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Marcuse e as traições da tecnologia

Para filósofo alemão, tecnociência prometeu fim do


trabalho degradante, mas gerou novas servidões — e
alimentou guerras e fascismos. Décadas depois, uma
estética multimídia tenta reduzir imaginação ao corpóreo
e ao consumo
OUTRASPALAVRAS
TECNOLOGIA EM DISPUTA
por Ricardo Neder
Publicado 10/06/2020 às 17:54 - Atualizado 10/06/2020 às 17:56

Às quartas-feiras, Outras Palavra publica uma série de artigos de Ricardo Neder,


intitulada A Gambiarra e o Panóptico (fruto de livro homônimo, publicado pelo
Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, da UnB, e
editora Lutas Anticapital) que, por meio dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia,
visa compreender a sociedade de controle e vigilância – e se é possível superá-la e
reconstruir o Socialismo e as Democracias. Leia a apresentação da série. Aqui, todos os
textos já publicados. O título original do texto abaixo é: Meio século de Eros e
Civilização

Por Ricardo Neder | Imagem: Pawel Kuczynski


Todo deslocamento (ou Verschiebung, em Freud) assume uma correspondência
linguística na metonímia que consiste em designar uma coisa A pelo nome de outra B,
em virtude de uma relação não de semelhança ou similaridade, mas de contiguidade, de
interdependência real entre ambas: o deslocamento metonímico é extensamente
trabalhado pelos autores da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Está presente em
Theodor Adorno, quando nomeia por exemplo, nostalgia
(Sehnssucht) simultaneamente, nostalgia (passado) e ânsia (futuro). Aqui tomado como
vivência decomo algo que orienta o imaginário criado pela tecnologia em direção a uma
certa (in)capacidade estética de condensar a experiência humana da memória e do fluxo
do tempo dos nossos sentidos; seria, também, o que – depois da experiência do aqui-e-
agora (presente realizado) – sentimos como uma irremediável perda de substância e
aura.

É precisamente essa ambivalência que nos assola como sujeitos nem modernos nem
contemporâneos, projetando-nos ora no campo das práticas de sujeitos heterônomos, ora
no campo da fluidez e da garantia da autonomia. Estamos diante de uma inevitável
estrutura ambivalente que marca com tinta forte a matéria-prima entre o artificial e o
gerado por processos espontâneos, como se, finalmente, aí residisse toda a unidade da
narrativa na pesquisa e no invento científicos, nas correntes do romance, no cinema e no
vídeo, enfim, o que unifica a narrativa é a similitude, a verossimilhança com o natural, a
imitação (mimesis) do real.

Marcuse anteviu há meio século (em Eros e Civilização) que a relação entre fascismo,
capitalismo e tecnologia não sairia do horizonte histórico da modernidade. Sob esta
tríade, a tecnologia comporta uma traição da estética e da liberdade. A primeira é ter se
convertido em uma forma quase própria de dominação pelo auto-engano, dissimulação
ou engodo (mímesis). Com a falsa promessa de alforriar a humanidade do trabalho
degradante. A segunda traição foi o capitalismo gerar uma tecnologia que tem por base
a sublimação repressiva mediante novas formas de servidão mediadas pelos dispositivos
(celulares, computadores, comunicações de satélite, alimentos industrializados, armas
etc). Promessas da vida moderna. Aspiramos a uma vida autêntica mas temos que apoiar
a esfera das instituições que nos garantem a vida em comum, subjetividade da nossa
consciência, emoções, sentimentos afetos associados ao consumo como regra e estilo de
vida. Elas nos permitem a intersubjetividade nos espaços públicos. Mas as instituições
ameaçam esta intersubjetividade devido aos dispositivos que nos invadem pela maré
neoliberal, ideologia de uma sociedade cataláctica (das trocas); neste caso devemos
reformá-las e sua legitimidade ser refundada. Na impossibilidade, devemos derrubá-las.
Se isso for inviável, temos que achar os meios de destruí-las, contrapondo força-contra-
força se necessário, pois neste caso elas já se converteram em domínio da tirania
(Hannah Arendt).

Na sua origem, a civilização ocidental avançou contra a barbárie na luta tenaz da


emancipação contra a servidão. As formas de servidão, contudo, sucedem-se
historicamente. Hoje deparamos com a potenciação do corpo exomático (tecnológico)
do trabalho humano na sua relação com a natureza, o que é fruto de criação,
transformação cultural e expansão tecnológica desde o século XVIII. O sujeito das
tecnociências (ordem e desordem, controle e vigilância, real e virtual, metonímia e
deslocamento, abolição do natural, naturalização do tecnológico) pratica hoje – por
comutação digital da vida – algo próximo a uma solução artificial. Estamos longe de
uma comprovação de que se converterá em solução cultural na dimensão da inteira
humana condição  (Montaigne). Embora seja um tema clássico no Ocidente, a mundi
machina ou máquina do mundo é um signo polissêmico, cujo desvelamento nos nossos
dias tem afinidades com a teoria crítica em sua análise das novas formas de repressão da
cultura de massa.

Esse signo (máquina do mundo) revelou-se promessa de fidelidade do pensamento ao


ser e à verdade no Renascimento. Como resgatar a máquina do mundo enquanto
imagética da grande recusa, rebeldia, transgressão? Diante de uma desvairada cultura
tecnocientífica instaurada na era napoleônica e humboltiana, a ciência foi no berço
prometida como virgem ao senhores da guerra e da acumulação industrial. Elaborar esta
recusa tem sido um empreendimento de múltiplas vertentes e potenciais no último
século.

