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A MARGEM DE MANOBRA DO REAL INCONTORNÁVEL

Manuela julian

​Letras
IEL I - Viviana Bosi
Julia Murachovsky
1

SÍTIO

O morro está pegando fogo. e vem acabar de morrer na nossa porta).


O ar incômodo, grosso, Uma penugem antagonista
faz do menor movimento um esforço, deitou nas folhas dos crisântemos
como andar sobre outra atmosfera, e vai escurecendo, dia-a-dia,
entre panos úmidos, mudos, os olhos das margaridas,
num caldo sujo de claras em neve. o coração das rosas.
Os carros, no viaduto, De madrugada,
engatam sua centopéia: muda na caixa refrigerada,
olhos acesos, suor de diesel, a carga de agulhas cai queimando
ruído motor, desespero surdo. tímpanos, pálpebras:
O sol devia estar se pondo, agora O menino brincando na varanda.
- mas como confirmar sua trajetória Dizem que ele não percebeu.
debaixo dessa cúpula de pó, De que outro modo poderia ainda
este céu invertido? ter virado o rosto: ​“Pai!
Olhar o mar não traz nenhum consolo acho que um bicho me mordeu!” ​assim
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo, que a bala varou sua cabeça?
vomitando uma espuma de bile,
(ROQUETTE-PINTO, 2005, p.11)

INTRODUÇÃO

O poema de abertura do livro ​Margem de Manobra​, da poetisa Cláudia


Roquette-Pinto, ao qual foi dado o título ​SÍTIO, tem em sua composição imagens alegóricas
de uma precisão impressionante. Tamanha é a precisão e tensão provocada por tais alegorias
que eclode no leitor um sentimento de horror. Tais características somadas ao uso do
presente-eterno (típico da Lírica) conferem ao poema uma intensidade descomunal, posto que
tal tempo verbal tem o poder de aproximar o leitor dos instantes poéticos (ao ler o poema
temos a impressão de fazer parte de sua composição ou, pelo menos, de assistir o momento
em que foi composto).
Do ponto de vista formal o poema não obedece regularidades de nenhuma ordem:
tratam-se de versos livres, organizados em apenas uma estrofe, em que não há metro
dominante, nem marcações rítmicas muito rígidas. Os únicos apoios rítmicos presentes são
alguns ecos e estruturas sintáticas recorrentes.
2

Neste poema, Claudia explora a rotina urbana, tocando com muita delicadeza em
problemáticas do mundo moderno. Os espaços e eventos são apresentados como se o sujeito
lírico estivesse percorrendo-os panoramicamente, registrando e reagindo à realidade a qual
assiste.

Sítio que é lugar, também é corpo, estrutura física de um organismo vivo, a poesia.1

O próprio espaço (e seres que integram-no) parecem compor um corpo: os carros no


viaduto compõem uma centopéia (que tem olhos e suor de diesel), o mar é animado como um
cachorro (dispõe de um corpo concreto), as flores são personificadas (têm olhos e coração),
etc. Dessa forma, todos os elementos apresentados no poema parecem ganhar um corpo, ou
compor uma parte do organismo vivo que é o corpo do mundo. Ainda assim, não deixam de
configurar uma atmosfera desarmônica, como pede a representação do mundo contemporâneo
(o poema parece ser composto como uma colcha de retalhos: partes isoladas que foram
costuradas para compor um todo dissonante).
É marcante a recorrência do tema e da palavra ​corpo ​ao longo do livro (​ que é aludido
na própria capa), o que esclarece o sentido que a poetisa concede à sua poesia: algo vital,
visceral.

Da simbiose do corpo com as palavras​ s​e faria o ato da escritura 2

Esta simbiose se evidencia mais claramente no poema ​MARGEM DE MANOBRA​, no


qual o sujeito poético se mistura às palavras, mais especificamente, às letras que compõem a
palavra ​amor. A mitologia da palavra ​amor ​nos remete a Eros, conjunto de pulsões de vida.
Porém, as pulsões de morte não deixam de também ser muito recorrentes nos poemas, como
no próprio ​SÍTIO, d​ iscutido anteriormente.
Como salienta o poeta Francisco Bosco na orelha do livro, há uma “​invasão de uma
realidade violenta e exterior aos domínios do pensamento e do poema” que se revela por
meio de assassinatos, pessoas abatidas a tiros na favela carioca, em Sarajevo, no Vietnã.

