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A voz dos manifestos modernistas

FREDERICO COELHO

Folha de São Paulo – Ilustríssima 25/01/2015 03h34

RESUMO No livro "A Palavra Modernista - Vanguarda e Manifesto", Pedro Duarte


investiga os manifestos do movimento modernista como textos que articulam estética,
filosofia e política. O autor dedica um capítulo ao enunciado "a alegria é a prova dos
nove", que contrasta com a ideia de "povo triste", de Paulo Prado.

A Palavra Modernista
Pedro Duarte

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A partir de uma leitura original, aberta e renovadora, Pedro Duarte e o


seu livro "A Palavra Modernista - Vanguarda e Manifesto" [Casa da
Palavra, 224 págs., R$ 39] contribuem efetivamente para o debate
crítico acerca do modernismo brasileiro. Mais especificamente, o autor
propõe uma análise acurada dos diversos usos da palavra e de suas
múltiplas formas no âmbito do movimento de 1922.

Rico em possibilidades de leitura e desdobramentos para novos


debates, o livro é parte do projeto "Modernismo + 90", organizado pelo
filósofo Eduardo Jardim e elaborado em 2012, em parceria com a
editora Casa da Palavra. Trata-se de uma coleção dedicada a pensar
novos pontos de vista, passados 90 anos da Semana de 22. Do total de
nove volumes editados, "A Palavra Modernista" é o ultimo a ser
lançado.

O livro, portanto, se insere em um momento de revisitação do tema,


potencializado pela homenagem que Mário de Andrade receberá na
próxima Flip e pelo relançamento de trabalhos fundamentais, como
"Pagu Vida-Obra" [Companhia das Letras, 472 págs. R$ 59,50; e-book,
R$ 39,50], dedicado à escritora, ativista, dramaturga e pensadora
paulista Patrícia Galvão, organizado com rigor e sensibilidade por
Augusto de Campos.
Reprodução

Ilustração de Tarsila do Amaral para "Pau Brasil", primeiro livro de poemas de Oswald de Andrade (1925)

As chaves de análise sobre a elaboração de uma modernidade brasileira


como espelho reluzente -ou como cópia defasada- da modernidade
europeia precisam renovar os seus contornos para que essa "jovem
tradição" não perca sua potência renovadora. Pois mesmo que nosso
modernismo se insira em uma "tradição da ruptura" (termo
consagrado pelo crítico mexicano Octavio Paz) por emular outros
movimentos históricos de vanguarda e dar corpo à nossa sede pelo
novo como vetor histórico, não é tão simples nos encaixarmos nessa
afirmação.

ROMANTISMO
É a partir desses caminhos e descaminhos sobre o tema, aliás, que
Pedro Duarte apresentará suas hipóteses e estruturará sua escrita.
Professor do departamento de filosofia da PUC-Rio, o autor faz, nos
primeiros capítulos, uma apresentação sucinta, porém esclarecedora,
dos fundamentos críticos de sua leitura.

Em um primeiro movimento, Duarte aproxima nosso modernismo de


uma de suas especialidades como pesquisador: o romantismo alemão.
Sua estratégia visa mostrar que, assim como no período de Novalis,
Schlegel ou Hölderlin, o modernismo brasileiro tinha que,
simultaneamente, dar conta de sua atualização frente à modernidade
europeia e propor, por meio da arte e do pensamento crítico, uma
perspectiva específica nas suas limitações históricas e nos seus dilemas
locais. Citando Pedro Duarte, "a brasilidade, se existisse, seria tanto
descoberta quanto criada".

Partindo desse mote de uma "brasilidade" como face estética e crítica


do nosso modernismo, o autor propõe que pensemos o período, suas
obras e seus participantes a partir dessa missão de duplo viés: a
formação (e aí temos o romantismo alemão como um possível modelo
comparativo) e a revolução (de acordo com os termos das vanguardas
artísticas e políticas da época).

Ambos servem como motores para entendermos os aspectos estéticos e


críticos da atuação do grupo de artistas e intelectuais de São Paulo e,
posteriormente, do Brasil. Claro que, como o próprio autor aponta, o
debate não se esgota neste par, já que há também a dimensão da
investigação de cunho sociológico e antropológico (sobre o Brasil e sua
sociedade, principalmente) como desdobramento incontornável da
aposta modernista em reinventar um país tanto de fora para dentro (a
influência cosmopolita internacional) quanto de dentro para fora
(nossa contribuição para o mundo).

