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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO

Novo CÓDIGO PENAL


(PLS 236/2012)

COORDENADOR
ROGÉRIO GRECO

ALEXANDRE SALIM JOÃO LUIZ CHAVES JÚNIOR

ALICE BIANCHINI JOSÉ CIRILO DE VARGAS

ANTÔNIO DE PÁDOVA MARCHI JÚNIOR JEFERSON BOTELHO PEREIRA

CARLOS GUSTAVO DE SOUZA MIRANDA JULIANA BIERRENBACH

CARLOS VINHA LEONARDO CASTRO

EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE LENIO LUIZ STRECK

EDUARDO MAIA BETINI LUIZ FLÁVIO GOMES

FAUZI HASSAN CHOUKR MARCELO ANDRÉ DE AZEVEDO

FELIPE VIEITES NOVAES PAULO Q\JEIROZ

FERNANDO A.N. GALVÃO DA ROCHA ROGÉRIO GRECO

FRANCISCO DIRCEU BARROS SALO DE CARVALHO

SHEILA BIERRENBACH

Niterói, RJ
2013
BEM JURÍDICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: "TODAVÍA"
LA LEY ES COMO LA SERPIENTE; SÓLO PICA A LOS DESCALZOS?
lenío luiz Streck'

A crise do Direito (Penal) e a Constituição: o caráter estamental


da organização social brasileira
Para iniciar as reflexões, quero trazer à baila um conceito central para se
pensar a conformação e a articulação do poder político no Brasil. Refiro-me
ao binômio patrimonialismo-estamento que Raymundo Faoro, inspirado em
Max Weber, apresenta para construir sua interpretação do Brasil (desde as
[.
feitorias até a Era Vargas). Com efeito, em larga síntese, a tese de Faoro era
de que - e ressalta-se que ela permanece atual na maioria de seus aspectos - o
poder político no Brasil se articula, devido a uma herança lusitana, a partir de
um estado que é patrimonialista em seu conteúdo e estamental em sua forma.
Patrimonialista porque os titulares do poder se apoderam do aparelhamento

i Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-doutor pela Universidade de Lisboa (Ulisboa).
Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos). Professor permanente da Universidade Eslácio de Sá (Unesa-RJ), de Universitá Degli Studi (Roma-Tre) (Scuola Ooltorale
Tulio Scarelli), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices) e da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. Membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst. Presidente de
Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica IHJ (RS-MG}. Membro da comissão permanente de Direito Constitucional do Instituto
dos Advogados Brasileiros - IAB, do Observatório da Jurisdição Constitucional do Instituto Brasiliense de Dlreito Públlco - IOP, da
Revista Direitos Fundamentais eJustiça, da Revista Novos Estudos Jurídicos, entre outros. Coordenador do DASEIN Núcleo de Estudos
Hermenêuticos. Procurador de Justiça do Estado do mo Grande do Sul. Autor, entre outras obras, de Jurisdição Constilucional e
Hermenêutica (2. ed.); Hermenêutica Jurídica e(m) Crise (10. ed.); Verdade e Consenso (4. ed.), além dos livros, em espanhol: Verdad
y Consenso, Hermenêutica y Decisión Judicial, e Hermenéulica Juridica: estudios de teoria dei derecho. Tem experiência na áred do
Direito, com ênfase em Direíto Constitucional. Hermenêutica Juridica e Filosofia do Direito.

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estatal de tal forma que acaba por gerar uma quase indistinção entre o que é direcionado a escravos e congêneres (aliás, havia uma inconstitucionalidade
bem público (Estado) e o que é o bem privado; ou seja, trata-se da utilização que jamais pôde ser decretada: a Constituição aboliu as penas cruéis, já o Código
dos espaços estatais para realização e administração de interesses de origem impunha a conversão de qualquer pena distinta da morte ou das galés em açoites
privada. Isso tem consequências sérias. O estamento, por outro lado, é o que dá quando o condenado fosse escravo). A seletividade penal também se fazia clara na
forma a esse exercício patrimonialista do poder. desproporção das penas entre os crimes "de senzala" e os da "casa grande". Basta
Trata-se de uma verdadeira casta que assume o controle do Estado, ver que as lideranças do crime de insurreição (reunião de vinte ou mais escravos
governando-o de acordo com seus interesses. Portanto os estamentos, objetivando a obtenção da liberdade por uso da força) tinham para si reservadas a
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vistos a partir de Os donos do poder, de Raymundo Faoro, nos mostra que, em pena capital, enquanto às do de rebelião (reunião de mais de vinte mil pessoas de
determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma uma ou mais povoações visando o cometimento de crimes como tentar destruir
sociedade de estamentos, que "ficam de fora" da classificação tradicional de o Império, provocar nação estrangeira a declarar guerra contra o Brasil e outras)
classes sociais. Nas palavras de Faoro, "sobre a sociedade, acima das classes, o se destinava prisão perpétua.
aparelhamento político - uma camada social, comunitária embora nem sempre Proclamada a República em 1889, já no ano seguinte tínhamos um novo
articulada, amorfa muitas vezes - impera, rege e governa, em nome próprio, Código, agora dirigido aos ex-escravos e congêneres. Mais uma vez "se olvidou"
num círculo impermeável de comando. Essa camada muda e se renova, mas não dos setores empoderados, afinal, centenas de anos de escravidão marcaram
representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por indelevelmente o sentido de classe do direito, em especial o direito penal. Por
velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, isso, a ausência histórica de punições mais efetivas contra crimes contra o
imprimindo-lhes os seus valores" (FAORO, 1995, p. 824). Há, assim, brasileiros erário público, corrupção etc. E não esqueçamos a relevante circunstância de que
"diferentes" de outros brasileiros, circunstância reconhecida pela (então) mais criminalizar a pobreza é um eficaz meio de controle social, tarefa imprescindível para
alta autoridade da nação recentemente, ao sugerir que o Ministério Público, manter sob o julgo da elite econômica toda a massa populacional que precisava
antes de denunciar alguém, examine o seu curriculum. ser enquadrada no novel modo de produção a ser instalado. Um operariado
Essa constatação assume ares dramáticos quando percebemos que, disciplinado, desprovido de autonomia e condicionado às largas jornadas de
passados vinte anos desde a promulgação da Constituição, não há indicativos trabalho eram requisitos básicos para que se firmasse o incipiente capitalismo
de que tenhamos avançado no sentido da superação da crise por que passa em terrae brasilis, e essa massa humana não mais poderia ser controlada pela
a operacionalidade do Direito em terrae brasilis. Persistimos atrelados a força do chicote. É nesse tempo que têm vez os ditos "crimes contra a ordem
um paradigma penal ele nítida feição liberal-individualista, corrompido e pública", tais como a vadiagem, a embriaguez, a mendicância e a capoeira.
potencializado pela estrutura patrimonialista e estamental cio Estado brasileiro. Todos seguindo a mesma lógica moralista e com o mesmo intuito de reprimir
Isto é, preparados historicamente para o enfrentamento cios conflitos ele índole os elementos destoantes da patuleia que se recusassem (ou não conseguissem)
interindiviclual, não engendramos, ainda, as condições necessárias para o à inserção no sistema.
enfrentamento cios conflitos (delitos) ele feição transindiviclual (bens jurídicos Mutatis mutandis, a preocupação maior sempre foi com a proteção da
supraindivicluais), que compõem majoritariamente o cenário dessa fase de propriedade privada e dos interesses lato sensu das camadas dominantes,
desenvolvimento ela sociedade brasileira. Ou seja, não podemos pensar que questão que ficou bem visível no Código de 1940, que surge em pleno Estado
é possível alterar o foco do direito penal se continuarmos pensando que os bens Novo, agora com a preocupação de atingir a um outro tipo de "clientela":
jurídicos que devem ser protegidos são os de feição meramente interindividual. um Brasil que aos poucos se urbanizava e que passava pela segunda fase do
Reflitamos a respeito: o primeiro Código Penal brasileiro foi o do Império. processo de substituição de importações (não esqueçamos que até 1930 o Brasil
Outorgada a Constituição em 1824, permanecemos com as Ordenações Filipinas se sustentava na base da economia agrário-exportadora). Inspirado no modelo
(talvez o diploma penal mais emblemático em termos ele criminalização ela pobreza, fascista, o Código Penal apontou efetivamente para o "andar de baixo", com
eis que estabelecia ao fim de cada tipo uma pena diferente para cada "qualidade" especial preocupação com os crimes contra o Estado, o "livre desenvolvimento"
de autor) até o ano de 1830, quando foi editado o Código Criminal, nitidamente do trabalho, a "proteção dos costumes", etc., mas sempre dando ênfase à

