Você está na página 1de 15

O CORPO-CIBORGUE: O PROCESSO DE CRIAÇÃO EM "OMNIPRESENCE"

(1993)

THE CYBORG-BODY: THE CREATION PROCESS IN "OMNIPRESENCE" (1993)

Beatriz Fernandes Pinheiro do Amaral (PUCCAMP)i


Luisa Angélica Paraguai Donati (PUCCAMP)ii

RESUMO
Ao pesquisar proposições produzidas no contexto de arte e tecnologia, reconhecemos
práticas desestabilizadoras de biopoder (FOUCAULT, 1997) enquanto específicos recursos
tecnológicos da obra Ominipresence (1993) de ORLAN, conforme as dimensões do processo
de criação (REY, 2002). A ação artística desvela o exercício de controle contemporâneo dos
corpos femininos pelas instituições dominantes, que fabricam e impõem intervenções
tecnológicas para os mesmos. Concluímos que o trabalho artístico confronta e se rebela dos
interesses tecno-mercadológicos através da subversão dos modos de uso dos objetos
tecnológicos na ação poética, que instaura o próprio corpo da artista como linguagem
ciborgue.

PALAVRAS-CHAVE
Arte e tecnologia. Processo de criação. Biopoder. Corpo-ciborgue.

ABSTRACT
Examining proposals made in the context of art and technology, we recognize destabilizing
practices of biopower (FOUCAULT, 1997) as specific technological resources of ORLAN’s
Ominipresence (1993), according to the dimensions of the creation process (REY, 2002). The
artistic action reveals the exercise of contemporary control over female bodies by the dominant
institutions that manufacture and impose technological interventions on them. We conclude
that the artistic work confronts and rebels against the interests of the techno-market by
subverting the way technological objects are used in poetic action and establishing the artist’s
own body as a cyborg language.

KEYWORDS
Art and technology. Creation process. Biopower. Cyborg-body.

1
Introdução
O texto apresenta alguns desdobramentos de uma pesquisa em Artes ainda em
desenvolvimento, que procura articular processos de criação em Arte e Tecnologia
com a Fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1999) e Pós-fenomenologia (IHDE,
2009). Nessa proposta em curso, que pesquisa por subversões de lógicas sociais
dominantes, reconhecemos a necessidade de um resgate histórico das poéticas em
arte e tecnologia produzidas pelas mulheres. Assim, escolhemos a produção de
ORLAN como um dos objetos de estudo, pois a artista se anuncia como referência na
investigação da imagem e dos limites dos corpos pós-humanos. Além disso, ela
continua a mobilizar a própria práxis na atualidade, com elementos oriundos de
avanços tecnológicos mais recentes. Retomamos dela, a obra intitulada
“Ominipresence” (1993), tanto na pesquisa em processo, quanto neste artigo, porque
tal ação poética continua denunciando, há quase trinta anos, a maneira pela qual o
controle dos corpos femininos na contemporaneidade é tecnologicamente
institucionalizado pelas redes de biopoder (SIBILIA, 2015).

As práticas de poder - "biopolíticas" (FOUCAULT, 1997), concentradas outrora nas


mãos do Estado, agora se observam enquanto ações sistemáticas de distintas
instituições e corporações tecno-mercadológicas para garantia do controle social.
Uma delas, como afirma Feenberg (2005), é retirar o poder dos trabalhadores quando
se restringe o conhecimento técnico a um pequeno grupo de especialistas que
conduzem o desenvolvimento tecnológico exclusivamente à satisfação de seus
interesses econômicos. Essa concentração de saber, para o autor, garante a
supremacia das instituições tecno-mercadológicas na contemporaneidade, pela
repetição acrítica do consumo de seus objetos tecnológicos ofertados.

2
As estratégias questionadas por ORLAN são fundamentadas, sobretudo, pelos
saberes da teleinformática e da biotecnologia, pautadas no interesse de
transformação da vida humana em produto/modo de consumo. E, considerando as
relações cada vez mais indissociáveis entre as tecnologias e as sociedades pós-
capitalistas, tais práticas têm gerenciado um sofisticado disciplinamento de corpos e
subjetividades através da manipulação genética (SIBILIA, 2015). Para a autora, o
biopoder implica a normalização da sociedade pela definição de comportamentos
conforme os desvios do padrão ideal de hábitos.

