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Drummond: luta, melancolia e luto

Raul Antelo

Quando ci sembra di percepire i limiti o le incoerenze di un autore, è bene


dubitare della nostra intelligenza della sua ignoranza. Per questo, piuttosto
che denunciarne le presunte contraddizioni, preferisco cercare ciò che è
rimasto non detto dietro di esse e che si tratta di comprendere e svilupare. 1

È a partir dessa premissa, compreender e desenvolver a complexa rede de


determinações da trajetória de Carlos Drummond de Andrade, muito mais
do que censurar-lhe suas aporias, que gostaria de partir de um lugar comum
de sua poética. Seja, para tanto:
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Além da procedência mineira e de sua identidade ("sou funcionário


público"), Drummond nos diz, nessa "Confidência do itabirano"(de
Sentimento do mundo), que toda imagem é pathos. Está, nesse sentido,
mais próximo de Agamben do que de Alain Badiou. Giorgio Agamben,
com efeito, considera que toda obra de arte é fragmento de um gesto,
semelhante à intenção que a própria filosofia agrega à idéia, que não é um
arquétipo estático, mas, fundamentalmente, uma constelação, um
repertório, um atlas, em que os fenômenos se integram a um gesto. Nesse
sentido, o cinema também reconduz as imagens ao espaço do gesto ou,
conforme previra Beckett, ele é o sonho de um gesto, de tal sorte que
inserir, neste sonho, o elemento do despertar (que é sentir, mas
basicamente analisar) é a verdadeira tarefa do cineasta, que não passa de
um leitor da história, como demonstra Godard2.
Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Deleuze, todos eles abriram o
caminho da repetição, na modernidade. Mas é bom observar que ela não é o
retorno do mesmo, mas o retorno de uma possibilidade, a possibilidade
daquilo que existiu: "tive ouro, tive gado, tive fazendas". O possível
1
AGAMBEN, Giorgio - Autoritratto nello studio. Roma, nottetempo, 2017, p. 52-53.
2
IDEM - Moyens sans fins: notes sur la politique. Paris, Payot/Rivages,1995; IDEM - Image et mémoire.
Trad. Marco Dell’Omodarme et al. Paris, Hoëbeke, 1998.
retorna, daí a proximidade entre repetição e memória. Na memória, retorna
o que já existiu enquanto possibilidade, ao passo que, na repetição, retorna
o que não aconteceu. Assim também, no cinema, verifica-se o corte, que é a
interrupção revolucionária prevista por Benjamin. De que modo? È o corte
que diferencia o cinema da literatura, da mesma forma que, depois dos
formalistas, sabemos que cesuras e enjambements diferenciam a poesia da
prosa. Permitem opor limites acústicos a limites semânticos. A poesia
admite o corte; a prosa, não. Outro tanto acontece com a imagem
cinematográfica. O próprio dela é poder ser cortada e montada para o
advento do impossível: a ressurreição3. Já Badiou propõe uma dialética não
expressiva, em busca de uma ficção, cujo nome de antemão se desconhece,
porque

la question de la possibilité d’une fiction est une question de courage. Le


courage est le nom de quelque chose qui n’est réductible ni à la loi ni au
désir. C’est le nom d’une subjectivité irréductible à la dialectique de la loi
et du désir sous sa forme ordinaire. Or aujourd’hui, le lieu de l’action
politique – non pas celui de la théorie, de la conception ou de la
représentation politique, mais de l’action politique en tant que telle – est
précisément quelque chose qui, irréductible à la loi et au désir, crée la
place, la place locale de quelque chose de générique, de quelque chose
comme la volonté générique. Et de cette place, disons, comme [Wallace]
Stevens, c’est possible, possible, possible, ce doit être possible. Peut-être.
Nous espérons, nous devons espérer qu’il sera possible de trouver la
possibilité de notre nouvelle fiction.4

Por isso diríamos, entretanto, que Drummond, mais próximo de Agamben


do que de Badiou, compartilha uma ideia de Man Ray: "si ta main tremble
trop, laisse lá ton appareil et prends un pinceau" 5. Ideia que não
necessariamente equivale a um convite à pintura "expressionista" e que se
poderia glosar dizendo "si ta main tremble trop, laisse lá ton appareil et
prends un marteau", tal como Antonin Artaud martelava, em Ivry, a dicção
de seus textos: o ritmo, um corpo. Drummond preza um paradoxal
expressionismo contido em que, mesmo assim, a imagem é gesto. Portanto,

3
IDEM - “Face au cinéma et à l’Histoire: à propos de Jean-Luc Godard”, Le Monde (Livres), Paris, 6
out. 1995, p. X–XI.
4
BADIOU, Alain – La relation énigmatique entre philosophie et politique. Paris, Germina, 2011, p.87.
Badiou cita "Notes toward a Supreme Fiction"(1942): "It is possible, possible, possible. It must / Be
possible. It must be that in time/ The real will from its crude compoundings come".
5
O fragmento diz: "Souris aussi photographe mais si ta main tremble trop, laisse là ton appareil et prends
un pinceau, le tremblement de ta main passera pour un excès de sensibilité mais que tu photographies la
plus belle femme du monde ou bien une pomme de terre, tu feras le même geste. Consolation: la plume
est plus puissante que l'épée, l'encre plus indélébile que le sang, et le noircissement d'une plaque d'argent
par la lumière nous sert couramment à confirmer ces proverbes".
a ideia serve ainda para argumentar que o fotógrafo deve trabalhar a placa
sensível com a mesma inexorável firmeza com que o poeta serve-se da
linguagem para agenciar a arguta mas não menos velada orquestração de
seus metros poéticos. Equidistante do realismo e do lirismo, ele não nos dá,
nos seus poemas, nem quadros, nem abstrações, nem documentos, mas
fotografias, isto é, sonhos de um gesto.

Mas é inevitável que de cada procedimento técnico, exercido com amor e


rigor, se desprenda uma poesia específica. Mais ainda no caso especial da
fotografia, cujo vocabulário já participa da magia poética – a gelatina, a
imagem latente, o pancromático – e cujas operações se assimilam
naturalmente às da criação poética – a sensibilização pela luz, o banho
revelador, o mistério da claridade implícita no opaco, da sombra
representada pelo translúcido – ó Mallarmé!...6.

Mallarmé, justamente, definia a imagem como uma protossemelhança com


gravidades do passado, ensombrecidas pela memória 7, de modo que, em
última análise, o que Drummond está nos dizendo é que a poesia é
montagem e que o vazio de pontuação (nada, ninguém) tem o valor da
diferença. A diferença não opera só entre prosa e poesia, mas também entre
poéticas. A título de exemplo, vejamos a diferença entre Mallarmé e
Apollinaire, dois poetas atravessados pela guerra. Quando Drummond lê
um rondel de Mallarmé,

Si tu veux nous nous aimerons


Avec tes lèvres sans le dire
Cette rose ne l’interromps
Que’à verser un silence pire

tem a impressão de que "êsses versos, não sòmente pela fluidez das
palavras, mas também pela supressão de qualquer elemento de pontuação,
se acham, como o quarto de Manuel Bandeira, 'intactos, suspensos no ar'”.
Refere-se ao quarto evocado por Bandeira na "Ultima canção do beco". Já
em Apollinaire, a ausência de pontuação não lhe sugere "a flutuação do
verso na atmosfera, mas antes uma sensação de arrastamento na terra, de
doloroso manquejar de quem não sabe ou não quer libertar-se da sua prisão
humana". E Dummond cita, a esse respeito, um poema de Alcools (1918):

