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Zona de sombra (Claudia Roquette-Pinto)

 Cláudia Roquette-Pinto (1963). Formada em tradução pela PUC-Rio. Vencedora do


Prêmio Jabuti em 2002, com Corola (Ateliê Editorial). Estreou com Os Dias Gagos
(1991), ao que se seguiram Saxífraga (1993) – flores que nascem em pedras, metáfora
de poesias, o livro que vamos debater, Corola (2001) – vencedor do Prêmio Jabuti –,
Margem de Manobra (2005), em que se encontra o poema que lemos na semana
passada, dentre outros. [todos eles receberam ótimas críticas de leitores e pares]
o Bisneta de Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), pioneiro do rádio e do debate
eugenista no Brasil – o assunto é cheio de pontas, mas ele defendia uma
“eugenia positiva”, com negros e mestiços. Neta de Maria Beatriz Roquette-
Pinto (19111988), primeira locutora do rádio brasileiro.
o Há alguns anos vive próximo ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, no Rio
de Janeiro. Corola foi escrito na Bocania, após um retiro de trauma familiar.
 Zona de sombra
o Um livro que dá uma guinada em relação à obra anterior da autora, mais
subjetivo, sem o recurso da tmese (corte da palavra ao meio no verso).
o Epígrafe: “Dê também sentido ao seu dito: dê-lhe a sombra” (Paul Celan)
 Nós encontramos o Paul Celan (1920-1970) no conto da Adriana
Lisboa, “O escritor, sua mulher e o gato”, como uma antecipação do
suicídio do escritor. Poeta, um dos mais destacados da literatura em
língua alemã do século XX, tradutor de algumas dezenas de poetas,
sobrevivente ao Holocausto.

“Fala também você” (De limiar em limiar (Vin Schwelle zu Schwelle), 1955):

Fala  –
Mas  não separa o não do sim.
Dá a seu dizer também o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra suficiente,


dá-lhe tanta,
quanta sabes repartida em torno de ti entre
Meio-dia e meia-noite e meio-dia.
Olha em volta:
vê, como isso ganha vida ao redor
Na morte! Vivo!
Quem fala sombras fala a verdade

 O tema central que o livro antecipa em seu título é a “sombra” (ou afins, como o
silêncio, a tortuosidade), como uma conquista de nitidez sobre as coisas. Lendo por
outro lado a epígrafe de Celan, algo que não tenha sombra não tem sentido.
o Se a gente pensa, então, em “Zona de sombra”, estamos nisso que, no senso
comum, impede de ver, mas que a poeta está propondo que seja justamente
aquilo que dá sentido às coisas.
o Também podemos pensar, ainda mais radicalmente, que trazemos à luz
despistes para manter as coisas na zona de sombra.
 No desespero ou no lapso podemos também trazer à luz justamente o
que gostaríamos de esconder.
o Há ainda uma terceira acepção, mais visual, imagética, pictórica, que tem a ver
com a presença da zona de sombra em objetos representados, o que lhes dá
realidade.
 “Fósforo” é a primeira parte do livro.
o Talvez ler “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos” (Álvaro de
Campos)
 Leitura de “tela” (p.19)
o De imediato, poema não é uma disposição das palavras no papel, uma
diferença entre versos e frases, mas um modo de ser da linguagem. A
linguagem poética diz o mundo e diz a si própria na mesma medida.
o “tela” é claramente sobre a verdade, sobre o real, a “ideia que não se equivoca:
o centro negro”. O ponto de sombra, para provocar.
 A tradição é longa sobre essa necessidade da radicalidade da forma
poética, como em “Sobre alguns temas em Baudelaire”.
o Diferente do esforço exíguo para o acerto, a poeta vai pensar na poesia como a
arte do fracasso. Por sua radicalidade, qual seja – pela linguagem, que é
também coisa, esta é a única forma de dizer isso – é preciso lidar com a
decepção, “o poema termina sempre um pouco antes”, “o poema é sempre o
poema possível”.
o A radicalidade não é, como esperado, exclusiva da autora/do autor. E estende
essa necessidade à leitora ou ao leitor. Mesmo os mais divertidos guardam um
tipo ponto-de-sombra, de resvalo no real.
 Leitura de “a caminho” (p.20) – Nelson Ascher: “talvez o melhor do livro”
o Menção direta a Drummond (“Máquina do Mundo” e “No meio do caminho”),
Guimarães Rosa (“A terceira margem do rio”, a canoa, relação com o pai) e
Caetano Veloso/Milton Nascimento, “A terceira margem do rio” (1991);

E como eu palmilhasse vagamente


uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos


que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo


na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu


para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia. (...)