Como aponta Elias (2011), a condição de civilidade determinou relações de poder


pelas quais o imperativo social foi se infiltrando nas classes menos abastadas,
conformado pela ritualização do consumo. Neste sentido, a tecnociência vem
aperfeiçoando a modelização social contemporânea pelo reforço das convenções
instituídas ao administrar os processos biológicos e suas intervenções
biomoleculares, que visam a otimização de performance da vida. Consequentemente,

[...] intensifica-se essa vontade de aumentar, prolongar, multiplicar a


vida, bem como de desviar, compensar, corrigir ou alterar suas
deficiências. Estas últimas, agora, começam a ser definidas e tratadas
como erros na programação biológica, como falhas inscritas na
informação contida em suas moléculas. [...] Impregnados do espírito
empresarial, os novos saberes privatizados e descentralizados
vendem a promessa de dominar o imprevisível [...](SIBILIA, 2015, p.
194).

Este contexto, como afirma a autora, intensifica uma estratégica específica da


biopolítica: “controlar (eventualmente modificar) a probabilidade dos eventos
biológicos, em todo caso compensar seus efeitos” (FOUCALT, 2000, p. 297). Assim,
as possibilidades de alteração de processos biológicos “são oferecidas apenas aos
consumidores pertencentes aos segmentos de mercado previamente definidos como
público-alvo de cada estratégia mercadológica” (SIBILIA, 2015, p. 202), visando
domesticação e obediência. Neste cenário, reforçamos o pensamento da Ativista
Vandana Shiva (2001) de que o capitalismo contemporâneo buscou colonizar a
fisiologia dos corpos femininos, e defendemos que a especificidade do gênero mulher
socialmente construído/atribuído exigiu práticas particulares de intervenção, como

3
denunciadas em “O mito da Beleza” por Naomi Wolf (1992). A autora contextualiza os
processos consolidadores do que ela nomeou como a “Era da Cirurgia”.

Tudo o que for profunda e essencialmente feminino — a vida na


expressão do rosto, o toque da sua pele, o formato dos seios, as
transformações da pele após o parto — está sendo reclassificado
como feio, e a feiúra como uma doença. Essas qualidades envolvem
uma intensificação do poder feminino, o que explica por que motivo
elas estão sendo reapresentadas como uma diminuição de poder.
Pelo menos um terço da vida de uma mulher é caracterizado pelo
envelhecimento; cerca de um terço do seu corpo é composto de
gordura. Esses dois símbolos estão sendo transformados em
condições passíveis de cirurgia — para que nós mulheres só nos
sintamos saudáveis se formos dois terços do que poderíamos ser
(WOLF, 1992, p. 308).

Embora Haraway (2000) defenda não existir uma experiência comum – portanto,
unificadora – vivenciada por todas as pertencentes à categoria “mulher”, esta
afirmativa é refutada pelo futuro apocalíptico profetizado por Wolf (1992), em que a
pressão contínua para não ser designada à categoria do feio conduziria,
inegavelmente, as mulheres às intervenções cirúrgicas com fins estéticos. Entretanto,
é possível esperançar por realidades futuras mais otimistas, enquanto nos tornamos
conscientes do modo como as redes de poder se manifestam e a quem servem;
negociando ou aceitando o que é ofertado de maneira crítica, pois “[...] o biopoder
possui certas fendas através das quais as forças vitais conseguem fugir e reagir”
(SIBILIA, 2015, p. 192).

O aproveitamento dessas brechas políticas/ideológicas que visa problematizar as


estratégias de dominação dos corpos femininos pode encontrar um terreno fértil
na/pela ação artística, diante da proposição de outros usos para os produtos
tecnológicos disseminados nas sociedades pós-capitalistas. Subvertendo as
funcionalidades dos objetos técnicos no processo de criação, alguns artistas exploram
as relações entre arte e tecnologia enquanto operacionalizam linguagens para
desestabilizar seus discursos hegemônicos. Como afirma Merleau-Ponty (1999),

A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime,


instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou,
inversamente, arranca os próprios signos — a pessoa do ator, as
cores e a tela do pintor — de sua existência empírica e os arrebata
para um outro mundo. Ninguém contestará que aqui a operação

4
expressiva realiza ou efetua a significação e não se limita a traduzi-la
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 248-249).

Nesta perspectiva, observamos a performance "Omnipresence" (1993) (Imagem 1) de


ORLANiii, instaurada na década de noventa, quando a artista inicia o debate da
condição do corpo na contemporaneidade e suas possibilidades de construção e
modelização pela intervenção cirúrgica.

