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Universidade Católica de Brasília


Letras
Estudos Crítico-Teóricos da Literatura III
Prof. Robson André da Silva

[A SAGA ROSIANA DO SERTÃO EM SAGARANA E CORPO DE BAILE]

Ronaldes de Melo e Souza

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Apresentação

No contexto da literatura ocidental, a saga rosiana se notabiliza pela


originalidade do estilo narrativo. Nada tem a ver com a saga heróica nem com o sistema
de parentesco, clã ou família. Não se limita a narrar a forma humana de vida, mas
abrange a vida em si mesma, que inclui todos os seres viventes, particularmente os
vegetais, os animais e os homens consorciados com a natureza telúrica, inseridos de
corpo e alma no mundo do sertão. A militância no humano e pelo humano, preconizada
pelo mito grego do homem e perpetuada pela metafísica da subjetividade, não encontra
guarida na mundividência mitopoética das obras em que se compendiam as sagas
rosianas, que são os livros simbolicamente intitulados Sagarana e Corpo de baile. O
título de Sagarana constitui a cifra do projeto poético de Guimarães Rosa, que consiste
na transformação da saga em geral na singularidade da saga do sertão. O neologismo,
que resulta da conjunção do radical germânico a que se reporta saga e do sufixo tupi -
rana (= à maneira de ou parecido com), simboliza a representação do mundo do sertão
como universal concreto, que é o universal concretizado no microcosmo sertanejo e o
regional universalizado na poeticidade da forma narrativa. Em Sagarana, a saga que se
narra se relaciona com sagen, que significa dizer o inédito ou inaudito. Não se limita,
portanto, a designar o subgênero de relatos legendários ou épicos. O dizer projetivo da
forma narrativa da saga rosiana se caracteriza por instaurar a configuração de um
mundo novo e de um homem renovado. Conseqüentemente, descarta a inflexão
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inercial do realismo, que se contenta em transmitir um significado previamente


constituído.
Corpo de baile retoma e aprofunda o projeto mitopoético de Sagarana. O
trânsito floral da linguagem em ritmo de transe, compaginado nas sagas de Sagarana,
atinge a culminância expressiva em Corpo de baile, sobretudo porque as sagas são
concebidas como bailados narrativos, que se apresentam como movimentos de uma
sinfonia. O rigor de composição do conjunto sinfônico de sagas se manifesta no
travejamento estrutural da obra. O princípio musical que preside ao arranjo harmônico
das sagas se compreende na acepção originária de Musikè téchne, a arte das musas,
singularizada pela trindade poetológica de palavra, canto e dança. Quem são as musas?
Antes de Hesíodo, elas existiam em número de três. Eram veneradas no santuário do
monte Hélicon e chamavam-se Melete, Mneme e Aoide. As três musas manifestam três
aspectos indissociáveis da natureza e da função poética. Melete propicia a disciplina

SOUZA, Ronaldes de Melo e. Apresentação. In: -. A Saga Rosiana do Sertão. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2008, p. 9-16.
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indispensável ao rigor da composição. Mneme prodigaliza o vigor da improvisação.


Aoide significa o canto, o harmonioso resultado da interação entre o rigor da
composição, dispensado por Melete, e o vigor da inspiração, suscitado por Mneme. Três
em uma ou uma em três, a trindade das musas constitui a essencialidade da poesia em
geral, que se caracteriza pela tensão harmônica do rigor racional e do vigor passional.
Na consonância com o princípio unitrino da palavra, do canto e da dança, a saga rosiana
se compõe e se faz ouvir em memória da potência musal.
No índice final da primeira edição de Corpo de baile, Guimarães Rosa reúne,
sob o título “Parábase”, as três sagas denominadas “Uma estória de amor”, “O recado
do morro” e “Cara-de-Bronze”. As sagas restantes são agrupadas pelo autor sob o título
“Gerais”, que se distinguem como sagas dos campos gerais. No estatuto calculado da
arte rosiana do contraponto musical, harmonizam-se o texto das sagas e o metatexto ou
a teoria poética das sagas narradas. O conjunto metatextual ou metaficcional inclui as
sagas que refletem sobre a natureza e a função das sagas sertanejas.
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As parábases se caracterizam como sagas que narram eventos do sertão e, ao mesmo