Esse empreendimento encarado por Herbert Marcuse, emEros e Civilização, buscava


uma nova leitura do desafio posto por Freud ao realizar certa psicanálise da grande
recusaà máquina do mundo, a fim de identificar o caráter reprimido desta insurgência
contra o poder destrutivo da civilização, utilizando o ensaio para expressar o princípio
de contradição.

Há razões para comemorarmos meio século de publicação da obra de Marcuse, a


primeira da Teoria Crítica a aprofundar o diálogo filosófico de forma sistemática com as
ideias da psicanálise. Marcuse afirma que as categorias psicológicas se converteram em
categorias políticasuma visão que está na base das teses de Eros e Civilização.  Neste
sentido, afirma a moderna simbiose entre liberdade e servidão. Embora tal perspectiva
não seja o foco central das teses de Marcuse em Eros e Civilização (foi melhor
desenvolvida no livro posterior, O homem unidimensional), é clara a anterioridade
de Eros e Civilização para essa conclusão, pois a simbiose passa pela compreensão do
papel das formas de sublimação não-repressivas do prazer pelo sujeito moderno.

Marcuse interrogou filosófica e politicamente por que o sujeito moderno continua


agrilhoado à simbiose entre liberdade e servidão quando a produtividade gerada pela
base técnica poderia romper estes grilhões. Sua explicação (aqui resumida e
empobrecida) pode ser descrita numa interessante passagem na qual comenta o fato de
que as tentativas de revisão (e absorção das teses de Freud) apresentavam (até os anos
1960) uma correlação positiva e até entusiástica entre o papel do prazer no trabalho, e o
prazer libidinal. Ora, contesta Marcuse, se eles usualmente coincidem, então o próprio
conceito de princípio de realidade torna-se supérfluo, e vazio de significado se este não
governar o trabalho, não terá coisa alguma a governar, na realidade. O que nos
convida a uma re-vivênciade Eros e Civilização não é, contudo, esse ponto –
fundamental para a questão se é possível uma sociedade não-repressiva nos marcos do
capitalismo e do socialismo avançados. Trata-se de outra dimensão relacionada com sua
tese sobre a emergência da estética na modernidade do século XVIII.

Em “A dimensão estética” (título de um dos capítulos de Eros e Civilização) seu


objetivo é demonstrar que perante o tribunal da razão teórica e prática, a existência da
estética está condenada a resultar em repressão cultural de conteúdos sob o princípio do
desempenho (ou da produtividade e racionalidade instrumental). Tentaremos desfazer
teoricamente a repressão recordando o significado e função originais da estética (que é
sua) associação íntima entre prazer, sensualidade, beleza, verdade, arte e liberdade, uma
associação revelada na história filosófica do termo estética.
Essa é precisamente uma das contribuições marcantes de Eros e Civilizaçãopara o
momento. Pois ela assinala a contradição atualíssima em torno da profusão de uma
estética multidimensional e avassaladora que engloba as multimídias e formas visuais
(sua semiologia e semiótica) na transmissão de conhecimento e proliferação das
informações na web, publicidade e artes na comunicação enquanto elo crucial da
indústria de consumo com a indústria cultural. Claro, essa estética é parte do imaginário
criado pela tecnociência. Porém, o que é essa estética, senão uma certa capacidade de
nos seduzir (estesia) por condensar a experiência humana da memória e do fluxo do
tempo dos sentidos, a qual depois da experiência do aqui-e-agora (presente realizado) –
sentimos como uma irremediável perda de substância e aura?

Parecem nascer desse sentimento de perda, as tentativas da estética em lidar com os


suportes tecnocientíficos. Elas fazem do passado e presente, extensão para o futuro;
captam e recriam o olhar, o paladar, o tato, a audição, o deslocamento pela imaginação e
o mentar como algo corporal.

Tem esse suporte na estética, como se a relação com a técnica, é simples e direta, e nos
permitiria – apesar da condição assexuada e descontextualizada dos dispositivos e dos
maquinismos – viver coletivamente a tecnociência como condensação da ciência
cognitiva dos sentidos. Tal ciência nos une, pois os objetos e processos tecnocientíficos
são instâncias culturais mas diante dessa condição, vivemos um estranho afeto, porque
inconsciente diante da máquina.

Este nos separa justamente pelo fato da perda de substância e da aura do presente se
tornar um ciclo de repetições que vai do ato de consumo no mercado para a satisfação e
esgotamento do prazer do objeto consumido, e daí retorna ao consumo que
retroalimenta a produção mediada pela tecnologia. Por isso mesmo toda produção de
tecnologia está embebida na estética. A disciplina estética instala a ordem da
sensualidade contra a ordem da razão(repressiva), segundo Marcuse, que propõe nos
apropriarmos dessa origem da grande recusa das humanidades e artes diante do
inexorável avanço das ciências exatas, físicas e naturais desde o século XVIII.

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RICARDO NEDER
Sociólogo e economista político, professor associado da UnB. Editor-chefe da Revista Ciência &
Tecnologia Social e da coleção Construção Social da Tecnologia ambas vinculadas aos Estudos
Sociais da Ciẽncia e Tecnologia no Brasil, e ao PLACTS – Pensamento latinoamericano de
Ciência, Tecnologia, Sociedade, associados ao grupo de pesquisa Observatorio do Movimento
pela Tecnologia Social na América Latina. Coordena o Núcleo de Pesquisa NP+CTS (Políticas CTS
– Ciência, Tecnologia, Sociedade) CEAM/UnB, e o Programa de Extensão Incubadora Tecnológica
de Cooperativas Populares (da rede ITCP de incubadoras universitárias no Brasil) sediada na UnB
Planaltina (rtneder@unb.br)

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