J’ai cueilli ce brin de bruyère


6
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – “O poeta e a fotografia”. Correio da manhã, Rio de Janeiro,
20 jul. 1947, mais tarde incorporado a Passeios na ilha. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1952,
p.204-205.
7
MALLARMÉ, Stéphane – Divagações. Trad. F. Scheibe, Florianópolis, Editora da UFSC, 2010, p. 198.
L’automne est morte souviens – t’en
Nous ne nous verrons plus sur terre
Odeur du temps brin de bruyère
Et souviens – toi que je t’attends

O poeta conclui:

Um e outro efeito não são necessàriamente produzidos pela falta de sinais


de pontuação, mas antes salientados por êsse artifício, que confirma em
Mallarmé a misteriosa diafaneidade, a libertação de todo compromisso
terrestre, e em Apollinaire a indeterminação entre o poeta e o mundo. E de
um modo geral, poder-se-á dizer que a pontuação regular, iluminando
igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque
algum de seus acidentes mais característicos.8

Esse rastejamento terreno, essa sobreterminação entre o poeta e o mundo,


no "Adieu" de Apollinaire, é o que em última análise leva Drummond a
traduzir um poema dele, de título muito Boitempo: “A casa dos mortos”:
Viviam tão nobremente
Que pessoas que ainda na véspera
Os consideravam como iguais
E até menos do que isso
Admiravam agora
Seu poderio seu gênio sua riqueza
Pois haverá nada que nos eleve mais
Do que ter amado um morto ou morta
Fazemo-nos tão puros que chegamos
Nas geleiras da memória
A nos confundirmos com a lembrança
Sentimo-nos fortalecidos para a vida
E já não precisamos de ninguém 9

La Photographie qui console

A esse coeficiente de sugestão, dado pela ausência de sinais gráficos, o


poeta acrescenta um sóbrio e poderoso sentido plástico da imagem, não
privativo da pintura ("seu poderio seu gênio sua riqueza"), imagem que ele
não apenas capta, mas também seleciona e como que torna a criar,
aproximando ou fundindo elementos que se ignoravam. E suas traduções
dão testemunho de um ideal de artista completo, que combina imaginação e
artesanato, sabendo muito bem o que se pode tirar, em invenção, dos

8
IDEM – “Pontuação e poesia - Caderno de Notas”. Confissões de Minas. Rio de Janeiro, America=Edit.,
1944, p.235-236.
9
APOLLINAIRE, Guillaume – “A casa dos mortos”. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – Poesia
traduzida. Org. Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, 7Letras, Cosac Naify, 2011, p.65.
dispositivos com que trabalha. "Acredito que ele também fará sua esta
outra palavra de Man Ray: la Photographie qui console".10
Mas qual é o consolo da poesia que entretanto dói? Para responder à
pergunta precisamos relembrar que Man Ray estampou o ensaio
relembrado por Drummond, "La Photographie qui console" (com quatro
desenhos dele), na revista de Gualtieri di San Lazzaro, XXe Siècle (a.1, nº
2, Paris, 1938), e além disso, escreveu um artigo "Sur le réalisme
photographique" (Cahiers d'art, X, nº 5-6, Paris, 1935), mais a plaquette La
photographie n'est pas l'art (Prefácio de André Breton. Paris, G.L.M.,
1937). Mas a essa sequência de textos, caberia acrescentar ainda uma
fotografia de Man Ray, Sculpture mouvante ou La France (1920). Ela
compõe um tríptico muito sintomático com outras duas, de Josef Albers e
de Mário de Andrade.
Com efeito, há uma fotografia de Josef Albers, ainda do período alemão,
sem título (Roupa numa corda), circa 1929, absolutamente coincidente com
uma outra, anterior, tirada por Mário de Andrade, em sua viagem
etnográfica pelo nordeste brasileiro, a partir da qual redigiria não apenas
Macunaíma (1928), mas também seu livro póstumo O turista aprendiz11. A
foto de Mário de Andrade tem como legenda: “Roupas freudianas
/Fortaleza, 5-VII-27/Fotografia refoulenta /Refoulement / Sol l diaf. l” 12.
As formas das três se equivalem; no entanto, o sentido difere de uma à
outra. Manifesta-se, por exemplo, nesta última, de Mário de Andrade, a
relevância e o estímulo de um certo debate, ainda incipiente, acerca da
formação cultural do Brasil na Colônia, que seria decorrência de uma perda
de objeto. Tentemos reconstrui-lo.
Concretamente, numa conferência na Sorbonne de 1923, Oswald de
Andrade já se referira à memória e saudade sexual da mulher branca, que
os primeiros navegadores deixaram em Portugal. Por essa mesma época,
final dos anos 20, Mário de Andrade lê o tratado de psicanálise na arte de
Charles Baudouin13, que define a sublimação (refoulement) como
deslocamento, às vezes muito carregado e fracamente inibido, que, como
ato sobredeterminado, atua sobre umas tantas outras vias de reação que
possuem por sua vez valores espirituais, morais ou sociais dominantes.
Baudouin conclui que a arte, enquanto refoulement, teria a função de
realizar ou estimular sublimações.
As roupas freudianas são refoulentas: observe-se que, no neologismo de
Mário de Andrade, entram, através do sufixo -lentas, a noção de suspensão

10
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – “O poeta e a fotografia”. Correio da manhã, Rio de Janeiro,
20 jul. 1947, mais tarde incorporado a Passeios na ilha. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1952,
p.204-205.
11
ANDRADE, Mário de - O turista aprendiz. Ed. Telê Ancona López e Tatiana Longo Figueiredo.
Brasília, IPHAN, 2015.
12
Fotografia de Mário de Andrade. Coleção Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo
13
BAUDOUIN, Charles - Psychanalyse de l'art. Paris, F. Alcan, 1929.
ou atraso originário, bem como a ideia de uma loucura que seria própria
das multidões (foule). Essas multidões deslocariam a outros objetos a
violência de uma sociedade de arrivistas (de início os colonizadores, mais
tarde os imigrantes), que na partilha de capital teriam ficado sem mulheres.
Mas esse aspecto mostra-nos, além do mais, que contrariamente à
sublimação apaziguadora de Baudouin, é o vazio fantasmático aquilo que
agita esses semblantes, as roupas, e isto leva Mário de Andrade a elaborar
uma tese chamada “o sequestro da mulher ausente”. Em outras palavras,
mais do que luto, luta.
A hipótese da mulher ausente vem sendo construída por Mário de Andrade
desde 1928. Comprova-o uma carta ao poeta Manuel Bandeira datada
daquele ano. Mas uma de suas divulgações mais acabadas se daria em
novembro de 1937, na Sociedade de Etnologia e Folclore de São Paulo,
onde imperava, precisamente, a mulher ausente, Dina Dreyfus, destacada
antropóloga francesa que chegara ao Brasil com seu, à época, bem menos
conhecido marido, Claude Lévi-Strauss. Mário de Andrade ainda reitera a
tese da mulher ausente em 1943, na revista luso-brasileira Atlântico, mas
essa repetição é complexamente sintomática. Nela o autor elabora, com
efeito, uma teoria da cultura nacional pós-colonial, porém, destina-a ao
Poder (uma revista fascista, Atlântico), à tradição (Salazar não é um
modernizador, e seu ideal de cultura não está nas metrópoles, mas na
pequena aldeia portuguesa) e, além do mais, essa tese é feita em nome do
patriarcalismo heterossexual (porém, de mulher ausente), com o qual seu
discurso diz bem mais do que afirma.
Mas voltemos à imagem das roupas refoulentas de Mário de Andrade.
Nela, o punctum da sobrevivência descansa no branco neutro da roupa,
espectralmente agitada e preenchida pelo vento, a insinuar sublevações
decorrente de uma partilha desigual dos bens. O desafio de Albers é
diverso. Ele buscava isolar os espectros cromáticos do objeto (mesmo que
esta fotografia fosse em preto e branco), aos quais atribui vida póstuma.
Nas suas aulas na Carolina do Norte, a partir dos sistemas cromáticos de
Goethe, Schopenhauer e Ostwald, Albers chega a afirmar que a
sobrevivência (aquilo Warburg chamaria Nachleben, mas Albers denomina
after-image ou contraste simultâneo) é um fenômeno psico-fisiológico que
nos mostra que nenhum olhar normal, nem mesmo o do olho treinado,
diante da inevitável decepção cromática, é infalível (Albers diz foolproof,
com o mesmo radical de refoulement). Aquele que afirma ver as cores, com
prescindência de suas mudanças ilusórias, engana-se (fools) a si mesmo14.
Já no caso de Man Ray, na Sculpture mouvante (que, como no caso de
Mário, é alegoria nacional, La France) a ênfase está posta, justamente, no
caráter volátil dos semblantes. È essa "la photographie qui console", tal
como a "Foto de 1915" (de Boitempo II):
14
ALBERS, Josef - La interacción del color. Trad. María Luisa Balseiro. Madrid, Alianza, 1979.
Quanto sobrou de uma família:
a leve escultura de um grupo.

