a atos
religiosos (principalmente os de caráter social, como bodas e batizados, exéquias ou
cerimônias comemorativas) e às vezes transformam-se em "praticantes", em caso de
doença grave ou perigo de morte. Quanto ao mais, vivem segundo o materialismo do
século, gastando todo o seu tempo nos negócios e na fruição dos prazeres.
Mas o espírito de transação da burguesia vai mais longe, porque entre os que, na religião,
se dizem "práticos", encontramos ainda duas categorias: a dos que vivem em contradição
com a sua própria prática religiosa, acomodando cá fora, na rua, na sociedade, na política,
no comércio, no próprio convívio
doméstico, a sua maleável consciência, de acordo com os seus interesses materiais, ou as
suas disfarçadas ou até despercebidas paixões.
Marchou assim a burguesia durante o século XIX e esta primeira metade do século XX. E
a mesma contradição dos dois mundos que trouxe consigo (o mundo da fé religiosa e o
mundo dos interesses e da sensualidade) veio determinar novas contradições.
***
A primeira foi entre o espírito conservador e o espirito liberal. Tendo a burguesia
conquistado, desde a Revolução Francesa, certos direitos e prerrogativas até então
inerentes aos aristocratas, entendeu dever conservá-los. Mas, ao mesmo tempo, toda a
prosperidade material da classe burguesa era propulsionada pela progressão do
liberalismo, tanto político como econômico, e principalmente econômico. Ora, deixar
agir livremente os fatores econômicos era criar condições à revolução social, pois a
concentração de capitais e instrumentos da produção nas mãos de poucos, o que se dava
em conseqüência da própria liberdade, faria crescer o número dos pobres, e estes, sendo
mais numerosos, poderiam golpear a burguesia como esta golpeara a aristocracia. Nestas
condições, entrou o espírito de transação, que é eminentemente burguês, e a burguesia
dividiu-se em "conservadores" e "liberais", partidos que, sob outras denominações, mas
com o mesmo fundo, foram se revezando no poder de modo que, quando se tornava
necessário um avanço em favor da classe dominante, subiam os liberais, e quando se
impunha impedir um avanço das classes dominantes, subiam os conservadores.
Nesse jogo, acabaram os dois partidos confundindo-se pela adoção de princípios e
programações quase idênticos, até ao dia em que o equilíbrio econômico-social se
rompeu.
Desde o manifesto de Marx, em 1848, os trabalhadores de todo o mundo começaram a
adquirir consciência de classe a unir-se. Diante do crescimento das organizações sindicais
e da larga propaganda anticapitalista, a burguesia, sempre acomodatícia, tratou de aderir
ao movimento e de dirigi-lo. Era mais uma transação, a qual deu resultados, pois o
socialismo materialista, ou melhor, o socialismo de Marx, passou a ser dirigido e
chefiado pelos políticos burgueses.
Uma parte da burguesia (a que não afastara ainda de si a fé religiosa) não acompanhou a
onda, mantendo as suas posições nos partidos agnósticos, sustentando os princípios do
liberalismo e da democracia política. Ao separar-se o revolucionarismo socialista (III
Internacional) do evolucionismo socialista (II Internacional), a opinião pública do mundo
ficou assim dividida:
1) — Corrente materialista dogmática:
a) comunismo;
b) socialismo.
2) — Corrente agnóstica:
democracia política liberal.
3) — Corrente espiritualista:
democracia cristã.
Sob variadas formas de governo, as correntes do pensamento político no mundo ocidental
e nas regiões por ele influenciadas eram essas.
Mas o caráter acomodatício da burguesia, a sua falta de convicções, a sua incapacidade
de lutar oferecem-lhe como técnica, em todos os tempos, a transação. Vemos hoje a
transigência burguesa operar os seguintes movimentos: uma parte dos burgueses
agnósticos (liberais e pragmáticos) tendo descoberto que o marxismo pretende, durante
algum tempo, fazer desenvolver o capitalismo nos países de indústria incipiente, a fim de
aumentar a proletarização da classe média e atingir a destruição do pequeno capital,
resolveu gozar os que poderemos chamar "os últimos dias de Pompéia" e, nessa
resolução, vendo-se batizada pelos comunistas com o pomposo nome de "burguesia
progressista", ajuda os seus futuros destruidores, sem nenhuma consideração pelos seus
filhos ou netos; outra parte (cristãos-liberais ou — o que Pio IX condenava com tanta
veemência — católicos-liberais) agindo muito mais por espírito de transação burguesa do
que por espírito cristão, procura exercer uma política de acomodação com os comunistas,
o que representa pretender misturar azeite com água.
***
É esse espírito de transação que observamos nos costumes da sociedade de hoje. A
burguesia tudo quer combinar para atingir fórmulas capazes de coonestar a sua dupla
cidadania nos dois mundos opostos. E, como não consegue realizar uma combinação, o
que faz é a mistura de tudo. Vem daí a confusão dos nossos dias.
É muito bom falar em moral cristã, mas essa mesma moral sujeita-se hoje a
interpretações ditadas pelo liberalismo e pelo "progressismo". O pai de família, o marido,
assim como a mãe de família, a esposa, querem andar em dia com a moda e com a
ciência, essa ciência que, de experimentação em experimentação, a si própria se corrige
de ano em ano até de mês em mês. Os professores, os médicos, os publicistas proclamam
que a moral não pode impor regras fixas para todas as épocas e dizem que muitas coisas
foram ontem consideradas imoralidade e hoje moralidade, e vice-versa; confundem, dessa
forma, o acidental com o substancial, aspectos efêmeros com valores permanentes.
Esquecem-se de que os Mandamentos de Deus, que consubstanciam todas as leis morais,
são eternos e valem para todos os países do mundo em qualquer tempo e em qualquer
grau de civilização. O homicídio, o roubo, a inveja, a mentira, a cólera, a gula, a luxúria,
serão sempre condenáveis, sob qualquer tempo ou país.
Escrevia há dias um professor dizendo que é menos imoral um homem contemplar uma
mulher nua na praia do que outro, dos tempos antigos, que se inebriava vislumbrando um
palmo de tornozelo feminino numa indiscreta subida do bonde. É um sofisma grosseiro,
pois tanto uma coisa como outra, conforme as intenções dos pensamentos, podem ser
imorais, com a agravante, no primeiro caso, de ser imoral tanto o olho malévolo do que
contempla, como a atitude daquela que exibe o quadro. Outro mestre afirma que a idéia
do furto deve sofrer modificações com o novo conceito de propriedade decorrente do so-
cialismo, o que representa erro evidente, porque de um falso conceito não se pode tirar
conclusão que também não seja falsa.
Estes e outros modos de interpretar a vida moderna são demonstrações eloqüentes da
confusão do mundo burguês. Multiplicam-se os pontos de vista e a moral, que varia de
mestre em mestre e de interessado em interessado, acaba diluindo-se e perdendo-se nas
incoerências da vida contemporânea. Aos que reagem contra tão incongruentes assertivas,
chamam retrógrados e saudosistas, como se eles, os tais do progresso não tivessem
retrogradado — eles, sim! — às épocas revelhas anteriores ao Cristianismo, quando a
mentalidade pagã, exatamente como agora, porém com menos hipocrisia, não tinha
conhecimento dos limites exatos do Bem e do Mal.
***
Assim vivem os burgueses. E assim querem continuar a viver. Indiferentes a todos os
nobres ideais que, entretanto, não condenam, e até admiram, eles não cultivam as virtudes
cívicas, nem as familiares, mas, pelo contrário, muito as recomendam. Os seus filhos, no
entanto, são educados para serem o mesmo que os pais: gozadores da vida. As suas
mulheres foram preparadas em outro lar burguês para serem o que são e o que querem
que sejam as suas filhas: figurantes de festas, de corridas, de boates, com fotografias
artísticas nas revistas elegantes. Nada de tradição nacional. Nada de vida cristã. Nada de
espiritualidade ou dessa arte sublime de formar o caráter dos futuros chefes e mães de
família capazes de transmitir, de geração em geração, o fogo sagrado da sobrevivência de
uma pátria digna.
O "espírito burguês" está no cinema, no teatro, no rádio, nas revistas, na literatura, nas
artes, nos costumes. É luxo e ostentação: é ociosidade e comodismo; é avareza e cupidez;
é ceticismo e moleza; é orgulho e despeito; é sensualidade e luxúria; interesse mesquinho
e oportunismo; é bajulação dos fortes e idolatria pelos ricos e poderosos do momento; é
medo das atitudes e terror das responsabilidades.
Tudo o que pode oferecer perigo, tudo o que pode acarretar uma incomodidade, tudo o
que pode tirar tempo aos negócios vantajosos, ao conforto egoístico, representa o que há
de pior para quem se deixou penetrar pelo "espírito burguês".
Essa a razão pela qual o burguês acompanha sempre quem está de cima, quem lhe pode
poupar aborrecimentos, quem pode facilitar um bom negócio ou a carreira rápida ou
alguma honraria.
O que o burguês deseja é não ser incomodado. E, do mesmo modo como, muitas vezes,
concorre com o dinheiro para os asilos ou casas de caridade, tendo em vista, unicamente,
tirar dos seus olhos a miséria que lhe desagrada, a exibir-se na via pública (o que lhe põe
remordimentos na consciência), também é capaz de dar dinheiro ao comunismo, na
esperança de que, obtendo o rótulo de "burguês progressista", possa ir passando incólume
no meio das batalhas sociais.
***
No entanto, sob as aparências dessa beatitude pagã, o mundo burguês é teatro de obscuros
dramas e surdas tragédias. São dramas da vida econômica, em que se debatem e se
esgotam, premidos por emoções violentas e angústias esmagadoras; esses heróis das
batalhas da praça comercial e do foro, das repartições públicas e das carteiras bancárias,
com os nervos esfrangalhadose hipertensões arteriais que os estrangulam em paroxismos
de distúrbios emotivos e enfartes cardíacos. Ou são tragédias domésticas, disfarçadas sob
as aparências de uma ostentação brilhante, como a desmoralização de pais perante filhos,
ou os escândalos de filhos a arrastar os pais pela rua da amargura das maledicências dos
salões.
Esses enredos balzaquianos ou shakespearianos, originados de uma causa única — o
materialismo grosseiro da vida burguesa — são levados pelos clínicos da moda à conta de
desequilíbrios glandulares ou de explosões de complexos à força compreensiva de
recalques, justificando-se plenamente os descalabros abstrusos de uma sociedade
nevrosada à custa de costumes excitantes e licenciosidades esclerosadoras de condutos
volitivos...
Sob um pano de boca onde se pintam delícias pan-sexualistas dos jardins transcendentes
do Alcorão, agita-se um inferno dantesco. E esse é o mundo burguês, que se pretende
defender rotulando-o com o nome pomposo de Civilização Cristã, contra o comunismo
que proclama, afinal, aberta e lealmente, aquilo que se esconde por detrás das máquinas
do Marquês de Maricá, abrindo-as, como Epimeteu abriu a caixinha de Pandora, da qual
saíram todos os males que se espalharam sobre a terra.
Na caixinha de Pandora ficou, apenas, no fundo, a esperança...
***
E é essa Esperança todo o nosso bem nos dias presentes.
A nossa Esperança é ainda, e será sempre, a possibilidade de contrapormos, ao "espírito
burguês", o "Espírito de Cristo".
Este espírito vive ainda em todo homem que acendeu em si mesmo a lâmpada sagrada de
uma fé dominadora e de uma caridade ativa, utilizando-se, para acendê-la, daquela
centelha que foi retirada da infinita e eterna chama do Verbo Altíssimo.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Espírito da Burguesia, Obras, Completas, Vol. 15, pág. 23.
Capitalismo e comunismo
(1933)
A identificação do Capitalismo com o Comunismo é uma consequência lógica do exame
que fizermos:
1.°) Da identidade das suas origens filosóficas;
2.°) Da identidade das suas origens econômicas;
3.°) Da unidade de direção no processo de desenvolvimento;
4.°) Da unidade do objetivo final.
Examinemos, um a um, estes pontos e chegaremos à conclusão de que não é possível
combater o Capitalismo sem combater o Comunismo, do mesmo modo que não é
possível combater o Comunismo sem combater o Capitalismo. Pois tanto um como outro
não passam de uma só cabeça, com duas caras, cabeça ligada ao mesmo corpo, que é o
materialismo, a subordinação do Espírito Humano à brutalidade das forças cegas da
Natureza, ou melhor, de uma das faces da Natureza, isto é, a material.
Assim, vejamos.
IDENTIDADE DE ORIGENS FILOSÓFICAS
O Capitalismo é uma conseqüência do Liberalismo. O Liberalismo é o império do
Individualismo. O Individualismo é o rompimento com todas as disciplinas morais
capazes de compor equilíbrios na sociedade, de acordo com os interesses superiores do
Espírito.
Por conseqüência, o Individualismo é o Materialismo. E a prova de que o Individualismo
é o Materialismo é o fato dessa concepção de vida ter tido como fonte os postulados epi-
curistas, estoicistas ou naturalistas que constituíram toda a trama do pensamento dos fins
do século XVIII, da Enciclopédia e da Revolução Francesa.
O "homem natural" de Rousseau é o índice de todo o Individualismo que gerou o
Liberalismo. Se o Homem devia ser "natural", era lógico que a Economia fosse também
"natural" e que nenhuma força interviesse, nem nos movimentos do Homem, nem nos da
Economia. Tudo deveria ser subordinado às próprias leis da matéria.
Foi segundo esses princípios materialistas que a Burguesia se desenvolveu, como
instrumento passivo nas mãos da Finança Internacional.
Lançada a luta livre no mundo, fechadas as corporações operárias, proibido o Estado de
intervir nos fenômenos da produção, da circulação, da distribuição e do consumo das
mercadorias, começou a verificar-se o que seria inevitável: os fortes a oprimirem os
fracos.
A liberdade contratual, dando direitos e poderes a cada indivíduo para propor e aceitar
salários, colocou o operário, isolado e fraco, diante do patrão imensamente forte. Coagido
pela concorrência de outros operários, o ofertante de "trabalho" via-se na dura
contingência de subordinar-se à oscilação dos preços. O "trabalho" foi transformado em
mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura.
A livre concorrência, no campo comercial, conforme observa Marx, que é um
sistematizador burguês, levava os detentores dos meios de produção a cortarem os
salários e aumentarem as horas de trabalho. Essa dupla luta de cada produtor, de um lado
com o seu adversário e do outro com os seus assalariados, determinava a derrota dos que
apresentavam menores possibilidades de resistência e adaptabilidade.
Sendo injusta, imoral, semelhante situação, o Capitalismo precisou de arranjar uma
justificação. Esta encontrou seus fundamentos no materialismo. O estudo da evolução
natural abriu novos horizontes à brutalidade do Capitalismo. Enquanto Haeckel explica a
origem da vida no mistério das "moneras", enquanto Darwin desenvolve a teoria do
"struggle for life", que justifica o triunfo do forte, do mais apto sobre o fraco, Spencer,
com extraordinário poder construtivo, sistematiza as grandes linhas do Evolucionismo,
estabelecendo os seus "princípios" e acompanhando as manifestações da "matéria" e da
"energia", desde a nebulosa às sedimentações geológicas, e desde os primeiros
fenômenos vitais até à Sociologia, à Política e ao Direito.
Spencer é o filósofo da Burguesia e do Capitalismo inglês, como Adam Smith é o
economista do liberalismo nacionalista da Grã-Bretanha. A palavra mágica, tanto para um
como para outro, é a mesma de Darwin: a luta.
Nada mais natural para uma concepção materialista da vida. Nada mais lógico, para uma
época em que o naturalismo levou ao experimentalismo e este à consideração unilateral
dos fenômenos.
A palavra cabalística do século XIX, diz Farias Brito, foi: "evolução". Acho que
poderemos acrescentar a essa palavra, esta outra: "luta".
Só o Espírito une. A matéria divide. Por isso o Individualismo e o Liberalismo, filhos do
Materialismo, lançaram as mais tremendas lutas sobre a terra. No campo da política, a
luta dos partidos; no geográfico, a luta das regiões; no étnico, a luta das raças; no da
produção, a luta da classe; no comercial, a luta da concorrência; no econômico-
financeiro, a luta da moeda com a mercadoria; no internacional, a guerra imperialista.
Nem se diga, simplesmente, que essas lutas existiram sempre, porque isso seria confessar
a falência de um século, de todo o orgulho da sua ciência e da sua filosofia. Porque o fato
é que as velhas lutas de que nos deveríamos libertar, num estágio superior de civilização,
foram agravadas e a elas o Materialismo acrescentou outras mais cruéis.
Era lógico, portanto, que Karl Marx, o fundador do comunismo, sendo um burguês e filho
do século XIX, imprimisse à sistematização da sua obra o mesmíssimo timbre da filosofia
burguesa, que é a filosofia da luta estúpida e cega do materialismo justificador dos
triunfos dos fortes sobre os fracos.
Essa identidade de pensamentos, de concepção de vida, que se surpreende no Marxismo e
no Capitalismo Liberal, ambos subordinados às leis inerentes a um aspecto isolado da
Natureza, revela, também, no Comunismo, que tantos acreditam ser a doutrina "da
moda", o caráter inconfundível do século passado: unilateralidade. É por isso que Henri
de Man afirma que o Marxismo não passa de "uma forma particular de uma mentalidade
geral própria do século passado". Basta, aliás, ler as reflexões de Sorel para se ter
presente, no espírito do sindicalismo revolucionário em que também se baseou Lênin, a
identidade do pensamento darwiniano, do pensamento burguês dominante em todas as
teorias da Evolução.
No tocante a Marx, a própria "dialética" de Hegel, que é o dínamo propulsor da sua
doutrina, é uma concepção cujo sentido dualista de luta se apresenta com um caráter
marcadamente século XIX.
Hoje, que a lei da gravitação de Newton, em cuja expressão expositiva se encontra o
caráter da época da dialética, cede lugar a uma nova concepção dos movimentos; hoje,
que as velhas concepções do Espaço e do Tempo cedem lugar a uma compreensão nova
dos ritmos universais, desde Henri Poincaré; hoje, que vamos encontrar, no recesso dos
átomos, não apenas a negação da Matéria, mas a unidade das leis univer- sais e a unidade
da Energia, nós, homens do século XX, sentimo-nos muito mais próximos de Aristóteles
(a unidade diferenciada e o equilíbrio universal), do que dos filósofos materialistas dos
quais procede, como uma flor da burguesia crepuscular, — o Marxismo.
O que não se pode negar é a identidade absoluta do Marxismo com a filosofia burguesa,
criada para oprimir os humildes e justificar a exploração do homem pelo homem. O que é
fora de dúvida é que o Capitalismo e o Comunismo não passam de palavras diferentes
para designar a mesma coisa: a brutalidade da violência, o materialismo grosseiro.
IDENTIDADE DE ORIGENS ECONÔMICAS
Acaso o Marxismo se rebela contra a Economia Burguesa? Acaso o Comunismo se
revolta contra o Capitalismo? Se a filosofia comunista é a mesma que a capitalista, como
se acaba de ver, como pode engendrar o comunismo uma economia nova?
Mas, acaso, uma Economia Nova é anunciada pelo Comunismo? Mas, então, ele renega
as "leis naturais"?
Se nega, deixou de ser materialista e passou para o campo da ética espiritualista.
Se não nega, então não é revolucionário, como se apregoa, pois submete-se a uma
concepção de vida que pertence, em primeira mão, ao Capitalismo e à Burguesia.
O Comunismo pretende dar fundamento moral à Economia? Mas então reconhece que a
Economia não pode subordinar-se ao materialismo naturalista? Nesse caso, o Marxismo
está renegando os seus próprios fundamentos, isto é, o decantado "materialismo
histórico".
O Comunismo objetiva uma "justiça social"? E pretende realizá-la sob o império das "leis
naturais"? Perguntamos: qual é a moral das "leis naturais"? Qual o interesse de justiça
social das "leis naturais", desde que se abstraiam as idéias de Deus e do Espírito? Qual o
interesse de justiça social das "leis naturais"? Se pegarmos numa corrente elétrica de
muitos volts, as leis naturais obedecerão a um princípio de justiça? Ou só será fulminado
aquele que o merecer? O Comunismo acha que pode haver interferência do Homem,
segundo o seu interesse, nas "leis naturais" da Economia? Mas isso é negar todo o velho
determinismo da Evolução e do Materialismo oficial onde o Marxismo se abeberou.
***
A verdade é que o Marxismo não passa de um capítulo acrescentado à Economia
Burguesa. E é o próprio Marx quem o confessa, declarando que não nega as leis que
foram sendo descobertas, desde os fisiocratas, mas a elas vem acrescentar outras que ele
descobriu. Ele é um continuador de Adam Smith.
Marx descobre algumas leis novas, sendo a fundamental do seu sistema a da "mais valia".
É um continuador dos burgueses evolucionistas e materialistas. Preocupa-o a precipitação
do processo evolutivo do Capital. Pede, então, emprestado a um outro burguês, Hegel, o
seu processo dialético. A sua "filosofia de ação" é uma beberagem onde se misturam
todas as tisanas filosóficas do século XIX. A sua Economia é a subordinação aos mesmos
princípios da Economia Liberal Burguesa.
Pensando bem, a obra de Marx é a apologia do Capital. É absoluta a identidade de
propósitos do Comunismo e do Capitalismo. O Comunismo é, apenas, mais apressado. O
Capitalismo, através dos seus teorizadores, cala as suas intenções secretas. O Comunismo
revela as intenções secretas do Capitalismo e propõe-se executá-las.
O Capitalismo quer o triunfo dos mais fortes, na lei da concorrência. Um a um, serão
absorvidos os lutadores. Chegará ocasião em que dois ou três financistas terão
proletarizado todo o gênero humano.
Marx sabe que esse é o fim do Capitalismo e quer, não contrariá-lo, mas apressá-lo o
mais possível.
O Capitalismo pretende que um dia os técnicos da Finança governem o mundo,
absorvendo todas as autoridades morais, sociais, artísticas, políticas. E o Comunismo não
quer outra coisa. Tudo será subordinado à Economia.
O Capitalismo é internacional; o Comunismo é internacional. O Capitalismo quer
escravizar todos os povos; o Comunismo também.
O Capitalismo, através da usura, do jogo da bolsa, das oscilações do câmbio, atenta
diariamente contra o principio da Propriedade; o Comunismo prega abertamente contra
esse princípio.
E tudo isso por quê? Porque Capitalismo e Comunismo são dois nomes para designar a
mesma coisa: o Materialismo.
UNIDADE DE DIREÇÃO NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
Daí a prodigiosa unidade de direção no processo de desenvolvimento, tanto do
Capitalismo como do Comunismo.
O Capitalismo, agindo internacionalmente, provoca as crises da Produção e do Consumo.
O Comunismo, aproveitando-se dessas crises, incita a revolta dos vencidos.
O Capitalismo, controlando a moeda de todos os povos, provoca as crises do poder
aquisitivo, que determinam a superprodução das mercadorias de um lado, e a
incapacidade de comprar dos miseráveis. O Comunismo aproveita-se dessas cir-
cunstâncias, instiga a rebelião das massas sofredoras.
O Capitalismo determina a baixa da produção e conseqüentemente o excesso de braços,
de desempregos, de teor de salários. O Comunismo, aproveitando-se da situação, provoca
as greves e a mais rápida desorganização do aparelhamento econômico dos povos.
O Capitalismo, escravizando os governos, inibe-os de agir contra o Comunismo; este,
servindo-se dessa ótima posição, desenvolve-se à vontade.
O Capitalismo, endividando os governos, determina o escorchamento do povo pelos
impostos. O Comunismo, aproveitando-se do desespero do povo, provoca revoluções de
caráter liberal-burguês, que facilitam a confusão num país.
O Capitalismo promove as guerras. O Comunismo age nas retaguardas.
O Capitalismo cria cada vez mais necessidades de gozo, de prazer, dificultando, ao
mesmo tempo, a sua posse. O Comunismo instiga a revolta de todos os que assistem ao
espetáculo de orgia da civilização burguesa.
O Capitalismo, despertando a luta pelos interesses materiais, mata no homem toda a
espiritualidade. O Comunismo, encontrando este estado de consciência, age destruindo os
últimos resquícios do que há de nobre e espiritual no homem.
O Capitalismo, através da luta violenta de interesses que deflagra, fomenta o egoísmo, e o
egoísmo enfraquece as forças nacionais. O Comunismo aproveita-se dessa situação e
desorganiza toda a sociedade.
O Capitalismo, através dos negócios em que tomam parte os políticos, mantém a seu bel-
prazer as lutas partidárias. O Comunismo, vendo os partidos distraídos na sua luta
mesquinha, age livremente.
O Capitalismo governa o câmbio e o preço das mercadorias e dos salários. O Comunismo
governa os sindicatos e as greves.
O Capitalismo e o Comunismo, de mãos dadas, lutam pelas liberdades licenciosas,
atmosfera propícia para o seu desenvolvimento.
Uma revolução da Burguesia chamar-se-á sempre "Aliança Liberal" e na sua retaguarda
marcham os comunistas.
Uma revolução comunista chamar-se-á "Aliança Libertadora" e na sua retaguarda
marcham os burgueses liberais.
O Capitalismo e o Comunismo, pois, pela unidade de direção no processo de seu
desenvolvimento, não passam de duas palavras para significar a mesma coisa: o
materialismo grosseiro desejando o mesmo clima político; a licenciosidade e a anarquia,
a falsa liberdade que atenta contra a verdadeira liberdade cristã.
Plínio Salgado
Nota:
Extraído de: Madrugada do Espírito, Obras Completas, Vol 7, pág. 399.
Imperialismo e democracia
Quando se fala em imperialismo econômico não se deve conceber a idéia de uma
determinada nação, organizada de modo a sugar de outras todos os elementos de
vitalidade, através de transações comerciais, a fim de converter aqueles elementos
absorvidos em novas expressões de Força e Poder de caráter nacional.
O imperialismo, sendo uma organização que se estrutura dentro de um país, nem por isso
é uma expressão política desse país. As condições favoráveis do meio, a questão das
matérias-primas, dos combustíveis, o grau de desenvolvimento técnico do proletariado, a
maneira como estão dispostas as forças do Capital, tudo isso influi para que se arme num
país, com maior ou menor potência, o imperialismo absorvente. Ele representa o início da
fase final da evolução capitalista.
Os grandes "trusts", monopólios, sindicatos, bancos e companhias constituem forças
poderosas agindo dentro do Estado, com a plena liberdade que lhes outorgam os
princípios fundamentais da economia clássica, oriunda dos fisiocratas e da Revolução
Francesa.
Essas expressões do imperialismo econômico servem-se do Estado para os seus fins,
influem na estruturação das leis de um país, nas diretrizes de sua política exterior, na
consagração de certas teses de direito que consultam as conveniências dos grupos
financeiros.
Mas, na realidade, o imperialismo econômico não tem Pátria, ao contrário do que
erradamente se pensa, quando se fala em imperialismo inglês, imperialismo norte-
americano, etc.
As forças econômico-financeiras, que se desenvolvem livremente no seio das
democracias, os agentes da expansão industrial e comercial usam apenas das Nações em
que se acham instalados, como de instrumentos políticos necessários aos seus fins, pois é
através de certas fórmulas inerentes ao conceito da soberania nacional que essas forças e
agentes encontram maior facilidade de agir, desde o tratado comercial e as convenções
aduaneiras, à obtenção de favores alfandegários, de privilégios e concessões e,
finalmente, desde os pactos e alianças internacionais até as operações militares e a guerra.
O imperialismo econômico, portanto, não deve ser considerado como expressão de uma
nacionalidade, mas como uma força internacional ocasionalmente instalada num país,
explorando até os sentimentos mais nobres de um povo e suas próprias aspirações
idealistas e espirituais.
***
No fim do Feudalismo, as Monarquias serviram-se das forças do capitalismo para armar
exércitos e impor à tendência desagregante dos feudos o imperativo da centralização.
Ficou assim lançada a semente da crise do Estado, que viria ressurgir mais aguda depois
da Revolução Francesa, para fundamentar os princípios mediante os quais, durante todo o
século XIX, o poder econômico se desenvolveria formidavelmente à revelia do poder
nacional, subjugando os governos aos banqueiros, os destinos da economia pública aos
caprichos da economia particular, para entrar, finalmente, em pleno século XX, na
marcha franca para o unitarismo da concepção marxista.
O imperialismo econômico, portanto, que não tem Pátria nem Deus, que subordina o
personalismo ao individualismo e
este ao coletivismo, é hoje o grande impulsionador das forças econômicas universais no
sentido materialista do seu absoluto predomínio em face do Estado, que ele pretende
aniquilar.
A curva que descreve o capitalismo conduz ao mesmo ponto visado pela marcha retilínea
através da qual o comunismo pretende operar a precipitação do processo histórico.
Dessa identidade de idéias, de sentimentos e de fins desnacionalizantes, origina-se a
mesma aspiração política das duas correntes (capitalismo e comunismo). Essa aspiração é
a liberal democracia.
***
Só esse regímen convém aos representantes dos "trusts", monopólios, sindicatos, bancos
e companhias; aos interesses internacionais do capitalismo; aos interesses pessoais da
avareza e da ambição sórdida. Porque esse é o regímen das máximas liberdades, para
todas as negociatas, para todas as opressões contra o proletariado, para o predomínio dos
plutocratas, dos potentados, dos que influem nas leis e decidem das guerras e usufruem o
proveito material do sangue derramado nas fronteiras, como aconteceu na Conflagração
Européia.
E, também, só esse regímen convém aos adeptos do marxismo, porque esse regímen,
abandonando as forças da produção ao seu próprio destino, não permitindo praticamente
ao operário que ele se represente nas assembléias — pois pelo sufrágio universal só se
elegem os ricos, os medalhões ou os demagogos anarquistas —, conservando-se alheio à
exploração do Trabalho transformado em mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura,
assiste impassível e impotente ao desespero das massas sofredoras.
O liberalismo entra, por conseguinte, no plano darwinista de Sorel, quando preconiza, no
seu livro Reflexões sobre a violência, a franca expansão da burguesia.
O Estado liberal-democrático é o que convém ao imperialismo internacional, seja o norte-
americano, seja o inglês, pois ele terá mais facilidade de agir por intermédio das forças
desnacionalizantes do comércio quando este desintegrado das finalidades nacionais.
Esse imperialismo que já nos escravizou depois de um século de exploração miserável,
estende, cada vez mais, as suas garras sobre nós. A sua influência é sutil e profunda. A
sua finalidade é materialista e desnacionalizadora. E estamos hoje
entre dois fogos: Londres-Nova York e Moscou.
***
A campanha comunista, fingindo-se anticapitalista, tem por fim desorganizar as forças de
produção nacional, de modo a nos submetermos, cada vez mais, ao imperialismo
financeiro dos magnatas do ouro. Estamos ameaçados pelas duas bestas apocalípticas:
Rothschild e Trotski. Ambas trabalhando surdamente pela nossa desagregação, pela nossa
maior confusão, espetáculo doloroso de povos decadentes.
O capitalismo internacional fomenta secretamente as tendências separatistas, para
enfraquecer a Nação. O comunismo russo incute no espírito das massas que a Pátria não
passa de um convencionalismo. Perdemos, assim, dia a dia, a nossa resistência nacional.
Avança, desse modo, dia a dia, a influência do supercapitalismo.
Todas as Pátrias sofrem hoje a pressão dessas duas forças.
No Brasil, estamos atravessando uma crise sem precedente e uma angústia social que fala
nos orçamentos de todos os lares com a eloqüência acabrunhadora dos déficits.
Nunca se reclamou do povo brasileiro maior fortaleza de ânimo. E nunca também se
exigiu tanto dos homens que têm uma parcela de responsabilidade entre nós, um maior
desprendimento, maior heroísmo nas atitudes e decisões.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Sofrimento Universal, ed. cit., pág. 105
O penúltimo parceiro
O Departamento de Estatística do Tesouro Norte-americano informou à imprensa, em
1931, que o número de milionários nos Estados Unidos baixou de 643, em 1929, a 139
naquele ano.
No laconismo do comunicado exprime-se todo o fenômeno social do grande país ianque.
Evidentemente, numa época de retraimento e desconfianças, em que os detentores do
ouro procuram armazená-lo, retirando-o da circulação para os cofres dos Bancos, o fenô-
meno da diminuição do número dos milionários não obedece a um ritmo de distribuição
determinado pelo movimento dos negócios.
