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Organizador:

ROBÉRIO NUNES DOS ANJOS FILHO

Autores:
ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS )OSÉ CARLOS FRANCISCO

ANDRÉ RAMOS TAVARES LEONARDO MARTINS


ANTONIO MAUÉS
LUCAS LAURENTIIS
BRENO BAÍA MAGALHÃES
LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES
DIMITRI DIMOULIS
ROBÉRIO NUNES DOS ANJOS FILHO
ELIZABETH ALVES FERNANDES
SORAYA LUNARDI
EMILIO PELUSO NEDER MEYER

GUILHERME FORMA KLAFUE WALBER DE MOURA AGRA

INGO WOLFGANG SARLET WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG

STF E DIREITOS
FU DAME TAIS
DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS

2013
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www.oditoroju:;podivm.com.br
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Instituto
Brasileiro de
Estudos Constitvcionais
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Emilio Peluso Neder Meyer

TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o Direito Interno e o Direito Internacional.


Trad. Amílcar de Castro. Belo Horizonte: 1964. 8.
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19-34. Disponível em <www.biblíojurídíca.orgjlíbrosj6/2506/4.pdf>. Acesso em 12
Guilherme Forma Klafke 1
jul. 2012.
Lucas Catib de Laurentiis'

Sumário: 1. Introdução. 2. Explorando a ADI 4.274/DF: as correntes de julgamento. 2.1. O cabimento da


ADI 4.274/DF e da técnica da interpretação conforme a Constituição. 2.2. Abrangência do dispositivo impug-
nado: as interpretações do art. 33, § 22. 2.3. Abrangência dos dispositivos paramétricas: direito à liberdade
de reunião e direito à liberdade de expressão. 2.4. A interpretação dada ao art. 33, § 21l, da Lei de Drogas. 3. A
utilização da interpretação conforme a Constituição. 3.1. A utilização do conceito de "interpretação conforme
a Constituição". 3.2. Cabimento da técnica. 3.3. A atividade de controle de constitucionalidade na ADI 4274/
DF. 3.4. Consequências do julgamento. 4. Conclusões. 5. Referências

1. INTRODUÇÃO
Em 23 de novembro de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou proceden-
te a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.274/DF. O resultado foi a exclusão
de sentidos do art. 33, § 2º, da Lei Federal nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) que
ensejassem "a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descri-
minalização ou legalização do uso de drogas ou de qualquer substância que leve
o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas faculda-
des psico-físicas". 3
Essa decisão foi uma das respostas da Suprema Corte brasileira à polêmica
suscitada em diversos locais do país, mas principalmente em São Paulo, pelas
chamadas "marchas da maconha", manifestações populares em favor da libera-
lização do porte e consumo de tal substância, reprimidas pelas polícias locais

1 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo e Pesquisador da Sociedade


Brasileira de Direito Público, em aí/ gfklafke@yahoo.com.br
2 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. Doutorando em Direito Constitucional
pela Universidade de São Paulo e pela Albert-Ludwig Universitãt Freiburg. Professor e orientador no
cursos de pós-graduação lato sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, orientador e
palestrante da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público, pesquisador na Fundação
Escola de Sociologia de São Paulo, advogado, emaí/lucas.laurentiis@gmail.com
3 Supremo Tribunal Federal, Pleno, ADI 4.274/DF, Rei. Min. Ayres Britto, j. 23.11.2011.

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com base em ordens de juízes e desembargadores.' Recentemente, mais uma da ADPF 187 ainda não havia sido finalizado e publicado.' Em segundo lugar;
dessas marchas foi realizada na Avenida Paulista, em São Paulo, mobilizando por se tratar de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental na
cerca de mil pessoas.' Fora isso, manifestações populares tomaram o Brasil nas qual um dispositivo anterior à Constituição de 1988 foi avaliado, outras discus-
últimas semanas, do que resultou uma nova discussão acerca dos limites explí- sões invariavelmente surgiriam que não apenas o uso da interpretação confor-
citos e implícitos dos direitos de reunião e liberdade de expressão.' me a Constituição.• Entretanto, como se observará no tópico seguinte, em vários
A atualidade e a importância do tema demandam reflexão e crítica. Este momentos os ministros remetem a argumentos e até mesmo utilizam partes de
artigo persegue esses objetivos sob um enfoque técnico e jurisprudencial. votos proferidos na ADPF 187/DF. Nesses casos, procuramos os votos integrais
Abordaremos a decisão da ADI 4.274/DF e analisaremos sua coerência interna, já disponibilizados por alguns ministros. 10
a regra concreta fixada no julgamento e, principalmente, a maneira como nela
foi utilizada a técnica da interpretação conforme a Constituição. Para tanto, a 2.EXPLORANDOAADI4.274/DF:ASCORRENTESDEJULGAMENTO
exposição será dividida em duas partes. Na primeira, apresentamos as posições
A ADl 4.274/DF foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República para im-
dos ministros sobre o cabimento da ação, a interpretação do dispositivo legal
pedir que juízes e tribunais de todo o país invocassem o art. 33, § 2º, da Lei de
e do conteúdo dos direitos fundamentais e a aplicação da técnica. Na segunda,
Drogas para coibir atos públicos em favor da legalização das drogas, sob o fun-
avaliamos os aspectos técnicos da utilização de uma decisão de interpretação
damento de que essas manifestações faziam apologia ao uso de entorpecentes. 11
em conformidade com a Constituição nesse precedente. Nesse ponto, desenvol-
vemos uma avaliação crítica do acórdão sob o prisma do cabimento da técnica, Na inicial da ação, o autor requereu fosse utilizada a técnica da "interpreta-
do conceito empregado pelos ministros, dos limites observados e dos efeitos da ção conforme a Constituição" para excluir todas as interpretações que pudessem
"ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas ou de qual-
decisão.
quer substância entorpecente específica, inclusive através de manifesta-
Antes, porém, uma explicação se faz necessária. A ADPF 187 /DF foi julgada ções e eventos públicos".
em 15 de junho de 2011- cinco meses antes ao julgamento da ADI 4274- e
A peça inicial apresentada pela Procuradoria Geral da República, então re-
teve como resultado a decisão unânime que conferiu interpretação conforme do
presentada pela vice-procuradora geral, conteve três partes. Na primeira delas,
artigo 287 do Código Penal, com efeito vinculante,
a autora expôs os fatos que fundamentavam sua demanda. Sua preocupação foi
"de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da
demonstrar que o judiciário tem interpretado o dispositivo de forma incorreta.
defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente
específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos", Para tanto, citou diversos precedentes, muitos deles já indicados pela associa-
ção que encaminhara a representação que dera origem ao pedido." Na segunda,
tudo nos termos do voto do Relator.' A repercussão desse último julgamento
foi certamente superior à do que abordamos. Por que então não abordar a deci-
8 Segundo andamento processual atualizado em 28 de junho de 2013, constante no site do Supremo
são da ADPF 187 /DF ao invés da ADl aqui em questão? Nossa escolha teve dois Tribunal Federal, a última movimentação ocorreu em 04 de agosto de 2011, não tendo ocorrido ainda a
motivos. Em primeiro lugar, quando este artigo foi elaborado, o acórdão final elaboração e a publicação do acórdão.
9 Algumas dessas questões seriam: é sempre cabível o controle de constitucionalidade de normas
anteriores à Constituição pela via da ADPF? Ou essa possibilidade só existe na hipótese da ADPF
incidental? Disso surgiriam outras questões, essas relacionadas ao conceito adequado à interpretação
4 Cf. Fernando de Barros e Silva, Fumaça Democrática, Folha de São Paulo, Editorial, 23 de maio de 2011. conforme a Constituição aplicada em cada uma dessas hipóteses. Seria ela uma técnica de interpretação
5 Cf. Pedro Ivo Tomé, Policiais e Manifestantes entram em conflito, mas Marcha da Maconha ou controle de constitucionalidade? O debate a esse respeito envolve questões problemas relacionados
segue, Folha de São Paulo, 08 de junho de 2013, disponível em: <http:/fwww1.folha.uol.com.br/ ao instrumento da ADPF e, por isso, ultrapassa os objetivos desse artigo.
cotidiano/2013/06/1292131-manifestantes-ocupam-avenida-paulista-pela-legalizacao-da-maconha. 10 Na seção "Notícias STF': foram disponibilizados os votos na íntegra dos Ministros Celso de Mello, Relator,
shtml>, acesso em 29 de junho de 2013. Marco Aurélio (sem revisão) e Luiz Fux (sem revisão).
6 A esse respeito, encontramos inúmeros textos. Dentre eles, citamos o escrito por Néviton Guedes, em 11 O preceito incriminado r do art. 33, § 2 11, da Lei Federal nº 11.343/2006, tem a seguinte redação: "Induzir,
19 de julho de 2013, disponível no site Consultor jurídico: http:jjwww.conjur.com.br/2013-jun-19/ instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga". A pena que sanciona a conduta típica vai de 1 a 3
constituicao-poder-direito-protesto-nao-prevalece-seguranca. anos de prisão e multa de 100 a 300 salários mínimos.
7 o art. 287 do Código Penal brasileiro contém o tipo penal da apologia ao crime, nos seguintes termos: 12 A primeira surpresa surge quando observamos quem são os autores das demandas que servem
"Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis de fundamento para a ação. Em praticamente todas, foi o próprio Ministério Público que requereu
meses, ou multa". a proibição da marcha da maconha, como ocorreu nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas

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exortou a importância da liberdade de expressão, citando diversos autores. Na por opiniões" não se enquadrava nos conceitos de "instigar, induzir e auxiliar".
terceira parte, discutiu a possibilidade de restrições não expressas do direito de Por fim, no mérito, invocou essa diferenciação para sustentar a necessidade de
reunião e o uso da técnica escolhida. 13 que os casos fossem analisados individualmente, para que se verificasse o en-
A Advocacia-Geral da União (AGU) e o Senado Federal manifestaram-se pelo quadramento ou não no tipo penal, tendo em vista que o direito de liberdade de
não-conhecimento da ação e, no mérito, por sua improcedência, argumentando expressão não seria absoluto.
que o crime tipificado pelo artigo da Lei de Drogas não abrangia a discussão de Nove ministros reuniram-se em sessão para julgar o caso. O Ministro Dias
políticas públicas, como a legalização do consumo de determinadas substân- Toffoli não participou do julgamento por ter nele anteriormente atuado pela
cias. Em sua manifestação, o então Advogado-Geral, José Antônio Dias Toffoli, Advocacia-Geral da União. Além disso, um novo Ministro ainda não havia sido
sustentou que o julgamento seria ineficaz se não houvesse impugnação do art. nomeado para ocupar o posto da ex-Ministra Ellen Gracie. 15 Os julgadores deba-
287 do Código Penal, objeto da ADPF 187 /DF, que também era utilizado como teram quatro questões centrais: (a) cabimento da ação; (b) abrangência do art.
fundamento por alguns tribunais para proibir as manifestações. Além disso, ar- 33, § 2º da Lei de Drogas; (c) abrangência do direito à livre reunião e à liberdade
guiu preliminarmente que não havia o pressuposto lógico da pluralidade de in- de expressão; (d) definição da decisão a ser tomada.
terpretações para a "interpretação conforme a Constituição", visto que "a inter-
pretação possível do art. 33, § 2º, da Lei de Drogas não permite a tipificação do 2.1. O cabimento da ADI 4.2 7 4 /DF e da técnica da interpretação
fato que a autora pretende ver excluído do âmbito de incidência do dispositivo conforme a Constituição
-qual seja, a defesa pública da legalização das drogas". 14 Aduziu então que "ex- Ao iniciar seu voto, o Ministro Relator Ayres Britto afastou a questão preli-
minar de não-conhecimento da ação. A rejeição dos argumentos da Advocacia-
Gerais, por exemplo. É verdade que os promotores que propuseram essas ações pertenciam ao Geral da União foi fundamentada pelo seguinte raciocínio: (a) o art. 33, § 2º,
Ministério Público estadual. Mas - aqui está uma primeira observação - o Ministério Público é uma
instituição una e indivisível, como dispõe o art. 127, § 1'=' da Constituição. Fora isso, é a justamente costuma ser interpretado como tipificação de uma conduta de apologia ao uso
Procuradoria da República quem age nas demandas que chegam às instâncias superiores. Por que de drogas para um sujeito determinado; (b) entretanto, o dispositivo impug-
então antecipar as consequências e os juízos concretos acerca da interpretação e aplicação concreta
do dispositivo questionado ao invés de oferecer pareceres mais detalhados nos casos individuais? Só nado também era invocado pelo judiciário para impedir manifestações favorá-
há hipóteses, não explicações, para as respostas dessas questões. Uma delas, bastante plausível, está veis à legalização das drogas; (c) assim, havia pelo menos duas interpretações
na tentativa de concentrar o poder de decisão acerca da aplicação e interpretação concreta da lei em
instâncias superiores. Mas essa tendência tem graves efeitos sobre a divisão funcional de competências
construídas a partir do art. 33, § 2º; (d) a interpretação defendida em b seria
jurisdicionais e também sobre as características da técnica de controle (interpretação conforme a inconstitucional; (e) a técnica da interpretação conforme a Constituição seria
Constituição) aplicada (Cf. Silva, 2006; Laurentiis, 2012). uma espécie de "declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de
13 A peça tem 11 páginas. 5 delas são destinadas à descrição dos fatos. 3 são dedicadas à exortação texto" que excluiria significados inconstitucionais sem fulminar o texto legal;
importância da liberdade de expressão. Nessa passagem encontramos citações e traduções dos mais
diversos autores, como Ronald Dworldn, Thomas Emerson e Charles Taylor. Há uma página destinada (f) em conclusão, diante da existência de duas interpretações, sendo uma delas
ao pedido. Restam, portanto, somente duas páginas para a análise da questão central desse julgamento inconstitucionais, era cabível a utilização da técnica da "interpretação conforme
e para a fundamentação do uso da técnica escolhida. Com isso, a discussão fundamental a todo esse
precedente ocorre em somente dois parágrafos da peça inicial. Dessas constatações vêm nossas
a Constituição" para excluir tão-somente a exegese inconstitucional.16
reflexões: um Tribunal que recebe peças tão lacônicas e insuficientes tem alguma condição de discutir Os fundamentos a, b e c também foram adotados pelo Ministro Marco
0 tema proposto? Fora isso, devemos questionar se a jurisdição constitucional deve receber demandas
que estão mais preocupadas em citar passagens de autores que tem pouca ou nenhuma relação com a
Aurélio, que realçou o que chamou de "princípio da realidade" - no caso, a rea-
causa ou se essas ações devem ser prontamente repelidas. Há duas respostas possíveis a essas questões: lidade de que manifestações eram reprimidas com base no art. 287 do Código
ou 0 Tribunal supre as deficiências da peça e busca argumentos e fundamentos para julgar a procedência Penal (apologia ao crime)."
ou não do pedido, ou ele extingue a ação e indica, com isso, que demandas de controle concentrado
devem ser cuidadosamente fundamentadas. Nesse e em outros casos o Supremo trilhou o primeiro
caminho. O resultado dessa opção é previsível: os votos apresentados pelos Ministros apresentam parca
15 A cadeira vaga seria ocupada pela Ministra Rosa Weber, nomeada em 15 de dezembro de 2011 e
argumentação teórica e discutível resultado prático. Tudo isso seria evitado se o Supremo exigisse de
empossada no cargo quatro dias depois.
todos os demandantes que atuam na via principal de controle uma fundamentação mais elaborada de suas
demandas. Além do caráter pedagógico, uma carga argumentativa como essa resultaria na valorização 16 ADI 4274IDF. p, 5~6. Utilizamos a paginação oficial do inteiro teor do acórdão, constante da parte
das vias de controle concentrada e concreta e na facilitação do julgamento de causas complexas. superior do documento eletrônico.
14 Cf. Manifestação da Advocacia-Geral da União na ADI 4274IDF, pp. 6-7, disponível em: <http:/lredir.stf. 17 Nesse ponto, salientamos que alguns votos invocaram o objeto da ADPF 187IDF, já mencionada. No
jus.br; estfvisua 1iza do r pu bljsp I consulta rprocesso eletro ni co I Co nsu Ita rProcesso El etro nico. jsf?seq o b- entanto, até por coerência com o instrumento manejado, a interpretação e a aplicação do art. 287 do
jetoincidente=2691530>, acesso em: 28 de junho de 2013. CP não estavam em discussão. Isso porque o art. 287 do Código Penal é norma anterior à Constituição

