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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

JULIA TIEME FILIE KAMADA

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO-PENAL

TRABALHO DE CONCLUSÃO DA DISCIPLINA MINISTRADA PELO PROFESSOR


ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO

SÃO PAULO

2020
Estado Democrático de Direito é um conceito que resulta de um longo processo de
conquista do poder político a partir da classe burguesa. Inicia-se, principalmente, a partir do
Século XVII com as Revoluções Inglesas (1640-1688) na atual Grã-Bretanha, é difundido
pelo mundo a partir de 1789, com a Revolução Francesa, e consolidado, finalmente, após o
término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com o surgimento e ratificação da
Organização das Nações Unidas, no ano de 1945.

Desde então, o termo foi e vai além de uma mera definição que conceitua uma forma
de Estado ou Governo; ele carrega consigo valores como Democracia e direitos inerentes da
pessoa humana, ambos inalienáveis em qualquer lugar e situação do planeta terra. Nessa
visão, o papel do Executivo seria, primeiramente, assegurar todos esses valores que
constituem o Estado de Direito, contanto com a ajuda das Instituições, em especial, utilizando
o Direito como instrumento para esses fins.

O Direito, como a própria filosofia discute, é um termo multívoco, podendo assumir


diversos significados. Para fins deste ensaio, entende-se o Direito como aquele que está em
vigor, abrangendo as disposições normativas de determinada sociedade e que dotado de poder
coercitivo, visa a adequar o ser humano à vida social, disciplinando sua convivência. Partindo
disso, não se pode deixar de reproduzir a ideia “ordinária” de que as codificações têm como
propósito garantir e perpetuar os eternos e universais direitos de dignidade e igualdade de
todos os seres humanos, visando corrigir eventuais injustiças.

Parte desta ideia também está presente quando se fala de pena e direito penal; a título
de exemplo, a Filosofia Iluminista, uma das bases teóricas do Estado de Direito, também
estendeu sua influência até a chamada Escola Clássica de Direito Penal (séculos XVII/ XVIII)
o que faz com que as análises conjunturais e valorativas -, tanto da Escola Clássica, quanto do
Estado Democrático-, sejam pautadas pelo liberalismo e, portanto, por um idealismo que
passa pelo reconhecimento de direitos naturais (jusnaturalismo), do livre-arbítrio e da
igualdade perante a lei para justificar e ratificar a função da pena como a resposta necessária a
uma má conduta de determinado indivíduo.

Entretanto, não há como deixar de fazer um apontamento crítico à ideologia liberal


que regula as teorias do funcionamento do Estado e das Instituições, assim como essa visão
idealista do Direito. A primeira contradição desse pensamento foi apontada por Marx e
Engels: ao analisar a decadência do feudalismo e a ascensão da burguesia, em especial sua
tomada de poder na política institucional, os dois teóricos afirmaram: “O poder do Estado
moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa
1
como um todo.” Isso significa dizer, em outras palavras, que tanto o Estado, quanto o
Direito, na verdade são instrumentos do Capital, e sua atuação, portanto, serve para manter o
status quo: uma sociedade de classes.

Ou seja, tratando do sistema brasileiro, com uma sociedade organizada sob o modo de
produção capitalista, o Direito possui como função a manutenção e reprodução do próprio
capitalismo. Para justificar esse processo, analisemos rapidamente seu início: desde a
expansão marítima burguesa dos séculos XV/XVII, que buscava novas fontes de exploração
para seu modo de produção, o mundo foi dividido entre colônias e metrópoles.

Dentre as consequências desse Imperialismo e Colonialismo, destaca-se a


desumanização e estigmatização de povos e culturas que fogem do “padrão burguês de
excelência”, como forma de justificativa e estratégia que visava naturalizar violências
inaceitáveis, como foi a escravidão para a história humana, tudo em nome do lucro. Durante a
escravidão, os negros não eram considerados sujeitos de direito, ou seja, pessoas dotadas de
personalidade jurídica; eram tratados como bens; objetos, e toda a sua subjetividade, paixões,
história, sentimentos e necessidades –psíquicas e fisiológicas- eram ignoradas. Fato que por si
só, mostra que a ideia liberal de “direitos inerentes aos seres humanos” e igualdade, na
verdade não se aplicava a todos os indivíduos.

A escravidão no Brasil foi legitimada pelas normas. A primeira dela, Alvará de 29 de


março de 1549, permitiu que os senhores de engenho “importassem” pessoas do continente
africano e as escravizasse, mas depois dela, outras vieram, inclusive as que autorizavam o uso
de violência e punições severas contra essas pessoas, normalizando a violência e opressão
institucionais contra a população negra desde o período colonial.

Também nessa época, o capitalismo encontrava-se em estágio que lucrava com


exploração de escravizados, principalmente por que no país a economia colonial era agrária.
Porém, quando surge uma economia baseada na produtividade das indústrias, o trabalhador
assalariado torna-se interessante para a permanência do ciclo lucrativo, com a necessidade de
uma mão de obra barata e de abolição da escravatura, conforme ocorreu em 1888.

1
MARX, Karl; ENGLES, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista, 1848.
Não se pode deixar de comentar que, boa parte das pessoas reconhece que, ainda hoje,
132 anos após a abolição no país, as condições do povo negro no Brasil são precárias;
entretanto, nem sempre se evidencia que toda a estrutura organizacional das classes e da
economia de nosso país, é pautada pelo racismo. Isso porque ele é uma mazela criada -e
aproveitada- pelo Capital, que serve de justificativa para a existência de uma mão de obra
barata e descartável. É como se o racismo servisse de acautelamento a burguesia: não importa
qual seja o cenário econômico do país (crise ou aceleração), sempre vai existir a parcela
pobre, preta e necessitada, “pronta” para ser explorada, seja em subempregos, seja recebendo
salários menores que seus colegas brancos. 2

Para destacar o impacto do Direito Penal como instrumento construtor desse cenário,
destaca-se a adoção do positivismo criminológico no contexto brasileiro. Surgido no século
XIX, essa escola de pensamento tinha como foco e objeto de estudo a figura do criminoso; o
“delinquente” e utilizava-se do determinismo para concluir que os infratores das normas
violavam o direito porque nasceram assim: eram criminosos por conta de condicionantes
biológicas, antropológicas e hereditárias.

