Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Raul Antelo
3
IDEM - “Face au cinéma et à l’Histoire: à propos de Jean-Luc Godard”, Le Monde (Livres), Paris, 6
out. 1995, p. X–XI.
4
BADIOU, Alain – La relation énigmatique entre philosophie et politique. Paris, Germina, 2011, p.87.
Badiou cita "Notes toward a Supreme Fiction"(1942): "It is possible, possible, possible. It must / Be
possible. It must be that in time/ The real will from its crude compoundings come".
5
O fragmento diz: "Souris aussi photographe mais si ta main tremble trop, laisse là ton appareil et prends
un pinceau, le tremblement de ta main passera pour un excès de sensibilité mais que tu photographies la
plus belle femme du monde ou bien une pomme de terre, tu feras le même geste. Consolation: la plume
est plus puissante que l'épée, l'encre plus indélébile que le sang, et le noircissement d'une plaque d'argent
par la lumière nous sert couramment à confirmer ces proverbes".
a ideia serve ainda para argumentar que o fotógrafo deve trabalhar a placa
sensível com a mesma inexorável firmeza com que o poeta serve-se da
linguagem para agenciar a arguta mas não menos velada orquestração de
seus metros poéticos. Equidistante do realismo e do lirismo, ele não nos dá,
nos seus poemas, nem quadros, nem abstrações, nem documentos, mas
fotografias, isto é, sonhos de um gesto.
tem a impressão de que "êsses versos, não sòmente pela fluidez das
palavras, mas também pela supressão de qualquer elemento de pontuação,
se acham, como o quarto de Manuel Bandeira, 'intactos, suspensos no ar'”.
Refere-se ao quarto evocado por Bandeira na "Ultima canção do beco". Já
em Apollinaire, a ausência de pontuação não lhe sugere "a flutuação do
verso na atmosfera, mas antes uma sensação de arrastamento na terra, de
doloroso manquejar de quem não sabe ou não quer libertar-se da sua prisão
humana". E Dummond cita, a esse respeito, um poema de Alcools (1918):
O poeta conclui:
8
IDEM – “Pontuação e poesia - Caderno de Notas”. Confissões de Minas. Rio de Janeiro, America=Edit.,
1944, p.235-236.
9
APOLLINAIRE, Guillaume – “A casa dos mortos”. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – Poesia
traduzida. Org. Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, 7Letras, Cosac Naify, 2011, p.65.
dispositivos com que trabalha. "Acredito que ele também fará sua esta
outra palavra de Man Ray: la Photographie qui console".10
Mas qual é o consolo da poesia que entretanto dói? Para responder à
pergunta precisamos relembrar que Man Ray estampou o ensaio
relembrado por Drummond, "La Photographie qui console" (com quatro
desenhos dele), na revista de Gualtieri di San Lazzaro, XXe Siècle (a.1, nº
2, Paris, 1938), e além disso, escreveu um artigo "Sur le réalisme
photographique" (Cahiers d'art, X, nº 5-6, Paris, 1935), mais a plaquette La
photographie n'est pas l'art (Prefácio de André Breton. Paris, G.L.M.,
1937). Mas a essa sequência de textos, caberia acrescentar ainda uma
fotografia de Man Ray, Sculpture mouvante ou La France (1920). Ela
compõe um tríptico muito sintomático com outras duas, de Josef Albers e
de Mário de Andrade.
Com efeito, há uma fotografia de Josef Albers, ainda do período alemão,
sem título (Roupa numa corda), circa 1929, absolutamente coincidente com
uma outra, anterior, tirada por Mário de Andrade, em sua viagem
etnográfica pelo nordeste brasileiro, a partir da qual redigiria não apenas
Macunaíma (1928), mas também seu livro póstumo O turista aprendiz11. A
foto de Mário de Andrade tem como legenda: “Roupas freudianas
/Fortaleza, 5-VII-27/Fotografia refoulenta /Refoulement / Sol l diaf. l” 12.
As formas das três se equivalem; no entanto, o sentido difere de uma à
outra. Manifesta-se, por exemplo, nesta última, de Mário de Andrade, a
relevância e o estímulo de um certo debate, ainda incipiente, acerca da
formação cultural do Brasil na Colônia, que seria decorrência de uma perda
de objeto. Tentemos reconstrui-lo.