1
Nadia Regina Barbosa, em sua resenha sobre Margem de Manobra, disponibilizado no site da Claudia
Roquette-Pinto
2
Idem
3

Contudo, esses versos não têm sentido de denúncia: “Claudia é uma poeta no mundo, em
estado de alerta e transformação, antenada tanto no que está fora como no que ocorre
dentro dela mesma” 3.
Ao corpo - muito presente em sua poesia - é frequentemente atribuído uma espécie de
erotismo. A autora “s​e coloca como mulher, fêmea, diante do enigma que é o homem e o
encontro amoroso” 4. Não se trata, entretanto, de um erotismo escancarado: ele é trabalhado
na maior sutileza, tratando da vida, do amor, e do sexo de forma inspirada.
Diversas acepções do substantivo “corpo” são adotadas nos poemas: ora ele é o corpo
do mundo, como em “E o mundo, reduzido à sua matéria,/ é oco e sério como um corpo
largado na cama” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 16). Em outros casos ele figura o corpo
humano, “O corpo,/ este odre enganador/ onde a minha juventude, finda,/ seca, sem nada a
repor” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 83). E ainda, pode remeter ao objeto onde o poema
será inscrito, isto é, o corpo como um papel em branco, pronto para receber, “Na face interna
do pulso,/ onde o sangue azula,/ mais clara ainda (macia, cheia de promessa- ao contrário da
tela vazia, do papel sem palavra)” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p.43).
O corpo que recebe as marcas do desejo, da sensualidade, e do erotismo, é comparado
a uma folha em branco que abriga as impressões do escritor, que derivam do seu próprio
corpo. Através dessa analogia, cria-se “​uma vasta rede de significações que podem convergir
em uma leitura metapoética dos textos que compõem a obra” 5, ​ou seja, vemos na obra de
Claudia Roquette-Pinto uma estruturação multifacetada de significados.
A metapoesia pode ser considerada uma manifestação da crise literária do século XX,
que passa a levar em conta a linguagem poética por si só e a situa, muitas vezes, como tema
central da própria criação literária. Entretanto, a preocupação com o lapso latente entre as
palavras e o mundo é muito anterior: da narrativa bíblica do Gênesis decorre a ideia de que
em Deus haveria “​uma unidade indissociável entre o pensamento e a palavra que, sendo
declarada, o expressa e o concretiza, assim criando o mundo” 6. ​Foi através do ​dizer,​ isto é,
da palavra, que o mundo foi feito; Deus concretizou a realidade declarando-a pela linguagem​.

3
Elias Fajardo, em seu texto ​Manobras poéticas de lirismo dilacerante
4
Idem
5
​Metapoesia e Erotismo em Margem de Manobra de Claudia Roquette-Pinto,​ de Maria Adélia Menegazzo,
Angélica Catiane da Silva Freitas e Flávio Amorim da Rocha
6
​Metapoesia e crise da consciência poética,​ de Maria Bochicchio
4

Entretanto, o homem, diferente de Deus, não encontra mais uma unidade ontológica
entre o pensamento, a palavra e o mundo. Não há mais a possibilidade de se representar o
mundo (em sua totalidade) por meio de palavras. Palavras, estas, que também não dão conta
de traduzir perfeitamente o que se pensa.