Mas, se voltamos à escultura plástica de Man Ray, a fotografia que consola,


é bom lembrar que ela integra a primeira parte da recente exposição
Soulèvements (Sublevações), curada por Didi-Huberman. Deixemos a
discussão do conceito de soulèvements mais para à frente. Podemos
associar não só a imagem de Man Ray mas também a de Mário de Andrade
a uma disposição de elementos desencadeados, peças avulsas. Lemos no
catálogo, como epígrafe da seção que inclui a Sculpture mouvante, o texto
do curador:

ÉLÉMENTS (DÉCHAÎNÉS)

Les éléments sont instables : se soulever déchaîne.


Se soulever, comme lorsqu’on dit « une tempête se lève, se soulève ».
Renverser la pesanteur qui nous clouait au sol. Alors, ce sont les lois de
l’atmosphère tout entière qui seront contredites. Surfaces – draps, drapés,
drapeaux – qui volent au vent. Lumières qui explosent en feux d’artifice.
Poussière qui sort de ses recoins, qui s’élève. Temps qui sort de ses gonds.
Monde sens dessus dessous. De Victor Hugo à Eisenstein et au-delà, les
soulèvements seront souvent comparés à des ouragans ou à de grandes
vagues déferlantes.
Parce qu’alors les éléments (de l’histoire) se déchaînent.
On se soulève d’abord en exerçant son imagination, fût-ce dans ses
«caprices » ou ses «disparates », comme disait Goya. L’imagination
soulève des montagnes. Et lorsqu’on se soulève depuis un « désastre » réel,
cela veut dire qu’à ce qui nous oppresse, à ceux qui veulent nous rendre les
mouvements impossibles, on oppose la résistance de forces qui sont désirs
et imaginations d’abord, c’est-à-dire forces psychiques de déchaînement et
réouvertures des possibles15.

Se as "surfaces – draps, drapés, drapeaux – (qui) volent au vent" é porque


toda superfície, até mesmo a da linguagem, com suas aliterações, é fluída,
comporta-se como um tecido vivo, incessantemente dobrado, desdobrado e
redobrado sobre si próprio, ou seja, um drapeado de aspectos múltiplos,
que encobre outras tantas densidades igualmente múltiplas. Por isso
diríamos que a imanência é também um fluido, já que nela tudo se move,
interpenetra-se e se permuta, e mesmo que mane ou desmorone, ele sempre

15
Soulèvements. Catalogue de l'exposition (2016- 2017) au Jeu de Paume, Concorde. Ed. Georges Didi-
Huberman. Pref. Marta Gili. Colaborações de Nicole Brenez, Judith Butler, Georges Didi-Huberman,
Marie-José Mondzain, Antonio Negri e Jacques Rancière. Paris, Jeu de Paume / Gallimard, 2016, p. 95
ressurge. Mais adiante, em seu ensaio "Par les désirs (Fragments sur ce qui
nous soulève)", que encerra o volume, o próprio Didi-Huberman esclarece:

Entre le suaire et le drap, le drap et le drapeau, le drapeau et la déchirure,


c’est comme si la tempête des révoltes trouvait son emblème le plus clair
dans le soulèvement de toutes les surfaces. Eisenstein lui-même établissait
un rapport direct entre l’idée de soulèvement politique et le soulèvement
physique des surfaces, donnant en exemple – comme les prémisses
iconographiques de son propre Potemkine – le drapeau révolutionnaire
associé à la robe en mouvement qui dénude le sein de La Liberté guidant le
peuple d’Eugène Delacroix, stratégie figurative elle-même pensée comme
une « relève » du désespoir exprimé par Théodore Géricault dans Le
Radeau de la Méduse, avec sa voile dérisoire et tragique.16

Luto e melancolia

Didi Huberman explica, baseado no célebre ensaio de Freud (1917), que,


na experiência do luto, o objeto amado não existe mais, passando a exigir
que toda a libido seja retirada de suas ligações com o objeto. Uma tal
exigência provoca uma oposição compreensível: é fato notório que as
pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem
mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Essa oposição
pode ser tão intensa que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao
objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo,
conceito que reencontraremos, frequentemente, nos escritos de Carl
Einsten, a respeito de Miró ou Picasso, por exemplo. Como sabemos, os
objetos eram, para Carl Einstein, um obstáculo à psicose libidinal. Picasso,
a seu ver, ia além de Freud na imaginação alucinatória 17. Essas mesmas
forças alucinatórias permitiam-lhe ao acefálico André Masson, resgatar
processos desautomatizados, de “a-causalidade”18. Miró compunha danças
tão alucinatórias quanto utópicas 19 e Léger, o oposto de um romântico, era,
pelo contrário, um nominalista completamente afastado das experiências de
ordem alucinatória. É, portanto, essa mesma psicose alucinatória de
Picasso, Miró ou Masson, a que opera nas fotografias de Man Ray, Albers
e Mário de Andrade.