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o Ministro Celso de Mello remontou sua argumentação ao voto proferido Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio explicitou que o art. 287 do Código
na ADPF 187 /DF. Naquela ação, como relat01; o Ministro discorreu longamente Penal'0 exige o dolo como elemento subjetivo, o que não se verifica nas mani-
sobre a possibilidade de interpretação conforme a Constituição ao art. 287, em festações pela legalização das drogas. Os demais ministros não apresentaram
termos semelhantes aos do art. 33, § 2º, da Lei de Drogas. Acolheu a argumen- possíveis interpretações para o dispositivo em questão, limitando-se a discutir
tação da Procuradoria-Geral da República, para a qual dois motivos afastavam o âmbito de proteção dos direitos à liberdade de reunião e à liberdade de ex-
a preliminar: primeiro, o fato de que a existência de um significado claro não pressão. Assume-se, portanto, que seguiram a orientação do Ministro Relator
exclui a existência de outros significados; segundo, o fato de que, pragmatica- quanto às interpretações em cotejo com a Constituição.
mente, tribunais desenvolveram interpretações conflitantes de tal dispositivo. 2.3. Abrangência dos dispositivos paramétricos: direito à
Apoiando-se principalmente no último argumento, o Ministro concluiu que: liberdade de reunião e direito à liberdade de expressão
"Em suma: não custa advertir que a interpretação conforme à Constituição
não pode resultar de mero arbítrio do Supremo Tribunal Federal, pois a Uma vez apresentado o entendimento da Corte sobre o cabimento da ação
utilização dessa técnica de decisão pressupõe, sempre, a existência de plu~ (possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade) e sobre as normas
ralidades interpretativas ensejadas pelo ato estatal, de tal modo que se im~ impugnadas (objeto de controle), passamos a analisar a compreensão apresen-
põe, como requisito imprescindível à utilização dessa técnica de controle tada pelos Ministros acerca dos direitos constitucionais à liberdade de reunião
de constitucionalidade, a ocorrência de múltiplas interpretações da norma
e à liberdade de expressão (parâmetro de controle). As discussões mais apro-
objeto da argüição de descumprimento". 13
fundadas na ADI 4274/DF foram justamente sobre esse tema. Neste ponto, é
O Ministro Luiz Fux também reiterou o teor do voto proferido na referida necessário ressaltar que as discussões foram mais abrangentes do que efetiva-
ADPF. Naquela ação, porém, não teceu nenhum consideração sobre o argumen- mente foi decidido na ação, por opção dos próprios ministros, que preferiram
to do sentido unívoco da lei. Nenhum outro ministro que anexou manifestação não estabelecer uma doutrina constitucional sobre o tema. 21
ao julgamento da AD14274/DF tratou explicitamente do conhecimento da ação, O Relator, Ministro Ayres Britto, apresentou a liberdade de reunião como um
mas todos acompanharam o Ministro Relator. Assumimos, portanto, que te- "direito instrumental" necessário para a consecução de outros direitos, como o
nham aceitado o mesmo raciocínio. direito à informação e à liberdade de expressão. Seu conteúdo abrangeria a pos-
sibilidade de qualquer pessoa realizar encontros a céu aberto ou em via pública.
2.2. Abrangência do dispositivo impugnado: as interpretações
Por ser um direito instrumental de grande relevância (cláusula-pétrea constitu-
do art. 33, § 2º cional), só estaria sujeito a uma única proibição: não seria garantido se a base
Por ocasião da manifestação sobre a preliminar, o Ministro Relator Ayres de inspiração ou os termos de convocação revelassem propósitos e métodos de
Britto apresentou duas interpretações que, segundo ele, foram construídas violência física, armada ou beligerante." Em específico, o Ministro considerou
a partir do art. 33, § 2º, da Lei de Drogas: (a) tradicionalmente, a punição da que o debate sobre a descriminalização das drogas seria um exercício da liber-
conduta de "induzir, instigar ou auxiliar" um sujeito ou um grupo de sujeitos a dade de expressão e do senso crítico da sociedade, não se revestindo das carac-
consumir drogas, entendendo-se indução como uma influência sutil do agente terísticas que ensejariam sua limitação, desde que exercido de forma pacífica e
para o uso de drogas e instigação como uma influência clara e determinada; (b) com respeito à condição de prévia comunicação às autoridades competentes.
recentemente, a proibição de eventos públicos de descriminalização do uso de O Ministro Marco Aurélio não mencionou nada a respeito do conteúdo dos
drogas. Ao seu ve1; a segunda interpretação seria inconstitucional.'' direitos constitucionais, exceto que se tratavam de direitos que considerava de

20 Novamente, ressaltamos que não se trata de um erro na redação, mas de um aproveitamento das
considerações feitas na ADPF 187 fDF para o julgamento da ADI 4274/DF.
Federal de 1988. Por isso, segundo a orientação jurisprudencial do próprio Supremo, não é possível
discutir a constitucionalidade de tal dispositivo em sede de controle principal e concentrado. Isso 21 Manifestação semelhante pode ser vista no voto disponibilizado do Min. Luiz Fux, na ADPF 187 /DF, nos
inclui a discussão dos sentidos possíveis que tal dispositivo eventualmente comporte. Nesse sentido, na seguintes termos: ''A circunstância recomenda, pois, uma perspectiva minimalista, em que se limite o
doutrina nacional: Laurentiis, 2012. Tribunal a decidir a questão nos termos em que lhe foi apresentada - como, aliás, requereu a própria
Procuradoria Geral da República quando do ajuizamento da arguição" (p. 3).
18 Voto sobre preliminar disponibilizado pelo Min. Celso de Mello na ADPF 187/DF, Rei. Min. Celso de Mello,
j.l5.06.2011, p. 22. 22 ADI4274/DF, p. 7. O Ministro admitiu a possibilidade de restrições maiores se acaso o contexto fosse de
estado de defesa ou estado de sítio.
19 ADI 4274/DF, p. S.

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maior relevância na Carta. Mas em seu voto na ADPF 187 /DF, o Ministro sus- conseguinte, o elemento "políticas públicas" e introduzindo o elemento "ataque
tentou que "o direito à liberdade de expressão é irrestringível na via legislativa", a outros grupos". Segundo, estabeleceu o paralelo do julgamento da ADI 4.274/
cabendo "ao Estado somente tomar as providências para responsabilizar ulte- DF com o julgamento do RE 82.424/RS (caso Ellwanger), no qual o plenário do
riormente os excessos". Ademais, somente seriam legítimos crimes de opinião STF fixou o entendimento de que o direito de liberdade de expressão não era
"quando relacionados ao ódio nacional, racial ou religioso bem como a toda pro- incondicionado, vencido, dentre outros, o próprio Min. Ayres Britto. Ressaltou,
paganda em favor da guerra". 23 desse modo, a necessidade de que o Tribunal mantivesse a coerência, até mes-
Os Ministros Luiz Fux e Celso de Mello remeteram sua fundamentação ao mo por razões de interpretação do sistema como um todo. 28
voto proferido por ocasião da ADPF 187 /DF. O voto desse último Ministro é A última comparação visou reforçar a ideia de que o debate sobre os limites
digno de nota. Nele há uma profunda explanação a respeito da estrutura consti- da liberdade de reunião e da liberdade de expressão deveria envolver valores
tucional da liberdade de reunião, na qual o Ministro Celso de Mello sustenta que substantivos. Por isso, na visão do Ministro Gilmar Mendes, não seria admissível
o Estado não pode nem mesmo interferir em reuniões sem armas e pacíficas, uma manifestação pública a favor da descriminalização da pedofilia. O Ministro
devendo apenas protegê-la, sob pena de inconstitucionalidade. 24 O Ministro es- Ricardo Lewandowski concordou com tal posição ao afirmar que
tabeleceu apenas uma limitação implícita a esse direito: a sua finalidade lícita. 25 "nesse caso se estaria até atentando contra a própria paz social, porque a
Sobre a liberdade de expressão, explicou que a cláusula constitucional não pro- pedofilia é uma violência contra a pessoa". 29
tege a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social, As participações dos Ministros no julgamento indicam uma clara cisão so-
mas defendeu a manifestação até mesmo dos grupos mais minoritários." bre a compreensão dos limites do direito à liberdade de reunião e do direito à
Coube ao Ministro Gilmar Mendes se opor à fundamentação do voto do liberdade de manifestação.
Ministro Ayres Britto. Logo ao iniciar o seu voto, ele ressaltou que considerava ne- De um lado, o voto do Ministro Ayres Britto pretendeu indicar que as li-
cessária a regulamentação legal da liberdade de reunião no Brasil, tal como já ha- mitações dos direitos fundamentais em discussão deveriam ser mínimas e ex-
viam feito outros países. Assim, introduziu um ponto de divergência com relação pressas no texto constitucional. 30 O direito à livre reunião e manifestação de
à posição defendida pelo relator: o modo como o deste último Ministro foi redigi- pensamento seriam, portanto, restringidos apenas se seus propósitos fossem
do dava a entender que o direito de reunião seria um direito absoluto, algo que o beligerantes ou se os métodos fossem violentos ou fizessem apologia ao cri-
Ministro Gilmar Mendes rejeitou completamente. A fundamentação desse enten- me.31 Aproximando-se dessa posição, o Ministro Celso de Mello defendeu que os
dimento foi desenvolvida com base na comparação do caso em análise com outras direitos não seriam absolutos, mas estariam condicionados apenas por valores
três hipóteses: (a) o caso da descriminalização do aborto; (b) o caso Ellwanger;
(c) a discussão de descriminalização de crimes graves, como a pedofilia.
A primeira comparação serviu para que o Ministro Gilmar Mendes afirmas- 28 ADI 4274/DF, pp.17, 23 e 27
29 ADI 4274/DF, p. 21.
se que manifestações em favor da revisão de tipos penais seriam totalmente
30 Embora não seja objeto deste artigo abordar essa discussão, o entendimento do Min. Ayres Britto é um
admissíveis se elas se destinassem a propor novas políticas públicas (de saúde, exemplo do que Alexy e seus alunos da escola de Kiel chamam de "teoria do suporte fático restrito" dos
por exemplo) ou então novas políticas criminais." De fato, em outros países direitos fundamentais. O suporte fático é considerado restrito por essa escola em comparação com o
manifestações sobre a descriminalização do aborto resultaram em mudanças suporte fático amplo, que defendem. No último caso, todas as condutas consideradas, em si mesmas,
como manifestações do exercício do direito fundamental são consideradas típicas até que outro direito
da legislação penal. constitucional venha a restringHa. No exemplo utilizado pela maioria desses autores: mesmo que um
A segunda comparação serviu para dois objetivos. Primeiro, suscitou a po- pintor quer elaborar uma obra de arte no meio do trânsito movimentado de uma cidade e seja impedido
tendo em vista os transtornos que sua conduta pode causar, ele não deixou de exercer seu direito à
lêmica da permissão de reuniões com intenções antissemitas, afastando, por liberdade artística (Cf. Alexy, 2008, p. 309). Um defensor da teoria do suporte fático restrito chega à
mesma concussão, mas por outro caminho: ele fundamenta a atipicidade da conduta do pintor que
23 Voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 187 /DF, p. 7. pretenda realizar dito ato, vez que, ao seu ve1~ pintar no centro de uma avenida movimentada não é
uma conduta protegida pelo direito à liberdade artística (Cf. Vieira de Andrade, 2004, 294). Na doutrina
24 Voto sobre o mérito do Min. Celso de Mello na ADPF 187 /DF. pp. 17 e 21.
nacional, com fundamento nessa distinção, Afonso da Silva analisou o julgamento da ADI 1.969, cujo
25 Idem, p.35. objeto foi um decreto distrital que regulamentava a realização de manifestações públicas na praça dos
26 Idem, pp. 46-49. três poderes (CF. Silva, 2009a, p.101).
27 ADI 4274/DF, pp. 18 e 28-29 31 ADI 4274/DF, p. 24.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

