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uma das principais razões que levaram cultura-política e que vêm sendo rea-

Marcelo Ridenti a realizar a grande ta- tivadas e problematizadas no momento


refa de revisitar o período de maior atual sob o impacto da inserção do Brasil
efervescência política e cultural da nos- num contexto de globalização econômi-
sa história recente. Tal empreendimento ca e mundialização da cultura. O resulta-
talvez se justifique pela necessidade de do de todo esse trabalho é um livro farta-
melhor compreender o que ele próprio mente documentado, redigido de forma
qualifica de “velhas questões mal resol- clara e criativa e que certamente se situa
vidas” como as de “identidade nacional” entre as mais importante obras de socio-
e “povo brasileiro” que a partir dos anos logia da cultura brasileira produzidas nos
60 converteram-se em matrizes da nossa últimos anos.

Domenico Losurdo
Nietzsche e la critica della modernità. Per una biografia politica. Roma, Manifestolibri, 1997.
Pedro Leão da Costa Neto (Professor de Filosofia da Universidade Tuiuti do Paraná)

O que distingue este pequeno livro po histórico que, ao contrário, é o que


de Domenico Losurdo, editado em 1997, procuramos precisar” (p. 72). Mas, em-
da grande maioria da produção dedicada bora Losurdo refira-se a essas duas lei-
a Nietzsche – em particular no ano 2000, turas, o alvo principal de sua crítica será
ano do centenário da morte do filósofo – a interpretação que procura inocentar
é a decidida oposição a toda tentativa de Nietzsche.
minimizar a importância das posições O método de investigação da Histó-
conservadoras mais extremadas do pen- ria da Filosofia utilizado por Losurdo se
sador alemão, mas sem cair na tendên- caracteriza pela inserção do autor estu-
cia de identificá-lo como um antecessor dado em seu contexto histórico, cultural
do nacional-socialismo. A análise que e ideológico bem como pela tentativa de
nos oferece Losurdo se encontra, portan- identificar os momentos de continuida-
to, em oposição tanto a uma leitura que de e ruptura que caracterizam os dife-
pretende identificar Nietzsche como teó- rentes períodos da obra estudada e sua
rico ou profeta do individualismo pós- relação com a história. Desde o início
moderno, quanto a leituras como a de do seu livro, nosso autor ressalta a es-
Lukács (Die Zerstörung der Vernunft – treita relação entre Nietzsche e seu tem-
A destruição da razão – 1954) ou Nolte po. Já nas páginas iniciais, Losurdo mos-
(Nietzsche und der Nietzscheanismus – tra a íntima relação entre a primeira obra
1990), que tendem a identificá-lo como de Nietzsche – O Nascimento da Tragé-
um predecessor de Hitler. A este respeito, dia, publicada em 1872 – com a Guerra
afirma Losurdo: “(...) comum a uma e a Franco-Prussiana e a Comuna de Paris.
outra interpretação é a abstração do tem- Esta mesma relação entre teoria e histó-

