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ROBERTO ROMBOLI

MARCELO LABANCA CORRÊA DE ARAÚJO


(ORGANIZADORES)

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E
TUTELA JURISDICIONAL DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS

Belo Horizonte
2015
JusTIÇA CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL DOs DIREITOs FUNDAMENTAIS 41

fundamentais, inclusive e especialmente em relação ao poder político e ao legis-


lador, como expressão da supremacia da Constituição (poder constituinte) em
relação à lei (poder constituído).
No conhecido parágrafo 78 de "O Federalista", de Hamilton, afirmou-se
que os juízes, diante de uma antinomia entre uma lei fundamental e outra que
CAPÍTULO 3
não o seja, devem proferir suas decisões conforme a primeira, da mesma forma
A FuNçÃo INTERPRETATIVA DO Juiz CoMUM como na sucessão temporal das leis prevalece a lei sucessiva em relação à anterior
(a exemplo de uma antinomia temporal, quando se faz prevalecer a norma mais
E A INFLUÊNCIA SoBRE ELA ExERCIDA
1
recente em relação à antiga). Em ambos os casos, tratar-se-ia de uma regra de
PELA ]uRISPRUÊNCIA CoNSTITUCIONAL interpretação proveniente da natureza das coisas.
É partindo dessas premissas e do reconhecimento do papel dos juízes como
Roberto Romboli2 garantidores dos direitos fundamentais previstos na Constituição que, após al-
guns anos, naquele país seria realizado o primeiro modelo de justiça constitucio-
nal com caráter difuso, declarativo e incidental, introduzido por via jurispruden-
Sumário: 1. A transformação do papel do juiz com a entrada em vigor da Constituição. cial a partir da decisão Marbury versus Madison, de 1803.
2. A Constituição como fundamento de uma nova teoria da interpretaçã~ das lezs. 3. A
influência de técnicas decisórias da Corte constitucional sobre os podere;, znte~pre;atz;:os
Bastante diversa, e em certos aspectos quase oposta, foi a situação na
do juiz: as sentenças interpretativas de rejeição. 4. Continua: sentença: de prznczpz~ . 5; Europa continental, onde se assistia a uma passagem traumática do Estado
Continua: a obrigatoriedade de interpretação confonne a Constzttuçao. 6. As reaçoes a absoluto para o Estado liberal através da ruptura com o velho ordenamento e
expansão da função interpretativa do juiz: o caso Engla:'O, o c~njlito entre _Poderes e~ re- à necessidade, portanto, de estabelecer um catálogo de direitos a serem preser-
cusa do Cheft de Estado de expedir o Decreto-Lei. 7. Os lzmztes a atzvzdade znte~pretatzvo­
vados e fortalecidos.
-criativa do juiz: o caso Pezzella e o caso da translatio iudicii; a tutela dos "novos_di~eitos"
e a diversa legitimação do legislador e do juiz. 8. A atividade interpretatzvo-crzatzva do A tarefa de garantidor da atuação e da efetividade destes direitos não foi,
juiz diante de uma atuação do legislado~; da sua omissão ou também diante de um direzto entretanto, reconhecida aos juízes, mas sim prioritariamente ao corpo político,
reivindicado com fundamento no texto constitucional ou na lei. uma vez que as Constituições surgem, principalmente, como um programa polí-
tico que deve ser concretizado especialmente por parte do legislador, que passa,
portanto, a assumir o papel central para esse propósito.
1. A TRANSFORMAÇÃO DO PAPEL DO JUIZ COM A ENTRADA
O mesmo, entretanto, não pode ser dito para o juiz que, ao contrário, é
EM VIGOR DA CONSTITUIÇÃO
visto com desconfiança, ressentindo-se da posição assumida de funcionário a
serviço do poder real e considerado, portanto, potencialmente hostil em relação
O papel do juiz no ordenamento e as s~as diversas transformaç?es,s~fridas a?
aos novos direitos reconhecidos pelas Constituições, como também desprovido
longo do tempo encontram, em grande medida, fundamento na mais tipiCa e deli-
de qualquer legitimidade democrática.