fixados na própria Constituição, quais sejam: a proteção contra discriminações Não obstante, a Corte preferiu adotar uma postura minimalista e não assen-
atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI, da Constituição), tou uma doutrina sobre os limites da liberdade de expressão." Ao final dos de-
a prática de racismo (art. 5º, XLII) e a ação de grupos armados contra a ordem bates, os Ministros ressaltaram a necessidade de cingir a discussão tão-somente
constitucional e democrática (art. 5º, XLIV). 32 Seguindo tais critérios, seriam ad- aos limites do objeto da ADI, que contemplava a apenas as manifestações favo-
missíveis manifestações de grupos que defendessem alternativas à criminaliza- ráveis à descriminalização do uso de drogas. 40 Tratava-se, portanto, de um ob-
ção da pedofilia. Importante, para o Ministro Celso de Mello, seria não condicio- jeto mais amplo que o da ADPF 187/DF (restrita à "marcha da maconha"), mas
nar a liberdade de expressão a valores hegemônicos ou a valores determinados mais restrito que uma discussão sobre descriminalização de todos os crimes,
pela autoridade estatal. 33 como racismo e pedofilia. Outras questões, então, seriam decididas caso a caso.
De outro lado, o Ministro Gilmar Mendes aponta para a necessidade de con- 2.4. A interpretação dada ao art. 33, § 2º, da Lei de Drogas
dicionar o exercício dos direitos a valores substantivos, como já havia defendido
Finalmente, o último aspecto do julgamento diz respeito ao controle
no caso Ellwanger. Porém, não indica quais seriam esses valores. Aproximando-
de constitucionalidade efetivamente exercido sobre o art. 33, § 2º, da Lei de
se dessa ideia, o Min. Luiz Fux considerou ser necessária a aplicação dos "prin-
Drogas. Quanto a esse aspecto, o Tribunal foi unânime em considerar inconsti-
cípios" da razoabilidade e da proporcionalidade. 34 Ao ver desse ministro, esses
tucional qualquer interpretação que abrangesse manifestações sobre a descri-
princípios impediriam a discussão da descriminalização da pedofilia. 35 Em seu
minalização das drogas nas condutas de "induzir, instigar ou auxiliar" o uso de
voto, o Ministro Cezar Peluso corroborou a divergência, afirmando ser
entorpecentes.
"impossível sustentar-se a liberdade de reunião para efeito de manifesta-
ção de pensamento, quando a descriminação da conduta signifique uma Com isso, o STF proferiu decisão com efeitos vinculantes em relação a todos
autorização ou uma legitimação automática para a prática de atos ofensi- os órgãos do judiciário e do Executivo, na qual estabeleceu que: (a) nenhum
vos a direitos fundamentais e a condições básicas de convivência ética e de tribunal ou juiz poderia utilizar o art. 33, § 2º, para proibir manifestações e
convivência democrática". 36
debates públicos sobre descriminalização ou legalização do uso de drogas; e (b)
Temos, portanto, um resultado na fundamentação que não se refletiu na una- essa proibição se estendia a qualquer droga ou entorpecente, com efeitos epi-
nimidade proclamada no acórdão. Isso porque, com base no exposto, podemos sódicos ou viciantes. 41 Porém, o Tribunal não indicou uma interpretação única
concluir que a votação foi unânime quanto ao dispositivo decisório, mas majo- para o dispositivo, limitando-se a excluir apenas as interpretações que julgou
ritária quanto à fundamentação. Não é possível expor com exatidão o resultado, inconstitucionais.
uma vez que a maioria das posições foi exposta em debates, mas uma prévia Cabe ressalvar, porém, que um voto fez menção aos parâmetros que os juí-
contabilização conduziria ao seguinte: vencedor o voto concorrente do Ministro zes deveriam seguir na interpretação do artigo impugnado, aproveitando-se de
Gilmar Mendes, com a adesão dos Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewadowski 37 e considerações feitas para o art. 287 do Código Penal. O Min. Luiz Fux estabele-
Cezar Peluso; vencido, no ponto, o voto do Ministro Ayres Britto, Relatm; com ceu que a interpretação do artigo deveria seguir os seguintes parâmetros:
adesão do Ministro Celso de Mello e, se considerada sua manifestação na ADPF
"1) trate-se de reunião pacífica, sem armas, previamente noticiada às au-
187/DF, o Ministro Marco Aurélio. 38 toridades públicas quanto à data, ao horário, ao local e ao objetivo, e sem
incitação à violência;

32 ADI 4274/DF, p. 24.


33 ADI4274/DF, pp. 20-21 e 25. 39 Segundo Owen M. Fiss, em tradução livre, "minimalismo é uma teoria, de crescente popularidade
34 Sustentando que a proporcionalidade é uma regra: Alexy, 2008, p. 82; Silva, 2002. nos Estados Unidos nas décadas recentes, que requer do Judiciário embasar suas decisões nos
35 ADI4274/DF, p. 21. fundamentos mais limitados disponíveis [most limited grounds available]" (Cf. Fiss, 2008, p. 643). Isso
significa, inicialmente, tentar resolver os casos com fundamentos legais e só depois usar argumentos
36 ADI4274/DF, p. 30.
constitucionais. Além disso, a Corte deve se limitar a julgar com aquele fundamento mais restrito capaz
37 Considerou-se que, diante de suas participações nos debates, a posição do Min. Ricardo Lewandowski de decidir o caso.
coincidia com a do Min. Relator.
40 ADI 4274/DF, pp. 24-25.
38 Pensamos que o resultado é definido pelos votos, a fundamentação, pela exposição. A Ministra Cármen
41 Essa decisão abrange, por exemplo, a observação feita pelo Min. Ricardo Lewandowski sobre alguns
Lúcia e o Ministro Joaquim Barbosa não anexaram voto escrito ao acórdão, razão pela qual consideramos
tipos de remédios que estariam sob análise da ANVISA (ADI 4274/DF, p. 23).
que suas posições são neutras- não aderiram a nenhuma das fundamentações.

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Guilherme Forma Klafl{e e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

2) não haja incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes 3.1. A utilização do conceito de "interpretação conforme a
na sua realização;
Constituição"
3) não haja consumo de entorpecentes na ocasião da manifestação ou
evento público [é muito importante, para esclarecer à opinião pública
O Ministro Ayres Britto qualificou a "interpretação conforme a Constituição"
que não haja consumo de entorpecentes na ocasião. É importante distin~ como uma especial "declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução
guir que essa marcha é apenas uma reunião para manifestar livremente o de texto" destinada a excluir determinadas compreensões da norma, deixando o
pensamento; texto normativo intacto. Nenhum dos oito ministros participantes do julgamen-
4) não haja a participação ativa de crianças, adolescentes na sua to contestou essa conceituação. Na ADPF 187/DF, invocada pelo Ministro Celso
realização". 42 de Mello como fundamentação, o decano da corte afirmou que a interpretação
O Ministro fixou essas condições com base nos seguintes fundamentos: (a) conforme a Constituição é
para a condição 1, os próprios direitos de reunião e liberdade de expressão; "uma técnica de decisão, que, sem implicar redução do texto normati~
(b) para a condição 2, o fato de que o "louvor à prática do entorpecente em vo - quando este se revele impregnado de conteúdo polissêmico e plu-
rissignificativo - inibe e exclui interpretações, que, por desconformes à
si" consubstanciaria crime enquanto a legislação previsse a criminalização das Constituição, conduzem a uma exegese divorciada do sentido autorizado
drogas; (c) para a condição 3, o fato de que o uso do entorpecente, durante a pela Lei Fundamental".44
vigência da legislação atual, seria prática criminosa; ( d) para a condição 4, o
A posição defendida pelos Ministros Ayres Britto e Celso de Mello contra-
fato de que a autonomia de crianças e adolescentes seria limitada e, além disso,
diz a opinião de pelo menos outro ministro do STF. Em trabalhos acadêmicos,
a existência de um princípio constitucional voltado a afastá-los do consumo de
Gilmar Mendes tem ressaltado que há diferença entre a "interpretação confor-
drogas e entorpecentes, sejam lícitos ou ilícitos, de modo que sua participação
me a Constituição" e a "declaração de inconstitucionalidade parcial sem redu-
ativa nos movimentos representaria interferência indevida em seu processo de
ção de texto".45 Segundo o autor, a primeira técnica aponta uma interpretação
formação.
como constitucional, excluindo as inconstitucionais; a segunda afasta uma de-
Tais condicionamentos não foram adotados por nenhum outro ministro terminada hipótese de aplicação normativa inconstitucional.
nem foram trazidos para o dispositivo decisório, que, ao contrário, vinculou a
A distinção entre as duas técnicas é tormentosa e nada pacífica." Entretanto,
decisão "aos termos do voto do Relator".
tal discussão só ganha relevo para um estudo jurisprudencial se ela tiver algu-
ma repercussão prática. Consideramos que, nesse caso, essa repercussão existe
3.AUTILIZAÇÃO DAINTERPRETAÇÃOCONFORMEACONSTITUIÇÃO
e diz respeito justamente aos efeitos conferidos à parte "implícita" do julgamen-
Após a breve exposição sobre o que foi apresentado no julgamento, propo- to, especialmente no caso da interpretação conforme a Constituição.
mos uma análise crítica de quatro aspectos da ADI 4274/DF: (a) o conceito de Esse problema não oferece maiores complicações na "declaração de incons-
"interpretação conforme a Constituição" utilizado no julgamento; (b) as consi- titucionalidade parcial sem redução de texto". A razão disso está em que essa
derações sobre o cabimento da técnica, presentes principalmente no voto do técnica declara inconstitucionais uma ou mais normas construídas a partir de
Ministro Relator; (c) a operação de controle de constitucionalidade em seus três um texto normativo. Ela não tem, portanto, nenhuma influência sobre as demais
momentos lógicos- interpretação da lei, interpretação da Constituição e cotejo normas derivadas do mesmo dispositivo. Uma vez que todas elas gozam de pre-
das interpretações 43 ; ( d) os efeitos de tal decisão do Supremo. sunção de constitucionalidade, devem ser por isso expressamente declaradas
inconstitucionais.
42 ADI4274/DF, pp. 12·13.
43 Segundo o Min. Ayres Britto, no julgamento da Questão de Ordem na ADPF 54, a interpretação conforme antecipados entendimentos jurídicos: o entendimento que já se tem de qualquer dos dispositivos
"trata-se de uma técnica de controle de constitucionalidade que só pode começar ali onde a interpretação constitucionais versus aquele específico entendimento a que também previamente se chegou de um
do texto normativo inferior termina. Primeiro, a interpretação do texto segundo os seus próprios dispositivo infraconstitucional" (Cf. Supremo Tribunal Federal, Pleno, ADPF~QO 54-8/DF, Rei. Min. Marco
elementos de compreensibilidade e por imersão no diploma com que nasceu para o Direito Positivo. Aurélio,j. 27.04.2005, pp.136-137).
Pronto! Depois é que se faz, não a reinterpretação desse texto para aperfeiçoá~lo à normatividade 44 Voto sobre preliminar do Min. Celso de Mello na ADPF 187 /DF, p. 18.
constitucional, mas tão-somente uma comparação entre o que já foi interpretado como um dos sentidos
dele (texto normativo) e qualquer dos dispositivos da Constituição. Donde o nome interpretação 45 Cf. Mendes, 2012, pp. 530-531.
conforme a Constituição significar; em rigor, um imediato cotejo entre duas pré-compreensões ou dois 46 Para uma panorama de tal discussão, cf.: Medeiros, 1999.

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Guilherme Forma Klafl<e e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

As dificuldades surgem com a utilização do conceito de interpretação con- fa!a dos ministros - em meio do debate acerca das possibilidades de restrições
forme a Constituição. para simplificar a exposição, consideremos que, quando nao expressas ao direito de reunião, o Ministro Ayres Britto propôs:
aplicada no modo de controle principal e concentrado brasileiro, essa técnica "Podemos, Ministro Celso de Mello e Ministro Gilmar Mendes - é 0 que
seleciona, dentre as interpretações possíveis da norma - que devem ser mais proponho -, nos limitar ao pedido feito pelo Ministério Público".
de uma- aquela que é constitucional. Disso decorre que temos duas hipóteses O Ministro Gilmar Mendes concordou com a proposta, ao que 0 Ministro
para conceber os efeitos da utilização dessa técnica. Ayres Britto respondeu:
Na primeira delas, a interpretação conforme indica que uma ou mais nor- "É porque podem surgir situações, que serão resolvidas".49
mas derivadas de um dispositivo são constitucionais, sem que com isso ocorra
Isso co_mprova que os sentidos possíveis- sejam eles futuros ou presentes-,
qualquer declaração de inconstitucionalidade das demais variantes normativas
do text? disc~ti~o esta~am em aberto. Se isso é certo, não é logicamente possí-
no texto analisado. Nessa linha, somente se combinarmos a interpretação con-
vel mdicar o umco sentido constltucwnal da norma definido pelo tribunal.
forme a Constituição com a declaração parcial sem redução de texto, será possí-
vel excluir as demais interpretações do texto e, assim, vincular os juízes apenas O erro conceitual do julgamento é então esclarecido. O resultado de tal jul-
às variantes normativas constitucionais.47 gamento foi apenas excluir as interpretações expressamente indicadas no dis-
positivo decisório, tal qual uma declaração de inconstitucionalidade parcial
Aplicação diversa considera que faz parte da interpretação conforme a
sem redução de texto. Não se trata, portanto, de uma interpretação conforme a
Constituição declarar a inconstitucionalidade das demais interpretações, de
Constituição. Fora isso, a decisão não determinou se uma leitura do dispositivo
modo que somente essa declaração implícita de inconstitucionalidade já é apta
como a feita pelo Ministro Luiz Fux- que permitia as manifestações, mas proi-
a excluí-las com efeitos vinculantes. Essa tese pode gerar alguns problemas.
bia qualquer participação ativa de crianças e adolescentes -, seria constitucio-
Para evitar o problema da petrificação da interpretação da lei, quem a defende
n~l à luz da liberdade de manifestação dessas pessoas. Questionamos: a proibi-
deve entender que a coisa julgada material se aplica apenas às leituras apre-
çao de passeatas que envolvessem crianças e adolescentes seria constitucional?
ciadas pelo Tribunal por ocasião do julgamento, não abrangendo novas inter-
A decisão não traz nenhuma resposta.
pretações que porventura venham a surgir posteriormente.•• Essas deverão se
submeter a novo juízo de constitucionalidade. 3.2. Cabimento da técnica
A exposição dessas duas correntes nos permite tecer algumas críticas em O Ministro Ayres Britto afastou a preliminar de não-conhecimento sus-
relação à decisão na AD14274/DF. Formalmente, ou seja, no texto do dispositi- citada pela Advocacia-Geral da União ao considerar que o art. 33, § 2º, com-
vo decisório, encontramos a indicação de que o Tribunal proferiu uma decisão portava ao menos duas interpretações, sendo uma delas inconstitucional. Em
de "interpretação conforme a Constituição". No entanto, é fácil identificar que 0 acordo com a forma como conceituou a técnica da "interpretação conforme a
Tribunal proferiu na realidade uma decisão de "inconstitucionalidade parcial Constituição", o Ministro considerou cabível o pedido formulado na petição ini-
de redução de texto", por meio da qual excluiu interpretações mais amplas das Cial da Procuradoria Geral da República. Vimos que, na verdade, esse julgamen-
palavras "induzir, instigar ou auxiliar", as quais poderiam impedir a realização to não contém uma decisão de interpretação conforme a Constituição. Agora
de manifestações pacíficas em favor da descriminalização ou da legalização de devemos analisar se a aplicação dessa técnica era cabível.
uso de quaisquer drogas ou entorpecentes.
O cabimento deve ser visto nesse caso como a "relação de adequação even-
Para que cheguemos a essa conclusão, basta confrontar o resultado do jul- tualmente existente entre a via processual eleita e a utilização da técnica da
gamento com as hipóteses de distinção antes descritas. Ao excluir as interpre- interpretação conforme a Constituição". 50 Nesse sentido, cabe aos julgadores
tações que proíbam a realização de manifestações em favor da realização de re- questionar se o modo de controle, se a ação manejada e se o objeto da ação ad-
ferida "marcha", o Supremo Tribunal Federal não indic.ou a única interpretação mitem a utilização da técnica.
constitucional do §2º do art. 33, da Lei de Drogas. Quanto menos afastou todas
as possíveis leituras inconstitucionais desse dispositivo. Isso está bem claro na