Seria explicável, até certo ponto, que as somas amealhadas em alta escala e detidas por
indivíduos isolados se difundissem através da oscilação das transações, dos fracassos de
empresas, ou da própria prodigalidade dos ricos, indo fracionar-se em novas células
geradoras de novas acumulações.
Enfim, seria natural, intensificadas que fossem as operações comerciais, que as fortunas
se subdividissem, se espalhassem. É esse um fenômeno de reação natural, que
proporciona o equilíbrio das riquezas, sob o signo arbitrário da sorte dos negócios, nas
épocas de relativa prosperidade.
***
Esse jogo do dinheiro, esse vaivém dos capitais efetiva-se de uma maneira tão sugestiva
nas quadras normais, que chega a iludir quantos queiram apreender o sentido mais
profundo da evolução capitalista, entregue às leis naturais e propiciada pelos amplos
conceitos de liberdade que estruturam a base dos regímens democrático-burgueses.
Entretanto, a marcha inexorável do Capital, que desconhece toda e qualquer autoridade e
exerce o seu predomínio e o seu fascínio arrebatador sobre o panorama da nossa civi-
lização, é do deslocamento das riquezas de pluriproprietários para o menor número de
detentores, como será um dia, do menor número de detentores para o detentor único, isto
é, o Estado Capitalista.
A linha geral do desenvolvimento do Capital traçada por Karl Marx está hoje se tornando
bem nítida. Os dados estatísticos fornecidos pelo Tesouro dos Estados Unidos são bas-
tante eloqüentes para que nos convençamos de que o perigo comunista do mundo
contemporâneo não se acha nas massas proletárias, mas na própria política da burguesia
capitalista.
Sabendo, como sabemos, da desconfiança que impera hoje sobre todos os espíritos na
América do Norte, o que já ocasionou, só de uma feita, a quebra de 2.200 bancos, pela
retirada de depósitos que fogem de uns para outros, é fácil imaginar-se que não pode, de
maneira alguma, ter subido o índice de transações comerciais através das quais se
processa a distribuição e redistribuição normal das riquezas. O volume de negócios
diminuiu em Norte América. Diminui, dia a dia, o número de empresas que inspiram
confiança ao grande e ao pequeno capitalista.
A paralisação dos capitais é evidente.
Ora, nestas condições, o natural seria também que o número de milionários não
diminuísse, que ficasse onde estava. E, ao contrário, a casta vai minguando...
***
Como explicar esse fenômeno?
Julgamos que ele se explica pela tese oposta aos dias de prosperidade e de jogo de
negócios.
A difusão do dinheiro e de todos os valores móveis e imóveis, através do movimento das
transações em épocas de excesso de negócios, é um fenômeno de saúde, de circulação e
respiração do organismo social. É um como que revesamento de detentores que, no seu
aspecto dinâmico, ilude ao observador do ritmo inexorável do capitalismo.
Pode, nesse caso, diminuir o número de milionários, mas aumenta o número dos que
estão em caminho de se tornarem milionários. É como que uma época de semeadura. São
os períodos das iniciativas de toda a sorte padronizando um tipo geral de prosperidade.
Ao contrário, o que se dá hoje, nos Estados Unidos, é como que uma seleção natural pela
capacidade de resistência. É um fenômeno de revisão de valores subordinado ao
imperativo do ouro.
O que está em crise, verdadeiramente, não é o comércio nem a produção que a este
alimenta. O que está em cheque é a capacidade elástica do ouro para acompanhar o
desenvolvimento dinâmico da produção e do consumo [1].
É um ciclo de civilização que se fecha e em que a eficiência da máquina e a facilidade
dos transportes e das comunicações se adiantou demasiadamente, esgotando a capacidade
de aquisição e de crédito das massas que têm, entretanto, a capacidade de consumo
centuplicada.
Incapaz de acompanhar a marcha do mundo moderno, o ouro retrai-se.
Como conseqüência desse retraimento, processa-se uma liqüidação automática em que
sucumbem os mais fracos. Todos os que não estabilizaram suas fortunas em ouro, ou va-
lores ocasionalmente sólidos, e as puseram no serviço das grandes aventuras, têm de
fracassar.
E, assim, os meios de produção caem, fatalmente, nas mãos dos que ainda puderam fazer
o "jogo do ouro". Esse é o aspecto da grande batalha.
Não se trata mais de uma vasta e brilhante batalha no campo raso dos negócios; é uma
estratégia de cerco.
As cidadelas do crédito e das possibilidades de transações estão sitiadas. Ou os seus
recursos são suficientes para sair a campo e conquistar novas áreas de crédito, ou terão de
se render como míseras bastilhas ante a pressão exterior.
***
Caem, um a um, os milionários.
Vai rareando a casta.
Os mais rijos, entretanto, ficarão. O mundo pertencerá ao que se levantar por último da
mesa do grande jogo.
Por isso, o perigo do capitalismo único, do capitalismo de Estado, do capitalismo como
finalidade da existência, do capitalismo mecanizador da sociedade e bolchevizador das
massas, numa palavra, o perigo do comunismo, não está entre os "poetas", que são os que
se sacrificam na propaganda do credo vermelho.
Pois, enquanto estes se sacrificam, o capitalismo internacional age.
Age com segurança, com firmeza. O capitalismo é o grande bolchevista.
E a proletarização universal, a escravização definitiva dos povos se dará quando, diante
do pano verde dos negócios, se levantar, batido e humilhado, o último parceiro.
Plínio Salgado
Notas:
[1] Estas considerações foram publicadas na "A Razão", muito antes, portanto, da
revolução econômica de Roosevelt e da quebra do dólar. (Nota do Autor, em 1935).
[2] Extraído de: O Sofrimento Universal, ed. cit., pág. 83.
Autoridade e liberdade
A Autoridade é uma criação da Liberdade, que a engendrou como instrumento sem o qual
ela, a Liberdade, não se poderia manter.
Nem de outra forma nos é lícito conceber o Estado, os Governos, as presidências e
direções das sociedades civis, das companhias comerciais, das repartições públicas e,
principalmente, das organizações militares; nem a reitoria dos estabelecimentos de
ensino, nem o magistério e a magistratura dos pais de família no âmbito doméstico.
Sendo o Homem um ser racional, conforme aceitam os agnósticos e proclamam os
espiritualistas com maior motivo, logicamente se deduz que ele goza de liberdade de
escolha sobre tudo aquilo que constitui objeto de sua capacidade de discernir. Por
conseguinte, o Homem é uma expressão de Liberdade, não errando quem diga ser o
Homem a própria Liberdade.
Ora, a Liberdade viu desde logo que viveria coacta e constantemente peiada de inibições,
se cada membro da sociedade familiar, ou nacional, entendesse de fixar os próprios
limites de sua expansão; pois aquele que se excedesse no uso do seu arbítrio não só
trabalharia contra os direitos alheios, mas contra si mesmo porfiaria destruindo a
liberdade de todos da qual participa como legítimo condômino.
E vendo a Liberdade que poderia morrer hipertrofiada em uns e atrofiada em outros, pela
simples razão de que ninguém pode ser juiz em causa própria, entendeu de criar o árbitro
dos arbítrios, ao qual deu o nome de Autoridade. E para que a própria Autoridade não
exorbitasse no definir os arbítrios singulares, ou porque os restringisse em prejuízo da
singularidade humana, ou porque os ampliasse em detrimento da pluralidade social, a
Liberdade traçou leis com que se balizassem aqueles a quem incumbe a distribuição da
justiça e a manutenção do equilíbrio entre o querer e o dever.
Homens livres legislam inspirando-se no bom senso o qual, em última análise, procede da
perfeita compreensão dos direitos e deveres humanos, segundo os destinos temporal e
eterno assinalados por Deus a quem foi feito segundo a sua imagem e semelhança. E
homens livres, possuindo leis conforme os imutáveis princípios da moral, que são
universais, e de acordo com as tradições de uma Pátria, o temperamento e vocação de um
povo e as peculiaridades sociais de um país, elegem, para que ponham em execução os
estatutos nacionais, a cidadãos de sua confiança.
Exercem estes a Autoridade, cada qual na órbita dos poderes que lhes competem, e
nenhum desdouro ou diminuição acarreta aos governados a obediência aos seus pares
elevados aos postos de comando pelo mandato outorgado pela própria liberdade de
escolha, ou nomeados, pelos assim eleitos, para os cargos em que atuam como prepostos
do Poder.
A Autoridade, por sua vez, viu desde logo ser-lhe impossível o exercício, não possuindo
olhos de Argus com que visse pormenorizadamente todos os negócios da sua gerência; e,
isto posto, engendrou de seu turno a Hierarquia, sem o que não poderia bem servir à
Liberdade.
Entende-se por Hierarquia uma delegação gradativa de poderes, desde o Chefe do
Governo de uma Nação até a mais pequenina autoridade; desde o Ministro ao contínuo;
desde o general ao cabo e ao anspeçada.
O oxigênio vital da Hierarquia é a Disciplina. Onde não houver Disciplina, não existe a
Hierarquia; e como sem a Hierarquia não há Autoridade apta e capaz, e não havendo
Autoridade capaz não há garantias para a Liberdade de todos e de cada um,
irrefutavelmente se conclui que a indisciplina representa a morte da Liberdade.
Se assim é no que concerne às organizações civis, o que não diremos no que toca às
organizações militares? O Exército de uma Nação deve ser o paradigma da Hierarquia e
da Disciplina. E quando num país o Exército desfralda a bandeira de uma falsa liberdade,
permitindo que cada qual dos seus membros pense como lhe der na cabeça acerca de
problemas diretamente ligados à política militar desse mesmo país, isso significa achar-se
em perigo a segurança da Nação e a própria liberdade dos cidadãos. Significa que já não
há autoridade nem civil nem militar, que tudo anda à matroca e ninguém mais se entende.
Segundo os comezinhos conhecimentos que qualquer recruta possa ter do que se chama
"política militar" de um país, esta está substancialmente ligada às normas do Ministério
do Exterior, o qual por sua vez se orienta pelos tratados e pactos internacionais firmados
por legações com poderes expressos do Governo que representam, tratados ou pactos,
alianças ou convênios ratificados pelos Poderes Constitucionais.
O pensamento político internacional nos países que não se encontram em desordem é
transmitido pelo Chefe da Nação através do Ministério do Exterior, ao Ministério ou De-
partamento da Guerra, que o encaminha aos Estados-Maiores. Estes, tomando o
pensamento político resultante das obrigações ou interesses nacionais, estudam os meios
mais aptos para lhe dar vida e efetividade prática na hora oportuna. São gizados os pianos
e, sempre pelos Estados-Maiores, solicitadas as providências de ordem econômico-
financeira ou simplesmente administrativas, ao Chefe da Nação, que toma as medidas
necessárias nos setores civis do governo. E tudoé guardado em segredo, tudo deve estar
— nas Nações sensatas — arquivado nos cofres secretos dos Estados-Maiores.
A discussão do pensamento político adotado ou a adotar-se não cabe aos círculos
militares, mas aos órgãos do Legislativo; pois as Forças Armadas, quando
verdadeiramente integradas na alma de uma Pátria, são meramente executoras dos
desejos e aspirações de um povo, em tudo o que se refere à sua defesa e segurança
territorial e moral.
Nos países onde não se pensa assim, invertem-se os papéis; desierarquiza-se toda a
sociedade, dilui-se o governo, morre a Autoridade e, morrendo a Autoridade, morre
também a Liberdade, inaugurando-se os tristes ciclos históricos que amargamente
conheceram as repúblicas sul-americanas, cujas instituições e governos primaram sempre
pela instabilidade e efemeridade.
O Brasil, felizmente, não conheceu os dramas das suas irmãs do Continente. A isso
devemos a nossa Unidade, o Ordem que nos recomenda entre os povos e nos credencia na
confiança das Nações Civilizadas. E estamos certos de que tanto os civis como os
militares, entre os quais se contam figuras de alto valor cultural e patriótico, saberão
compreender, na hora grave do mundo, quanto a Autoridade nos é necessária como defesa
da Liberdade.
Plínio Salgado
Notas:
[1] Atualidades Brasileiras, Obras Completas, Ed.dasAméricas, São Paulo, 1954, Vol. 16,
pág. 391.
A verdadeira democracia
Os temores de Tocqueville, quando observa na Democracia os germens de dois males —
a anarquia e a servidão — levam-nos a meditar sobre a inconsistência das construções
humanas, se elas se apoiam exclusivamente na presunção de que ao homem é possível,
usando do orgulhoso instrumento da sua inteligência, edificar a ordem social e política
mais condizente com as aspirações da sua felicidade e do seu destino.
A conciliação entre a liberdade e a igualdade é o tema das angústias do pensador francês.
Versando-o, com sutileza e clarividência, procurou o autor da Democracia na América
engendrar um sistema de equilíbrio mediante cujo funcionamento não viesse a sufocar a
liberdade, nem esta suprimir aquela.
Nos dias que vivemos, Tocqueville tornou-se atualíssimo. A incapacidade geral dos povos
para definir a Democracia origina-se da maior ou menor porção em que se toma um da-
queles termos. Ou a liberdade, por excessiva, conduz à anarquia; ou a igualdade, por
exagerada, leva os homens à escravidão.
Às meditações do pensador francês do século XIX, podemos acrescentar que o estado de
espírito gerado pela anarquia (ou desigualdade, em que imperam os poderosos, os ricos,
os aventureiros, em prejuízo dos fracos, dos pobres e dos honestos) é o de uma aspiração
irresistível à igualdade; e como esta, levada ao extremo, produz a escravidão coletiva em
que soçobram as liberdades individuais, conclui-se que a liberdade hipertrofiada é o
primeiro passo para a supressão de todas as liberdades.
O problema que se propõe ao mundo de hoje é, portanto, este: realizar o máximo de
igualdade, na amplitude das máximas liberdades, o que significa, por outras palavras, im-
pedir que a igualdade destrua a liberdade e que a liberdade elimine a igualdade...
Será, porém, possível, que isso se realize, pela simples estruturação constitucional das
Cartas Políticas e das leis ordinárias?
***
Quando nos demoramos, à sombra das imensas bibliotecas, em horas silenciosas e
comovidas, a contemplar as mudas fileiras dos in-fólios, dos manuscritos, dos
incunábulos, dos pergaminhos, dos milhares de volumes que, através dos séculos, se
acumularam conservando nas suas páginas o acervo imenso do pensamento dos homens,
uma dolorosa tristeza nos invade. A cidade dos livros é, de certa forma, o cemitério das
idéias. Dos sepulcros de papel muitas vezes ressuscitam conceitos, juízos, hipóteses de
uma época longínqua, e combinando-se com outros tempos mais recentes, surgem nos
lineamentos de novos sistemas, destinados também a viver alguns dias de popularidade,
para depois irem também adormecer nas estantes...
É todo o esforço humano tentando decifrar o enigma do Universo e do Homem,
procurando as fórmulas da felicidade individual e social, o segredo do equilíbrio entre
indivíduos e grupos, entre o ser humano, os seus símiles e a sociedade em que vivem, e
entre as sociedades nacionais sequiosas de mútua solidariedade e segurança. Por mais
alheias que pareçam as investigações cientificas e as especulações filosóficas ao tema da
construção social, todas trabalham por adquirir conhecimentos capazes de enriquecer a
inteligência tornando-lhe possível a descoberta da fórmula política salvadora. Nenhum
esforço intelectual foi dispendido em conseqüências diretas ou indiretas na vida jurídica
dos povos. E, no entanto, é triste pensar que, ao cabo de tão longos milênios, o mundo
não encontrou ainda a solução do seu magno problema.
O que discutimos hoje é o que se discutia na Grécia Antiga, isto é, a defesa da
Democracia contra os perigos da liberdade que leva à anarquia, da anarquia que incita as
reivindicações extremas da igualdade, e da igualdade que produz o domínio de um só ou
de alguns sobre a multidão escravizada.
Chegamos, assim, ao século XX, sem saber definir a Democracia, sem saber defendê-la e
sustentá-la.
Para a Rússia Soviética (apreciando-se com isenção de ânimo e exclusivamente do ponto
de vista teórico da doutrina comunista) a Democracia é a realização da igualdade econô-
mica mediante a socialização dos meios de produção. Socializar, entretanto, os
instrumentos produtores da riqueza é colocar tais instrumentos nas mãos de uma classe de
dirigentes, que se torna poderosa e exerce o seu domínio incontrastável sobre a
coletividade dirigida. Suprime-se, dessa forma, o outro elemento da Democracia, que é a
liberdade de escolha dos governantes pelos governados, uma vez que (segundo a própria
doutrina comunista) a maior soma de poder econômico determina o maior índice de
liberdade. A maior soma desse poder, encontrando-se nas mãos da classe dirigente,
outorga-lhe o arbítrio da escolha dos chefes. Entre estes, segundo a hierarquia da função
exercida, estabelece-se uma escala de domínio, que vai desde o funcionário menor da re-
partição até ao presidente supremo do governo. Tem-se, dessa forma, uma Ditadura, que
contraria o espírito da Democra- cia, tomada esta na acepção da livre escolha dos
governantes pelo povo.
Ao contrário, para as Nações ditas democráticas do Ocidente, a Democracia é a
realização plena das liberdades consubstanciadas nos consagrados princípios dos direitos
do homem. Teoricamente, nada mais justo e mais belo, porque nos direitos do homem se
incluem, não apenas as liberdades políticas, mas também um mínimo de condições
econômicas garantidas pelo Estado, as quais constituem, por assim dizer, o lastro da
liberdade.
Mas, na prática, o princípio da livre escolha dos governantes pelos cidadãos é burlado
pelo individualismo excessivo, que, utilizando-se do prestígio das posições conquistadas
ou do poder do dinheiro, ilude as multidões, moldando a opinião pública ao seu talante e
conduzindo despoticamente aquelas massas desorganizadas que o Papa Pio XII qualificou
de amorfas e absolutamente diversas do povo esclarecido segundo as categorias de seus
valores.
Assim, enquanto na Rússia a oligarquia dirigente realiza as suas eleições, comprimindo
os eleitores sob o peso das ameaças econômicas (que vão até ao corte das cartas de
racionamento) e das perseguições exercidas pela polícia política, em nossas Democracias
organizam-se verdadeiros sindicatos comerciais com feição partidária, assenhoreando-se,
pelo poder do dinheiro, das estações de rádio, das colunas da imprensa, de
aparelhamentos de propaganda que funcionam desde a disseminação prodigiosa de
cartazes e impressos (meios esses perfeitamente lícitos) até a instalação de armazéns de
comestíveis, de roupas e quinquilharias, que concorrem com o comércio normal, esco-
rados nas caixas dos partidos.
Burla-se, dessa maneira, por meios indiretos, a verdadeira vontade do povo, pois a massa,
que se deixa levar pelos impulsos momentâneos de uma fascinação oriunda de benefícios
efêmeros e insubsistentes, não constitui, de forma alguma, a expressão real da
democracia. Ela se deixa levar, segundo as palavras do Sumo Pontífice, em sua
radiomensagem do Natal de 1944, por "exploradores, mais ou menos numerosos, que têm
sabido, mediante a força do dinheiro ou da organização, assegurar-se sobre os demais
uma posição privilegiada e mesmo o Poder".
Encontramos, por conseguinte, em nosso século, a Democracia praticamente morta, ou
por excesso de igualdade, ou por excesso de liberdade. E como não pode existir liberdade
sem igualdade, nem igualdade sem liberdade, conclui-se que em nosso século não
existem nem liberdade e nem igualdade. Os dois termos completam-se e, completando-se,
realizam a Democracia verdadeira, ou seja, a única Democracia.
Como restaurar, de novo, essa forma de governo que é a mais justa, a mais honesta, a
mais digna, aquela que respeita a nossa cidadania perante os homens e perante Deus?
Será mediante simples artifícios de construção jurídica, tal como idealizou Tocqueville,
que salvaremos a Democracia? Ou o problema é mais profundo, procurando, nas raízes
do Ser Humano, os elementos perenes que conseguem estabelecer a harmonia perfeita
entre aqueles dois termos fundamentais do perfeito regime democrático e, mais ainda, a
harmonia entre os homens, os grupos e as nações?
***
Sim; o problema é mais profundo. Se a Democracia é a livre expressão da personalidade
humana, é preciso buscar nas raízes do Homem o princípio vital do sistema político a que
ele aspira.
No recesso do Ser Humano encontramos duas leis que se sobrepõem, na sua realidade
indestrutível, a todos os textos constitucionais e a todas as normas do direito positivo.
A essas duas leis pode atender o Homem, segundo se dirige para o Bem ou para o Mal.
Uma é a lei dos seus instintos; a outra é a lei de Deus. Governando-se os cidadãos por
aquela, todos os regimes políticos redundam em escravidão, ou seja, na antítese da
Democracia; mas governando-se por esta, em qualquer forma de governo os cidadãos
atingem o nobilíssimo padrão político da verdadeira Democracia.
Será inútil pretender com artifícios legais equilibrar a liberdade e a igualdade, porque o
idealismo jurídico há de sempre conflitar com o realismo social, que é muito mais forte
nos seus efeitos e nos subterfúgios com que sofisma a própria letra das leis.
Criar uma democracia puramente mecânica, destinada a funcionar automaticamente pelo
exercício dos órgãos do Poder e pela prática dos atos cívico-políticos por parte dos
cidadãos, representa um sonho cuja inexequibilidade se evidencia nos episódios
históricos do nosso tempo.
A Democracia, ou governo do povo, deve fundar-se muito mais em princípios de
moralidade, que infundem em cada homem o sentimento do justo e do verdadeiro, do que
nas regras coercitivas facilmente burladas pelos interessados em transgredi-las.
Todas as dificuldades que atualmente se apresentam aos que pretendem definir a
Democracia está em que o termo é tomado na acepção do simples mecanismo das
instituições e não no sentido da idéia nele contida.
A idéia essencial da Democracia é uma idéia de justiça; a partilha das liberdades públicas
e privadas e a distribuição racional da igualdade perante Deus e as Leis Civis e segundo
as categorias dos valores e funções acessíveis a todos os cidadãos. Quer dizer: somos,
num regime democrático, verdadeiramente iguais uns aos outros no exercício das
liberdades justas; e somos verdadeiramente livres para sermos iguais nas próprias
desigualdades de temperamento, de vocação, de aspirações que nos levam a assumir
postos diversos nas categorias econômicas, intelectuais ou políticas.
Se a idéia essencial da Democracia é a Justiça, como pode essa idéia estar sujeita ao
arbítrio, puramente transitório, de uma crise psicológica da multidão conduzida por um
ou mais indivíduos? Há, por conseguinte, alguma coisa de fixo, de imutável, na
Democracia. Essa coisa imutável, que representa a própria vida da Democracia, é a
própria concepção democrática das instituições fundamentais. No dia em que esse
conceito fosse posto a votos, ele deixaria praticamente de existir.
Mas, ainda mesmo mantido esse conceito, ele não teria vida efetiva sem que entre ele e
cada cidadão se estabelecesse uma íntima consonância. Donde se conclui que a
Democracia não existe onde os seus postulados se consignem apenas na letra das leis. A
vida da Democracia está na alma de cada cidadão. Conhecendo-a e amando-a, podemos
defendê-la; mas se não a conhecemos não conseguimos sustentá-la, na hora em que se
pretenda pôr a votos os princípios que a informam e que são, para o verdadeiro
democrata, intangíveis.
***
Os verdadeiros princípios da Democracia têm de ser fundamentalmente cristãos. Entre a
lei do instinto e a lei de Deus, os democratas sinceros adotarão esta. É a lei que procede
da fé num Criador do Universo e na imortalidade da alma humana e que sustenta a
liberdade do homem como prerrogativa do seu espírito. Logicamente, a lei de Deus, que
nos faculta a liberdade e a responsabilidade, proclama a intangibilidade da pessoa
humana. Intangível e livre, o Homem assume o compromisso de respeitar a
intangibilidade e a liberdade do seu semelhante, as quais se estendem aos grupos naturais
em que a pessoa humana se afirma e às coisas que pessoas e grupos possuem
legitimamente.
Temos, assim, como base da Democracia, 1.°) a pessoa humana intangível; 2.°) os grupos
naturais que dela procedem e dos quais o primeiro é a Família; 3.°) a propriedade justa,
isto é, aquela que não ultrapassa os limites do bem alheio ou comum.
Sendo o município uma reunião de pessoas, de grupos naturais e de propriedades, segue-
se que o município deve ser autônomo; e sendo a Nação um conjunto de municípios autô-
nomos onde vivem pessoas, famílias e grupos autônomos, conclui-se que a idéia da Pátria
é inerente à Democracia.
A manutenção de todas essas expressões da liberdade humana exige virtudes nos
cidadãos. Essas virtudes são as que se contrapõem às leis do instinto, que é injusto e
cruel. Cumpre, pois, como único meio de realizar-se o regímen democrático, uma larga e
profunda obra de educação para a Democracia.
***
Em caso contrário será impossível a Democracia. "Em mãos ambiciosas de um só ou de
muitos" — disse o Papa Pio XII — "agrupados artificialmente por tendências egoístas,
pode o próprio Estado, com apoio da massa reduzida a não ser mais do que uma simples
máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do povo". E, no mesmo discurso (Natal de
1944), continua S. Santidade: "Em um povo digno de tal nome, o cidadão sente em si
mesmo a consciência da responsabilidade, dos seus deveres e dos seus direitos e a sua
liberdade está unida ao respeito da liberdade e da dignidade dos demais".
E conclui: "Como antítese deste quadro do ideal democrático de liberdade e igualdade em
um povo governado por mãos honestas, que espetáculo apresenta um Estado democrá-
tico deixado ao arbítrio da massa? A liberdade do dever moral da pessoa se transforma
em pretensão tirânica de desafogar livremente os impulsos e apetites humanos, com dano
aos demais: a igualdade degenera em nivelação mecânica, em uniformidade monócrona.
O sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito à tradição, a dignidade,
em uma palavra, tudo o que dá à vida o seu valor, pouco a pouco se funde e desaparece, e
unicamente sobrevivem, por uma parte, vítimas enganadas pela fascinação aparatosa da
democracia (fascinação que se confunde ingenuamente com o espírito da democracia,
com a liberdade e a igualdade) e por outra exploradores, mais ou menos numerosos..."
Mas esta, acrescentamos nós, é a falsa democracia, a que se rege pelos impositivos dos
impulsos inferiores do homem; nela os cidadãos seguem a lei do instinto, que se levanta
contra a lei de Deus.
É a democracia sem conteúdo democrático, isto é, sem fundamento na Justiça; é a
democracia falsa, baseada na superposição da liberdade sobre a igualdade, ou na
igualdade sobre a liberdade, ambas levando os povos às suas trágicas conseqüências, que
tanto podem ser as do totalitarismo nazista, como as do totalitarismo comunista, ou as de
qualquer ditadura que, sob o pretexto de coibir aqueles totalitarismos, se implanta com
todos os vícios e tiranias de ambos.
Em suma: a democracia só pode existir com a lei de Deus, que fez o homem livre e
responsável. Fora disso, é tudo fantasia, é tudo engobo, a iludir multidões inconscientes
com a música das palavras sonoras e vazias de sentido...
Plínio Salgado
Notas:
[1] O Ritmo da História, 1956, in Obras Completas, São Paulo, 1954, Vol. 16, pág. 117.
O verdadeiro nacionalismo
Entre tantas outras palavras cujo sentido foi inteiramente deturpado, em nosso tempo,
essa palavra nacionalismo é certamente a que sofreu a maior deturpação. Os intérpretes
do nacionalismo fizeram dele um espelho de suas próprias paixões, de seus exageros e de
suas insuficiências. Não o tomaram na sua realidade humana, como expressão de um
culto pelo grupo natural constituído por frações da humanidade tipicamente di-
ferenciadas. Uns o exaltaram a tal ponto que o tornaram um instrumento de opressão
interna e de ameaça externa. Confundindo a Nação com o Estado, os teoristas alemães, a
partir de Bluntschli, fizeram do nacionalismo um instrumento de absorção das pessoas
humanas e dos outros grupos naturais em que as pessoas se agregam com o objetivo da
defesa de seus direitos fundamentais; e confundindo a Nação e o Estado com a Raça, ou
com uma ideologia de tendência imperialista, muitos pensadores, filósofos, juristas e
homens públicos do nosso tempo transformaram o nacionalismo em constante ameaça
contra os povos.
Considerando o nacionalismo sob esses aspectos, surgiram as reações dos que amam a
liberdade do Homem e a paz alicerçada em bases jurídicas; mas esses incorreram no erro
oposto, o que nos faz lembrar os primeiros tempos do Cristianismo, quando o combate a
uma heresia se tornava, no curso polêmico da controvérsia, outra heresia e, às vezes,
maior do que a da doutrina adversária.
O erro dos que combatem o nacionalismo exagerado, ou transvertido nas formas
destruidoras do verdadeiro nacionalismo, consiste em condenar essa palavra, in limine,
sem estabelecer distinções. E, assim procedendo, esses inimigos do nacionalismo
desarmam os povos constituídos em grupos humanos nacionais, tirando-lhes a única arma
com que se podem defender das agressões e da dominação do nacionalismo deturpado.
Fazem, dessa maneira, o jogo do próprio adversário.
Existe ainda outro erro — e esse é o das mentalidades ignaras ou medíocres — que está
em tomar o nacionalismo como sinônimo de xenofobia, de jacobinismo, de atitude de re-
pulsa às nações estrangeiras. Esquecem-se de que o grupo natural que chamamos Nação
constitui um meio pelo qual estabelecemos as relações comerciais, culturais, jurídicas e
morais com os outros grupos nacionais em que se acha diferenciada a unidade humana.
Esquecem-se de que, se a colaboração entre as Nações já se apresentava como uma
realidade entrevista nos séculos XVI e XVII, por Francisco Vitória e por Grotius, muito
mais hoje se impõe, primeiro pela internacionalização do comércio, que principiou a
desenvolver-se de maneira acelerada, desde os albores do século XIX; depois pelo
instrumental técnico do século XX, que liga os povos pelo avião, pelo rádio, pela
televisão, finalmente pelo interconhecimento das condições econômicas, sociais e
psicológicas, as quais, denunciando a identidade das aspirações, insinua a adoção de
fórmulas solucionadoras de problemas comuns.
De tantos erros concluímos que a palavra nacionalismo precisa ser recolocada na sua
verdadeira posição e na sua verdadeira significação.
***
Devemos ser nacionalistas? Sim; é a única resposta que cabe a um cristão, uma vez que
sustenta o princípio da intangibilidade da pessoa humana e dos grupos naturais de que se
servem as mesmas pessoas para defender seus direitos e cumprir seus deveres tendentes a
um fim determinado por Deus. A Nação é um grupo natural, uma realidade histórica e
social; nela se conjugam e se exprimem os outros grupos naturais. Acima dela, só a
realidade — maior do que todas as outras — que é a Religião. Mas se nesta encontramos
os princípios fundamentais da liberdade e da responsabilidade do Homem e a sustentação
doutrinária da autonomia dos grupos naturais, a começar pela Família, que é o mais
importante, então temos de aceitar a Nação e o nacionalismo, como um meio de defesa e
garantia de sobrevivência dos direitos individuais e grupais. Combater o nacionalismo é
desarmar os grupos naturais e o próprio Homem dos meios materiais, jurídicos e
internacionais de sua permanência e intangibilidade. É, ao mesmo tempo, insurgir-se
contra a lei de Deus, que diferenciou a unidade humana em expressões particulares,
segundo condições geográficas, climáticas, econômicas, culturais, idiomáticas, históricas
e temperamentais, o que fez evidentemente para algum fim, o qual não pode ser outro
senão a própria defesa do Homem e dos Grupos Naturais, em conseqüência do equilíbrio
de forças pela qual se impede a escravização universal dos seres humanos a uma só
potência, que poderá ser inimiga de Deus.
Esse nacionalismo cristão deve ser cultuado. Sem ele não nos defenderemos do cruel
materialismo que ameaça o mundo. Esse nacionalismo não deve ser nem exagerado nem
superficial. Equilibrado e profundo, justo e lúcido, ele refletirá a personalidade de uma
Pátria, constituída pelo conjunto das personalidades congregadas no grupo nacional.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Mensagem às Pedras do Deserto, Obras Completas, Vol. 15, pág. 338.