Concretamente, numa conferência na Sorbonne de 1923, Oswald de
Andrade já se referira à memória e saudade sexual da mulher branca, que
os primeiros navegadores deixaram em Portugal. Por essa mesma época,
final dos anos 20, Mário de Andrade lê o tratado de psicanálise na arte de
Charles Baudouin13, que define a sublimação (refoulement) como
deslocamento, às vezes muito carregado e fracamente inibido, que, como
ato sobredeterminado, atua sobre umas tantas outras vias de reação que
possuem por sua vez valores espirituais, morais ou sociais dominantes.
Baudouin conclui que a arte, enquanto refoulement, teria a função de
realizar ou estimular sublimações.
As roupas freudianas são refoulentas: observe-se que, no neologismo de
Mário de Andrade, entram, através do sufixo -lentas, a noção de suspensão
10
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – “O poeta e a fotografia”. Correio da manhã, Rio de Janeiro,
20 jul. 1947, mais tarde incorporado a Passeios na ilha. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1952,
p.204-205.
11
ANDRADE, Mário de - O turista aprendiz. Ed. Telê Ancona López e Tatiana Longo Figueiredo.
Brasília, IPHAN, 2015.
12
Fotografia de Mário de Andrade. Coleção Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo
13
BAUDOUIN, Charles - Psychanalyse de l'art. Paris, F. Alcan, 1929.
ou atraso originário, bem como a ideia de uma loucura que seria própria
das multidões (foule). Essas multidões deslocariam a outros objetos a
violência de uma sociedade de arrivistas (de início os colonizadores, mais
tarde os imigrantes), que na partilha de capital teriam ficado sem mulheres.
Mas esse aspecto mostra-nos, além do mais, que contrariamente à
sublimação apaziguadora de Baudouin, é o vazio fantasmático aquilo que
agita esses semblantes, as roupas, e isto leva Mário de Andrade a elaborar
uma tese chamada “o sequestro da mulher ausente”. Em outras palavras,
mais do que luto, luta.
A hipótese da mulher ausente vem sendo construída por Mário de Andrade
desde 1928. Comprova-o uma carta ao poeta Manuel Bandeira datada
daquele ano. Mas uma de suas divulgações mais acabadas se daria em
novembro de 1937, na Sociedade de Etnologia e Folclore de São Paulo,
onde imperava, precisamente, a mulher ausente, Dina Dreyfus, destacada
antropóloga francesa que chegara ao Brasil com seu, à época, bem menos
conhecido marido, Claude Lévi-Strauss. Mário de Andrade ainda reitera a
tese da mulher ausente em 1943, na revista luso-brasileira Atlântico, mas
essa repetição é complexamente sintomática. Nela o autor elabora, com
efeito, uma teoria da cultura nacional pós-colonial, porém, destina-a ao
Poder (uma revista fascista, Atlântico), à tradição (Salazar não é um
modernizador, e seu ideal de cultura não está nas metrópoles, mas na
pequena aldeia portuguesa) e, além do mais, essa tese é feita em nome do
patriarcalismo heterossexual (porém, de mulher ausente), com o qual seu
discurso diz bem mais do que afirma.
Mas voltemos à imagem das roupas refoulentas de Mário de Andrade.
Nela, o punctum da sobrevivência descansa no branco neutro da roupa,
espectralmente agitada e preenchida pelo vento, a insinuar sublevações
decorrente de uma partilha desigual dos bens. O desafio de Albers é
diverso. Ele buscava isolar os espectros cromáticos do objeto (mesmo que
esta fotografia fosse em preto e branco), aos quais atribui vida póstuma.
Nas suas aulas na Carolina do Norte, a partir dos sistemas cromáticos de
Goethe, Schopenhauer e Ostwald, Albers chega a afirmar que a
sobrevivência (aquilo Warburg chamaria Nachleben, mas Albers denomina
after-image ou contraste simultâneo) é um fenômeno psico-fisiológico que
nos mostra que nenhum olhar normal, nem mesmo o do olho treinado,
diante da inevitável decepção cromática, é infalível (Albers diz foolproof,
com o mesmo radical de refoulement). Aquele que afirma ver as cores, com
prescindência de suas mudanças ilusórias, engana-se (fools) a si mesmo14.