47 Nesse sentido, na doutrina nacional: Ramos, 2010a, p. 271. 49 ADI 4274/DF. p. 25.
48 Cf. Mendes. 2007. p. 352. 50 Cf. Laurentiis, 2012, p. 138.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

Em relação ao modo de controle, a maior parte da doutrina considera que "requer a autora seja julgado procedente o pedido, para que esta Corte
realize interpretação conforme a Constituição do art. 33, §2º, da Lei
tanto a interpretação conforme a Constituição como a declaração de inconsti- 11.343/2006, de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a
tucionalidade parcial sem redução de texto são técnicas próprias do controle criminalização da defesa da legalização das drogas, ou qualquer substân-
de constitucionalidade. 51 Esse entendimento é mais sólido no controle princi- cia entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos
pal-abstrato de constitucionalidade, uma vez que, nessa sede, não há dúvida públicos".
de que a interpretação conforme a Constituição é uma técnica de controle de Vê-se assim que, apesar da confusão conceitual originada no pedido formu-
constitucionalidade e não só um método de interpretação da lei. 52 lado pela Procuradoria, materialmente o provimento da ação direta de incons-
Em relação à ação manejada, um tema importante é o cabimento de pedido titucionalidade adequava-se ao pedido feito.
de interpretação conforme a Constituição em ações diretas de inconstituciona- Finalmente, o último pressuposto necessário para determinar o cabimento
lidade. Na ADI 3026/DF, o Ministro Eros Grau não conheceu de determinado de um pedido de interpretação conforme a Constituição é a existência de um
pedido por considerar que: espaço de decisão. Para que essa técnica decisória seja admissível, a norma de-
"Ao requerente da ADI cabe buscar a declaração de inconstitucionalidade batida deve conter uma pluralidade de sentidos normativos suscetíveis de con-
do preceito que com a Constituição do Brasil não guarde coerência. A in- trole.56 Nos detemos neste ponto.
terpretação conforme a Constituição é técnica a ser utilizada por esta Corte
quando, diante da existência de duas ou mais interpretações possíveis, A interpretação conforme a Constituição e a declaração de inconstituciona-
uma delas seja eleita como ajustada ao texto constitucional". 5 3 lidade sem redução de texto são utilizadas para realizar o controle de diferentes
No entanto, diante do entendimento corrente no Supremo de que a inter- normas, algumas constitucionais e outras inconstitucionais. Dessa forma, sua
pretação conforme a Constituição é uma espécie de declaração de inconstitu- admissibilidade exige que o texto normativo contenha ao menos dois sentidos
cionalidade parcial sem redução de texto - opinião essa adotada também pelo normativos possíveis. Essa pluralidade normativa torna possível o uso da téc-
Ministro Ayres Britto ao tratar da leitura do art. 33, § 2", da Lei de Drogas - o nica, pois, se o texto comportar só uma interpretação, a declaração da incons-
Tribunal vem conhecendo de ações em que o autor formula pedidos de inter- titucionalidade dessa variante normativa equivalerá à inconstitucionalidade do
pretação conforme a Constituição. 54 Ademais, há quem defenda que a decisão próprio dispositivo.
de improcedência em ação direta de inconstitucionalidade equivale a uma de- Porém, na apreciação do cabimento da ação, a exigência de pluralidade de
claração de constitucionalidade, o que afasta o problema do não cabimento da interpretações não deve implicar a necessidade de que algumas sejam constitu-
interpretação conforme a Constituição nessas ações. 55 cionais e outras sejam inconstitucionais. Isso por duas razões. Em primeiro lu-
No julgamento ora em foco, apesar da incorreção do nome dado à técnica, o gar, a apreciação da constitucionalidade é questão de mérito, não de cabimento
requerente pleiteou uma declaração de inconstil1.1cionalidade de determinadas da ação. Em segundo lugar, essa exigência conduziria à seguinte situação para-
interpretações do art. 33, § 2º, da Lei de Drogas. Nas palavras lançadas pela doxal: na ausência de sentidos constitucionais ou inconstitucionais, o Tribunal
ficaria impedido de declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos
Procuradoria Geral da República na peça inicial:
únicos sentidos identificados, pois seria obrigado a não conhecer da ação.
Para detalhar a situação, apresentamos um exemplo. Um autor demanda a
51 Cf. Coelho, 2011, p. 167. declaração de conformidade de um dos sentidos possíveis de uma lei. Frente a
52 Para essa opinião, cf.: Laurentiis, 2012. esse pedido, o Tribunal pode seguir cinco vias:
53 AO! 3026/DF, p. 491. (a) pode declarar que todos os sentidos possivelmente decorrentes
54 Exemplos na jurisprudência do Supremo são encontrados nos julgamentos da ADPF 54, sobre aborto do texto do dispositivo são constitucionais, afastando por absurdas e
de feto anencéfalo, e das ADI 4277 e ADPF 132, sobre união estável entre pessoas do mesmo sexo. Na desprovidas de sentido as variantes interpretativas inconstitucionais;
ADI 3324/DF, Min. Relator Marco Aurélio, constou na ementa que "É possível, juridicamente, formular-
se, em inicial de ação direta de inconstitucionalidade, pedido de interpretação conforme, ante enfoque (b) pode declarar que todos os sentidos possivelmente decorrentes do
diverso que se mostre conflitante com a Carta Federal. Envolvimento, no caso, de reconhecimento de texto do dispositivo são inconstitucionais, afastando por absurdas e
inconstitucionalidade". desprovidas de sentido as variantes interpretativas constitucionais;
55 Dentre os autores que defendem essa tese, na doutrina nacional, cf.: Martins, Mendes, 2007, p. 425;
Zavasld, 2001, p. 46. Criticas a esse respeito são encontradas em: Ramos, 2010a, p. 281; Laurentiis, 2012;
Dutra, 2012. 56 Cf. Canotilho, 2003, p.1227.

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Guilherme Forma Klafl{e e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

(c) pode declarar que um ou mais sentidos são constitucionais e excluir, uma tradicionalmente defendida pela doutrina e outra que começava a ganhar
por inconstitucionais, outros sentidos igualmente denvados do texto; destaque nos tribunais brasileiros com a finalidade de proibir manifestações à
(d) pode declarar que o dispositivo não contém outros sentidos possíveis favor da legalização do uso e porte de drogas. Exemplo disso foi o que ocorreu
e, considerando que o único sentido é inconstitucional, declarar a nuhdade com as chamadas "marchas da maconha".
do próprio texto; As assertivas (d), (e) e (f), no entanto, não precisariam figurar na funda-
(e) enfim, pode declarar que o texto não contém outros senti,dos possíveis mentação. A assertiva (d) confunde preliminar e mérito e gera o paradoxo aqui
e declarar que o único sentido debatido no JUlgamento e conforme a apresentado; a assertiva (e) traz uma afirmação incorreta, pois a técnica inter-
Constituição. pretativa aqui aplicável seria a nulidade parcial sem redução de texto. Contudo,
Exigir que, ao avaliar a admissibilidade da ação, o Tribunal indique as nor- essa é uma justificativa importante utilizada pelo Tribunal para assentar, sem
mas constitucionais e inconstitucionais que decorrem da interpretação do tex- maiores questionamentos, a possibilidade do pedido em ação direta de incons-
to altera substancialmente esse quadro de possibilidades. Tanto em (a) e (b), titucionalidade; por fim, em (f) tem-se uma conclusão que recai novamente no
como em (d) e (e), não se admite a existência concomitante de normas constitu- problema da confusão entre preliminar e mérito.
cionais e inconstitucionais decorrentes do dispositivo impugnado. Apenas em Esclarecido esse ponto, surge a seguinte questão: os fundamentos (a), (b) e
(c) admite-se essa concomitância. (c) são suficientes para assentar o cabimento da ação? A análise dessa indaga-
Por isso, se a necessidade da existência de sentidos possíveis constitucio- ção exige considerar a crítica formulada por Virgílio Afonso da Silva no que diz
nais e inconstitucionais da lei se aplicasse na determinação do cabimento da respeito ao uso indiscriminado da interpretação conforme a Constituição. 57 Para
ação, a Corte seria impedida de declarar seu próprio entendimento acerca da esse autor, vários motivos apontariam para a trivialização desse conceito. Um de
validade do único sentido normativo identificado e, em consequência, não po- seus argumentos é fundamental para responder à nossa pergunta. A interpreta-
deria proferir uma declaração de validade ou invalidade abrangente de todos os ção conforme a Constituição seria uma técnica trivial nos processos de controle
sentidos de uma só vez. Ela seria obrigada a decidir pelo não-conhecimento da de constitucionalidade, pois o pedido do requerente pela inconstitucionalidade e
ação, exigindo do autor que ajuizasse uma nova demanda. a defesa da constitucionalidade pelos autores do ato já serviriam para apresentar
Essas observações nos levam a concluir que, no que tange à análise do cabi- pelo menos duas interpretações, fazendo com que qualquer decisão tomada pelo
mento da técnica interpretativa de controle, o voto do Ministro Ayres Britto foi Tribunal fosse uma decisão de interpretação conforme a Constituição. 58
parcialmente correto. Trazemos novamente seu raciocínio: Essa crítica é poderosa e aponta para a possibilidade da completa inutilidade
(a) 0 art. 33, § 2º, da Lei de Drogas, costuma ser interpretado corno a tipifi~ do conceito de interpretação conforme a Constituição, que, tal como apresenta-
cação da apologia ao uso de drogas; do, poderia ser aproveitado em toda e qualquer decisão de constitucionalidade
(b) entretanto, o dispositivo impugnado foi por diversas vezes invocado ou inconstitucionalidade. Mas não concordamos com a crítica e pensamos que
pelo Judiciário para impedir manifestações favoráveis à legalização das a solução para o problema identificado pelo autor está na distinção entre as
drogas; "interpretações razoáveis" e "interpretações não razoáveis" do texto normativo.
(c) assim, havia pelo menos duas interpretações construídas a partir do
art. 33, § 2º:
(d) a interpretação defendida em (b) seria inconstitucional; 57 Cf. Silva, 2006.
(e) a técnica da interpretação conforme a Constituição seria uma espécie 58 Reproduzimos aqui as palavras desse autor: "Sempre que alguma parte legítima propõe uma ADI,
de "declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto" que ela necessariamente argumentará pela inconstitucionalidade de um determinado dispositivo legal.
excluiria significados inconstitucionais sem fulminar o texto legal; Ora, se o Supremo Tribunal Federal entender que o referido dispositivo não é inconstitucional. ele
automaticamente terá feito uma interpretação conforme a constituição, pelo menos nos termos das
(f) em conclusão, diante da existência de duas interpretações, sendo
definições usuais desse cânone interpretativo, visto que diante de duas possibilidades de interpretação
uma delas inconstitucionais, era cabível a utilização da técnica da "inter~ do dispositivo, ele terá escolhido uma que mantém sua constitucionalidade, rejeitando a outra, aduzida
pretação conforme a Constituição" para excluir tão~somente a exegese pelo propositor da ação, incompatível com a constituição. Não há como escapar desse modelo, pois
inconstitucional. sempre haverá a interpretação do Supremo Tribunal Federal, favorável à constitucionalidade, e a
interpretação do propositor da ação, favorável à inconstitucionalidade. Ao escolher a interpretação
Examinemos essas conclusões. As afirmações (a), (b) e (c) demonstram a favorável, o Supremo Tribunal Federal terá praticado a interpretação conforme a constituição, nos
existência de ao menos duas interpretações para o art. 33, § 2 9, da Lei de Drogas, termos expostos tradicionalmente pela doutrina e pela jurisprudência" (Cf. Silva, 2006, p. 199).

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § zn da lei de drogas: trivialização ...