16
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Par les désirs (Fragments sur ce qui nous soulève)", in Soulèvements,
op.cit., p.292-5.
17
EINSTEIN, Carl – “Pablo Picasso. Quelques Tableaux de 1928” in Documents. Doctrines.
Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, nº 1, Paris, 1929, p. 35-8.
18
IDEM – “André Masson, étude ethnologique” in Documents. Doctrines. Archéologie, Beaux-Arts,
Ethnographie, nº 2, Paris, 1929, p. 93-114.
19
IDEM – “Joan Miró (Papiers Collés en la Galería Pierre)” (1930). El arte como revuelta. Escritos sobre
las vanguardias (1912-1933). Ed. Uwe Fleckner. Trad. María Dolores Ábalos; Carmen Alcalde
Aramburu. Lampreave & Millán, 2008, p.197-198.
Mas Freud destaca, ainda, que, normalmente, prevalece no luto o respeito
pela realidade, ainda quando suas ordens não possam ser obedecidas de
imediato. Elas são executadas aos poucos, com grande dispêndio de tempo
e de energia, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a
existência do objeto perdido. Cada uma dessas lembranças e expectativas
isoladas, através das quais a libido vincula-se ao objeto, é evocada e o
desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Não é nada
simples explicar, em termos de economia, o motivo pelo qual essa
transigência, em que o domínio da realidade se faz fragmentariamente,
deve ser tão extraordinariamente penosa. Mas é notável que esse árduo
desprazer seja aceito como algo natural. Contudo, o fato incontroverso é
que, quando o trabalho do luto se encerra, o ego fica outra vez livre e
desinibido. O objeto foi introjetado. A seguir, Freud passa a analisar, na
melancolia, aquilo mesmo que constatara no luto, e assim argumenta que é
evidente que a melancolia também pode constituir reação à perda de um
objeto amado. Nesse sentido, pode muito bem acontecer que o objeto talvez
não tenha realmente desaparecido, só tenha se perdido enquanto objeto de
amor. Muitas vezes, não podemos ver claramente o que foi perdido, sendo
razoável supor também que o paciente não possa conscientemente perceber
o que perdeu. O paciente pode ser consciente da perda que deu origem à
sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas
não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está, de
alguma forma, relacionada a uma perda objetal fora da consciência, em
contraposição ao luto, no qual nada de inconsciente existe a respeito dessa
perda. Em outras palavras, no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio;
ao passo que, na melancolia, é o próprio ego que perde consistência.
Mas, por ser inconsciente, o conteúdo erótico do melancólico, no tocante
ao seu objeto, retroage, parcialmente, a uma identificação com o objeto,
enquanto a outra parte, sob a influência do conflito, devido à ambivalência,
foi levada de volta à etapa de sadismo, sadismo esse que soluciona o
enigma da tendência ao suicídio, o que torna a melancolia tão interessante e
ao mesmo tempo tão perigosa, conclui Freud 20. Em suma, na melancolia, o
objeto triunfa. Veríamos, mais tarde, com Lacan, que a causa do desejo é,
de fato, um objeto perdido, inexistente ou ausente. E o desejo, articulado
assim sob a lei simbólica, em torno de uma falta, não tem substância nem
natureza: só possui a verdade de sua linguagem. È por isso, em última
análise, como nos mostram os trabalhos de Starobinski ou Jean Clair, que
podemos pensar em melancolia e modernidade como sinônimos 21. Ora,
20
FREUD, Sigmund - "Luto e melancolia" in Ed. Standard brasileira das Obras Psicológicas Completas
de S. Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1996.
21
STAROBINSKI, Jean - Histoire du traitement de la mélancolie des origines à 1900, Bâle, J. R. Geigy,
1960; IDEM - "Suicide et mélancolie chez Madame de Staël", in Preuves, n° 190, 1966, p. 41-48; IDEM -
La Mélancolie au miroir : trois lectures de Baudelaire. Paris, Julliard, 1989; IDEM - L’Encre de la
mélancolie. Paris, Seuil, 2012; IDEM - Melancolie, nostalgie, ironie, Bucarest, Ed. Meridiane, 1993;
muito em sintonia com estas ideias, Drummond publica, em fins de 1927,
na revista Verde de Cataguazes, um poema controverso, "Convite ao
suicídio" :

Vamos dar um tiro no ouvido?


Vamos?
Largar essa vida
largar esse mundo
comprar o último bilhete
e desembarcar na estação central do Infinito perante a comissão importante de arcanjos [bem-aventurados
profetas - vivoooo!

Vamos acabar com isso,


dar o fora nas aporrinhações.
Adeus contrariedades.
Nunca mais desastres
nem calos
nem desejos
nem percevejos nem nada.

Só um gesto
PUM PUM
Acabou-se.

Já estou cansado da Metro, da Paramount,


de todas as marcas inclusive a barbante.
A fita pau.
Repetir é casar dobrado.
Me dá o braço,
vamos s'embora.

A vida foi feita pros trouxas


que esperdiçam as riquezas do coração
nessa lenga-lenga infindável
e depois vão dormir o sono abençoado dos burros justos pra recomeçar no dia seguinte [cedinho.

Vida que não é vida...

(Suspirei
foi pra abrir o peito,
soltar o último desgosto.)

Estou pronto pra sair.


Vamos sair juntos?
É mais divertido
e enche mais os jornais: um suicídio duplo, hein?
que mina pros repórteres e pros
cidadãos que gostam de misturar
o café matinal com histórias
de Smith and Wess.

IDEM - "La mélancolie de l’anatomiste" in Tel Quel, n° 10, 1962; IDEM - Portrait de l’artiste en
saltimbanque. Genève, A. Skira, 1970; IDEM - "Saturne au ciel des pierres" in Roger Caillois. Paris,
Centre Georges Pompidou, 1981, p. 87-102; IDEM - "La mélancolie au jardin des racines grecques" in
Le Magazine littéraire, n° 244, 1987, p. 24-30; IDEM - "Face diurne et face nocturne" in Regards sur
Minotaure : la revue à tête de bête. Genève, Musée d’art et d’histoire, 1987, p. 31-40; CLAIR, Jean -
Malinconia. Motifs saturniens dans l'art de l'entre-deux-guerres. Paris, Gallimard, 1996; IDEM -
Mélancolie, génie et folie en Occident : en hommage à Raymond Klibansky (1905-2005). Paris,
Gallimard, 2005.
A noite está fria.
Noite indiferente.

Vamos morrer daqui a um minuto


(se você não roer a corda)
e no entanto o Cruzeiro do Sul parece dizer: que m'importa.
E astros águas e terras repetem maquinalmente: que m'importa.

Eles têm razão.


Nós também temos.
Dois contribuintes de menos,
que perderá o Brasil com isso.
No frio da noite os amorosos multiplicam a espécie.
O Brasil é tão grande.
Mais grande que o mundo inteiro.
Estamos caceteados, vamos s'embora.

Adeus minha terra


terra bonita
pintada de verde
com bichos esquisitos e moleques treteiros,
abençoada pelo Deus brasileiro das felicidades e descarrilamentos.
Meu povo
amigos inimigos
canalha miúda
me despeço de todos sem exceção.
Apesar de ser inútil,
lembrem de mim nas suas orações.

Está na hora.
Agora vamos.
Me acompanhe nesse passo
tão complicado.
Me ajude a morrer,
morre com a gente,
irmãozinho.

Vamos fazer a grande besteira:


rebentar os miolos
e ir receber no céu o castigo de nossos amores e o prêmio de nossas devassidões.

"Convite ao suicídio" é um poema dedicado a Mário de Andrade, quem não


esconde detestar a peça, como confessa em carta a Rosário Fusco e reitera
numa correspondência ao próprio Drummond, quando Mário reclama
(observe-se a falta de pontuação) de "tanto sarcasmo ironia desengano e
perversidade juntas" (carta de 21 jan. 1928). Afinal, o poema convida um
irmãozinho para "ir receber no céu o castigo de nossos amores e o prêmio
de nossas devassidões", o que não devia ser decerto muito lisonjeiro para
Mário.
Só em Boitempo leríamos, em "Gesto e palavra", que parricida é palavra
com a qual o próprio Drummond iria se matar, ao longo de toda sua vida.
"Vida que não é vida". Já veremos, oportunamente, que, para o poeta, é a
vida que impõe seus ritmos e seus ímpetos, sua imagística e até sua própria
forma à linguagem, através de uma simplicidade e uma nudez exemplares,
sem maiores atributos e despojada de ornatos, evitando assim a acrobacia, o
requinte e a obscuridade. Veria Drummond esses traços em Mário de
Andrade? É possível. São esses aspectos do sempre temido e detestado
"barroco" que levam o poeta (mesmo um ano antes de Sagarana!) a
vaticinar que o sequestro do barroco na literatura dos anos 40 era uma
"imposição do tempo sobre os escritores", e que seus praticantes eram
meras "curiosidades do armazém literário, testemunhando certa
impermeabilidade individual às sugestões da época". De fato, Drummond
abominava a literatura "dos pequeninos gênios marca Lúcio Cardoso" 22.
Discutiremos isso mais adiante.
Gostaria, entretanto, de destacar duas ideias do "Convite ao suicídio": a
primeira, que, conforme Carl Schmitt, o povo é constituído de amigos
inimigos e, nesse sentido, se o inimigo é desprovido de qualquer substância
própria, há nele um vazio que precisa ser preenchido. Portanto, ocupando o
inimigo um lugar vago, isso implica que qualquer um pode vir a ocupar
esse lugar em que, "intimamente abraçados na raiva" se debatem o amigo e
o inimigo ("Inimigo", de Boitempo II). Hospitalidade / hostilidade, diria
Derrida. Mas se só o soberano detém a prerrogativa de decidir sobre o
inimigo, isso significa também que cabe a ele marcar os grupos a serem
combatidos, de tal sorte, enfim, que, na sociedade contemporânea, o
inimigo passa a ser excluído da sociedade civil, considerado um criminoso,
e ele é eliminado, porém, sem respeitar regra jurídica qualquer. Homo
sacer.
Não menos importante do que essa premissa é a segunda, segundo a qual o
desejo se articula (em rima) através da linguagem, o que revela também a
mais absoluta falta de substância: "nem desejos / nem percevejos nem
nada". O percevejo, tomado por Maiacovski (1929)23 como alegoria de
quem se subleva e, não tendo força para triunfar, ao menos incomoda para
marcar posição, marca uma atitude absolutamente serpeante já que, no
dizer do próprio Drummond, "toda sílaba / acaso reunida / a sua irmã, em
serpes irritadas vejo as duas” (“Nudez”, de A Vida Passada a Limpo). Ora,
qual a conclusão? Sociedade e desejo são apenas sculptures mouvantes.
Mas destaco então que uma atitude comum de revolta e luto (ou luto e
revolta) está na base da relação entre poesia e sociedade, tanto em Mário
quanto em Drummond. Na "Canção do nada de novo" (A Tribuna, Belo
Horizonte, 1933), outro dos poemas esparsos de Drummond, constatamos
como, no luto, é o mundo que se torna árido e vazio, ao passo que, na
melancolia, é o próprio sujeito que definha.