O poeta vê-se, assim, confrontado entre a vontade de dizer («vaie’hi») o mundo,


ditando ou comandando as suas próprias regras, e a fragmentação de uma linguagem
incapaz de expressar a unidade perdida.7

Há reflexão sobre o processo de criação poética em vários dos poemas do livro, como
em ​MIRA, BRANCO, TUDO A PERDER e​ POETA NA CAPELA. A temática da metapoesia
presente no livro é construída com o auxílio de analogias, metáforas, e metonímias, que
fazem com que os significados atribuídos ao termo “corpo” passeiem do corpo físico ao
corpo do poema.
O erotismo, elemento essencial para caracterizar o corpo físico, surge também como
meio para se falar sobre a poesia, na medida que os desejos do corpo são comparados ao
desejo de escrever. Existe um dialogismo entre o erótico e a sedução que a poesia realiza no
poeta, como podemos observar em “Com os lábios e com a língua/ e qualquer palavra que
sirva/ para a imagem a ser descascada (...)” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 27).
A quinta obra de poesia pela escritora (quando posta ao lado de suas obras anteriores)
compõe um perfil mais ligado aos acontecimentos mundanos (como a violência urbana) além
de tratar de diversos outros temas, como a metapoesia, o amor, o erótico, e a invasão de uma
realidade violenta (e exterior) no âmago do ser humano.
O livro conta com o total de 62 poemas distribuídos em quatro blocos, sendo eles:
MARGEM DE MANOBRA, NO AGORA NA TELA, ACHADOS E PERDIDOS e OS
DIAS DE ENTÃO. Alguns destes apresentam um aspecto em comum entre seus poemas,
como o bloco NO AGORA NA TELA, que reúne poemas inspirados em artes plásticas,
trabalhando com cores e formas. Temos também o ACHADOS E PERDIDOS, que é
composto de poemas dedicados a pessoas. Trabalharemos com um poema do bloco
MARGEM DE MANOBRA, cujos textos, de alguma maneira, sempre remetem ao corpo,

7
Idem
5

seja pela enunciação direta do substantivo ​corpo,​ pela citação de alguma parte deste, ou por
metáforas, como no poema apresentado anteriormente.

UM POEMA E SUA ANÁLISE

OPACO

Obscura aurora desse corpo a papa fria das conversas,


na luz desacordada. as caras de tacho e borracha
O que, além de mim, desperta chapadas contra o meu céu
no quarto vago, vaga (onde bóiam as coisas de verdade:
entre a onda iluminada sobre a hortênsia espirais de fogo,
e o pensamento, opaco: sua boca contra a minha,
mais um dia a atravessar do avesso, as palavras do sonho, que perdi).
comendo pelas beiradas
(ROQUETTE-PINTO, 2005, p.17)

Tendo sido introduzida a poética de Claudia Roquette-Pinto pretendemos, agora,


relacionar as características apresentadas com um poema específico: OPACO. Do ponto de
vista formal, o poema se assemelha bastante ao SÍTIO já que, como ele, também é composto
por apenas uma estrofe e não segue muitas regularidades. Seus apoios rítmicos se resumem a
algumas rimas (em sua maioria toantes), ecos e paralelismos.
Constata-se o uso do presente-eterno que, conforme definido por Anatol Rosenfeld​,
cristaliza um momento permanecedor (que não se esgota), que no caso de OPACO consiste
em uma sensação que ressurge no dia a dia da subjetividade. Também verifica-se no poema
outra característica considerada típica da Lírica: a brevidade (permite maior intensidade que
não poderia ser mantida através de um texto muito extenso). A importância da brevidade
neste poema é enorme, pois é ela o que possibilita o contraste entre os dois estados de alma
expressos nele: a angústia e o anseio.
O primeiro verso, cuja composição é atribuída ao poeta Rilke, apresenta uma rima
consoante entre as palavras ​obscura e ​aurora​, que também ecoam as mesmas vogais: [a], [u],
e [o]. O eco do [a] mantém-se durante boa parte do poema (sentimos o retorno desse som em
6