Imagem 1. Omnipresence. Orlan. Sétima cirurgia-performance. 1993. Fonte: Disponível em: <
https://www.orlan.eu/works/performance-2/>. Acesso em: jun 2022.

Por conta desta proposição artística crítica, recuperamos Sibilia (2015) para pensar
como as estratégias do biopoder atravessam os espaços socioculturais a fim de
submeter as pessoas e suas vidas aos interesses do mercado. Para Orlan (1993, apud
ORLAN STUDIO, 2013), muitos integrantes do cenário artístico daquele momento -
artistas e/ou galeristas - haviam cedido aos desejos mercadológicos. Era de sua
vontade, a partir do que acreditava e definia como arte, questionar noções pré-
concebidas, opondo-se à normalização capitalista. E oferecendo sua carne como
parte da materialidade da obra, buscou romper os limites fisiológicos de seu corpo
através de técnicas médicas, acabando por desestabilizar o disciplinamento dos
corpos femininos oriundo de um discurso da beleza dominante.

5
Para uma compreensão profunda da linguagem instaurada pelo trabalho de ORLAN,
é preciso assumir que no processo de criação, cada gesto de manipulação das
materialidades costura um sentido simbólico na obra. Este processo dinâmico e
interativo entre práxis e teoria, apresenta, conforme Rey (2002, p. 124) três
dimensões: a "abstrata, a prática e a conceitual", que atuam simultaneamente e de
modo mais ou menos perceptível a depender de cada gesto poético. Assim,
buscaremos identificar modos operativos poéticos nas instâncias de criação
apresentadas.

"Corpo próprio" na dimensão abstrata

Ao fenômeno perceptivo, Merleau-Ponty (1999, p. 207) atribui o conceito de "corpo


próprio", isto é: o indivíduo, constituído por sua corporeidade – indissociável entre
órgãos e consciência – experiencia o mundo e a tudo atribui sentido através das
habilidades motoras e emocionais de sua carne. Assim, o artista é um corpo próprio
que, a partir de sua produção, estabelece um momento especial em que “o filtro
perceptivo vai processando o mundo em nome da criação da nova realidade em
construção. [...] No instante de apreendermos qualquer fenômeno, já o interpretamos
e naquele mesmo instante vivenciamos uma determinada representação” (SALLES,
2013, p. 95). Este corpo próprio inscreve suas motivações, rascunhos, interesses,
ideias, trabalhos anteriores - que podem vir ou não a se tornarem parte de um novo
trabalho - na dimensão abstrata (REY, 2002) do processo de criação. Portanto, é
positivo investigar os interesses e objetivos da artista para facilitar o entendimento e
os desdobramentos das questões propostas pela obra em seu contexto social.

O ponto de partida do desejo de inserir a cirurgia dentro do seu fazer artístico se


estabelece após precisar de uma cirurgia de emergência. Outras cirurgias
performáticas por ela foram realizadas, ora explorando a construção da imagem
recorrendo à iconografia judaico-cristã, ora investigando a mutabilidade de entidades
hinduístas. Alguns desses trabalhos foram apresentados no Fluxus and Happenings
(1989). Neste evento, curadores britânicos a serviço de um espaço artístico norte-
americano a convidaram para produzir uma obra que viria a ser a sétima cirurgia-
performance, sobre o tema: “Arte e vida nos anos 90”.

6
Wolf (1992) já apontava, no início da década de 90, a evolução e popularização
constante da indústria da cirurgia estética nos Estados Unidos, cujo crescimento
anual, naquele período, apontava para os 10%; especialidade médica que mais
crescia no país. É pela apreensão desse contexto que a autora afirmou que os
cirurgiões dependem que as mulheres possuam uma percepção negativa de si e da
“intensificação do ódio” (WOLF, 1992, p. 309) à própria imagem para rentabilizarem
seus lucros. Mulheres são convencidas de que devem melhorar sua performance em
todas as dimensões da vida, incluindo a da aparência. Aquelas que recusam a
otimização estão condenadas à obsolescência, razão pela qual neste período já
existia um grupo de mulheres viciadas nos procedimentos estéticos invasivos (WOLF,
1992).

