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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Escola De Belas Artes


Graduação em Artes Visuais
Estética I - Segunda e Quarta; 10:40 às 12:30

João Mateus Sena Gomes Borges

UMA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL DO POEMA DISSOLUÇÃO DE CARLOS


DRUMMOND DE ANDRADE SOB O PRISMA DO CONCEITO DE MORTE DO AUTOR
O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade foi e é um dos principais escritores do país e
encabeçou, junto a outros nomes, o movimento modernista que iria, posteriormente, se tornar a
primeira escola literária fundada no Brasil. A importância de Drummond é indubitável e, por isso,
seus escritos são copiosamente interpretados e relidos por outros artistas a partir de diversos prismas
que - pode-se dizer - trazem novas roupagens às suas obras. Em consonante à essa importância, é
presumível que grande parte de seus escritos possuem interpretações clássicas e muito aceitas tanto
no meio artístico quanto no meio acadêmico. Em específico, a obra Claro Enigma, assim como seu
poema de abertura "Dissolução", foram diversas vezes compreendidos a partir de um momento
pessoal de Drummond ao vislumbrar o período histórico que vivia - o da guerra-fria -, em que o poeta
simultaneamente apresentaria um eu-lírico introspectivo, autobiográfico e amargurado, prova disso é
o que diz John Gledson em seu livro Influências e Impasses: Drummond e alguns contemporâneos:

"Além de das causas óbvias exteriores - desilusão com o comunismo e com a política durante
a Guerra Fria -, ficam expostas na poesia de Drummond as causas interiores, ou seja, de
caráter eminentemente poético, que, embora ocorram concomitantemente a eventos externos,
possuem dinâmica própria.".

Ademais, a percepção de Gledson, apesar de profundamente útil, entende o Autor como ferramenta
da interpretação de sua obra. Além disso, não considera a "Morte do Autor", como teorizada por
Barthes, nem em seu aspecto objetivo – eximir do significado poético quem escreve –, nem como
possível recorte interpretativo do poema Dissolução. Portanto, será nosso esforço depurá-lo dessa
forma, mas primeiro precisamos entender: o que é a "Morte do Autor"?

Na análise literária, a figura do autor há muito tempo desempenhou um papel central na compreensão
e interpretação das obras. No entanto, uma perspectiva revolucionária emerge com a teoria da "Morte
do Autor" de Roland Barthes. Para ele, o Autor é uma função moderna cujo nascimento traça os
primeiros passos de formação do capitalismo e abarca, consequentemente, a individualidade
necessária para o funcionamento desse sistema (Barthes, 1967). Porém, essa função, como
representação de individualidade e genialidade, está obsoleta, uma vez que “o escritor não pode deixar
de imitar um gesto sempre anterior, nunca original" (Barthes, 1967, p. 3), desempenhando, por fim,
o papel de um "copista". Por outro lado, ao permitirmos a existência do autor, criamos uma figura de
autoridade que exerce controle opressivo sobre as obras e seus múltiplos significados: "Dar um Autor
a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é
fechar a escrita." (Barthes, 1967, p. 4). Em resumo, a teoria da morte do autor busca libertar a
interpretação literária das limitações impostas pela figura do autor, incentivando uma abordagem mais
aberta, plural e dinâmica na compreensão das obras.
Compreendendo o panorama em que as interpretações do poema Dissolução são feitas e o conceito
de Morte do Autor, temos então as ferramentas necessárias para analisarmos diretamente o escrito de
Drummond e extrairmos dele a intertextualidade possível com o conceito de Roland Barthes:

"Dissolução"

Escurece, e não me seduz


tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

E com ela aceito que brote


uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Vazio de quanto amávamos,


mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?

E nem destaco minha pele


da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.

E aquele agressivo espírito


que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.

Vai durar mil anos, ou


extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.

Imaginação, falsa demente,


já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
(ANDRADE, 2010, p.23)

Para analisarmos a poesia, sobretudo sob o prisma da morte do autor, primeiro precisamos abrir
caminhos semânticos para interpretarmos essa como uma poesia metalinguística, que fala não
somente sobre o fazer poético, mas também sobre a relação do Autor com o eu-lírico e, por fim, de
ambos com a Poesia. Começando pelo título - que joga luz sobre o tema que circunda todo o
poema: Dissolução -, podemos interpretar que o eu-lírico parece reiteradamente se dissolver entre
os versos, como podemos ver, da mesma forma, no trecho "E nem destaco minha pele / da
confluente escuridão.", então o eu-lírico (e, por sua vez, talvez o próprio autor) perdem a
individualidade e se mesclam à escuridão.
Em consequência, a "escuridão", a "noite", a imagem do fim do dia ("pois que aprouve ao dia a
findar") e o "vazio", podem ser lidos no poema "Dissolução" como metáforas (que são comumente
associadas) à morte e, por resultado, ao fim do desejo, dos impulsos ou mesmo ao fim da
individualidade - a mesma individualidade que se mostra basilar para sustentar o conceito de Autor
-. Além disso, podem simultaneamente representar uma "emancipação sensorial" - o fim do dia ou
da luz como o fim da clareza, do entendimento pleno sobre as coisas e, portanto, sobre o "espaço"
em que atua o eu-lírico: o próprio texto.