Após definir sua abordagem na articulação produtiva desses dois


vetores -formação (de uma "identidade nacional", de um campo
moderno da arte, de um perfil profissional do intelectual no país etc.) e
revolução (de costumes, do uso da língua, das formas artísticas etc.)-, o
livro amplia sua proposta ao destacar que o modernismo, em seus
discursos e práticas, nos apresenta uma situação única até então, ao
articular em sua história a estética (obras), a política (polêmicas) e a
filosofia (teorias críticas sobre a arte e o país).
Indo além, Pedro Duarte sugere que, no bojo do movimento, o espaço
privilegiado em que todas essas dimensões funcionaram em conjunto
foram os manifestos.

O caráter híbrido desses textos procura articular, como poucos, um


conteúdo e uma forma -e, de preferência, ambos transgressores do
cânone em voga. É um suporte perfeito para que a formação e a
revolução se imponham simultaneamente. Difusão profética de novas
ideias, retórica impositiva e messiânica, transformação radical do
estabelecido e uma escrita de invenção -estes são os aspectos quase
sempre presentes nos manifestos das vanguardas que inspiraram o
modernismo de 22 e os seus desdobramentos.

O autor nos mostra, através de alguns dos principais manifestos do


movimento, como a política, a estética e a filosofia pulsaram em toda
sua potência. É nos manifestos -não só nos mais conhecidos "Pau
Brasil" e "Antropófago", de Oswald de Andrade mas em outros,
publicados em revistas como "Klaxon", "Verde", "A Revista",
"Estética"- que temos as múltiplas dimensões da "Palavra Modernista"
em questão. Aliás, para o autor, o manifesto é "a palavra modernista
por excelência".

O livro, portanto, sugere uma série de caminhos de investigação a


partir da escrita modernista. Se o manifesto seria a forma por
excelência dessa escrita, Pedro Duarte também ressalta o papel mais
amplo e fecundo dos modernistas na abertura da língua e de seus usos,
na análise de poemas e obras decisivas para nossa história da arte.

O autor também utiliza com destreza fontes centrais sobre o tema,


como as correspondências de Mário de Andrade (sempre uma espécie
de contrapeso privado do que ocorria em querelas públicas), os artigos
em jornais da época, a vasta fortuna crítica disponível e as dissonâncias
críticas que atravessam a história do movimento.

FRESCOR

A obra consegue apresentar o modernismo como um tema fresco e


contemporâneo, tornando a leitura convidativa para o leigo e instigante
para o especialista. Através das páginas de "A Palavra Modernista",
percorremos um período denso de fatos, nomes e obras, porém sem a
sensação de que estamos perdendo o fio das hipóteses centrais
propostas pelo autor. A alegria modernista materializa-se, no fim das
contas, no entusiasmo de uma leitura e de uma escrita que cativa,
provoca e faz pensar.

É para essa alegria, por fim, que o autor apresenta uma leitura original
em seus últimos capítulos. Primeiro, situando o seu par negativo, a
"tristeza" -essa sim tematizada pelo clássico do ensaísta (e um dos
atores principais do Modernismo de 1922) Paulo Prado.

Em seu "Retrato do Brasil" (1928, contemporâneo, portanto, ao


"Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade), Prado faz sua célebre
síntese da formação do brasileiro através de quatro eixos
interpretativos: a luxúria, a cobiça, o romantismo e a tristeza. Pedro
Dutra, ao escavar a máxima "a alegria é a prova dos nove", presente no
"Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade e título do seu último
(e talvez melhor) capítulo, nos mostra como ela não só contrasta a
conclusão de Prado como encaminha também uma resposta enviesada
à "Estética da Vida" (1921), texto referência de Graça Aranha.

Na obra, o conferencista de abertura da Semana de 22 proclama a


alegria como um dos resultados da arte moderna brasileira. O termo,
retirado por sua vez de Spinoza, indica um "bom encontro" e nos leva,
segundo Duarte, a pensar nossa relação com o mundo. A antropofagia
seria essa ferramenta que, ao nos fazer buscar o mundo como alimento
e matriz inventiva do que é "brasileiro", proporciona os bons encontros
e nos abre para a vida estética, crítica e, por que não, delirante do
mundo moderno.

Talvez, nos dias atuais, reivindicar a alegria e o delírio como


possibilidades de pesquisa e pensamento sobre nossa história soe fora
de tom. Mas se, como canta um dos compositores citados por Pedro
Duarte em seu livro, "amanhã será um lindo dia, da mais louca alegria
que se possa imaginar" (canção de Guilherme Arantes, famosa na voz
de Caetano Veloso), não podemos esquecer que as promessas
modernas (e modernistas) de futuro permanente deste país -e do
mundo- sejam feitas também sob o signo dessa "louca alegria".

Afinal, já é hora de os modernistas merecerem ter, entre os legados de


suas obras e trajetórias, a exaltação crítica do nosso "estado
permanente de invenção".
FREDERICO COELHO, 40, é professor de literatura e artes cênicas da PUC-Rio e autor de,
entre outros, "A Semana sem Fim" (Casa da Palavra).

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