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Manuela julian
Letras
IEL I - Viviana Bosi
Julia Murachovsky
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SÍTIO
INTRODUÇÃO
Neste poema, Claudia explora a rotina urbana, tocando com muita delicadeza em
problemáticas do mundo moderno. Os espaços e eventos são apresentados como se o sujeito
lírico estivesse percorrendo-os panoramicamente, registrando e reagindo à realidade a qual
assiste.
Sítio que é lugar, também é corpo, estrutura física de um organismo vivo, a poesia.1
1
Nadia Regina Barbosa, em sua resenha sobre Margem de Manobra, disponibilizado no site da Claudia
Roquette-Pinto
2
Idem
3
Contudo, esses versos não têm sentido de denúncia: “Claudia é uma poeta no mundo, em
estado de alerta e transformação, antenada tanto no que está fora como no que ocorre
dentro dela mesma” 3.
Ao corpo - muito presente em sua poesia - é frequentemente atribuído uma espécie de
erotismo. A autora “se coloca como mulher, fêmea, diante do enigma que é o homem e o
encontro amoroso” 4. Não se trata, entretanto, de um erotismo escancarado: ele é trabalhado
na maior sutileza, tratando da vida, do amor, e do sexo de forma inspirada.
Diversas acepções do substantivo “corpo” são adotadas nos poemas: ora ele é o corpo
do mundo, como em “E o mundo, reduzido à sua matéria,/ é oco e sério como um corpo
largado na cama” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 16). Em outros casos ele figura o corpo
humano, “O corpo,/ este odre enganador/ onde a minha juventude, finda,/ seca, sem nada a
repor” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 83). E ainda, pode remeter ao objeto onde o poema
será inscrito, isto é, o corpo como um papel em branco, pronto para receber, “Na face interna
do pulso,/ onde o sangue azula,/ mais clara ainda (macia, cheia de promessa- ao contrário da
tela vazia, do papel sem palavra)” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p.43).
O corpo que recebe as marcas do desejo, da sensualidade, e do erotismo, é comparado
a uma folha em branco que abriga as impressões do escritor, que derivam do seu próprio
corpo. Através dessa analogia, cria-se “uma vasta rede de significações que podem convergir
em uma leitura metapoética dos textos que compõem a obra” 5, ou seja, vemos na obra de
Claudia Roquette-Pinto uma estruturação multifacetada de significados.
A metapoesia pode ser considerada uma manifestação da crise literária do século XX,
que passa a levar em conta a linguagem poética por si só e a situa, muitas vezes, como tema
central da própria criação literária. Entretanto, a preocupação com o lapso latente entre as
palavras e o mundo é muito anterior: da narrativa bíblica do Gênesis decorre a ideia de que
em Deus haveria “uma unidade indissociável entre o pensamento e a palavra que, sendo
declarada, o expressa e o concretiza, assim criando o mundo” 6. Foi através do dizer, isto é,
da palavra, que o mundo foi feito; Deus concretizou a realidade declarando-a pela linguagem.
3
Elias Fajardo, em seu texto Manobras poéticas de lirismo dilacerante
4
Idem
5
Metapoesia e Erotismo em Margem de Manobra de Claudia Roquette-Pinto, de Maria Adélia Menegazzo,
Angélica Catiane da Silva Freitas e Flávio Amorim da Rocha
6
Metapoesia e crise da consciência poética, de Maria Bochicchio
4
Entretanto, o homem, diferente de Deus, não encontra mais uma unidade ontológica
entre o pensamento, a palavra e o mundo. Não há mais a possibilidade de se representar o
mundo (em sua totalidade) por meio de palavras. Palavras, estas, que também não dão conta
de traduzir perfeitamente o que se pensa.
Há reflexão sobre o processo de criação poética em vários dos poemas do livro, como
em MIRA, BRANCO, TUDO A PERDER e POETA NA CAPELA. A temática da metapoesia
presente no livro é construída com o auxílio de analogias, metáforas, e metonímias, que
fazem com que os significados atribuídos ao termo “corpo” passeiem do corpo físico ao
corpo do poema.
O erotismo, elemento essencial para caracterizar o corpo físico, surge também como
meio para se falar sobre a poesia, na medida que os desejos do corpo são comparados ao
desejo de escrever. Existe um dialogismo entre o erótico e a sedução que a poesia realiza no
poeta, como podemos observar em “Com os lábios e com a língua/ e qualquer palavra que
sirva/ para a imagem a ser descascada (...)” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 27).
A quinta obra de poesia pela escritora (quando posta ao lado de suas obras anteriores)
compõe um perfil mais ligado aos acontecimentos mundanos (como a violência urbana) além
de tratar de diversos outros temas, como a metapoesia, o amor, o erótico, e a invasão de uma
realidade violenta (e exterior) no âmago do ser humano.