Já no caso de Man Ray, na Sculpture mouvante (que, como no caso de
Mário, é alegoria nacional, La France) a ênfase está posta, justamente, no
caráter volátil dos semblantes. È essa "la photographie qui console", tal
como a "Foto de 1915" (de Boitempo II):
14
ALBERS, Josef - La interacción del color. Trad. María Luisa Balseiro. Madrid, Alianza, 1979.
Quanto sobrou de uma família:
a leve escultura de um grupo.
ÉLÉMENTS (DÉCHAÎNÉS)
15
Soulèvements. Catalogue de l'exposition (2016- 2017) au Jeu de Paume, Concorde. Ed. Georges Didi-
Huberman. Pref. Marta Gili. Colaborações de Nicole Brenez, Judith Butler, Georges Didi-Huberman,
Marie-José Mondzain, Antonio Negri e Jacques Rancière. Paris, Jeu de Paume / Gallimard, 2016, p. 95
ressurge. Mais adiante, em seu ensaio "Par les désirs (Fragments sur ce qui
nous soulève)", que encerra o volume, o próprio Didi-Huberman esclarece:
Luto e melancolia
16
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Par les désirs (Fragments sur ce qui nous soulève)", in Soulèvements,
op.cit., p.292-5.
17
EINSTEIN, Carl – “Pablo Picasso. Quelques Tableaux de 1928” in Documents. Doctrines.
Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, nº 1, Paris, 1929, p. 35-8.
18
IDEM – “André Masson, étude ethnologique” in Documents. Doctrines. Archéologie, Beaux-Arts,
Ethnographie, nº 2, Paris, 1929, p. 93-114.
19
IDEM – “Joan Miró (Papiers Collés en la Galería Pierre)” (1930). El arte como revuelta. Escritos sobre
las vanguardias (1912-1933). Ed. Uwe Fleckner. Trad. María Dolores Ábalos; Carmen Alcalde
Aramburu. Lampreave & Millán, 2008, p.197-198.
Mas Freud destaca, ainda, que, normalmente, prevalece no luto o respeito
pela realidade, ainda quando suas ordens não possam ser obedecidas de
imediato. Elas são executadas aos poucos, com grande dispêndio de tempo
e de energia, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a
existência do objeto perdido. Cada uma dessas lembranças e expectativas
isoladas, através das quais a libido vincula-se ao objeto, é evocada e o
desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Não é nada
simples explicar, em termos de economia, o motivo pelo qual essa
transigência, em que o domínio da realidade se faz fragmentariamente,
deve ser tão extraordinariamente penosa. Mas é notável que esse árduo
desprazer seja aceito como algo natural. Contudo, o fato incontroverso é
que, quando o trabalho do luto se encerra, o ego fica outra vez livre e
desinibido. O objeto foi introjetado. A seguir, Freud passa a analisar, na
melancolia, aquilo mesmo que constatara no luto, e assim argumenta que é
evidente que a melancolia também pode constituir reação à perda de um
objeto amado. Nesse sentido, pode muito bem acontecer que o objeto talvez
não tenha realmente desaparecido, só tenha se perdido enquanto objeto de
amor. Muitas vezes, não podemos ver claramente o que foi perdido, sendo
razoável supor também que o paciente não possa conscientemente perceber
o que perdeu. O paciente pode ser consciente da perda que deu origem à
sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas
não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está, de
alguma forma, relacionada a uma perda objetal fora da consciência, em
contraposição ao luto, no qual nada de inconsciente existe a respeito dessa
perda. Em outras palavras, no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio;
ao passo que, na melancolia, é o próprio ego que perde consistência.
Mas, por ser inconsciente, o conteúdo erótico do melancólico, no tocante
ao seu objeto, retroage, parcialmente, a uma identificação com o objeto,
enquanto a outra parte, sob a influência do conflito, devido à ambivalência,
foi levada de volta à etapa de sadismo, sadismo esse que soluciona o
enigma da tendência ao suicídio, o que torna a melancolia tão interessante e
ao mesmo tempo tão perigosa, conclui Freud 20. Em suma, na melancolia, o
objeto triunfa. Veríamos, mais tarde, com Lacan, que a causa do desejo é,
de fato, um objeto perdido, inexistente ou ausente. E o desejo, articulado
assim sob a lei simbólica, em torno de uma falta, não tem substância nem
natureza: só possui a verdade de sua linguagem. È por isso, em última
análise, como nos mostram os trabalhos de Starobinski ou Jean Clair, que
podemos pensar em melancolia e modernidade como sinônimos 21. Ora,
20
FREUD, Sigmund - "Luto e melancolia" in Ed. Standard brasileira das Obras Psicológicas Completas
de S. Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1996.