cada atividade desenvolvida pelo mesmo, a saber, a interpretação dos textos norma-
As fontes do direito reduzem-se, assim, substancialmente apenas à lei e níti-
tivos que se colocam, consequentemente, em estreita conexão com a modificação e
do é o primado da escolha política sobre a jurisdição, esta exercida por funcioná-
a ampliação das técnicas interpretativas utilizáveis. Dentre as ma~s recente_s técn~cas,
rios, mecânicos aplicadores da lei, aos quais não é reconhecida nenhuma margem
encontram-se a interpretação conforme, a comparação ou as ratwnes deczdendz das
de discricionariedade, nem mesmo em sede de sua interpretação. Os juízes são a
cortes e juízes estrangeiros.
mera "bouche de la !oi", segundo a célebre definição de Montesquieu.
Apesar da aproximação ocorrida nos últimos anos, é inegável a influência
O eventual conflito entre a lei e a constituição não é, consequentemente,
da posição historicamente assumida nos diversos ordenamentos pela figura do
resolvido da forma supramencionada em relação ao ordenamento estadunidense,
juiz e pela atividade jurisdicional. Na experiência estadunidense, o papel atribuí-
mas, ao contrário, através da exaltação da democracia representativa. A lei, en-
do ao juiz é aquele de garantidor dos princípios constitucionais e dos direitos
quanto aprovada por representantes diretos do eleitorado e, portanto, expressão
Tradução de l3nmo Madeira Campos Kchrlc c Marcelo Labanca Corrêa de Araújo. da soberania popular, não pode não ser "justa" e tampouco pode ser posta em
Professor Catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Pisa, Itália. discussão por quem quer que seja, nem mesmo pelos juízes.
42 RoBEIUO RoMBOLI I MARCELO LABANCA (ÜRGS.)
Jusn<:A CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL nos DIREITOS FuNDAMENmls 43

A onipotência do legislador e a ausência de limites impedem, portan.to, A presença na Constituição de princípios, assim como de regras, acarreta
qualquer hipótese de controle de constitucionalidade sob o aspecto substanCial, inevitavelmente uma ampliação do poder interpretativo dos juízes (pense-se, em
impossibilitando, assim, o despertar de uma justiça constitucional. particular, nos chamados direitos sociais).
A situação sofre uma profunda mudança com as constituições sucessivas à
segunda guerra mundial, aprovadas em decorrência e em resposta às experiências 2. A CONSTITUIÇÃO COMO FUNDAMENTO DE UMA NOVA
dos ordenamentos totalitários e autoritários nazistas e fascistas, os quais fizeram TEORIA DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
ruir a ilusão de uma lei justa enquanto expressão da soberania popular, fican-
do evidente como uma maioria parlamentar possa aprovar, seguindo as regras A entrada em vigor da Constituição, em consideração às características que
procedimentais e as maiorias previstas, leis (lembramos aqui as raciais) flagrante- a definem, produz aquela que foi considerada como uma verdadeira e própria
mente contrárias a direitos fundamentais invioláveis da pessoa humana. "revolução", em relação ao ordenamento precedente.
Em função disto, surge a necessidade de proteger certos princípios e direitos No estado liberal monoclasse, como visto, o direito se expressa essencial-
fundamentais das escolhas da maioria, registrando-os em um documento solene, mente e quase exclusivamente através da lei formal do parlamento, que constitui
como a constituição, e dotando-a, contemporaneamente, de uma força jurídica a única verdadeira e mais importante fonte do direito.