Poucos anos depois da primeira publicação de “O mito da Beleza” (1990), a obra


comissionada assume um posicionamento crítico contrário à finalidade de
padronização de beleza e produção de estereótipos oriundos das práticas cirúrgicas
estéticas. Entretanto, a artista defende o potencial crítico dessas intervenções
médicas quando usadas como meio de modificação corporal cuja intensão ou design
é pensada pelo próprio indivíduo (ORLAN, 1993 apud ORLAN STUDIO, 2013) ao
invés de ser condicionada pelas instâncias hegemônicas, contextualizando tanto seus
questionamentos dentro do eixo “Arte e vida nos anos 90” quanto a mutação física
destinada ao seu corpo na instauração artística.

Com as minhas cirurgias de performance, eu quis questionar a beleza.


Eu coloquei implantes nas minhas têmporas. Esse procedimento
cirúrgico nunca havia sido feito antes e não foi feito para criar beleza.
Pelo contrário, se eu sou descrita como uma mulher com duas
saliências nas têmporas, você pode me imaginar como um monstro
indesejado, mas se você me vir, isso pode mudar. Então essas duas
saliências, essas duas pequenas coisas, esses dois implantes que
normalmente são colocados nas maçãs do rosto, eu os movi para aqui
em cima. Então, apenas um pequeno desequilíbrio, uma pequena
mudança nesses estereótipos que são apresentados a nós muda tudo.
[...] Foi difícil passar essa mensagem, porque uma mulher que usa
cirurgia estética é necessariamente alguém que quer ser mais bonita.
Eu realmente quis fazer um autorretrato, me refazer, me reinventar e
mostrar que não estava submetida aos padrões [de beleza] usuais
(ORLAN, 2019, nossa traduçãoiv).

7
Valorizando a afirmativa de que a arte contemporânea se apropria dos avanços
tecnológicos e procedimentos técnicos de outras áreas do conhecimento (REY, 2010),
a sétima cirurgia-performance aconteceu no dia 21 de novembro de 1993, na galeria
Sandra Gering em Nova York, transmitida via satélite para outras instituições artísticas
em outras partes do planeta, como o Centre McLuhan em Toronto. ORLAN se
manteve acordada durante todo o procedimento, inclusive respondendo os
espectadores ao redor do mundo, já que através da conexão em rede, poderiam ser
feitas perguntas sincrônicas. Essa dinâmica concluiu o objetivo de transformar o ato
privado da operação cirúrgica em ação pública, uma performance televisionada.
Através da analgesia, a artista reduziu sua “[...] sensibilidade à dor sem supressão
das outras propriedades sensitivas, nem perda de consciência” (OLIVEIRA et. al.,
1997, p. 9). Este gesto era imprescindível para distinguir sua Arte Carnal da Body Art
e para negar a obrigatoriedade do sofrimento; pois a ausência da dor (ORLAN, 2019),
contraria “[...] a mentira de que a dor das mulheres pode ser justificada – como os
generais justificam a guerra – como parte de um inevitável conflito evolutivo” (WOLF,
1992, p. 314).

A performance de ORLAN estabelece uma relação metalinguística com o conceito de


corpo próprio (MERLEAU-PONTY, 1999), pois, pela práxis, a artista modifica a sua
realidade corpórea, bem como coloca o processo de transfiguração enquanto
fenômeno percebido e transmitido via satélite. Ainda, o exercício poético comprova
que, mesmo as percepções humanas sendo intermediadas pelos interesses tecno-
mercadológicos, as instituições não podem prever ações de resistências improvisadas
pelos excluídos do saber técnico, ações táticas motivadas pelo modo opressor como
o impacto de tais objetos tecnológicos os atravessam (FEENBERG, 2005).

"Incorporações" na dimensão prática

Uma vez contextualizado o repertório que configura a intensão artística na dimensão


abstrata, valida-se a necessidade de identificar os artefatos – dos mais simples aos
mais complexos – e seus modos de acionamentos. Afirmando a visão heideggeriana
do caráter relacional da tecnologia aos seus contextos de uso, os objetos técnicos em
Omnipresence (1993) possibilitam a ampliação da intencionalidade corpórea para

8
além do espaço circundante (IHDE, 2009) e na conjuntura da produção artística,
materializam os conceitos/desejos poéticos – principalmente, a prótese incorporada e
a analgesia.