O livro conta com o total de 62 poemas distribuídos em quatro blocos, sendo eles:
MARGEM DE MANOBRA, NO AGORA NA TELA, ACHADOS E PERDIDOS e OS
DIAS DE ENTÃO. Alguns destes apresentam um aspecto em comum entre seus poemas,
como o bloco NO AGORA NA TELA, que reúne poemas inspirados em artes plásticas,
trabalhando com cores e formas. Temos também o ACHADOS E PERDIDOS, que é
composto de poemas dedicados a pessoas. Trabalharemos com um poema do bloco
MARGEM DE MANOBRA, cujos textos, de alguma maneira, sempre remetem ao corpo,
7
Idem
5
seja pela enunciação direta do substantivo corpo, pela citação de alguma parte deste, ou por
metáforas, como no poema apresentado anteriormente.
OPACO
palavras como em desacordada, vaga, iluminada, borracha, chapada) e por ser a mais aberta
dentre as vogais do português brasileiro, remete à ideia de despertar, de abrir os olhos, e ao
mesmo tempo, à ideia de luz.
A claridade, contudo, parece corrompida pelo estabelecimento de uma oposição entre
os termos obscura e aurora, uma vez que este remete à claridade, à manhã, e aquele, ao
contrário, evoca a noite, o sombrio. O mesmo se dá no verso seguinte, entre luz e
desacordada, e em seguida com as construções onda iluminada e pensamento opaco, já que,
por definição, opaco é aquilo que impede a entrada da luz. Assim, se estabelece nessas
dicotomias uma cadeia de paralelismos, uma correspondência de ideias.
Tais oposições parecem aludir a um despertar imperfeito, em que se continua
“dormindo”. A caracterização como sombrio e desacordado parece relacionar-se com a
ausência das coisas de verdade, como se o sujeito fosse desacordado por não (enxergar a
necessidade de) experienciá-las e continuar a viver um cotidiano vago, trivial. O próprio
verbo vagar traz a ideia de um perambular sonâmbulo, inconsciente. Casos como este (dos
quais teremos mais exemplos adiante) demonstram a escolha meticulosa do vocabulário
empregado.
É possível estabelecer uma relação entre tal despertar defeituoso e o mundo moderno,
que dispõe de uma inibição das pulsões humanas, e faz com que o funcionamento do homem
se torne maquinal, o enclausurando em uma rotina inabalável. Afinal, como coloca Alfredo
Bosi em sua A interpretação da obra literária, “o sujeito que sente, pensa e escreve, não é
um eu abstrato, posto fora ou acima da história concreta de seus semelhantes. Ele percebe e
julga as situações e os objetos através de um prisma que foi construído e lapidado ao longo
de anos e anos de experiência social, com todas as constantes e surpresas que esse processo
veio manifestando”. Isto é, as reflexões colocadas por um sujeito lírico, estarão, de alguma
forma, vinculadas ao contexto histórico-social de seu autor.
O corpo aludido neste poema é, claramente, o corpo humano. Porém, mais do que
isto, ele é uma metonímia para todos os corpos humanos, uma vez que a questão tratada tem
aspecto pessoal (a angústia tratada parece ser sentida profundamente pelo eu lírico), mas
também global (o eu lírico parece reconhecer a situação em que vive nos outros homens e em
suas vidas). Isso fica evidente nos versos “ O que, além de mim, desperta/ no quarto vago,
vaga”, nos quais o termo além de mim indica, simultaneamente, o caráter individual e o geral
do poema, já que aponta que o sujeito e tudo mais que despertar no quarto vago e starão
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O incômodo que transparece nas obras Corola e Margem de Manobra que, de início,
circunscrevem-se apenas à violência urbana, na verdade vai muito além. Essa violência
entrelaça-se à atualidade do processo histórico-social brasileiro, à vulnerabilidade da
poesia, às carências do sujeito poético e ao próprio processo do fazer poético (...)
Nos versos “As caras de tacho e borracha/ chapadas contra o meu céu”
(ROQUETTE-PINTO, 2005, p.17) vemos uma reincidência do fonema [∫] (tacho, borracha e
chapadas), que por sua natureza fricativa, apresenta o traço [+ contínuo]. A continuidade,
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Termo empregado por Francisco Bosco no seu texto que se encontra na orelha do livro Margem de manobra
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porém, é interrompida pela palavra contra e seu fonema oclusivo [k] que, por sua vez, tem o
traço [- contínuo]. Podemos relacionar tais propriedades fonéticas ao sentido: uma repetição
exaustiva (representada por [∫]) parece ser rompida pelo surgimento de uma “barreira
protetora” (representada tanto pelo céu como pelo fonema [k]). Ou seja, quando se chocam
contra o céu, as caras de tacho e borracha e a repetição se esgotam, não encontram passagem
para continuar (tanto âmbito fonético quanto no existencial).
TUDO A PERDER
O que se ganha com tanta dureza, é oco e sério como um corpo largado na
que moeda cobre essa aridez? cama
Tufo de anêmonas na folhagem (que não se ama), consumindo.