tempo, realizam a teoria da saga que se narra. Duas poéticas, portanto, comandam o
travejamento estrutural da obra: uma implícita, subjacente à poeticidade da forma
narrativa, e outra explícita, inserida no texto mitopoético como teoria da poesia
singularizada como saga sertaneja.
Na estrutura arquitetônica em que se compaginam as narrativas de Corpo de
baile, “O recado do morro” desempenha a função poética de parábase central, que
constitui a cesura ou bipartição estrutural do conjunto sinfônico de sagas em duas
metades simétricas e complementares. No estatuto calculado do princípio artístico, que
articula a simetria responsável pela distribuição das sagas interligadas, cada uma das
metades se compõe de duas narrativas entrelaçadas por uma parábase. Na primeira
metade, a parábase compaginada em “Uma estória de amor” trata do poder das estórias
e interliga “Campo Geral” - em que Miguilim assume o desempenho poético de
contador de estórias originais - e “Estória de Lélio e Lina”, em que a mulher Lina se
representa como encantadora de palavras. Na segunda metade, a parábase denominada
“Cara-de-Bronze”, que entrelaça “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)” e “Buriti”, constitui a
arte poética do nexo de solidariedade orgânica, que se estabelece entre a nascitividade
da natureza sertaneja e a formatividade da linguagem rosiana. Ao vínculo nupcial da
arte e da natureza em “Cara-de-Bronze” correspondem a hierofanização do sensível,
ritualmente celebrado no amor de Doralda e Soropita em “Lão-Dalalão”, e a erotização
total da natureza telúrica em “Buriti”, em que os atores humanos e os personagens
fitomórficos comparecem arrebatados pela força cósmica do Eros cosmogônico.
No estatuto calculado do coro narrativo de Corpo de baile, a saga rosiana ostenta
absoluta originalidade. Nada tem a ver com as sagas heróicas da literatura ocidental, que
se vinculam às vicissitudes dramáticas da militância no humano e pelo humano. Em
primeiro lugar, porque o movente corpo das sagas rosianas poematiza a vida em si
mesma, e não apenas a forma humana de vida. Em seguida, porque se compreende na
acepção mais chegada ao
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étimo de sagen, que significa dizer o inédito ou inaudito, revelar o encoberto. Até
mesmo palavras arcaicas se nos apresentam como se fossem pronunciadas pela primeira
vez. Finalmente, porque as sagas se interligam como poemas e metapoemas. No centro
nuclear do mundo que se representa em Corpo de baile, “O recado do morro” funciona
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como súmula poética do estatuto mitopoético do bailado narrativo, sobretudo porque


revela a origem musal da saga rosiana. Nos dois sumários, um no início e o outro no fim
da primeira edição de Corpo de baile, verifica-se que o narrador se comporta como o
arquiteto que calcula o travejamento estrutural de todo o livro e de cada uma de suas
partes. O portentoso efeito do cálculo poético se patentiza na interação do vigor da
inspiração e do rigor da composição, o que singulariza a poeticidade da forma narrativa
de Guimarães Rosa, o demiurgo do sertão.
O estatuto mitopoético do universo narrativo de Corpo de baile, que se
depreende do travejamento estrutural da obra, vem reforçado pelas epígrafes do livro,
que funcionam como súmulas metatextuais, que prefiguram o sentido genuinamente
rosiano do mundo e do homem. Das quatro epígrafes de Plotino, as duas primeiras se
referem ao mundo telúrico e as duas últimas caracterizam o homem interior em
contraposição ao homem exterior. Na iluminação epigráfica da visão plotiniana, a Terra
se concebe como centro do universo, e o homem se define pela interiorização anímica,
que lhe permite libertar-se da alienação que consiste na representação de papéis
exteriores, impostos pelas convenções sociais. Na saga rosiana, o sertão e o sertanejo
correspondem à concepção plotiniana, sobretudo porque a terra sertaneja se poematiza
como centro do universo envolto na circunferência dos Campos Gerais e o sertanejo se
representa como o homem interior, não apenas na acepção geográfica do homem do
interior, mas, acima de tudo, no sentido do homem que se desveste do disfarce do rosto
externo e se volta para dentro de si mesmo a fim de se descobrir como senhor do seu
próprio destino, livremente assumido. O sertão e o sertanejo se afeiçoam tão
intensamente que o sertão aparece como o lado de fora do sertanejo, e o sertanejo como
o lado de dentro
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do sertão. Em perfeita consonância com a natureza telúrica do sertão, que se manifesta