Revisitando o conceito de "corpo próprio" (MERLEAU-PONTY, 1999), há uma co-


constituição de humanos e suas tecnologias que Ihde (2009, p. 42) nomeia por
"incorporação". Trata-se da maneira pela qual os objetos tecnológicos medeiam o
processo perceptivo. Os artefatos – simples ou complexos – deixam de ser meros
objetos em uso e tornam-se um modo de ampliação da atitude corpórea, pois

[...] nenhum corpo é, em si, sagrado; qualquer componente pode


entrar em uma relação de interface com qualquer outro desde que se
possa construir o padrão e o código apropriados, que sejam capazes
de processar sinais por meio de uma linguagem comum (HARAWAY,
2000, p. 68).

Para concretização desta obra (Imagem 2), identificamos o uso de múltiplos artefatos.
O cômodo verde da galeria apresenta em uma das paredes duas imagens de ORLAN,
manipuladas por um software de metamorfose - uma interface cognitiva "[...] cujo
acionamento/acesso se dá por reconhecimento do sistema em relação ao usuário,
como reconhecimento de fala, de gestos, de aproximação, de íris, geolocalização e
assemelhados" (ROCHA, 2010, p. 101). Ainda que não utilize a conectividade via
internet, identificamos uma relação de atravessamento do espaço físico pelo espaço
informacional via satélite que permite a comunicação da artista com os participantes
remotos, conforme se visualiza no monitor da Imagem 2. Há ainda, uma mesa de
metal com máquinas esterilizantes e instrumentos cirúrgicos operados pela equipe
médica e para atestar uma linguagem do corpo, uma intérprete de Língua de Sinais.

9
Imagem 2: Omnipresence. Orlan. Sétima cirurgia-performance. 1993. Fonte: Disponível em: <
https://www.orlan.eu/works/performance-2/>. Acesso em: jun 2022.

Sem dúvidas, o processo de analgesia foi vital para diferenciar esta ação artística e
cirúrgica específica daquelas realizadas por outras mulheres, que permanecem
sedadas e inconscientes até o final da intervenção estética. Desacordada, ORLAN
não estabeleceria trocas com os observadores em rede, dificultando a
espetacularização do ato cirúrgico. A interação com o público leva a artista, sem dor,
a pintar com o próprio sangue, a fazer transferência de seu rosto, a ler um trecho de
livro e a conversar com naturalidade, sem reações físicas instintivas para com os
estímulos dolorosos.

Outra lógica subvertida é a das próteses, desenvolvidas para trazer volume às maçãs
do rosto e que a artista decide por implantar em outro lugar da sua face. Seria
impraticável problematizar o discurso hegemônico de beleza se a artista não
incorporasse permanentemente as estruturas para criarem saliências em suas
têmporas, já que a aparência física de ORLAN anterior a este procedimento cirúrgico
é a de uma mulher de pele clara e traços faciais delicados, e as cirurgias estéticas
buscam aperfeiçoar características físicas pelo entendimento de beleza enquanto
características físicas caucasianas (WOLF, 1992). O ambiente cirúrgico e seus

10
aparatos instrumentais foram significados através de um desvio de finalidade pelo
contexto poético que problematiza o pensamento dominante sobre a aparência
feminina.

No processo de criação, as incorporações constituem a dimensão prática do fazer


(REY, 2002) pelo uso de estímulos multissensoriais, pela escolha de procedimentos
e técnicas e pela integração com objetos e processos tecnológicos. Nesta dimensão,
se sobressaem o modo como se projetam as relações entre ciência, tecnologia e
indivíduo. Salientamos que todo objeto tecnológico possui em si um código técnico,
isto é, um conhecimento inscrito/operacionalizado no design do objeto, voltado para
“a realização de um interesse ou de uma ideologia para uma solução tecnicamente
coerente a um problema” (FEENBERG, 2005, p.5). Compreende-se que o código
técnico é também uma materialização do biopoder, pois “o resultado de escolhas
técnicas é um mundo que dê sustentação à maneira de vida de um ou um outro grupo
social influente” (Ibidem, p. 2). Percebamos, uma prótese estética também constitui
em seu formato, a promessa do embelezamento/rejuvenescimento facial, servindo à
ideologia pós-capitalista pela manutenção da lucratividade de um pequeno grupo de
especialistas médicos e pelo controle da aparência dos corpos femininos. Portanto,
ao desviar a funcionalidade dos objetos tecnológicos, ORLAN necessariamente se
opõe ao código técnico, denuncia e enfraquece os interesses hegemônicos de
dominação dos corpos femininos. O fim da performance marca o nascimento de um
corpo outro, um corpo-prótese, tecnicamente projetado, que reescreve os discursos
hegemônicos da beleza destinados às mulheres.

