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(1993)
RESUMO
Ao pesquisar proposições produzidas no contexto de arte e tecnologia, reconhecemos
práticas desestabilizadoras de biopoder (FOUCAULT, 1997) enquanto específicos recursos
tecnológicos da obra Ominipresence (1993) de ORLAN, conforme as dimensões do processo
de criação (REY, 2002). A ação artística desvela o exercício de controle contemporâneo dos
corpos femininos pelas instituições dominantes, que fabricam e impõem intervenções
tecnológicas para os mesmos. Concluímos que o trabalho artístico confronta e se rebela dos
interesses tecno-mercadológicos através da subversão dos modos de uso dos objetos
tecnológicos na ação poética, que instaura o próprio corpo da artista como linguagem
ciborgue.
PALAVRAS-CHAVE
Arte e tecnologia. Processo de criação. Biopoder. Corpo-ciborgue.
ABSTRACT
Examining proposals made in the context of art and technology, we recognize destabilizing
practices of biopower (FOUCAULT, 1997) as specific technological resources of ORLAN’s
Ominipresence (1993), according to the dimensions of the creation process (REY, 2002). The
artistic action reveals the exercise of contemporary control over female bodies by the dominant
institutions that manufacture and impose technological interventions on them. We conclude
that the artistic work confronts and rebels against the interests of the techno-market by
subverting the way technological objects are used in poetic action and establishing the artist’s
own body as a cyborg language.
KEYWORDS
Art and technology. Creation process. Biopower. Cyborg-body.
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Introdução
O texto apresenta alguns desdobramentos de uma pesquisa em Artes ainda em
desenvolvimento, que procura articular processos de criação em Arte e Tecnologia
com a Fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1999) e Pós-fenomenologia (IHDE,
2009). Nessa proposta em curso, que pesquisa por subversões de lógicas sociais
dominantes, reconhecemos a necessidade de um resgate histórico das poéticas em
arte e tecnologia produzidas pelas mulheres. Assim, escolhemos a produção de
ORLAN como um dos objetos de estudo, pois a artista se anuncia como referência na
investigação da imagem e dos limites dos corpos pós-humanos. Além disso, ela
continua a mobilizar a própria práxis na atualidade, com elementos oriundos de
avanços tecnológicos mais recentes. Retomamos dela, a obra intitulada
“Ominipresence” (1993), tanto na pesquisa em processo, quanto neste artigo, porque
tal ação poética continua denunciando, há quase trinta anos, a maneira pela qual o
controle dos corpos femininos na contemporaneidade é tecnologicamente
institucionalizado pelas redes de biopoder (SIBILIA, 2015).
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As estratégias questionadas por ORLAN são fundamentadas, sobretudo, pelos
saberes da teleinformática e da biotecnologia, pautadas no interesse de
transformação da vida humana em produto/modo de consumo. E, considerando as
relações cada vez mais indissociáveis entre as tecnologias e as sociedades pós-
capitalistas, tais práticas têm gerenciado um sofisticado disciplinamento de corpos e
subjetividades através da manipulação genética (SIBILIA, 2015). Para a autora, o
biopoder implica a normalização da sociedade pela definição de comportamentos
conforme os desvios do padrão ideal de hábitos.
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denunciadas em “O mito da Beleza” por Naomi Wolf (1992). A autora contextualiza os
processos consolidadores do que ela nomeou como a “Era da Cirurgia”.
Embora Haraway (2000) defenda não existir uma experiência comum – portanto,
unificadora – vivenciada por todas as pertencentes à categoria “mulher”, esta
afirmativa é refutada pelo futuro apocalíptico profetizado por Wolf (1992), em que a
pressão contínua para não ser designada à categoria do feio conduziria,
inegavelmente, as mulheres às intervenções cirúrgicas com fins estéticos. Entretanto,
é possível esperançar por realidades futuras mais otimistas, enquanto nos tornamos
conscientes do modo como as redes de poder se manifestam e a quem servem;
negociando ou aceitando o que é ofertado de maneira crítica, pois “[...] o biopoder
possui certas fendas através das quais as forças vitais conseguem fugir e reagir”
(SIBILIA, 2015, p. 192).
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expressiva realiza ou efetua a significação e não se limita a traduzi-la
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 248-249).
Imagem 1. Omnipresence. Orlan. Sétima cirurgia-performance. 1993. Fonte: Disponível em: <
https://www.orlan.eu/works/performance-2/>. Acesso em: jun 2022.
Por conta desta proposição artística crítica, recuperamos Sibilia (2015) para pensar
como as estratégias do biopoder atravessam os espaços socioculturais a fim de
submeter as pessoas e suas vidas aos interesses do mercado. Para Orlan (1993, apud
ORLAN STUDIO, 2013), muitos integrantes do cenário artístico daquele momento -
artistas e/ou galeristas - haviam cedido aos desejos mercadológicos. Era de sua
vontade, a partir do que acreditava e definia como arte, questionar noções pré-
concebidas, opondo-se à normalização capitalista. E oferecendo sua carne como
parte da materialidade da obra, buscou romper os limites fisiológicos de seu corpo
através de técnicas médicas, acabando por desestabilizar o disciplinamento dos
corpos femininos oriundo de um discurso da beleza dominante.