21
STAROBINSKI, Jean - Histoire du traitement de la mélancolie des origines à 1900, Bâle, J. R. Geigy,
1960; IDEM - "Suicide et mélancolie chez Madame de Staël", in Preuves, n° 190, 1966, p. 41-48; IDEM -
La Mélancolie au miroir : trois lectures de Baudelaire. Paris, Julliard, 1989; IDEM - L’Encre de la
mélancolie. Paris, Seuil, 2012; IDEM - Melancolie, nostalgie, ironie, Bucarest, Ed. Meridiane, 1993;
muito em sintonia com estas ideias, Drummond publica, em fins de 1927,
na revista Verde de Cataguazes, um poema controverso, "Convite ao
suicídio" :
Só um gesto
PUM PUM
Acabou-se.
(Suspirei
foi pra abrir o peito,
soltar o último desgosto.)
IDEM - "La mélancolie de l’anatomiste" in Tel Quel, n° 10, 1962; IDEM - Portrait de l’artiste en
saltimbanque. Genève, A. Skira, 1970; IDEM - "Saturne au ciel des pierres" in Roger Caillois. Paris,
Centre Georges Pompidou, 1981, p. 87-102; IDEM - "La mélancolie au jardin des racines grecques" in
Le Magazine littéraire, n° 244, 1987, p. 24-30; IDEM - "Face diurne et face nocturne" in Regards sur
Minotaure : la revue à tête de bête. Genève, Musée d’art et d’histoire, 1987, p. 31-40; CLAIR, Jean -
Malinconia. Motifs saturniens dans l'art de l'entre-deux-guerres. Paris, Gallimard, 1996; IDEM -
Mélancolie, génie et folie en Occident : en hommage à Raymond Klibansky (1905-2005). Paris,
Gallimard, 2005.
A noite está fria.
Noite indiferente.
Está na hora.
Agora vamos.
Me acompanhe nesse passo
tão complicado.
Me ajude a morrer,
morre com a gente,
irmãozinho.
22
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Carta de 4 ago. 1936 in Cyro & Drummond. Ed. Wander M.
Miranda e Roberto Said. São Paulo, Globo, 2012, p.85.
23
MAIACOVSKI, Vladimir - O percevejo . Comédia fantástica em nove cenas. Trad. Luís Antonio
Martinez Corrêa. Posfácio Boris Schnaiderman. São Paulo, Ed. 34, 2009.
nem a leste nem a sul.
Não há nada de novo ao norte.
Não há nada de novo no mundo.
E num "Poema aéreo a Pablo Neruda" (set 1945), há ainda o mesmo apelo
coletivista que leríamos em A rosa do povo.
Inútil, inoperante
Um livro escrito e não escrito, anoriginal, feito de objetos ready made ("se
me disponho a escrevê-lo (...) é porque já está feito"), longe de convocar o
absenteismo, reencena o "Adieu" de Apollinaire, um adeus à poesia, como
alguma coisa que não seja gesto. É por isso que esse "pincel que foge da
28
IDEM - Cyro & Drummond, op.cit., p.91.
29
"Passionaria, héroine guerrière, est aussi une sainte des temps nouveaux. Elle symbolise l´espérance
que le triomphe de la révolution d´Espagne sur quatre siècles d´horreur représente pour l´Occident".
FAURE, Elie - "Portrait de Passionaria". Regards, nº 134, Paris, 6 ago. 1936, p.9.