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propriedade privada: o furto recebeu uma qualificadora ele chave falsa, uma e individual, como o furto privilegiado' (art. 155, § 2', do Código Penal) e
vez que as pessoas guardavam dinheiro em suas casas, problemática também a alteração de marca em gado alheio (com pena de até 3 anos de detenção
conforme art. 162 do Código Penal)'; ou públicas (ainda), mas condicionadas à
presente (e protegida) pela qualificadora ela escalada (os muros grandes não
representação, em casos como o de tomar refeição em restaurante sem dispor
cercavam os cortiços elo proletariado. A pena fora duplicada (2 a 8 anos).
de recursos para pagamento (art. 176 do Código Penal). Isso para não falar na
De registrar que, em tempos de "proteção ela moral pelo Estado", houve nossa sempre lembrada Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n" 3.688, de
a aposta em uma espécie de behaviorismo criminal, isto é intensificou-se a
1 1941), que criminalizou o modo de ser da escumalha, que perturba o trabalho
punição de vícios e comportamentos sociais. Afinal, o Estado estava preocupado alheio com algazarra (art. 42, I, da LCP), que se finge de funcionário público
em "consertar o homem", criando para tanto, ao lado do Código Penal, a Lei (art. 45 da LCP), que se entrega à ociosidade sem renda que lhe assegure meios
das Contravenções Penais (aqui é interessante notar o modo como aparece o bastantes de subsistência (art. 59 ela LCP) e que se embriaga (art. 62 da LCP).
componente de "classe" no direito criminal: enquanto se punia criminalmente Essas infrações todas, sem exceção, são representativas de uma experiência
a mendicância, também se punia, na área cível, o pródigo; com isso, cria-se de um Estado protoliberal, e da nítida oposição entre Estado e sociedade civil
um elo entre o mendigo e o pródigo; o primeiro denuncia o sistema injusto, (cidadania) que a caracteriza, como confirma a pequena digressão histórica
a divisão em classes (como não poderia ser diferente, era requisito subjetivo anteriormente realizada. A garantia ela segurança passa inexoravelmente
do tipo que o autor não tivesse renda ou meios para o próprio sustento, o pela proteção dos bens jurídicos vida/integridade pessoal e, como visto, do
que permite concluir que era um crime próprio, unicamente possível de ser patrimônio individual. A questão fica mais interessante quando se contrasta
praticado por pobres) etc.; já o segundo decepciona o sistema, d'onde se pode esse estado de coisas com o advento da Constituição de 1988, que inaugurou
dizer que o pródigo é o "lumpen da burguesia" nacional). no Brasil o marco de um Estado Democrático (e Social) de Direito. Isso significa
Ao (atual) Código Penal de 1940 foram sendo acrescidas leis, sendo que dizer, em síntese, que a nossa realidade passou a ser tomada por um acentuado
parcela considerável sem qualquer sistematicidade. Na medida em que o crime deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano
se organizava e mudava de feição, foi-se legislando de forma ad /toe, como, por da justiça constitucional, que passa a zelar (e a legitimar-se) pela busca dos
altos objetivos da República, entre eles, a erradicação da pobreza e a redução
exemplo, a lei do Colarinho Branco (Lei n" 7.492/86), a da Lavagem de Dinheiro
das desigualdades sociais (art. 3', III, da CR). Entre os fatores que colaboraram
(Lei n" 9.613/98), do Crime Organizado (Lei n' 9.034/95), dos Crimes Hediondos
para esse deslocamento está o tipo de Constituição do pós-segunda grande
(Lei n' 8.072/90).
guerra, com nítido cariz principiológico, quando o direito passou a abarcar o
mundo prático até então rejeitado pelo positivismo.
Se nos quadros de um modelo de Direito Liberal fazia algum sentido o
A efetiva confissão de que, historicamente, criminalizamos a privilégio da defesa do patrimônio e segurança individuais, agora nós devemos
pobreza e mantemos um direito penal de "classe" (deveríamos) ter em mente a presença de novos bens jurídicos, típicos da tradição
Já é de certa forma um lugar-comum qualificar o Direito Penal (e em que se forja no Estado Democrático de Direito, no qual não há (mais) oposição
especial o Direito Penal brasileiro) como conservador e ideológico, típico de um entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa
modelo de Estado em que a produção das leis (e do Direito em geral) segrega da condição de "inimigo" para a de "amigo dos direitos fundamentais", bem
a pobreza, afastando-a da sociedade civil (composta por pessoas "de bem"?),
a pretexto de garantir a almejada "paz social". Não há, pois, como dizer que 2 Acomissão responsável pela elaboração do anteprojeto do novo Código Penal aprovou recentemente a necessidade de representação
da vítima de furto como condição para o ajuizamento da ação penal. Disponível em: <hllp://www.slj.jus.br/portal_stj/publicacao/
o Direito Penal "clássico" não seja mesmo refém de um paradigma liberal-
engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105449>. Acesso em: 25 maio 2012.
individual-patrimonialista, que o colocou a serviço da proteção do patrimônio, 3 APena máxima é superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (ar!. 249 ), violência doméstica nas hipóteses do§ 1oi (art.
da propriedade e, sobremodo, dos proprietários. 129), maus-tratos (ar!. 136), violação de domicílio -quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência
ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (ar!. 150, §, 1°) e assédio sexual (ar!. 216-A, pena máxima de 2 anos). Oapenamento
Os exemplos são inúmeros e já foram quase todos bem explorados por máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária {destaque para o art. 22 da Lei 8.137/90),
qualquer doutrina crítica. Fala-se de um emaranhado legislativo que estabelece alguns crimes ambientais (arts. 32; 45; 50 da Lei n1 9.605/98), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (arts. 228; 229;
230; 231; 232; 234, 235: 236; 244 da Lei n' 8.069/90) ea crimes ocorridos em licitações (arls. 93; 97; 98 da Lei n~ 9.666/93).
ações penais públicas e incondicionadas para crimes de nítido cariz patrimonial