Esquerdas e direitas
Já temos repetido muitas vezes, nunca julgamos pouco repetir: para a nossa visão
totalitária da sociedade, do mundo e das nações, não existe nem "esquerda" nem "direita",
por conseguinte não consideramos também um "centro", nem "meias-direitas" ou "meias-
esquerdas".
A política, para nós, não é jogo de futebol a que ficou reduzida a atividade social das
nacionalidades, no transcurso do século XIX. A substituição das corporações medievais
pelos partidos criou as equipes esportivas para os "matches" eleitorais e parlamentares. A
organização sindical, a luta de classe, firmaram as regras fixando as posições dos
"players". As massas populares transformaram-se em multidões de aficionados entregues
à superexcitação das "torcidas" frenéticas. Os parlamentos eram os grandes "stadiuns"
onde os jogadores se colocavam: a III Internacional na extrema esquerda, a II Inter-
nacional na meia-esquerda, os liberais democratas no centro, os conservadores na meia-
direita, os reacionários na extrema-direita.
***
Esse jogo correspondia a uma mentalidade, a uma civilização, a um século. Hoje, não
pode significar cousa alguma para nós. Falamos uma linguagem diferente, porque somos
homens diferentes. Os que ficaram convivendo com Gladstone ou Gambetta, os que
adormeceram ouvindo os discursos e manifestos que encheram o século passado, esses
não poderão compreender-nos, porque, para eles a vida nacional está enquadrada nos
lineamentos dos partidos, o jogo parlamentar é um esporte onde as composições e
recomposições ministeriais quebram a monotonia bocejante dos "half-times" exaustivos,
e, nos regimes presidenciais, a intermitência dos grandes plebiscitos marca os "rounds"
eliminatórios que se revezam na arena batida do sufrágio universal.
Toda a finalidade dos povos, para os aficionados da política do século XIX, reduz-se a
esse jogo, a essa permanente competição que para nós, homens do século XX, já se
tornou de uma puerilidade enfadonha.
***
Puerilidade e anacronismo. Os filósofos, pensadores e políticos que vieram da tomada da
Bastilha à ocupação do Ruhr, não foram capazes de abranger panoramas totais. Cada qual
viu um aspecto do problema humano. Cada qual cingiu-se a um método restrito. Cada
qual subordinou a questão a um princípio de ordem particular.
Esse século que produziu, separadamente, o fonógrafo, a luz elétrica, a fotografia
animada, a telegrafia, não poderá compreender o século que sintoniza e sincroniza,
realizando num só milagre de som, de luz, de transmissão e de cor, as prodigiosas
sínteses universais.
Esse século XIX, que conheceu os teares incipientes, os aerostatos, os barcos de rodas de
Fulton, as locomotivas rudimentares, e dessas conquistas deduziu toda a teoria política
que veio até a lâmpada de Édson, ao aeroplano de Santos Dumont e aos aparelhos de
televisão, já não pode ditar leis a esta nova época da humanidade, em que a máquina
atingiu perfeições assombrosas.
Nos últimos cem anos, o problema era o aproveitamento da máquina, o lançamento da
máquina, a máxima eficiência da máquina; agora, que temos chegado a esses objetivos,
preocupa-nos a reconquista do poder do homem sobre a máquina, o império moral da
criatura humana, a sua expressão nacional e a sua tradução governamental.
***
Quando vemos os socialistas, como observa Durkheim, pretenderem reduzir tudo à
"questão operária"; quando vemos os marxistas da extrema-esquerda, presos ainda ao
manifesto de 1849 e animados pelas lições de Sorel, pretenderem tudo olhar sob o prisma
da luta de classe; quando vemos os pragmatistas reduzirem tudo a uma questão de técnica
administrativa; quando vemos os positivistas só falarem no problema da ordem, sem
cogitar dos fundamentos espirituais de disciplina social; quando apreciamos os
economistas subordinarem tudo à economia, os idealistas abstraírem das realidades
econômicas, os místicos encararem apenas a face religiosa da sociedade, enquanto os
simplistas do materialismo excluem a expressão espiritual dos indivíduos e dos povos;
quando vemos todas essas orientações parciais, fragmentárias, unilaterais, é que nos
apercebemos da existência de uma nova mentalidade, que é a nossa, integralista,
totalizadora das forças materiais e das forças espirituais, assim como da dinâmica social
em que atuam, completando-se a dialética dos fatos e o arbítrio da idéia criadora.
Somos uma mentalidade nova. Somos uma palavra nova. Somos um combate novo. Que
traz um novo sentido, que só entendem os cérebros libertados dos preconceitos do século
XIX.
***
Não nos colocamos no ponto de vista nem da burguesia nem do proletariado. Não
estamos nem com os nacionalistas cegos, sentimentais e ditirâmbicos, nem com os
internacionalistas utópicos que pretendem unir os indivíduos por cima das Pátrias,
proclamando a união dos trabalhadores de todo o mundo, como o fizeram os profetas
falidos da II e da III Internacional. Não rompemos ofensiva contra a burguesia, mas
contra o espirito do século do qual ela é um produto concreto;
não contrariamos as justas aspirações do proletariado, mas queremos arrancar o
proletariado da concepção unilateral da vida em que o lançaram, para explorá-lo, sem
resolver a sua situação, que é apenas uma conseqüência da própria mentalidade do século
XIX.
Negamos a lição de Marx, quando diz que a revolução do operário deve ser feita por ele
próprio. Para Marx havia a revolução do operário como havia a reação da burguesia. Para
nós, que viemos depois de Einstein, que viemos depois de declarada a falência
evolucionista em que se estribou a política da burguesia, que viemos depois da
hecatombe de 1914, depois do fracasso do plano qüinqüenal e depois da queda da libra e
da crise do dólar, para nós só existe uma revolução: a revolução do século XX contra os
preconceitos do século XIX.
***
Essa revolução abrange todo o complexo panorama universal. Cria um novo sentido de
nacionalismo e de internacionalismo. Engendra uma nova economia e um novo conceito
de Estado. Contém todas as energias das lutas sociais.
Essa revolução não pode mesmo ser compreendida pelos anacrônicos socialistas, pelos
mofados marxistas, pelos antediluvianos da extrema-direita. É um estado de espírito de
civilização que nasce.
Eis por que acometemos toda a estrutura das velhas sociedades. Eis por que rompemos as
nossas baterias, não contra os partidos, não contra a burguesia ou o demagogismo
esquerdista, não contra os grupos regionais ou econômicos, mas contra tudo o que os
produzir. A nossa avançada é contra uma civilização. Em nome de uma palavra nova dos
tempos novos.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Palavra Nova dos Tempos Novos, 1937, in Obras Completas, São Paulo. 1954, Vol. 7,
pág. 249.
O trabalho
Se uma Declaração de Direitos e Deveres do Homem deverá conter a dos direitos da
Família e da Propriedade, logicamente há de conter a dos direitos do Grupo de Trabalho.
1) CONCEPÇÃO CRISTÃ DO TRABALHO
O Trabalho, para nós, cristãos, não é a mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura,
conforme a considera a economia liberal. Nem simplesmente produto sujeito à
especulação da mais valia segundo o socialismo marxista, que dessa forma o toma como
complemento do objeto inanimado sobre o qual opera o trabalhador. Ambos esses
conceitos são materialistas, conduzindo o primeiro ao desamparo completo do Homem, e
o segundo à própria escravização do mesmo Homem. O individualismo econômico deixa
o Trabalho entregue à livre concorrência, cujo espírito de ganância desconhece os
sentimentos de fraternidade e de simpatia humanas. O coletivismo marxista, pretendendo
(ao que diz) corrigir essa injustiça, agrava a situação do trabalhador, nacionalizando o
Trabalho como parte integrante da produção material. Suprimindo a concorrência, em que
existe uma pluralidade de "compradores de trabalho", para que só exista um
monopolizante "tomador de trabalho", que é o Estado, coloca o Homem em face de um
único patrão, o qual dispõe, como meio coercitivo, de todo um aparelhamento policial. Se
o preço do Trabalho, no sistema liberal, é variável segundo os imperativos da
concorrência, dos interesses das empresas ou dos patrões, também no sistema socialista
esse preço varia, não consoante as necessidades do operário, mas de conformidade com
as razões de Estado. De sorte que, se o Estado Socialista organizou uma planificação da
produção industrial ou agrícola, no intuito, por exemplo, de se preparar para uma
projetada guerra; e se os recursos desse Estado devem ser empregados na importação de
matérias-primas ou em outras despesas inerentes àquela planificação, os salários baixarão
a ínfimos coeficientes; é a escravização total dos trabalhadores.
Mercadoria posta em concorrência, ou produto a que se acrescenta o mais valor, o
Trabalho, num ou noutro caso, é tomado segundo um critério absolutamente materialista.
O Trabalho, entretanto, para nós, cristãos, é considerado como um ato, ou série de atos,
puramente espirituais. Daí o conceito em que o temos: 1.° como expressão da liberdade
humana; 2.° da capacidade criadora do Homem; 3.° como meio pelo qual o Homem visa
um bem temporal objetivando um dom sobrenatural.
O Trabalho é expressão da liberdade humana porque o Homem trabalha sempre porque
quer, ainda mesmo quando a isso o obrigam. Sendo dispêndio de energia, visando
determinado fim, o ato do Trabalho é exercido por uma continuidade de impulsos
subjetivos, ou por uma sucessão de ritmos volitivos ordenados por um pensamento.
Assim procedendo, o Homem participa do Trabalho Divino, do mesmo modo como, no
exercício da sua liberdade, participa da liberdade de Deus, uma vez que foi feito à
imagem e semelhança do seu criador.
Logicamente, o Trabalho é demonstração da capacidade criadora do Homem. E, ainda
aqui, o Trabalho do Homem assemelha-se ao Trabalho de Deus. A criação do Universo
foi uma expressão da liberdade divina. Porque Deus pensou, Deus quis e Deus agiu.
Idéia, Vontade, Ação. A liberdade de Deus principia a manifestar-se na eleição da Idéia.
Porque a Onipotência tinha em si a fonte inexaurível de todas as idéias possíveis e as
humanamente impossíveis; mas a escolhida foi essa, a do universo como é.
.........................................................................................
Como ato ou sucessão de atos de liberdade e como exercício de poder criador, o Trabalho
é um Direito. No entanto, o Trabalho é também um meio de subsistência do Homem e da
sua família. "Comerás o pão com o suor do teu rosto", disse Deus, segundo reza o
Gênesis.
Nestas condições, o Trabalho, além de ser um Direito, constitui um Dever. Direito à vida,
dever no sentido de que a manutenção da liberdade pessoal e familiar precisa basear-se na
independência econômica. E dever, ainda quando o Homem recebeu certos dons de Deus,
que ele não pode deixar de transmitir gratuitamente aos seus semelhantes.
Isto posto, o Trabalho considerado como objeto de troca de benefícios, ou de contrato de
locação de serviços não é um fim, mas um meio. É o meio para que o Homan atinja o seu
verdadeiro fim: o de manter-se e o de manter a sua família de sorte que, assegurada a
independência do Trabalhador e do grupo familiar pelo qual o Homem é responsável
perante Deus, possam, tanto um como outro, proceder livremente, sem óbices ou coação
externos, segundo os Mandamentos que constituem a síntese jamais superada dos direitos
naturais. Desse modo, o Homem, pelo Trabalho, cria condições de vida mediante as
quais, na efemeridade de sua existência na terra, prepara-se para a eternidade de uma
existência que lhe foi reservada por Deus.
Direito e Dever, o seu exercício e os seus frutos precisam ser assegurados ao Trabalhador.
O direito ao Trabalho está intimamente ligado às prerrogativas de liberdade, de dignidade
e de intangibilidade da Pessoa Humana. Ninguém pode ou deve ser obrigado a trabalhar.
Ninguém pode ou deve ser forçado a trabalhar em qualquer gênero de labor que contrarie
o seu desejo, a sua aptidão, a sua vocação ou temperamento. O Trabalho perde toda a sua
grandeza e respeitabilidade se for obrigatório, e amesquinha o Homem, se o seu gênero
não condisser com a íntima eleição vocacional da personalidade humana.
Escolhido livremente o gênero de Trabalho, este deve obter a remuneração adequada às
necessidades do trabalhador e da sua família. Todo o Trabalho visa uma remuneração,
mesmo aquele que se executa pelo puro prazer do trabalho, pois neste caso, conquanto o
Trabalho não se exercite num sentido de reciprocidade material, efetiva-se num sentido
que podemos denominar "reciprocidade compreensiva", redundando em honra, ou glória
do Homem, ou ainda, em simples alegria interior quando o Trabalho se sublima para
admiração dos homens, ou se sobrenaturaliza para agrado de Deus.
O Trabalho que visa a admiração dos homens é o do artista, do cientista, do guerreiro, dos
gênios e dos heróis; e o que visa agradar a Deus é o Trabalho dos Santos, desses que se
consomem nas enfermarias dos hospitais ou no esforço evangelizador, ou nos misteres
obscuros que só a Caridade sabe exercer, tudo no intuito de consolar e iluminar as almas.
Mesmo nesse caso, há uma troca de serviços porque o simples fato de alguém se fazer
objeto do trabalho desinteressado que se executa unicamente para agradar a Deus, é uma
forma de retribuição.
Chegamos, portanto, à conclusão de que o Trabalho, como meio e não como fim em si
mesmo, é um fator de sociabilidade, de interdependência dos homens. Não é um
paradoxo dizer-se que o Trabalho, fazendo o Homem independente, fá-lo ao mesmo
tempo dependente: independente, em relação a outra ou outras pessoas que pretendessem
impor ao Trabalho normas de vida, violentando-lhe a consciência, e dependente em
relação à coletividade e ao seu ou seus semelhantes com os quais necessite trocar
serviços, ou dos quais recebeu ou recebe, ou vai receber, determinados benefícios.
Atingimos, com estas considerações, o pensamento de Sêneca, utilizado e desenvolvido
por um dos mais lúcidos pensadores políticos da Idade Média portuguesa, o Príncipe D.
Pedro, o qual, no seu livro A Virtuosa Benfeitoria, funda todas as relações humanas, e
principalmente as relações entre Governo e Povo, na idéia do benefício.
O Trabalho de todos beneficia a cada um dos membros da sociedade; o trabalho de cada
membro beneficia a todos os membros da Sociedade.
O Trabalho, pois, deve ser tomado como benefício e, nessa acepção, ele adquire a própria
grandeza da caridade, ou do amor que une todos os homens numa sociedade cristã.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Direitos e Deveres do Homem, 1949, in Obras Completas, São Paulo, 1954, Vol. 5,
pág. 267.
Os operários
Esses, que aí vão, em multidões, enchendo os bondes, os trens dos subúrbios, povoando
as estradas, ressoando os passos nas pedras das ruas, mal rompe a aurora, — são eles, os
construtores de toda a grandeza material de um povo.
São eles, os operários, os que batem o aço das naves, os que erguem os vigamentos dos
prédios, os que fiam e tecem as roupas que vestimos, os que fabricam mil objetos, todos
esses que constituem os primores da civilização.
À luz vermelha das fornalhas, revolvendo o carvão incandescente; domando o aço que
amolda ao canto das bigornas; movendo as chaves que despertam o clamor dos motores e
dos dínamos; — ei-los, os criadores do progresso, os mágicos das forjas, dos tornos, dos
teares, dominadores dos elementos.
Sem eles não há realizações materiais numa Pátria. Sem eles não há força, saúde, riqueza
e conforto num país. Sem a colaboração deles será inútil o esforço dos cientistas, dos
inventores, dos técnicos, dos estadistas. Porque os operários são a inteligência executora
comandada pela inteligência criadora, e uma não pode passar sem a outra, pois ambas se
completam.
***
Desgraçados os países onde os operários foram transformados em seres sem alma,
autômatos sem vontade, nos quais morre toda a alegria da criação que vem do fundo de
um coração livre!
Desgraçados os países, também, onde os operários são esquecidos, humilhados,
desprezados e explorados, vivendo uma vida sem esperança!
Uma nação só é grande quando os seus operários são felizes, quando eles sentem, na
segurança da sua liberdade e na fartura do seu lar, a justiça e o respeito dos seus com-
patriotas.
O operário brasileiro tem uma extraordinária missão. O Brasil é um país novo, onde
quase tudo está por fazer. Possuímos jazidas imensas de ferro a explorar; um extenso
território, que deve ser cortado de estradas de ferro. Precisamos de uma grande frota para
o nosso comércio marítimo e de uma poderosa esquadra para a defesa do nosso litoral.
Temos necessidade de construir estradas para automóveis e automóveis para essas
estradas. É-nos indispensável contar com milhares de aviões, pois além de sermos a
Pátria da Aviação, o nosso território é de tal forma gigantesco, estendendo-se em tão
vastas latitudes, que os meios rápidos de comunicação nos são imprescindíveis. Urge
criarmos uma laboriosa agricultura e uma indústria nacional, capazes de aproveitar as
produções da terra. Por todos esses motivos, ser operário no Brasil é ser soldado de um
grande exército, o Exército da Economia Nacional.
Para ter uma compreensão profunda do seu glorioso papel, o operário brasileiro deve
guardar no intimo do seu coração o amor da Pátria, que lhe dará a idéia da dignidade do
Trabalho. Esse sentimento deve ser acompanhado pelo da Família, que imprime ao
Trabalho um caráter de Humanidade, espiritualizando o seu esforço construtor, e pelo
sentimento de Deus, que inspira confiança, ânimo e fortaleza, enaltecendo e elevando a
criatura que, por Ele, se salva do perigo de se brutalizar e se transformar em máquina
inconsciente.
À primeira hora do dia, quando o perfil das fábricas se estampa no róseo tom da alvorada,
e as chaminés, ao canto das sereias, elevam para o espaço o seu pendão de fumo, como é
comovente a marcha dos operários para o trabalho!
Quereis sentir a maravilhosa grandeza do homem, no instante em que realiza o seu
esforço criador?
Vede aquele quadro: o trabalhador levanta com sua tenaz a barra incandescente da
fornalha. Leva-a para a bigorna. Como gritos de luz, irradiam-se vivas fagulhas;
multiplicam-se, em círculos, como estrelas. Retine, cantando, a voz do metal. E o
trabalhador, coroado por uma constelação de fúlgidas centelhas, resplandece como
estátua de ferro em estremecimentos humanos. E o clarão que se reflete no suor do seu
rosto, parece dar estranhos polimentos ao semblante de músculos retesos no ímpeto
criador e na glorificação do homem.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Nosso Brasil, 1937, in Obras Completas, 1954, S. Paulo, Vol. 4, pág, 341.
Os operários
Esses, que aí vão, em multidões, enchendo os bondes, os trens dos subúrbios, povoando
as estradas, ressoando os passos nas pedras das ruas, mal rompe a aurora, — são eles, os
construtores de toda a grandeza material de um povo.
São eles, os operários, os que batem o aço das naves, os que erguem os vigamentos dos
prédios, os que fiam e tecem as roupas que vestimos, os que fabricam mil objetos, todos
esses que constituem os primores da civilização.
À luz vermelha das fornalhas, revolvendo o carvão incandescente; domando o aço que
amolda ao canto das bigornas; movendo as chaves que despertam o clamor dos motores e
dos dínamos; — ei-los, os criadores do progresso, os mágicos das forjas, dos tornos, dos
teares, dominadores dos elementos.
Sem eles não há realizações materiais numa Pátria. Sem eles não há força, saúde, riqueza
e conforto num país. Sem a colaboração deles será inútil o esforço dos cientistas, dos
inventores, dos técnicos, dos estadistas. Porque os operários são a inteligência executora
comandada pela inteligência criadora, e uma não pode passar sem a outra, pois ambas se
completam.
***
Desgraçados os países onde os operários foram transformados em seres sem alma,
autômatos sem vontade, nos quais morre toda a alegria da criação que vem do fundo de
um coração livre!
Desgraçados os países, também, onde os operários são esquecidos, humilhados,
desprezados e explorados, vivendo uma vida sem esperança!
Uma nação só é grande quando os seus operários são felizes, quando eles sentem, na
segurança da sua liberdade e na fartura do seu lar, a justiça e o respeito dos seus com-
patriotas.
O operário brasileiro tem uma extraordinária missão. O Brasil é um país novo, onde
quase tudo está por fazer. Possuímos jazidas imensas de ferro a explorar; um extenso
território, que deve ser cortado de estradas de ferro. Precisamos de uma grande frota para
o nosso comércio marítimo e de uma poderosa esquadra para a defesa do nosso litoral.
Temos necessidade de construir estradas para automóveis e automóveis para essas
estradas. É-nos indispensável contar com milhares de aviões, pois além de sermos a
Pátria da Aviação, o nosso território é de tal forma gigantesco, estendendo-se em tão
vastas latitudes, que os meios rápidos de comunicação nos são imprescindíveis. Urge
criarmos uma laboriosa agricultura e uma indústria nacional, capazes de aproveitar as
produções da terra. Por todos esses motivos, ser operário no Brasil é ser soldado de um
grande exército, o Exército da Economia Nacional.
Para ter uma compreensão profunda do seu glorioso papel, o operário brasileiro deve
guardar no intimo do seu coração o amor da Pátria, que lhe dará a idéia da dignidade do
Trabalho. Esse sentimento deve ser acompanhado pelo da Família, que imprime ao
Trabalho um caráter de Humanidade, espiritualizando o seu esforço construtor, e pelo
sentimento de Deus, que inspira confiança, ânimo e fortaleza, enaltecendo e elevando a
criatura que, por Ele, se salva do perigo de se brutalizar e se transformar em máquina
inconsciente.
À primeira hora do dia, quando o perfil das fábricas se estampa no róseo tom da alvorada,
e as chaminés, ao canto das sereias, elevam para o espaço o seu pendão de fumo, como é
comovente a marcha dos operários para o trabalho!
Quereis sentir a maravilhosa grandeza do homem, no instante em que realiza o seu
esforço criador?
Vede aquele quadro: o trabalhador levanta com sua tenaz a barra incandescente da
fornalha. Leva-a para a bigorna. Como gritos de luz, irradiam-se vivas fagulhas;
multiplicam-se, em círculos, como estrelas. Retine, cantando, a voz do metal. E o
trabalhador, coroado por uma constelação de fúlgidas centelhas, resplandece como
estátua de ferro em estremecimentos humanos. E o clarão que se reflete no suor do seu
rosto, parece dar estranhos polimentos ao semblante de músculos retesos no ímpeto
criador e na glorificação do homem.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Nosso Brasil, 1937, in Obras Completas, 1954, S. Paulo, Vol. 4, pág, 341.
A propriedade
Conquanto coisa inanimada, a propriedade participa, de certa forma, das prerrogativas de
intangibilidade da pessoa humana. Sendo base material de independência econômica, ela
contribui para fortalecer a liberdade social e política do Homem e, sobretudo, a
autonomia da Família. O Homem imprime nela o seu caráter. Fá-lo segundo os seus
desejos, segundo idéias de aproveitamento econômico ou de beleza que haja engendrado.
A propriedade, por conseguinte, deve ser mantida numa sociedade cristã, com o fim
assinalado pelo ensinamento cristão: atender às necessidades humanas do proprietário e
também às do bem comum da sociedade (Rerum Novarum). Esse duplo caráter individual
e social, assinalado tanto por Leão XIII como por Pio XI (Quadragésimo Ano), não
destrói, antes fortifica o direito de propriedade. O conceito individual-social só encontra
origem no conceito da Pessoa Humana.
1) FUNDAMENTO DO DIREITO À PROPRIEDADE
Já em 1878, na Encíclica Quod Aposiolici muneris, catorze anos antes da Rerum
Novarum, Leão XIII qualifica de monstruosas as teorias dos socialistas contrários ao
direito de propriedade, e afirma que esse direito "é sancionado pela lei natural" e diz
respeito a tudo quanto o homem possui "por legítima herança, ou pelo trabalho do seu
engenho ou das suas mãos". Esse conceito da propriedade, baseado na natureza humana,
vem confirmado tanto na Rerum Novarum, em 1892, como na Quadragésimo Ano, onde
Pio XI amplia e atualiza o pensamento de Leão XIII.
Tendo por origem os mesmos direitos da Pessoa Humana, a propriedade também se
funda, logicamente, nos direitos da Família, primeiro grupo natural a que o homem se
acolhe e pelo qual se defende de um individualismo que o exporia ao arbítrio despótico
da coletividade ou do Estado.
Mas se o Homem, para manter a sua Família, necessita de trabalhar, e se pelo trabalho
aufere os meios de sustentação e amparo da Família, segue-se que da liberdade do
trabalhador origina-se a liberdade da propriedade adquirida com o fruto do trabalho.
Trocado este pelo salário, todas as reservas de ganho acumuladas são reservas do próprio
trabalho; por conseguinte, se o trabalho humano é livre, também livre deve ser aquilo que
o representa, ou seja, a propriedade adquirida. Porque essa propriedade é fruto do
trabalho livre do seu possuidor, ou do trabalho livre do doador, ou daquele ou daqueles de
quem o proprietário houve os bens por legítima herança.
A propriedade, entretanto, não tem um fim egoístico; deve ser instrumento de benefício
social. Nesse caráter, ela encontra irrecusável fundamento moral e representa uma
imperiosa necessidade ao bem comum.
Baseada, antes de tudo, na lei divina, que assegura o direito do possuidor legítimo no
Sétimo Mandamento (não furtar) e no Nono Mandamento (não cobiçar as coisas
alheias), o consenso universal aceitou, através de séculos, a propriedade privada como
um bem necessário. A biologia e a filosofia confirmam o ensinamento religioso e o bom
senso dos povos no curso da História, evidenciando que o Homem, mesmo considerado
apenas como animal, assimila e integra no seu corpo quantidade de matéria com as quais
se desenvolve, até aos limites de sua estatura e das suas necessidades vitais, fato que,
transportado para os domínios da psicologia (e tendo-se em vista que o Homem, por ser
um ente racional, não se restringe unicamente ao desenvolvimento do seu físico), torna
evidente a necessidade de outras aquisições, no mundo que o rodeia. O próprio
evolucionismo materialista considera todos os instrumentos de que o Homem se utiliza,
desde os machados de pedra e a tração animal, até às máquinas mais aperfeiçoadas da
indústria moderna, como uma ampliação da capacidade humana no sentido do domínio
da natureza exterior. Isso prova que o Homem precisa projetar-se além de si mesmo, num
esforço de afirmação da sua personalidade. Por conseguinte, para cumprir os deveres que
lhe foram assinalados por Deus, o Homem necessita de meios e, entre esses, está a
propriedade legítima, de que ele se utiliza para o seu próprio bem, para o bem de sua
família e para o bem social, que, em última análise, reflui sobre ele, como um bem de que
participa em comum com os seus semelhantes.
2) AMEAÇAS MODERNAS AO DIREITO À PROPRIEDADE
Sustentar, entretanto, o direito à propriedade, apenas teoricamente, parece-nos
improfícuo. O direito à propriedade não é hoje somente ameaçado pelo socialismo, ou
mais particularmente pelo comunismo. Sustentado em teoria pelo individualismo político,
ele é negado na prática pelo jogo dos interesses econômicos e, principalmente, pela
desorganização da economia, que é hoje, porventura, o fenômeno mais saliente dos
tempos modernos.
A oscilação do poder aquisitivo da moeda, o encarecimento e o barateamento do dinheiro,
em sucessivas crises provocadas pela exploração de grupos econômicos ou financeiros,
ou pelo arbítrio dos Estados, põe em perigo constante a propriedade particular. As
dificuldades de custeio da propriedade levam o proprietário a endividar-se, escravizando-
se à ditadura dos juros e à ameaça mortal das hipotecas. A sua propriedade, muitas vezes,
não pode também concorrer com as propriedades maiores, onde o emprego de um capital
mais avultado barateia a produção enquanto a produção da pequena propriedade, pelo
volume reduzido, sai mais cara. O pequeno proprietário não se pode agüentar. Então,
vencem-se as hipotecas, ou os penhores mercantis, ou mesmo as letras de câmbio. O
pequeno proprietário é obrigado a entregar a sua propriedade. Foi proletarizado, não pelo
comunismo, porém pela própria engrenagem da economia individualista.
Em países de vasta extensão territorial, o problema se apresenta ainda sob outro aspecto.
Não há meios de transportes suficientes para a massa da produção. As mercadorias apo-
drecem nos armazéns, longe dos centros consumidores. Então, as grandes empresas
comerciais, ou os monopólios organizados por grupos financeiros, dispondo de veículos
para efetuar o transporte, pagam o preço que bem entendem ao produtor, impondo ao
mesmo tempo o preço que arbitram ao consumidor. Tornando-se um ônus e não uma
fonte de renda, a propriedade é vendida pelo proprietário por um preço inferior ao pelo
qual foi comprada, ou entregue, também, à voragem das hipotecas. Concomitantemente, a
vida do consumidor torna-se mais cara, ele se endivida e, se possui alguma pequena
propriedade urbana, é forçado a vendê-la.
A tudo isso acresce a atual orientação socialista da maior parte dos Estados chamados
democráticos, os quais, através dos impostos, vão enfraquecendo e destruindo
gradativamente as propriedades. A multiplicidade espantosa dos impostos, diretos e
indiretos, que pesam sobre as populações de todos os países, pode servir de instrumento a
uma proletarização crescente das classes médias e submédias, realizando praticamente o
plano traçado por Sorel nas suas Reflexões sobre a violência: o fortalecimento dos
grandes capitais, como condição da revolução das massas. O cruel castigo inflingido às
famílias sob a forma do imposto de transmissão causa-mortis, sem distinguir o grande do
pequeno espólio, e as taxas judiciárias em processos de inventário, divisões e
demarcações; as exigências do
fisco nacional e municipal (e nos países federados, do fisco estadual), tudo isso dificulta a
manutenção da propriedade pequena ou média que é o tipo mais perfeito da propriedade
cristã.
A tais compressões contra a propriedade, ajunte-se a asfixia financeira, numa época de
urbanismo crescente, em que os Bancos operam mais comumente em favor de grandes
empresas de construção urbana ou de empresas industriais, restringindo o crédito aos
produtores agrícolas e aos pequenos proprietários. Acrescente-se a esse quadro o poder
econômico e financeiro de algumas nações exercido sobre outras, ou o poder financeiro
de grupos internacionais exercido contra os povos, e veremos que inútil será uma
proclamação do direito de propriedade, se não for alterado o panorama que acabamos de
expor.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Direitos e Deveres de Homem, 1949, in Obras Completas, 1954, São Paulo, Vol. 5,
pág. 259.
Plantando dá
(8 de setembro de 1931)
Comemora-se a 7 de setembro a frase de D. Pedro: "Independência ou morte!"
Essa frase ganha, agora, uma oportunidade imperiosa.
O Brasil precisa libertar-se de numerosos preconceitos que o tolhem.
Pode-se dizer que todas as idéias predominantes em nossa política, durante a Monarquia,
durante a República, e ainda nestes dias incertos, são idéias criadas pelos estrangeiros que
nos exploram e que têm todo interesse em nos manter num estado de inconsciência, de
timidez e incapacidade.
Essas idéias são como hipnóticos: imobilizam-nos.
***
O Brasil está escravizado a uma série de preconceitos deprimentes. É doloroso ouvir-se
um brasileiro culto: ele condena a nossa raça, os nossos costumes, atribuindo todos os
nossos males à nossa inferioridade. Ele canta a superioridade étnica e moral dos anglo-
saxônicos, aponta para os Estados Unidos, numa atitude de basbaque, procurando
humilhar os seus patrícios pelo cotejo da nossa pobreza com a opulência do país dos
milionários.
Esquece que a nossa raça apresenta índices históricos de superioridade sobre os norte-
americanos, pelos seguintes motivos:
1.°) O desbravamento da terra:
a) — Enquanto os colonizadores, nos Estados Unidos, agiam numa zona temperada, nós
enfrentávamos uma natureza tropi- cal, tendo contra nós o clima, as moléstias
arrasadoras, como a maleita, o tifo americano e uma quantidade de insetos e répteis
implacáveis.
b) — Enquanto os primeiros colonos dos Estados Unidos eram constituídos de gente
banida da Inglaterra, por motivos religiosos e políticos, o que os obrigava a aportar à
América, com o desígnio irrevogável de se fixar, os nossos primeiros colonos, que não
sofriam perseguição alguma em Portugal, aqui vinham, não como intuito de morar em
definitivo, mas de voltar à Metrópole, logo que tivessem conseguido ouro, e isso era hu-
mano e natural. Dessa maneira, só no século XVIII é que começa a haver no Brasil um
sentimento nacional, que se revela na iniciação agrária.