30
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Cyro & Drummond, op.cit , p.91-2
31
IDEM - "O livro inútil". Confissões de Minas. Rio de Janeiro, Americ-Edit, 1944, p.226-7
minha mão", o martelo de Artaud, tenta pintar o possível que retorna, a
fotografia que consola: porque ele já existiu como possibilidade. É ele que
define o (mallarmaico) livro inútil de Drummond. Uma estética da
imanência concebida como gesto e não como representação, como processo
e não como aspecto, como contato e não como distanciamento. Agora tudo
isto choca-se, aparentemente, com aquilo que o próprio Drummond elabora
em artigo para a Folha da manhã, pouco depois da morte de Mário de
Andrade, em agosto de 1945. Partindo de uma observação de Paul Eluard
sobre a linguagem revolucionária num poema, (o mesmo, por sinal, que
leva Didi-Huberman a consultar, na Biblioteca Nacional, os arquivos de
panfletos da França sob a ocupação, que seria o lugar onde efetivamente se
escreve, anônimamente, a palavra de Eluard, liberté), Drummond apoia-se
na opinião de um filólogo, Karl Vossler, para argumentar que
33
SÊNECA, Lúcio Eneo - "Haec sit propositi nostri summa: quod sentimus loquamur, quod loquimur
sentiamus; concordet sermo cum vita". Seja esta a síntese de nossa proposta: o que sentimos, falemos, o
que falamos, sintamos; concorde a linguagem com a vida. Epístola 75, 3-4.
34
IDEM - “A marca do tempo” (1945). Drummond, uma visita. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui
Barbosa, 2002, p.44-45.
35
SANTIAGO, Silviano - Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis, Vozes, 1976; IDEM - “Entre Marx
e Proust”. Folhetim, Folha de S.Paulo, nº 231, 21 jun.1981, p.3-5.
curiosidade e interesse pelos outros homens, apetite sempre renovado em
face das coisas, desconfiança da própria e excessiva riqueza interior, eis aí
algumas indicações que permitirão talvez ao poeta deixar de ser um bicho
esquisito para voltar a ser, simplesmente, um homem36.
Biopoéticas
36
DRUMMOND de Andrade, Carlos - "Poesia do tempo". Confissões de Minas, op.cit., p. 218-9.
É alto, louro, delgado?
Miúdo, forte, moreno?
É como todos. É todos.
Seu nome? Seu nome erre
por sob o estrépito rouco;
rode vivo pela morte;
rode como uma flor viva,
sempre-viva para sempre.
Chama-se André ou Francisco,
chama-se Pedro Gutierrez,
Luís, João, Manuel, Ricardo,
José, Lourenço, Vicente...
Não, que ele apenas se chama
Povo Invicto – para sempre.37
37
ALEIXANDRE, Vicente – “O miliciano desconhecido”. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos –
Poesia traduzida. Org. Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, 7Letras, Cosac Naify,
2011, p. 43-45.
se desfazem em tempo,
poeira, só deixando
vagos rastos fugazes,
recordações, nas almas.
Sim, as almas, finais!
As últimas, as sempre
escolhidas, tão débeis,
para sustento eterno
dos pesos mais fatais.
As almas, como asas
sustentando-se sós
a força de um bater
desesperado, a força
de não pararem nunca,
voarem, portadoras
pelo ar, e no ar,
daquilo que se salva.
Mas vejamos o poema mais em detalhe. Um tempo que foi carne, agora
nada mais é do que peso infinito. No escuro da noite, sustenta-se em
"signos e simulacros", porque todo melancólico é um profundo
hermeneuta, mas logo tudo se desfaz "em tempo,/ poeira, só deixando /
vagos rastos fugazes". Os homens circulam "como asas / sustentando-se sós
/ a força de um bater / desesperado, a força / de não pararem nunca". A eles
amamos porque deles lembramos, em seu "afã de volta", mas só lembramos
porque os amamos. Todavia, amamos sua falta, a falta que ama. Amando
relembramos e, ao recordar, amamos. Ou seja que, fieis à premissa de
"esquecer para lembrar", o Boi-tempo nos ensina que ama-se a lembrança e
lembramos sempre do amor, "daquilo que se salva". Mas isso significa que
nada a rigor podemos lembrar a não ser que o amor (o objeto) está sempre
para além da lembrança, incessantemente presente.
A pulverização do objeto nos leva portanto a observar que a escultura em
movimento (o objeto: o Brasil), no caso de Man Ray, é absolutamente
contemporânea da Criação de poeira, a foto do abandono, ou antes, o
38
GULLÓN, Ricardo - "La poesía de Pedro Salinas". Asomante, a. 8, nº 2, San Juan, Puerto Rico, abr.-
jul. 1952, p. 32-45.
testemunho de O Grande Vidro de Duchamp, largado "em tempo,/ poeira,
só deixando / vagos rastos fugazes". A primiera vista uma aproximação
entre Drummond e Duchamp parece descabelada e, no entanto, algo os
reúne na revolta do melancólico: um sentimento misto de celebração e
angústia, como explica Maria-José Mondzain.