A ideia elementar que se encontra por trás dessa distinção é a seguinte: as vislumbrar outros limites para a justiça do trabalho e para a justiça militar?
técnicas interpretativas de controle de constitucionalidade, tal qual a interpre- Chamemos essa variante de interpretação (d).
tação conforme a Constituição, exigem que a norma debatida contenha diver- Todos os julgadores podem considerar essa interpretação absurda por di-
sos sentidos possíveis e razoáveis. Ao contrário, o sentido não razoável - ou versas razões, dentre as quais a própria inexistência de propostas semelhantes
seja, 0 sentido absurdo - não deve nem mesmo ser considerado pelo julgador. vislumbradas por outras pessoas ou os limites textuais do dispositivo. E aqui
Explicamos essa distinção com um exemplo. 59 surge o limite da admissibilidade da técnica: ao considerar que uma variante
Digamos que uma emenda à Constituição crie um teto remuneratório para o interpretativa não é razoável- seja porque ela não é contemplada pelos limites
funcionalismo público correspondente ao valor do subsídio mensal dos minis- textuais da norma, seja porque a prática interpretativa anterior ao julgamento
tros do STF. Essa mesma emenda fixa para a magistratura dos Estados um sub- não indica a existência dessa variante - o julgador deve afastar esse sentido
teto correspondente a determinada porcentagem do subsídio dos desembarga- normativo, não por considerá-lo constitucional ou inconstitucional, mas sim
dores dos tribunais estaduais. Sua redação, porém, não abrange explicitamente por não vislumbrar a possibilidade de seu questionamento.
a magistratura federal. Para a última, vigora tão somente o teto remuneratório Esse é o tema que pretendemos analisar aqui. Podemos resumi-lo com a se-
geral do funcionalismo público. O inconformismo com a situação de discrimi- guinte questão: o Tribunal é obrigado a analisar toda e qualquer interpretação
nação entre as remunerações das duas justiças (Federal e Estadual) conduz à do texto debatido, mesmo que o sentido debatido seja completamente inviável?
propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade. Pensamos que não, pois uma vez que a leitura do dispositivo impugnado não
Frente à impugnação dessa norma, algumas decisões possíveis são: (a) seja razoável, é inviável buscar declarar sua constitucionalidade, inconstitucio-
inconstitucionalidade ex tunc do dispositivo que submete a magistratura dos nalidade ou mesmo sua conformidade condicional com a Constituição. Gustavo
Estados a um subteto diferente do teto da magistratura federal; 60 (b) interpre- Zagrebelsky utilizou uma imagem literária para ilustrar essa limitação dos sen-
tação conforme a Constituição para fixar que o dispositivo deve ser interpre- tidos que ensejam o cabimento de uma técnica interpretativa de controle: o
tado no sentido de abranger somente os funcionários da justiça Estadual, não Tribunal que tenha de discutir todas as interpretações de um texto, sejam elas
os magistrados; 61 (c) constitucionalidade da emenda com a limitação de sua absurdas ou não, se veria obrigado a combater infinitos sentidos imaginários e
abrangência, fazendo com que ela deva ser aplicada somente aos funcionários irreais, como se esses fossem moinhos de vento. 63
da justiça Estadual, em razão de uma leitura sistemática da Constituição." Não esmiuçaremos os fatores que determinam a razoabilidade de uma in-
A decisão pela adoção de (a), (b) ou (c) pode residir, dentre outros fatores, terpretação nem quem deve ser o responsável por determinar se uma interpre-
no fato de que os julgadores veem diferentemente a razoabilidade das interpre- tação é razoável ou não, o que exigiria um trabalho próprio. Contudo, um aspec-
tações. Um juiz pode considerar absurda a interpretação (inconstitucional) que to que nos parece decisivo para avaliar a razoabilidade de uma interpretação
submete os magistrados das justiças Estadual e Federal a subtetos diferentes. se encontra na sua adoção pela jurisdição ordinária. Em consequência, a noção
Outro pode considerar absurda a leitura que o seu colega considerou válida. de "direito vivente", comumente referida pela doutrina," é capaz de indicar a
Finalmente, um terceiro julgador pode considerar as duas interpretações per- norma que razoavelmente decorre de um dispositivo. Essa ideia foi desenvolvi-
feitamente razoáveis e, dessa forma, resolver aplicar a técnica da interpretação da pela jurisprudência italiana." O direito vivente, ou o direito praticado pela
conforme a Constituição. jurisdição de base, restringe as possibilidades de impugnação e a avaliação dos
Consideremos uma quarta hipótese. Animado com a discussão dos tetos sentidos normativos possíveis."
remuneratórios da magistratura nacional, um autor pretende que o Tribunal
discuta a criação de novos subtetos. A questão que propõe é: se as justiças es-
63 CF. Zagrebelsky, 1988, p. 284.
tadual e federal estão submetidas a tetos remuneratórios diversos, por que não
64 CF. Laurentiis, 2012; De la Vega, 2003.
65 Para uma exposição acerca da origem histórica do direito vivente e de sua função de contenção do poder
59 Utilizaremos a situação ocorrida no julgamento da ADI 3854. assumido pela Corte Constitucional italiana na segunda metade do século XX, cf.: Zagrebelsky, 1988, p.
60 Esse foi o pedido principal do requerente na ADI 3854. 283; Medeiros, 1999, p. 407.
61 Essa foi a posição do Min. Cezar Peluso no julgamento da ADI 3854. 66 Carlos Blanco de Morais apresentou uma descrição precisa desse conceito. Em suas palavras: "o juiz
interprete deve escolher ou admitir, dentro do possível, soluções interpretativas conformes com a
62 Essa foi a posição do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 3854.

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212
Guilherme Forma Klafl{e e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2!.! da lei de drogas: trivialização ...

A existência de uma controvérsia interpretativa real, decorrente do efetivo Em sua visão, dito dispositivo não continha um sentido razoável que pudesse
conflito de entendimentos nos tribunais, é um indicativo da razoabilidade das impedir a realização de manifestações públicas à favor da liberalização do uso
variantes normativas geradas por um mesmo dispositivo legal. Se esse debate e porte de drogas. Ao contrário, a própria definição das condutas de "instigar,
da jurisdição de base existe previamente à demand~ de interpretação co~fo~­ induzir e auxiliar" exigiam a prática da ação voltada a um sujeito determinado, e
me a Constituição, o Tribunal constitucional deve s1mplesment: se restnng1r não a um grupo indeterminado de pessoas, o que conduzia à irrazoabilidade da
a avaliar se esse direito vivo está de acordo ou não com os parametros cons- leitura dada pelos tribunais brasileiros. Em outras palavras, não seria razoável
titucionais. Outras variantes interpretativas não devem ser consideradas. Por considerar que o tipo penal abrangia atos públicos em favor da descriminaliza-
outro lado, caso o direito vivo não exista quando da demanda de interpreta~ão ção ou legalização do uso de drogas, uma vez que não havia nada expresso nesse
conforme a Constituição, caberá ao autor demonstrar que o texto norma~1vo sentido.
comporta variantes interpretativas razoáveis diversas e que uma dessas vanan- justamente por pensar o contrário e com base no direito praticado pelos
tes é constitucional. 67 tribunais de base, o Ministro Ayres Britto afastou essa preliminar. Para ele, a
Não basta, portanto, simplesmente propor uma ação direita de i~constitu­ existência de decisões dos tribunais que determinavam a proibição de mani-
cionalidade para que a técnica interpretativa chama~a interp.retaçao confor- festações com base no artigo era suficiente para criar a pluralidade de normas
me a Constituição seja automaticamente admissível. E necessano qu~ o _texto necessária para o uso da interpretação conforme a Constituição. Estamos, por-
normativo comporte sentidos possíveis e razoáveis, fato que pode ser md1cado tanto, diante de um caso de uma delimitação das variantes interpretativas razo-
ela análise do direito vivente, para que a avaliação da conformidade desses áveis do texto normativo realizada com base no direito vivente.
~entidos seja realizada. Em outros termos: a delimitação das va~iantes interpre- Por fim, é importante questionar se apenas mencionar a existência de uma
tativas possíveis (razoáveis) e passíveis de controle deve se: fe1ta a~tes da ava- controvérsia nos tribunais garante o cabimento da ação ou se é necessário que o
l" ção da conformidade desses sentidos a parâmetros const1tucwnms (controle requerente apresente decisões que embasem essa controvérsia em sua petição
dela • ·
constitucionalidade propriamente dito). Caso contrano, o Tn"b una I const"1- inicial.
tucional se veria forçado a analisar a conformidade de sentidos não razoáveis e
No caso analisado, essa questão não tem efeitos práticos, pois a requerente
inviáveis da lei. indicou na peça inicial os julgamentos em que §2º, do art. 33, da Lei de Drogas
Voltemos ao nosso exemplo. Mesmo que um ministro tenha a convicção foi utilizado como fundamento para impedir a realização de passeatas a favor
pessoal de que a emenda ilustrativa é constitucional e que uma leit~:a con- da liberalização do uso e porte de drogas. Mas e se essa comprovação fosse in-
trária não é razoável por razões substantivas (o s1stema da Constltmçao, por suficiente ou não tivesse ocorrido? Aqui temos posições conflitantes.
exemplo), ele deverá considerar cabível o pedido de interpretação conforme a
Um dos autores desse artigo (Laurentiis) considera que a falta da compro-
Constituição porque existe uma controvérsia real sobre as normas que de~u':m vação do sentido vivente torna a variante interpretativa a priori inaceitável.
do dispositivo. Ao contrário, o pedido de interpretação conforme que nao m- Segundo essa posição, cabe então ao autor comprovar que, mesmo na ausência
dique um fundamento razoável para a interpretação pleiteada e nem decorra
do direito vivente, o sentido normativo debatido na ação é possível e razoável e
de uma controvérsia vivente -é o caso da variante (d) -não deve nem mesmo
que, em consequência, a análise da compatibilidade de tal variante normativa
ser considerada. A interpretação conforme a Constituição deixa então de ser
é cabível.
uma técnica trivial para se tornar um instrumento excepcional e relevante na
redução das incertezas concretas e reais ocasionadas pela interpretação da lei. Na visão de outro autor deste texto (Klafl<e) não se deve exigir do requeren-
te da interpretação conforme a Constituição, sob pena do não conhecimento
Toda essa argumentação tem grande peso no julgamento do art. 33, § 2º, da
da ação, uma efetiva comprovação do direito vivente debatido, com a citação
Lei de Drogas. Como exposto anteriormente, é essa distinção que determm: o
decisões divergentes na petição inicial, uma vez que isso seria criar uma condi-
porquê de a Advocacia Geral da União defender o não-conheCimento da açao.
ção de procedibilidade não prevista em lei. Observa-se que, quando exige essa
demonstração, a lei o faz expressamente, como no art. 14, lll, da Lei Federal nº
Constituição que se louvem em jurisprudência consolidada ou, pelo menos, já assumida pela jurisdição
comum" (Morais, 2005, pp. 338~339).
67 Cf. Laurentiis, 2012, pp.120·122.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

9.868/99 para ações declaratórias de constitucionalidade'", e no art: 3Q, V, da terpretações possíveis e razoáveis possa ser suprida por eles no caso. Isso tudo
Lei Federal n" 9.882/99 para arguições de descumpnmento de precetto funda- demonstra que a interpretação conforme a Constituição está longe de ser uma
mentaJ.6' Nesses casos, demonstrada a controvérsia, está igualmente compro- técnica de controle trivial.
vada a existência de mais de um sentido possível para a disposição questionada.
A inexistência da controvérsia, no entanto, não inviabiliza a priori o cabimento 3.3. A atividade de controle de constitucionalidade na ADI
do pedido de utilização de técnica interpretativa, que poderá ser demonstrado 4274/DF
por outros meios, até mesmo por uma argumentação bem elaborada. Neste terceiro tópico, abordaremos a argumentação desenvolvida pelos
Não se quer com isso defender que a petição inicial possa impugnar inter- Ministros que atuaram no julgamento da ADI 4274/DF. Serão apresentados ba-
pretações sem discutir a plausibilidade delas. A exigência desse req~isito decor- sicamente os limites que condicionam a utilização das técnicas interpretativas
re da aplicação do princípio da ação ao controle abstrato de constttucwnahda- nos seus três momentos lógicos: interpretação do dispositivo impugnado, inter-
de, corolário da própria inércia do Poder judiciário e intensificado pelos efettos pretação do parâmetro constitucional e confronto das normas.
de uma possível decisão favorável. 70 Segundo Carlos Roberto de Alckmm Dutra: Em relação à interpretação da lei, o Supremo procurou determinar a abran-
"Na hipótese de pedido de interpretação conforme a Constituição[...] deve gência dos termos "instigar, induzir e auxiliar", constantes do art. 33, §2Q, da
haver indicação de maneira inequívoca da interpretação que se pretende Lei de Drogas. Essa necessidade ficou evidenciada, de modo semelhante, no jul-
fixar e a demonstração da inconstitucionalidade das demais interpreta~ gamento do art. 287 do Código Penal. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio
ções possíveis de serem extraídas do dispositiv~, de modo a permiti: que
enfrenta a questão de se o ato de "opinar", "emitir uma opinião", núcleo da liber-
0
Tribunal fixe determinado sentido a ser extrQ/dO da norma com vista a
reconhecer sua constitucionalidade e, em consequência, a inconstituciona~ dade de expressão, poderia ser criminalizado." Os termos presentes no disposi-
lidade parcial qualitativa". 71 tivo impugnado possuem um âmbito de significação vago e, por isso, podem ser
Veja-se, portanto, que incumbe ao autor da aç~o, ~um primeir~ momento, interpretadas de modo mais amplo, abrangendo um leque maior de fatos, ou 0
apresentar todas as interpretações possíveis (razoavets) do dtspostt!vo tmpug- mais restrito, abrangendo um leque menor de fatos.
nado- a discordância entre os autores do artigo incide sobre como demonstrar Nesse primeiro momento incidem limites referentes à atividade interpre-
a razoabilidade. Depois, deverá ele indicar fundamentadamente quais delas são tativa. Para a construção de sentido, a limitação básica é a textualidade do dis-
constitucionais e quais delas são inconstitucionais. A análise do cabimento da positivo, ou seja, a criação de normas pela conjugação dos diversos elementos
ação, porém, não envolverá a apreciação de mérito, ma_:; tã~-~omente o exame da interpretação (gramatical, sistemático, genético, evolutivo, teleológico ), para
das interpretações que, conforme delimitado pela pettçao mtctal, foram levadas que não sejam ilegítimas e desvirtuem a função jurisdicional." Por outro lado,
o teor literal da norma figura como limite negativo, visto que, nas palavras de
à juízo.
Rechaçamos, portanto, a possibilidade de que o ônus da demonstração da Friedrich Müller,
razoabilidade da interpretação discutida recaia exclusivamente sobre os Julga- "demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, i. é,
funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis". 74
dores, de modo que a não demonstração pelo autor de uma pluralidade de in-
Salientamos, portanto, a importância da definição do conteúdo dos termos
68 Nos termos do art. 14, 111, da Lei Federal nº 9.868/99: "Art. 14: A_ peti~ão inicial!ndicará: 11~ -. a..existência
"instigar, induzir e auxiliar", ao menos como limite literal da norma. Essa ne-
de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da dispos1çao objeto da açao declaratona · cessidade não passou despercebida no julgamento da ADI 4274/DF. Logo no
69 Nos termos do art. 3º, V, da Lei Federal nº 9.882/99: "Art. 3º. A petição inicial dever~ co~ter: V- se ~o r início de seu voto, o Ministro Ayres Britto insere passagem doutrinária na qual
caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aphcaçao do preceJto
0 as condutas de "instigar" e "induzir" são definidas." Contudo, ao considerar que
fundamental que se considera violado".
p ma visão geral da aplicação desse princípio no controle abstrato de constitucionalidade, cf. Dutra,
o ato de "emitir uma opinião" não deve ser punido pelo tipo penal do art. 33, §
70
2~~a2~pp.118 e ss. Sobre a inércia da jurisdição, o autor explica que: "a inérci~ da jurisdição c~nstitucional
é um elemento fundamental ao equilíbrio e harmonia entre os Poderes, pms, pudesse o Tnbunal sponte 72 Cf. voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 187/DF, p. 7.
sua darinído ao processo de controle de constitucionalidade, a sua função tornar~se-ia demasiadam~nte
73 Cf. Ramos, 2010b, p. 214.
proeminente nas relações institucionais, tornando-o uma espéc!e de superpoder, acima dos demais, a
exercer sobre eles permanente controle" (Dutra, 2012, p. 120, gnfos nossos). 74 Cf. Müller, 2010, p. 74.
75 Cf. AO! 4274/DF. p. S.
7l Cf. Dutra, 2012, p. 128.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