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entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa "reviravolta", é evidente resultado morte: neste, a pena abstrata varia de 20 a 30 anos de reclusão; naquele,
que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas de 12 a 30 anos. À "qualificadora" ele "subtração de coisa alheia móvel" no crime
que se coloquem como entrave à concretização elo projeto constitucional. Nesse de homicídio, comina-se uma pena abstrata no mínimo 8 anos mais grave do que
contexto, desvela-se (em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser a pena prevista à prática de homicídio qualificada por emprego de meio tortura
combatida, aquela que atinge bens jurídicos supraindividuais, que afetam toda a ou outro meio cruel ou ainda na ocorrência de qualquer das circunstâncias
coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos qualificadoras previstas no art. 121, § 2•, do Código Penal.
e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Ainda nas disposições concernentes aos títulos I e II do Código Penal, ao
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição efetivamente determina ao crime de furto qualificado é cominada pena abstrata muito superior à sanção
Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para essa direção, dando prevista ao crime de lesão corporal de natureza grave. Se para o primeiro, a
proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só pena em abstrato varia de 3 a 8 anos de reclusão, no segundo caso limita-se em
a ordem econômico-financeira mas também o meio também o meio ambiente
1
1 a 5 anos. Conclusão: a subtração de bem patrimonial do interior da residência
e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ela vítima realizada por mais de uma pessoa implica sanção superior à ofensa à
ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se integridade corporal de que resulte debilidade permanente de membro, sentido
espera (Dworkin tem razão quando cobra coerência e integridade do Direito) é que ou função, ou ainda que coloque em perigo a vida da vítima.
trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: Indo além, em relação ao furto simples, a sanção é duplamente superior
se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade à definida para o crime de exposição ou abandono de recém-nascido, pífios 6
um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos - art. s•, meses a 2 anos de detenção, sem falar que ao furto é cominada pena de reclusão.
XXII da CR), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o Importante observar que a conduta de adquirir - com finalidade comercial -
tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio coisa que deveria saber produto de crime recebe apenamento (mínimo) superior
da coletividade. Ou por outra: se segue sendo criminalizada a violação da honra à conduta que - mediante dolo direto - causa lesão corporal gravíssima, gerando
(também direito fundamental, a propósito - art. 5º, X, da CR), não se espera menos deformidade permanente, perda de membro ou aborto.
das condutas que agridam direitos da infância e juventude (a quem se prometeu
"absoluta prioridade", nos termos do art. 227, caput, da CR). Contudo, a "baixa Por fim, resta escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico
constitucionalidade" do Legislativo e da comunidade jurídica faz com que a sua primordial (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de
almejada integridade seja uma quimera. Uma rápida pesquisa nos principais sítios tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas
eletrônicos dos Tribunais do Brasil nos dá provas incontornáveis disso. aos crimes ele redução a condição análoga à de escravo (2 a 8 anos de reclusão)
e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (12
a 20 anos de reclusão).
Nesse mesmo contexto de descritério de resposta penal - tendo por
A legislação e suas incongruências: uma breve comparação
perspectiva a importância do bem jurídico protegido - exsurgem, na legislação
entre (alguns) tipos penais esparsa, exemplos ainda mais desveladores da política de criminalização utilizada
Não é necessária uma pesquisa muito aprofundada para que se encontrem em terrae brasilis. No Código de Defesa do Consumidor são previstas, como
incongruências no ordenamento jurídico-penal brasileiro. A partir da simples crimes, as condutas de omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade
leitura da Parte Especial do Código Penal já se deduz, de plano, a preferência do ou periculosidade de produtos ou deixar de alertar, mediante recomendações
legislador na penalização dos crimes patrimoniais quando em comparação com os escritas ostensivas, sobre a periculosidade do serviço a ser prestado; deixar de
crimes praticados contra a pessoa. Veja-se exemplificativamente que ao crime de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade
homicídio simples é cominada uma pena mínima abstrata de 6 (seis) anos, inferior de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado, deixar de
à estabelecida para o crime de roubo qualificado pelo resultado lesão corporal retirar do mercado, imediatamente quando determinado pela autoridade competente,
grave, casos em que se parte de 7 anos. Ainda, ao crime de homicídio qualificado os produtos nocivos ou perigosos; executar serviço de alto grau de periculosidade,
é cominada pena muito inferior à relativa ao crime de roubo qualificado pelo contrariando determinação de autoridade competente; fazer ou promover

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publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor Examinemos, agora, alguns incisos do art. 1º do recepcionado e
a se comportar ele forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança. alterado (depois da Constituição) Decreto-Lei nº 201/67 (que dispõe sobre a
Entretanto, a pena estipulada para cada um desses delitos não ultrapassa 2 anos, responsabilidade dos Prefeitos Municipais) e que dizem respeito àquilo que está
patamar abstrato bem inferior ao estabelecido para o crime de furto simples, na manchete de todos os jornais cotidianamente, a dilapidação do erário:
sendo caracterizados como crimes de menor potencial ofensivo, malgrado o III - Desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas
mal social que de sua prática advém. públicas; XI - Adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem
concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos em lei;
Já as condutas de "fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação
XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa
relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança,
disposição de lei; XVII - Ordenar ou autorizar a abertura de
desempenho, durabilidade, preço ou garantia ele produtos ou serviços" implicam
crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado
um apenamento bem inferior ao que corresponde a qualquer apropriação indébita, furto Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito
ou estelionato, para ficar apenas nesses. Do mesmo modo, para o legislador, fazer adicional ou com inobservância de prescrição legal; (Inciso
ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva é acrescido pela Lei n' 10.028, de 19.10.2000) XVIII - Deixar de
menos relevante do que a apropriação de uma fita de vídeo de locadora (há promover ou de ordenar, na forma da lei, o cancelamento, a
vários julgados reconhecendo ser este um caso de apropriação indébita). amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos
Interessante notar, ademais, que, segundo o art. 241 da Lei nº 9.069/90 de operação de crédito realizada com inobservância de limite,
(alteração promovida pela Lei nº 11.829/2008), produzir, divulgar ou publicar, condição ou montante estabelecido em lei; (... ).
por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores
Todas as condutas acima listadas recebem a pena de detenção de 3 meses
ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito
a 3 anos. Em síntese, uma singela comparação com as penas previstas para a
envolvendo criança ou adolescente acarreta uma pena de 4 a 8 anos, pena
adulteração de chassi de automóvel ou para o furto qualificado' parece indicar
máxima idêntica ao do furto praticado por duas pessoas. Veja-se nessa resposta
penal o grau de concretização da previsão constitucional de assegurar - com os objetivos da legislação penal em terrae brasilis.
prioridade absoluta - a dignidade e respeito à criança e ao adolescente e da
determinação de sua proteção contra toda forma de negligência, discriminação,
exploração e violência (art. 227, CR). Algumas decisões judiciais de terrae brasilis que reforçam a tese
Aliás, o crime de adulteração de chassi ou sinal de veículo automotor, fruto de da "criminalização da pobreza" e da "pobreza da criminalização"
eficiente lobby das seguradoras de veículos, tem um apenamento de 3 a 6 anos de Historicamente, no Brasil, nunca se tratou os chamados crimes de colarinho
reclusão e multa. Essa pena mínima é maior do que às cominadas aos crimes de branco como se tratam os crimes do "andar de baixo". Para fins de mera
lesão corporal permanente com perda de membro, de instigação ao suicídio, se exemplificação da asserção, a Lei nº 4.729/65 estabelecia penas de detenção de
vier a ocorrer a morte, e de infanticídio (2 anos em todos). De todo modo, para 6 meses a 2 anos ao crime de sonegação fiscal. Ou seja, a desproporcionalidade
proteger a família - em verdade, a propriedade privada - o legislador teve especial era tanta que às condutas que configuravam crimes-meio para a prática da
preocupação para com a bigamia: 2 a 6 anos de reclusão (com o reforço de que a
sonegação fiscal (tais como a falsificação e o uso de documento falso) era
Lei nº 11.106, de (28 de março de 2005, que extirpou do ordenamento o crime de
cominada, no Código Penal, sanção autônoma bastante superior à cominada à
adultério não alcançou por opção política o inconstitucional crime de bigamia).'
pratica do crime-fim. Então, apenas em 1990, a Lei nº 8.137 agravou as penas,
tendo sido, contudo, o aumento da sanção acompanhado da previsão da extinção
4 E não para por aí mesmo que a criança e o adolescente recebam especial proteção do Estado - e aqui, insisto, basta ver a
Constituição a respeito-, o legislador parece mais uma vez estar com os olhos voltados para a propriedade privada, enfim, para os
da punibilidade ante o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia.
bens jurídicos de cariz interindividual. Veja-se, nesse sentido, o teor do ar! 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a completa
5 Ampliando a análise, a gestão temerária de instituição financeira tem tratamento absolutamente idêntico ao do furto qualificado. Já de
desproporção do preceito secundílrio em relação à importância do bem jurídico protegido (observe-se que a ordem de proteção cariz
acordo com o Côdigo Eleitoral. dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber para sí ou para outrem dinheiro, dádiva ou qualquer outra
constitucional): Oar!. 243 estabelece a ineficaz pena de 2 a 4 anos e multa àquele que "Vender. fornecer ainda que aratuilamente,
vantagem a fim de obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita, têm a mesma cominação
ministrar ou entreaar. de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produ/os cujos componentes possam causar
de pena {máxima) do que a prevista para o crime de furto simples, sendo inferior à sanção estabelecida para a prática de estelionato
dependência física ou psíquica, ainda que por utilizaçáo indevida".