2.°) Independência e organização econômica:
a) — A independência do Brasil verificou-se justamente quando foram inventados o
vapor, as máquinas. Todas as nações, já organizadas, trataram de instalar a sua vida de
acordo com o novo sentido da civilização. Pois bem: o Brasil não dispunha, e nunca
dispôs dos elementos necessários ao desenvolvimento racional da agricultura e ao
incremento das indústrias: o carvão-de-pedra. A extração desse combustível nos Estados
Unidos era enorme, tendo só o Estado da Virgínia, nesse ano de 1822, uma produção de
500.000 toneladas de hulha, ao passo que nós, no país inteiro, não dispúnhamos de um
grama de carvão. De sorte que os Estados Unidos puderam fazer estradas de ferro para os
sertões, onde se abriam cidades, e nós éramos obrigados a nos servir de carros de boi e de
tropas de burros.
b) — Em conseqüência dessa situação, e não dispondo de capitais, tivemos de nos
sujeitar aos capitais estrangeiros. Começamos a fazer dívidas e nunca mais paramos de as
fazer. O brasileiro começou a trabalhar ativamente. É uma calúnia dizer-se que o
brasileiro é vadio. Nunca houve um povo mais trabalhador do que o brasileiro. Mas ele
foi vendo que não adiantava o seu esforço, pois não tinha meios de comunicação, que só
as estradas de ferro e os navios podem oferecer. Esses meios de comunicação dependem
do carvão-de-pedra, e nós não tínhamos, nunca tivemos carvão-de-pedra.
As nossas lavouras eram tocadas com um sacrifício quinhentas vezes maior do que o das
outras nações, pois não dispúnhamos de máquinas agrícolas, pelo fato mesmo de não
termos indústrias, que se originavam todas da hulha. Mesmo assim, produzíamos. Com
todas as dificuldades, fizemos do nosso comércio interno a base da nossa resistência e
vitalidade econômicas, indestrutíveis apesar de todas as explorações do banqueirismo in-
ternacional.
c) — Justamente em razão do seu enriquecimento, os Estados Unidos puderam ter escolas
e higiene. Essas coisas dependem de meios de comunicação e de desenvolvimento
técnico. Uma coisa e outra dependem de dinheiro, e dinheiro dependia do carvão-de-
pedra. Assim, enquanto as nossas populações ficavam desamparadas, as populações dos
Estados Unidos elevaram seu índice de instrução e revigoravam sua saúde. Porque
podiam, tinham o dinheiro que vinha dos combustíveis.
A saúde é uma coisa que se compra, como qualquer outra. Quem é pobre não pode tomar
remédios, não pode se alimentar convenientemente. Quem é rico pode se tratar.
***
Os estrangeiros que nos exploravam meteram na cabeça dos nossos políticos e literatos
que éramos a nação mais rica do mundo, isso porque a terra aqui dá tudo, conforme dizia
Pero Vaz Caminha, em sua carta ao rei D. Manuel.
É preciso distinguir: "riqueza" e "aproveitamento de riqueza". De nada vale possuir terras
fecundas, florestas opulentas, uma fauna e uma flora soberbas, se não podemos
industrializá-las e comercializá-las. Só agora, com o advento da eletricidade e a
descoberta de outros combustíveis além da hulha, po- demos começar a pensar no
"aproveitamento das nossas riquezas". Infelizmente, embriagados pela megalomania da
Natureza Portentosa, ouvimos o canto da sereia dos banqueiros internacionais e oneramos
o nosso futuro. A nossa libertação agora vai ser mais difícil.
Cumpre ainda observar que os banqueiros internacionais, desde os primeiros dias da
nossa independência, procuraram criar-nos, através da política da Inglaterra, toda sorte de
dificuldades, no concernente à nossa organização econômica e ao nosso comércio
interprovincial. A repressão ao tráfico africano teve por fim exclusivo privar-nos de
braços para a lavoura. A pretexto de policiar os mares, os cruzadores britânicos opunham
os maiores embaraços à nossa incipiente navegação mercante.
O "controle" da nossa vida financeira, sempre exercido pelos bancos estrangeiros, criou,
por sua vez, as mais graves dificuldades internas à circulação dos nossos produtos,
lutando sempre o nosso comércio com a exigüidade do agente intermediário, isto é, do
dinheiro.
É inútil produzir, quando não se pode vender. No exterior, tínhamos os nossos produtos
desvalorizados pela concorrência dos nossos próprios credores. No interior, a falta de ca-
pacidade aquisitiva de nossas populações tirava todo o ânimo do produtor. Encurralado
por todas as dificuldades, o nosso caboclo tinha de subordinar-se às imposições de
açambarcadores, que detinham dinheiro. Estes impunham preços ridículos ao produtor e
preços exorbitantes ao consumidor.
Tivemos ainda de contar com dois fatores opressivos: as dificuldades de transporte e as
altíssimas taxas de juros. Fretes e juros sugam todas as energias dos produtores.
Quê fez o caboclo diante de tudo isso? Resolveu não plantar.
***
Vem daí a acusação injusta de indolência aos nossos patrícios. Tais acusações procedem
daqueles que pretendiam es- cravizar o caboclo na gleba. Esses vampiros encontraram no
Brasil uma quantidade enorme de literatos que começaram a menosprezar o nosso bravo
sertanejo.
Mas o caboclo é que era inteligente. Só ele era superior, com a sua filosofia e o seu
sorriso cético.
Ele criou a maior frase de todos os tempos da História Brasileira, que é esta: "Plantando,
dá!"
Sim. O caboclo tem razão. A terra é boa. Plantando dá. Mas, que adianta plantar, se não
temos meios de transporte? Que adianta produzir, sem máquinas agrícolas? Como
comprar as máquinas, senão fazendo dívidas com os agiotas internacionais, que chupam o
nosso sangue? Como elevar o nível das safras, se o preço alcançado não compensa?
Só o caboclo é grande na nossa terra!
Só ele tem sabido, na sua pobreza extrema, na sua enfermidade, na segregação em que se
encontra, sorrir com desdém para os sociólogos dos países capitalistas atirando-lhes esta
frase genial, formidável, que define toda a história, todo o sacrifício, o epílogo de uma
epopéia:
— Plantando, dá.
***
Escravos dos preconceitos, os brasileiros do litoral acusam os governos de desonestos, o
povo de indolente, de inculto, de analfabeto. E procuram aconselhar remédios ridículos,
que estão indicados nos formulários dos nossos inimigos.
A situação do Brasil é devida exclusivamente à exploração dos povos que, tendo sido
detentores da hulha, na fase de início da Época Industrial, e tendo ao seu dispor os
capitais já acumulados anteriormente, empreitaram a nossa escravização.
Acusar o brasileiro de indolente é um crime de lesa-Pátria.
Todos os nossos males vieram da importação de capitais, da montagem caríssima do
pouco que possuímos e dos emprés- timos onerosos que gravaram para sempre o homem
da nossa terra. E vieram da educação a que nos submetemos de admiradores
embasbacados da Europa e da América do Norte, onde nada temos que aprender, porque
somos infinitamente superiores.
Independência ou morte! É chegado o momento de repetirmos a frase do nosso primeiro
imperador. Independência contra os preconceitos. Afirmação bárbara da nossa
personalidade. Repetição diária, nas nossas escolas primárias, nos nossos colégios
secundários, nas nossas academias, nos nossos congressos, na imprensa, nos comícios,
em toda a parte, desta grande verdade:
— No Brasil, terra pobre e desamparada de todos os recursos, só o brasileiro é grande e
forte.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Despertemos a Nação, Obras Completas, vol. 10, pág. 103.
O fator geológico
Vivemos hoje a Idade do Combustível e do Ferro. O progresso das nações depende desses
dois elementos. Entre os combustíveis, até agora, o mais importante é a hulha, porque
sem ela não se fabrica o ferro de boa qualidade e economicamente mais rendoso. A
posição mais vantajosa é a dos países que possuem os dois elementos. Vem depois os que
possuem apenas hulha, e em terceiro lugar os que possuem apenas ferro. As demais
nações estão condenadas a viver em vida agrícola e pastoril e a consumir as produções
industriais das outras. No transcurso do século XIX ficou, porém, assinalada a
preeminência absoluta das nações detentoras da hulha. Em primeiro lugar, os Estados
Unidos, em seguida a Inglaterra, a Alemanha, a França, o Japão, a Rússia. Todos os povos
meridionais do planeta não puderam acompanhar o progresso técnico daqueles países.
O predomínio dos mares, que pertenceu à Espanha e Portugal na época da propulsão pelo
vento, passou a pertencer à Inglaterra e depois aos outros países que possuíam hulha, por-
quanto a invenção do vapor criou uma fase inteiramente nova à navegação. A conquista,
desbravamento, povoamento e exploração econômica, de vastas áreas continentais,
tornou-se fácil no Novo Mundo aos Estados Unidos, pela facilidade de lançar vias férreas
à aventura, em cujas margens se iam estabelecendo as colonizações, ao passo que na
América Meridional tudo continuou difícil, porque primeiro era preciso desbravar e criar
fontes produtoras, o que se fazia a cavalo e em carros de bois, para em seguida oferecer
garantias de lucros a empresas ferroviárias que se interessassem no transporte das
mercadorias. As grandes concentrações industriais concentraram-se nos países detentores
de hulha e fabricantes de ferro. Com o ferro se fazem as máquinas, com as máquinas
todas as sortes de produtos da indústria.
***
Os povos sem ferro nem hulha foram chamados por Marx "povos semicoloniais",
destinados a fornecer matérias-primas aos povos industriais. No alvorecer do século XX,
surgia no mundo a classificação das nações em grandes e pequenas potências. Aquelas
eram as possuidoras da hulha, as fabricantes de ferro, as exploradoras das indústrias, as
dominadoras das distâncias no mar e na terra, com os navios a vapor e as locomotivas. O
orgulho por tão grandes progressos levou homens como Houston, Chamberlain e
Gobineau a proclamar a superioridade da raça ariana, dos povos setentrionais sobre as
raças e os povos meridionais do planeta. Nasceu o racismo, como política justificativa de
uma desigualdade econômica advinda das diversidades do subsolo, como surgira o livre
cambismo e a moral, primeiro utilitária e depois evolucionista, na Inglaterra, como
justificativa da expansão comercial e domínio a exercer-se pelos povos industriais sobre
os povos agrários.
Em conseqüência do enriquecimento das nações setentrionais, tiveram elas mais fáceis os
confortos da higiene e da instrução. Como a saúde e a instrução custam dinheiro,
tornaram-se mais saudáveis e mais instruídos os povos mais ricos. Então surgiram
aqueles que tomaram os efeitos pela causa e houve quem proclamasse que o atraso dos
povos meridionais da Europa e da América provinha da sua inferioridade étnica.
Em 1907, a consciência de superioridade das grandes potências manifestou-se na
Conferência Internacional de Haia. Exprimindo o sentido de domínio universal da
política alemã, o Barão Marshall von Bieberstein apresentou, pela primeira vez, a tese
que propugnava o governo do mundo pelas grandes po- tências, tese que ressurgiu mais
tarde com Hitler. Ao Brasil coube a glória de se opor a essa tese que consagrava o predo-
mínio da força sobre o direito; o bom senso, que nunca faltou aos Estados Unidos, levou
o governo daquela Nação a apoiar a tese brasileira, a qual propunha a igualdade das
Nações. E o Brasil fez vencer a doutrina do Espírito sobre a doutrina do orgulho e da
brutalidade.
Pondo de lado as conseqüências políticas da desigualdade da distribuição das riquezas do
subsolo, para só considerar as conseqüências econômicas, verificamos que os povos, em
cujos países não se pode fabricar ferro economicamente conveniente e que não dispõem
de hulha para acionar seus navios, locomotivas e fábricas, encontram-se em situação de
dolorosa dependência.
A eletricidade representa, é certo, uma grande esperança de recuperação a esses povos
semicoloniais; mas ainda não se descobriu o processo de utilizar a energia elétrica na
fabricação do ferro e, além do mais, há muitos países que não possuem ferro.
***
Tenho para mim que a Providência Divina assinalou o Brasil e os Estados Unidos para
serem os pioneiros da libertação do mundo, por circunstâncias geológicas profundamente
significativas. Possui o primeiro a maior porção de ferro do mundo (34% das reservas
mundiais e minerais com a média de 70% de ferro, enquanto nos outros países, inclusive
os Estados Unidos, a média é de 45%), mas não possui carvão nem em quantidade nem
em qualidade suficientes para explorar essa incalculável riqueza; e os segundos possuem
as maiores hulheiras do planeta, superando a sua produção a de todos os outros países
reunidos. Da união espiritual das duas grandes nações, pode surgir uma política
econômica que praticamente distribua, a preços justos e humanos, o ferro e o carvão. É,
pois, motivo de júbilo ver-se
no projeto de Declaração dos Direitos do Homem, redigido pelos católicos dos Estados
Unidos (National Catholic Welfare Conference), esta proposição verdadeiramente cristã:
"O direito (das nações na comunhão internacional) de acesso em igualdade de condições
aos mercados e matérias-primas do mundo" e "o direito de proteger os seus próprios
recursos naturais e a sua própria vida econômica contra toda exploração injusta". A se-
gunda proposição completa a primeira, porque evita que se dê o caso das Nações
detentoras de hulha, que já atingiram alto progresso técnico e situação econômico-
financeira de real poderio, imporem aos povos detentores apenas de ferro condições
contratuais que os conservem praticamente em inferioridade.
Com a invenção do motor a explosão, apareceu outro elemento da máxima importância
na vida econômica dos povos: o petróleo. Os povos já possuidores de hulha e ferro, se
tiveram a fortuna de encontrar no seu subsolo o precioso óleo mineral, completaram a sua
riqueza e esplendor. Mas, se não o encontraram, ou se se esgotaram as suas reservas,
esses povos, já enriquecidos e poderosos pelos seus capitais, pela sua potencialidade
militar e política, facilmente irão conquistar petróleo, ainda mesmo pela forma pacífica,
aos povos sem hulha nem ferro, que por acaso possuam tão precioso óleo mineral. A luta
por esse combustível tem sido tremenda, assim como as pesquisas científicas para
encontrar o seu sucedâneo. Acredito que o progresso técnico, responsável por tantas
guerras, mas que, finalmente, um dia, será utilizado pelo Homem no sentido de uma
fraternidade sincera, dentro em pouco libertará a economia dos povos dessa situação de
desigualdade que assinala todo o horror de uma idade em que o ferro dominou o homem
e parece haver-lhe transmitido a sua dureza e frialdade. Mas, enquanto isso não se der,
cumpre à Sociedade das Nações estudar o problema da produção e da distribuição do
ferro e dos combustíveis, de modo que todos os povos sejam postos em pé de igualdade
dentro da qual todos possam viver, prosperar e garantir aos indivíduos e às famílias de
toda a terra um padrão de vida tão elevado quantas forem as possibilidades mundiais,
mediante intercâmbio harmonioso e fraternal das Nações entre si.
As riquezas da terra pertencem a toda a Humanidade. A propriedade, seja do Homem ou
das Nacionalidades, deve ter fim social; do homem em relação aos seus semelhantes, das
Nacionalidades em relação às outras Nacionalidades.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Direitos e Deveres do Homem, Obras Completas vol. 5, pág. 337.
Nacionalismo econômico
Exacerbado nacionalismo criou nos Estados Totalitários uma aspiração de autarquia, ou
de auto-suficiência, que parecia ter em mira os dias negros da guerra. Esse nacionalismo
isolou os povos daqueles Estados e influiu nos outros povos, que, ou por motivo de
represália ou de imitação, adotaram políticas aduaneiras perturbadoras do comércio das
nações.
Numa Declaração dos Direitos do Homem, em que se fala do direito à subsistência, o
assunto não pode ser posto à margem. Mas nenhuma Nação poderá assumir sozinha uma
atitude liberal no tocante à política alfandegária, pois ficaria em condições de
inferioridade. Um convênio internacional se impõe, para regular de forma humana e
cristã o comércio dos povos. A Natureza dividiu de tal sorte o planeta, que parece-nos
indicar uma vida de intercâmbios e de ajuda mútua. O estudo da geografia econômica
mostra-nos, com a diversidade dos climas, da flora e da fauna, das condições do solo e do
subsolo, que a Humanidade pode e deve viver em paz, em trabalho fecundo e sem
necessidade de atritar-se.
Todavia, o que vemos é uns povos pretenderem produzir o que outros, por circunstâncias
mais favoráveis, produzem em condições melhores de preço e perfectibilidade. Muitas
vezes, certas nações preferem o sucedâneo ao produto original, uns tomando infusos de
chicória ou cevada, para fazer as vezes do café; outros fabricando borracha sintética, de
reduzida elasticidade e resistência, para não se utilizar das vastas reservas de seringais
que se encontram em países alheios. A autarquia dos totalitários inventou os produtos
artificiais; temos-lhe seguido os exemplos no após-guerra, com a mantença de indústrias
falsárias, como ainda recentemente aconteceu, com as tentativas norte-americanas de
produzir a cera de carnaúba sintética. Para proteger tais indústrias adotam-se impostos de
importação excessivos. As Nações fazem mal umas às outras, porém muito mais aos seus
respectivos habitantes, obrigados a comprar produtos inferiores por preços às vezes mais
elevados do que os dos produtos genuínos. Tudo isso em benefício, quase sempre, de um
grupo econômico, usufrutuário daqueles expedientes.
***
A tendência para a industrialização dos povos é uma das doenças do nosso século. Como
o marxismo observou (e com razão) e as nações verificaram mediante dolorosa
experiência, que os povos agricultores são explorados e oprimidos pelos povos
industriais, todos pretenderam tornar-se industriais. A miséria do mundo provém
principalmente desse fato. Em 1930, e nos anos posteriores, os povos agricultores e
pastores tiveram de queimar as suas safras acumuladas, porque elas não encontravam
preço compensador nos mercados internacionais, dado o imenso volume da produção. Na
verdade, não havia superprodução, como se assoalhava. Quem tivesse dúvidas, que
procurasse as populações miseráveis das cinco partes do mundo, esfarrapadas e
esfomeadas, enquanto se queimava café no Brasil, trigo no Canadá, lãs na Argentina.
O que havia era desorganização econômica pela interferência de grupos financeiros e pela
própria política egoística dos Estados. Mas a miséria a que foram levados agricultores e
pastores incutiu nos povos empobrecidos verdadeiro medo aos trabalhos na terra. Então,
multiplicaram-se as indústrias e grandes massas de populações se deslocaram dos campos
para as cidades.
***
Quer-me parecer que esse problema da reorganização econômica de todas as Nações é
fundamental e urgente. Uma Comissão Mundial, baseada em estatísticas e aprofundados
estudos da distribuição das matérias-primas vegetais, animais e minerais do planeta,
deveria funcionar permanentemente, determinando cada ano a cota de produção e de
consumo de cada povo.
Não se compreende que, num século que se diz científico e técnico, o mais importante
dos problemas materiais, que é o abastecimento da Humanidade, ainda esteja relegado às
iniciativas dos grupos capitalistas ou à visão unilateral de cada país, que se vê forçado,
por se sentir sozinho, a assumir atitudes egoísticas, por imperativo de sua própria
conservação.
De que valerá proclamarmos os direitos à subsistência do Homem, se praticamente
nenhuma Nação está em condições de efetivá-los?
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Direitos e Deveres do Homem, Obras Completas, vol. 5, pág. 343.
Nacionalismo econômico
Exacerbado nacionalismo criou nos Estados Totalitários uma aspiração de autarquia, ou
de auto-suficiência, que parecia ter em mira os dias negros da guerra. Esse nacionalismo
isolou os povos daqueles Estados e influiu nos outros povos, que, ou por motivo de
represália ou de imitação, adotaram políticas aduaneiras perturbadoras do comércio das
nações.
Numa Declaração dos Direitos do Homem, em que se fala do direito à subsistência, o
assunto não pode ser posto à margem. Mas nenhuma Nação poderá assumir sozinha uma
atitude liberal no tocante à política alfandegária, pois ficaria em condições de
inferioridade. Um convênio internacional se impõe, para regular de forma humana e
cristã o comércio dos povos. A Natureza dividiu de tal sorte o planeta, que parece-nos
indicar uma vida de intercâmbios e de ajuda mútua. O estudo da geografia econômica
mostra-nos, com a diversidade dos climas, da flora e da fauna, das condições do solo e do
subsolo, que a Humanidade pode e deve viver em paz, em trabalho fecundo e sem
necessidade de atritar-se.
Todavia, o que vemos é uns povos pretenderem produzir o que outros, por circunstâncias
mais favoráveis, produzem em condições melhores de preço e perfectibilidade. Muitas
vezes, certas nações preferem o sucedâneo ao produto original, uns tomando infusos de
chicória ou cevada, para fazer as vezes do café; outros fabricando borracha sintética, de
reduzida elasticidade e resistência, para não se utilizar das vastas reservas de seringais
que se encontram em países alheios. A autarquia dos totalitários inventou os produtos
artificiais; temos-lhe seguido os exemplos no após-guerra, com a mantença de indústrias
falsárias, como ainda recentemente aconteceu, com as tentativas norte-americanas de
produzir a cera de carnaúba sintética. Para proteger tais indústrias adotam-se impostos de
importação excessivos. As Nações fazem mal umas às outras, porém muito mais aos seus
respectivos habitantes, obrigados a comprar produtos inferiores por preços às vezes mais
elevados do que os dos produtos genuínos. Tudo isso em benefício, quase sempre, de um
grupo econômico, usufrutuário daqueles expedientes.
***
A tendência para a industrialização dos povos é uma das doenças do nosso século. Como
o marxismo observou (e com razão) e as nações verificaram mediante dolorosa
experiência, que os povos agricultores são explorados e oprimidos pelos povos
industriais, todos pretenderam tornar-se industriais. A miséria do mundo provém
principalmente desse fato. Em 1930, e nos anos posteriores, os povos agricultores e
pastores tiveram de queimar as suas safras acumuladas, porque elas não encontravam
preço compensador nos mercados internacionais, dado o imenso volume da produção. Na
verdade, não havia superprodução, como se assoalhava. Quem tivesse dúvidas, que
procurasse as populações miseráveis das cinco partes do mundo, esfarrapadas e
esfomeadas, enquanto se queimava café no Brasil, trigo no Canadá, lãs na Argentina.
O que havia era desorganização econômica pela interferência de grupos financeiros e pela
própria política egoística dos Estados. Mas a miséria a que foram levados agricultores e
pastores incutiu nos povos empobrecidos verdadeiro medo aos trabalhos na terra. Então,
multiplicaram-se as indústrias e grandes massas de populações se deslocaram dos campos
para as cidades.
***
Quer-me parecer que esse problema da reorganização econômica de todas as Nações é
fundamental e urgente. Uma Comissão Mundial, baseada em estatísticas e aprofundados
estudos da distribuição das matérias-primas vegetais, animais e minerais do planeta,
deveria funcionar permanentemente, determinando cada ano a cota de produção e de
consumo de cada povo.
Não se compreende que, num século que se diz científico e técnico, o mais importante
dos problemas materiais, que é o abastecimento da Humanidade, ainda esteja relegado às
iniciativas dos grupos capitalistas ou à visão unilateral de cada país, que se vê forçado,
por se sentir sozinho, a assumir atitudes egoísticas, por imperativo de sua própria
conservação.
De que valerá proclamarmos os direitos à subsistência do Homem, se praticamente
nenhuma Nação está em condições de efetivá-los?
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Direitos e Deveres do Homem, Obras Completas, vol. 5, pág. 343.
A moeda
Ligada intimamente ao problema do comércio internacional é a questão da moeda. O seu
valor oscila como índice das diferenciações econômico-financeiras das nacionalidades. E
como a economia mundial está desorganizada, essas fatais oscilações, ao mesmo tempo
que se apresentam como efeito, agem como causa de novos e crescentes distúrbios na
vida dos povos. Existindo com o fim de unir os homens, pela troca das utilidades, a
moeda age como fator de desunião pelas desigualdades que cria.
Hoje, além de desigualdade econômica oriunda de circunstâncias que a moeda
geralmente exprime, concorre para agravar a situação de alguns povos, em benefício de
outros, o conceito moderno da moeda comandada, ou da moeda dirigida. Os que querem
importar ou exportar, ou que necessitam viajar de um país para outro, compreendem,
diante das dificuldades do câmbio, que os povos cada vez mais se afastam uns dos outros,
cada vez mais se isolam nos seus respectivos egoísmos.
Não censuramos as Nações, que a isso são obrigadas por motivos universais; lamentamos
que numa época em que se fala tanto em solidariedade humana, não haja um
entendimento qualquer, de caráter internacional, que possa, pelo menos, dar ao mundo a
esperança de uma aproximada equivalência do poder aquisitivo das "pessoas humanas"
que, sob os céus de todas as latitudes, despendem os mesmos esforços em benefício da
civilização comum a todos os povos.
Podem os teoristas, os sabedores da complicada ciência das finanças expender todas as
explicações possíveis, nada me convencerá de que as oito horas de trabalho de um chinês,
de um brasileiro, de um francês ou de um americano não correspondam a um idêntico
esforço criador, devendo, pois, o salário nas respectivas moedas ter um valor aquisitivo
igual à face dos homens e de Deus. Nada me convencerá, por outro lado, de que a mesma
mercadoria, produzida com os mesmos elementos do solo e com o mesmo trabalho do
agricultor, possa, sem ferir os mais sagrados direitos naturais das pessoas humanas, ser
vendida de modo a ocasionar prejuízos a uns e lucros a outros, tudo em conseqüência da
oscilação do valor das moedas de uns países em relação a outros.
Se existe uma política monetária, de nítido caráter nacionalista e expansionista, por outro
lado, como estratégia defensiva, surge uma política aduaneira, também de caráter nitida-
mente nacionalista, pugnando pela auto-suficiência de cada povo. Dessa forma, as
Nações tendem a isolar-se cada vez mais, numa atmosfera mundial de desconfianças
recíprocas.
Deixo aqui esboçado o assunto, que exige exposição mais pormenorizada e estudo mais
profundo, os quais não cabem num trabalho da natureza do que se empreendeu neste
livro. A pormenorização do assunto, obedecendo rigor técnico, deve constituir objeto de
um trabalho concernente à competência de especialistas; além do mais, desvirtuaria o
sentido geral deste ensaio que perderia a linha do equilíbrio temático e a harmonia
estrutural. Mas é forçoso enunciar importantíssima tese, porque constitui matéria
intimamente ligada aos Direitos e Deveres que se deseja proclamar numa Carta
Internacional.
O projeto dessa Carta fala dos direitos de todo Homem à subsistência, a uma vida sã, a
uma justa remuneração do trabalho, ao gozo dos benefícios decorrentes da adiantada
técnica da nossa Civilização. Mas, como poderemos assegurar tais direitos, se se
evidenciam tamanhas desigualdades entre os habitantes do planeta, segundo vivam neste
ou naquele país?
Urge uma política de compreensão universal, que facilite o intercâmbio dos povos e
assegure às pessoas humanas efetiva igualdade de direitos e deveres em todas as zonas da
terra.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Direitos e Deveres do Homem, Obras Completas, vol. 5, pág. 347.
Mapa-Mundi
(1934)
O mundo atravessa atualmente o instante decisivo em que se está jogando a sorte da
Civilização.
Por mais otimista que queira ser o político utópico, ou o homem indiferente à sorte da
Humanidade, o que ninguém pode negar é que a civilização transita, na hora presente, por
sua crise máxima.
E essa crise não é uma conseqüência da pobreza do planeta ou de dificuldades criadas por
tremores de terras, secas, inundações, cataclismas e epidemias. A crise (e isto assombraria
a um estadista da Antigüidade ressuscitado no século XX!) tem por origem a própria
fartura.
Não há hoje um só país que não esteja sendo roído pelo cancro moderno, que se
convencionou chamar "os sem trabalho". Não há hoje uma nação do mundo em que se
não deflagrem os conflitos sociais.
Os governos, sem exceção, estão devendo colossalmente, e a maior parte não encontra
meios de solver seus compromissos. Dentre as nações, cumpre destacar aquelas, como o
Brasil e suas irmãs da América do Sul, que se acham, sob esse ponto de vista, em situação
de angústia jamais atingida.
De todos os cantos da Terra se ergue o clamor da Humanidade.
Nunca houve tanta fome, tanto desconforto; e, entretanto — suprema ironia! —, nunca os
povos produziram tanto, nunca houve maiores estoques de manufaturas e frutos agrícolas.
***
Cada máquina trabalha por dezenas de homens. As máquinas se multiplicaram. E, em vez
de trazerem a abolição completa das preocupações materiais, elas agravaram essas
preocupações, puseram fora de combate o trabalho humano e mataram todo o sentido
espiritual da existência.
Nunca lavrou tão desenfreadamente o materialismo, como agora. O homem moderno
requintou em orgulho, em crueldade, em desprezo pelo seu semelhante.
A Revolução Francesa instituiu a igualdade política, mas criou a desigualdade
econômica. A Burguesia constituiu-se uma classe privilegiada, que valorizou o indivíduo
na sociedade, pelo que ele possui, não pelas suas virtudes.
Homens e mulheres de uma sociedade que se diz cristã, e mesmo muitos daqueles que
apresentam exterioridades religiosas, possuem uma tão profunda consciência da seleção
dos seres humanos pela sua capacidade de ostentar e de impor na vaidade e no luxo, que
o observador do nosso tempo conclui que a civilização moderna arrancou o coração do
Homem e o atirou aos dentes das máquinas.
O espírito das trevas parece que erigiu o seu trono na alma das classes abastadas; o fogo
da sua perfídia parece lampejar nos olhos cúpidos dos grandes chefes financeiros, que
comandam a marcha trágica da Civilização; a sua avareza enche as arcas dos
estabelecimentos bancários e aflige as classes produtoras; a sua solércia inflama de
rancores e revoltas as massas proletárias e o exército dos que sofrem necessidades e
curtem dores secretas, oprimidos, humilhados, por uma organização social que se
esqueceu dos mais elementares sentimentos da solidariedade e da justiça humana.
E quando o atormentado não encontra remédio para a grande angústia, é ainda da
negação absoluta que surge o contraveneno para o tóxico terrível do materialismo
burguês. E o comunismo se apresenta como a conseqüência lógica da evolução
econômico-social de uma sociedade execrável, sem piedade, sem coração e sem Deus.
***
Como fugir a Humanidade dessa evolução fatal? Que poderão fazer os governos para
restaurar o senso comum na loucura universal? Como forçar a máquina a trabalhar como
escrava e não como cruel algoz do proletário? Como tornar o homem mais digno do que a
máquina? Que fazer, para implantar a igualdade entre os povos, não baseada no
materialismo de Marx, porém na finalidade superior da criatura humana?
Se há produção em excesso, não é um crime guardá-la em estoques, atirá-la ao mar,
reduzi-la a cinzas, para manter altos preços?
Se há excesso de trabalho das máquinas, por que não se estabelecem horários para os
trabalhadores universalmente?
Por que não nos regermos por estatísticas, determinando tarefas de produção aos povos e
efetivando o intercâmbio entre as nações de uma maneira mais humana?
Por que não substituir a concorrência agrícola, industrial e comercial, pela cooperação
agrícola, industrial e comercial? Por que os países não se auxiliam mutuamente?
Nada disso será possível, pois os governos não é que governam; quem manda no mundo
são os argentários sem pátria e sem alma.
Os governos nada significam nos países liberais-democráticos, porque, à revelia deles,
decidem a sorte dos povos os cartéis, os monopólios, as bolsas, os bancos.
***
Veja-se o que aconteceu no caso do tratado austro-alemão. A Alemanha e a Áustria
firmaram um acordo aduaneiro. Esse acordo foi examinado pela corte de Haya. Foi
julgado justo. Todas as nações o aprovaram.
Pois bem. Os banqueiros ingleses liquidaram a questão contra a vontade expressa dos
governos da Europa e da América. E liquidaram, apenas, com isto: negaram crédito à
Áustria.