2º, da Lei de Drogas, a passagem não explica porque isso transborda os .termos outro participante da festa, grande conhecedor do Direito Constitucional, ar-
"instigar" ou "induzir". Nesse ponto, a manifestação do relatm afirma simples- gumenta que a criminalização do uso de drogas é ilegítima e inconstitucional
mente que já existe um outro tipo penal que se aplica a~ caso, JU.stamen~e o art. e, por isso, eles não têm nada a temer. Convencidos, alguns dos participantes
287 do Código Penal (apologia ao crime). Em consequencia, ~ ms~Igaçao ou o da festa aceitam a proposta." Repare-se que, nessa hipótese, há um questiona-
induzimento são concebidos de forma restritiva e, nesse sentido, mdicam que mento sobre a legalização do consumo de drogas, mas sob a perspectiva de que
a expressão ou a ideia deve ser dirigida a uma pessoa determinada: o alguém a esse não é um tema a ser deliberado pelo Parlamento, porque o uso já é cons-
que se refere o tipo penal. titucionalmente permitido - digamos, por exemplo, que em razão da liberdade
Não é descabido, portanto, sustentar que as duas interpretações menciona- individual (art. 5º, caput, da Constituição). Nesse caso o dispositivo também
das no julgamento podem decorrer legitimamente do dispositivo i~pugn~do._O não terá aplicação? Frente a esse caso hipotético, mas plausível, a autora prova-
entendimento apresentado pelo Relator deriva simplesmente danao aph~açao velmente argumentaria que o ofertante já seria penalizado pelo §3º do art. 33,
do art. 287 do CP à espécie (interpretação sistemática) e da consideraçao de da Lei de Drogas, que sanciona a conduta daquele que oferece drogas a pessoas
que 0 tipo penal tem por finalidade proteg:r as pe~soas contra qualquer su· de seu convívio." Mas o que ocorre com a incidência do §2º, do mesmo artigo,
gestão ao uso de entorpecentes (interpretaçao teleologica). Dessa forma, numa para o amigo que sugeriu a constitucionalidade do consumo? Observe-se que,
primeira variante interpretativa, o dispositivo (art. 33, §2~ da Lei de Drogas) se no exemplo, a argumentação constitucional do estudante induz alguns de seus
referiria ao ato incutir uma ideia ou dar ânimo a um SUJeito determmadopara colegas a usarem drogas.
que use drogas proibidas. Um segundo sentido incluiria grupos ou_ classes mde· Segundo exemplo. Em uma reunião de amigos, surge uma acalorada discus-
terminados como destinatários das condutas prOibidas. A vanaçao de sentido são sobre os efeitos das drogas para a saúde das pessoas. Um deles, ardoroso
está relacionada ao sujeito - nos termos utilizados pela lei penal, ao "alguém" defensor da liberalização, afirma que o consumo de drogas ilícitas não é mais
-que é instigado, induzido ou auxiliado pelo autor da conduta típica. nem menos prejudicial à saúde que o consumo de drogas lícitas, como o tabaco.
Uma das consequências dessas considerações está relacionad.a à delimita· O debatedor conclui então que, sob a perspectiva da tutela ao direito à saúde
ção a amplitude do pedido formulado pela Procuradona da Repubhca. VImos individual, não há razão que fundamente a proibição do consumo de qualquer
que 0 pedido formulado por esse órgão busca "excluir qu.alq~er exegese [do art. espécie de droga. A questão é então: o pedido formulado pela Procuradoria da
33, §2º, da Lei de Drogas] que possa ensejar a cnmmahzaçao d~ defesa da le· República também se aplica a esse caso? Lembremos que essa demanda foi
galização das drogas, ou qualquer substância entorpecente esp:_Cifica, mclusive formulada em termos amplíssimos - o autor pretende que o Tribunal realize
através de manifestações e eventos públicos". A primeira questao que surge da "exegese" que exclua do âmbito de incidência do art. 33, §2º, da Lei de Drogas
leitura dessa passagem é: 0 que a autora quer dizer quando demanda a exclu- todas as condutas que representem uma defesa da legalização do consumo de
são de "qualquer exegese" do dispositivo que leva à criminal~zação da d:fesa drogas. Mas alguém poderia dizer que a conduta de nosso defensor hipotético
da legalização de drogas? "Exegese" aqui quer ~ize~ qual~uer mter~retaçao ou da legalização das drogas foi em alguma hipótese abrangida por referido artigo?
qualquer aplicação da Lei? Essas perguntas nao sao retoncas, po:s a falta de E alguém tem dúvida de que uma eventual denúncia criminal nesse caso estaria
uma resposta convincente a elas nos leva a concluir que o autor nao ;nedm as fadada ao fracasso?
consequências de seu pedido e, por isso, não consegue Identificar a tecmca de
Tais questões estão diretamente relacionadas com a imprecisão do pedido
controle adequada à ação que ela mesma propôs. Não é necessário explicitar
todas as possíveis e inesperadas consequências que podem decorrer desse pe· formulado pela Procuradoria da República. Isso por duas razões. Primeiro. O
dido. Dois exemplos serão suficientes para demonstrar os problemas que ele autor não se preocupa em definir o real alcance dos sentidos analisados no caso.
Isso faz com que a demanda não indique se a conduta de nosso segundo ator hi-
pode ensejar.
No primeiro deles, diversos amigos realizam uma festa para comemorar sua
formatura no curso de Direito. Um deles propõe que todos consumam drogas, 77 Sabemos que a tipicidade da conduta descrita, que, em função da presença ou ausência da intensão
do destinatário, pode configurar uma indução ou uma instigação ao consumo de drogas, não requer o
que não são suas e estão com uma terceira pessoa." Todos recusam. No entanto, resultado material. Acrescentamos o resultado simplesmente para reforçar que, neste caso, o argumento
de nosso autor hipotético surte efeitos sobre os destinatários.
76 Se a droga pertencer ao nosso ofertao te, sua conduta se enquadrará no crime do caput do art. 33, da Lei 78 Art. 33, § 3•, Lei de Drogas: "Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu
de Drogas- tráfico de entorpecentes. relacionamento, para juntos a consumirem".

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2!.! da lei de drogas: trivialização ...

patético estava ou não incluída no tipo penal em a~álise. Pior, se con~ideramws de que esse julgamento envolve um pedido de declaração parcial ela nulidade
que 0 julgamento da ADI 4274/DF afastou a mcidenCla de tal p~ece1t~ mc:Imi- ele uma das aplicações possíveis ela norma contida no texto em discussão. Isso
nador somente nos casos de manifestações públicas a favor da hberahzaçao do afastaria o problema do cabimento ela técnica e determinaria, ele forma clara, a
consumo de drogas, chegamos a um grave contrassenso: a conduta de nosso abrangência elos efeitos do provimento jurisdicional dessa ação.
debatedor continuaria a ser típica, enquanto a conduta de um grupo de pesso- Ainda no que se refere ao momento de interpretação ela lei, é necessário
as que defendessem as mesmas ideias em praça pública seria permitida. Só há observar a distinção italiana entre "interpretação aclequadora" e "interpreta-
uma solução para o problema: considerar que, desde o início, o dispositivo em ção corretora" da lei. 79 No primeiro caso, o juiz constitucional rechaça a leitura
tela não tinha aplicação ao caso de nosso defensor da legalização das drogas, da jurisdição ordinária com base em argumentos constitucionais; no segundo
pois não há razoabilidade em considerar sua conduta típica. Mas Isso mostra caso, o juiz constitucional rechaça a leitura com base em argumentos deriva-
também que 0 julgamento da ação não incide sobre todos os sentidos, ou nos dos elo próprio texto legal ou não derivados ela Constituição. Na ADI 4274/DF,
termos utilizados pela PGR "exegeses", possíveis e imagináveis da lei. Ele ataca exemplo de "interpretação adequadora" seria aquela que afasta a proibição das
somente aqueles razoáveis e delimitados durante o julgamento. manifestações com base na liberdade de expressão e de reunião; exemplo ele
o segundo paradoxo é mais grave e está relacionado ao nosso primeiro "interpretação corretora" seria aquela que afasta a mesma proibição em razão
exemplo. O que essa hipótese demonstra é que a procedência total da demanda de as condutas não se enquadrarem no tipo penal.
formulada pela PGR retira todos os sentidos possíveis da norma sindicada. Mas Francisco ]avier Díaz Revorio apontou os problemas causados pela "inter-
se 0 resultado pleiteado pela Procuradoria suspender absolutamente todas as pretação corretora" ao afirmar que
aplicações do preceito, inclusive as que impliquem real incitação ao co~su_m_o, "e! Tribunal Constitucional es e! intérprete supremo de la Constitución,
devemos então admitir que a demanda de interpretação conforme a ConstJtmçao pera no de la ley" e que "no hay razones constitucionales para indicar a los
é, na verdade, um pedido de declaração de inconstitucionalidade puro e simples jueces ordinarios [... ] cuál es la interpretación correcta de una ley". 80

do art. 33, §2º da Lei de Drogas. Esse paradoxo decorre de uma incompreensão Nesse sentido, sustentar que o art. 33, § 2º, da Lei ele Drogas, não seria cons-
de um dos limites dessa técnica: a interpretação conforme a Constituição não titucional porque eleve haver um sujeito determinado como destinatário da
pode desconsiderar a vontade, expressa ou implícita, do Legislador que editou conduta seria realizar uma interpretação corretora e funcionalmente ilegítima.
a norma. Mas no caso, a procedência incondicional do pedido tem justamente Em virtude dessas duas considerações, consideramos que o Ministro Ayres
esse efeito, pois o legislador pretendeu criminalizar o induzimento ou instiga- Britto e os ministros que lhe seguiram agiram corretamente no momento de
ção ao consumo, seja ele decorrente ou não da manifestação de pensamento. interpretação ela lei. Primeiro, porque não construíram normas ilegítimas a par-
A questão aqui, observe-se, não é ideológica ou de mérito. O problema é tir do dispositivo impugnado, mas tão-somente normas que eram possíveis à
técnico e de coerência argumentativa. A Procuradoria da República tem toda a luz do texto e dos elementos de interpretação, principalmente o sistemático e
liberdade para demandar a declaração da inconstitucionalidade do art. 3 3 da o teleológico. Segundo, porque não desconsideraram a interpretação corrente
Lei de Drogas. Para isso, pode utilizar argumentos os mais diversos, como a li- nos tribunais, em virtude de uma específica leitura do texto legal, procurando
berdade de ação e pensamento e a possibilidade de cidadãos livres e responsá- realizar o controle com base em argumentos constitucionais."
veis abdicarem de sua própria saúde, física ou mental. Mas se pretende alcan- A questão enfrentada pelos Ministros, então, foi a constitucionalidade da
çar esses objetivos, deve fazê-lo explicitamente e não esconder uma declaração possível tipificação de manifestações públicas a favor ela liberalização elo uso e
de inconstitucionalidade pura na roupagem de uma interpretação conforme a
Constituição. Não cumprir tal exigência implica não só uma desonestidade ar- 79 Cf. Revorio, 2011, pp. 67-68.
gumentativa. É também o ensejo para a dissolução da racionalidade da técni- 80 Cf. Revorio, 2011, p. 69.
ca. Todo esse emaranhado de contradições, que prejudica a compreensão do 81 Ao que parece, uma variante problemática de "interpretação corretora" é encontrada na argumentação
precedente, poderia ser evitado com a distinção da interpretação conforme a desenvolvida pelo Ministro Marco Aurélio relativa à necessidade de comprovação do dolo da conduta
Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto. Bastaria o autor deman- descrita no tipo penal em questão. Se isso é certo ou não, é uma questão a ser discutida pelos atores
incumbidos da análise da aplicação e interpretação concreta da lei- magistrados de primeiro e segundo
dar a exclusão da interpretação ou aplicação da lei em relação às manifestações grau, promotores e advogados. Não pelo Supremo, sobretudo quando ele atua em ações de controle
publicas à favor da legalização do uso e porte de drogas, para chegar à conclusão concentrado e abstrato de constitucionalidade.