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Na (des)proteção da ordem tributária, em retrocessos e avanços legislativos, leva à condenação criminal, continua sendo reprimida pelo aparato penal,
chegou-se ao art. 9' da Lei n' 10.684/2003 em que se determina a suspensão da escamoteada como fundamento para prisões preventivas.'"
pretensão punitiva - com o parcelamento - e a extinção da punibilidade - com Simbolicamente, tais questões podem ser compreendidas a partir de dois
o pagamento dos débitos oriundos de tributos e de contribuições sociais. Em julgamentos do Superior Tribunal de Justiça que ilustram perfeitamente a
caso emblemático, quando do julgamento de Marcos Valério - Recurso Especial incompatibilidade hermenêutica e a baixa compreensão constitucional contra a
nº 942.769 - MG (2007 /0046519-5), o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela qual se insurge, dando razão às correntes da criminologia crítica que diuturnamente
extinção da punibilidade de crime de sonegação fiscal pelo pagamento das denunciam ser esta a Arcana]uris. Em ambas, o princípio da insignificância assumiu
parcelas não recolhidas em momento posterior ao recebimento da denúncia, papel ele destaque, não sendo considerado aplicável no primeiro caso, que tratava
consagrando o entendimento que o pagamento do tributo a qualquer tempo enseja da subtração de mantimentos cujo valor totalizava R$ 88,50, mas, no segundo, foi
o fim da possibilidade de responsabilização penal. O (mero) parcelamento do tido por apto a escusar penalmente o autor de descaminho cujo prejuízo ao erário
débito oriundo de crimes contra a ordem tributária e previdência extingue a fora de R$ 4.239,36. Nada que cause espanto, eis que a Terceira Sessão daquela
punibilidade (art. 9' da Lei n' 10.684/2003),' mas ainda se resiste em estender corte - há muito - já considera R$ 10.000,00 como piso para o arquivamento das
semelhante benefício aos autores de furto (em que se restitui ares furtiva).' ações penais em crimes de descaminho. Aliás, dado compatível com a Portaria
A seletividade penal também se manifesta nos tribunais quando da n' 75 do Ministério da Fazenda, que estabelece a quantia de R$ 20.000,00 como
mensuração do dano: enquanto o Tribunal de Justiça do Rio Grande elo Sul parâmetro mínimo para o ajuizamento de execução fiscal."
decidiu que o furto de objetos avaliados em R$ 37,00 não é insignificante, o Releva registrar, ainda, pesquisa realizada pela Procuradora da República
Tribunal Regional Federal da Quarta Região (que compreende o Estado do Rio Ela Castilho (1998), cujos dados dão conta de que, de 1986 a 1995, somente cinco
Grande do Sul) pacificou jurisprudência no sentido de que é bagatelar, para fins dos 682 supostos crimes financeiros apurados pelo Banco Central resultaram
criminais, a sonegação de R$ 2.500,00 em tributos para o crime de descaminho.' em condenações em primeira instância na Justiça Federal. A pesquisa revela que
Além disso, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, que veio para nove dos 682 casos apurados pelo Banco Central também sofreram condenações
ampliar a proteção do meio ambiente, apesar da norma do texto do art. 225, nos tribunais superiores. Porém - e isso é de extrema relevância - nenhum dos 19 réus
§ 3', da CR, não transcende a produção doutrinária.' A "vadiagem", se não mais condenados por crime do colarinho branco foi para a cadeia! A pesquisa em questão
ressalta também que o número de 682 casos apurados é extremamente pífio,
em face dos milhares de casos de crimes do colarinho branco que ocorrem a todo ano no
país! Mais do que isso, há que se registrar que o montante do prejuízo causado
6 Lei n~ 10.684/2003, Art gi É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. P e 2i da Lei
n1 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n" 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, à população (ao Estado-sociedade) por esses 682 casos (e isso "naquela época"
durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos cnmes estiver incluída no regime de parcelamento.
7 Apropriação de contribuições previdenciárias Parcelamento do débito. Extinção da punibilidade. Pacíficou-se no Superior Tribunal de Justiça 10 HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR-EXCESSO DE PRAZO NA CONCWSÃO DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL
a compreensão seaundo a qual, nos cnmes conlra a ordem tributária, oparcelamento anlecedente à denúncia extinaue apunibilidade. (REsp CAUSADA EXCLUSIVAMENTE PELO RÉU. (... ) Vadiagem devidamente comprovada. Custódia do paciente necessária como forma de
n1 249.812/SP,6J Turma, Rei. Min. Paulo Gallol!i, j. 17.5.2001, v.u., DJU 18.2.2002, p. 525, in Boletim IBCCRIM, 112/593) resguardar a ordem pública. Excesso de prazo absorvido pelo juízo de razoabilidade. Instrução criminal encerrada. Inteligência da Súmula
U FURTO. PRINCÍPIO OA INSIGNIFICÁNCIA. INEXISTENTE. ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. EXAME QUE NÃO EXIGE AS CONDIÇÕES ni 52 do STJ. Processo preste a ser sentenciado. Constrangimento ilegal descaracterizado. Ordem denegada. Decisão unânime (HC n9
DA LEI PROCESSUAL.( .. ) FURTO QUALIFICADO. INEXISTÉNCIA DE ISONOMIA COM OROUBO. MULTA. APLICAÇÃO OBRIGATÓRIA. 200530055422 (61412), Câmaras Criminais Reunidas do TJPA, Rei. Raimunda do Carmo Gomes Noront1a. j. 27.4.2006).
TENTATIVA. DOSIMETRIA. FURTO QUALIFICADO E PRIVILÉGIO. POSSIBILIDADE (... ) Princípio da insignificância não aplicável no 11 PENAL PROCESSUAL PENAL RECURSO ESPECIAL PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÃNCIA NÃO APLICABILIDADE (... ). (BRASIL
caso concreto( ... ) Res furlivae de valor significativo, RS 37,00, correspondente a pouco mais de 20% do salário mínímo da época dos Superior Tribunal de Justiça. REsp i 094906. Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Ministro: Arnaldo Esteves de Lima. Julgado
fatos" [... ] (Apelação Crime nJ 70024760969, 7° Câmara Criminal do TJRS, Rei Sylvio Baptista Neto j_ 17.7.2008) em 2.6.2009. Disponível em: <1·1w1•1.stj.jus.br>. Acesso em· 8 dez. 2011).
PENAL. PROCESSO PENAL DESCAMINHO DENÚNCIA REJEITADA APÓS RECEBIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÁNCIA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. RECURSO EM
INSIGNIFICÁNCIA. ELEMENTO OBJETIVO ATENDIDO. ANTECEDENTES NA CONDUTA APLICABILIDADE. {... ] 3. De acordo com a SENTIDO ESTRITO MINISTERIAL PROVIDO. APLICABILIDADE DO VALOR FIXADO PELO ART. 20 DA LEI Nº 10.522/2002 COMO
orienlação adotada pela 4, Seção desta Corte, aplica-se o princípio da insianiticãncia quando o valor do tributo iludido não exceder a PARÁMETRO. DÉBITO FISCAL INFERIOR. IRRELEVÁNCIA DA CONDUTA NA ESFERA PENAL CONFIGURADA 1. Após Oíulgamenlo
RS 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). (Recurso em Sentido Estrito n. 2005.7118 003480-9/RS, 81 Turma do TRF da 4J Região, do REsp 1112.7 40/fü, a Terceira Seção desta Corte passou a admitir o art. 20, caput, da Lei nQ 10.522/2002, que lixa o valor de R$
Rei. Cláudia Cnsl1na Cristofani j 9.1.200[1, maioria, DE 16.1.200[1). 10.000,00 (dez mil reais) para o arquivamento de execução fiscal sem baixa na distribuição, como parãmetro para o reconhecimento
S CRIME CONTRA D MEIO AMBIENTE - DENÚNCIA OFERTADA CONTRA PESSOA JURÍDICA - ENTE QUE NÃO PODE SER do Principio da insigníficãncia no crime de descaminho. 2. ln casu, verifica-se que o valor do tributo sonegado é de R$ 4.239.36 (... )
RESPONSABILIZADO PELA PRÁTICA DE CRIME - AUSÊNCIA DE VONTADE PRÓPRIA - RECURSO PROVIDO. (.) (RCR n. 03.003801-9, (BRASIL HC 101505 Relator: Ministro Jorge Mussi Quinta Turma do STJ. Julgado em 28.9.2009. Disponível em. <ww1·1.stj.jus.br>.
de Curítibanos, Rei. Maurilio Moreira Leite, I 1.4.2003). Acesso em: 8 dez. 2011 ).