Não há nada de novo a oeste

22
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Carta de 4 ago. 1936 in Cyro & Drummond. Ed. Wander M.
Miranda e Roberto Said. São Paulo, Globo, 2012, p.85.
23
MAIACOVSKI, Vladimir - O percevejo . Comédia fantástica em nove cenas. Trad. Luís Antonio
Martinez Corrêa. Posfácio Boris Schnaiderman. São Paulo, Ed. 34, 2009.
nem a leste nem a sul.
Não há nada de novo ao norte.
Não há nada de novo no mundo.

Em verdade não há nada!


Meu coração está seco,
minha mão está vazia.

Nada de novo na rua


nem na casa onde eu existo
e na mesa não há nada
mas não há nada de nada
em mim ou em torno de mim.

Entretanto estou vivendo


entretanto estou amando
nada de novo na vida
e na morte não haverá!

E nesta mulher também não.


Nem nas outras. Nem no céu.
No mar não há nada de novo,
nada de novo nos bichos.
No ar também não há nada.
Não há nada, Senhor! no mundo.24

Verificamos também o luto (a luta) de Drummond em vários textos dos


anos 30, que coincidem aliás com a guerra civil espanhola, tema que lhe
interssava particularmente25. Talvez por nele intuir o modelo da stasis
disseminada. Veja-se de que modo o tema recurrente do infinito gerador de
novos infinitos, já apresentado em "No meio do caminho" (1928), e mesmo
na reiteração de "nada de novo", no poema acima, serve agora como
infinito do mal no mundo, no ritornello que dá título ao poema, em
"Depois que Barcelona cair" (1938):

Depois que Barcelona cair, restarão Valência e Madrid.


restarão dezesseis províncias por conquistar.
Depois de muitos combates, restarão ainda algumas aldeias, algumas praias,
depois que Barcelona cair.
Depois que Barcelona cair, restarão Marseille, Bordeaux.
restarão Lyon, o Havre, Lille, Nancy,
Rouen, Nantes, Toulouse, Orleans, Dunquerque,
restará, nas duas margens do rio, uma cidade de trabalhadores e sábios:
restará Paris
Restarão Liège, Antuérpia e Bruxelas, depois que cair Barcelona.
24
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - “Canção do nada de novo” (1933). Drummond, uma visita.
Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002, p.30.
25
SCRAMIM, Susana - "Entre a potência de dizer e a potência de agir. Posições políticas da poesia de
Carlos Drummond de Andrade frente ao fascismo" in IDEM e Di LEONE, Luciana (orgs) - Ler
Drummond hoje. Florianópolis, Rafael Copetti, 2014, p.193-225. Sobre o particular, Drummond escreveu
"Garcia Lorca e a cultura espanhola", Correio da manhã, 6 out.1946; "Poetas diante da Espanha", Diário
carioca, 13 jan. 1946; "A Federico Garcia Lorca em setembro de 1946, décimo aniversário de sua morte".
Diário Carioca, 8 set. 1946; "Os poetas brasileiros e Garcia Lorca", Correio da manhã, 10 set. 1950;
"Garcia Lorca", Correio do Povo, Porto Alegre, 10 ago, 1968. A transcrição de "Depois que Barcelona
cair" no volume "Uma visita", da Casa de Rui Barbosa, não é integral: foram eliminados os últimos 12
versos.
Caida Barcelona, é preciso tomar Manchester, Livcrpool, Birmingham, Londres.
Depois que Barcelona cair, será preciso multiplicar os campos de concentração,
será preciso impedir a respiração ofegante de Berlim, Viena, Roma,
encher de cruzadores os outrora voluptuosos golfos italianos,
será preciso ainda tomar pequeninos paises frígidos onde persistirão homens metódicos e tenazes.
Depois que Barcelona cair, restará a China,
a China devoradora, indiferente, enorme.
A China que não vive no tempo, a China impossível.
A indomável China
Depois que Barcelona cair, restarão Rio de Janeiro, Buenos Aires;
restará o Chile, o Uruguai, restará Ciudad de México.
restarão edifícios, rebanhos, tesouros, montanhas, usinas, quartéis, New York.
Depois que Barcelona cair restará Moscou.
Restará um mundo: o vosso mundo, trabalhadores.
Restarão livros, exemplos, sacrifícios, determinações.
Restarão homens, restarão mulheres, gados, plantas, pedras, elementos de luta.
Depois que cair esse mundo, restarão olhos na escuridão, espiando.
Restarão operários conspirando em voz baixa.
Restará o silêncio cheio de ameaças. Restará a inquietação entre os vencedores.
Restará o desejo de recomeçar.
Depois que Barcelona cair, restarão os homens26.

E num "Poema aéreo a Pablo Neruda" (set 1945), há ainda o mesmo apelo
coletivista que leríamos em A rosa do povo.

Em Stalingrado escutam-te as ruínas


que amanhã serão casas. Em Bornéu,
na Bretanha, em Lídice, no deserto,
no ferro das prisões de nove anos,
afinal triturado,
nos mares superpostos, no porão
onde alguém pelejou a mesma luta,
onde alguém resistiu e triunfou,
teu canto se emaranha e forma e surge
à feição de uma palma.
Ei-lo que sobe a encosta e se derrama
sobre Monte Castelo.
Ei-lo que corta os céus e vem pousar
sobre os ombros de Prestes.
Ei-lo, canto da terra, voz queimante,
anunciando a aurora e prolongando-a,
Neruda! cordilheira e mundo livre.27