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A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...
Guilherme Forma Klafl<e e Lucas Catib de Laurentiis

porte de drogas. A interpretação conforme a Constituição teria o ;feito de afas- recentes têm demonstrado que a exigência da expressão de um ideal comum
tara incidência do dispositivo quando o caso envolvesse o exerCICID do direito não pode ser levada ao extremo. Muitas vezes, esse ideal é tão abstrato ou plu-
de reunião e manifestação pública de pensamento. Em outras palavras, os possí- ral que não pode ser resumido ou expressado em palavras. É comum que os
veis sentidos para as palavras "instigar" e "induzir" deveriam ser confrontados participantes de manifestações não tenham plena consciência da finalidade que
com dois direitos fundamentais: o direito à livre manifestação de pensamento buscam com seus atos. Essa clareza de ideias e ideais pode surgir muitos anos
e 0 direito de reunião. A aplicação da interpretação conforme a Constituição se depois, mas pode também permanecer um mistério para os próprios partici-
desenvolve aqui com base no cotejo entre as normas construídas a partir do art. pantes. Esses casos demonstram que a liberdade de reunião e manifestação tem
33, § 2º, da Lei de Drogas, e as normas construídas a partir do art. Sº, V e XVI, da uma amplitude que muitas vezes supera a própria liberdade de expressão, pois
Constituição Federal de 1988. reuniões, até mesmo com caráter político, são realizadas mesmo que os partici-
Em relação aos parâmetros constitucionais, também incidem limites ~nter­ pantes não expressem verbal e claramente o fim a que vieram. 85
pretativos e de definição do parâmetro. Não houve problemas :m relaçao ao O debate mais polêmico surge quando consideramos as possibilidades de
último limite, uma vez que os direitos de liberdade de expressao e liberdade restrição do direito de reunião, como visto no tópico 2.3. Estamos aqui diante
de reunião são previstos em normas formalmente constitucionais, dotadas de de um direito fundamental com reserva qualificada." O tema é difícil e sua aná-
rigidez e com eficácia plena, capazes de bloquear normas infraconstitucionais lise exaustiva ultrapassa os limites desse artigo. De toda forma, apresentamos
que lhes sejam contrárias. Resta, portanto, a definição do conteúdo dos direitos. rapidamente nossa posição.
Há algum tempo, na jurisprudência do Supremo, o direito de reunião é con- O primeiro dever do poder público na regulamentação do exercício da li-
siderado um instrumento para a realização do direito à livre expressão de pen- berdade de reunião é fundamentalmente buscar uma posição de neutralidade
samento."' Mas será que isso sempre ocorre? Parece-nos que não, visto que, da no conflito. E independe aqui se a manifestação confrontada pela autoridade
mesma forma que há manifestações da liberdade de expressão descoladas da defende ideias extremas ou não. 87 Em qualquer desses casos Estado não pode
manifestação de pensamento, há reuniões públicas nas quais não ocorre o exer- tomar partido, seja à direita ou à esquerda do debate político. Sempre have-
cício da liberdade de expressão. E a razão para tanto é simples. Em uma primei- rá manifestações públicas que defendem ideias contrárias. Haverá aqueles que
ra interpretação, a liberdade de reunião era concebida como um instrumento são a favor da legalização do aborto; outros serão contrários. Existirão aqueles
voltado à defesa coletiva de ideias partilhadas e expressadas por determinado que pensam que o tratamento penal da pedofilia é indevido; outros contestarão
grupo de pessoas. 83 Essa é a visão que permanece viva na ju:isprudê~cia do essa conclusão. Muitos podem argumentar que a legalização do porte e uso de
Supremo Tribunal Federal. Isso indica que o conceito constituciOnal de liberda- drogas é necessária; outros podem se insurgir contra essa ideia. Não cabe ao
de de reunião estaria sujeito a condicionamentos naturais: seria preciso que um Estado dirimir esses conflitos. Ele simplesmente deve conferir igual voz a to-
grupo de pessoas reunidas compartilhassem de um ideal comum e buscassem dos os atores sociais. E se o Estado deve cumprir esse dever de neutralidade, o
atingir essa finalidade pela via de manifestações organizadas, estruturadas e
pacíficas." Nesse sentido, pessoas reunidas para assistir a um_ teatro e um gr~­
85 Apontando as contradições decorrentes da vinculação dos conceitos constitucionais de liberdade de
po de motoristas reunidos no trânsito de São Paulo não constituem uma mam-
expressão e direito de reunião, Jõrg lpsen observou que, segundo a própria jurisprudência do Tribunal
festação do direito de reunião. Só a partir do momento em que eles passassem Constitucional Alemão, que é a fonte dessa correlação conceitual, os limites da liberdade de expressão
a compartilhar um ideal comum e começassem agir para atingir essa finalidade, decorrem do conteúdo da manifestação (limite interno), enquanto os limites da liberdade de reunião
decorrem da defesa do bem comum (limite externo). Como essa correlação de limites internos e externos
haveria exercício do direito de reunião. ao direito pode ocorrer; é a questão que decorre da aparente contradição dos precedentes do BVerfG
Casos limites levaram a questionamentos: e se os participantes da manifes- quanto a esse ponto ( cf.lpsen, 2010, p. 152).
tação partilhassem de um sentimento, mas não de ideias comuns? Manifestações 86 Contra a aplicação dessa noção no modelo constitucional brasileiro, cf. Silva, 2009b.
87 Nesse sentido, cf. Pieroth e Schlinl\, 2010, p. 185. O Tribunal Constitucional alemão ainda vacila sobre o
tema. Passeatas neonazistas foram permitidas em Dresden, mas proibidas em Dortmund. Emblemática
82 Nesses termos, cf. o julgamento da ADI 1969, rei. Ministro Ricardo Lewandowski. ( é a posição da Corte sobre a chamada "Marcha em homenagem a Rudolf Hess", na cidade de Wunsiedel,
83 Esse é 0 sentido adotado, por exemplo, pelo Tribunal Constitucional Alemão. Na imagem difundida pela permitida pelo Tribunal de Karlsrühe entre 2001 e 2004, mas proibida a partir de 2005 e definitivamente
jurisprudência desse Tribunal, o direito de reunião seria a manifestação corporal (VerkOrperlichung) da banida por meio da decisão do 1º Senado 1 BvR 2150/08, de 4 de novembro de 2009. Cf. Gerlach, Wilmes
liberdade de expressão. A esse respeito, cf.: BVerfGE 104,92, (104). e Watzl<e, Unter Polízeischutz: Dresden und die Neonazi-Aufmiirsche, 17.02.2011, disponível em: <http:/f
www.dradio.defdlf/sendungen/hintergrundpolitik/1390851/>. último acesso em: 01 ºde julho de 2013.
84 °° Cf.: Ipsen, 2010, p. 151.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

judiciário deve seguir a mesma trilha. Não cabe a ele aferir se uma das partes ções seriam deduzidas dos "princípios" da razoabilidade e a proporcionalidade.
desses conflitos tem ou não razão. Por isso, não deve limitar a priori a possibi- Nessa linha em seu voto são apresentados quatro condicionantes que, segundo
lidade de ação e manifestação de qualquer grupo social. A atuação jurisdicional ele, decorrem tanto do texto legal quanto do texto constitucional. Relembramos
é aqui eminentemente supletiva: só quando a manifestação for realizada de for- as condições:
ma beligerante, será dado ao judiciário impedir sua realização. Se esse limite for 1) trate-se de reunião pacífica, sem armas, previamente noticiada às au-
toridades públicas quanto à data, ao horário, ao local e ao objetivo, e sem
ultrapassado, o Tribunal deixa a posição de mediador neutro de um debate de
incitação à violência;
ideias para assumir a defesa de uma das partes do conflito.
2) não haja incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes
O modelo constitucional brasileiro não deixa dúvidas a esse respeito. O úni- na sua realização;
co valor defendido pela Constituição de 1988 frente ao direito de reunião é a
3) não haja consumo de entorpecentes na ocasião da manifestação ou
paz social. E aqui devemos ter cuidado e observar os termos utilizados pelo evento público;
Texto constitucional. A Constituição não diz que "todos podem reunir-se para
4) não haja a participação ativa de crianças, adolescentes na sua realização.90
defender a paz" e sim que "todos podem reunir-se pacificamente". Ou seja, o
que se condiciona aqui é o exercício do direito de reunião. Não há nenhuma con- A primeira dessas condições é o que normalmente se considera serem os
dicionante relacionada ao conteúdo das ideias defendidas manifestação. Pode limites constitucionais do direito de reunião. Essa é uma opinião compatível
haver, portanto, manifestações que defendam ideais extremistas - como, por com a dos Ministros Ayres Britto e Celso de Mello, por exemplo. A segunda e a
exemplo, o anarquismo- mas que, por serem realizadas de forma pacífica, des- terceira decorrem da própria tipificação penal das condutas descritas. A quarta
frutam da proteção constitucional. Ao contrário, podemos nos defrontar com condição, por sua vez, não decorre do direito de reunião, mas de um princípio
hipóteses de reuniões em que os participantes defendam ideias aceitas pela so- de proteção da criança e do adolescente contra drogas que, segundo o Ministro
ciedade - a doutrina evangélica, por exemplo - mas que, por serem realizadas Luiz Fux, 91 se constrói a partir do art. 227, VII,§ 3º, da Constituição. 92
de forma violenta, não serão protegidos pelo direito fundamental de reunião. Mas ao determinar que o art. 33, § 2º, da Lei de Drogas, deverá ser lido, por
Observe-se, contudo, que, mesmo nesse último caso, o direito à liberdade de exemplo, com a restrição à participação de crianças e adolescentes, o Ministro
expressão e manifestação de pensamento não pode ser restringido, pois o con- Luiz Fux estabeleceu, de uma só vez que: (a) os direitos de reunião e à livre
teúdo da ideia defendida pelo ato violento não entra em colisão com qualquer manifestação devem ceder frente ao princípio da proteção da criança e do ado-
outro valor constitucional. 88 lescente; (b) nessa ponderação, a consequência necessária será a não participa-
Essas conclusões têm relação direta com o uso da técnica da interpre- ção de crianças e adolescentes nessas manifestações. Fica evidente que o modo
tação conforme a Constituição nesse julgamento. Desde o julgamento da como o parâmetro é interpretado tem grandes consequências para o resultado
Representação de inconstitucionalidade n. 14·17, a jurisprudência do Supremo final do julgamento.
tem indicado que a utilização da interpretação conforme a Constituição não Mas não só. O que temos aqui é um uso desvirtuado e excessivo da inter-
pode converter o Tribunal em legislador positivo." Isso é mais verdade quando, pretação conforme a Constituição. No caso, a desvirtuação decorre da não ob-
a pretexto de se interpretar uma norma legal em conformidade com normas servância da função dessa técnica. Quando aplicada no modo concentrado de
constitucionais, a Corte cria condicionamentos onde antes não existiam. O voto controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição é uma
do Ministro Luiz Fux na ADI 4274/DF é um exemplo representativo de nos-
sas preocupações quanto a esse ponto. Na linha do Ministro Gilmar Mendes, o
90 ADI4274/DF, pp.12-13.
Ministro Fux defende que existam outros limites para o direito de reunião e à
91 Voto do Min. Luiz Fux na ADPF 187/DF, p. 13.
livre expressão. Segundo o raciocínio esboçado por esse Ministro, tais limita-
92 Art. 227, VII,§ 3º, da Constituição Federal de 1988: "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
88 Isso mostra que a correlação dos julgamentos do caso Ellwanger e da ADI ora em análise não existe e que alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
o argumento a esse respeito desenvolvido pelo Ministro Gil mar Mendes é incorreto. convivência familiar e comunitária,além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
89 Para uma pequena amostra de casos nos quais a função de legislador negativo do STF é destacada, cf. ADI exploração, violência, crueldade e opressão. § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes
3046-9/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j.15.04.2004; ADI 3026-4/DF, Rei. Min. Eros Grau,j. 08.06.2006; aspectos: VII· programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem
ADI3510/DF, Rei. Min.Ayres Britto, j. 29.05.2008; ADI 153/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 29.04.2010. dependente de entorpecentes e drogas afins".