Segundo João Paulo de Aguiar Sampaio Souza, no artigo A recepção do positivismo


criminológico no Brasil, publicado pela Revista Brasileira de Ciências Criminais, o que
ocorreu no contexto nacional, no mesmo século, foi a incorporação dessa ideia somando-a a
associação do negro (outrora escravizado, agora liberto) ao “deliquente natural”. Para ele, a
escravidão exercia o papel de controle jurídico dessa parcela da população, e, uma vez
abolida, ela foi substituída pelo Direito Penal, que agora faria o controle ideológico.

E assim, a difusão desse pensamento fez com que a simples existência da pessoa negra
se configurasse como uma ameaça a ordem, afinal, essa figura seria infratora, violenta e
criminosa por natureza, e que, portanto, deveria ser contida; além disso, esse desejo de
domínio teria trazido três consequências sentidas até hoje: (i) o uso da prisão como forma de
resolução de problemas sociais; (ii) o fato de que a maioria das prisões é resultado de delitos

2
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, de forma geral, há uma diferença
salarial de 45% entre trabalhadores brancos e negros. Fonte: FREIRE, Simone. Racismo é causa da diferença
salarial de 31% entre brancos e negros com ensino superior, diz pesquisa. Alma Preta, 08 Janeiro 2020.
Disponível em << https://www.almapreta.com/editorias/realidade/racismo-e-causa-da-diferenca-salarial-de-31-
entre-brancos-e-negros-com-ensino-superior-diz-pesquisa >> Acesso: 06/12/2020
sem vítimas, ou seja, agressões à ordem pública e (iii) criar uma “imagem fixa” do infrator faz
com que ele, o “outro”, não seja visto como igual e por isso pode receber penas rígidas.

Isso se comprova quando analisamos os dados do Anuário de Segurança Pública, que


além de demonstrar que dois em cada três presos são negros, afirma que “No Brasil, se
prende cada vez mais, mas, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. (...) existe, dessa forma,
uma forte desigualdade racial no sistema prisional, que pode ser percebida concretamente na
maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros”3 e mostra que
a prisão de pessoas negras aumentou 14% em 15 anos. Ou seja, a estigmatização da pessoa
negra faz parte de nossa estrutura penal.

Na cultura popular, música, cinema e artes são instrumentos de denúncia desse cenário
injusto. Grupos como Racionais MCs, NSC e Comunidade Carcerária trabalham expondo as
falhas do sistema penal e os tratamentos desiguais reservados aos negros e outras minorias (no
que tange à acessibilidade de direitos). Um dois exemplos que ilustram essa desigualdade é a
música Banco dos Réus, de Carlos Eduardo Taddeo possui trechos que se relacionam, com o
que foi dito, por isso, cita-se alguns de seus trechos:

“Favelado é culpado até provado o contrário// Chego no fórum da barra funda quase
inconsciente// Pelas sessões de espancamento feita pelos agentes (...) Ódio de classe pulsante
do ideário burguês// Excluído,não é ser-humano no tribunal // É só a personificação de uma
ficha criminal (...) Me condenam pela condição de favelado// Pelas passagens e feição
comum do retrato-falado// Princípio do contraditório e da ampla defesa// Não é direito dos
que assombram a máfia burguesa”4

Com isso, há a demonstração de que o Direito e o Judiciário, atualmente, não só são


reflexos das desigualdades, concentração de renda e do preconceito, mas também se
configuram como um meio de perpetuação desse cenário injusto. Por isso, a população mais
vulnerável é vítima de uma política advinda da cultura do punitivismo que encarcera as
pessoas em massa e ignora o verdadeiro problema: a desigualdade causada pela divisão de

3
ACAYABA, Cíntia; REIS, Thiago. Proporção de negros nas prisões cresce 14% em 15 anos, enquanto a de
brancos cai 19%, mostra Anuário de Segurança Pública. G1. 19/10/2020. Disponível em
<<https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/19/em-15-anos-proporcao-de-negros-nas-prisoes-aumenta-
14percent-ja-a-de-brancos-diminui-19percent-mostra-anuario-de-seguranca-publica.ghtml>>Acesso: 08/12/2020
4
CARLOS EDUARDO TADDEO. Banca dos Réus. Duração: 4min25seg.
classes e toda a perversidade advinda disso, tal como as grandes tragédias humanitárias, a
fome, guerras financiadas por empresas multinacionais ou tragédias ambientais.

Por fim, todos dos esses exemplos, fatos e teorias, concorrem paralelamente com o
Estado Democratico de Direito e com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, algo, no
mínimo, paradoxal e que conflita com os postulados liberais do sistema vigente. Com isso,
reforça-se a tese exposta de que o Direito é exercitado pensando no seu papel perpetuador do
capitalismo, não como instrumento pelo qual se dá a prática da justiça, e que para superar essa
contradição, deve-se primeiro superar a existência de uma sociedade de classes.

REFERÊNCIAS

BANDECCHI BRASIL, Pedro. Legislação básica sobre a escravidão africana no Brasil.


Trabalho apresentado como comunicação ao VI Simpósio Nacional dos Professores
Universitários de História realizado em Goiânia de 5 a 11 de setembro de 1971.

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