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ria é igualmente ressaltada, quando o aristocrático anacrônico” é resultado de
autor analisará as concepções mais po- uma análise superficial, que não conse-
lêmicas do filósofo alemão, como por gue ir além das máscaras e fachadas da
exemplo a “defesa da escravidão” e a pro- argumentação nietzschiana.” (Osvaldo
posta de “destruição de seres malogrados Giacóia, “A genealogia dos preconcei-
e raças decadentes”. Segundo Losurdo, tos”, Caderno Mais!, Folha de S. Paulo,
toda tentativa de relativizar, minimizar ou 6 de agosto de 2000, p. 13-14). O mes-
inocentar as posições político-filosóficas mo Giacóia em seu livro Nietzsche faz a
assumidas por Nietzsche estão em clara observação seguinte: “A motivação fun-
contradição com o “robusto sentido his- damental de sua filosofia política pode
tórico do filósofo” e do “elevado obser- ser buscada não em alguma identifica-
vatório” em que ele se encontra, para a ção com os interesses de uma classe so-
análise e julgamento dos fatos históri- cial ou movimento político, mas na com-
cos, que são resultado das investigações preensão da cultura como redenção da
de longa duração, presentes e caracterís- natureza e da vida. Essa mesma obser-
ticas da obra de Nietzsche. De maneira vação vale para as fases ulteriores de seu
paradoxal, o autor inverte a chave atual filosofar. São equivocadas, portanto, as
de leitura da obra de Nietzsche, mostran- interpretações que consideram a sua obra
do que ele é “em certo sentido mais ra- uma apologia da aristocracia e da escra-
dical e mais radicalmente político do que vidão” (Nietzsche, São Paulo, Publifolha,
o próprio Marx” (p. 70) e acrescenta que 2000, p. 39). Essa leitura de Nietzsche
Nietzsche deve ser considerado “antes de proposta por Giacóia se aproxima das
tudo como totus politicus” (p. 71). Por- concepções que são objeto de crítica por
tanto, Losurdo se opõe a toda tentativa parte de Losurdo.
de imergir o autor do Nascimento da Tra- Uma vez identificada a concepção
gédia em um “banho de inocência”: “Na utilizada por Losurdo para analisar a obra
realidade o filósofo tem um sentido his- de Nietzsche e os objetivos do seu traba-
tórico claramente mais robusto do que o lho, tentaremos isolar alguns aspectos
dos modernos representantes da herme- importantes do livro.
nêutica da inocência” (p. 69). O capítu- Atento às características e à particu-
lo conclusivo do livro, o capítulo 10 laridade da obra de Nietzsche, Losurdo
intitulado Metafora e storia, é dedicado identifica os três períodos constitutivos
exatamente a criticar a leitura metafóri- da obra do filósofo: 1o período: 1872 –
ca de Nietzsche. Nascimento da tragédia, 1873/76 – Con-
Como exemplo dessa leitura metafó- siderações inatuais (período ao qual são
rica de Nietzsche, nós podemos citar, dedicados os capítulos I e II do livro de
para o caso dos autores brasileiros, dois Losurdo); 2o período: 1878/79 – Huma-
recentes trabalhos de Osvaldo Giacóia no, demasiado humano, 1881 – Aurora,
Júnior. Em um artigo comemorativo no 1882 – Gaia ciência (período ao qual são
Caderno Mais! do jornal Folha de S. dedicados os capítulos III e IV do livro);
Paulo, Giacóia afirma que as leituras que 3 o período: 1883/85 – Assim falou
pretendem ver em Nietzsche um “pen- Zarathustra, 1886 – Para além do bem e
sador reacionário feroz, chauvinista e do mal, 1887 – Genealogia da moral,

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1888 – Crepúsculo dos Idolos e Anticris- revolucionária, o filósofo contrapõe a
to. Domenico Losurdo ressalta a especi- maior riqueza cultural e o maior equilí-
ficidade de cada período, as influências brio do regime a cada vez derrocado”
recebidas e a temática privilegiada, ten- (p. 58), e desta maneira faz a história
tando relacionar a evolução da obra do regredir até encontrar-se com o Velho Tes-
filósofo alemão com problemas históri- tamento. Porém, estas longas análises não
cos de cada momento. Por exemplo: a deixam de estar marcadas, segundo
passagem do primeiro ao segundo perío- Losurdo, por uma análise “pouco propen-
do vem reportada “(...) à mudança no sa a distinções ou justificações” (p. 59) e
quadro histórico que conduziu à crise da por uma tendência a generalização e
plataforma político-ideológica do Nas- absolutização de alguns traços particula-
cimento da tragédia” (p. 20). Uma vez res. São estas análises de longa duração
afastado o perigo da Comuna de Paris e que fundamentarão a crítica inapelável de
consolidada a III República francesa, o Nietzsche à modernidade e à civilização.
perigo passou a ser a Social Democracia A questão da inatualidade de
alemã, que parece ser, desde então, o Nietzsche, se bem que presente em di-
motivo de maior preocupação do autor versos momentos do livro, a ela está espe-
da Genealogia da moral. cialmente dedicado o capítulo 8:
O fundamental do texto de Losurdo é, Radicalità, “inattualitá” e incrinature del
entretanto, a identificação que ele fará de progetto reazionario (pp. 48-60). O radi-
algumas questões da obra de Nietzsche (o calismo de Nietzsche, segundo o autor, irá
problema da longa duração e da inatua- levá-lo a uma inatualidade se comparado
lidade de Nietzsche), a partir das quais ele com o seu tempo (o autor compara por
fundamentará parte de suas conclusões. exemplo a posição do filósofo com a dos
O privilégio das análises de longa nacionais-liberais alemães). Porém,
duração, que será um dos pilares da como Losurdo bem sublinha, a inatua-
“radicalidade do projeto contra-revolu- lidade de Nietzsche não é sinônimo de
cionário nietzschiano” (p. 27), está mar- estranheza ao seu próprio tempo.
cado, como já dissemos, por um robusto Losurdo enumera neste capítulo alguns
sentido histórico. É a partir destas análi- paradoxos resultantes da radicalidade de
ses de longa duração que Nietzsche põe Nietzsche. Citemos alguns: i) as análi-
em discussão mais de dois mil anos de ses do autor de Assim falou Zarathustra
história: “a parábola destrutiva da sobre a continuidade entre Lutero e a
modernidade” vem identificada já com revolta dos camponeses, a Revolução
Sócrates entre os gregos (p. 23, 26, 43) e Puritana na Inglaterra, a revolução ame-
se acentuará com o cristianismo com ricana e a revolução francesa é uma tese
“(...) o conceito de igualdade das almas que o aproxima das concepções defen-
frente a Deus, o verdadeiro protótipo de didas por Hegel e Engels, somente com
todas as teorias da paridade de direitos, juízos de valor invertido (p. 49); ii) a in-
que depois se expressarão politicamente fluência da revolução francesa no idea-
na Revolução Francesa e no movimento lismo alemão é uma outra tese igualmen-
socialista” (p. 44). Losurdo afirma que em te defendida por Hegel, Marx e Engels e
Nietzsche “(...) a cada etapa da parábola que em Nietzsche aparece igualmente