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técnica de controle de constitucionalidade voltada a aferir a conformidade dos técnica tanto no momento de interpretação da lei, quanto no momento de in-
sentidos possíveis e razoáveis do texto normativo. Não é uma via para o ma- terpretação da Constituição. O Tribunal não se desviou de uma função de legis-
gistrado formular juízos de valor ou advertências aos destinatários da norma. lador negativo e nem extrapolou os limites ao interpretar a lei e a Constituição.
Aliás, se há um impedimento ao consumo de drogas ilícitas, essa proibição não Passamos, então, à análise de uma outra questão, essa mais fundamental,
está de forma alguma relacionada ao dispositivo em comento. Ao contrário, ela relativa à necessidade dessa medida. Trata-se basicamente de discutir se uma
decorre de outro artigo da Lei de Drogas, que proíbe o porte ou a aquisição de declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade não tem, no julga-
substâncias não permitidas (art. 28, Lei 11.343/2006). mento do dispositivo impugnado, precedência sobre a interpretação conforme
Fora isso, na afirmação de que crianças e adolescentes não podem partici- a Constituição ou a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução
par de manifestações públicas há contrassenso argumentativo. Isso porque o de texto. Segundo Carlos Blanco de Morais, a necessidade de uma declaração
único fundamento apresentado pelo Ministro Luiz Fux para essa limitação é que de inconstitucionalidade pura pode existir quando o significado impugnado é
crianças e adolescentes não devem ser expostas ao consumo de drogas.93 Mas seriamente adotado pela jurisdição ordinária ou pela Administração Pública, ou
foi o próprio Ministro quem disse que nas manifestações à favor da liberaliza- quando ela é útil para a consecução de outras finalidades. 94
ção do porte e uso dessas substâncias não poderia haver o consumo delas. De Nesse contexto, surge a seguinte questão: será que a decisão da ADI4274/
duas, uma: ou ao ver do Ministro Luiz Fux a condicionante que impede o con- DF era mesmo necessária? Essa questão conduz a duas considerações. A pri-
sumo de drogas em manifestações públicas não vale para as hipóteses em que meira delas: mesmo com os condicionamentos apresentados pela doutrina e a
crianças e adolescentes façam parte do ato; ou a limitação (4) está em conflito jurisprudência, a interpretação conforme a Constituição continua a ser uma téc-
com as condições (2) e (3). nica de controle polêmica cuja utilização pode causar efeitos pouco previsíveis.
Não seria nem mesmo necessário expor essas contradições para concluir Por si só, esse fato deveria acarretar a desconfiança e a contenção do Tribunal
que as condições apresentadas pelo Ministro Fux são descabidas. O simples fato que se veja diante de um pedido de interpretação conforme a Constituição.
de utilizar o julgamento de uma ADI como oportunidade para formular adver- Disso decorre uma segunda ordem de considerações: os riscos da utilização
tências, que já se encontram expressas em lei, e sugestões, que decorrem do ju- de uma técnica de controle que pode reconfigurar o sentido global da norma
ízo de valor do julgador, às autoridades e à sociedade demonstra que a decisão debatida devem ser compensados pela necessidade premente da causa e pela
desse magistrado é simplesmente a expressão de um conselho e de um desejo certeza do resultado do julgamento.95 Por isso, uma decisão que utilize a inter-
pessoal. A interpretação conforme a Constituição mostra então seu lado mais pretação conforme a Constituição e simplesmente repita o que já se encontra
trivial, apelativo e perigoso: sob o manto desse nome- não podemos mais falar expresso no texto constitucional é uma decisão desnecessária e que, no limite,
aqui de técnica - o julgador expressa sua vontade de domínio e tutela, não só suprime a possibilidade do debate jurídico a respeito do texto legal.
dos sentidos da lei, mas também da liberdade individual. Deriva daí uma questão fundamental: a decisão de interpretação conforme
Essas advertências têm grande importância na análise da aplicação da in- a Constituição era necessária no caso das manifestações a favor do uso de subs-
terpretação conforme a Constituição. Como essa técnica decisória pressupõe tâncias proibidas? Parece-nos que sim, mas em parte. Essa conclusão deve ser
a vinculação do julgador aos limites do teor literal do dispositivo impugnado bem compreendida. É verdade que esse tema foi intensamente debatido na ju-
e à função de legislador negativo, uma decisão que condicione o exercício do risprudência até o início 2011. Grande parte das decisões liminares proferidas
direito de reunião a limites não expressos no texto constitucional representa pelas instâncias de base impedia a realização de marchas a favor da liberaliza-
uma desvirtuação não só da técnica de controle em questão, como também da
regulamentação constitucional da matéria. 94 Nos dizeres do autor português, "Situações existem que a disposição é impugnada com o sentido
normativo que correntemente lhe é dado pela jurisprudência dos tribunais comuns. Ora, nesse caso, não
No caso em comento, a conclusão a que chegamos até este momento é que a faz sentido que o Tribunal a preserve através de uma decisão interpretativa de rejeição que lhe atribua
interpretação conforme a Constituição - rectíus: a declaração de inconstitucio- um significado que, embora verossímil, não ofensivo da vontade objectiva do legislador e minimamente
respeitoso da letra da disposição, nunca tenha sido seriamente considerado ou estado presente na
nalidade parcial sem redução de texto do art. 33, §2º, da Lei de Drogas - reali- aplicação jurisdicional ou administrativa da mesma disposição ou, ainda, que não possua sentido útil"
zada pelo Supremo no julgamento da ADI 4274/DF se ateve aos limites dessa (Morais, 2005, p. 338).
95 Em posição contrária, defendendo o caráter radical da declaração de inconstitucionalidade e a
93 Voto do Min. Luiz Fux na ADPF 187 /DF, p. 13. precedência da interpretação conforme a Constituição, cf. Morais, 2005.

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ção de drogas. Mas havia outras que permitiam a realização desses eventos. 96 premissas: (a) por força do art. 28, parágrafo único, da Lei Federal nº 9.868/99,
Por que não permitir que o debate se realizasse de forma natural na jurisdição as decisões de interpretação conforme a Constituição e declaração de incons-
de base? Essa questão tem duas respostas. titucionalidade parcial sem redução de texto possuem efeitos vinculantes em
A primeira é processual. O problema das demandas julgadas pelos Tribunais relação ao judiciário e ao Executivo; (b) a decisão tomada na ADI 4274/DF, em
estaduais está no tempo do julgamento dos processos. Na maioria deles, o pro- que pese a nomenclatura utilizada, foi uma decisão de inconstitucionalidade
vimento jurisdicional que reavaliava o impedimento da manifestação ocorria parcial sem redução ele texto. Fixadas essas premissas, consideramos que o jul-
quando a data marcada para o evento já tinha passado. Em consequência, esses gamento da ADI 4274/DF (e também da ADPF 187/DF) conduziu às seguintes
processos foram extintos por perda do objeto.97 Esse é um problema recursal consequências no plano jurídico:
importante que indica a incapacidade dos Tribunais oferecerem respostas às (a) o ordenamento jurídico brasileiro não permite mais ao Poder Executivo,
demandàs sociais no tempo necessário. em especial aos órgãos de segurança pública, proibir a realização de reuniões
Disso decorre a segunda razão da decisão do Supremo: a necessidade de pacíficas de pessoas para manifestações públicas a favor da descriminalização
respostas prontas e céleres exige a concentração de poderes decisórios, mesmo ou da legalização do uso de drogas, quaisquer que sejam. Isso não significa, po-
que isso signifique suplantar a competência da jurisdição de base. Surge então rém, que não observadas as condições constitucionais para o direito à reunião
o real fator que impôs a necessidade da utilização da interpretação conforme a o Poder Executivo deva permanecer inerte. A falta de comunicação às autorida-
Constituição nesse julgamento: a decisão do Supremo, que nada mais faz do que des pelos responsáveis do evento continua a ensejar a possibilidade de repa-
repetir o que já se encontra expresso no texto constitucional, é uma afirmação ração dos danos urbanísticos causados. E manifestações que se utilizem meios
de sua autoridade decisória que contém um recado à jurisdição de base. Com violentos continuam a permitir a atuação policial;
ela a Corte indica que os tribunais devem entregar aos jurisdicionados decisões (b) o ordenamento jurídico brasileiro não confere mais base jurídica ao
céleres e úteis. Caso contrário, a competência decisória desses órgãos poderá Poder judiciário para proibir a realização de reuniões pacíficas de pessoas para
ser, a qualquer tempo, superada. manifestações públicas a favor da descriminalização ou da legalização do uso
Se há algo que essa argumentação e essas conclusões demonstram é a de drogas, quaisquer que sejam. Isso não significa, porém, que o art. 33, § 2º,
variabilidade de finalidades e usos da técnica da interpretação conforme a da Lei de Drogas, deixou de criminalizar condutas. Isso porque as condições
Constituição na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Em alguns casos apresentadas pelo Ministro Luiz Fux no julgamento da ADI 4274/DF apenas
ela será uma técnica de controle de constitucionalidade; em outros, uma téc- explicitavam aquilo com que todos os ministros concordaram e que se encon-
nica de interpretação. No caso que analisamos, ela foi simplesmente a porta trava expresso na Lei de Drogas em vigor: o cometimento dos delitos, como por
de entrada para a realização de um ato de política judiciária. Ocorreu aqui a exemplo o porte e a incitação ao consumo de drogas ilícitas, enseja a aplicação
suspensão do poder decisório dos juízes de primeiro grau no que diz respeito de sanções penais. Somente a reforma da lei possibilitaria, por exemplo, o con-
a uma das interpretações possíveis da norma questionada. Mas, neste caso, a
sumo de drogas nessas manifestações. A conclusão também não significa que
necessidade dessa medida de concentração de poder não está relacionada às
foi imposta uma determinada forma de interpretar o dispositivo à jurisdição de
qualidades intrínsecas da norma discutida. Ao contrário, o que faz a decisão de
base. Desde que não adotem interpretações que excluam a possibilidade de ma-
interpretação conforme ser aqui necessária e adequada ao caso é a persistência
nifestações públicas, os juízes.continuam livres para buscar outras interpreta-
das decisões proferidas pela jurisdição de base brasileira- em termos técnicos,
ções, e caberá ao STF dirimir os eventuais conflitos futuros com a Constituição;
o "direito vivente"- que se negava a incorporar dados normativos mínimos e
expressos no texto constitucional. (c) a sanção aplicada às interpretações questionadas na ADI 4274/DF tem
eficácia ex tunc. Isso porque, como foi aqui analisado, o que se operou nesse
3.4. Consequências do julgamento julgamento foi uma verdadeira declaração de inconstitucionalidade, com efi-
Neste último tópico da análise crítica, apresentamos as consequências do cácia erga omnes e efeitos aparentemente retroativos,"' tendo em vista que
julgamento no plano jurídico e no plano fático. Antes de tudo, salientamos duas a decisão foi proferida em sede de controle judicial, principal e abstrato de
constitucionalidade;
96 Foi o caso da decisão do judiciário do Rio de Janeiro no HC 2009.001.090247-7.
97 Há inúmeros julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo em que essa situação ocorreu. 98 CF. Ramos, 1994.

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(d) a decisão na ADI 4274/DF não criou uma doutrina constitucional em aferição do cabimento da técnica interpretativa, se saiba que as interpretações
matéria de liberdade de reunião por dois motivos. Isso por duas razões. Em questionadas são constitucionais ou inconstitucionais, o que constitui o núcleo
primeiro lugar, o próprio Supremo Tribunal Federal recusou-se a fixar parâme- do mérito e determinará se o pedido de utilização da técnica interpretativa é
tros para casos futuros no julgado, restringindo-se a julgar tão-somente o ob- procedente ou improcedente, não se ele é admissível. Observamos ainda que o
jeto colocado em discussão. Em segundo lugm; com base nos votos anexados elemento decisivo que determina o cabimento e uma demanda interpretativa
no acórdão final não se atingiu maioria absoluta em favor ou da tese das restri- de controle é a existência de sentidos possíveis e razoáveis do dispositivo legal
ções apenas constitucionais, ou da tese da reserva legal implícita, de modo que discutido. Esse fator faz com que a admissibilidade da técnica se torne racional-
não se sabe com exatidão o pensamento atual do colegiado sobre a matéria. A mente aferível, o que evita o problema da "trivialização" das demandas de inter-
publicação do acórdão na ADPF 187/DF poderá esclarecer o entendimento do pretação conforme a Constituição. Argumentamos também que cabe ao autor
Tribunal, isso se todos os votos dos Ministros forem apresentados por escrito. da ação demonstrar essa plausibilidade das interpretações, ressaltando apenas
Finalmente, no plano fático, a decisão do STF pacificou o tema das "marchas a divergência entre os autores deste artigo quanto à necessidade ou não de que
da maconha", de tal sorte que não aconteceram mais incidentes causados por essa demonstração se dê por meio de uma efetiva controvérsia jurisprudencial;
decisões de tribunais proibindo as manifestações. Observa-se, portanto, que o (c) no julgamento do mérito da ação, os Ministros respeitaram os limites
objetivo de afastar dúvidas e incertezas acerca da interpretação do tipo penal que orientam a aplicação das técnicas interpretativas. Eles construíram as nor-
foi plenamente atingido no tocante a essas marchas. Outros casos, porém, pode- mas a partir do dispositivo legal por meio da conjugação de elementos de inter-
rão surgir e exigir um refinamento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal pretação- caso contrário, estariam fazendo controle de constitucionalidade so-
Federal. bre normas ilegítimas, em possível afronta à função jurisdicional. Eles também
fixaram os parâmetros constitucionais e definiram seu conteúdo mínimo. Por
4. CONCLUSÕES fim, atuaram em respeito à função de legislador negativo e utilizaram a técni-
ca interpretativa quando ela se apresentou necessária para resolver uma gra-
Nosso trabalho teve dois objetivos. Um deles foi a descrição pormenorizada ve controvérsia na jurisdição ordinária, que se mostrava incapaz de responder
dos argumentos e fatos relacionados ao julgamento da constitucionalidade de adequadamente aos anseios da sociedade;
manifestações favoráveis à descriminalização do uso de drogas ilícitas. O segun-
(d) em relação às consequências do julgamento, a decisão na ADI 4274/DF
do objetivo foi crítico. Questionamos e analisamos os argumentos dos Ministros
apenas excluiu as normas apontadas como inconstitucionais, não indicando uma
que apresentaram seus votos no julgamento da ADI 4274/DF. Esse objetivo está
única ou várias leituras constitucionais- o que comprova não ser o caso de uma
relacionado à coerência técnica do julgamento. Ao final do percurso, conside-
interpretação conforme a Constituição. A exclusão se deu com efeitos ex tunc,
ramos que o Supremo Tribunal Federal não atuou de forma ilegítima, embora
erga omnes e vinculantes em relação ao Poder judiciário e ao Poder Executivo.
tenha cometido muitas imprecisões técnicas e argumentativas. Sintetizamos as
O julgamento, porém, não fixou uma doutrina constitucional apta a indicar aos
principais conclusões:
demais aplicadores do direito qual a orientação do Supremo Tribunal Federal
(a) conceitualmente, houve um equívoco na forma como a autora da ação em matéria de restrição à liberdade de reunião e à liberdade de expressão. No
se referiu à técnica a ser utilizada, engano seguido também pelos Ministros que plano fático, não houve mais problemas com essas manifestações.
atuaram nesse julgamento. Na verdade, não se estava diante de uma interpre-
Consideramos, portanto, que o conceito de interpretação conforme a
tação conforme a Constituição em qualquer das feições que se queira dar a essa
Constituição (ou a técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem
técnica. Utilizou-se, ao contrário, uma declaração de inconstitucionalidade par-
redução de texto) está longe de ser trivial. Mostramos como a diferenciação das
cial sem redução de texto;
técnicas tem consequências relevantes. Além disso, demonstramos como uma
(b) no julgamento do cabimento da ação, o voto do Relator está fundamenta- apreciação crítica da sua utilização, feita de modo analítico, pode trazer contri-
do em uma confusão entre os juízos de admissibilidade e mérito. Argumentamos buições para a aplicação dos conceitos, para a discussão das finalidades a que as
que o juízo de cabimento do pedido de técnicas interpretativas deve ser feito técnicas se prestam e para o posicionamento da doutrina como capaz de apon-
tão somente para se comprovar a existência de mais de uma interpretação pos- tar os acertos e desacertos das decisões judiciais, mesmo aquelas proferidas
sível a partir do dispositivo impugnado. Dessa forma, não é necessário que, na pela mais alta Corte do nosso país.

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Guilherme Forma Klafke e Lucas Catib de Laurentiis A interpretação conforme a constituição do art. 33, § 2º da lei de drogas: trivialização ...

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