superior à lei. Nascem, assim, as constituições rígidas e a necessidade de identi- No tocante, então, à jurisdição vale a absoluta primazia da lei e o juiz é con-
ficar um juiz e um procedimento através do qual a garantia dessa superioridade sequentemente visto como um sujeito que, em consideração à própria capacidade
fará nascer diferentes modelos de justiça constitucional. Estes modelos, face à técnico-jurídica, é chamado a aplicar a mesma, nela buscando a vontade do legisla-
desconfiança na autoridade jurisdicional anteriormente citada, se orientarão na dor. A "revolução" trazida pela Constituição não decorre tanto do fato de que uma
direção de um sistema concentrado, e não difuso, caracterizado pela instituição nova fonte vem a ser introduzida no sistema previamente vigente, mas das caracte-
de um novo e particular tipo de juiz, identificado em um Tribunal constitucio- rísticas deste novo tipo de fonte: uma fonte hierarquicamente supra-ordenada em
nal ou em uma Corte constitucional ou, ainda, como no caso francês, onde a relação à lei (rigidez) e organizada mais por princípios que por regras.
desconfiança era e é ainda maior, em um menos significativo (já pelo nome) Diferentemente do período pré-constitucional, orientado pela absoluta pre-
Conselho constitucional. valência do momento "político" da formação do direito, a previsão da superiori-
As repercussões da aprovação e da entrada em vigor de uma constituição dade hierárquica da Constituição e, portanto, dos limites intransponíveis pelo le-
rígida aparecem imediatamente evidentes e podem, para o momento, ser sinteti- gislador ordinário, torna decisiva a atividade dos juízes (em estreita consonância
zadas principalmente em dois aspectos, o primeiro concernente ao controle de com aquela da Corte constitucional) para o respeito daqueles limites e, portanto,
constitucionalidade das leis e o segundo ao poder interpretativo do juiz. para a atuação dos princípios constitucionais.
Considerando o primeiro aspecto, a escolha do modelo de justiça constitu- Tais princípios devem servir, de um lado, para desenvolver uma função unifi-
cional comporta, além do que foi falado, a opção por um sistema concentrado, cadora para a interpretação de cada lei, muitas vezes expressão de interesses particu-
incluindo a identificação de vias de acesso que permitam ao juiz constitucional lares e, por outro lado, para guiar o juiz na identificação da solução especifica para
intervir sobre o controle da lei e, consequentemente, sobre a garantia dos direitos o caso particular, diante da dificuldade da lei em prever e regular os casos concretos.
fundamentais em relação às escolhas legislativas realizadas. Disso decorre uma indubitável expansão da função de interpretação da
Na Itália, o sistema identificado pelas disposições constitucionais e também Constituição por parte do juiz, que faz definitivamente desaparecer a sua ima-
pela legislação ordinária que lhes dá aplicação direta, delineia, de maneira mais gem como "boca da lei" ou como mecânico aplicador de uma regra já totalmente
ou menos consciente, em razão do caminho um pouco acidentado que foi per- contida e presente na disposição da lei.
corrido, uma forma de controle que vê na autoridade judiciária um elemento de Como escreve Livio Paladin (Le fonti del diritto italiano, 1996), com a che-
extrema importância para a realização do sistema. gada da constituição "desaparece a ideia do sistema normativo como algo perfei-
O segundo aspecto, evidente e intimamente ligado ao primeiro, deriva da com- to e definitivamente acabado, ontologicamente posto e, portanto, pré-existente
preensão formada (uma vez superada a distinção entre normas constitucionais pro- ao momento interpretativo" e "assume, em seu lugar, a visão realista de um sis-
gramáticas e normas preceptivas) que a Constituição não representa (ou não repre- tema 'em movimento', sujeito a continuas evoluções: dependente não apenas de
senta apenas) um programa político dirigido ao legislador, mas tem a natureza de novas disciplinas supervenientes, capazes de deslocar o sentido e o alcance destas
fonte do direito, como tal dirigida também ao juiz e por ele diretamente aplicável. mesmas disciplinas em relação a outras matérias ou áreas do ordenamento, mas
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também dependente da intrínseca mudança de diretrizes interpretativas e apli- violações das competências legislativas reconhecidas no título V da segunda
cativas, ressalvado, todavia, o inicialmente disposto na Constituição e nas leis. parte da Constituição).