E as duas nações, que tinham sido perdoadas pelas outras nações, foram condenadas
pelos banqueiros.
Tiveram de voltar atrás, desfazer o acordo.
***
Não precisamos entrar no mérito da questão.
Apreciamo-la como um sintoma alarmantíssimo de que os governos liberais-
democráticos, não tendo significação econômica nem expressão autoritária, não
representando as forças integrais das nacionalidades, também não dispõem de força para
dar diretrizes ao mundo.
A Humanidade chega, pois, a esta encruzilhada:
— Ou os governos se fundamentam nos princípios de ordem moral, cultural, espiritual e,
em nome deles, empolgam, dominam e subjugam todas as forças econômicas, realizando
acordos internacionais, regulando a produção, a circulação e o consumo;
— Ou então é melhor cruzar os braços, porque será ridículo lutar contra o inevitável...
***
O inevitável será o desaparecimento do Estado; a implantação de uma ditadura universal
de técnicos financeiros; a escravidão de toda a Humanidade; o domínio absoluto do mate-
rialismo mais torpe.
Ou violentamos a História, ou morreremos esmagados pela ditadura supernacional dos
bancos e das bolsas.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Sofrimento Universal, ed. cit., pág. 33.
A destruição do homem
(1957)
As intrínsecas questões políticas, de ordem internacional, que avassalam os povos e
lançam as nações em perplexidade diante do dilema da paz e da guerra, originam-se de
angústias sociais que parecem assinalar o período de transição em que a humanidade se
esforça por adaptar-se a novas condições de vida, conseqüentes do desenvolvimento da
técnica moderna.
No fundo, o tema que serve de objeto às controvérsias dos dois mundos — o mundo
ocidental e o mundo oriental —, esse tema que se interpreta segundo dois critérios
opostos (o do capitalismo burguês e liberal em contrapartida ao socialismo evolucionista
ou revolucionário) é um tema cujas raízes se embebem num conceito de moralidade.
A luta que se desenha nas assembléias das Nações é uma luta entre duas concepções de
Estado, ambas derivantes de uma única concepção de vida. Enquanto o capitalismo
industrialista e comercialista pretende sobreviver à inexorável revolução social mediante
a imposição de um critério liberal aos governos e a aplicação de processos que
constituem uma espécie de tecnocracia, tudo baseado num conceito materialista do
homem e da sociedade, o socialismo por outro lado sacode as estruturas da chamada
civilização ocidental, servindo-se do espírito de revolta que leva ao desespero as
multidões menos favorecidas no que concerne à distribuição dos bens terrenos.
***
Ambos — o capitalismo e o socialismo — são intrinsecamente materialistas. A diferença
entre um e outro está em que o primeiro não toma conhecimento de outros fins do homem
e da sociedade, além dos meramente temporais, ao passo que o socialismo nega
terminantemente quaisquer outros fins sociais ou humanos que não sejam aqueles
mesmos fins temporais de que o capitalismo cogita. Além dessa diversidade, cumpre
notar que o materialismo capitalista não objetiva nenhuma finalidade moral, ao passo que
o materialismo socialista preocupa-se com o ideal da justiça, trazendo, pois, um conteúdo
moral, ainda que essa moral tenha caráter exclusivamente utilitário.
Difícil, portanto, será as democracias capitalistas sustenta- rem-se no curso da atual
transformação do mundo. O materialismo será destruído pelo próprio materialismo e essa
civilização de que tanto nos orgulhamos — se não se embasar em alicerces espiritualistas
e cristãos — não encontrará nenhum meio de manter-se.
Analisando a fundo as estruturas da civilização ocidental, verificamos que elas se
deterioram por motivos incontestavelmente morais. E a causa mais direta desse
esboroamento reside na incapacidade do homem do nosso tempo em se afirmar na
plenitude da sua virilidade.
Se os Estados não sabem ou não podem governar-se e se entregam ao fatalismo dos
acontecimentos históricos internacionais, que diretamente influem no próprio teor de sua
vida interna, esse fato não deve causar admiração numa época em que o mesmo homem
também não sabe mais governar-se.
A incapacidade de governo próprio em cada pessoa que constitui a coletividade nacional
é uma consequência da inversão dos valores, com predominância de uma sensualidade
grosseira, que leva o homem do nosso tempo à mais degradante situação de um
comodismo fatalista, o qual o impede de rebelar-se contra as imposições crescentes de
um industrialismo ganancioso.
***
Mil instrumentos de dominação técnica amarram o homem dos nossos dias ao carro
vitorioso da produção em massa. Falta a esse mísero ser do século XX a capacidade viril
para quebrar as próprias algemas. Na classe média — onde se encontram aqueles que
conduzem as massas proletárias pelos caminhos da revolução — agitam-se, bracejam,
desesperam-se indivíduos cujos orçamentos domésticos são permanentemente
deficitários. O aumento dos salários, a principiar pelos que vivem do erário público
(senadores, deputados, ministros, secretários de Estado, diretores de repartição, chefes de
seção, oficiais do Exército e da Marinha, magistrados, professores, até aos contínuos de
repartição e praças) determina inapelavelmente o recurso da inflação, de que decorre o
encarecimento das utilidades. Empobrecido o Estado, a sua miséria reflete-se na
exigüidade dos transportes, na deficiência das vias férreas, das estradas de rodagem, dos
navios mercantes, o que por sua vez determina a decadência das zonas rurais pela falta de
estímulo e de assistência à agricultura. Como conseqüência, temos os espaços vazios, a
evasão dos campos, a superpopulação dos centros urbanos, o que vem agravaro custo de
vida.
...........................................................................
O homem moderno sujeita-se aos papéis mais ridículos; vende os seus pareceres;
mercadeja o seu voto; comercializa as suas decisões; trafica aprópria alma com os
banqueiros, com os políticos, com os poderosos das finanças ou do Estado; e, de tal
forma anestesia a sua sensibilidade, que já não encontra motivos de vergonha nos atos
mais indecorosos que pratica.
Esse é o aspecto geral da sociedade burguesa, da civilização capitalista, onde o dinheiro
vale tudo, a virtude vale nada e o homem ainda menos vale. Processa-se a destruição das
personalidades de maneira tão veloz que dentro em breve não haverá mais resistências
possíveis a contrapor-se à catástrofe socialista em que sucumbe, definitivamente, o
orgulhoso "homo sapiens".
***
Urge, por isso, uma revolução espiritualista profunda. Impõe-se a reconstrução do
homem. Essa reconstrução deverá começar pela restauração da autoridade familiar,
baseada num conceito de vida cristã. Porque — e assim reza o Evangelho — não é
possível servir a dois senhores. Ou se serve a Cristo ou a Mamon. E Mamon é o terrível e
trágico sentido do materialismo burguês capitalista, que nos conduz aos horrores do
materialismo socialista de um Estado que assume as rédeas do governo de cada um,
quando em cada um desapareceu a capacidade de governar-se.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Reconstrução do Homem, ed. cit., pág. 19.
As causas da irresponsabilidade
(1957)
O problema fundamental do Brasil ainda é e continuará a ser o da educação nacional.
Todas as questões que se apresentam desafiando a solução por parte dos homens públicos
tornam-se absolutamente irresolúveis pela ausência de um espírito nacional formado sob
a inspiração de idéias claras e nítidas, capazes de orientar os intérpretes e os executores
das leis e das normas administrativas pré-estabelecidas nos setores do governo ou das
mesmas empresas de iniciativa privada. Essas idéias inspiradoras não precisam ser
muitas, nem necessitam envolver complexidades de alta indagação filosófica. Uma Nação
se conduz com três ou quatro conceitos de existência, de direito e de deveres.E é
justamente o que falta ao povo brasileiro.
Ou seja pela influência das variadíssimas correntes imigratórias, trazendo cada qual o
tom da nacionalidade própria e a soma dos prejuízos inerentes a velhas civilizações, e tra-
zendo, principalmente, o objetivo imediato de "fazer a América", sem nenhum liame
histórico a prendê-las ao vigamento principal da tradicionalidade do nosso país; ou seja
pela rápida transição de uma economia primitiva para o ritmo acelerado de novas
condições técnicas; ou seja por força da crise econômico-financeira que aperta as suas
tenazes comprimindo os orçamentos domésticos agravados, dia a dia, pela transformação
do supérfluo em elemento de primeira necessidade, — o fato é que o brasileiro de hoje
transformou-se num utilitário grosseiro, interpretando tudo e tudo resolvendo de acordo
com seus interesses particulares e suas mesquinhas ambições.
No fundo, o nosso patrício é um homem sem fé, que somente se agita no sentido de
ganhar dinheiro, ou conseguir empregos rendosos, ou prestígio político e social. Em tudo
o mais é um abúlico, um fatalista, que se deixa levar pela corrente dos acontecimentos,
procurando sempre colocar-se do lado daqueles que lhe podem oferecer maiores
vantagens ou, pelo menos, a vantagem de se sustentarem o maior tempo possível nas
posições de mando.
***
Principiamos esfriando a nossa crença em Deus, porque não tínhamos tempo de pensar
n'Ele, ou de dedicar-Lhe alguns minutos de meditação, no meio do tumulto da vida
praticável; e, assim, acabamos frigorificados espiritualmente, com a consciência
endurecida como o gelo, o que, de certa forma representa uma vantagem no mundo dos
negócios, onde sempre é bom adotar-se o conceito, nietzscheano ou wildeano, de uma
atitude acima do Bem e do Mal...
Depois, o enrijecimento glacial atingiu as zonas do sentimento patriótico, e ninguém mais
pensou na Pátria senão como uma figura de retórica para os comícios eleitorais ou para os
arrazoados das iniciativas industriais ou financeiras onde se prova sempre por a mais b
que o negócio proposto é de primeiríssima ordem para os interesses nacionais...
Finalmente, petrificaram-se os corações pela pressão congelante do egoísmo, abrangendo
essa hibernal atmosfera a consciência dos deveres para com a Família; e, então, os lares
se tornaram instáveis, o destino dos filhos um assunto subalterno, o decoro conjugal um
reles preconceito do passado, a própria honra individual uma ficção sem a menor
importância...
***
A essa altura, já lavrava, em todos os setores das atividades humanas em nosso país, a
mais desbragada irresponsabilidade, desde a dos homens da alta finança, mancomunados
em grupos e a exercitar manobras sutilíssimas de ganhos astronômicos, até ao negociante
que mistura ao leite e ao vinho a água das torneiras, por sua vez infecta como tudo o que
se oferece ao consumo público. A indexação dominou os funcionários das repartições
governamentais, sedentos de gorjetas e de propinas, cujas personalidades se modelaram
ao espelho de seus chefes, de quem a prestidigitação aplicada à arte de desviar dinheiros
do erário para o próprio bolso já se havia tornado popularmente conhecida. Por outro
lado, a indecorosa manobra dos partidos políticos, transformados em máquinas de
fabricar posições, empregos e negociatas, correu parelha com o despudor da compra e
venda eleitoral, nessa bolsa dos desvaleres das urnas democráticas, onde palhaços e
chantagistas logram fazer impudente cartaz e colher resultados espetaculares.
Nesse panorama de irresponsabilidade geral, não poderia ficar isento da infecção
contagiante o próprio trabalho dos que ainda se tinham em conta de honestos; e, dessa
forma, a olhar para o exemplo dos grandes, os pequenos perderam todo o estímulo da
dignidade, clamando por maiores estipêndios, mas esquivando-se ao esforço produtivo.
Conseqüentemente, com o encarecimento da vida, tivemos a onda de mal-estar em todas
as classes dos degraus médio, submédio e proletário, com a agravação do estado de
espírito do mais feroz utilitarismo.
De alto a baixo, o Brasil está infeccionado de materialismo e de imediatismo e, ainda
mesmo quando nos boquiabrimos diante dos arranha-céus e do estridor das fábricas, das
realizações materiais e dos prospectos de radioso futuro, não podemos deixar de
inquietar-nos percebendo que, de ano para ano, somos mais inconscientes, mais fatalistas,
mais autômatos, menos capazes de fé em quaisquer princípios desses que serviram de
base, por exemplo, ao surto econômico e industrial dos Estados Unidos nos meados do
século XIX.
O estágio econômico-financeiro do Brasil nesta metade do século XX é — guardadas as
proporções do moderno aparelhamento industrial e da técnica dos nossos dias — o
mesmo da grande Nação setentrional da América naquele tempo; mas no século XIX, os
Estados Unidos, malgrado a formação dos grupos financeiros que então lá se esboçavam
e do pragmatismo das avançadas no rumo do Far West, conservavam e alimentavam
aquelas idéias que haviam servido à formação da sua consciência nacional.
Principalmente as idéias da moral puritana, que fortaleciam a noção dos deveres perante
Deus e perante a Pátria, eram bem vivas e ativas no pensamento e na palavra, na atitude e
no exemplo dos estadistas, assim como no íntimo da alma do povo.
O problema, pois, do Brasil de hoje, é inegavelmente educacional. Sem se lançar uma
larga campanha nesse sentido, para reativarmos as poucas energias ainda presentes em
hora tão desfavorável, iremos ao léu dos acontecimentos internos e externos e não
podemos prever se terminaremos uma colônia russa ou americana, ou qualquer coisa
informe e indefinida como as Índias ou o mundo árabe.
***
Essa campanha educacional deve penetrar o seio das famílias, deve agir nas escolas, deve
alargar-se às massas populares, deve — acima de tudo — injetar nas elites intelectuais a
noção dos deveres para que não se estiolem os escritores, os pensadores, os filósofos, os
juristas e os economistas, nessa vil submissão de vassalagem aos poderosos, vicejando
como cogumelos à sombra de aventureiros políticos ou de indivíduos ocos guindados a
altas posições pelo dinheiro ou pelas circunstâncias fortuitas do jogo de azar dos partidos;
mas para que assumam pela palavra e pelo exemplo a liderança de um povo em franca
disponibilidade, tanto para o Bem como para o Mal.
Como sustentarmos o regímen democrático, se a permanência deste exige íntimas
convicções doutrinárias e o conhecimento da técnica mediante a qual ele funciona?
Nada se ensina ao povo; só se desensina. Os jornais cretinizam as massas com grossas
manchetes sobre crimes e futilidades. Os comentários políticos são superficiais e trazem a
eiva dos corrilhos partidários. Nas escolas, nada se diz sobre os deveres dos cidadãos. E o
exemplo geral dos responsáveis é o paradigma trágico determinando o mimetismo de
uma multidão sem ideal, sem espírito, sem alma.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Reconstrução do Homem, ed. cit., pág. 134).
Na plenitude da idade demoníaca
A nossa chamada civilização ocidental encontra-se, na opinião de todos os idealistas e
pensadores, assoberbada por dois males: o capitalismo e o comunismo. O homem, as suas
liberdades, a sua dignidade, sentem-se ameaçados por uma gradual ou violenta absorção
de grupos monopolizadores e opressores, que se organizam fora do Estado ou se
identificam com o próprio Estado. Mas essas duas ameaças não passam de conseqüências
de uma psicologia expressiva dos dias brutais em que vivemos: a psicologia de um
egoísmo sem freios, que corresponde ciclicamente àquele individualismo em que se
traduziram os anseios do romantismo nos alvores do século XIX.
Que o individualismo liberal e romântico é o prefácio do coletivismo, eis uma verdade já
verificada no transcurso de um século. Foi esse individualismo que se derramou nas
páginas de Goethe, de Lamartine, de Georges Sand; que se expandiu nas revoluções
políticas e no ritmo desagregador dos partidos; que se alargou e imperou no
desenvolvimento econômico dos povos com a nota predominante da usurpação
impositiva de grupos financeiros em detrimento dos trabalhadores e das famílias; e que,
finalmente, desviou a humanidade dos seus superiores destinos, dando-lhe por único
pasto os vis interesses materiais.
Dessa forma, a partir da segunda metade do século XIX, deflagrou-se a luta entre os
homens, de modo terrível. Homo hominis lupus tornou-se o emblema das relações
humanas sob a égide de um egoísmo cego e inconseqüente. Atualizava-se o pensamento
de Plauto, pois na realidade o homem se tornou o lobo do homem, sem nenhuma
consideração de ordem moral.
A guerra entre os competidores no comércio, a batalha da concorrência nas praças
consumidoras, o combate entre os detentores do capital e os agentes do trabalho,
paralelizavam-se com o choque dos partidos políticos, o estraçalhar-se mutuamente dos
próprios correligionários desses partidos nas querelas internas das facções, as disputas
dos cargos rendosos e das posições de comando, as discórdias em todos os setores da vida
humana, inclusive no próprio ambiente do lar doméstico.
***
Partindo do individualismo romântico no século XIX, temos chegado ao egoísmo realista
do século XX. E, com o aceleramento da velocidade, o egoísmo tornou-se sofreguidão,
pressa vertiginosa de vencer, de atingir o máximo no menor tempo. O aventureirismo
político já esboçado no tempo de Napoleão III, Bismarck e a Rainha Vitória, ganhou
subitamente, com o advento das massas inconscientes a substituírem o voto consciente,
uma velocidade espantosa em nossos dias. Mas esse espírito de aventura estendeu-se a
todos os setores da vida humana, instaurando o "golpismo", como estilo e técnica de
rápido enriquecimento e rápida ascensão. Se no período em que predominou o
utilitarismo corriam todos atrás das coisas materiais, hoje que impera esse mesmo
utilitarismo traduzido nas formas mais execráveis do egoísmo, a humanidade despenhou-
se no abismo das paixões animada por uma sofreguidão, uma pressa, que revela, no fundo
o anseio de gozar o mais imediatamente possível os bens do mundo.
Essa pressa evidencia também um supermaterialismo, horrendo nos seus aspectos,
insensato e trágico nos seus desígnios. Já não é possível conceberem-se os gestos
altíssimos de renúncia; já ninguém compreende a possibilidade de alguém nada querer
para si, nada ambicionar senão o bem dos seus semelhantes.
Porque, achando-se todos espicaçados pelo muito querer, perderam o sentido das belas
atitudes e das espirituais posições de desprezo pelas coisas materiais.
O homem, que continua a ser o mesmo que se encontra nas páginas de Ésquilo, de
Shakespeare, de Balzac, agravou os seus próprios males pela velocidade que imprimiu às
suas paixões. Quer ser veloz, que ir depressa, porque sente a vida curta e porque, no
íntimo, prefere as coisas efêmeras e despreza as coisas eternas.
***
Em última análise, as desgraças do nosso tempo decorrem da ausência de religiosidade. O
homem desligou-se de Deus, das aspirações tendentes a um destino eterno. Fala-se numa
civilização cristã, mas esta civilização age materialisticamente. Pois é entre cristãos, é
entre homens que se dizem de Cristo, que verificam as discórdias, as disputas pelos
cargos, pelas posições, pelo dinheiro, pelas glórias ridículas do mundo. Quem observa a
sociedade atual nota, forçosamente nota, que os cristãos se preocupam, tanto como os
pagãos, somente com os bens terrenos, que colocam sempre acima dos bens do espírito.
Vivemos uma época de cristianismo puramente nominal, sem nenhum conteúdo de
Cristo. E essa é a suprema desgraça da chamada civilização ocidental.
Como conseguiremos nos opor contra as forças organizadas do capitalismo ou do
comunismo, se não encontrarmos no seio da sociedade que se diz cristã os elementos de
aglutinação das forças salvadoras? Como unir, se o orgulho é mais forte, a ambição mais
prepotente, as odiosidades mais imperativas, o egoísmo mais decisivo, do que os
superiores objetivos de uma ação comum em face do mal? Como combater o mal se o
mal esta em nós mesmos? Como lutar contra as forças dissolventes, se dentro da nossa
cidadela se encontram os germens da dissolução?
Pobre mundo! Infeliz século! Diante das suas calamidades, os que pensam e sofrem a dor
de ver transviado para o mal o curso de uma civilização que se diz inspirada no
cristianismo, não vêem para onde ou para quem apelar, senão para Deus. E, apelando para
Deus, nesta idade demoníaca, os que se compadecem diante do triste espetáculo que os
homens apresentam, precisam ofertar aos Céus os seus pensamentos puros, os seus
sentimentos cândidos, juntamente como o sacrifício que hoje representa, a quantos
querem viver pelo espírito, o convívio doloroso, cheio de atritos e violências, de um
século que se resseca e estiola ao sopro infernal do materialismo.
II
Insistirei, teimarei, repetirei por todas as formas, em todas as ocasiões que se me
oferecem: o problema do mundo de hoje é essencialmente espiritual, direi mesmo
religioso.
Critiquem-me os pragmáticos; apontem-me como sonhador os que a si se dão por
objetivos e realistas; lamentem-me os que me desejariam ver manipulando comentários
ou intrigas nas provetas dos fatos quotidianos; deplorem-me os que me julgarem
abstêmio das preocupações imediatistas em que se exaurem as sociedades políticas e
literárias do nosso tempo: — e eu continuarei proclamando que o único problema que os
homens e as nações têm a resolver é o problema do Espírito.
Mas, quando me refiro ao Espírito, não tomo esta palavra nas suas expressões ambíguas,
a significar vida intelectual, índices culturais, aspirações ou realizações artísticas, padrões
de vida social. Não quero com essa palavra "espírito" exprimir a quintessência da
civilização, ou o caráter, o temperamento, as tendências de um povo, nem tão pouco
aludir a formas de inteligência ou ao sentido dessas formas e às crises em que se debatem
os dramáticos espectadores das aventuras filosóficas dos eleatas e epicuristas
contemporâneos.
Falo do Espírito mesmo. Falo do Espírito como realidade. Em suma: falo da Alma do
Homem.
Ponho em equação o problema da Alma Humana.
Não há outro mais importante na hierarquia lógica das nossas cogitações, quando
assumimos a atitude sincera com que exprimimos uma dor verdadeiramente sentida.
Desse problema decorrem todos os outros. Da sua solução dependem as soluções de todas
as dificuldades individuais, fami-liares, sociais, econômicas, políticas, nacionais e
internacionais do século em que vivemos.
***
É preciso pôr ordem nos espíritos.
Mas essa ordem não a encontraremos no mundo irreal das elucubrações sutis onde a
inteligência se perde como um náufrago na imensidade do oceano.
Debalde reviveremos as inquietações pascalianas, os debates jansenistas sobre a
predestinação, ou as antiquíssimas querelas dos bizantinos acerca da luz incriada,
enquanto os turcos sitiavam Constantinopla. Inutilmente atualizaremos e discutiremos as
mil questões dos céticos, dos nominalistas, dos racionalistas, dos sensualistas, dos
naturalistas, dos panteístas, dos idealistas travestidos em novas roupagens muitas vezes
urdidas com os remendos das mais variadas filosofias. Não conseguiremos com isso outra
coisa senão nos metermos na balbúrdia de uma feira, onde todos falam, poucos ouvem,
ninguém se entende e cada um sai mais confuso e perturbado.
Não será adubando crises subjetivas ou revolvendo o entulho da parlapatice universal em
polêmicas estéreis que conseguiremos atingir o equilíbrio moral de que depende a ordem
social e a paz entre os homens.
Assistimos hoje ao ressurgir de um humanismo do tipo erasmiano, a evitar comprometer-
se em atitudes definidas capazes de provocar incômodos na profissão, na carreira ou nos
negócios, quebrando o ritmo epicurista de uma existência brilhante de prazeres. Dentro
dessa atmosfera proliferam todas as desordens intelectuais e morais, refluindo, sob
formas cautelosas de transigências, vetustas heresias com ares de novidades.
***
Vivemos hoje uma época em tudo semelhante aos tempos periodicamente repetidos
através da História, em que surgem, sob aspectos diversos, novos rebentos de agnósticos,
de maniqueístas, de pelagianos, de arianos, de albigenses, a pretender conciliar suas
complicações mentais com a pureza simples da verdade cristã.
O fato incontestável é que os êmulos de Pascal em nosso tempo não fazem mais do que
aparentar, nas atitudes melancólicas das dúvidas consuntivas, o oportunismo de Erasmo
de Roterdam, a ajeitar a ortodoxia do seu credo ao gosto da moda e às injunções das
correntes literárias do cartaz.
A preocupação de atualizar-se, de acompanhar a onda do pensamento moderno, leva a
muitos indivíduos, que se confessam cristãos, a tentar o conúbio de subfilosofia da
atualidade com a doutrina do Evangelho. Outros, como os antioquianos ou nestorianos, a
insurgir-se contra Árrio, pretendem combater certos erros engedrando erros mais graves.
Arregimentam-se terceiros a coibir o zelo reacionário, mas caem no extremo oposto
implantando com erros superlativos, que a vaidade agrava e eriça, a confusão geral que a
todos desorienta.
O que se gasta de tempo e espaço em arrazoados infindáveis e papel de jornal,
queimando-se os fogos de artifício dos debates inúteis, é verdadeiramente assombroso.
Tudo sem o menor resultado benéfico à solução do problema espiritual que aflige os
indivíduos e os povos.
***
Há uma preocupação erasmiana de acomodar as linhas simples da verdade eterna com as
loucuras e dispautérios do mundo. Não há doutrina que surja baseada nas hipóteses do
experimentalismo científico ou nas elocubrações de cérebros doentios, que logo se não
pretenda assimilá-la, enquadrando-a nos limites da ortodoxia católica, sob o pretexto de
que, exercendo ela fascínio sobre as massas, representam forças que vale a pena
aproveitar para maior rendimento do bem.
Essa atitude covarde de transigência com a demagogia e com a efêmera maré dos
caprichos das multidões magnetizadas por quantos Simões Mágicos ou Cagliostros
produz o charlatanismo político do nosso tempo, considero-a a principal responsável
pelas desgraças da humanidade neste século.
É uma vergonha o convívio amistoso e o conúbio cínico de intelectuais que se dizem
cristãos com o teor de vida e o timbre do caráter de confrades materialistas, cujas
doutrinas filosóficas e cujos conceitos éticos ou estéticos predominam sempre quando
fazem liga, à fusão desmoralizante de complacências e tolerâncias absurdas.
Já se tem cogitado de cristianizar o marxismo materialista, ou o epicurismo plutocrata, ou
o liberalismo determinista e até de captar, dirigir e transfundir o existencialismo, que
sintetiza aqueles três males, amoldando-o às normas da vida cristã. Fala-se de um
socialismo, de um capitalismo, de um liberalismo ou de um existencialismo domesticados
segundo os preceitos do Evangelho, com a mesma naturalidade com que um louco falaria
em domesticar animais selvagens que há milênios o homem não conseguiu trazer para o
convívio do lar.
Vivemos hoje o período áureo do ressurgimento sofista. Com papel e tinta desenvolvem
seus argumentos variadas espécies de Pródicos, Crítias e Trasímacos, restaurando em
nosso século a pedanteria dos discutidores de Atenas, os quais, à força de provar que o
preto é branco e que o branco é preto, ridicularizam a lógica e a si mesmos se
ridicularizam, demonstrando, ao cabo de tanto falar e escrever, tudo defendendo sem
nada sustentar convictamente, que a verdade é a mais inverídica das coisas e que os
argumentos deduzidos pelos homens nâo passam, como exclamou Hamlet, de palavras,
palavras e palavras...
Não faltam modernos Protágoras relativistas, ou novos Górgias que tudo negam ainda
quando afirmam, a ensinar dialética e retórica em calhamaços infindáveis de crítica
literária e de divagações políticas. Requentam sistemas, desenterram teorias, escovam
múmias, pulverizam a Detefon as traças e baratas do pensamento antigo, e misturando
conceitos de variadas escolas, apresentam, como novidades da última moda, os arranjos
filosóficos com que pretendem resolver o problema do mundo nas portas das livrarias e
nas mesas de café.
Tudo é moderno, moderníssimo como as pirâmides do Egito. Tudo é atualizado como as
músicas clássicas de fox americano. Dois dedos de Spinoza, três de Schopenhauer, uma
pitada de James, outra de Bergson, algumas fumaçadas de Nietzsche, e temos uma
filosofia nova, misto de Aristipo de Cirene — o eufórico hedonista e alegre precursor da
maconha e do suicídio dos fracassados.
Bebe-se, come-se, dança-se, joga-se, pratica-se o câmbio negro e a adoração do Bezerro
de Ouro, com suspiros fundos de Leopardi, bizarrices de Baudelaire e tédios de Byron,
contra- ponteando sibarítismos elegantes e fundas melancolias de crises distintíssimas,
como é da moda entre gente de alto coturno literário.
Tal é o problema do espírito para os habitantes do mundo das letras, em Paris, Nova York
ou Rio de Janeiro...
***
Enquanto isso, a sociedade do mundo ocidental vai-se dissolvendo, vai apodrecendo e
tresandando o fedor das decomposições, fibra por fibra, dos elementos que a constituem.
Vai mal a economia dos povos, vai mal a administração pública, vai mal a política dos
partidos, vai mal a vida das famílias; destroem-se os degraus de toda a hierarquia dos
valores morais; degrada-se o sistema de educação nas escolas primárias, secundárias e
superiores; corrompe-se o funcionalismo; anarquiza-se o trabalho; pervertem-se os
homens, infamam-se as mulheres, multiplicam-se os adultérios, oficializa-se a
pornografia no cinema, nas revistas ilustradas, nos teatros, no rádio e nos romances,
estalam — molécula a molécula — as estruturas das nações: e o socorro para tamanhos e
tão catastróficos males vai-se procurá-lo na discussão bizantina das questões complicadas
em vez de se empregarem as inteligências armadas de vontade decidida, na campanha
urgentíssima de pro-filaxia, terapêutica e saneamento com que se curem os beribéricos e
escorbúticos da alma, que definham à míngua de vitaminas de brio.
Não há duas opiniões sobre a nossa desmoralizada sociedade. É colocar face a face dois
dos nossos contemporâneos e puxar pelo assunto. Cada um conta uma infinidade de casos
de subornos, de prevaricações, de malversações, de negligências de funcionários; cada
um narra meia dúzia de negociatas de que foi testemunha ou de que ouviu falar, em que
tomaram parte altos e até altíssimos personagens de governos, de partidos ou
simplesmente da elite grãfina; cada um possui, para uso próprio e desfastio em conversas
ociosas, um Decameroni de Bocácio, anedotas bocagianas ou aretinas, antologias de
Kama-sutra e florilégios de aventuras e fraseados de Pantagruel, em que entram, como
comparsas de grossas bandalheiras, senhoras da alta plutocracia e cavalheiros com
fitilhos de comendas papais à lapela ou diplomas encaixilhados de ócios beneméritos de
Ligas abstêmias ou Associações pró-Decoro Público.
Vai tudo mal, dizem. Não há remédio, exclamam. Isto é um país perdido, rugem os leões
da pudicícia e da honestidade puritanas. E ao passo que uns vociferam contra as gorjetas
tornadas instituições, outros clamam contra as porcentagens que pagaram à assinatura de
contratos por serviços públicos, ainda outros esperneiam pela preferência que obteve a
amante do Ministro, do Senador ou do Desembargador em detrimento de 'seus direitos, e
outros ainda comentam a vida secreta de certos Catões que refazem as forças gastas no
magistério, à sombra de confortáveis tebaidas não sabidas nem sonhadas pelos de sua
audiência, entregando-se aos auspícios de discretas Afrodites da estirpe das Marias
Candelárias.
Este reclama, porque os cinemas trazem beijos demais, os teatros são apimentados e
despigmentados de vergonha, os jornais e revistas ilustradas lhe entram pela casa
mostrando às filhas os clichês que podem excitar os humores; aquele berra porque as
danças são muito agarradas ou porque nas boates presenciou, à cumplicidade da
escuridão ali reinante, os maridos se enganarem bebendo o whisky dos amigos, enquanto
os amigos nada enganados beijam-lhes as esposas, ao inocente compasso de alguma
dança ingênua; aquele outro sabe de garçonnières onde devassos tiberizam a senectude e
altimetrizam a pressão arterial em taquicardias dionisíacas, e sabe também de alguns
mistérios elêusicos de virgens versadas em técnica psicanalítica ou rapazes gideanos que
reproduzem retratos de Dorian Gray em Cíteras de Sacopã.