(a imagem no poema), Eu quero os momentos de oásis,
rasgo de alegria dentro do dia, cada vez mais fugazes,
sem interesse em pedir comissão. da infância.
Tudo é comércio, Mas até as palavras embaçam,
E o mundo, reduzido à sua matéria, põem tudo a perder.
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Metapoesia e Erotismo em Margem de Manobra de Claudia Roquette-Pinto, de Maria Adélia Menegazzo,
Angélica Catiane da Silva Freitas e Flávio Amorim da Rocha
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Nos versos, “Mais um dia a atravessar do avesso,/ comendo pelas beiradas/ a papa fria
das conversas, as caras de tacho e borracha” vemos a caracterização de uma realidade
repetitiva (mais uma vez), na qual o sujeito-lírico não se encaixa e não demonstra vontade de
fazer parte (atravessar do avesso; comendo pelas beiradas), e que parece ser monótona e
hostil (papa fria das conversas; caras de tacho e borracha) .
Estes versos configuram, por meio de uma enumeração, uma metonímia que
corresponde à angústia do sujeito que habita essa realidade enfadonha. A papa fria das
conversas e as caras de tacho e borracha fazem parte dos elementos que causam o
descontentamento do sujeito e, por isso, remetem à este por uma relação de contiguidade.
Os versos seguintes (somados aos anteriores) estabelecem uma oposição entre mundo
e poesia - ou entre mundo e fantasia que a poesia da forma - semelhante àquela sugerida em
TUDO A PERDER: “Chapadas contra o meu céu/ (onde bóiam as coisas de verdade: /
espirais de fogo,/ sua boca contra a minha,/ as palavras do sonho, que perdi)”. É criada uma
outra atmosfera na qual é abandonado o tom prosaico e superficial dos versos angustiados, e é
adotado um tom quase que celeste; tudo que perturba o sujeito-lírico parece não ter acesso ao
seu céu.
Contrastando com a metonímia que constitui a agonia do sujeito poético, surge uma
nova que compõe o sonho, o anseio dessa subjetividade. Enquanto a primeira é composta de
elementos insípidos e maçantes, a segunda se constitui de elementos passionais e ardentes. A
metonímia do sonho, da mesma forma que a outra, é construída pela enumeração de partes
que integrariam a realidade almejada pelo Eu, que foi introduzida pelo termo céu. Ao
especificar meu céu, fica claro que não se trata do céu concreto, comum a todos os seres, mas
sim de uma metáfora para seu objeto de desejo.
Nesse novo ambiente construído constariam as coisas de verdade, a s quais remetem à
fortes emoções por meio de imagens como o fogo, o beijo, e o sonho. Porém, não são esses
versos que qualificam a existência do eu lírico, que apenas vivencia tais elementos em sua
fantasia; o céu não está ao seu alcance. O sujeito, então, está preso à realidade insípida
retratada na primeira parte do poema, e as palavras do sonho não poderão romper com a
esterilidade cotidiana; elas foram perdidas.
A ideia de “boiar” reforça essa interpretação: as coisas estão pairando como se fossem
meros pensamentos em sua cabeça, vontades que não foram colocadas em palavras e, muito
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É uma forma superior de linguagem capaz de mudar o mundo pelo seu efeito
transformador. Tem uma função espiritual de libertar o interior humano do vazio, do tédio,
da angústia e desespero; revela este mundo e cria outros. Na leitura da poesia os conflitos
do ser se resolvem e se transformam, metamorfoseando-os em seres evoluídos e melhores.
Sob estas perspectivas, a poesia se configura como metapoesia, na qual o artista utiliza
propriamente a linguagem para buscar a transformação literária e humana.
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Fortuna crítica e metapoesia em Claudia Roquette-Pinto
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realidades. Essa semelhança é o que sugere que as palavras do sonho compõem uma
metáfora para poesia (que faria parte das coisas de verdade e teria o poder de torná-las o mais
palpáveis possível).
No momento em que o sujeito diz não ter as palavras do sonho s urge uma
ambiguidade por estas estarem escritas apenas alguns versos acima. Poderíamos assumir que
elas teriam sido perdidas no momento que o poema se conclui, porém o poema é escrito
inteiramente com a perspectiva de tê-las fora do alcance: a realidade apresentada desde o
início é limitada ao pensamento opaco (as palavras, no momento da composição poética, já
estão no seu inalcançável céu).
Ao mesmo tempo, quando é dito “as palavras do sonho, que perdi” o poema se
encerra “inacabado”. Não havia como continuá-lo uma vez que a sua matéria (o sonho) teve
as suas palavras esgotadas. Esse momento de perda da linguagem representa a incapacidade
desta de absorver o mundo e os pensamentos plenamente, e o quão frágil é tentar compor
uma realidade fundada em apenas palavras.
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Alfredo Bosi, em Céu, inferno
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Referências:
BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São
Paulo: Ática, 1988.
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1985.
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