"Corpo-ciborgue" na dimensão conceitual

Feenberg (2005) discorre que a manutenção do poder das elites do passado sobrevive
pela monopolização do conhecimento tecnológico, traduzido no design do objeto.
Para o pesquisador, é a partir do posicionamento crítico daqueles que têm seus
interesses preteridos na inscrição do código técnico que surgem resistências
micropolíticas. Elas funcionam como denúncia e enfrentamento do controle
institucionalizado pelas redes de poder, a partir do uso não programado dos recursos
tecnológicos.

11
Compreendemos esse esforço também na dimensão conceitual do processo de
criação de ORLAN, instância em que se articulam conceitos que instauram sentidos
simbólicos às materialidades configurantes da obra (REY, 2002). O desvio do uso
programado de certos objetos em sua corporeidade marca o nascimento de um corpo
distinto; matéria-prima transformada em outra realidade, pós-cirurgia. A nova criatura
personifica a resistência micropolítica às práticas de biopoder e a ela associamos o
conceito de ciborgue (HARAWAY, 2000): "um corpo híbrido" que, a partir de seu lugar
fronteiriço entre orgânico e artificial mobiliza as possibilidades de resistência em
conjunto com os próprios recursos tecnológicos para romper as matrizes de
dominação.

[...] A escrita-ciborgue tem a ver com o poder de sobreviver, não com


base em uma inocência original, mas com base na tomada de posse
dos mesmos instrumentos para marcar o mundo que as marcou como
outras. Os instrumentos são, com frequência, histórias recontadas,
que invertem e deslocam os dualismos hierárquicos de identidades
naturalizadas. [...] As histórias feministas sobre ciborgues têm a tarefa
de recodificar a comunicação e a inteligência a fim de subverter o
comando e o controle (HARAWAY, 2000, p. 95).

O corpo ciborgue manifesta-se como exemplo prático da retomada da autonomia e


poder dos corpos femininos para escapar dos interesses tecnomercadológicos. A
importância de ações de resistência como a que se manifesta em “Ominipresence”
(1993) é a problematização da necessidade de descentralização do poder tecnológico
como caminho para reivindicação dos desejos e escolhas dos grupos sociais em
situação de dominância (FEENBERG, 2005).

Considerações finais

Neste artigo, buscamos evidenciar o potencial combativo das obras produzidas no


contexto de arte e tecnologia no que diz respeito aos discursos de dominação sobre
os corpos femininos. Assim, acreditamos ter contribuído para atualizar a relevância de
“Ominipresence” (1993) na contemporaneidade, a partir de um olhar crítico orientado
ao controle dos corpos pelos sistemas tecno-mercadológicos atuais, diante das
inferências na condição humana pelas mediações tecnológicas.

12
A investigação dessa afirmativa de dominação nas produções artísticas tornou
evidente a necessidade de instrumentalização para subversão da affordance dos
objetos tecnológicos, pois quando ORLAN manipula a própria corporeidade ao dispor
das incorporações poéticas, instaura um corpo-ciborgue. A artista compreende seu
lugar na contemporaneidade e reconhece como componente estruturante da
humanidade pós-moderna a mediação e incorporação (IHDE, 2009) das tecnologias,
tanto no processo perceptivo individual quanto nas práticas sociais.

O corpo-artista e o corpo-linguagem personificam a máxima de que as máquinas


possam ser “componentes íntimos, amigáveis eus” (HARAWAY, 2000, p. 101) às
ordens da autenticidade individual ou de uma prática política em que subjetividades
produzidas contribuem para o colapso daquelas impostas hierarquicamente.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo


financiamento do processo nº 2022/05643-6.

Referências

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Zahar, 2011.

FEENBERG, Andrew. Teoria Crítica da Tecnologia: um panorama. Tailor-made


Biotechnologies. vol.1, n.1, 2005, p. 1-15. Disponível em:
<http://www.sfu.ca/~andrewf/books/Portug_Teoria_Crtica_da_Tecnologia.pdf>. Acesso em
jul 2022.

FOUCAULT, Michel. 1978 – 1979: Nascimento da biopolítica. In: FOUCAULT, Michel.


Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Antropologia do


ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

IHDE, Don. What is Postfenomenology? In: Postphenomenology and Technoscience:


The Peking University Lectures: New York: SUNY Press, 2009.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,


1999.