"Já não se pode freqüentar a sociedade", lamentam os últimos varões e matronas da
República. E alegam que os casais se renovam e se revesam na sucessividade de
divórcios e matrimônios anuais; que o fumo, o álcool e o pif-paf são hoje as
preocupações únicas da alta roda; que as conversas giram em torno, exclusivamente, de
automóveis, hotéis, modas, jóias, maledicências tesourando ausentes; que vai
desaparecendo, dia a dia, a vida do lar e da família; que já se não sabe quem e como
receber em casa; que os escândalos de há uns dez anos atrás são hoje coisa corriqueira no
convívio de alto bordo; e por aí vão em lamúrias de Jeremias a prantear sobre as ruínas da
cidade antiga.
Passadismos!, dizem os avançados, os modernos, os sabichões. os faustosos Cresos e os
finos literatos bem nutridos por sinecuras de ministérios. E o país rola. desaba, pulveriza-
se,
enlameia-se, enquanto aqueles, que deveriam, por dever de crença, por fidelidade ao
Cristo, fazer-se paladinos da mais gloriosa das batalhas, vão gastando o cérebro
escaldado e a vaidade fútil nas discussões infindáveis, exasperantes, inúteis e criminosas
sobre temas complicados de filosofia ociosa e altas indagações acerca de problemazinhos
secundários...
***
Como resolver as questões magnas da nossa economia, das nossas finanças, do trabalho
nacional e da produção do país; e como estabelecer um largo plano com que solucionar as
necessidades básicas da nossa vida material; e como sacudir num trabalho intenso e
poderoso a máquina administrativa da nação; e como coordenar todas as forças da Pátria
numa arrancada gloriosa de realizações, se nos falta o principal, que é a honestidade
pública, e se esta depende da honestidade privada, a qual desaparece desastrosamente em
todas as classes sociais
E como restaurar o teor saudável da vida pessoal de cada um, se não encararmos de frente
e resolvidos a solucioná-lo, o problema do Espírito, ou melhor, o problema da Alma do
Homem?
Por isso insisto, repito, repetirei sempre, teimosamente: o problema do mundo de hoje é,
antes de tudo, espiritual, religioso.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Ritmo da História, Obras Completas Vol. 16, pag. 139.
Plínio Salgado
Notas:
[1] A Confederação de Centros Culturais da Juventude foi uma organização que teve
como seu Presidente de Honra a figura de Plínio Salgado, e chegou a reunir, em todo o
Brasil, centenas de grupos de jovens, sob a presidência nacional de Gumercindo Rocha
Dorea. Os seus integrantes eram chamados "águias brancas", e quase todas as entidades
traziam nomes de grandes vultos da nacionalidade. De seus quadros saíram ministros,
secretários de estado, deputados (federais e estaduais), prefeitos, professores
universitários, filósofos, diretores de grandes empresas, etc.
[2] Extraído de: Reconstrução do Homem, ed. cit., pág. 103
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Reconstrução do Homem, ed. cit., pág. 157.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Atualidades Brasileiras, Obras Completas, Vol. 16, pág. 373.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Espírito da Burguesia, Obras Completas, Vol. 15, pág. 167.
A Luz Ausente
Alguma coisa está ausente do mundo. Sim: o mundo esta separado de alguma coisa. Há
na sua tormenta, na agitação dos dias presentes, essa vaga inquietação indefinível, esse
mal-estar que não se compreende bem. Referve no complexo universal o limbo de todos
os desejos e as tendências de todas as exaltações. Uma super-excitação nervosa passa
como calafrio sobre a superfície da Terra.
E não se sabe ao certo se a Humanidade vive num crepúsculo, na indecisão das formas e
das cores, na confusão de todos os aspectos, da hora melancólica do anoitecer; ou se já
nestes anseios frementes vibra o anuncio de novas auroras.
No fundo de todas as angustias das Nacionalidades e das massas populares, o que é fora
de dúvida é que se percebe um desequilíbrio, em tentativas supremas para uma
recomposição de ritmos e de harmonias.
Então, logramos descobrir algo que nos esclarece o entendimento, como que uma suave
mão guia o nosso raciocínio através das sombras. E o mistério da hora presente revela-se
no mistério de cada drama pessoal.
Ausência do “espírito”...
Como é fácil e, ao mesmo tempo, difícil compreender o que seja o “espírito”. É preciso
ter uma noção integral da própria criatura humana. E a Humanidade de hoje perdeu
completamente o senso da personalidade, o sentido das proporções e dos limites, a
percepção da harmonia das formas, a intuição dos equilíbrios exactos, o sentimento das
euforias perfeitas.
Por que sofrem os povos todos os terrores recíprocos, nos dias que correm? Por que se
agitam as classes, na luta tremenda? Por que se miram desconfiadas, as autoridades
nacionais? Por que se aumentam os efetivos das polícias secretas? Por que se multiplicam
tantos crimes? Por que estampam os jornais tantos escândalos? Por que se odeia tanto, se
agride tanto, se luta diariamente uma batalha soturna, trágica, sob as aparências das
maneiras corteses?
Tal o que sucedeu nos fins do Império Romano, as preocupações do corpo dominam,
hoje, completamente, as preocupações da Alma. E, como era lógico, em vez de lucrar
com isso o corpo, ele deprime-se, deforma-se, perde a eurritmia sagrada que procede das
geometrias maravilhosas do Espírito.
O corpo perdeu o prestigio; tornou-se a coisa vulgar, miserável, sem dignidade e sem
beleza, artificioso nas suas expressões, incapaz de despertar o encanto das épocas de
pudor e de recato. Livre do império da consciência, cata-vento de todas as irreflexões,
entregou-se a todos os vícios, sob a capa de todas as liberdades.
Essa tremenda batalha, que se surpreende no recesso dos lares, no recesso dos
estabelecimentos comerciais, no interior dos quartéis, das repartições públicas, das
escolas, e que se generaliza desde o armazém da esquina ao grande “trust”, e desde o
drama passional dos arrebaldes, com suicídios e homicídios, até a tragédia dos conflitos
monstros das mazorcas e levantes, – essa tremenda batalha vai refletir-se na vida in-
ternacional, e já não há possibilidade de se evitarem as guerras, as situações tensas entre
os governos, a confusão universal e os terrores recíprocos das
Nacionalidades.
***
Alguma coisa está ausente do mundo.
Que remédio poderemos dar para que estas trevas se transformem na rutila aurora dos
tempos novos?
Que ele ilumine todas as coisas materiais. Que desça no desamparo da hora que passa. É
a luz que desertou do mundo. Ou ela volta, ou nos lançamos na ruína e no apodrecimento.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Madrugada do Espírito, Obras Completas, Vol. 7, pág. 451.
Horas neutras
Há na vida das Nações as horas positivas de construção, de afirmação de um sentido
itinerário, assim como existem as horas negativas de destruição, de crítica demolidora e
propositura formas de vida opostas à ordem vigente.
E há também a hora das angústias, como existem as horas de tempestade que assinalam
as grandes transformações sociais e políicas.Hora da Enciclopédia e hora da Revolução,
hora de Catilina e hora de César, hora deMarx e hora de Lênin.
Não erraremos, transcendendo do campo exclusivamente terreno das preocupações
utilitárias ou mesmo idealistas para a esfera das cogitações do Espírito, dizendo que
existe a hora
de João Batista, a preceder a hora de Cristo.
***
Mas existem as horas neutras, as horas cinzentas das indefinições melancólicas. São as
horas das inapetências, as horas sem expressões de vontade e sem lampejos de
inteligência.
Nessas horas, as Nações vegetam. Falta-lhes a sensibilidade, falta-lhes a capacidade de
comoção. Desaparecem as revoltas vivificadoras, os entusiasmos expansivos, as
determinações provindas do recesso da alma.
Tudo se apresenta, nessas fases mornas da História, numa horizontalidade monótona à
qual se conformam as inteligências medíocres e diante de cujas perspectivas se
exasperam, inutilmente, as mentalidades poderosas. Os fatos que então ocorrem e que
atraem as atenções das turbas, são meras ondulações de superfície, que afinal coisa
alguma significam.
***
São as horas neutras. Horas sem caráter, sem título, sem assunto senão para as
inteligências primárias e para os entendimentos infantis dos inpíduos vulgares.
Esses trechos da História assemelham-se aos filmes americanos, desprovidos de fundo e
de grandeza, jogando com os mesmos elementos de todos os filmes antecedentes que
fazem as delícias das platéias ignaras. Os temas de discussão ou a matéria quotidiana das
conversas não passam de pequenos episódios que parecem grandes na ausência dos
grandes assuntos ou das idéias cheias de força e de poder que se contrabatem nas horas
vivas e agitadas.
Quando as Nações entram nesses períodos de passivo fatalismo, quando os inpíduos se
contentam com a mesquinharia das intrigas que constituem os cartazes dos dias amorfos e
descoloridos, a corrente dos acontecimentos é governada por leis mecânicas. Os homens
e os povos não se movem por impulsos subjetivos, mas deixam-se conduzir impelidos
pelo que vai acontecendo. E o que vai acontecendo não é determinado pela vontade e
guiado pela inteligência, porque tudo se reduz ao rolar das pedras pela encosta, segundo
as disposições e os relevos do terreno.
***
E esse é o espetáculo dos dias presentes, quer na vida internacional, quer em nossa vida
nacional. Abrimos os jornais e não vemos nenhum gesto humano de decisão, de definição
tendente a impor um rumo novo, uma direção positiva ou mesmo negativa. A política em
todos os paísesé o vaivém das competições partidárias vulgares. As ideologias que se
apresentam não passam de semelhantes que concorrem umas com as outras. Todos os
programas dos partidos se parecem. Fica-se na água choca de um socialismo que não tem
coragem de chegar às últimas conseqüências ou de um liberalismo que procura conciliar-
se com os termos de um autoritarismo de meia rédea. Fala-se em democracia, mas essa
palavra perdeu o sentido. Fala-se em combater o comunismo (que, afinal, representa a
única expressão de uma vontade determinada, embora hoje nada mais signifique do que o
instrumento de um imperialismo asiático), mas ninguém sabe em nome de que combater
esse comunismo.
E isso, para sermos otimistas, pondo em termos de aspirações ideológicas os movimentos
superficiais da vida política dos povos. Porque, na realidade, o de que se cogita não são
nomes de sistemas, nomes de regímens, nomes a rotular pensamentos definidos. O de que
se cogita são nomes de pessoas. Os próprios partidos desaparecem para dar lugar a
homens; mas esses homens não se revelam pelas idéias que expõem, e sim pelas
aventuras que praticam para edificação dos espectadores de um teatro de títeres.
Temas que não passam de simples pormenores de caráter administrativo ou de soluções
econômicas ganham a importância fundamental dos assuntos que a miopia das massas e a
certeza das inteligências dos supostos líderes têm na conta de decisivos como interesse
nacional ou humano. Invertem-se os valores. Tudo se confunde na névoa das inteligências
amesquinhadas. Tudo se aplaina em perspectivas exasperantes de planície indefinível.
***
É a hora neutra. A trágica hora neutra. Por detrás dela, talvez se prepare uma hora viva,
uma hora ativa, uma hora de afirmação ou de negação, mas cheia daquele poder de trans-
formação dos povos. Se ela existe por detrás da hora neutra, só os espíritos lúcidos e
profundos podem percebê-la e anunciá-la.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Ritmo da História, Obras Completas, Vol. 16, pág. 67.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: A Quarta Humanidade, 1934, in Obras Completas, Editora das Américas,
São Paulo, 1954 - Vol. 5, pág 58.
A quarta humanidade
Nascerá aqui o novo Direito, a nova Política do Estado Revolucionário, com finalidade
moral prefixada. Não será certamente o Estado Totalitário, de um absolutismo
absorvente, mas o Estado Integral, índice ele próprio das relações dos movimentos
sociais. Nele, a "revolução" deixa de ser a desordem inpidualista, classista ou partidária,
para ser o direito do espírito de intervir no desenvolvimento das forças materiais da
sociedade, recompondo equilíbrios segundo um pensamento de justiça.
A lei deixará de ser o tabu rígido, a cristalização do direito despótico, para ganhar aquela
plasticidade preconizada já remotamente no Evangelho, quando Jesus afirma: "O sábado
foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (São Marcos, Cap. II).
Partindo de uma concepção espiritual do Universo, o Novo Estado será, ao mesmo
tempo, realista e prático. A contribuição experimental científica do século XIX, o
subsídio de conhecimentos naturais que advieram da Humanidade Ateísta,daráao Estado
Integral os elementos com que jogará no esforço contínuo de impor equilíbrios morais no
mundomaterial, concebendo o Homem como uma criatura de Deus, ea Nação eo Estado
como criaturas do Homem. A ciência nãoé renegada,mas passa a ser a servidora do
Homem, em vez deser o tirano que o subjuga.
Por isso, esse movimento que se processa às vésperas do aparecimento do novo tipo de
Humanidade, começa por uma obra de revisão do Passado, servindo-se de todos os
elementos humanos para a realização da grande síntese.
Em meio ao tropel cambaleante de um mundo que morre, escutamos já nitidamente os
passos da Quarta Humanidade.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: A Quarta Humanidade, Obras Completas, Vol. 5, pág, 65.
Na hora dos escândalos
Não basta destruir o que é mau; é preciso construir o que é bom. A formação da
consciência de um povo não se processapelo incitamento das forças negativas, mas pelo
cultivo e pelo estímulo das energias afirmativas.
O mal já é, ele próprio, o resultado de um longo processo de negações coletivas; e quando
os resíduos de virtudes, que não entraram ainda na fusão de que procede a psicologia
uniforme do grupo social, dão-se conta desse mal,é mister evitar sejam as derradeiras
expressões do bem e do bom desviadas da linha do seu legítimo desenvolvimento numa
luta em cujo fragor se consomem os elementos positivos de construção.
Empenhando-se o bem na batalha contra o mal, corre o perigo de abandonar seu principal
objeto, tornando-se apenas um termo na equação do contraste, pela perda do sentido su-
perior que lhe é próprio.
Os povos, como as personalidades superiores, sabem que o mal não se destrói de outra
maneira senão realizando o bem e ampliando as áreas do seu império.
Essa realização das formas belas, puras e boas da existência, começa inpidualmente em
cada espírito, soma-se a outras, produzindo-se a expressão típica dos agrupamentos hu-
manos conduzidos pelas aspirações mais elevadas.
Então, o bem triunfa sobre o mal, não pela agressão, mas pela substituição.
***
Parece estranho escrever e fazer ler estas palavras, numa hora em que há fatos na vida de
um povo que estão a reclamar ingente combate e corajosas campanhas.
Não nego, porém, nem a urgência de uma luta imediata nem o valor da coragem que
distingue os lutadores contra escândalos vergonhosos que nos degradam. O que pretendo
dizer é que, além da necessidade imediata de romper a ofensiva aos males, impõe-se dar
ao povo o sentimento e a consciência dos nobres ideais construtivos.
A esse mesmo povo, que revela instintivamente um potencial de justiça no seu coração, é
preciso dizer — com maior audácia e mais rude franqueza do que as empregadas nas
arremetidas contra o mal — uma palavra forte e sincera. É preciso dizer-lhe que o mal, ou
o mau, cuja impudência lhe provoca as iras, não é outra coisa senão o seu próprio
espelho.
Os homens públicos, os estadistas, os políticos, os escritores, os jornalistas, os
banqueiros, os comerciantes, os funcionários, são frutos da árvore que se chama povo.
Seria negar a irrefutável influência do meio admitir que esses expoentes da coletividade
obedecessem a impositivos psicológicos e morais persos do agrupamento em que
nasceram, se desenvolveram e se realizaram.
Por conseguinte, destruir ou tentar destruir qualquer desses tipos representativos da
sociedade a que pertencem, é tão inútil ao saneamento nacional como pretender matar
moscas a tiros de pistola.
O essencial é ensinar o povo a ser idealista; a refutar as exclusivas e mesquinhas
preocupações materiais; a dedicar-se às nobres causas do bem comum; a dar valor aos
homens de virtude; a considerar mais o caráter e a moralidade do que o dinheiro e as
posições brilhantes; a amar a sobriedade, a austeridade; a enaltecer os que se sacrificam,
na pobreza, nas adversidades e no infortúnio, para sustentar o pendão dos altos sonhos
arrebatadores; a estimar mais o trabalho do que os proventos, mais a honra do que a
comodidade ou a ostentação; a desprezar o luxo e as fátuas grandezas; a detestar a
ociosidade; a execrar a sensualidade; a repugnar a inutilidade; a repelir a
irresponsabilidade; a proscrever a covardia, a preguiça, a moleza, a indiferença, o
fatalismo; a apegar-se às tradições da Pátria e pela Pátria cultivar as virtudes
vivificadoras.
***
Um povo que se deixou dominar pelo egoísmo e pela exclusiva preocupação do conforto;
um povo que só produz homens e mulheres sedentos de prestígio social que se mede pelo
dinheiro auferido em negócios ou mediante ordenados astronômicos em repartições
públicas ou cargos eletivos; um povo que se constitui de inpíduos que só pensam em
arranjar empregos e sinecuras de toda a espécie, aumentos de vencimentos, com
arrecadação de atrasados colossais; um povo constituído de sonegadores de impostos e
falcatrueiros do comércio e da indústria; um povo que se dirige em massa para as grandes
capitais repudiando a vida sã do interior do país onde já não é "chic" morar; um povo em
cujos lares os pais não ensinam aos filhos as noções dos deveres e a lição do ideal, mas só
lhes falam em ganhar dinheiro; um povo, em cujos estabelecimentos de ensino os
professores são coagidos a dar média e a aprovar analfabetos e incompetentes; um povo
absorvido pelo Carnaval, pelo futebol, pelo cinema e pelas boates; um povo que se deixa
conduzir pelo fogo de artifício dos demagogos e que deixa de lado os valores morais e
culturais que ainda repontam do seu seio; um povo que vota por sugestão dos cartazes, do
rádio e todos os instrumentos técnicos manobrados pelo dinheiro dos financiadores de
candidaturas; um povo assim não pode produzir senão aventureiros e escândalos públicos
que se multiplicam indefinidamente.
A grande campanha desta hora é a do aproveitamento das forças morais que ainda nos
restam num esforço supremo de criar uma nova mentalidade.
Estou nesta luta há 20 anos; nela me tenho consumido, nela continuarei. Porque se minha
voz encontrar eco no coração da juventude, tenho certeza de que o Brasil se salvará.
Uma Pátria se constrói devagar e com firmeza. E eu creio nas imensas possibilidades do
povo brasileiro, hoje degradado pelos maus, mas amanhã elevada, redimida, ressuscitada
pelos bons.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Reconstrução do Homem,ed. cit, pág. 145.
Civilização e barbaria
Existe hoje alguma coisa a que se possa dar o nome de "civilização"?
A palavra, como o seu étimo evidencia, quer significar "vida nas cidades", isto é:
convívio de seres humanos em harmonia, sujeitos deliberadamente a certas leis, que se
identificam com os costumes, leis e costumes que não são, certamente, os dos tigres, dos
macacos e dos porcos.
Da vida em comum nas cidades, estendeu-se o conceito de civilização à vida em comum
de muitas cidades formando um país e, posteriormente, à vida em comum de muitos
países, formando o tão decantado concerto das nações.
O "concerto das nações" não pode, logicamente, ser uma assembléia de chacais rilhando
os dentes, ou uma tropa de feras contidas pelo urro do mais forte. Esse tipo de
convivência, baseada na inibição imposta pelas coações brutais, nunca poderá ter o nome
de civilização.
Por conseguinte, civilização não é termo equivalente a progresso material,
aperfeiçoamento técnico, a conhecimentos científicos. A própria ciência não é a
civilização.
A palavra tem conteúdo espiritual. Para se saber se, numa família, numa cidade, num
país, ou no mundo, existe civilização, temos de levar em conta a soma dos valores morais
predominantes no tipo do convívio. Tais valores decorrem do espírito.
***
Não me refiro ao espírito no sentido agnóstico empregado pelos materialistas de persos
matizes. Não é ao espírito na significação de índice temperamental de inteligências
inpiduais ou coletivas, significação que nos leva a chamar "espírito francês", "espírito
inglês", "espírito latino" às modalidades de expressão dos pensamentos, sentimentos e
atividades de grupos éticos ou nacionais diferenciais. Falo do "Espírito", tomando-o na
sua realidade tão real como a do mundo da matéria. Falo do que há no homem de superior
e eterno, dessa realidade que não perece, que não se encerra no ciclo biológico mas que
se prossegue no seu destino mortal.
Sem o Espírito não há civilização. E o que presenciamos hoje no mundo, nos atos,
palavras, costumes e tendências até mesmo dos que se dizem espiritualistas, é a negação
total do Espírito. Logo, o mundo, no século XX, não é civilização, ou — para sermos
menos rigorosos — diremos que tudo quanto existe hoje, com o nome de civilização, não
passa de restos de uma civilização agonizante.
Temos o progresso material de que tanto nos orgulhamos. Iluminamo-nos com a
eletricidade, enquanto nossos avós usavam candeias de azeite; viajamos de avião, ao
passo que os nossos maiores atravessaram o oceano em navios à vela e penetravam as
florestas a cavalo.
Orgulhosos, esquecemo-nos de que o primeiro instante da vida civilizada, após a queda e
degradação do pecado original, não foi aquele em que o homem da caverna inventou o
fogo e assou pela primeira vez um pedaço de rena, mas foi aquele outro em que dois seres
humanos repartiram, sem brigar, o quinhão do alimento, ou deixaram de rugir e erguer o
punho, a disputar a primazia da expansão sexual.
***
Se chamarmos civilização à posse dos segredos da bomba atômica ou do projétil dirigido,
seremos forçados a considerar
como primeiro passo da civilização, não o altar onde Abel erguia as suas oferendas ao
Altíssimo, porém a caveira de burro utilizada por seu irmão Caim na prática do primeiro
homicídio.
E se dermos o nome de civilização apenas à ciência e à técnica, teremos dado mais calor
àAcrópole de Atenas do que ao pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, e
interpretaremos a história do povo hebreu e a sua influência na humanidade mais pelo
templo de Salomão do que pela maravilha imperecível do Decálogo e pela glória da
concepção monoteísta.
A acrópole, com o Templo, são expressões magníficas do progresso intelectual, da
sensibilidade estética e dos recursos técnicos, porém não passam (por mais que se
escandalize a cultura agnóstica dos nossos dias) de elementos secundários da civilização.
Os elementos primordiais da obra civilizadora encontram-se, por exemplo, muito mais no
Livro dos Mortos dos egípcios do que nas suas pirâmides, que são enciclopédias de pedra
resumindo os conhecimentos matemáticos, geodésicos e astronômicos do tempo; e
encontram-se mais nas legislações da Grécia do que nos seus artistas, conquanto estes
fossem geniais e refletissem nas suas obras a própria aspiração das harmonias supremas
em que se compraz o Espírito Imortal.
***
Temos chegado hoje a tal grau de materialismo, que é comum ouvirmos falar em "política
do espírito", em "prazeres do espírito", em "aspirações do espírito", quando se quer
referir ao cultivo da música, da pintura, da escultura, da arquitetura, das artes aplicadas,
do romance, do teatro, da poesia. Essas rimas de expressão, porém, são meros
instrumentos da sensibilidade no esforço interpretativo do Universo. Delas o Espírito
muitas vezes se serve, mas nem sempre, porquanto esses instrumentos podem ser
utilizados em detrimento do próprio fim último do Homem.
O que vale, como base de civilização, isto é, de convívio harmonioso dos seres racionais,
são os valores éticos e estes de- correm, forçosamente, de um conceito da Alma Humana,
não tomada como simples coordenação de forças vitais, ou complexo de faculdades e
forças postos em evidência pelo organismo, porém com substância e realidade.
Tanto mais existe civilização quanto mais predominam os valores espirituais. São esses
valores que despertam a consciência jurídica dos povos, o mútuo assentimento de
inpíduos entre si e nações entre si, no sentido de respeitar legítimos direitos inerentes a
cada qual, mediante a aceitação de recíprocos deveres. A fonte do Direito é, pois, o
próprio amor, a unir os membros da mesma família; a conciliar persas famílias e inpíduos
de famílias diferentes; a vincular inpíduos e famílias aos interesses e aspirações da
coletividade pátria; e, finalmente, a congregar as pátrias sob o pensamento dominante da
concórdia e da paz.
Essa tendência à perfeita harmonia tem origem exclusivamente espiritual. Se nos
deixarmos levar pelas normas mudáveis de uma moralidade baseada no que a ciência
julga útil, oscilaremos constantemente ao sabor das hipóteses decorrentes de renovadas
experiências, a cancelar verdades provisórias e substituíveis por outras verdades
igualmente efêmeras consoante revisões e novas pesquisas.
***
Uma humanidade que, na vida privada, na vida familiar, na vida social de cada um de
seus membros, pôs de lado o respeito a Deus e àdestinação suprema de cada ser humano,
cai forçosamente na barbaria.
Não erraremos dizendo que o mundo de hoje está imerso em plena barbaria. Nunca a
História assinalou maior Idade de Trevas. Todas as delicadezas e cavalheirismos da Idade
Média (incontestavelmente mais luminosa do que a época presente) desapareceram nos
dias atuais. Basta dizer que hoje as populações civis, inclusive mulheres, crianças, velhos
e enfermos, estão mais sujeitos ao furor do extermínio do que os próprios soldados nos
campos de batalha. Isto é suficiente para patentearmos aos senhores materialistas
cienciocratas, fanáticos da superstição científica, a barbaria a que nos trouxeram suas
doutrinas sociais e políticas, a selvageria ignóbil em que afundaram as nações.
Os homens perderam inteiramente a noção do que seja civilização e regressaram com
seus laboratórios, usinas e maquinismos, ao período pré-histórico do troglodita.
Proclamam que defendem a civilização; mas, que civilização, senhores?
O próprio paganismo não chegara a tamanha miséria. Os politeístas do mundo antigo
tinham atingido, pela intuição do Bem, a tipos de convívio social e internacional, sob
certos aspectos superiores aos dos dias em que vivemos. Sem possuir uma idéia perfeita
de Deus e do destino supremo do Homem, aqueles povos tinham presente, nos seus atos,
o conceito de uma sobrenaturalidade que os elevava acima dos irracionais. Mas hoje
caímos na irracionalidade, postergando todos os valores morais e subordinando-nos ao
critério do predomínio dos economicamente mais fortes e dos mais aparelhados em
máquinas e armas. As fontes fundamentais do Direito tendem a reduzir-se ao postulado
execrável dos juristas do nazismo, quando afirmaram que a lei é a vontade do "Führer".
Esse postulado, que se inspira em Nietzsche, domina a vida internacional e também a
vida nacional de cada povo, influindo na moral privada, na moral comercial, na moral
política. Associam-se o pragmatismo de James, a loucura de Zaratustra, a filosofia do
êxito à moral do interesse dos utilitários, e os homens caminham alucinados para a
própria destruição do gênero humano.
Cada um dos homens destes tempos selvagens procura unicamente realizar-se, satisfazer
o seu egoísmo, e por isso não conhece mais as leis da honra, mas apenas as do triunfo,
seja por que caminho for. As mulheres e as famílias da classe média são arrastadas por
uma nova espécie do bovarismo, na sede crescente de uma ostentação cujos exemplos
vêm das classes plutocráticas, essa nobreza de enxúndias e sensualidades que se ergue
como índice de uma época de dissolvências e degradações.
O homem selvagem dos nossos tempos selvagens é geralmente um mau pai, um mau
esposo, um mau patriota, um mauprofissional de qualquer profissão. Vivemos a época
dos tubarões e dos macacos, das serpentes traiçoeiras e dos tigres rancorosos. O gênero
humano animalizou-se na mais baixa irracionalidade. Énatural, portanto, que dessa
horrorosa selva saiam homens públicos hipócritas, políticos perversos, intelectuais pros-
tituídos, homens e mulheres sem o mínimo senso de responsabilidade.
Desse mundo não pode sair a Paz. Esse mundo é de guerra. Nessa pavorosa Babel, os
homens não se entendem. E se civilização é convívio, respeito a direitos e deveres,
compreensão recíproca entre inpíduos e nacionalidades, quem poderá— a menos que seja
um louco — afirmar que o século XX é civilizado?
***
Das duas uma: ou o homem readquire a consciência do seu verdadeiro destino
sobrenatural e age em conformidade com essa consciência, ou então nenhuma esperança
restará aos atormentados dias em que vivemos; antes ficar-nos-á a horrível certeza da
destruição de tudo o que nos resta das construções do Espírito, já que o Homem,
renunciando à glória de ser filho de Deus, prefere ser o gorila evoluído e, por sua
espontânea vontade, a repelente Besta Humana.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Ritmo da História, Obras Completas, vol. 16, pág. 41.
Fisionomia
(1931)
Se volvermos a nossa objetiva para focalizar o plano da mentalidade brasileira, vamos
encontrar os aspectos mais variados a curiosos, que demonstram a ausência completa de
diretrizes uniformes. Evidentemente, não nos referimos aos tipos mais representativos da
nossa vida mental, pois em todos os países e em todos os tempos os valores intelectuais
se distinguem pela sua fisionomia própria, bem destacada. Cada escritor, cada filósofo,
ou artista, revela, exprime uma modalidade do pensamento e uma tendência de
sensibilidade. Não é possível pretender que todos sejam iguais, que todos se afinem pelo
mesmo temperamento.
Não nos referimos, portanto, aos homens índices, às organizações destacadas de
animadores das massas. Ao pretendermos focalizar a mentalidade brasileira, abrangemos,
de um modo geral, as grandes linhas médias nas quais podemos incluir desde o expoente
mental ao cidadão menos culto, desde o erudito ao simples leitor dos jornais.
A mentalidade de um povo é a média das tendências gerais das classes versadas na leitura
da imprensa e dos livros. E é esse conjunto, justamente, que serve de objeto a estes
ligeiros comentários. Nele vamos encontrar, antes de tudo, um característico
fundamental: a tendência irresistível para a discordância.
***
Nunca um brasileiro leitor de jornais ou de livros deixa de objetar. Os pontos de vista
pessoais multiplicam-se. Cada um tem o seu modo de ver, a sua filosofia, a sua opinião,
os seus remédios. Eainda quando dois patrícios estejam de acordo numa determinada
atitude, esse acordo exprime uma interinidade frágil, porque não passa de um "modus
vivendi" eventualíssimo, dentro do qual cada um aguarda a ocasião para se libertar das
idéias do outro.
No fundo de todas as alianças, há uma intenção de apostasia aguardando a oportunidade.
Todas as atitudes "em conjunto" trazem o rótulo de um "por enquanto" em que se traduz a
incidência de circunstâncias passageiras.
Dificilmente se podem estabelecer correntes de opinião, a não ser diante de fatores
concretos e imediatos, que obriguem a decisão rápida e a escolha instantânea,que operam
a pisão em dois termos, sem tempo para que a imaginação trabalhe criando objeções.
Pois é a imaginação, possivelmente, o grande fator de dissociação das massas brasileiras
e do permanente fenômeno de desagregação da opinião pública, a que assistimos, dia a
dia. Essa imaginação trabalha com tal intensidade que o pactoespiritual mais firme se
abala e se transforma em poucas horas.
***
Sem ser um povo de contemplativos, somos uma nação de imaginativos. E essa mesma
imaginação que sabe criar tão poderosamente, sabe aniquilar e pulverizar com a presteza
dos relâmpagos. De sorte que o brasileiro oscila continuamente entre arrebatamentos e
depressões, períodos de exaltação heróica, seguidos de marmóreas apatias e céticos
desânimos.
Os grandes estados de espírito nacionais, as paixões partidárias, os sentimentos de ódio e
vingança, de amor e de entusiasmo, passam sobre nós como as ondas de frio ou calor,
produzindo seus efeitos com rapidez assombrosa, mas desaparecendo tão rapidamente
que não deixam vestígios.
É que esses estados de espírito coletivos são largos rebojos onde o inpíduo repousa e
onde toda atividade da imaginação se anula. É preciso que se operem deslocamentos e se
efetivem movimentos, porque o nosso espírito é irrequieto. Começando a apreciar os
fatos sob uma multiplicidade estonteante de prismas, o brasileiro termina por se
desinteressar deles com uma gelidez e indiferença apenas comparáveis ao calor da paixão
inicial. É que o fato socializado na consciência coletiva deforma-se à consideração
isolada de cada inpíduo e passa a constituir, não mais um único fato, mas tantos quantas
imaginações o focalizam.