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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL Lenio Luiz Streck

de baixa descoberta da corrupção) foi maior que a soma dos valores furtados, À Guisa de conclusão: como conter o gozo da sociedade sem ser
apropriados e roubados no mesmo período." tirânico
Aliás, constata-se, a partir do censo penitenciário realizado em junho de Se os Códigos de 1830, 1890 e 1940 continham essa característica de proteção
2009 pelo Departamento Penitenciário Nacional," que os crimes mais apenados aos bens jurídicos de cariz (prato) liberal-individualista, parece razoável
em terrae brasílis são aqueles cometidos pelas classes menos abastadas, tais concluir que, a partir de 1988, deveria ter havido uma "virada" na legislação
como roubo, tráfico, furto, homicídio e porte/posse ilegal de arma. Não há penal, na linha do que indica o constitucionalismo compromissório e social.
qualquer menção - na verdade devem se enquadrar na categoria "outros
Entretanto, não foi isso o que ocorreu. Dito de outro modo, continuamos
crimes" (portanto, sem relevância estatística) - a crimes praticados contra a
mergulhados em uma crise que envolve a concepção de bem jurídico em pleno
ordem financeira e tributária. No mesmo sentido, pesquisa publicada no jornal
Estado Democrático de Direito. Urge, pois, um redimensionamento na hierarquia
Folha de S.Paulo (2008, p. Cl), revela que, de uma população prisional de 158.447
dos bens jurídicos como forma de adaptá-los à sua dignidade constitucional. 16
presos existentes no estado de São Paulo, apenas 1. 7 47 possuem ensino superior
Afinal, como bem lembra Figueiredo Dias, "os bens jurídicos protegidos pelo direito
ou pós-graduação. Realidade semelhante se verifica no Rio Grande do Sul onde
penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa
nenhum dos cerca de 30 mil presos assim se encontra em virtude da prát,ica de
ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais", hipótese a lhes
crime de corrupção passiva, tortura ou por aqueles estabelecidos na lei Maria
garantir dignidade jurídico-penal (FIGUEIREDO DIAS, 2011, p. 47-48).
da Penha. Em contrapartida, 9.587 estão detidos por trafico. 14
Na mesma linha, Luiz Luisi lembra que as Constituições surgidas no segundo pós-
Parcela considerável das decisões acima apontadas - que servem apenas
-guerra albergam uma série de preceitos destinados a alargar a incidência do direito
de amostragem - apenas reforçam o caráter discriminatório e rotulador do direito
criminal no sentido de fazê-lo um instrumento de proteção de direitos coletivos,
penal." Assim, se, de um lado, existe a legislação que inadequadamente deixa de
cuja tutela se impõe para que haja uma justiça mais autêntica, ou seja, para que se
hierarquizar os bens jurídicos a serem protegidos pelo direito penal, ele outro, há
atendam as exigências de justiça material (LUISI, 2003, p. 57). Dito de outro modo,
o Judiciário e o Ministério Público que reproduzem essa crise paradigmática. E
parece não restar dúvida que, na atualidade- e a assertiva é de Puig (1998, p. 135) 17 - o
é nesse sentido que o uso contínuo e aprofundado ela jurisdição constitucional
direito penal vai abrindo espaço no sentido de que deve ir estendendo sua proteção
poderia, de um lado, proceder a uma verdadeira filtragem hermenêutico-
a interesses menos individuais, porém de grande importância para amplos setores da
-constitucional dos tipos penais incongruentes e desproporcionais e, de outro,
população, como o meio ambiente, a economia social, as condições de alimentação, o direito
na impossibilidade do uso da jurisdição constitucional em face dos seus limites
ao trabalho em determinadas condições de segurança social e material - enfim, o que se
denunciar (veementemente) as anomalias, fazendo uma Appelentscheidun;
(apelo ao legislador). vem denominando de interesses difusos.
Estando isso claro, vale registrar a existência de uma grave controvérsia
Do contrário, devemos admitir: Faoro ainda tem razão.
acerca da extensão e das funções desse conceito (bem jurídico) a partir do
dissenso surgido entre a postura dos penalistas liberais, que defendem uma
12 Passados mais de dez anos da realização da pesquisa realizada por Castilho, dados extraídos do lnfopen (Disponível em: compreensão demasiadamente restrita do conceito, e aqueles que defendem o
< hllp I/porlal .mj. oov. br/data/Paoes/MJ D5 74E9CEITEMIDC37B2AE94C6B4DD68B 162 4D284D 75D9CPTBRIE.htm > . Acesso em:
25 maio 2012.) revelam de forma cristalina a manutenção da clientela hospedada nas penitenciárias nacionais. Num universo de
reconhecimento jurídico-penal de bens supraindividuais, cuja posição quanto
471.2~4 internos, 216.870 m1o completaram o ensino fundamental. 52.970 não concluiram o ensino médio e 26.343 sequer foram à funcionalidade dessa instituição jurídica assenta-se em uma concepção
alfabe!Izados 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública;
organizativa, interventiva e vinculada à realidade social. Essa contenda não foi
~ 2_5._7 4~ por lrálIco de entorpecentes; 156 o fazem por crimes ambientais. Não constam registros de internos condenados por fraude
a llc1taçao, gestão fraudulenta {ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
·16 Nesse tom, anota Maria da Conceição Ferreira da Cunha que "seria inconstitucional criar uma ordem de bens jurídico-penais de
13 Dispon ivel em· < htlp://1wn1 .m í. gov br/depen/dala/Pages/MJD57 4E9CEITEMI DC37B2AE94C6840068B 1624D284D7 5D9CPTBR forma a inverter a ordem de valores constitucional" {CUNHA, í 995, p. 328)
NN.htm>. Acesso em· 11 fev. 2013.
17 No mesmo sentido, veja-se Navarrete (2000, p. 131 ), para quem "la sociedad o comunidad, global y genericamente considerada,
·11\ Conforme artigo assmado por Marcos RolIm no jornal Zero Hora, 22 de abril de 2012, p 14 aparecen reconocidas como sujeto pasivo de bienes jurídicos que son afectados por delitos que atentan a la propia comunidad social,
15 Novamente vem a discussão: não devemos nos preocupar, primordialmente, com a questão de que "devemos ou não estender a en cuanto titular de intereses colectivos. Así acontece, v.g., en tipos de delitos que afectan a bienes colectivos, como el orden público,
pena_de prisão- efeliva-?os crimes do colarinho branco". Devemos nos debruçar, sim, sobre o modo como as instituições olham para la seguridad ec trafico rodado, la fé pública o la salud pública, frente a comportamientos típicos ya de lesión, ya de peligro o riesgo
os cnmes do "andar de baixo" e do "andar de cima". Epensar nisso à luz da coerência e da integridade da tegislaçáo e da jurisdição. general o concreto".