palavras como em ​desacordada, vaga, iluminada, borracha, chapada​) e por ser a mais aberta
dentre as vogais do português brasileiro, remete à ideia de despertar, de abrir os olhos, e ao
mesmo tempo, à ideia de luz.
A claridade, contudo, parece corrompida pelo estabelecimento de uma oposição entre
os termos ​obscura e ​aurora​, uma vez que este remete à claridade, à manhã, e aquele, ao
contrário, evoca a noite, o sombrio. O mesmo se dá no verso seguinte, entre luz e
desacordada, e​ em seguida com as construções onda iluminada e ​pensamento opaco,​ já que,
por definição, opaco é aquilo que impede a entrada da luz. Assim, se estabelece nessas
dicotomias uma cadeia de paralelismos, uma correspondência de ideias.
Tais oposições parecem aludir a um despertar imperfeito, em que se continua
“dormindo”. A caracterização como sombrio e desacordado parece relacionar-se com a
ausência das ​coisas de verdade,​ como se o sujeito fosse desacordado por não (enxergar a
necessidade de) experienciá-las e continuar a viver um cotidiano vago, trivial. O próprio
verbo ​vagar traz a ideia de um perambular sonâmbulo, inconsciente. Casos como este (dos
quais teremos mais exemplos adiante) demonstram a escolha meticulosa do vocabulário
empregado.
É possível estabelecer uma relação entre tal despertar defeituoso e o mundo moderno,
que dispõe de uma inibição das pulsões humanas, e faz com que o funcionamento do homem
se torne maquinal, o enclausurando em uma rotina inabalável. Afinal, como coloca Alfredo
Bosi em sua ​A interpretação da obra literária, “o sujeito que sente, pensa e escreve, não é
um eu abstrato, posto fora ou acima da história concreta de seus semelhantes. Ele percebe e
julga as situações e os objetos através de um prisma que foi construído e lapidado ao longo
de anos e anos de experiência social, com todas as constantes e surpresas que esse processo
veio manifestando”. ​Isto é, as reflexões colocadas por um sujeito lírico, estarão, de alguma
forma, vinculadas ao contexto histórico-social de seu autor.
O corpo aludido neste poema é, claramente, o corpo humano. Porém, mais do que
isto, ele é uma metonímia para todos os corpos humanos, uma vez que a questão tratada tem
aspecto pessoal (a angústia tratada parece ser sentida profundamente pelo eu lírico), mas
também global (o eu lírico parece reconhecer a situação em que vive nos outros homens e em
suas vidas). Isso fica evidente nos versos “ O que, além de mim, desperta/ no quarto vago,
vaga”, nos quais o termo ​além de mim indica, simultaneamente, o caráter individual e o geral
do poema, já que aponta que o sujeito e tudo mais que despertar no ​quarto vago e​ starão
7

presos na condição apresentada: oscilando entre a ​onda iluminada (​ lapso de consciência) e o


pensamento opaco (​ estado nebuloso).
O uso de ​o que (que pode referir-se a pessoas ou objetos) ao invés de ​quem (usado
exclusivamente para referir-se a pessoas), reforça a futilidade reconhecida pelo sujeito
poético nas vidas e nos homens que o rodeiam. A expressão ​quarto vago figura uma metáfora
para uma vida oca e desprovida de algo (que o eu lírico parece buscar avidamente). Dessa
forma, OPACO, até certa medida, parece consistir em um diagnóstico feito pelo eu lírico dos
homens do seu tempo: que vivem vidas banais, alienadas, privadas das sensações mais
genuínas ​(coisas de verdade).
No sétimo verso inicia-se uma sentença extensa, de fôlego longo. Podemos relacionar
tal estrutura sintática à exaustão expressa pelo sujeito poético, ao cansaço provocado por uma
repetição, principalmente quando associada à construção ​mais um dia.​ Neste mesmo verso, as
palavras ​atravessar e ​avesso compõem rimas internas toantes e parecem ecoar uma a outra.
Juntas elas suscitam o sentido de que o sujeito não pertence - ou tem dificuldade em se
encaixar - na realidade que se encontra.
Este sentimento de não pertencimento firma uma relação com o (já citado) comentário
de Francisco Bosco, que aponta para a “​invasão de uma realidade violenta exterior ao
​ m poemas como SÍTIO, a violência é mais evidente:
domínio do pensamento e do poema”. E
são abordados assassinatos, tiroteios, que são de uma agressividade incontestável. Já no caso
de OPACO, a violência penetra o poema com maior sutileza: o sujeito lírico parece se sentir
hostilizado pela realidade que o rodeia, e se vê inserido em um​ real incontornável 8.