na profusão sonora, cromática e formal, o sertanejo se deixa arrebatar pela exuberância
de sons, cores e formas da vida encarnada nos viventes que o circundam e assume o
desempenho do dançarino preconizado pela quarta epígrafe plotiniana, que a seguir se
transcreve: “Seu ato é, pois, um ato de artista, comparável ao movimento do dansador; o
dansador é a imagem desta vida, que procede com arte; a arte da dansa dirige seus
movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente” (Plotino, En., III, 2, p. 16).
No encontro orquestral com a natureza, o sertanejo rosiano se representa como o
artista que dança em consonância com a mobilidade pura do corpo telúrico, que se
manifesta em formação e transformação, revelando-se como a unidade proliferante, que
se desdobra na multiplicidade das formas polifônicas e multicoloridas de todos os seres
viventes. O sertanejo mais sintonizado com o sertão é o narrador rosiano, que concebe a
natureza telúrica do mundo sertanejo como uma forma em movimento contínuo, como
fenômeno que advém e está sempre em transição, em vias de vir a ser, que não cessa de
manifestar-se, de aparecer e mostrar-se. Ao ritmo formativo da natureza corresponde a
plasticidade da linguagem rítmica, que se configura na construção musical da narrativa.
A forma deveniente da natureza e a forma dinâmica da linguagem mutuamente se
implicam, sobretudo porque jamais se representam conformadas no contorno externo de
uma configuração aparentemente estática e acabada, mas sempre como um dinamismo
que supõe uma energia própria, uma ânsia de realização, um desejo de metamorfose.
Além das epígrafes de Plotino, Corpo de baile contém três epígrafes de
Ruysbroeck, que se referem à pedra brilhante e preciosa, e uma extraída do Coco de
festa, do Chico Barbós, em que se decanta o eu que deseja o sumo de tudo. A pedra se
denomina berilo, uma forma pétrea ao mesmo tempo côncava e convexa. Quem olha
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através do berilo consegue captar o que parecia invisível. A consciência que se deixa
educar pela pedra adquire a ilumi-
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nação que lhe permite captar o princípio indivisível de todas as coisas. O berilo ensina
ao homem o ilumínio dos olhos do corpo e da mente, outorgando-lhe o dom de
descobrir a unidade divina que subage na multiplicidade aparentemente confusa da
realidade telúrica. Ao revelar a presença oculta da infinitude cósmica na concretude
finita do mundo do sertão, o narrador rosiano assimila a educação pela pedra chamada
de berilo. Os entes sertanejos não são realisticamente descritos, mas mitopoeticamente
revelados na contextura íntima do ser que os conforma no todo coeso do corpo de baile.
Iluminado pela lente translúcida da brilhante pedra, que lhe propicia a captação maviosa
do invisível, o narrador rosiano se torna capaz de ver o sertão como ele nunca foi visto e
de poematizá-lo na originalíssima linguagem da saga, que se deleita em pronunciar o
impronunciado e a dizer o ainda não dito nem ouvido. E o diz na maravilhosa fusão do
conhecimento erudito e da sabedoria popular, respectivamente condensados nas cifras
epigráficas de Plotino, Ruysbroeck e do trovador sertanejo da cantiga do Coco de festa.
Desde Sagarana, o narrador rosiano se reveste de múltiplas máscaras narrativas
com o deliberado propósito de realizar a mimesis dos fenômenos qualitativamente
diversos do vasto mundo sertanejo. Para Guimarães Rosa, o estilo não exprime o
homem, mas o evento que se narra. A fim de corresponder à unidade proliferante da
natureza telúrica, que não cessa de se multiplicar em formas sempre renovadas, o
narrador rosiano se comporta como figura proteiforme, que mobiliza uma prodigiosa
politropia estilística, uma mutação vertiginosa de perspectivas narrativas. A carnadura
concreta da natureza telúrica e a concretude da trama imagética da narrativa
reciprocamente se gratificam. Em “O burrinho pedrês”, o narrador assume o
desempenho do corifeu que transmuta o acontecimento único de um transporte de bois
nos eventos interligados de um coro narrativo, em que se harmonizam o ritmo da
marcha da boiada, a plangência das cantigas dos vaqueiros, o cantochão do aboio, o
mugido nostálgico dos bois, o canto dos passarinhos e o som do berrante. Em “A volta
do marido pródigo”, desdobra-se no ator emocionalmente envolvido nas ações e no
espectador ironicamente distanciado do palco
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dos eventos. Em “Sarapalha”, atua como dramaturgo, ator e espectador. Em “Duelo”,