Especialmente frente aos direitos sociais e às questões que são levadas ao Se a isso acrescentamos que as regiões ordinárias, como é sabido, iniciaram
juiz para a concreta realização desses direitos, o mesmo vê consideravelmente am- a funcionar concretamente somente no início dos anos Setenta do século passa-
pliados os espaços interpretativos, fazendo referência e aplicando os princípios do, disto decorre que a única via de acesso à Corte constitucional é precisamente
constitucionais. a incidental, que assume, portanto, o papel não de "uma" das vias de acesso, mas
A intuição de Piero Calamandrei em relação à Carta constitucional como sim da "única" via de acesso.
fundamento de "uma nova teoria de interpretação das leis", não foi imediata- Daí a importância central que assume a sensibilidade do Judiciário frente
mente acolhida pela magistratura que, com base na VII disposição transitória da aos novos princípios constitucionais e o papel absolutamente crucial da conexão
Constituição, era também convocada a exercer um tipo de controle difuso de e colaboração entre a autoridade judiciária e o Juiz constitucional.
constitucionalidade das leis, no aguardo da entrada em funcionamento da Corte Se isto é evidente no que diz respeito ao momento da investidura (a Corte
constitucional. Os juízes, principalmente os da Corte de cassação, procurando depende inevitavelmente da sensibilidade e do dinamismo dos juízes a quibus, não
manter uma separação entre o plano da legalidade e o da constitucionalidade, podendo se auto investir das questões de constitucionalidade), o mesmo vale tam-
desvalorizaram o significado e a importância da Constituição como fonte de bém para a eficácia das decisões do Juiz constitucional, cabendo em larga medida à
direito, diretamente aplicável por parte do juiz. autoridade judiciária dar andamento às mesmas e fazer a sua aplicação.
A proposito, é sintomática a escolha verificada entre o efeito da ab-rogação
e o da inconstitucionalidade que ocorreria após a chegada da Constituição com 3. A INFLUÊNCIA DE TÉCNICAS DECISÓRIAS DA CORTE
relação às leis anteriores. A jurisprudência da cassação orienta-se pelo primeiro CONSTITUCIONAL SOBRE OS PODERES INTERPRETATIVOS
sentido, vindo, assim, a considerar a Constituição como lex posterior mais que DO JUIZ: AS SENTENÇAS INTERPRETATIVAS DE REJEIÇÃO
como lex superior e reconhecendo o efeito ab-rogativo apenas na presença de
uma clara incompatibilidade entre a disposição constitucional e a legislativa. Os espaços, mais ou menos amplos, reconhecidos à função interpretativa
Consequentemente é reconhecida aplicação direta apenas às disposições constitu- do juiz, são afetados, portanto, por algumas técnicas de juízo seguidas pela Corte
cionais de conteúdo especifico, enquanto essa mesma aplicação é negada àquelas constitucional (lembramos, em particular, o juízo de razoabilidade), como tam-
contendo princípios, que, consideradas como tais, são dirigidas somente ao po- bém de especiais técnicas decisórias adotadas.
der legislativo (para que lhe dê aplicação), e não ao jurisdicional. Esta é a origem Nesse sentido, gostaria de indicar algumas, a meu ver, especialmente signifi-
da distinção entre disposições constitucionais programáticas e preceptivas (e, no cativas, que determinaram uma incontestável expansão e valorização da atividade
interior das mesmas, entre disposições de aplicação direta, indireta ou diferida), interpretativa do juiz.
efetuada, em particular, pela jurisprudência da cassação nos anos 1948/1956. A primeira destas é, sem dúvida, representada pelas sentenças interpretati-
Enquanto as primeiras teriam sido relacionadas exclusivamente ao poder vas de rejeição, adotadas desde os primeiros anos de funcionamento da justiça
legislativo, aplicáveis, portanto, somente após a intervenção do mesmo, as se- constitucional e através das quais a Corte declara não fundada a questão de
gundas, se preceptivas e de aplicação direta, teriam produzido a ab-rogação das constitucionalidade, porém fornece, ao mesmo tempo, uma intepretação da dis-
anteriores disposições de lei. posição impugnada que permite evitar a declaração de inconstitucionalidade. A
De fundamental importância para o papel do juiz é a posição que lhe é lei, em outros termos, é "salva" da inconstitucionalidade, desde que o juiz siga a
atribuída no nosso modelo de justiça constitucional. À diferença, com efeito, intepretação indicada pela Corte, como a única constitucionalmente conforme.