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Para uma compreensão profunda da linguagem instaurada pelo trabalho de ORLAN,
é preciso assumir que no processo de criação, cada gesto de manipulação das
materialidades costura um sentido simbólico na obra. Este processo dinâmico e
interativo entre práxis e teoria, apresenta, conforme Rey (2002, p. 124) três
dimensões: a "abstrata, a prática e a conceitual", que atuam simultaneamente e de
modo mais ou menos perceptível a depender de cada gesto poético. Assim,
buscaremos identificar modos operativos poéticos nas instâncias de criação
apresentadas.
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Wolf (1992) já apontava, no início da década de 90, a evolução e popularização
constante da indústria da cirurgia estética nos Estados Unidos, cujo crescimento
anual, naquele período, apontava para os 10%; especialidade médica que mais
crescia no país. É pela apreensão desse contexto que a autora afirmou que os
cirurgiões dependem que as mulheres possuam uma percepção negativa de si e da
“intensificação do ódio” (WOLF, 1992, p. 309) à própria imagem para rentabilizarem
seus lucros. Mulheres são convencidas de que devem melhorar sua performance em
todas as dimensões da vida, incluindo a da aparência. Aquelas que recusam a
otimização estão condenadas à obsolescência, razão pela qual neste período já
existia um grupo de mulheres viciadas nos procedimentos estéticos invasivos (WOLF,
1992).
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Valorizando a afirmativa de que a arte contemporânea se apropria dos avanços
tecnológicos e procedimentos técnicos de outras áreas do conhecimento (REY, 2010),
a sétima cirurgia-performance aconteceu no dia 21 de novembro de 1993, na galeria
Sandra Gering em Nova York, transmitida via satélite para outras instituições artísticas
em outras partes do planeta, como o Centre McLuhan em Toronto. ORLAN se
manteve acordada durante todo o procedimento, inclusive respondendo os
espectadores ao redor do mundo, já que através da conexão em rede, poderiam ser
feitas perguntas sincrônicas. Essa dinâmica concluiu o objetivo de transformar o ato
privado da operação cirúrgica em ação pública, uma performance televisionada.
Através da analgesia, a artista reduziu sua “[...] sensibilidade à dor sem supressão
das outras propriedades sensitivas, nem perda de consciência” (OLIVEIRA et. al.,
1997, p. 9). Este gesto era imprescindível para distinguir sua Arte Carnal da Body Art
e para negar a obrigatoriedade do sofrimento; pois a ausência da dor (ORLAN, 2019),
contraria “[...] a mentira de que a dor das mulheres pode ser justificada – como os
generais justificam a guerra – como parte de um inevitável conflito evolutivo” (WOLF,
1992, p. 314).
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além do espaço circundante (IHDE, 2009) e na conjuntura da produção artística,
materializam os conceitos/desejos poéticos – principalmente, a prótese incorporada e
a analgesia.
Para concretização desta obra (Imagem 2), identificamos o uso de múltiplos artefatos.
O cômodo verde da galeria apresenta em uma das paredes duas imagens de ORLAN,
manipuladas por um software de metamorfose - uma interface cognitiva "[...] cujo
acionamento/acesso se dá por reconhecimento do sistema em relação ao usuário,
como reconhecimento de fala, de gestos, de aproximação, de íris, geolocalização e
assemelhados" (ROCHA, 2010, p. 101). Ainda que não utilize a conectividade via
internet, identificamos uma relação de atravessamento do espaço físico pelo espaço
informacional via satélite que permite a comunicação da artista com os participantes
remotos, conforme se visualiza no monitor da Imagem 2. Há ainda, uma mesa de
metal com máquinas esterilizantes e instrumentos cirúrgicos operados pela equipe
médica e para atestar uma linguagem do corpo, uma intérprete de Língua de Sinais.
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Imagem 2: Omnipresence. Orlan. Sétima cirurgia-performance. 1993. Fonte: Disponível em: <
https://www.orlan.eu/works/performance-2/>. Acesso em: jun 2022.
Sem dúvidas, o processo de analgesia foi vital para diferenciar esta ação artística e
cirúrgica específica daquelas realizadas por outras mulheres, que permanecem
sedadas e inconscientes até o final da intervenção estética. Desacordada, ORLAN
não estabeleceria trocas com os observadores em rede, dificultando a
espetacularização do ato cirúrgico. A interação com o público leva a artista, sem dor,
a pintar com o próprio sangue, a fazer transferência de seu rosto, a ler um trecho de
livro e a conversar com naturalidade, sem reações físicas instintivas para com os
estímulos dolorosos.