O incômodo que transparece nas obras Corola e Margem de Manobra que, de início,
circunscrevem-se apenas à violência urbana, na verdade vai muito além. Essa violência
entrelaça-se à atualidade do processo histórico-social brasileiro, à vulnerabilidade da
poesia, às carências do sujeito poético e ao próprio processo do fazer poético (...)

Nos versos “As caras de tacho e borracha/ chapadas contra o meu céu”
(ROQUETTE-PINTO, 2005, p.17) vemos uma reincidência do fonema [∫] (​tacho, borracha e
chapadas​), que por sua natureza fricativa, apresenta o traço [+ contínuo]. A continuidade,

8
​Termo empregado por Francisco Bosco no seu texto que se encontra na orelha do livro Margem de manobra
8

porém, é interrompida pela palavra ​contra e​ seu fonema oclusivo [k] que, por sua vez, tem o
traço [- contínuo]. Podemos relacionar tais propriedades fonéticas ao sentido: uma repetição
exaustiva (representada por [∫]) parece ser rompida pelo surgimento de uma “barreira
protetora” (representada tanto pelo céu como pelo fonema [k]). Ou seja, quando se chocam
contra o céu, ​as caras de tacho e borracha ​e a repetição se esgotam, não encontram passagem
para continuar (tanto âmbito fonético quanto no existencial).

TUDO A PERDER

O que se ganha com tanta dureza, é oco e sério como um corpo largado na
que moeda cobre essa aridez? cama
Tufo de anêmonas na folhagem (que não se ama), consumindo.
(a imagem no poema), Eu quero os momentos de oásis,
rasgo de alegria dentro do dia, cada vez mais fugazes,
sem interesse em pedir comissão. da infância.
Tudo é comércio, Mas até as palavras embaçam,
E o mundo, reduzido à sua matéria, põem tudo a perder.

(ROQUETTE-PINTO, 2005, p.16)

Em TUDO A PERDER, poema que se encontra ao lado de OPACO no livro, há uma


contraposição do mundo ao poema, sendo o primeiro caracterizado de forma negativa e o
segundo de forma positiva. Contudo, uma frustração surge no desfecho decorrente da
incapacidade das palavras de abarcar o mundo e de representarem algo que se perdeu.
Este poema expressa o posicionamento do sujeito lírico em relação ao mundo, e o
papel da poesia diante disso, que aparece como ​um rasgo de alegria dentro do dia​, como “um
meio de fugir à aridez do cotidiano” 9. Tal valor atribuído à poesia é retomado em outros
poemas, inclusive naquele nos interessa especialmente, OPACO.

9
​Metapoesia e Erotismo em Margem de Manobra de Claudia Roquette-Pinto,​ de Maria Adélia Menegazzo,
Angélica Catiane da Silva Freitas e Flávio Amorim da Rocha
9