de outros modelos que naqueles anos, e nos imediatamente sucessivos, foram A adoção de tais decisões determina inequivocamente a tomada de po-
criados, o italiano assenta-se quase que exclusivamente na via incidental, não sição do Juiz constitucional contra a separação (diversamente da Corte de
sendo previstas formas de recurso direto, nem por parte de cada interessado, Cassação) entre o plano da legalidade (a interpretação da lei compete ao juiz
nem por parte de sujeitos públicos, tais como o Presidente da República, as comum) e o da constitucionalidade (a intepretação da constituição compete à
minorais parlamentares ou outros. A única via principal é, de fato, constituí- Corte constitucional).
da pelo recurso do Estado (isto é, do governo) em relação às leis regionais e Em concreto, frente a uma questão de legitimidade constitucional levanta-
das regiões em relação às leis nacionais (mas somente para reclamar eventuais da por um juiz no decorrer de um julgamento, a Corte constitucional precisava
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decidir se ela deveria se limitar a assumi-la da maneira como foi interpretada cassação, pouco inclinada a aceitar as interpretações da lei sugeridas pela Con-
pelo juiz, ou, ao contrario, se poderia, por sua vez, interpretar a lei de forma sulta·\ a ponto de ensejar aquela que atualmente é conhecida como a "guerra
eventualmente diferente em relação àquela propriamente realizada pelo juiz, com entre as duas Cortes".
isso superando a distinção entre os dois planos supramencionados. A superação da mesma ocorre através da valorização do "direito vivente"\
O recurso às sentenças interpretativas e o significado atribuído às mesmas após a qual, na presença da formação de uma intepretação amplamente comparti-
torna-se, portanto, um dos elementos mais relevantes do particular momento lhada em jurisprudência, isto é, de um direito vivente, o juiz poderá escolher entre
vivenciado pela justiça constitucional e pelos relacionamentos entre a Corte e o seguir uma própria interpretação conforme, diferente do direito vivente considera-
juiz comum. O aspecto, de qualquer forma, mais importante, muito embora não do inconstitucional, ou impugnar este último perante a Corte constitucional, que,
adequadamente percebido em um primeiro momento, é aquele pelo qual, na base decidindo a questão, poderá entender que o direito vivente está em acordo com
da supramencionada jurisprudência constitucional, parece evidente como uma a Constituição (endossando, portanto, o mesmo) ou declará-lo inconstitucional,
lei possa dar margem a diferentes interpretações, todas abstratamente possíveis, porém sem apresentar próprias interpretações alternativas. Estas últimas serão
e como a escolha entre elas deve ser orientada à luz da constituição, privilegian- obviamente possíveis na falta de um direito vivente ou em uma situação em que
do aquela mais alinhada com o dizer constitucional. Parece derivar, em outros este possa ainda ser considerado em formação e com o qual a Corte viria, por-
termos, que a operação conduzida pela Corte constitucional através dos pronun- tanto, a colaborar, com as próprias interpretações.
ciamentos interpretativos pode (ou deve) ser efetuada, também, por parte do juiz
comum, ao decidir as controvérsias a ele apresentadas. 4. CONTINUA: AS SENTENÇAS ''DE PRINCÍPIO':
Na primeira fase, a Corte, através das decisões interpretativas, visa alcançar
o melhor resultado possível naquele momento para a realização dos princípios Um segundo tipo de decisão, particularmente interessante para as nossas
constitucionais. Especialmente tendo em consideração a inércia do parlamento, finalidades, é representado pelas já mencionadas sentenças aditivas de princípio,
é atribuído à disposição impugnada um significado conforme a Constituição, através das quais a Corte declara a inconstitucionalidade da norma impugnada,
que salva a primeira da declaração de inconstitucionalidade, evitando, assim, porém não procede à sua substituição com outra norma específica, diretamente
a criação de um vazio normativo. O mesmo tipo de decisão (eventualmente aplicável, mas, limita-se a indicar o princípio constitucional de inspiração para
"duplicada", caso necessário, por uma pronúncia interpretativa de acolhimento) se proceder à supramencionada substituição ou, de qualquer maneira, para a
serve, também, para superar as interpretações restritivas da lei adotadas pela Cor- solução do caso concreto.