Desse modo, ao expressar repetidamente sua passividade perante o fato de "dissolver-se" e a partir
da sua "emancipação sensorial", nos é demonstrada a sensação de conformidade ao acaso e de perda
de controle, criando, assim, um "vácuo" dentro da poesia. Durante o texto, a figura que nos conduz
parece resignada e gradativamente omissa.

A partir deste "vácuo" deixado pelo eu-lírico, "Povoações surgem", como se surgissem seres outros,
que podem simbolizar pluralidade ou dissonância dentro da poesia, assim, concordando com o
sentido da segunda estrofe, em que a poética formada pelas palavras de Drummond remete ao
surgimento de conceitos frescos, novos objetos ou, por si, novidades ("coisas não figuradas") e ao
nascimento – ou renascimento, tendo em vista a conotação funesta da primeira estrofe – ("aceito
que brote"), como de uma planta, de uma flor ou de novas ideações.

Desse modo, cria-se um sistema interno ao poema em que o eu-lírico se dissolve e, ao mesmo
tempo, abre espaço para novas ideações (as do leitor) – assemelhando-se muito ao que Barthes
descreve como "Morte do Autor": "sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso
inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor" (Barthes, 1967,
p. 5).

A rejeição da imaginação e da palavra, como vista em: "Imaginação, falsa demente, / já te desprezo.
E tu, palavra. / No mundo, perene trânsito, / calamo-nos. / E sem alma, corpo, és suave." pode ser
entendida como uma provocação ao leitor para explorar o poema sem depender de interpretações
predefinidas. O "calamo-nos" pode ser interpretado como um convite ao silêncio e à contemplação
individual, enquanto a oposição entre "corpo" e "alma" pode ser vista como uma expressão poética
da experiência sensorial sem a necessidade da busca de algo essencial, de um significado
transcendental – a poesia pelo que ela é, sem a imposição de um intermédio (o autor) que a molde.
Essa perspectiva alinha-se com a ideia de Roland Barthes, que afirma: "A linguagem que fala, não é
o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia [...], atingir aquele ponto em que só a
linguagem atua, «performa», e não «eu»" (Barthes, 1967, p. 2). Dessa forma, relacionando o
"corpo" à linguagem – ao que está escrito – e a "alma" ao autor ou ao "eu", é possível denotar, no
poema, o direcionamento para uma experiência mais direta com a linguagem, convidando o leitor a
mergulhar na poesia sem as amarras de interpretações limitadoras impostas pelo "autor".

Em suma, o eu-lírico (ou propriamente Drummond), em Dissolução – poema de abertura de Claro


Enigma –, parece estar dando as "boas-vindas" ao leitor, representando através de sua morte –
através das metáforas de noite e escuridão – a própria ausência ou resignação, entregando este e os
próximos poemas de Claro enigma a quem lê e dando-nos o poder de erigir o próprio entendimento
sobre sua obra. Finalmente, a morte simbólica do eu-lírico em "Dissolução" não representa um
ponto final, mas se desdobra como um convite à contínua ressignificação e à ressurreição
interpretativa por nossa parte. Ao mergulhar na imprevisibilidade e no vácuo cuidadosamente
tecidos, Drummond sugere que a essência autêntica da poesia não se fecha nas conclusões dele
próprio – o autor – ou do eu-lírico, mas, ao contrário, floresce na capacidade intrínseca de cada
leitor de reinventar caminhos semânticos, permitindo que, nesta jornada única, descubramos e
ressignifiquemos de maneira contínua o universo singular de Claro Enigma, em harmonia com a
visão proposta por Roland Barthes na "Morte do Autor".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2003.
__________. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 2010
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Lisboa: Edições 70, 1970
__________. A Morte do Autor. Aspen, 1967
LUCENA, Mônica Jácome. Ressentimento e Melancolia na Poética Drummondiana de Claro
Enigma. Brasília, 2013. 153p. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Instituto de
Letras, Departamento de Teoria Literária e Literaturas.
GLEDSON, John. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

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