Nos versos, “Mais um dia a atravessar do avesso,/ comendo pelas beiradas/ a papa fria
das conversas, as caras de tacho e borracha” vemos a caracterização de uma realidade
repetitiva (​mais uma vez), na qual o sujeito-lírico não se encaixa e não demonstra vontade de
fazer parte (​atravessar do avesso; comendo pelas beiradas​), e que parece ser monótona e
hostil (​papa fria das conversas; caras de tacho e borracha)​ .
Estes versos configuram, por meio de uma enumeração, uma metonímia que
corresponde à angústia do sujeito que habita essa realidade enfadonha. A papa fria das
conversas e as caras de tacho e borracha fazem parte dos elementos que causam o
descontentamento do sujeito e, por isso, remetem à este por uma relação de contiguidade.
Os versos seguintes (somados aos anteriores) estabelecem uma oposição entre mundo
e poesia - ou entre mundo e fantasia que a poesia da forma - semelhante àquela sugerida em
TUDO A PERDER: “Chapadas contra o meu céu/ (onde bóiam as coisas de verdade: /
espirais de fogo,/ sua boca contra a minha,/ as palavras do sonho, que perdi)”. É criada uma
outra atmosfera na qual é abandonado o tom prosaico e superficial dos versos angustiados, e é
adotado um tom quase que celeste; tudo que perturba o sujeito-lírico parece não ter acesso ao
seu ​céu.​
Contrastando com a metonímia que constitui a agonia do sujeito poético, surge uma
nova que compõe o sonho, o anseio dessa subjetividade. Enquanto a primeira é composta de
elementos insípidos e maçantes, a segunda se constitui de elementos passionais e ardentes. A
metonímia do sonho, da mesma forma que a outra, é construída pela enumeração de partes
que integrariam a realidade almejada pelo Eu, que foi introduzida pelo termo céu. Ao
especificar ​meu ​céu​, fica claro que não se trata do céu concreto, comum a todos os seres, mas
sim de uma metáfora para seu objeto de desejo.
Nesse novo ambiente construído constariam as ​coisas de verdade, a​ s quais remetem à
fortes emoções por meio de imagens como o fogo, o beijo, e o sonho. Porém, não são esses
versos que qualificam a existência do eu lírico, que apenas vivencia tais elementos em sua
fantasia; o céu não está ao seu alcance. O sujeito, então, está preso à realidade insípida
retratada na primeira parte do poema, e as ​palavras do sonho não poderão romper com a
esterilidade cotidiana; elas foram perdidas.
A ideia de “boiar” reforça essa interpretação: as coisas estão pairando como se fossem
meros pensamentos em sua cabeça, vontades que não foram colocadas em palavras e, muito
10

menos, realizadas. Junto ao erotismo e a metapoesia, o ​real incontornável também é um tema


de grande recorrência no livro; é a realidade que não apresenta margem de manobra.
Podemos destacar um dialogismo entre os poemas OPACO e TUDO A PERDER,
uma vez que ambos apresentam uma frustração com o mundo material e, também, com a
palavra que fracassa na tentativa de apreender fielmente tal mundo. Contudo, em OPACO,
para além da frustração pela incapacidade das palavras assimilarem a realidade, elas também
foram perdidas, deixando o sujeito apenas com o pensamento. A angústia é, portanto,
anterior: passa por não ser capaz de colocar os sonhos, as aspirações, os pensamentos em
palavras, eles apenas boiam em sua mente, opacos, neblinosos.
A detenção das palavras do sonho seria o único meio viável de aproximar o sujeito
do seu céu, c​ oncretizando-o dentro dos limites da linguagem poética. A perda dessa
linguagem criadora sucederia em um maior distanciamento entre o sujeito e a concretização
dos seus desejos (que quando restritos ao pensamento, são ainda mais abstratos) . ​Mas o que
seriam, então, essas palavras? Em sua dissertação10, Eloiza Fernanda Marani coloca o
seguinte sobre a poesia:

É uma forma superior de linguagem capaz de mudar o mundo pelo seu efeito
transformador. Tem uma função espiritual de libertar o interior humano do vazio, do tédio,
da angústia e desespero; revela este mundo e cria outros. Na leitura da poesia os conflitos
do ser se resolvem e se transformam, metamorfoseando-os em seres evoluídos e melhores.
Sob estas perspectivas, a poesia se configura como metapoesia, na qual o artista utiliza
propriamente a linguagem para buscar a transformação literária e humana.

Verificamos, do primeiro até o décimo primeiro verso do poema, o que seria a


revelação do mundo concreto, que apresenta o contexto do sujeito e sua condição quando
inserido neste. Em seguida, o poema avança postulando uma nova realidade que, apesar de
não ser realizável fora do poema, ganha vida em seu corpo e por alguns instantes supre a
carência do sujeito poético. Ou seja, são as palavras que concebem o desejo do Eu e elas
estão contempladas no próprio poema.
Estas revelam-se como a condição primeira para o sujeito alcançar o seu céu
(realidade desejada), e a poesia é caracterizada como aquilo que tem o poder de criar novas