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com um sentido diverso e contraposto; se refere também ao problema da des-
iii) a oposição ao anti-semitismo; iv) a truição das “raças decadentes” (p. 67) e
crítica a toda modernidade o conduz a sustenta que a recusa deste sacrifício re-
uma crítica da “sociedade do espetácu- presentaria uma “extrema imoralidade”.
lo” e da psicologia de massas (p. 54), Nietzsche não recua nem mesmo em afir-
como também a uma “(...) análise críti- mar a necessidade de destruir milhões
ca extraordinariamente rica da penetra- de malogrados e da castração de delin-
ção da divisão do trabalho no âmbito qüentes, doentes crônicos, sifilíticos etc.
cultural” (idem); v) crítica ao provincia- (p. 66-7). Estas “sinistras declarações”
nismo e ao eurocentrismo (p. 57). devem ser integradas e aproximadas do
É no quadro deste radicalismo que seu contexto histórico: é o período em
devemos – segundo Losurdo – ler as pro- que Francis Galton (citado favoravelmen-
postas mais polêmicas de Nietzsche. te por Nietzsche) lança a Eugenia e que
A apologia da escravidão já se en- nos EUA são lançadas medidas práticas
contra presente mesmo em suas obras do para a realização desta “nova ciência”
primeiro período. Nietzsche ressaltava (p. 66). No referente à destruição das
que a “escravidão entra na essência mes- raças decadentes, alguns anos antes,
ma da realidade” (p. 10) e que a autênti- Ludwig Gumplowicz já afirmava que era
ca cultura pressupõe o otium e este a ser- justo exterminar, como caça nas flores-
vidão (p. 27). Porém, como ressalta tas, os homens da selva e os hotentotes,
Losurdo: “é necessário precisar o qua- e se comportam assim os próprios bôeres
dro histórico em que se coloca a vida e a cristãos. Nietzsche chega mesmo a afir-
reflexão de Nietzsche” (p. 29) e cita mar a necessidade de abandonar, na prá-
como exemplos: i) a juventude de tica do domínio e da expansão colonial,
Nietzsche durante a Guerra da Secessão; a “benevolência européia” em relação às
ii) a interdição da servidão de gleba na “raças decadentes” (p. 67-68).
Rússia, o que não impediu, contudo, a A crítica de Losurdo não se reduz
sobrevivência efetiva de formas diversas somente ao aspecto político. É importan-
de servidão; iii) a luta da Inglaterra para te fazer referência ao capítulo 6, Politica
a abolição da escravidão (bloqueio na- ed epistemologia, no qual as concepções
val dos anos 70-80), e enfim; iv) a aboli- políticas de Nietzsche são aproximadas
ção da escravidão no Brasil. Não faltam das suas concepções epistemológicas.
na obra de Nietzsche ecos desta história Partindo da afirmação de Nietzsche que
que lhe é contemporânea (p. 29-30), bem não se pode declinar a moral ao singular
como a referência aos chineses que po- (p. 39), Losurdo mostra que, desde seus
deriam substituir a escravidão negra artigos juvenis, o acerto de contas com o
(p. 18 e 32). movimento revolucionário aparece tam-
A outra proposta polêmica de bém no plano epistemológico. A liqui-
Nietzsche é a do extermínio dos malo- dação do igualitarismo pressupõe a li-
grados. Segundo Nietzsche, “(...) o cres- quidação do realismo dos universais
cimento sadio da espécie exige a ampu- (p. 41). É a partir desta concepção episte-
tação ou o sacrifício de fracassados, dé- mológica que Nietzsche se oporá a uma
beis e degenerados” (p. 64-5), o filósofo “visão realista da razão” (p. 41), à ten-