***
Essa feição generalizada da mentalidade brasileira é a vaga por onde perpassam as
correntes de idéias, sem que nenhuma exerça uma predominância absoluta. Em nenhum
país do mundo é mais fácil a introdução de qualquer ordem de idéias. A novidade
empolga nos primeiros instantes e parece que a vitória foi a mais completa possível.
Basta, entretanto, esperar um pouco, para que a desilusão seja total.
As nossas próprias leis são recebidas sempre sem revoltas porque cada cidadão está
convencido de que poderá burlá-la, segundo o seu modo de ver e de interpretar. A
doutrina pode subsistir enquanto não se põe em contato direto com o fato. Então,
começamos a presenciar até na jurisprudência dos nossos tribunais a fragilidade da idéia
em face do objeto. Não se firmam no Brasil, ainda quando decorram de idéias
substanciais pacíficas. Tudo, no Brasil, sofre a pressão de um ritmo intelectual sem
constância, cedendo à mutação permanente do processo mental.
A tendência da mentalidade brasileira, pois, é para não assumir compromissos definitivos.
Ora, os compromissos transitórios só se possibilizam nos domínios dos interesses mais
materiais ou das razões sentimentais, motivo por que o brasileiro, no plano mental,
apresenta-nos a paisagem curiosa de uma heterogeneidade inconciliável.
Constituirá isto um defeito ou uma qualidade? Seja lá como for, ao estudioso das
questões brasileiras não pode passar sem registro muito especial a circunstância de
fracassarem aqui todos os programas, todas as ideologias, tudo o que provenha dos pla-
nos da inteligência, do raciocínio, da razão. Queixam-se os comunistas e queixam-se os
católicos, queixam-se os socialistas e queixam-se os liberais-democráticos, queixam-se
todos os que desejariam sistematizar os movimentos sociais e políticos do Brasil.
Temos vivido num empirismo, numa improvização diária, sem objetivo nem finalidade.
O Brasil é a instabilidade, a dúvida, a confusão, se o apreciamos sob o aspecto mental;
como é a complexidade, a simultaneidade de movimentos, se o consideramos do ponto de
vista econômico, étnico, e principalmente partidário.
É,sobretudo, o país das interinidades sucessivas.
E, entretanto, há, inegavelmente, uma unidade brasileira. Que cumpre pesquisar, cujos
fatores cumpre revelar, cuja força é necessário captar, e dirigir. Não a procuremos nos
domínios da inteligência, que não pôde, até hoje, ser disciplinada. Ela está antes no
sentimento nacional.
Os homens de pensamento e de ação que desejarem realizar aqui qualquer sistema, não
basta que conheçam as teorias, as leis desse sistema, ou que se conservem nas grandes
idéias gerais; eles necessitam penetrar a fundo este povo para procurar, no terreno
movediço da opinião e do próprio caráter brasileiros, os pontos de apoio sem os quais se
torna impossível qualquer obra duradoura.
Falharão todos os que pretenderem formar a consciência nacional sobre uma base
exclusiva de cultura, porque a "massa" lhes fugirá das mãos, fracassarão quantos pensem
coordenar exclusivamente o sentimento, porque perderão o controle da "massa" na hora
de realizar. Errarão os que surgirem apenas em nome de uma teoria, de um sistema, como
serão inúteis os que encararem tão-só as realidades práticas e imediatas.
O problema brasileiroé muito mais difícil do que os da Rússia, da Itália e da Alemanha.
Os modelos de Lenine, de Mussolini e de Hitler, suas estratégias, seus processos não
valem nada no caso do Brasil.
***
A geração nova precisa estar convencida de que o "homem" que ela deverá engendrar não
poderá ser uma só coisa: um caudilho, um cabo eleitoral, um santo, um cientista, um filó-
sofo, um agitador, mas um pouco de tudo isso.
Em 1923, escrevi: "Nós somos o Curupira das mil feições. Somos crentes e incrédulos,
valentes e medrosos, inteligentes e bobos, perversos e bondosos — tal e qual o demônio
das florestas... O Curupira ou Caaporaé a própria alma nacional, na sua inquietude
permanente, renovando-se cada noite".
Se assim é a alma nacional, cumpre aos que pretenderem domá-la e conduzi-la para um
grande destino possuir as intuições profundas capazes de inspirar a articulação segura dos
múltiplos fatores que atuam no formidável complexo desses quarenta milhões de
habitantes.
Nem tudo é "luta de classe", como pensam unilateralmente os marxistas esquecidos de
que nas próprias estratificações étnicas palpitam ignorados remanescentes de
antagonismos raciais. Nem tudo é um problema de cultura e nem tudo é uma questão de
sentimento.
Quando as forças numerosas dos íntimos recessos da nacionalidade brasileira se
polarizarem numa consciência, então esta comandará a Pátria para um luminoso destino
histórico.
Neste ponto o problema será de cultura, se tomarmos a cultura como síntese de
conhecimentos, de finalidade espiritual, de compreensão de necessidades e de
modalidade sentimental.
Criar essa cultura será formar uma "elite" de onde sairão os médiuns da Nação.
O movimento da nova geração terá de conter vários movimentos simultâneos: de
coordenação dos sentimentos da "massa"; de relacionalização de necessidades materiais
comuns a todos os pontos do país; de unificação do pensamento nacional segundo um
sentido de finalidade; de disciplinação dos movimentos sociais; de libertação das forças
tradicionais agora subjugadas a um cosmopolitismo opressivo.
Não será com um pragmatismo ridículo e com medidazinhas administrativas do
empirismo governamental, nem com a mera consideração parcial dos fenômenos que
poderemos plasmar na argila amorfa de quarenta milhões de habitantes o corpo
harmonioso e forte de uma gloriosa Nação.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Despertemos a Nação, Obras Completas, vol. 10, pág. 87.
O problema da ordem
("A Ofensiva", 7.02.35, Ano II, n.° 39)
O problema da ordem não é um problema de polícia mas um problema de regime. A
desordem é um sintoma de enfermidade social. Quando um país entra em anarquia,
quando se multiplicam os distúrbios, quando proliferam os descontentamentos, os brados
de rebeldia e as atitudes de desespero, cumpre examinar o quadro social, o valor e a
disposição das forças econômicas, numa palavra, as causas da arritmia dos movimentos
sociais, das superexcitações nervosas das multidões.
Seria absurdo que, chamando-se um médico para examinar um doente que se debate no
leito e berra, perturbando o sono da família e da vizinhança, viesse o médico e receitasse
uma mordaça para abafar os gritos e uns metros de corda para amarrar o enfermo.
Esse tratamento não resolve a situação. O que se quer é que o médico descubra a causa
das dores e aplique medicamentos capazes de aliviar o doente. Muitas vezes, o caso é de
operação cirúrgica.
Assim um país. Quando lavra o comunismo, o anarquismo, a desorientação socialista,
cumpre verificar os motivos por que isso acontece, removendo-os. E não engendrar leis
repressivas, que são contraproducentes porque agravam os males, levando ao desespero.
JáLeão XIII, em meados do século passado, referindo-se às providências repressivas que
os governos adotam quando dão conta de sua própria fraqueza, lembrava que elas são as
mais indicadas como remédio à desordem, cujas causas são muito mais profundas. A
suprema autoridade da Igreja Católica diz mesmo, textualmente, que "a repressão leva ao
desespero; o desespero leva à audácia; a audácia leva aos crimes mais monstruosos".
Eis a razão porque negamos autoridade moral ao Estado Liberal Democrático e,
principalmente, ao Estado Social-Democrático, como o que temos, desde a Constituição
de 16 de Julho, para adotar leis de arrocho contra o sentido revolucionário que empolga
as massas brasileiras.
A ordem pública é, apenas, um aspecto da ordem nacional. A ordem nacional é
constituída:
a) — da ordem espiritual e moral;
b) — da ordem cultural;
c) — da ordem sentimental;
d) — da ordem econômico-financeira;
e) — da ordem social;
f) — da ordem política;
g) — da ordem militar;
h) — da ordem administrativa.
Num país onde todas essas "ordens" se encontram subvertidas, não é possível conseguir-
se a ordem pública, ainda mesmo usando-se dos meios mais violentos. Antes, pelo
contrário, os meios violentos precipitam a desordem.
A ORDEM ESPIRITUAL
Como se pode obter a "ordem espiritual"? Pela doutrinação, pela propaganda, pela
educação constante, paciente, das massas populares.
O governo está providenciando nesse sentido? Não.
Perguntamos: no caos da vida brasileira, na confusão que assinala estes dolorosos dias da
nossa história, onde estão os doutrinadores, os propagandistas, os educadores das massas?
E podemos responder com segurança: estão no Integralismo. O governo mantém cursos
populares de doutrina, em que se ensine o amor à Pátria, o respeito à Família, o culto a
Deus, em que se combatam os vícios, o comodismo, o oportunismo, o indiferentismo de
uma sociedade que apodrece a olhos vistos? Não.
Pois bem: o Integralismo mantém esses cursos em cada um de seus núcleos, arrancando a
massa popular dos erros com que a envenenam aqueles que recebem dinheiro do
capitalismo internacional para preparar o operário brasileiro à escravidão do soviet. Quer
dizer que hoje, no Brasil, a única força coordenadora das consciências no sentido da
"ordem espiritual e moral" é o Integralismo. Desafiamos quem nos aponte outra organiza-
ção semelhante, que abranja toda a extensão territorial da Pátria e congregue maior
número de brasileiros, pois somos hoje 1.000.000.
Essa ordem espiritual e moral nós a conseguimos pela criação de uma extraordinária
unidade de pensamento e de sentimento, que se exprime pelo mesmo ritmo de atitudes,
desde o Amazonas ao Rio Grande. Enquanto os governos estaduais dividem os
brasileiros, nós os unimos numa prodigiosa comunhão, que realiza o milagre estupendo
de uma única aspiração nacional. É isso o que se chama "ordem espiritual e moral",
confraternização de "todos os que, acreditando num Deus, fazem dele o fundamento
indestrutível de toda ordem social", conforme diz a Encíclica de Pio XI, cujo texto foi
compreendido pelos Integralistas tanto católicos como luteranos, presbiterianos ou espi-
ritistas, pois hoje formamos a frente única espiritual, arrebatada pela bandeira de Deus, da
Pátria e da Família, disposta a todos os sacrifícios para salvar a Nação das garras do
materialismo do século. Vivendo uma época semelhante à da invasão maometana contra o
Ocidente, repetimos, como no tempo das cruzadas, o episódio maravilhoso da união e do
bom combate em que se empenham todos os que se esforçam para salvar os valores
legítimos da civilização cristã, aperfeiçoando-os ainda mais.
A essa campanha doutrinária e mobilização das forças morais da Pátria juntamos a obra
educacional que realizamos através de nossas organizações atléticas e esportivas de
"camisas- verdes".
Por que mantemos essa organização? Já expliquei muito bem o sentido da nossa luta no
artigo que intitulei "Técnica de Sorel e Técnica de Cristo". O nosso movimento
nacionalista é muito diferente dos movimentos "fascista" e "hitlerista". Os que nos
confundem com esses movimentos nunca leram a literatura integralista. Em relação a
esse importante setor, nós o mantemos como "escola de disciplina". O "camisa-verde"
aprende a ser modesto, diligente, respeitoso, adquire um exato conceito da Autoridade;
aprende a amar a sua Pátria e a tudo sacrificar por ela, inclusive seus interesses e
vaidades pessoais; aprende a sofrer, a calar, a trabalhar sem alarde; aprende a amar seus
companheiros, que constituem hoje uma família de um milhão de irmãos. No dia em que
todos os brasileiros forem "camisas-verdes", estará resolvida a primeira questão desse
complexo problema da Ordem.
Se o governo abandona a mocidade, se ele nunca pensou em evitar que os ginasianos, os
alunos das Escolas Superiores, das Escolas Militares, das Escolas Técnicas, a juventude
das fábricas e dos campos, a própria infância das escolas de 1.° grau sejam envenenados
por professores ou propagandistas de toda a espécie, que lhes inoculam os venenos do
materialismo, do comunismo, do separatismo, do comodismo, do ceticismo, do
oportunismo grosseiro, nada mais natural que o instinto de conservação da
Nacionalidade, as vozes profundas do Brasil tivessem falado aos nossos ouvidos, de sorte
que surgíssemos no país a suprir uma insuficiência do regime liberal-democrático, pre-
servando a infância e a mocidade de males mais terríveis para uma Pátria do que a
tuberculose e a morféia.
Combate-se, ainda que deficientemente, mas combate-se a lepra, que deforma os inpíduos
fisicamente; não se combate com energia o materialismo, que deforma moralmente os ho-
mens, deformando a própria alma de uma Nação! Por isso é que o Integralismo, como
doutrina de ordem, objetivando, preliminarmente, a ordem "espiritual e moral", não é
apenas o remédio para os doentes do confusionismo e da anarquia mental, mas é, acima
de tudo, a obra de preservação dos filhos de uma geração já completamente corroída pela
terrível enfermidade do século.
Quem quiser saber o que são as nossas organizações da juventude vá ver nos núcleos
integralistas o milagre estupendo, ou assista ao filme que tem mostrado a todos os
brasileiros o prodigioso advento de uma Pátria.
A ORDEM CULTURAL
Nada mais justo, quando pela falta de base filosófica e de humanidade se abandonam,
sem defesa, os cérebros moços à corrupção de toda uma literatura de cordel, em que se
mesclam os realismos mais torpes, as dissoluções estéticas mais deletérias e os
socialismos mais charlatães, nada mais justo do que aparecer o Integralismo, como um
fenômeno de saúde nacional, despertando energias novas e orientando-as no sentido de se
atingir essa coisa fundamental como base de toda ordem nacional: a ordem cultural.
Pouco ou quase nada adianta proibir a leitura de livros corrosivos, quando não existe
nenhuma orientação no sentido de despertar nos moços o gosto pelos estudos e dar-lhes a
compreensão exata dos verdadeiros problemas nacionais. A índole do Estado Liberal-
Democrático, ou do Estado Social-Democrático, que é o que temos, não permite, sem
transgressão de seus princípios essenciais, apontar com mão forte e decidida o caminho
que toda uma juventude deve seguir, se quisermos salvar o Brasil.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Páginas de Ontem, Obras Completas, vol. 10, pág. 193.
Revolução integralista
("A Ofensiva", 17.01.35, pág. 1, Ano II, n.° 36)
Está desfraldada a bandeira da Grande Revolução. A de 30 não satisfez a angústia
brasileira. Ela não chegou mesmo a ser uma Revolução. Trouxe, no seu bojo, alguns
idealistas, alguns políticos, em luta pelos interesses hegemônicos, e teve, na História, a
projeção medíocre de um simples movimento armado.
Esse movimento não trouxe consigo uma ordem de idéias inspiradoras. Não o precedeu a
enunciação de uma doutrina que dissesse algo de novo ao país. Se a Revolução, como
afirmou Bonaparte, é uma idéia que encontra as pontas das baionetas, os desfiles marciais
de outubro levaram na sua marcha a palidez cinzenta das lâminas de aço, sem o brilho de
santelmo do pensamento renovador.
Não se pode negar, entretanto, que a chamada revolução de 30 fosse um episódio
profundamente significativo na vida nacional. Sob a cerrada floresta dos fuzis palpitava o
sofrimento de um povo. Sob o estrépito das marchas e os gritos das metralhadoras havia
um surdo rumor, que não foi ouvido, que não foi compreendido, que até hoje não foi
levado em consideração.
Secreto balbuciar de aflitivas dores, de velhas angústias, ele pedia às classes cultas, aos
que estudam, aos que se interessam pela vida nacional, que o decifrasse. A Nação sabia,
apenas, murmurar confusamente seus desejos, exprimir vagamente os seus anseios. Não
tinha o dom da palavra.
***
Revolução é o dom da Palavra das Nacionalidades. Quando uma Pátria aprende a falar,
dá-se uma Revolução.
Foi o que aconteceu agora. A revolução de 30 era apenas uma voz desconexa. O
Integralismo é uma palavra. Em 30 tínhamos a onomatopéia. Em 33, temos a proposição
com sentido lógico.
O Brasil aprendeu a falar.
Já não precisa de caudilhos. Já não quer conspirações na treva. Já dispensa o jogo dos
partidos. Já repele as tisanas do sufrágio. Já sabe que eleições de nada valem. Já rejeita os
medalhões, os protetores, os "pais da Pátria". Já não se utiliza de descontentes. Já não se
serve de pergências entre províncias para armar um movimento de quartéis. Despede os
procuradores em causa própria ou com mandatos especiais. Não lhe falem em cicerones
ou intérpretes.
As dores da Pátria manifestaram-se em gemidos, em vozes esparsas, em movimentos
reflexos. Depois, o subconsciente da Nação informou o seu consciente. As interjeições
transformaram-se em vocábulos. A Revolução começou.
Só agora. Porque Revolução é transformação de consciências, é novo ritmo social, é
mudança de mentalidade, é formação de mentalidade nova, é recomposição de energias, é
palavra que fala com nexo firme, é gesto que se anima de harmonias e se exprime em
eloqüência.
***
Esta longa escravidão ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na
gleba, para opulentar os cofres de Wall Street e da City; esta situação deprimente em face
do estrangeiro; este cosmopolitismo que nos amesquinha; estas lutas internas que nos
ensangüentam; esta aviltante propaganda comunista, que desrespeita todos os dias a
bandeira sagrada da Pátria; este tripudiar de regionalismos, em esgares separatistas, a
enfraquecer a Grande Nação; este comodismo burguês; a mi- séria em que vivem as
nossas populações sertanejas; a opressão em que se debate nosso proletariado, duas vezes
explorado, pelo patrão e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um
país de oito milhões de quilômetros quadrados e quase cinqüenta milhões de habitantes,
sem prestígio, sem crédito, corroídos de politicagem de partidos, — tudo isto nos
ensinou, ao cabo de tantas atormentações e desespero, essa coisa que os povos adquirem
com suor, com sangue, com tragédia: o dom da palavra.
Revolução não é masorca de soldados amotinados; não é rebelião de camponeses ou
proletários; não é movimento armado de burguesias oligárquicas; não é movimento de
tropas de governos provinciais; não é golpe de militares; não é a conspirata dos partidos;
não é guerra civil generalizada. Revolução é movimento de cultura e de espírito.
Transforma-se uma cultura, assume-se nova atitude espiritual, como conseqüência, abala-
se até aos alicerces os velhos costumes, destruindo tudo, para construir de novo, porque
destruir, apenas, não é Revolução.
Rompemos hoje, apoiados em milhares de camisas-verdes, que já possuem, disseminados
por todo o território da Pátria, uma nova consciência, as baterias da nossa ofensiva contra
um estado de coisas que repugna ao nosso espírito.
Não se trata de ofensiva contra um partido, contra um governo, contra uma classe; trata-
se de uma ofensiva contra uma civilização.
***
Pode ser petulante esta atitude, olhada com olhos que envelheceram em espírito e
persistem em conviver com os fantasmas do século XIX. Pode ser ridícula, considerada
por quantos já se habituaram, à força de ouvir os mestres de uma fase decadente, a
considerar os brasileiros incapazes, mental e moralmente, de assumir atitudes autônomas
no mundo. Para os blasés, para os refinados, para os eunucos e os decrépitos, seremos
ridículos, pretendendo erguer a voz brasileira no meio dos outros povos.
Para nós, porém, esta revolução integralista tem as energias sagradas do próprio espírito
da Pátria em rebeldia, em agressividade contra uma civilização que criou a luta de classe,
desorganizou as bases morais das nacionalidades e que nos amarrou, durante cem anos,
como escravos miseráveis, aos pés da mesa onde o capitalismo internacional se
banqueteia, surdo ao gemido dos povos.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Palavra Nova dos Tempos Novos, Obras Completas, vol. 7, pág. 219.
A revolução da família
("A Ofensiva", 17.01.35, pág. 1, Ano II, Nº 36)
A Revolução Francesa proclamou os direitos do Homem. A Revolução Russa, originária
da Revolução Francesa, porém antítese do inpidualismo, proclamou os direitos da Classe.
Os movimentos do moderno nacionalismo, na Itália e na Alemanha, proclamaram os
direitos do Estado.
Nós, integralistas, proclamamos o direito da Família,
O indivíduo é uma realidade? Não o negamos.
A classe é uma realidade? Também não o negamos.
O Estado é uma realidade? Não o negamos também.
Mas, agora perguntamos aos inpidualistas liberais-democráticos, aos coletivistas da
extrema e da meia-esquerda, aos estadistas, imperialistas, racistas:
— A Família nãoé uma realidade?
***
O Homem, no inpidualismo, hipertrofia-se. Ele parte de Rousseau e vai a Nietzsche.
O Homem, no coletivismo, anula-se. Depois de crescer nas democracias, vai terminar
atrofiado, liquidado, em Marx.
O Homem, no estatismo racista ou imperialista,estandardiza-se, uniformiza-se nos
movimentos de um todo que é a finalidade inumana do Estado.
Mas o Homem, no Integralismo, nãoé nem o gigante, nem o pigmeu, nem o autônomo: é
simplesmente o Homem.
A Famíliaé que dá ao Homem o senso das proporções exatas.É ela que lhe imprime o
sentido profundo de humanidade. E em razão dela que o Estado não absorve o inpíduo
nem o inpíduo absorve o Estado; que o interesse coletivo não atenta contra o interesse
inpidual, nem o interesse inpidual se sobrepõe ao interesse coletivo.
Sendo uma realidade biológica, a Famíliaé também o imperativo filosófico, o valor
sociológico, por excelência.
É no quadro da Família que o Homem adquire o senso equilibrado das perspectivas
sociais. É no seu âmbito que se possibilita a concepção harmoniosa do Inpíduo, da Classe
Profissional, da Coletividade, do Estado e da Pátria.
***
A Família é a síntese do Estado, das Classes, da Nação e da Humanidade. Ela exprime, no
seu pequeno mundo, os fenômenos do grande mundo.
A Grande Família Nacional vai buscar no pequeno núcleo o segredo de seus lineamentos
e de sua estrutura, o princípio da solidariedade, a essência da autoridade, da harmonia dos
movimentos e atitudes em que se conjugam as diferenciações dos temperamentos.
É num copo de água que se sente a íntima natureza dos rios. Os coletivistas querem beber
o rio inteiro e afogam-se. Ninguém pode sentir a Humanidade sem experimentar o gosto
amargo e doce da Pequena Humanidade, que é a Família.
Nesse pequeno mundo é que se sorve, até a última gota, o drama do mundo. Quem não
compreendeu a Família não compreendeu a Humanidade.
***
A Revolução Francesa foi a revolução do Inpíduo e cem anos depois o Inpíduo esmagou
a Humanidade. O Coletivismo
em que o Homem se dissolveu não passa de uma forma do próprio inpidualismo.
Hoje nós pensamos em restaurar o equilíbrio social criando um EstadoÉtico. Esse Estado
tem de ir buscar a sua força em alguma fonte moral. Essa fonte de moralidade do Estado
é a Família. Sem Família não há Estado Ético.
O EstadoÉticoé o que se propõe manter o equilíbrio dos grupos, a fim de assegurar
aintangibilidadedo Homem. A Família é o Grupo-Síntese que oferece ao Estado o sentido
dos lineamentos exatos.
Porque ela é, ainda, o "meio de cultura" da dignidade animal e espiritual da criatura
humana. É a limitação do horizonte para que os olhos dominem os pormenores.É a
paisagem que nos dá a compreender o panorama social.
Seria um louco o pintor que pretendessepormenorizarnuma tela gigantesca o panorama
que se desdobra aos olhos de um aviador, a dois mil metros de altura.
***
O Integralismo é, principalmente, a doutrina realista. A primeira realidade que se oferece
ao Homem, logo que ele abre os olhos da consciência para o mundo, é a realidade da
Família. Como pôde abandoná-la o Inpidualismo? Como pôde passar sobre ela o
Coletivismo?
O inpidualismo econômico e político da liberal-democracia é, pelo menos, ingênuo, na
sua concepção romântica. Mas os que dentro dele evolveram, no materialismo histórico,
com todo o pretensioso cabedal científico informador das sistematizações burguesas dos
evolucionistas e das conclusões burguesas do marxismo, esses, que blasonam de conhecer
todos os segredos da sociedade, como puderam passar, indiferentes ou agressivos, sobre a
maior das realidades?
E os que viram no Estado a realidade única não se lembraram de que o homem da
caverna, antes de se constituir em tribo, constituiu-se em família? E os racistas, que
pretendem desuniversalizar-se na concepção exclusiva dos direitos do sangue, não
repararam que no bojo das massas de caracteres antropomórficos uniformes palpita
alguma coisa que é comum a todo o gênero humano, e que é a Família?
***
Aqueles que sonharam a felicidade do Homem, acaso pensaram que há circunstâncias da
vida que não poderão jamais ser alteradas pelas tisanas dos regimes políticos? Que há
dramas de sutil delicadeza e estranho mistério, que escapam à alçada do Estado?
Os que burocratizaram o ritmo do Trabalho; os que socializaram a distribuição dos
alimentos; os que nacionalizaram a paternidade e racionalizaram a criação de homens nas
creches do Estado, transformando o homem em galináceo e substituindo o lar pelas
chocadeiras automáticas dos asilos; os que arrancaram do operário o ambiente onde ele
tinha a impressão da sua liberdade, subordinando-o ao automatismo aviltante de uma
engrenagem social em que ele deixa de ser o "sujeito" para ser simplesmente o "objeto",
acaso terão pensado que esse pobre ente humano possui além do estômago um coração?
Épossível socializar os meios de produção; nacionalizar toda a máquina econômica de um
povo; distribuir alimentos por meio de cupons, burocratizando todos os movimentos hu-
manos. Mas o que nunca se tornarápossível será, na hora da morte, ou na hora do
sofrimento moral profundo, distribuir rações de afetos, bondade por cupons, conforto
sentimental em
pacotinhos, como se as coisas do espírito pertencessem ao Estado.
***
Eis porque o Integralismo é a Revolução da Família. E os que se insurgem contra ela é
porque já não são homens, são sub-homens.
Só os homúnculos, que abdicam de sua liberdade, que aceitam de bom grado a
escravização pelo Estado, esses é que são contra o movimento integralista. São os
arbustos sem raízes, que podem ser transportados para o âmbito de um palácio ou para o
cenário trágico de um prostíbulo. Esses arbustos humanos não medram na verdadeira
classe operária, porque o operário brasileiro, cioso da liberdade e da dignidade, preza,
acima de tudo, a sua família. Esses cactos-humanos, tão despidos de nobreza como os
mandacarus são despidos de folhas, esses morféticos morais, que perderam todos os
lineamentos do Espírito, esses medram, quase sempre, nas casas elegantes, onde uma
burguesia apodrece, ou nas garçonnières, onde as almas já apodreceram.
A Família, ridicularizada, oprimida, onde se processam os dramas humanos profundos,
onde a vida ganha uma expressão misteriosa de grandeza, onde o Homem se sente
superior aos animais, onde as crises sociais repercutem e as injustiças de um regime
ferem os anseios mais delicados, a Família, "pátria do coração", como a definiu Mazzini,
é a base do nosso movimento, porque nela encontramos a presença de Deus, a dor do
Homem, o sentimento da Pátria, o princípio da autoridade, a essência da bondade, a
grandeza das abnegações e das renúncias, a fonte ética perene onde o Estado haure a sua
força e o seu esplendor.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Palavra Nova dos Tempos Novos, Obras Completas, vol. 7, pág. 233.
Plínio Salgado
Notas:
[1] Eram 150 os inscritos no Tribunal Eleitoral quando foram escritas estas páginas.
[2] Refere-se à Constituição de 1934.
[3] Entrevista concedida ao Correio da Manhã e publicada duas vezes, em 1934.
[4] Extraído de: Páginas de Ontem, Obras Completas, vol. 10. pág. 177.
Plínio Salgado
Nota:
Extraído de: Despertemos a Nação, Obras Completas, vol. 10. pág. 159.
O município
O Município é uma reunião de pessoas livres, de famílias autônomas, de propriedades de
que o homem dispõe livremente, de grupos de trabalhadores livres. Por conseguinte,
participa, como entidade política, dessas mesmas liberdades.
É autônomo em tudo o que respeita aos seus peculiares interesses. O seu governo deve
ser exercido por pessoas escolhidas livremente, em eleições honestas, que exprimam a
vontade dos habitantes locais.
Interesses comuns unem a todos os habitantes do Município, pois sendo moradores da
mesma localidade, precisam, seja qual for a sua profissão, estado civil, religião, ou outras
diferenciações, das mesmas comodidades, como sejam água, luz, esgotos, pontes,
estradas e numerosos outros serviços, de higiene, assistência, instrução, polícia.
1) PESSOA HUMANA E MUNICÍPIO
Se o Município não for autônomo e se os munícipes não escolherem livremente os seus
governantes, também estará ameaçada a liberdade das famílias, dos grupos de trabalho,
numa palavra, a própria liberdade do Homem. Mas a autonomia dos municípios pode ser
suprimida, na prática, se a organização do Estado for de tal forma que possa coagir os
munícipes, de modo que sejam obrigados a votar, por ocasião das eleições, naqueles
candidatos que os detentores do governo exigirem que sejam eleitos.
Se na distribuição das rendas públicas o Estado reservar para si uma parte tão grande que
para o Município não sobrem senão migalhas, os munícipes serão obrigados a mendigar
do Estado verbas para a construção de obras ou manutenção de serviços indispensáveis, e
o Estado poderá negar-lhes se eles não se subordinarem aos caprichos dos dirigentes
estatais. Ou então, se o Estado chamar a si tão grande número de serviços e encargos, que
não fiquem para o Município senão tarefas de reduzida importância, o grupo local passará
a ser governado diretamente pelo Estado e dependendo, em tudo, da boa ou má vontade
dos governantes estaduais, terá de amoldar a sua vontade a um conformismo deprimente,
o que destruirá toda a liberdade e dignidade das pessoas residentes no âmbito municipal.
O medo dominará a vida dos munícipes. Nenhuma voz se levantará contra os projetos,
providências, decisões que atentem contra os legítimos direitos da Família, da
Propriedade, do Grupo de Trabalho, do Homem, finalmente; porque o receio da
represália, da recusa a quaisquer dos benefícios que só do Estado poderão provir,
sufocará as mais legítimas reclamações e os mais sinceros protestos.
Não haverá, por conseguinte, direitos humanos praticamente válidos e eficazes, se o
Município não gozar de uma real autonomia, e essa real autonomia, que decide da própria
liberdade política das pessoas, não poderá efetivar-se onde o Estado exorbitar dos seus
limites, arrogando-se funções estritamente municipais, ou descriminando as rendas
públicas em prejuízo dos grupos locais, ou pondo e dispondo da base física do Município,
com desanexações do seu território ou diminuição do seu patrimônio.
Do mesmo modo como as pessoas e as famílias precisam de uma base física, ou seja, o
salário justo e a propriedade, igualmente o Município necessita de uma base física, ou
seja, uma arrecadação compatível com as exigências dos serviços locais e uma área
territorial que corresponde, para a coletividade dos munícipes, o mesmo que a
propriedade particular significa para as pessoas e para as famílias.
A autonomia municipal, logicamente, só pode ser efetiva, real, prática, se as suas rendas
compatibilizarem-se com as suas necessidades e se — eis um ponto importantíssimo —
se o seu território se conservar intangível.
2) AUTONOMIA MUNICIPAL E SOBERANIA NACIONAL
Se o território municipal, como vimos, representa para o conjunto das pessoas, famílias e
grupos de trabalhadores locais, a mesma coisa que a propriedade inpidual ou familiar
significa para o Homem e a sociedade doméstica, também é forçoso concluir que esse
território, na sua intangibilidade, configura, miniatural e eloqüentemente, a própria
Soberania da Pátria sobre a superfície que compõe o mapa da Nação. E não apenas
configura, mas justifica o domínio da Nacionalidade sobre o patrimônio territorial que
historicamente lhe compete.
Senão, vejamos. Que é a Nação? "É um conjunto de pessoas livres, de famílias livres, de
profissões livres, de propriedades livres, de municípios livres. Dessas liberdades (cuja
fonte inicial é a liberdade da pessoa humana) decorre o princípio da Soberania Nacional,
a qual não teria sentido, nem justificação jurídica ou ética, se apenas se impusesse como
arbítrio de multidões desorganizadas.