10
​Fortuna crítica e metapoesia em Claudia Roquette-Pinto
11

realidades. Essa semelhança é o que sugere que ​as ​palavras do sonho compõem uma
metáfora para poesia (que faria parte das ​coisas de verdade e teria o poder de torná-las o mais
palpáveis possível).
No momento em que o sujeito diz não ter as palavras do sonho s​ urge uma
ambiguidade por estas estarem escritas apenas alguns versos acima. Poderíamos assumir que
elas teriam sido perdidas no momento que o poema se conclui, porém o poema é escrito
inteiramente com a perspectiva de tê-las fora do alcance: a realidade apresentada desde o
início é limitada ao pensamento opaco (as palavras, no momento da composição poética, já
estão no seu inalcançável ​céu).​
Ao mesmo tempo, quando é dito ​“as palavras do sonho, que perdi” o poema se
encerra “inacabado”. Não havia como continuá-lo uma vez que a sua matéria (o sonho) teve
as suas palavras esgotadas. Esse momento de perda da linguagem representa a incapacidade
desta de absorver o mundo e os pensamentos plenamente, e o quão frágil é tentar compor
uma realidade fundada em apenas palavras.

“(..) as palavras não são diáfanas. Ainda quando miméticas ou fortemente


expressivas, elas são densas até o limite da opacidade” 11

Mesmo dispondo-se de palavras, elas nunca estiveram completamente submetidas ao


modelar do sujeito: o homem, diferente de Deus, não é capaz de manipulá-las com a destreza
capaz de conciliar o pensamento, as palavras e o mundo. As palavras humanas são quase tão
líquidas quanto os seus pensamentos, não passam de meras abstrações. Porém, ainda que tal
unidade seja dada como inconciliável, está sugerida a existência de uma possível
ressignificação da realidade, que se daria por meio da linguagem poética.
A poesia mostra-se como a única margem de manobra possível (ainda que breve,
fantasiosa e solitária). Ela aparece como o único meio de romper com a secura do real, ainda
que essa brecha exista apenas dentro das fronteiras do seu corpo. É este o valor dado à poesia:
ela é uma onda iluminada, um lampejo de alegria dentro de uma realidade intragável, uma
lucidez efêmera prestes a se esgotar, uma estreita - porém insubstituível - margem de
manobra.

11
Alfredo Bosi, em ​Céu, inferno
12

Referências:

MENEGAZZO, Maria Adélia; DE FREITAS, Angélica Catiane da Silva; DA ROCHA,


Flávio Amorim. METAPOESIA E EROTISMO EM MARGEM DE MANOBRA DE
CLÁUDIA ROQUETTE- PINTO. ​Via Atlântica​, São Paulo, 2017. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/322016813_METAPOESIA_E_EROTISMO_EM_
MARGEM_DE_MANOBRA_DE_CLAUDIA_ROQUETE-_PINTO. Acesso em: 29 maio
2019.

COELHO, Eduardo ; FAJARDO, Elias; SANDMANN, Marcelo. ​Textos críticos​. Rio de


Janeiro, [200-]. Disponível em: http://www.claudiaroquettepinto.com.br/olhar.html. Acesso
em: 16 maio 2019

SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius. Consistência de Corola. Novos estud.-


CEBRAP​, São Paulo, n.85, p.215-235, 2009. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002009000300010&lng=e
n&nrm=iso>. Acesso em: 20 maio 2019./122

BOCHICCHIO, Maria. Metapoesia e crise da consciência poética. ​Biblos​, Coimbra, 2012.


Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/32283. Acesso em: 26 maio 2019.

BOSI, Alfredo. ​A interpretação da obra literária. ​In:​ BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São
Paulo: Ática, 1988.

ARANI, Eloiza Fernanda. Fortuna crítica e Metapoesia em Claudia Roquette-Pinto​.


2015. Dissertação (Mestrado Estudos Literários) - Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS., Três Lagoas, 2015. Disponível em:
https://posgraduacao.ufms.br/portal/trabalho-arquivos/download/2096. Acesso em: 1 jun.
2019.
13

ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. ​In:​ ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1985.
14
15
16
17

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