13
OLIVEIRA, Claudia et al. A dor e o controle do sofrimento. In: Revista de Psicofisiologia.
vol. 1, n. 1, p. 1-26, 1997. Disponível em: <http://labs.icb.ufmg.br/lpf/mono2b.pdf>. Acesso
em jun 2022.

ORLAN. Biography, s.d. Disponível em: <https://www.orlan.eu/bibliography/biography/>.


Acesso em jun 2022.

ORLAN. Performance. Disponível em:<https://www.orlan.eu/works/performance-2/&gt>.


Acesso em jun 2022.

ORLAN. ORLAN au pied de la Croix at the foot of the cross Raphael Gatel, 2019. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=wI19H2x1WdI>. Acesso em jun 2022.

ORLAN STUDIO. ORLAN, 2013. Omnipresence. Disponível


em:<https://vimeo.com/66967753>. Acesso em jun 2022.

REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. A Colocação
do Problema: Arte Como Processo Híbrido. In: Blanca Brites; Élida Tessler. (Org.).
Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 123-140.

REY, Sandra. A dimensão crítica dos escritos de artistas na arte contemporânea. In:
Revista PÓS. vol. 1, n. 1, p. 8-15, mai-out 2011.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de interfaces computacionais na arte tecnológica. In:


Suzete Venturelli (org.). In: Anais do 9o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia
(#9ART): sistemas complexos artificiais, naturais e mistos, 2010. p. 101-105. Disponível em:
<https://www.repositoriobib.ufc.br/000028/000028eb.pdf>. Acesso em fev 2022.

SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo:
Intermeios, 2013.

SHIVA, VANDANA. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis:


Vozes, 2001.

SIBILIA, Paula. Biopoder. In: O Homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à
luz das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. (Trad.). Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

Notas

i Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de


Campinas (PUCCAMP). Graduada em Artes Visuais com ênfase em Licenciatura pela PUCCAMP (2021). Bolsista
em Iniciação Científica pela FAPESP (2019-2020). Bolsista de Iniciação à Docência - PIBID (2018-2019). No
campo da pesquisa em arte, se interessa por práticas artísticas que diluem as fronteiras entre linguagens e
materialidades na investigação das temáticas: processos de criação; imagem, corporeidade e memória;
multissensorialidade; identidade; filosofia da tecnologia; dispositivos tecnológicos. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/9155472622822698>. Acesso em jul 2022.
ii Coordenadora e Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Midia e Arte da Pontifícia

Universidade Católica de Campinas. Consultora Ad Hoc da CAPES e FAPESP. Reviewer da Leonardo Digital.

14
Vice-líder do Grupo de Pesquisa Produção e Pesquisa em Arte. Pesquisadora e artista nas interlocuções entre
arte, design e tecnologia, investiga linguagens e materialidades, que operacionalizam tecnologias enquanto modos
de ver e perceber o mundo. Possui graduação em Engenharia Civil na Universidade de São Paulo (USP), mestrado
e doutorado em Multimeios, Instituto de Artes na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e pós-
doutorado no Planetary Collegium, Nuova Accademia di Belle Arti NABA, Milão e no Programa de Pós Graduação
em Performances Culturais, Universidade Federal de Goiás, Brasil. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/6616305768133913>. Acesso em jul 2022.
iii Orlan é uma artista francesa internacionalmente reconhecida pelos seus trabalhos em múltiplas linguagens

artísticas, como performances, realidade aumentada, vídeos, etc. Ela criou a linguagem da "Arte Carnal" em seu
manifesto de 1989. Não há informações sobre sua formação acadêmica em seu site profissional (ORLAN, 2019).
iv “With my Performance Surgeries, I wanted to question beauty. I had implants placed on my temples. This surgical

procedure had never been done before and was not meant to create beauty. On the contrary, If I am described as
a woman with two bumps on her temples, you can imagine me as an unwanted monster but if you see me, that can
change. So these two bumps, these two little things, these two implants that are usually placed on the cheekbones,
I moved them up here. So just a little imbalance, a little shit in these stereotypes that are held up to us changes
everything. [...] It was difficult to get this message across, because a woman who uses cosmetic surgery is
necessarily someone who wants to be more beautiful. So I actually wanted to make a self-portrait, to re-sculpt
myself, reinvent myself, and show that I wasn't subjected to the usual standards”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=wI19H2x1WdI>. Acesso em jun 2022.

15

Você também pode gostar