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dência ao nivelamento expressa pela nor- Losurdo nos oferece uma crítica da obra
ma moral no plano da ética e à idéia de de Nietzsche que visa superar as leituras
igualdade no plano político (p. 42). No- a-históricas do filósofo alemão. Como as
vamente aqui a crítica parte de Sócrates palavras de Losurdo se incumbem de nos
passando por Jesus, Lutero e Rousseau esclarecer: “(...) a trágica grandeza do
para chegar à modernidade com a demo- filósofo, o fascínio e a extraordinária ri-
cracia e o socialismo. queza de um autor capaz de pensar a his-
Não é supérfluo lembrarmos, antes tória inteira do Ocidente e de colocar-se
de concluir, que a reconstrução crítica bem além da atualidade, sobre o terreno
do pensamento de Nietzsche vem sem- da “longa duração”, tudo isto emerge ple-
pre efetuada com base em citações de namente só se, renunciando a remover
suas obras, retiradas da edição históri- ou a transfigurar em um inocente jogo
co-crítica publicada por G. Colli e M. de metáforas as suas páginas mais inquie-
Montinari. Além de nos oferecer, como tantes ou mais repugnantes, ousarmos
já dissemos, uma aplicação de seu mé- olhar de frente para aquilo que realmen-
todo de investigação utilizado para a re- te é: o maior pensador entre os reacioná-
construção da História política e da Fi- rios e o maior reacionário entre os pen-
losofia nos séculos XIX e XX, o livro de sadores” (p. 73).

Thomas C. Patterson
Inventing Western Tradition. Nova Iorque, Monthly Review Press, 1997.
Pedro Paulo A. Funari (Professor do Departamento de História, Unicamp).

Patterson, professor de Antropologia tica multiculturalista. Haveria sete ou


e autor de diversos livros sobre a socie- oito civilizações no mundo (Ocidental,
dade humana, a partir de uma perspecti- Confucionista, Japonesa, Islâmica, Hin-
va marxista, publica um belo livro que du, Eslava-Ortodoxa, Latino-Americana
visa questionar o conceito de “civiliza- e Africana), sendo apenas uma univer-
ção” como uma abstração que transcen- sal, a Ocidental. Entre suas característi-
de a sociedade. Logo em seu primeiro cas únicas e que a fazem especial estão
capítulo, “Inventando a civilização” o individualismo, o liberalismo, o
(p. 9-25), Patterson começa por citar a constitucionalismo, os direitos humanos,
cruzada do líder conservador americano, a eqüidade, a liberdade, o direito, a de-
Newt Gingrich, em prol da civilização mocracia, o livre mercado e a separação
americana, que estaria ameaçada pela de Estado e Igreja, conjunção que não
diversidade cultural. Segundo Gingrich, existe em nenhuma das outras civiliza-
essa diversidade destrutiva resultou da ções. Essa civilização é ameaçada por
imigração e do movimento pelos direi- dois perigos inerentes ao multicultura-
tos civis, cristalizados na perigosa polí- lismo: a luta de classes e a guerra civil.

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NETO, Pedro Leão da Costa. Resenha de: LOSURDO, Domenico. Nietzsche e la critica della
modernità. Per una biografia política. Roma: Manifestolibri, 1997. Crítica Marxista, São
Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 168-172.

Palavras-chave: Nietzsche; Século XIX; Modernidade.

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