Outra lógica subvertida é a das próteses, desenvolvidas para trazer volume às maçãs
do rosto e que a artista decide por implantar em outro lugar da sua face. Seria
impraticável problematizar o discurso hegemônico de beleza se a artista não
incorporasse permanentemente as estruturas para criarem saliências em suas
têmporas, já que a aparência física de ORLAN anterior a este procedimento cirúrgico
é a de uma mulher de pele clara e traços faciais delicados, e as cirurgias estéticas
buscam aperfeiçoar características físicas pelo entendimento de beleza enquanto
características físicas caucasianas (WOLF, 1992). O ambiente cirúrgico e seus
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aparatos instrumentais foram significados através de um desvio de finalidade pelo
contexto poético que problematiza o pensamento dominante sobre a aparência
feminina.
Feenberg (2005) discorre que a manutenção do poder das elites do passado sobrevive
pela monopolização do conhecimento tecnológico, traduzido no design do objeto.
Para o pesquisador, é a partir do posicionamento crítico daqueles que têm seus
interesses preteridos na inscrição do código técnico que surgem resistências
micropolíticas. Elas funcionam como denúncia e enfrentamento do controle
institucionalizado pelas redes de poder, a partir do uso não programado dos recursos
tecnológicos.
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Compreendemos esse esforço também na dimensão conceitual do processo de
criação de ORLAN, instância em que se articulam conceitos que instauram sentidos
simbólicos às materialidades configurantes da obra (REY, 2002). O desvio do uso
programado de certos objetos em sua corporeidade marca o nascimento de um corpo
distinto; matéria-prima transformada em outra realidade, pós-cirurgia. A nova criatura
personifica a resistência micropolítica às práticas de biopoder e a ela associamos o
conceito de ciborgue (HARAWAY, 2000): "um corpo híbrido" que, a partir de seu lugar
fronteiriço entre orgânico e artificial mobiliza as possibilidades de resistência em
conjunto com os próprios recursos tecnológicos para romper as matrizes de
dominação.
Considerações finais
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A investigação dessa afirmativa de dominação nas produções artísticas tornou
evidente a necessidade de instrumentalização para subversão da affordance dos
objetos tecnológicos, pois quando ORLAN manipula a própria corporeidade ao dispor
das incorporações poéticas, instaura um corpo-ciborgue. A artista compreende seu
lugar na contemporaneidade e reconhece como componente estruturante da
humanidade pós-moderna a mediação e incorporação (IHDE, 2009) das tecnologias,
tanto no processo perceptivo individual quanto nas práticas sociais.
Agradecimentos
Referências
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Zahar, 2011.
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OLIVEIRA, Claudia et al. A dor e o controle do sofrimento. In: Revista de Psicofisiologia.
vol. 1, n. 1, p. 1-26, 1997. Disponível em: <http://labs.icb.ufmg.br/lpf/mono2b.pdf>. Acesso
em jun 2022.
ORLAN. ORLAN au pied de la Croix at the foot of the cross Raphael Gatel, 2019. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=wI19H2x1WdI>. Acesso em jun 2022.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. A Colocação
do Problema: Arte Como Processo Híbrido. In: Blanca Brites; Élida Tessler. (Org.).
Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 123-140.
REY, Sandra. A dimensão crítica dos escritos de artistas na arte contemporânea. In:
Revista PÓS. vol. 1, n. 1, p. 8-15, mai-out 2011.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo:
Intermeios, 2013.
SIBILIA, Paula. Biopoder. In: O Homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à
luz das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. (Trad.). Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
Notas
Universidade Católica de Campinas. Consultora Ad Hoc da CAPES e FAPESP. Reviewer da Leonardo Digital.
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Vice-líder do Grupo de Pesquisa Produção e Pesquisa em Arte. Pesquisadora e artista nas interlocuções entre
arte, design e tecnologia, investiga linguagens e materialidades, que operacionalizam tecnologias enquanto modos
de ver e perceber o mundo. Possui graduação em Engenharia Civil na Universidade de São Paulo (USP), mestrado
e doutorado em Multimeios, Instituto de Artes na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e pós-
doutorado no Planetary Collegium, Nuova Accademia di Belle Arti NABA, Milão e no Programa de Pós Graduação
em Performances Culturais, Universidade Federal de Goiás, Brasil. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/6616305768133913>. Acesso em jul 2022.
iii Orlan é uma artista francesa internacionalmente reconhecida pelos seus trabalhos em múltiplas linguagens
artísticas, como performances, realidade aumentada, vídeos, etc. Ela criou a linguagem da "Arte Carnal" em seu
manifesto de 1989. Não há informações sobre sua formação acadêmica em seu site profissional (ORLAN, 2019).
iv “With my Performance Surgeries, I wanted to question beauty. I had implants placed on my temples. This surgical
procedure had never been done before and was not meant to create beauty. On the contrary, If I am described as
a woman with two bumps on her temples, you can imagine me as an unwanted monster but if you see me, that can
change. So these two bumps, these two little things, these two implants that are usually placed on the cheekbones,
I moved them up here. So just a little imbalance, a little shit in these stereotypes that are held up to us changes
everything. [...] It was difficult to get this message across, because a woman who uses cosmetic surgery is
necessarily someone who wants to be more beautiful. So I actually wanted to make a self-portrait, to re-sculpt
myself, reinvent myself, and show that I wasn't subjected to the usual standards”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=wI19H2x1WdI>. Acesso em jun 2022.
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