Duchamp est à coup sûr l’artiste insurrectionnel par excellence qui indique
avec une absolue radicalité qu’un geste d’art n’a d’autre sens que de mettre
le spectateur dans un trouble d’un problème à la fois jubilatoire et
angoissant. La matière grise, pulvérulente, invisiblement soulevée par la
force des souffles, renvoie dans un même mouvement à la vie turbulente et
infinie des particules invisibles qui composent le monde et à la pâleur
mortelle des cendres qui nous ramènent à notre poussière. Une exposition
qui rendait hommage à l’Élevage de poussière a choisi de mettre en
exergue une citation de T. S. Eliot : « et je te montrerai quelque chose qui
n’est ni ton ombre le matin marchant derrière toi ni ton ombre le soir venue
à ta rencontre ; je te montrerai ta peur dans une poignée de poussière ». Le
soulèvement ferait-il peur ? Ne s’agit-il pas plutôt de donner sa forme
sensible à ce qui soulève en tout sujet de la parole et du désir la puissance
du problème. Soulever le problème exige du spectateur de venir à la
rencontre de l’énigme de sa propre visibilité, d’éprouver la défaillance des
certitudes unifiantes pour plonger dans la multiplicité des temporalités,
dans la réversibilité de toutes les orientations. Soulever le problème c’est
accueillir la fécondité toujours périlleuse de la désorientation. L´Inframince
est un des noms du site de cette désorientation39.
39
MONDZAIN, Marie-José "À “ceux qui sont sur la mer...”. Soulèvements, op.cit., p. 61-2.
A História é um espelho que não reflete qualquer gesto e sim nossa própria
pusilanimidade. Daí nasce a rebelião do poeta, santo profeta dos novos
tempos.
Mas, donde vem essa noção de soulèvement? Na verdade, a ideia teórica da
rebelião ou sublevação funcionando como gesto surgira, antes mesmo que
na exposição do Jeu de Paume, em um ensaio de Didi-Huberman sobre
poesia. Nele estabelecia uma série de teses ou postulados, sete ao todo,
como le septour mallarmaico, porque, obviamente, como apontou
Meillassoux, há um zero que organiza o conjunto, tal como no Lance de
dados:
40
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Soulèvements poétiques (poésie, savoir, imagination)", Po&sie,
2013/1, nº 143), p. 153-157.
41
FAURE, Elie - "Portrait de Passionaria", op.cit, p. 9.
d’Andalousie, par exemple – les battements rythmiques de la plainte et de
son propre soulèvement42.
O tempo se contava
apenas por minutos:
um minuto era um século,
uma vida, um amor.
Abrigavam-nos tetos,
menos que todos, nuvens;
menos que nuvens, céus;
ar, menos ainda, nada43.
42
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Soulèvements poétiques (poésie, savoir, imagination)", op.cit., p. 157.
Ver, do mesmo autor, "Le parcours clos du danseur de corde; ou, l’historie de l’art dans les limites de sa
simple raison" in Cahiers du Musee National d’Art Moderne. Paris, nº 30, inverno 1989, p.41-58, mais
tarde incorporado a Devant l´image; IDEM - Le Danseur des Solitudes. Paris, Minuit, 2006; IDEM - "La
Danse de toute chose", in Mouvements de l'air: Etienne-Jules Marey, photographe des fluides. Paris,
Gallimard / Réunion des Musées Nationaux, 2004, p.173-343; "Mortal cadencia ou la gravité dansée", in
Catalogue Pilar Albarracin: mortal cadencia, Lyon. Fage / Paris, La Maison rouge, 2008, p.29-37, p.95-
103; IDEM - "L'Espace danse: étoile de mer Explosante-fixe", Les Cahiers du MNAM, inverno
2005/2006, n° 94, p.36-51; IDEM - "La Terre se meurt sous les pas du danseur", La Part de l'oeil, 2009,
n°24, p.125-141.
43
SALINAS, Pedro - "Não em palácios de mármore" in DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Poesia
traduzida, op.cit., p. 329.
44
AGAMBEN, Giorgio - Autoritratto nello studio, p. 90-1.