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"Além de das causas óbvias exteriores - desilusão com o comunismo e com a política durante
a Guerra Fria -, ficam expostas na poesia de Drummond as causas interiores, ou seja, de
caráter eminentemente poético, que, embora ocorram concomitantemente a eventos externos,
possuem dinâmica própria.".
Ademais, a percepção de Gledson, apesar de profundamente útil, entende o Autor como ferramenta
da interpretação de sua obra. Além disso, não considera a "Morte do Autor", como teorizada por
Barthes, nem em seu aspecto objetivo – eximir do significado poético quem escreve –, nem como
possível recorte interpretativo do poema Dissolução. Portanto, será nosso esforço depurá-lo dessa
forma, mas primeiro precisamos entender: o que é a "Morte do Autor"?
Na análise literária, a figura do autor há muito tempo desempenhou um papel central na compreensão
e interpretação das obras. No entanto, uma perspectiva revolucionária emerge com a teoria da "Morte
do Autor" de Roland Barthes. Para ele, o Autor é uma função moderna cujo nascimento traça os
primeiros passos de formação do capitalismo e abarca, consequentemente, a individualidade
necessária para o funcionamento desse sistema (Barthes, 1967). Porém, essa função, como
representação de individualidade e genialidade, está obsoleta, uma vez que “o escritor não pode deixar
de imitar um gesto sempre anterior, nunca original" (Barthes, 1967, p. 3), desempenhando, por fim,
o papel de um "copista". Por outro lado, ao permitirmos a existência do autor, criamos uma figura de
autoridade que exerce controle opressivo sobre as obras e seus múltiplos significados: "Dar um Autor
a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é
fechar a escrita." (Barthes, 1967, p. 4). Em resumo, a teoria da morte do autor busca libertar a
interpretação literária das limitações impostas pela figura do autor, incentivando uma abordagem mais
aberta, plural e dinâmica na compreensão das obras.
Compreendendo o panorama em que as interpretações do poema Dissolução são feitas e o conceito
de Morte do Autor, temos então as ferramentas necessárias para analisarmos diretamente o escrito de
Drummond e extrairmos dele a intertextualidade possível com o conceito de Roland Barthes:
"Dissolução"
Para analisarmos a poesia, sobretudo sob o prisma da morte do autor, primeiro precisamos abrir
caminhos semânticos para interpretarmos essa como uma poesia metalinguística, que fala não
somente sobre o fazer poético, mas também sobre a relação do Autor com o eu-lírico e, por fim, de
ambos com a Poesia. Começando pelo título - que joga luz sobre o tema que circunda todo o
poema: Dissolução -, podemos interpretar que o eu-lírico parece reiteradamente se "dissolver" entre
os versos, como podemos ver, da mesma forma, no trecho ‘E nem destaco minha pele / da
confluente escuridão.’, então o eu-lírico (e, por sua vez, talvez o próprio autor) perdem a
individualidade e se mesclam à escuridão.
Em consequência, a ‘escuridão’, a ‘noite’, a imagem do fim do dia (‘pois que aprouve ao dia a
findar’) e o ‘vazio’, podem ser lidos no poema ‘Dissolução’ como metáforas (que são comumente
associadas) à morte e, por resultado, ao fim do desejo, dos impulsos ou mesmo ao fim da
individualidade - a mesma individualidade que se mostra basilar para sustentar o conceito de Autor
-. Além disso, podem simultaneamente representar uma "emancipação sensorial" - o fim do dia ou
da luz como o fim da clareza, do entendimento pleno sobre as coisas e, portanto, sobre o "espaço"
em que atua o eu-lírico: o próprio texto.
Desse modo, ao expressar repetidamente sua passividade perante o fato de "dissolver-se" e a partir
da sua "emancipação sensorial", nos é demonstrada a sensação de conformidade ao acaso e de perda
de controle, criando, assim, um ‘vácuo’ dentro da poesia. Durante o texto, a figura que nos conduz
parece resignada e gradativamente omissa.
A partir deste ‘vácuo’ deixado pelo eu-lírico, ‘Povoações surgem’, como se surgissem seres outros,
que podem simbolizar pluralidade ou dissonância dentro da poesia, assim, concordando com o
sentido da segunda estrofe, em que a poética formada pelas palavras de Drummond remete ao
surgimento de conceitos frescos, novos objetos ou, por si, novidades (‘coisas não figuradas’) e ao
nascimento – ou renascimento, tendo em vista a conotação funesta da primeira estrofe – (‘aceito que
brote’), como de uma planta, de uma flor ou de novas ideações.
Desse modo, cria-se um sistema interno ao poema em que o eu-lírico se dissolve e, ao mesmo
tempo, abre espaço para novas ideações (as do leitor) – assemelhando-se muito ao que Barthes
descreve como "Morte do Autor": "sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso
inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor" (Barthes, 1967,
p. 5).
A rejeição da imaginação e da palavra, como vista em: ‘Imaginação, falsa demente, / já te desprezo.
E tu, palavra. / No mundo, perene trânsito, / calamo-nos. / E sem alma, corpo, és suave.’ pode ser
entendida como uma provocação ao leitor para explorar o poema sem depender de interpretações
predefinidas. O ‘calamo-nos’ pode ser interpretado como um convite ao silêncio e à contemplação
individual, enquanto a oposição entre ‘corpo’ e ‘alma’ pode ser vista como uma expressão poética
da experiência sensorial sem a necessidade da busca de algo essencial, de um significado
transcendental – a poesia pelo que ela é, sem a imposição de um intermédio (o autor) que a molde.
Essa perspectiva alinha-se com a ideia de Roland Barthes, que afirma: "A linguagem que fala, não é
o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia [...], atingir aquele ponto em que só a
linguagem atua, «performa», e não «eu»" (Barthes, 1967, p. 2). Então, na trama intrincada de
"Dissolução, a linguagem habilmente empregada por Drummond, torna-se um elemento ambíguo,
onde a dualidade entre corpo e alma se desenha. Dessa forma, é possível criarmos paralelos
semânticos entre os textos de dos dois autores, Barthes e Drummond, em que o ‘corpo’ performaria
valor semelhante à ‘linguagem’ – ao que está escrito – e a ‘alma’ ao autor ou ao ‘eu’. Portanto, a
partir desses paralelos, é possível denotar, no poema, o direcionamento para uma experiência mais
direta com a linguagem, convidando o leitor a mergulhar na poesia, analisando suas palavras, sua
forma – seu "corpo" – sem as amarras de interpretações limitadoras impostas pelo autor.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2003.
__________. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 2010
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Lisboa: Edições 70, 1970
__________. A Morte do Autor. Aspen, 1967
LUCENA, Mônica Jácome. Ressentimento e Melancolia na Poética Drummondiana de Claro
Enigma. Brasília, 2013. 153p. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Instituto de
Letras, Departamento de Teoria Literária e Literaturas.
GLEDSON, John. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.