Inútil, inoperante

Mas mesmo antes disso, em novembro de 1936, logo no início da guerra


civil, portanto, Drummond se apresenta a Cyro dos Anjos como um
indivíduo "socialmente inútil" que, "não tendo tido a coragem cívica do
26
DRUMMOND de ANDRADE, Carlos - "Depois que Barcelona cair". Tribuna Popular, Rio de
Janeiro, a. 1, nº 23, 17 jun. 1945. O poema acompanha ensaio de Aníbal Machado sobre "O teatro
elisabetano".
27
IDEM - “Poema aéreo a Pablo Neruda” (1945). Drummond, uma visita. Rio de Janeiro, Fundação Casa
de Rui Barbosa, 2002, p.34.
suicídio, nem a de ter ido lutar na Espanha ao lado da Passionária, se deixa
estar torpemente numa vida de burocrata", uma vida, como ele mesmo diz,
"bastante escrota"28. Teria Drummond acesso à revista Regards? Em seu
número de agosto daquele ano, o crítico de arte Èlie Faure estampa um
"Portrait de Passionaria", ilustrado com fotografias de David Seymour,
onde a descreve como uma heroína mitológica, às voltas com o mundo dos
fatos e das forças, em tudo equiparável a Quixote ou Santa Teresa, às
figuras de Goya ou Calderón29. Seja como for, em carta posterior (17 nov.
1936), dirigida também a Cyro dos Anjos, Drummond recrimina-lhe a
Emílio Moura "estar fora do tempo". Mesmo admitindo "a falência da
literatura bolchevista, acredito entretanto na possibilidade de uma
mensagem poética que contribua para a solução dos conflitos humanos da
nossa época"30. A utopia de "O livro inútil" explicita, portanto, essa
inoperância:

Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não


encerrasse nenhuma experiência; livro sem direção como sem motivação;
livro disfarçado entre mil, e tão vazio e tão cheio de coisas (as quais
ninguém jamais classificaria, falto de critério) que pudesse ser considerado,
ao mesmo tempo, escrito e não escrito, sempre foi um dos meus secretos
desejos. Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido;
ambições mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o tempo
desse livro, e nunca senti em mim a plenitude insuportável da maturação;
será hoje? Se me disponho a escrevê-lo (o livro inútil) é porque já está
feito... O mesmo seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto
capaz de nascer nesse escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa
janela que se insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que esconde
um gato; ou o céu, onde passam aeroplanos postais. O homem acabado, o
livro acabado são fórmulas; o homem que continua, o livro que continua, e,
sobretudo, o leitor que continua estão insinuando como é audacioso esse
projeto e como é difícil “pintar a passagem”, com o pincel que foge da
minha mão, com a mão que se desprega do braço e navega por conta
própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por sua vez....31

Um livro escrito e não escrito, anoriginal, feito de objetos ready made ("se
me disponho a escrevê-lo (...) é porque já está feito"), longe de convocar o
absenteismo, reencena o "Adieu" de Apollinaire, um adeus à poesia, como
alguma coisa que não seja gesto. É por isso que esse "pincel que foge da
28
IDEM - Cyro & Drummond, op.cit., p.91.
29
"Passionaria, héroine guerrière, est aussi une sainte des temps nouveaux. Elle symbolise l´espérance
que le triomphe de la révolution d´Espagne sur quatre siècles d´horreur représente pour l´Occident".
FAURE, Elie - "Portrait de Passionaria". Regards, nº 134, Paris, 6 ago. 1936, p.9.
30
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Cyro & Drummond, op.cit , p.91-2
31
IDEM - "O livro inútil". Confissões de Minas. Rio de Janeiro, Americ-Edit, 1944, p.226-7
minha mão", o martelo de Artaud, tenta pintar o possível que retorna, a
fotografia que consola: porque ele já existiu como possibilidade. É ele que
define o (mallarmaico) livro inútil de Drummond. Uma estética da
imanência concebida como gesto e não como representação, como processo
e não como aspecto, como contato e não como distanciamento. Agora tudo
isto choca-se, aparentemente, com aquilo que o próprio Drummond elabora
em artigo para a Folha da manhã, pouco depois da morte de Mário de
Andrade, em agosto de 1945. Partindo de uma observação de Paul Eluard
sobre a linguagem revolucionária num poema, (o mesmo, por sinal, que
leva Didi-Huberman a consultar, na Biblioteca Nacional, os arquivos de
panfletos da França sob a ocupação, que seria o lugar onde efetivamente se
escreve, anônimamente, a palavra de Eluard, liberté), Drummond apoia-se
na opinião de um filólogo, Karl Vossler, para argumentar que

A explicação racional deste fato poderá talvez ser encontrada na


observação de Karl Vossler32 sobre o modo como a linguagem se adapta às
contingências da vida social. “Sempre que os homens precisam comunicar-
se coisas importantes e inconciliáveis entre si – diz ele – como acontece
nos tempos de luta intestina, de revoluções e de crítica radical, vemos
reduzida ao mínimo a ornamentação da língua. É que esta só pode florescer
onde o círculo de conservadores se acha fechado mais ou menos
convencionalmente, mediante certo acordo, e onde o caminho da
compreensão já está como que aplainado e encurtado graças ao estilo
comum de vida, de sorte que só resta encomendar à língua, para
comunicação, as coisas mais finas, elevadas, íntimas e afastadas da vida
corrente.”
A afirmação de Vossler, à primeira vista, parece reacionária, atribuindo aos
tempos de luta uma característica de pobreza de linguagem, e mesmo de
conceitos, e aos tempos de conciliação e estagnação um conteúdo
lingüístico e ideológico opulento. Mas, entendida em termos de
simplicidade e complicação, de nudez e de ornato, de naturalidade e
requinte, é francamente aceitável para o observador isento. Assim, temos
uma linguagem despojada, incisiva, direta, para a transmissão de
mensagens urgentes e perigosas entre os homens em conflito; e uma
linguagem ataviada, complexa, pretensiosa e matizada, para servir aos
jogos intelectuais e aos excedentes de finura, próprios do ambiente
pacificado.
Mas tudo isso está implícito num pensamento da antiguidade, na sabedoria
intuitiva em que hoje se revêem tantas aquisições da ciência e da filosofia.
32
Croceano e anti-positivista, Vossler foi um dos fundadores da estilística idealista alemã. Autor de
Positivismus und Idealismus in der Sprachwissenschaft (Positivismo e idealismo na ciência da linguagem,
1904), A linguagem como criação e evolução (1905), Geist und Kultur in der Sprache (Espírito e cultura
na linguagem, 1924) e Metodologia filológica: con referências a idiomas modernos, especialmente o
alemão (1930).
Em poucas palavras, dizia o velho Sêneca que “a linguagem deve estar de
acordo com a vida” (concordet sermo cum vita33). E é a vida, afinal, que
impõe seus ritmos, suas pausas, seus ímpetos, sua imagística e sua forma à
linguagem tanto popular como literária. A esta última, através de
transposições e desvios mais caprichosos, mas nem por isso menos
identificáveis. A ausência de barroco na literatura de hoje pode ser
explicada mais como uma imposição do tempo sobre os escritores, do que
como sinal do refinamento deles. Há, é certo, e haverá sempre, escritores
barrocos e que teimarão em sê-lo; são porém, curiosidades do armazém
literário, testemunhando certa impermeabilidade individual às sugestões da
época em que o autor vive. A linguagem mais diferenciada de uma época
ainda se desenvolve em natural condicionamento às necessidades e
circunstâncias do período em que foi elaborada. Pode-se refletir esse
período por oposição, mas o processo de reflexão ainda será influenciado
pelas características sociais, e são estas que impõem à língua corrente uma
simplicidade e uma nudez exemplares, e ao estilo literário a ausência de
atributos supérfluos, o despojamento de toda matéria gorda ou brilhante, e
ainda a fuga à acrobacia, ao requinte e à obscuridade.34

È que há, em Drummond, como Silviano Santiago já apontou, uma


oscilação entre Marx e Proust 35, entre luto e melancolia, para as quais ele
ensaia diversas soluções de compromisso. Ele teoriza a respeito em
Passeios na ilha:

O equívoco entre poesia e povo já é demasiadamente sabido para que valha


a pena insistir nele. Denunciemos antes o equívoco entre poesia e poetas. A
poesia não se “dá”, é hermética ou inumana, queixam-se por aí. Ora, eu
creio que os poetas poderiam demonstrar o contrário ao público. De que
maneira? Abandonando a idéia de que poesia é evasão. E aceitando
alegremente a idéia de que poesia é participação. Não basta dizer que já
não há torres de marfim; a torre desmoronou-se pelo ridículo, porém
muitos poetas continuam vendo na poesia um instrumento de fuga da
realidade ou de correção do que essa realidade ofereça de monstruoso e de
errado. Desenvolve-se então entre eles a linguagem cifrada, que nenhum
leigo entende, e que suscita o equívoco já célebre entre poesia e povo.
Participação na vida, identificação com os ideais do tempo (e esses ideais
existem sempre, mesmo sob as mais sórdidas aparências de decomposição),