converte-se no ironista que transforma a tragicidade potencial do evento relativo ao
adultério na comicidade dos atos falhos e das intenções tortuosas do marido cornuto.
Em “Minha gente”, que opera a cesura ou bipartição do livro em duas metades
simétricas e complementares de sagas interligadas, o narrador mobiliza toda a força
mitopoética de sua linguagem a fim de representar o movimento ascensional de sua
viagem ao sertão mineiro. Em “São Marcos”, comparece como o contemplador
fascinado pela natureza luxuriante, que se lhe apresenta como interlocutora que fala,
interpelando os sentidos de quem a contempla através de milhares de sons, cores e
formas. Em “Corpo fechado”, representa-se como mimógrafo, o escritor de mimo,
espécie de farsa que remonta aos antigos gregos. Em “Conversa de bois”, singulariza-se
como rapsodo sertanejo ao urdir a trama multiforme de várias estórias, que se ajustam
como peças tecidas de acordo com a arte da tecelagem e da costura, o que lhes assegura
a organicidade do risco do bordado. Na última saga, intitulada “A hora e vez de
Augusto Matraga”, o estatuto metamórfico do narrador rosiano atinge a culminância
poética de uma peculiaríssima politropia estilística.
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Em Sagarana e Corpo de baile, a natureza telúrica desempenha a função


privilegiada de protagonista que norteia o destino dos demais personagens. Ao realizar a
mimese da unidade proliferante da terra sertaneja, o narrador rosiano elabora uma nova
poética, que pode ser chamada de geopoética, sobretudo porque resulta da conformação
em saga da natureza telúrica do admirável mundo do sertão. Compreende-se, portanto, o
motivo por que o narrador jamais se comporta como sujeito que se abstrai do evento
narrado ou que o reduz a seu ponto de vista. Inserido de corpo e alma no mundo do
sertão, articula a dupla mediação ficcional, que se traduz na interação dialógica do
sujeito narrante (narrador) e do sujeito narrado (personagem). Na parceria narrativa dos
dois mediadores, possível se torna conciliar a consciência poetológica do narrador
erudito e a experiência imediatamente vivida dos personagens sertanejos. Ao adotar a
perspectiva dos personagens,
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o narrador nos transmite a contextura íntima de suas vivências. Os animais como os


bois, por exemplo, são narrados do ponto de vista bovino. Todos os eventos narrados
são duplamente filtrados pela consciência do narrador e a experiência dos personagens.
A narração se metamorfoseia em refletorização, na medida em que os eventos são
refletidos na percepção dos sentidos do corpo e da mente dos personagens.

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