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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL Lenio Luiz Streck

ainda suficientemente percebida e apreendida pelo conceito dogmático ele bem penas, razão pela qual o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizações
jurídico, e este conflito acarreta uma confusão quanto aos bens que devem prevalecer não pode ser um ato discricionário. Tampouco o direito penal pode ficar à mercê
numa escala hierárquica, para fins de serem relevantes penalmente e, portanto, ele leis de conveniência, elaboradas sem qualquer prognose." Não há liberdade
merecedores de tutela dessa natureza (STRECK; COPETTI, 2003, p. 255 et seq.). Ou absoluta de conformação legislativa em matéria penal, mormente quando a lei
seja, quais são os bens jurídicos suscetíveis de receber proteção penal? descriminaliza condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse
A transferência desta - ainda não resolvida - controvérsia para as práticas sentido, se, de um lado, há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há
legislativas e judiciais faz com que surjam leis (v.g., Leis n"' 10.259/2001 e a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot)."
10.741/2003) em que bens jurídicos que claramente traduzem interesses Não pretendo discutir ou pôr em xeque o papel da concepção liberal-
de grandes camadas sociais são rebaixados axiologicamente e equiparados individualista-iluminista do direito penal. Isso, aliás, é conquista moderno-
a outros bens de relevância individual, privilegiando-se os bens jurídicos -contemporânea. O que se questiona é a resistência de determinados setores desse
interindividuais, questão sutilmente presente, por exemplo, na legislação que campo do conhecimento em estender o braço do Direito Penal em direção aos bens
trata dos crimes de sonegação fiscal no Brasil, como é possível perceber até supraindividuais. Essa é uma questão dramática: se não se admite a extensão do
mesmo na Lei n" 10.684/2003, sancionada no governo Luiz Inácio Lula da Silva, braço do direito penal aos delitos de cariz supraindividual (o que implica rediscutir o
mas que repetia legislação anterior. Se é correto ou não tratar a sonegação de tratamento dado, v.g., à sonegação de tributos,'° para falar apenas nesse delito), então,
tributos como crime, isso é uma questão que dispensa uma reposta imediata; por uma questão de respeito à igualdade, também devemos estar prontos e dispostos
importante é saber as razões pelas quais admitimos um direito penal que trata o furto a não mais tratar os delitos inte,individuais (cometidos sem violência) contra o patrimônio
qualificado de forma mais grave que a sonegação de tributos ou lavagem de dinheiro! como uma questão de direito penal. Não esqueçamos: o direito do Estado Democrático
O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento de Direito deve respeitar a coerência e a integridade. Leis de conveniência e
do debate entre penalistas ele apego exacerbado ao liberalismo (ou, se preferir, discriminatórias são inconstitucionais.
com apego ao conceito liberal-individualista de bem jurídico) e os que buscam
·1 GUm bom exemplo de lei de conveniência é aalteração produzida na legislação de tóxico, por intermédio da Lei n1 11.343/2006. Enquanto,
a guarida penal de bens supraindividuais, é que estes buscam introjetar na de um lado, aumentou-se a pena mínima para traficantes, ao mesmo tempo estabeleceu-se a possíbilidade de redução da pena em até 2/3
concepção de bem jurídico-penal a ideia de que uma série de bens de feição coletiva para acusados primários. Isto é, se o legislador pretendia aumen1ar apena mínima, é porque deveria ter algum motivo; mas, paradoxalmente,
concede a possibilidade de diminuiçáo de pena praticamente inédita no Código Perial. apenas concedida ao furto privilegiado.
necessita de proteção penal, enquanto aqueles resistem a tanto, colocando-
·1 !) Isso significa dizer que, quando o legislador náo realiza essa proteçáo via Direito Penal, é cabível a utilizaçáo da cláusula "proibiçáo
-se contra a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da de proteçáo deficiente" (Untermassverbol). Tais questões ficam bem claras a partir da discussáo da descriminação do aborto na
comunidade, sob o argumento de que tal concepção implicaria uma "indesejada Alemanha, problemática igualmente debatida no plano da justiça constitucional na Espanha e em Portugal. No Brasil, o Supremo
Tribunal Federal, por intermédio de voto do miriistro Gilmar Mendes (acompanhado pelo ministro Ayres Brito), aplicou pela primeira
ampliação das barreiras do direito penal". De certo modo, continuam a pensar o
vez a tese no julgamento do Recurso Extraordinário n1 418.376: a tese voltou a ser aplicada na AD ln 351 O.
direito a partir da ideia segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre 20 Observe-se, por exemplo, que, na medida em que o legislador uti!iza o Direito Penal de torma diferenciada para os crimes de
Estado e sociedade ou entre Estado e indivíduo. Tais considerações, à evidência, sonegação de tribulos, o que pode ser visto pelo arL 9 da Lei n~ 10.684. poder-se-ia propor - como, aliás, venho fazendo de há
muílo (por todos, veja-se acórdãos 70.018.891.119, 70.016.803.967 e 297.019.937, todos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
acarretam compromissos e inexoráveis consequências no campo da formulação
Grande do Sul), na medida em que a fórmula adotada pela Lei n~ 10.826/2003 (pagamento do valor sonegado - portanto, de forma
e da aplicação das leis. Para tanto, parto ela premissa - e não há, ou não deveria indireta. subtraída/apropriada/obtida ilicitamente) se mostre eficaz para a proteção do bem jurídico, a extensão dessa fórmula aos
haver nenhuma novidade em dizer isto - de que a Constituição brasileira de demais crimes contra o palrim{mio, desde que cometidos sem violência ou grave ameaça... ! Ou seja, poder-se-ia também permitir
que o ladrão e o estelionatário devolvessem ares turtivae - até em suaves prestações (espécie de REFIS da patuleia) - extinguirido-
1988 apresenta uma diretiva para o Estado (e suas políticas, inclusive criminais). se, ipso facto, a punibilidade, nos mesmos termos dos crimes fiscais! (Destaque-se que somente agora a comissão de juristas
Logo, em assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as normas da responsável pela redação do anteprojeto para o novo Código Penal cogita a extinção da punibilídade para os casos de furto em
que há o ressarcimento do valor subtraído. Informação disponível em <http://www12.senado.gov.br/noticías/materias/2012/04/20/
Constituição têm validade, o que ocorre nas que estabelecem a busca da igualdade,
comissao-de-juris1as-debate-reducao-de-pena-para-furto-simples>. Acesso em· 23 abril 2012.) Ou isso ou teremos que assumir
a redução da pobreza, a proteção da dignidade, etc. Tais normas comandam a que, efetivamente, praticamos - e permito-me insistir nesta tecla - um direito penal "de classe" ... ! No fundo, a previsáo do art. 9
atividade do legislador (inclusive e logicamente, a do legislador penal). da Lei n1 10.684/2003 nada mais faz do que estabelecer a possíbilidade de converter a conduta criminosa em pecúnia. favor que é
negado a outras condu/as. Nesse ponto, calha registrar a objeção feita por Ferrajoli - corifeu do garan!ismo penal - a "monetarizaçáo"
Esse comando traz implicitamente - por exemplo, no campo do direito penal do Direito Penal: "ningún bien considerado fundamental hasta el pun!o de justificar la tutela penal puede ser monetarizado, de modo
que la previsión mísma de delitos sancionados con penas pecuniarias evidencia o un defecto de punic1ón {s1 el bien protegido es
- a necessária hierarquização que deve ser feita na distribuição dos crimes e das
considerado fundamental) o, más frecuentemente, un exceso de prohibicíón (si tal bien no es fundamental)" (FERRAJOLI, 1997, p_ 477)