O que difere a Soberania Nacional do conceito de Império (tal como foi na dominação
romana, ou nas mais remotas dominações de Alexandre, de Ciro, de Cambises, ou
posteriormente na amplitude das monarquias dos árabes, ou Carlos V, ou Felipe II, ou
mais posteriormente na hegemonia napoleônica) é justamente a origem dos direitos sobre
povos e áreas territoriais. Aqueles Impérios exerciam seus governos e efetivavam a posse
dos territórios em conseqüência de guerras de con- quista, ou de herança, quando o
conceito de soberania se integrava na concepção exclusiva dos direitos dinásticos.
Mas o conceito da Soberania Nacional origina-se do próprio conceito de povo, cujas
raízes se embebem nos direitos legítimos do Homem, em última análise, no respeito à
intangibilidade da Pessoa Humana e dos grupos naturais, que outorgam (segundo Suarez)
poderes ao Príncipe, ou ao Estado, para governar em seu nome.
Ora, se negarmos à Pessoa Humana um dos seus direitos, logicamente negamos a todos.
Porque a Pessoa Humana, ou é livre em tudo o que for legítimo, ou sendo livre apenas em
umas coisas e não em outras, não exerce a sua liberdade em toda a plenitude; logo, não é
livre.
Vimos que o Homem para ser livre precisa que lhe facultem os meios de exprimir a sua
liberdade. Esses meios de se manifestar, como temos demonstrado, são: a família, a pro-
fissão, a propriedade, o município. Não se compreende que um homem seja livre e que a
sua família não o seja; que o homem e a família sejam livres, mas que o grupo
profissional não seja livre para defender a justa remuneração do trabalho; que o homem, a
família e o grupo profissional sejam livres, mas que as propriedades não o sejam,
impedindo-se ou dificultando-se o exercício do direito de jus, domínio e transmissão a
pessoas ou a entidades jurídicas constituídas por pessoas livres; por conseqüência lógica,
irredutível, não se compreende que sejam livres pessoas, famílias, profissões e
propriedades, isoladamente, sem que o conjunto dessas liberdades, o Município, não se
exprima também em liberdades.
Se a liberdade da Pessoa Humana só se exprime singularmente e não em conjunto de
pessoas humanas, cai por terra o princípio da soberania nacional. Se essa mesma
liberdade está impedida de manifestar-se por uma de suas formas legítimas, deixa de ser
liberdade, extinguindo-se a fonte de onde deriva a soberania da Pátria.
A Nacionalidade é um conjunto de Municípios. Nestes éque se exprime, familiarmente,
profissionalmente, socialmente, politicamente, a vontade da Nação. Se a liberdade do
Município for ferida, não haverá liberdade política, mas sim intromissão do Estado
impondo o seu arbítrio aos eleitores temerosos de represálias ou perseguições. E desde o
momento em que os munícipes aterrorizados pelas ameaças do Governo Estadual ou do
partido eventualmente dominante, não possam mais manifestar, pelo voto livre, a sua
liberdade, deixou de haver Soberania Nacional, pois esta se fundamenta na vontade geral,
e a vontade geral, por sua vez, é a soma das vontades particulares.
Impedir que o Estado exerça opressão contra a Família, o Grupo de Trabalho, a
Propriedade e o Município épremunir o Homem contra todas as formas de desrespeito
aos seus direitos.
Numa Declaração dos Direitos e Deveres do Homem deverá contar a Declaração dos
Direitos dos Municípios, isto é, do grupo local, pondo a salvo os munícipes contra toda
ingerência externa exorbitante, como por exemplo as planificações de índole totalitária,
que esmagam tudo à sua passagem, para só fazer valer o interesse de uma política
nacional desumana.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Direitos e Deveres do Homem, Obras Completas, ed. cit., vol. 5, pág.
285.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Ritmo da História, Obras Completas, vol. 16, pág. 191.
O último ocidente
Que temos feito de nossa América, desta América Latina, que se estende desde o México
até aos extremos confins da Terra do Fogo, e que é como um permanente mistério,
desafiando o seu decifrador?
A quem competirá encarar esta Esfinge, face a face, desvendando seus segredos? Que
força poderá, surdindo das próprias energias cósmicas do vasto Continente, dominar a
selva, os largos panoramas eriçados de cordilheiras e cortados pelo dédalo das imensas
bacias hidrográficas, assenhoreando-se dos complexos raciais e penetrando o enigma de
um destino histórico?
Mais do que nunca, o sonho de Bolívar resplandece na hora presente, com sua poderosa
intuição, que ainda não era a revelação total, mas que indicava, certamente, ao futuro, o
caminho a seguir.
Hoje, meditando sobre o sentido histórico de tudo o que tenho feito, sinto, no trabalho
que iniciei e em que prossigo, o reatamento de uma tendência abandonada, neste
paralelismo singular em que, cada vez mais, me identifico, da maneira mais absoluta, ao
sonho de um homem que, sem o perceber, apinhou esta nossa marcha, este anseio de
construção e de libertação dos primeiros homens do século XX, que afloraram no Brasil.
***
A História tem seus caprichos. Quando Simão Bolívar tentou a realização do Congresso
do Panamá, que traçaria os grandes lineamentos da unidade americana, o Brasil, pelo seu
caráter, pela sua índole, pelo processo de sua independência, que se operava sem solução
de continuidade no encadeamento dinástico, era um expectador, quase, do grande
movimento que também se operava ao Norte, em Nova Granada e Colômbia, irradiando-
se por toda a América Latina.
O esforço de Bolívar foi inútil. O sonho do Libertador esboroou-se nas ruínas das
pequenas repúblicas onde o caudilhismo reagia contra todo o princípio de unidade. Um
século decorre. A América do Sul e toda a América Central estão escravizadas,
convulsionadas pelas revoluções de quadros, pelos golpes de Estado, pelas ditaduras
periódicas, pelas dissensões partidárias.
Nesse ambiente de desagregação geral, intervém livremente o imperialismo econômico-
financeiro. Lutam, no teatro da nossa América, as companhias exploradoras do petróleo;
lutam os interesses mais contraditórios de latifundiários, de industriais, de banqueiros; e,
dominando tudo, o supercapitalismo de Londres e Nova York, governando as moedas de
cada um dos nossos países, decidindo sobre os próprios destinos políticos das
nacionalidades, pesa sobre nós como um permanente pesadelo.
Ao mesmo tempo, a mentalidade da América Latina sente-se assoberbada, esmagada por
uma cultura que envelhece no Mundo Antigo e, sem nenhum motivo, nós, americanos,
carregamos, como Zaratustra, sobre nossos ombros, o cadáver da Europa.
E, como a civilização litorânea, ou dos grandes centros populosos, deixou-se infiltrar
demasiadamente pelo espírito do Ocidente Europeu, sofremos o sopro de desagregação
que trás o cheiro pútrido das batalhas mortas ao céu de um outro hemisfério.
Dessa forma, todo o sentido mesquinho da dialética em que se consumiu a sociedade, a
economia, a política, no último palco da civilização ocidental, penetra o corpo moço e
virgem da América e toleramos a propaganda desenfreada do mais grosseiro materialísmo
e do espírito da decadência, que nos chegam através da literatura, da pintura, da
arquitetura, como através da política, da economia e da finança.
Que temos feito de Nossa América? Eis uma pergunta que dirijo a todos os povos deste
Continente, porque sinto, no meu esforço e na própria fatalidade da minha vida, a
continuação daquele estado de espírito que arrebatava Bolívar na aurora da
independência política dos povos americanos.
***
Que pretendia Simão Bolivar? Ele mesmo saberia a que forças desconhecidas era forçado
a obedecer? A observação de Merejkovsky sobre Napoleão, isto é, que há uma parte da
alma humana inacessível e misteriosa, que governa os homens sem que eles mesmos
percebam a razão mais profunda de suas atitudes, é realmente digna de exame. O autor da
vida de Napoleão atribui ao Imperador uma alma desconhecida, que procura explicar
dizendo que possivelmente fosse a "alma da Atlântida", ou, servindo-se da expressão
delirante de Nietzsche, a "encarnação do deus-sol". Tudo isso serve para
compreendermos a "outra alma" de Bolívar, aquela que o arrasta pelo caminho da
fatalidade.
Bolívar tem duas almas, fundidas numa só. A alma humana, a sofredora alma dilacerada,
e a alma-cósmica, a alma-continetal, a alma-da-América. Basta ver Bolívar nas duas
linhas paralelas de sua vida, até os últimos dias: a primeira, uma contínua sucessão de
aventuras vulgares em que desabafa, materialisticamente, o sentimento espiritual
recalcado; a segunda, quando sobe ao Chimborazo e desce de lá com a página
arrebatadora de uma luminosidade sideral ofuscante: é o Semi-deus, o intérprete de um
Mundo Novo, o Arcano, fulgurando nos séculos.
Ninguém foi mais infeliz do que Bolívar, com o temperamento que possuía e seu coração
generoso influenciado, principalmente, pela atmosfera romântica do seu tempo. As
felicidades mais comuns lhe foram negadas e não lhe faltou nem mesmo a traição dos que
estiveram mais próximos dele. A massa popular, porém, compreendeu-o nas grandes
apoteoses, nas aclamações como a de Caracas, na fascinação com que o acompanhava.
Sen- do um homem que tinha a visão dos grandes panoramas, à semelhança dos condores
americanos, o vôo rasteiro do caudilhismo e da politicagem não pôde compreende-lo.
Morre, vendo a América esfacelada, seu grande sonhoesboroado. Todo o seu sacrifício
inútil.
***
Inútil? Perguntamos hoje, nós, os integralistas brasileiros. E respondemos: "Não, Bolívar,
teu sonho não foi inútil. Ficou na América, para sempre, como uma indicação de rumos.
Hoje, nós o deciframos e começamos aqui, exatamente no Brasil, que foi alheio ao teu
movimento, por um capricho singular da História, uma obra que, bem examinada, é uma
continuação da tua".
Exprimir a alma da América. Tornar essa América livre, realmente livre, como a desejou
o Libertador, eis o grande ideal que nos arrebata nos dias presentes.
A nossa campanha, hoje, se realiza no sentido inverso da luta bolivariana. Naquele
tempo, urgia quebrar os elos das metrópoles. Todos os países tinham de se levantar,
preliminarmente, em armas, para cortar violentamente as amarras. Em seguida, seria o
esforço político de construção. Esse esforço político esbarrou com muitas realidades
criadas pelas distâncias que engendram os caudilhismospartidários. Tinha de encontrar
óbices no próprio sentido de desagregação que vinha no bojo das doutrinas políticas de
Rousseau. Devia chocar-se com a própria mentalidade das reduzidas "elites" formadas ao
sabor europeu. E a própria organização anterior das colônias agia como um imperativo
contra qualquer idéia de unificação, de unidade. Hoje, em nosso tempo, não devemos
principiar pelas armas, porque somos nações econômica e tecnicamente inferiores às
grandes potências. Temos de reatar o fio da política bolivariana, iniciando, porém, a
campanha por um esforço no sentido de uma unidade sentimental, cultural e econômica.
Essa unidade deve fundir todos os instintos bárbaros da América, deve sintonizar as vozes
ignoradas, aquelas mesmas que falaram aos ouvidos do Libertador. A criação dessa
unidade cultural, moral, econômica, exige uma racionalização da democracia, uma
disciplinação de liberdade, a fim de que se possa criar na América, antes de tudo, os
governos-índices, os governos fortes, os governos autoritários, mantenedores das
liberdades públicas e disciplinadores das liberdades privadas que atentam contra as
públicas e hipertrofiam o poder de opressão em inpíduos e grupos de indivíduos em
detrimento de outros inpíduos e grupos. A criação das autoridades nacionais é o primeiro
passo para a independência definitiva da América. Essa obra política deve operar-se
paralelamente à criação de uma cultura genuinamente americana. As energias do "homem
telúrico" de Keyserling devem ser captadas e dirigidas num sentido de libertação das
tiranias intelectuais do Velho Continente.
Estamos vivendo o século, por excelência, da América do Sul. O século da "intuição".
Depois de um século de experimentalismo, que se tornou tão dogmático como todos os
apriorismos por ele combatidos, chegamos ao limiar de uma Era que, sem abandonar os
métodos dedutivos, servindo-nos ao mesmo tempo dos métodos indutivos, reclamamos
para a "outra alma" humana, para os limbos ignorados onde clamam vozes impositivas,
um lugar de predominância. Não se trata de ecletismo, que corresponderia, em química, a
uma "mistura", mas trata-se de síntese, que corresponde a uma "combinação".
Neste instante do mundo, nenhum continente está mais em condições de ingressar na
Grande Era, de que o século XX é o início, como está a América do Sul. Afirma-o, com a
insuspeição de americano do Norte, o escritor Waldo Frank.
É o Continente virgem e inexplorado. São as imensidades de florestas, os panoramas
longamente abandonados, desde as épocas mais remotas. É o Continente onde se
processam as fusões, os caldeamentos de todas as raças humanas, e nós sabemos o que
são as sub-raças, como força, em "estado nascente". É o Continente da continuidade
geográfica expressiva, de mais espantosa continuidade geológica, florestal e floral. É todo
um mundo subconsciente que se conservou adormecido sob as exterioridades políticas e
literárias com que nos temos iludido durante mais de um século. É o meioétnico, trazendo
do fundo das energias autóctones, o poema misterioso que se revela na unidade da
teogonia selvagem e até na identidade das raízes vocabulares dos idiomas também em
estado nascente. É o Continente solar, que traz ao seio a linha do Equador, como um
estranho colar de luz, e sobre a cabeça o trópico de Câncer como um diadema, e ao ventre
o cinto luminoso do trópico de Capricórnio, e por isso, no recesso da alma guarda,
ignorado de si próprio, o culto dos velos Incas pelo Sol.
O berço do gênero humano, conforme lembrou Alberto Torres, é a região tropical. As
migrações das primeiras raças só se deram em conseqüência de cataclismos. Hoje, a
América Latinaé a grande região do mundo onde, por uma fatalidade que encontra a sua
explicação na aurora dos tempos, todas as raças se reúnem, como se este encontro
estivesse marcado, desde o desaparecimento da Atlântida, para o alvorecer de uma civili-
zação que não terá nada de comum com as outras.
***
Nenhum documento político é mais belo, dentre os que saíram da pena de Bolívar, do que
aquela página puramente literária que ele escreveu depois de se ter perdido num grande
êxtase nas grimpas do Chimborazo. Aquela culminância americana é a montanha da
Transfiguração. É o sentimento profundo de Deus e do Universo, da América e da
Humanidade, da Terra e do Homem.
A obra do Integralismo Brasileiro representa hoje uma fatalidade daquele sentimento, dos
instintos da terra, a revelação das vozes abafadas da massa humana do Continente.
Que temos nós, nos dias presentes, com a chamada Civilização Ocidental? Nós não
somos os veladores de cadáveres.
O penúltimo Ocidente está morto. O Oriente marcha sobre ele como o cavalo de Átila.
Nós, porém, somos o Último Ocidente. E porque somos o Último Ocidente, somos o
Primeiro Oriente. Somos um Mundo Novo. Somos a Quarta Humanidade. Somos a
Aurora dos Tempos Futuros. Somos a força da Terra. Somos, novamente, o que foram,
em Eras remotíssimas, aqueles que escreveram no céu ahistória da sua marcha, iniciada
na porta luminosa de Áries pelo roteiro zodiacal.
Sem orgulho, sem vaidades estúpidas, sem afetação, mascom espontaneidade e tão
simples, e humildes como as estrelas que brilham naturalmente, e as fontes que correm
tranqüilas, ó integralistas do Brasil, que deveis acender a chama verde no Continente
Americano, podeis dizer:
"Aristóteles pensou para nós; Cristo deu-nos a alma; César e Napoleão foram nossos
precursores; Simão Bolívar, o nosso anunciador; a América é o nosso Império; e nós
somos aquele povo longamente esperado e que inicia, quase imperceptivelmente, a sua
entrada nas Eras Humanas, porque o astro de nosso destino já resplandece no céu".
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Palavra Nova dos Tempos Novos, Obras Completas, ed. cit., vol. 7, pág.
279.
O último ocidente
Que temos feito de nossa América, desta América Latina, que se estende desde o México
até aos extremos confins da Terra do Fogo, e que é como um permanente mistério,
desafiando o seu decifrador?
A quem competirá encarar esta Esfinge, face a face, desvendando seus segredos? Que
força poderá, surdindo das próprias energias cósmicas do vasto Continente, dominar a
selva, os largos panoramas eriçados de cordilheiras e cortados pelo dédalo das imensas
bacias hidrográficas, assenhoreando-se dos complexos raciais e penetrando o enigma de
um destino histórico?
Mais do que nunca, o sonho de Bolívar resplandece na hora presente, com sua poderosa
intuição, que ainda não era a revelação total, mas que indicava, certamente, ao futuro, o
caminho a seguir.
Hoje, meditando sobre o sentido histórico de tudo o que tenho feito, sinto, no trabalho
que iniciei e em que prossigo, o reatamento de uma tendência abandonada, neste
paralelismo singular em que, cada vez mais, me identifico, da maneira mais absoluta, ao
sonho de um homem que, sem o perceber, apinhou esta nossa marcha, este anseio de
construção e de libertação dos primeiros homens do século XX, que afloraram no Brasil.
***
A História tem seus caprichos. Quando Simão Bolívar tentou a realização do Congresso
do Panamá, que traçaria os grandes lineamentos da unidade americana, o Brasil, pelo seu
caráter, pela sua índole, pelo processo de sua independência, que se operava sem solução
de continuidade no encadeamento dinástico, era um expectador, quase, do grande
movimento que também se operava ao Norte, em Nova Granada e Colômbia, irradiando-
se por toda a América Latina.
O esforço de Bolívar foi inútil. O sonho do Libertador esboroou-se nas ruínas das
pequenas repúblicas onde o caudilhismo reagia contra todo o princípio de unidade. Um
século decorre. A América do Sul e toda a América Central estão escravizadas,
convulsionadas pelas revoluções de quadros, pelos golpes de Estado, pelas ditaduras
periódicas, pelas dissensões partidárias.
Nesse ambiente de desagregação geral, intervém livremente o imperialismo econômico-
financeiro. Lutam, no teatro da nossa América, as companhias exploradoras do petróleo;
lutam os interesses mais contraditórios de latifundiários, de industriais, de banqueiros; e,
dominando tudo, o supercapitalismo de Londres e Nova York, governando as moedas de
cada um dos nossos países, decidindo sobre os próprios destinos políticos das
nacionalidades, pesa sobre nós como um permanente pesadelo.
Ao mesmo tempo, a mentalidade da América Latina sente-se assoberbada, esmagada por
uma cultura que envelhece no Mundo Antigo e, sem nenhum motivo, nós, americanos,
carregamos, como Zaratustra, sobre nossos ombros, o cadáver da Europa.
E, como a civilização litorânea, ou dos grandes centros populosos, deixou-se infiltrar
demasiadamente pelo espírito do Ocidente Europeu, sofremos o sopro de desagregação
que trás o cheiro pútrido das batalhas mortas ao céu de um outro hemisfério.
Dessa forma, todo o sentido mesquinho da dialética em que se consumiu a sociedade, a
economia, a política, no último palco da civilização ocidental, penetra o corpo moço e
virgem da América e toleramos a propaganda desenfreada do mais grosseiro materialísmo
e do espírito da decadência, que nos chegam através da literatura, da pintura, da
arquitetura, como através da política, da economia e da finança.
Que temos feito de Nossa América? Eis uma pergunta que dirijo a todos os povos deste
Continente, porque sinto, no meu esforço e na própria fatalidade da minha vida, a
continuação daquele estado de espírito que arrebatava Bolívar na aurora da
independência política dos povos americanos.
***
Que pretendia Simão Bolivar? Ele mesmo saberia a que forças desconhecidas era forçado
a obedecer? A observação de Merejkovsky sobre Napoleão, isto é, que há uma parte da
alma humana inacessível e misteriosa, que governa os homens sem que eles mesmos
percebam a razão mais profunda de suas atitudes, é realmente digna de exame. O autor da
vida de Napoleão atribui ao Imperador uma alma desconhecida, que procura explicar
dizendo que possivelmente fosse a "alma da Atlântida", ou, servindo-se da expressão
delirante de Nietzsche, a "encarnação do deus-sol". Tudo isso serve para
compreendermos a "outra alma" de Bolívar, aquela que o arrasta pelo caminho da
fatalidade.
Bolívar tem duas almas, fundidas numa só. A alma humana, a sofredora alma dilacerada,
e a alma-cósmica, a alma-continetal, a alma-da-América. Basta ver Bolívar nas duas
linhas paralelas de sua vida, até os últimos dias: a primeira, uma contínua sucessão de
aventuras vulgares em que desabafa, materialisticamente, o sentimento espiritual
recalcado; a segunda, quando sobe ao Chimborazo e desce de lá com a página
arrebatadora de uma luminosidade sideral ofuscante: é o Semi-deus, o intérprete de um
Mundo Novo, o Arcano, fulgurando nos séculos.
Ninguém foi mais infeliz do que Bolívar, com o temperamento que possuía e seu coração
generoso influenciado, principalmente, pela atmosfera romântica do seu tempo. As
felicidades mais comuns lhe foram negadas e não lhe faltou nem mesmo a traição dos que
estiveram mais próximos dele. A massa popular, porém, compreendeu-o nas grandes
apoteoses, nas aclamações como a de Caracas, na fascinação com que o acompanhava.
Sen- do um homem que tinha a visão dos grandes panoramas, à semelhança dos condores
americanos, o vôo rasteiro do caudilhismo e da politicagem não pôde compreende-lo.
Morre, vendo a América esfacelada, seu grande sonhoesboroado. Todo o seu sacrifício
inútil.
***
Inútil? Perguntamos hoje, nós, os integralistas brasileiros. E respondemos: "Não, Bolívar,
teu sonho não foi inútil. Ficou na América, para sempre, como uma indicação de rumos.
Hoje, nós o deciframos e começamos aqui, exatamente no Brasil, que foi alheio ao teu
movimento, por um capricho singular da História, uma obra que, bem examinada, é uma
continuação da tua".
Exprimir a alma da América. Tornar essa América livre, realmente livre, como a desejou
o Libertador, eis o grande ideal que nos arrebata nos dias presentes.
A nossa campanha, hoje, se realiza no sentido inverso da luta bolivariana. Naquele
tempo, urgia quebrar os elos das metrópoles. Todos os países tinham de se levantar,
preliminarmente, em armas, para cortar violentamente as amarras. Em seguida, seria o
esforço político de construção. Esse esforço político esbarrou com muitas realidades
criadas pelas distâncias que engendram os caudilhismospartidários. Tinha de encontrar
óbices no próprio sentido de desagregação que vinha no bojo das doutrinas políticas de
Rousseau. Devia chocar-se com a própria mentalidade das reduzidas "elites" formadas ao
sabor europeu. E a própria organização anterior das colônias agia como um imperativo
contra qualquer idéia de unificação, de unidade. Hoje, em nosso tempo, não devemos
principiar pelas armas, porque somos nações econômica e tecnicamente inferiores às
grandes potências. Temos de reatar o fio da política bolivariana, iniciando, porém, a
campanha por um esforço no sentido de uma unidade sentimental, cultural e econômica.
Essa unidade deve fundir todos os instintos bárbaros da América, deve sintonizar as vozes
ignoradas, aquelas mesmas que falaram aos ouvidos do Libertador. A criação dessa
unidade cultural, moral, econômica, exige uma racionalização da democracia, uma
disciplinação de liberdade, a fim de que se possa criar na América, antes de tudo, os
governos-índices, os governos fortes, os governos autoritários, mantenedores das
liberdades públicas e disciplinadores das liberdades privadas que atentam contra as
públicas e hipertrofiam o poder de opressão em inpíduos e grupos de indivíduos em
detrimento de outros inpíduos e grupos. A criação das autoridades nacionais é o primeiro
passo para a independência definitiva da América. Essa obra política deve operar-se
paralelamente à criação de uma cultura genuinamente americana. As energias do "homem
telúrico" de Keyserling devem ser captadas e dirigidas num sentido de libertação das
tiranias intelectuais do Velho Continente.
Estamos vivendo o século, por excelência, da América do Sul. O século da "intuição".
Depois de um século de experimentalismo, que se tornou tão dogmático como todos os
apriorismos por ele combatidos, chegamos ao limiar de uma Era que, sem abandonar os
métodos dedutivos, servindo-nos ao mesmo tempo dos métodos indutivos, reclamamos
para a "outra alma" humana, para os limbos ignorados onde clamam vozes impositivas,
um lugar de predominância. Não se trata de ecletismo, que corresponderia, em química, a
uma "mistura", mas trata-se de síntese, que corresponde a uma "combinação".
Neste instante do mundo, nenhum continente está mais em condições de ingressar na
Grande Era, de que o século XX é o início, como está a América do Sul. Afirma-o, com a
insuspeição de americano do Norte, o escritor Waldo Frank.
É o Continente virgem e inexplorado. São as imensidades de florestas, os panoramas
longamente abandonados, desde as épocas mais remotas. É o Continente onde se
processam as fusões, os caldeamentos de todas as raças humanas, e nós sabemos o que
são as sub-raças, como força, em "estado nascente". É o Continente da continuidade
geográfica expressiva, de mais espantosa continuidade geológica, florestal e floral. É todo
um mundo subconsciente que se conservou adormecido sob as exterioridades políticas e
literárias com que nos temos iludido durante mais de um século. É o meioétnico, trazendo
do fundo das energias autóctones, o poema misterioso que se revela na unidade da
teogonia selvagem e até na identidade das raízes vocabulares dos idiomas também em
estado nascente. É o Continente solar, que traz ao seio a linha do Equador, como um
estranho colar de luz, e sobre a cabeça o trópico de Câncer como um diadema, e ao ventre
o cinto luminoso do trópico de Capricórnio, e por isso, no recesso da alma guarda,
ignorado de si próprio, o culto dos velos Incas pelo Sol.
O berço do gênero humano, conforme lembrou Alberto Torres, é a região tropical. As
migrações das primeiras raças só se deram em conseqüência de cataclismos. Hoje, a
América Latinaé a grande região do mundo onde, por uma fatalidade que encontra a sua
explicação na aurora dos tempos, todas as raças se reúnem, como se este encontro
estivesse marcado, desde o desaparecimento da Atlântida, para o alvorecer de uma civili-
zação que não terá nada de comum com as outras.
***
Nenhum documento político é mais belo, dentre os que saíram da pena de Bolívar, do que
aquela página puramente literária que ele escreveu depois de se ter perdido num grande
êxtase nas grimpas do Chimborazo. Aquela culminância americana é a montanha da
Transfiguração. É o sentimento profundo de Deus e do Universo, da América e da
Humanidade, da Terra e do Homem.
A obra do Integralismo Brasileiro representa hoje uma fatalidade daquele sentimento, dos
instintos da terra, a revelação das vozes abafadas da massa humana do Continente.
Que temos nós, nos dias presentes, com a chamada Civilização Ocidental? Nós não
somos os veladores de cadáveres.
O penúltimo Ocidente está morto. O Oriente marcha sobre ele como o cavalo de Átila.
Nós, porém, somos o Último Ocidente. E porque somos o Último Ocidente, somos o
Primeiro Oriente. Somos um Mundo Novo. Somos a Quarta Humanidade. Somos a
Aurora dos Tempos Futuros. Somos a força da Terra. Somos, novamente, o que foram,
em Eras remotíssimas, aqueles que escreveram no céu ahistória da sua marcha, iniciada
na porta luminosa de Áries pelo roteiro zodiacal.
Sem orgulho, sem vaidades estúpidas, sem afetação, mascom espontaneidade e tão
simples, e humildes como as estrelas que brilham naturalmente, e as fontes que correm
tranqüilas, ó integralistas do Brasil, que deveis acender a chama verde no Continente
Americano, podeis dizer:
"Aristóteles pensou para nós; Cristo deu-nos a alma; César e Napoleão foram nossos
precursores; Simão Bolívar, o nosso anunciador; a América é o nosso Império; e nós
somos aquele povo longamente esperado e que inicia, quase imperceptivelmente, a sua
entrada nas Eras Humanas, porque o astro de nosso destino já resplandece no céu".
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Palavra Nova dos Tempos Novos, Obras Completas, ed. cit., vol. 7, pág.
279.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Sessão de12.06.1959, in Perfis Parlamentares18, Câmara dos
Deputados, pág. 585.
X . EPÍLOGO
Epílogo
Como resolver as questões magnas da nossa economia, das nossas finanças, do trabalho
nacional e da produção do País; e como estabelecer um largo plano com que solucionar as
necessidades básicas da nossa vida material; e como sacudir num trabalho intenso e
poderoso a máquina administrativa da nação; e como coordenar todas as forças da Pátria
numa arrancada gloriosa de realizações, se nos falta o principal, que é a honestidade
privada, a qual desaparece desastrosamente em todas as classes sociais?
E como restaurar o teor saudável da vida pessoal de cada um, se não encararmos de frente
e resolvidos a solucioná-lo, o problema do Espírito, ou melhor, o problema da Alma do
Homem?
Por isso insisto, repito, repetirei sempre, teimosamente: o problema do mundo de hoje é,
antes de tudo, espiritual, religioso.
(O Ritmo da História, pág. 144)
***
Se alguma coisa ainda pode salvar a Humanidade neste instante é o amor, a bondade, a
misericórdia, a paz de espírito.
E essa só pode ter a Nação organizada, sem "partidarismos", com sentimento de
autoridade, com respeito pelos valores intelectuais e morais, e não pelos valores dos
Bancos e pelas exibições de riquezas, de luxo e de brutalidade.
(O Sofrimento Universal, pág. 82)
***
De nada valem regimes, reformas constitucionais, medidas legais, planejamentos
econômicos, financeiros, administrativos, se não pusermos, na base de tudo, as energias
puras da Pátria representadas pelo Homem Novo.
Mas o Homem autenticamente novo há de ser livre de todos os vícios que envelheceram
os velhos e os tornaram incapazes.
Se, portanto, levantarmos a Mocidade, como fez o Infante D. Henrique, poderemos
iniciar o Grande Poema da Grande Pátria.
E um dia se poderá dizer, desta hora tristíssima que passa e da hora jubilosa que virá, as
palavras da estrofe camoneana:
Depois de procelosa tempestade,
noturna treva e sibilante vento
traz a manhã serena claridade,
esperança de porto e salvamento...
(Reconstrução do Homem, pág. 184)
***
...os que são moços pertencem à outra Humanidade que está nascendo. E que saberá, em
cada país, criar novos padrões de cultura, de moral, de direito, de administração e de
política. E criará uma nova autoridade, baseada numa concepção de origem e de
finalidade do mundo. E criará um novo processo de relações sociais e econômicas. E
criará o Estado Integralista, consultando, a um tempo, a aspiração do Infinito da criatura
humana e as contingências da vida material. O Estado que salve o homem da ditadura
cruel do materialismo finalista e da ditadura sem finalidade da plutocracia democrática e
das oligarquias políticas e financeiras. O Estado que defenda o Inpíduo contra a
Sociedade e a Sociedade contra o Inpíduo. O Estado que seja o impositor do equilíbrio, o
mediador máximo, o juiz, o orientador, o propulsor. O Estado capaz de renovar-se por si
mesmo, "de conformidade com as novas e crescentes necessidades da vida humana" [1].
O Estado que procure suas origens na própria origem do Universo e do Homem. E rume
para a finalidade suprema do Espírito, integrando nas suas próprias forças todas as forças
humanas superiores. O Estado que faça circular as produções estagnadas e arranque da
avareza acumuladora do ouro o cetro com que esta impera sobre os governos do mundo,
anestesiados pela falsa democracia.
Esse estado realizará a possível felicidade na Terra, baseada na confiança em Deus, no
amor do próximo, sem precisar excluir os valores científicos, mas subordinando a ciência
a um pensamento superior de finalidade humana.
A filosofia, a sociologia, a economia, a ciência, a literatura, as artes, a política terão no
novo Estado a sua expressão integral.
No Brasil, esse Estado será realizado um dia e marcará o início de uma era em que se
afirmará a Quarta Humanidade.
(A Quarta Humanidade, Obras Completas, Vol. 5, pág. 64).
Nota:
[1] Psicologia da revolução, de Plínio Salgado.