33
SÊNECA, Lúcio Eneo - "Haec sit propositi nostri summa: quod sentimus loquamur, quod loquimur
sentiamus; concordet sermo cum vita". Seja esta a síntese de nossa proposta: o que sentimos, falemos, o
que falamos, sintamos; concorde a linguagem com a vida. Epístola 75, 3-4.
34
IDEM - “A marca do tempo” (1945). Drummond, uma visita. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui
Barbosa, 2002, p.44-45.
35
SANTIAGO, Silviano - Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis, Vozes, 1976; IDEM - “Entre Marx
e Proust”. Folhetim, Folha de S.Paulo, nº 231, 21 jun.1981, p.3-5.
curiosidade e interesse pelos outros homens, apetite sempre renovado em
face das coisas, desconfiança da própria e excessiva riqueza interior, eis aí
algumas indicações que permitirão talvez ao poeta deixar de ser um bicho
esquisito para voltar a ser, simplesmente, um homem36.

Biopoéticas

Essa vertente do luto (introjeção do objeto -o homem- na poesia, enquanto


o mundo permanece pobre e vazio) materializa-se precisamente nas
traduções que Drummond realiza a partir do Romancero General de la
Guerra Española (1944), coletado, em seu exílio de Buenos Aires, por
Rafael Alberti. Prepondera neles a "linguagem despojada, incisiva, direta".
De todos os poemas, muitos dos quais publicados na revista Literatura de
Astrojildo Pereira, escolho um de Vicente Aleixandre, "O miliciano
desconhecido", estampado, entretanto, no Correio da manhã (22 set. 1946).

Não me perguntem seu nome.


Aí o têm, na frente,
pelas barrancas do rio;
e toda cidade o tem.
Cada manhã se levanta,
envolto pelo nascente
com um resplendor de vida
e outro que vai morrer.
Cada manhã se levanta,
e como espada se ergue;
onde que bote seus olhos,
uma luz mortal esplende.
Não me perguntem seu nome,
não haverá quem o lembre.
Cada dia se levanta
com a aurora ou com o poente,
salta, empunha, avança, envolve,
mata, passa, voa, vence;
onde se planta, aí fica;
e, como roca, não cede;
esmaga feito montanha,
ou tal como flecha, fere.
Madri inteira o adivinha,
Em suas faces lateja;
seus pulsos vibram fervendo
de belo sangue candente,
e em seu coração, rugindo,
cantam milhares de entes.
Não sei quem foi, quem será,
mas toda a cidade o tem.
Madri, por trás, o conforta.
Madri inteira o sustenta.
Um corpo, uma alma, uma vida,
como gigante, se ergue,
junto às portas da Madri
deste lutador valente.

36
DRUMMOND de Andrade, Carlos - "Poesia do tempo". Confissões de Minas, op.cit., p. 218-9.
É alto, louro, delgado?
Miúdo, forte, moreno?
É como todos. É todos.
Seu nome? Seu nome erre
por sob o estrépito rouco;
rode vivo pela morte;
rode como uma flor viva,
sempre-viva para sempre.
Chama-se André ou Francisco,
chama-se Pedro Gutierrez,
Luís, João, Manuel, Ricardo,
José, Lourenço, Vicente...
Não, que ele apenas se chama
Povo Invicto – para sempre.37

O povo cindido. Uma parte do povo impossível de ser incorporada ao


próprio Povo. Um povo abadonado. O Povo Invicto. E o homem,
sublevado. "Cada manhã se levanta"; "como espada se ergue"; "salta,
empunha, avança, envolve, / mata, passa, voa, vence"; "tal como flecha,
fere"; "como gigante, se ergue". "É como todos. É todos". Drummond
escolhe um espanhol no exílio do Império, Sêneca, para reiterar a lição de
que concordet sermo cum vita. A poesia é forma-de-vida: participação na
aventura, identificação com os ideais do tempo, curiosidade pelo outro,
apetite em face das coisas, desconfiança da própria interioridade.
A atitude melancólica, entretanto, pode ser colhida em um outro poema de
Pedro Salinas, "Qué de pesos inmensos". Vamos ler o final:

Mas a ti, a ti, memória


de um ontem que foi carne
terna, matéria viva,
e agora não és nada
mais que peso infinito,
gravitação e pressa,
dize: quem te sustenta
senão a esperançada
soledade da noite?
A ti, afã de volta,
anelo de que tornem
invariavelmente,
exatas a si mesmas,
as mais novas ações
que se chamam futuro,
quem te sustentará?
Signos e simulacros
traçados em papéis
brancos, verdes, azuis,
querem ser teu apoio
eterno, ser teu solo
ou prometida terra.
Porém logo mais tarde
se despedaçam – mãos –,

37
ALEIXANDRE, Vicente – “O miliciano desconhecido”. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos –
Poesia traduzida. Org. Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, 7Letras, Cosac Naify,
2011, p. 43-45.
se desfazem em tempo,
poeira, só deixando
vagos rastos fugazes,
recordações, nas almas.
Sim, as almas, finais!
As últimas, as sempre
escolhidas, tão débeis,
para sustento eterno
dos pesos mais fatais.
As almas, como asas
sustentando-se sós
a força de um bater
desesperado, a força
de não pararem nunca,
voarem, portadoras
pelo ar, e no ar,
daquilo que se salva.

Pedro Salinas é o tradutor de Proust ao espanhol e sua poesia pode ser


caracterizada como muito próxima da lírica de Drummond. Um crítico da
época, o espanhol Ricardo Gullón, diz que

Bajo la graciosa soltura de la forma y entre el humor, alguna vez grave y


triste, otras ingenioso y leve, se deja ver un penetrante sentimiento del
mundo y el hombre, hombre y mundo desamparados, que no dejó de
acentuarse desde los amargos presagios del comienzo (...) hasta la angustia
ya puesta en claro de El viento y la guerra o de Cero. Una línea de trazo
grueso atraviesa la poesía de Salinas y marca su sincronización con la
angustia del presente38.

Mas vejamos o poema mais em detalhe. Um tempo que foi carne, agora
nada mais é do que peso infinito. No escuro da noite, sustenta-se em
"signos e simulacros", porque todo melancólico é um profundo
hermeneuta, mas logo tudo se desfaz "em tempo,/ poeira, só deixando /
vagos rastos fugazes". Os homens circulam "como asas / sustentando-se sós
/ a força de um bater / desesperado, a força / de não pararem nunca". A eles
amamos porque deles lembramos, em seu "afã de volta", mas só lembramos
porque os amamos. Todavia, amamos sua falta, a falta que ama. Amando
relembramos e, ao recordar, amamos. Ou seja que, fieis à premissa de
"esquecer para lembrar", o Boi-tempo nos ensina que ama-se a lembrança e
lembramos sempre do amor, "daquilo que se salva". Mas isso significa que
nada a rigor podemos lembrar a não ser que o amor (o objeto) está sempre
para além da lembrança, incessantemente presente.
A pulverização do objeto nos leva portanto a observar que a escultura em
movimento (o objeto: o Brasil), no caso de Man Ray, é absolutamente
contemporânea da Criação de poeira, a foto do abandono, ou antes, o
38
GULLÓN, Ricardo - "La poesía de Pedro Salinas". Asomante, a. 8, nº 2, San Juan, Puerto Rico, abr.-
jul. 1952, p. 32-45.
testemunho de O Grande Vidro de Duchamp, largado "em tempo,/ poeira,
só deixando / vagos rastos fugazes". A primiera vista uma aproximação
entre Drummond e Duchamp parece descabelada e, no entanto, algo os
reúne na revolta do melancólico: um sentimento misto de celebração e
angústia, como explica Maria-José Mondzain.