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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL Lenio Luiz Streck

Ora, nenhum campo elo direito está imune a essa vinculação constitucional. substituíveis por restritivas de direito ou não, e as condutas que podem ficar no
Consequentemente, na medida em que a Constituição figura como o alfa e o ômega âmbito contravencional ou no terreno da transação penal" ,23
elo sistema jurídico-social, ocorre uma sensível alteração no campo de conformação Ora, é evidente que se, por um lado, um crime não é um crime porque o
legislativa. Nesse contexto, a teoria do bem jurídico, que sustenta a ideia de tipo penal ontologicamente" refletiria a essência da coisa designada (concepção
tipos penais no Direito Penal, igualmente passa a depender da materialidade da realista das palavras de Platão, a partir da qual, por exemplo, na palavra estupro
Constituição. Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estaria a "essência" da "estuprez"), por outro, também parece evidente que um
estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e delito não tem sua concepção de ofensividade alterada simplesmente porque recebeu
princípios que encerram a noção de Estado Democrático e Social de Direito." nova denominação (no caso, veja-se o exemplo do epíteto de menor potencial
As baterias do direito penal do Estado Democrático ele Direito elevem ofensivo atribuído pela Lei n" 10.259/2001). Para não ir muito longe, até mesmo
ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem a concretização a semiologia de Saussure poderia dar uma resposta ao problema. Afinal, como
elos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões. Nesse ponto, aliás, dizia o mestre genebrino, se queres saber o significado de um significante, pergunta
entendo que é neste espaço que reside até mesmo uma obrigação implícita de por aí! Para ficar no exemplo dos crimes de "menor potencial ofensivo":
criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar constantes no perguntemos por aí se o cidadão considera que a exposição a perigo da vida
texto constitucional. Nesse sentido, veja-se o art. 5, XLIII, CF, que determina de um idoso ou a sua privação de alimentos é uma infração de natureza, quiçá,
a criminalização das condutas que consubstanciem prática de tortura, tráfico levíssima, a ponto de poderem ser transacionadas por cestas básicas.
ilícito ele entorpecentes e drogas afins e terrorismo. 22 Em tempo de Constituição compromissória, parece razoável afirmar que o
Nesse sentido, considero correta a assertiva de Claus Roxin, para quem o legislador não pode se guiar por pragmatismos inconsequentes que destroem
legislador deve recorrer subsidiariamente à contravenção e à multa administrativa, a diferença. Esse pragmatismo vira ceticismo, porque, na medida em que cada ato
em vez da incriminação e à pena, somente quando a perturbação social pode ser humano tem um conteúdo fático, torna-se absolutamente problemático o processamento
anulada com a sanção menos onerosa, reforçando sua indiscutível característica da validade desse ato. Com efeito, se elimino o elemento diferencial que identifica
de ultima ratio. É evidente que esse limite é difícil ele traçar. Entretanto, assevera, cada ato (valorado como delito), caio no cinismo, uma vez que "tanto faz qual
no campo nuclear do direito penal as exigências de proteção subsidiária de bens jurídicos o delito que cometo". Isso porque, muito embora o direito penal deva ser
requerem necessariamente um castigo penal em caso de delitos de um certo peso! utilizado apenas como ultima ratio, parece evidente que existem situações e
Em contrapartida, diz Roxin (1997), ainda que em princípio se incluam hipóteses em que o bem jurídico não estaria suficientemente protegido, mormente
condutas como o furto e a fraude neste "âmbito nuclear" de exigência de em uma comparação com outras formas de proteção." Deveria causar espanto à
punição por parte do Direito Penal, nada se oporia a que os casos de bagatelas
23 Nesse sentido, veja-se a lição de Maurach eZipf, que, com fundamento da jurisprudência do Bundesverfassungsgerícht, assinalam
neste campo (p. ex., furto de gêneros comestíveis) fossem tratadas como que el legislador debe respetar los limites establecídos por e! derecho constitucional en sus decisiones relativas a penalizar o amenazar
contravenções. Observe-se, desse modo, que a discussão dos limites entre con multas a cíertos tipos de conduc/a, pois que la idea de justicia, inseria en e! principio de Estado de Derecho, exige que e/ tipo y
condutas que devem ser consideradas como crimes e as que devem ser epitetadas la consecuenciajurídica (pena o multa) estén "adecuadamen/e armonízados en/re si" (BVerfGE 27, 18, 29). Nesse mesmo contexto,
na definição entre uma e/ou outra sanção - continuam os autores - resta claro que sería inadmisible desde e! punia de vista dei
como contravenção, primeiramente é de tipo quantitativo. Entretanto, quando derecho cons!i/ucional, que ciertos ilfcitos indudabtemente pertenecientes ai núcleo dei derecho penal tueren castigados con mui/a
se ultrapassa o terreno das condutas insignificantes (sem relevância penal) - y, a la inversa, que contravenciones propias dei ilícito administrativo, lo tueren con pena criminal. Em complementação, sustentam,
em referência à dicção do Tribunal Constitucional alemão, que aun cuando no se pueda trazar una !fnea divisaria exac/a para et
assim entendidas na tradição jurídica - a discussão necessariamente assumirá foros mencionado núcleo, "basándose en la escala de valores conlenida en la tey fundamental", es posibfe "indagar con certeza suficien/e"
qualitativos. E é nesse ponto que a Constituição deve ser o topos conformador cuál ilícito per!enece inequivocamente a este núcleo y cuál no (BVerfGE, fac. cil.) (MAURACH; ZIPF, 1994, p. 23).
dos critérios de aferição do conceito de "delitos puníveis com pena de prisão, 24 Quem utiliza a expressão "ontologicamente" deve estar se referindo à evidência, à ontologia clássica, com o que voltaríamos no
tempo no mínimo um milhar de anos.
21 Não há. pois, qualquer blinda •em que "proteja" a norma penal do controle de const1tucionalidade. Anorma penal não está blindada 25 Ressalte-se, aqui, que hã autores que ctiegam a colocar em dúvida essa "alternativa" entre Direito Penal e outras medidas aptas
à sindicabilidade constitucional. A vigência de um texto jurídico penal não implica automaticamente a sua validade, problemática para proteção do bem jurídico, pela simples razão de que, relativamente aos bens constitucionais "significativos", a sanção penal
que coloca na mesma trincheira paradoxalmente. em determinadas situações. penalistas de orientação dogmática e acentuadamente deve ser adotada mesmo que se pudessem conseguir os interesses da disciplina recorrendo a outras sanções; em caso contrário
positivísta-normativista e aqueles defensores de posturas mais clássico-liberais acentuar-se-ia o papel pragmático do Direito Penal e instrumental da pena, com prejuízo de sua função estigmatizante e da reafirmação
22 Nesse sentido, cf. a interessante abordagem feita por Cunha em seu A conslituíção do crime (1998, em particular as páginas 89 e 90). do valor lufe/ado (DDLCINI; MARINUCCI, 1994)

