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Data de publicação: 10/10/2004

A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo

Ieda Tucherman

Este artigo é centrado numa hipótese contida neste enunciado que sugere que
o estilo que caracteriza a nossa atualidade teria sua inspiração ou sua
referência nas narrativas e nos filmes que convencionamos classificar como
sendo ficção-científica. Estamos propondo portanto considerar que, no nosso
momento atual, estamos inarredavelmente próximos dos temas, das
questões, dos personagens e das situações que desde o Frankenstein de Mary
Shelley, de 1815, considerado como o primeiro romance de ficção-científica,
até os filmes como a trilogia Matrix dos irmãos Wachovski ou as realizações de
David Cronenberg, fazem a definição mesma desta expressão: ficção-
científica.

Vale lembrar que a ficção-científica nasceu provocada pelas mudanças


produzidas pela Revolução Industrial que alteraram não apenas a vida
concreta e cotidiana mas também, e de maneira talvez mais insidiosa, o
imaginário das sociedades modernas. Sua tarefa foi, portanto, e desde o seu
nascimento, pensar e mesmo antecipar as conseqüências sociais, políticas e
psicológicas provocadas por este novo desenvolvimento técnico-científico.

No entanto, na sua origem, a ficção-científica apareceu como um gênero


menor, uma espécie de subliteratura, dirigida a um público setorizado e muito
específico, quase uma seita. Qual seria o motivo desta desconfiança?
Arriscamo-nos a pensar que, embora tenha tomado para si o encargo de
produzir as narrativas da aventura humana na sociedade científica, ela tinha
nesta Modernidade uma presença complexa o que explica sua posição
marginal: afinal juntava na sua própria definição uma contradição, uma vez
que reunia na mesma expressão duas posturas vividas como opostas: a
liberdade da ficção, classicamente associada à não verdade, ao falso, ao não
verdadeiro, e o rigor da ciência, o solo celebrado dos enunciados verdadeiros.

Hoje não é mais esse o panorama, e essa transformação é bastante


sintomática. Para começar somos cada vez mais freqüentados pelo que
podemos chamar de criaturas da técnica que nos chegam dos variados
produtos da ficção-contemporânea, literatura, cinema, história em quadrinhos,
videoclipes, videogames, mas também, eis aí uma grave diferença, dos
nossos mais prestigiados laboratórios, universidades e centros de pesquisa, o
que nos permite diagnosticar uma contração da anomalia na nossa vida
cotidiana.

Além disto, as narrativas de ficção-científica oferecem aos críticos da cultura


outras inspirações, especialmente o questionamento das fronteiras entre a
subjetividade, a tecnociência e as possibilidades de experiências espaços-
temporais, assim como importantes antecipações, sobre as questões que hoje
precisamos enfrentar já que nosso ambiente é efetivamente dominado pela
técnica que é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade do nosso
presente e o agente da passagem do nosso ontem ao nosso amanhã.

As novas técnicas de informação e de comunicação são mais que


instrumentos, próteses, ou extensões dos nossos sentidos. Internet,
ciberespaço e realidade virtual são novas maneiras de integração homem-
máquina: a máquina é o novo ambiente das nossas experiências. Nesta
integração que é um movimento entre seres biológicos e seres maquínicos,
corpo e pensamento, matéria viva e inerte, carne e silício, nossas referências
tradicionais se vêem fragilizadas e talvez só possamos compreender o que se
passa recorrendo às lições de filmes como Blade Runner ou Gattaca.

Afinal de contas, fabricando monstros e espaços abstratos que eram


exclusivos da ficção-científica, as ciências que produziram um rato com uma
orelha implantada no dorso, um computador que é campeão de xadrez,
alimentos transgênicos, a ovelha clonada, inúmeros processos de
reprodução in vitro, entre outros, romperam as fronteiras que separavam a
realidade da ficção. E, anunciando o resultado de suas pesquisas assim como
os objetivos perseguidos, os cientistas parecem mais próximos do delírio que
não importa qual dos mais inventivos autores de ficção-científica.

Quando divulgou os primeiros resultados do projeto Genoma Francis Collins,


diretor na época do laboratório Cellera, afirmou: “Agora conhecemos a
linguagem com que Deus criou a vida”, o que, segundo ele, nos ajudaria a
erradicar as doenças e afastar a morte do nosso horizonte. Hans Moravec,
pesquisador da área da robótica do prestigiado Carnegie Mellon College nos
Estados Unidos, propõe que a nossa descendência verdadeira, já que nossos
bebês serão feitos no laboratório, será o download que faremos dos nossos
cérebros nos nossos computadores.

Parece interessante selecionar os temas mais freqüentes da ficção-científica


para demonstrar sua proximidade com as questões da cultura
contemporânea: o fim do mundo e o fim dos tempos; os paradoxos
temporais; a comunicação com inteligências demonstrando outras formas de
vida totalmente diferentes; as múltiplas desconstruções das diferenças entre
natural e artificial, humano e não-humano, vivo e não vivo, real e virtual; as
mutações e as reconstruções dos corpos humanos; as transformações do
político. Temas que também são presentes nos debates mais sofisticados
filosóficos e científicos.

Para a nossa cultura ocidental isso tem uma dramaticidade própria uma vez
que aprendemos a pensar em torno de referências opositivas: ou natural ou
artificial ou ciência ou arte. Mesmo o mundo moderno, nosso mais próximo
passado, foi formulado a partir dessas tipologias de diferenças, de tal maneira
que a relação homem-máquina, que é, de longe, o mais freqüente tema da
ficção científica e da pós-modernidade cultural, apareceu como uma
polaridade: ou a máquina liberaria o homem e o conduziria ao ápice do seu
espírito, tal como vemos em alguns textos de Marx, na estética futurista, em
algumas obras de Marcuse ou a máquina esmagaria o homem,
desumanizando-o, tal como vemos em Tempos modernos de Chales Chaplin,
mas também nos escritos de Adorno, Benjamim, Heidegger e outros.

Na verdade o mundo moderno se absteve de pensar as mudanças, as


metamorfoses, os hibridismos: estas figuras cuja presença hoje definem nossa
atualidade não puderam se fazer ver fora de um gênero menor que,
justamente por conta de sua pouca importância, permitiu-se pensar os
hibridismos e metamorfoses, os mistérios deste mundo submetido a essa
radical e acelerada transformação. A conseqüência mais evidente foi a
concessão de um caráter profético à ficção-científica, mais ligado ao medo
moderno que o impediu de compreender a tecnociência, que a um suposto
processo divinatório que lhe seria próprio.

Concluindo: a ficção-científica é a narrativa da presença da técnica num


mundo que J.D.Ballard , autor de Crash, entre outros textos, assim
descreve: “O equilíbrio entre ficção e realidade mudou na última década. Seus
papéis estão invertidos. Somos dominados pela ficção. O papel do escritor é
inventar a realidade”.

Ieda Tucherman é professora do programa de pós-graduação da Escola de


Comunicação da UFRJ.

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