Duchamp est à coup sûr l’artiste insurrectionnel par excellence qui indique
avec une absolue radicalité qu’un geste d’art n’a d’autre sens que de mettre
le spectateur dans un trouble d’un problème à la fois jubilatoire et
angoissant. La matière grise, pulvérulente, invisiblement soulevée par la
force des souffles, renvoie dans un même mouvement à la vie turbulente et
infinie des particules invisibles qui composent le monde et à la pâleur
mortelle des cendres qui nous ramènent à notre poussière. Une exposition
qui rendait hommage à l’Élevage de poussière a choisi de mettre en
exergue une citation de T. S. Eliot : « et je te montrerai quelque chose qui
n’est ni ton ombre le matin marchant derrière toi ni ton ombre le soir venue
à ta rencontre ; je te montrerai ta peur dans une poignée de poussière ». Le
soulèvement ferait-il peur ? Ne s’agit-il pas plutôt de donner sa forme
sensible à ce qui soulève en tout sujet de la parole et du désir la puissance
du problème. Soulever le problème exige du spectateur de venir à la
rencontre de l’énigme de sa propre visibilité, d’éprouver la défaillance des
certitudes unifiantes pour plonger dans la multiplicité des temporalités,
dans la réversibilité de toutes les orientations. Soulever le problème c’est
accueillir la fécondité toujours périlleuse de la désorientation. L´Inframince
est un des noms du site de cette désorientation39.

Mondzain escolhe os versos posteriores ao 25 de The Waste Land (1922), o


grande poema de Eliot. No enterro dos mortos, a voz anuncia:

And I will show you something different from either


Your shadow at morning striding behind you
Or your shadow at evening rising to meet you;
I will show you fear in a handful of dust.

Cito a tradução de Ivan Junqueira:

E vou mostrar-te algo distinto


De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

39
MONDZAIN, Marie-José "À “ceux qui sont sur la mer...”. Soulèvements, op.cit., p. 61-2.
A História é um espelho que não reflete qualquer gesto e sim nossa própria
pusilanimidade. Daí nasce a rebelião do poeta, santo profeta dos novos
tempos.
Mas, donde vem essa noção de soulèvement? Na verdade, a ideia teórica da
rebelião ou sublevação funcionando como gesto surgira, antes mesmo que
na exposição do Jeu de Paume, em um ensaio de Didi-Huberman sobre
poesia. Nele estabelecia uma série de teses ou postulados, sete ao todo,
como le septour mallarmaico, porque, obviamente, como apontou
Meillassoux, há um zero que organiza o conjunto, tal como no Lance de
dados:

Zéro : le poème bien plus que le roman.


Un : le poème comme don de pensées-phrases.
Deux : le poème comme don d’apparitions-approches.
Trois : le poème comme don de mots-voyances.
Quatre : le poème comme don de mémoires-désirs.
Cinq : le poème comme don de savoirs sensibles.
Six : le poème comme don de gestes-douleurs.
Sept : le poème comme don de révoltes-douceurs40.

O conceito de soulèvement é justamente o ponto final destas teses, quando


aparece o problema da voz popular, a mesma que Drummond também
tentava resgatar no seu cancioneiro: não só no "Canto ao homem do povo
Charles Chaplin" (de A rosa do povo), mas também no "Canto órfico" (do
Fazendeiro do ar), neste caso, mero abismo "de prístina ciência, agora
exangue", mas acima de tudo, no "Canto brasileiro" (de As impurezas do
branco) em que o país é "essa parte de mim fora de mim / constantemente a
procurar-me. Se o esqueço / (e esqueço tantas vezes)/ volta". E o que
retorna nesse nome, Brasil? Retorna o que não aconteceu. A sculpture
mouvante. A fotografia que consola. Elie Faure nos dizia que era a
Passionária "qui traverse en nappes fulgurantes le corps de la danseuse, du
talon qui frappe le sol aux doigts convulsés d´où elle fuse en crépitant"41.

Ora, Didi-Huberman retoma a analogia do batimento com o chão.

Alors les mots et les images s’entendent, travaillent ensemble à faire se


soulever nos pensées dans le geste d’une sorte d’insurrection désarmée,
d’insurrection par éclats de langues et de visions. Insurrection que portent,
dans toutes les poésies populaires – le chant profond des Gitans

40
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Soulèvements poétiques (poésie, savoir, imagination)", Po&sie,
2013/1, nº 143), p. 153-157.
41
FAURE, Elie - "Portrait de Passionaria", op.cit, p. 9.
d’Andalousie, par exemple – les battements rythmiques de la plainte et de
son propre soulèvement42.

A força de um bater / desesperado, a força / de não pararem nunca", as


batidas da história repercutem nessa pulverização da metafísica que é, ao
mesmo tempo, dança e disseminação libertária. "A montanha pulverizada"
é "mísero pó de ferro, e este não passa". Ou como diz Pedro Salinas, em
"Não em palácios de mármore",

O tempo se contava
apenas por minutos:
um minuto era um século,
uma vida, um amor.
Abrigavam-nos tetos,
menos que todos, nuvens;
menos que nuvens, céus;
ar, menos ainda, nada43.

O nada, em suma, o poema, define-se então como um dom de


pensamentos-frases disseminados em múltiplos batimentos: aparições-
aproximações; palavras-visões; memórias-desejos; saberes sensíveis; gestos
e dores; revoltas e acolhimentos. A história são os outros; mas esses outros
não estão, como o Menino antigo (Boitempo II) em um pretérito mais-que-
perfeito, mas num futuro anterior: são um passado do futuro ou então são o
futuro do passado, mas é isso mesmo que os torna contemporâneos porque
o tempo da leitura é um presente imaginário em que a sucessão reverte-se
em regressão, não para a realização (até que enfim!) de uma leitura
progressiva, mas para a efetivação de uma reconstrução retrospectiva, o
devir de uma memória sustentado por uma imagem. Um texto não se lê, diz
Agamben, conta-se, pelo contrário, através de uma série de lembranças
fragmentárias mas não menos inesquecíveis, que emergem de um ponto
imemorial situado para além do tempo44.

42
DIDI-HUBERMAN, Georges - "Soulèvements poétiques (poésie, savoir, imagination)", op.cit., p. 157.
Ver, do mesmo autor, "Le parcours clos du danseur de corde; ou, l’historie de l’art dans les limites de sa
simple raison" in Cahiers du Musee National d’Art Moderne. Paris, nº 30, inverno 1989, p.41-58, mais
tarde incorporado a Devant l´image; IDEM - Le Danseur des Solitudes. Paris, Minuit, 2006; IDEM - "La
Danse de toute chose", in Mouvements de l'air: Etienne-Jules Marey, photographe des fluides. Paris,
Gallimard / Réunion des Musées Nationaux, 2004, p.173-343; "Mortal cadencia ou la gravité dansée", in
Catalogue Pilar Albarracin: mortal cadencia, Lyon. Fage / Paris, La Maison rouge, 2008, p.29-37, p.95-
103; IDEM - "L'Espace danse: étoile de mer Explosante-fixe", Les Cahiers du MNAM, inverno
2005/2006, n° 94, p.36-51; IDEM - "La Terre se meurt sous les pas du danseur", La Part de l'oeil, 2009,
n°24, p.125-141.
43
SALINAS, Pedro - "Não em palácios de mármore" in DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos - Poesia
traduzida, op.cit., p. 329.
44
AGAMBEN, Giorgio - Autoritratto nello studio, p. 90-1.

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