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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL
Lenio Luiz Streck

comunidade jurídica o fato de o legislador não abrir mão elo Direito Penal para igualdade no direito, em especial no Direito Penal, que lida com conflitos
combater delitos menos relevantes - no que diz respeito a sua <lanosidade social resultantes de resquícios de um país de modernidade tardia que não passou
- como o furto e apropriação indébita, e, nos casos de crimes mais graves como pela etapa do Welfare State. E ainda não se encontrou uma explicação maior para
os de cariz supraindiviclual, agir de modo absolutamente contrário. E parece a criminalidade do que as disparidades sociais. Talvez por isso, a criminalidade
que o Projeto do novo Código Penal vai nessa mesma linha. Como é difícil nos de países como a Suécia não seja maior do que a criminalidade na Somália,
desvencilharmos de nossa tradição inautêntica ... ! como já bem explicava Alessandro Baratta: de uma ponta a outra, as distâncias
Por fim, qual é o papel elo Direito Penal no Estado Democrático de Direito? O sociais são muito pequenas! O grande desafio talvez seja - para utilizar uma
direito penal não trata de "coisas boas". Isso é evidente. Nem é instrumento de frase do psicanalista Alfredo Jerusalinsky - "como conter o gozo da sociedade sem
transformação da sociedade ou do indivíduo. Aconcepção de um direito garantidor ser tirânico". É nesse fio da navalha que caminha o jurista/penalista do Estado
é uma conquista da humanidade. Mas em tempos de novos paradigmas, ficamos Democrático de Direito. É verdade que, quando a Constituição determina que
no entremeio de uma aporia: os penalistas (e não somente eles) são praticamente um dos seus objetivos da República é erradicar a pobreza, não significa que
uníssonos (com exceção dos discursos law and arder) em apontar o direito penal isso será alcançado utilizando o Direito Penal; mas isso também não quer dizer
como discriminatório, seletivo, estigmatizador e "protetor dos interesses das camadas que a pobreza continue a ser criminalizada como se estivéssemos no século XIX ou nos
dominantes". Aliás,já não há qualquer novidade em dizer isso. anos 1940. Certamente, alguma coisa mudou com o advento do novo paradigma
constitucional! Espero que o novo Código Penal leve em conta todas essas
Talvez tenhamos que, enfim, enfrentar de vez essa criminalização da
questões aqui discutidas. Espero que, passados alguns anos de vigência do novo
pobreza e passar a falar da "pobreza da criminalização" dos setores que, de
Código Penal, não precisemos dar (ainda) razão ao camponês salvadorenho
fato, colocam em xeque os bens jurídicos mais relevantes. E, para tanto, não
e dizer que "todavia la ley es como la serpiente; solo pica ai descalzos". A palavra
é preciso pensar em estender as graves penas aos crimes do "andar de cima 11

todavia (que, em espanhol, quer dizer "ainda", foi por mim colocada para dar
A aplicação da Constituição no plano penal por certo não exige que se use o
um efeito temporal à discussão ... !
direito penal como uma vingança dos setores dominados da sociedade contra a
histórica criminalização dos pobres." Parece evidente que não. Mas, com certeza, Como bem diz o poeta mexicano Eraclio Zepeda, quando as águas da enchente
a Constituição não abre mão do direito penal. cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra. Nós
é que não sabíamos!
Nesse curto período de vigência da nova Constituição e nos limites do
permitido pelos instrumentos postos à disposição pela jurisdição constitucional,
penso que já deveríamos ter feito muito mais. Os juristas não são legisladores.
Mas a doutrina e a jurisprudência podem e devem ter um papel muito mais
relevante nesse processo de institucionalizar a integridade, a coerência e a

2G Niio é novidade dizer que os presídios são "máqumas de triturar seres humanos", como bem aponta Marcos Rolim: manter um
preso no Brasil não sai por menos de RS 1,500 mensais e construir uma nova vaga custa em torno de RS 40 mil. Chegamos a meio
milhão de presos: o déficit estimado é superior a 250 mil e há 500 mil mandados por cumprir (cf. Mudar o paradigma, in Zero Hora,
12 out. 2008, P. 18). Aquestao levar1tada diz respeito ao futuro de nossa política criminal. Conlinuar prendendo como agora fará com
que continuemos a colocar na cadeia percentual enorme de pessoas que cometem crimes que não colocam em xeque (em risco)
bens juridicos relevantes. Observem-se. a propósito, dados do censo penitenciário realizado. em junho de 2008, pelo Departamento
Penítenciár10 Nacional (órgão do Mmistürio da Justiça) no sentido de que o sistema prisional do estado de São Paulo opera atualmente
com uma população 50% acima de sua capacidade - 96.540 vagas para 145 096 presos (cf Prisóes de São Paulo têm 50% mais
deter1tos do que vagas. in Folha de S.Paulo. 13 out. 2008, p. C1). Nesse mesmo sentido, cumpre mencionar o levantamento feito
recentemente pela Bri'gada Militar do estido do Rio Grande do Sul (e publicado no jornal Zero f-lora do dia 5 ou!. 2008) que revela a
absoluta superlotação de todos os seis pavilhões do Presídio Central de Porto Aleore. OPavilhão C. por exemplo. que conta com 254
vagas. alberga 1.037 presos, o que configura uma superlotação equivalente a 308.3% Porém, o que parece ainda mais preocupante
é que dos 4 705 detentos que compõem a população do cárcere, há uma maior quantidade de presos provisórios (2.606) do que de
presos conder1ados (2 099)

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COMENTÁRIOS AO PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL

Referências bibliográficas
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CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e crime: uma perspectiva da
criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995.
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DOLCINI, Emílio; MARINUCCI, Giorgio. "Constituição e escolha dos bens jurídicos",
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nQ_ 2, p. 151-198, 1994. ASPECTOS RELEVANTES 00 PROJETO OE CÓDIGO PENAL
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11. ed.
São Paulo: Globo, 1995. Sheila Bierrenbach1
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del galantismo penal. 2. ed. Madrid: Trotta, Juliana Bierrenbach'
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FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editores,
2001.
FOLHA DE S.Paulo. "Prisões de São Paulo têm 50% mais detentos do que vagas", Folha de O chamado "Projeto Sarney", de reforma do Código Penal brasileiro foi
S.Paulo, p. Cl., 13 out. 2008. elaborado com velocidade incompatível àquela exigida para a confecção de
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editores, 2003. semelhante trabalho. Por essa razão e, também, por ter como foco principal
MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal: parte general 1. Buenos Aires: Astrea, a satisfação das expectativas da opinião pública, acabou por acolher normas
1994. desprovidas de técnica, confundindo conceitos e institutos ao longo ·de sua
PUIG, Santiago Mir. Derecho penal: parte general. 5. ed. Barcelona: Reppertor, 1998. confusa redação. Em alguns casos, por outro lado, andou bem o Projeto.
NA VARRETE, Miguel Polaino. Derecho penal: parte general (Teoría jurídica dei delito). O propósito do presente artigo é apontar alguns aspectos relevantes do
Barcelona: Editora Bosch, 2000. t.III, v.l. referido Código, bem como auxiliar na tarefa de interpretação de determinados
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. t.I. dispositivos.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
_ _; FELDENS, Luciano. Crime e constituição: a legitimidade da função investigatória do
Ministério Público. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003. Definição legal de "fato criminoso"
__; Copetti, André. "O direito penal e os influxos legislativos pós-Constituição de O Projeto traz de volta a definição legal de crime, a que chama de fato
1988: um modelo normativo e eclético consolidado ou em fase de transição?", Anuário
criminoso, inexistente no Código em vigor. 3 Nesse sentido:
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
i Advogada, Juíza da Justiça Militar Federal aposentada, Doutora e Mestre em Direito Perial pela Pontifícia Uriiversidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), Pós-Graduada em Direito Penal - Parte Geral pela Uriiversidade de Salamanca (Usai) - Espanha, Especialista em
Direito Penal pela Universidade de Paris- Sorbonne, Especialista em Direilo Penal pelo Instituto de Estudos de Ibero America y Portugal
- Universidade de Salamanca- Espariha, Professora da Emerj. Professora da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal.
2 Professora na Universidade Candido Mendes (Ucam), Mestre em Direito Penal pela USP. Pós-Graduada em Direitos Fundamentais
pela Universidade de Coimbra (UC).
3 OCódigo Criminal do Império de 1830 definia crime, em seu artigo 2J, da seguinte forma: Julgar-se-fia crime, ou delicio: 1~ Toda
a acção, ou omissão vofuntaría contraria ás Leis penaes. OCódigo Penal de 1890, por sua vez, definia, também, em seu artigo 2°: A
violação da lei penal consiste em acção ou omissão; constilue crime ou contravenção.

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