o Poema denso, que investe na imagem poética do caminho, do gravatá, da


canoa.
 Chamamos de imagem poética (Octavio Paz) quando linguagem e
imagem conjuntamente formam a figura.
o Logo percebemos o caráter metalinguístico do poema, o fio do poema, da
linguagem, o seguir pela linguagem, tateando.
o Paulo Henriques Britto, poeta, contemporâneo e interlocutor de Ana Cristina
César, diz que “O efeito final do poema não é um sentido que possa ser
resumido, e sim o complexo resultante desses efeitos semânticos, sonoros e
rítmicos, impossível de parafrasear.” Ele divide o poema em quatro
movimentos:
 Três primeiras estrofes, o eu na proa da canoa, as imagens de corte.
 As quatro estrofes seguintes, o gravatá, flor áspera que acumula água.
PHB diz até mesmo que as vogais mudam.
 Estrofes oito e nove, o turvo, o naufrágio, as catadupas (queda d’água).
 Desfecho em que retorna o eu lírico. Perdido o caminho só resta o
caminho.
o Neste caso, marcar já duas características conhecidas da poeta:
 Um: em geral, seus poemas têm sempre algo de metalinguístico, estão
sempre a discutir esse vão entre o que é possível dizer e o que não é
possível dizer.
 Dois: assumidamente, a relação da poeta com a palavra é menos
intelectual e mais sensorial ou sensual, é mais “um tatear em busca de”
do que um “formular”.
 Isso também tem a ver com a maneira como ela lida com suas
referências, nunca de maneira exaustiva e culposa.
 O livro inteiro se move nesses princípios e, por isso, é
intensamente performático ou reforçar o presente do poema e da
leitura.
 Mas como escapar, nesse exercício, do risco do hermetismo. Isto é, no refreamento à
fruição proposta pelo poema, o que o impede de fechar-se em si mesmo.
o Espera-se que exista um prazer na leitura do texto poético. Justamente por seu
anti-pragmatismo, há algo ali que é deleite, pela forma, pelas palavras, pelo
ritmo, pelas imagens.
o Se a gente pensa no real como “o que escapa ao simbólico”, a radicalidade da
poesia – não necessariamente restrita à categoria “poesia”, certo? – talvez
permita que ela seja uma linguagem muito própria de contato com o real, e isso
tem seu valor.
 Tanatografia da mãe: Isadora Kireger.
o Nos termos da própria poeta, uma poética se matura quando o poeta encontra
com mais nitidez sua singularidade de voz e de perspectiva. A leitura seria o
encontro do que há de si, de nós, no outro, porque essa afinação não é
particular, mas compartilhável.
 “Grafito numa cadeira” (em Convergência, 1970)

Cadeira operada dos braços


Fundamental que nem osso

Não poltrona com pés de metal


Knoll
Ou projetada por um sub-Moholy Nagy1
Com nota didascálica

Antes cadeira no duro


Cadeira de madeira
Anônima
Inânime2
Unânime
Cadeira quadrúpede

Não aguardas
Nenhuma "iluminação" particular
Nem assento e clavícula de nenhuma deusa
Que te percutisse — gong —
Nem de nenhum Van Gogh
Que súbito te tornasse
Eterna

Roma, 1964

 Leitura acompanhada de “cadeira em mykonos”:


o Glossário: “mykonos” (ilha grega), “cendal”, tecido de seda ou linha, comum à
nobreza.
o O primeiro movimento do poema, em intertexto com Murilo Mendes, revela
certa mistificação presente no original, que distingue as cadeiras comuns das
cadeiras artísticas, com muita ironia, claro, mas ainda assim será desmontado
pelo poema de Roquette-Pinto.
o Aqui a cadeira comum é eternizada/segmentada justamente no que tem de
comum, ao mesmo tempo em que se fala sobre o próprio gesto de transportar a
cadeira para o poema.
 Sublinhar as rimas maravilhosas do poema.

1
1895-1946; pintor e designer húngaro.
2
Sem anima, sem alma.
 Da virada do século pra cá, há algumas transformações importantes da concepção de
poesia da poeta e da maneira como isso se viu nos textos:
o A posição contrária a “poesia feminina”, “poesia gay”, “poesia negra”, “poesia
ecológica” etc., ao entender que a militância poderia ser uma prisão para a
poesia, transformou-se numa poesia com a natureza mais presente também
como questão.
 Nessa caminhada de leitura detida do livro, vamos pular o “teatro” e ler “cinco peças
para o silêncio”, cujo título já traz todas essas ambiguidades em clivadas no “para”
que pode ser: como presente ao silêncio, para o momento de silêncio, em homenagem
ao silêncio, etc., ambiguidades que só aumentam com a leitura das peças.
 Peças: prosa poética.
 Zona de sombra: leitura de “vão” (p.41)

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