te de Cassação. O então presidente da Corte Mauro Ferri observou como "em geral a Corte
Em vista disso, a atividade de interpretação da lei conforme a constituição adota decisões aditivas de princípio, quando à ilegítima inércia do legislador
é exercida pela Corte quase que exclusivamente, em uma posição de substancial corresponde uma sua discricionariedade em fornecer a prestação negada", e que
monopólio, mesmo podendo, em teoria, esta ser exercida certamente também tal "discricionariedade pode inclusive ocorrer no caso de negação de tratamentos
pelos juízes comuns. que correspondem a liberdades fundamentais".
A Corte procura não salientar tal possibilidade, para evitar os riscos ine- A decisão aditiva de princípio, inspirada, portanto, principalmente pelo
rentes a uma interpretação conforme "difusa", análogos àqueles que haviam respeito da discricionariedade do legislador, resulta composta de duas partes dis-
induzido o constituinte a escolher um controle concentrado de constituciona- tintas: uma demolitória da norma impugnada e a outra contendo um princípio,
lidade. Tais riscos eram consistentes principalmente no temor que o reconheci- fruto de uma ponderação de princípios constitucionais elaborados pela Corte.
mento do poder interpretativo da Constituição, por parte dos juízes comuns, e As duas partes resultam não apenas distintas, mas também dotadas de dife-
que a possibilidade de superação das dúvidas de constitucionalidade através da rentes eficácias, sendo a primeira vinculativa, e a segunda, pelo contrário, colo-
intepretação, acabassem privando a autoridade da Corte do papel de juiz das cada em um plano de indicação, advertência 5 ou sugestão com força meramente
leis, bem como na desconfiança em relação à sensibilidade constitucional do
Judiciário daquela época e na capacidade do mesmo em desenvolver a função Nota dos tradutores: por "Consulta" deve-se entender a Corte constitucional. A expressão vem do nome do prédio, situado em
de intepretação da Constituição. Roma, que serve de sede à Corte: Pala::::o del/a Consulta.
Nota dos tradutores: a expressão italiana diritto vivente indica o direito que brota a partir da reiterada interpretação realizada c
A escolha do Juiz constitucional leva quase que inevitavelmente a mo- consolidada pela jurisprudência.
mentos de tensão com a autoridade judiciária e, especialmente, com a Corte de Nota dos tradutores: aquilo que na ltúlia se chama de decisão mônito.
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persuasiva, ressalvada, obviamente, a possibilidade, para a Corte, de "duplicar" o Nesse mérito, acredito que o fundamento da posição tomada pela Corte
pronunciamento com outro de inconstitucionalidade total. deva identificar-se na crença pela qual, em muitos casos, uma melhor solução é
Também e, sobretudo, considerando a autonomia das duas diferentes par- obtida pelo juiz com base nas características do caso concreto, e não através de
tes, a segunda (indicação de "princípio") será inserida, nos anos sucessivos, não uma decisão demolitória da Corte tendo eficácia geral.
apenas em relação às decisões de inconstitucionalidade, mas também de rejeição O respeito ao papel do legislador decorre do reconhecimento ao mesmo, e
e de inadmissibilidade. só ao mesmo, de uma (solicitada) intervenção contendo uma norma de carácter
Ressalvada a supracitada finalidade desses tipos de decisões, na prática geral, sem, com isso, permitir-lhe impedir, por meio de sua própria inércia, a
veio a criar-se uma gama de hipóteses diferentes entre si, de acordo com o cará- tutela e a realização dos valores constitucionais indicados no "princípio".
ter mais ou menos específico e pontual do "princípio" indicado pela Corte, e, Significativo, a este respeito, é o recente caso acerca da possibilidade de
sobretudo, da possibilidade que o mesmo pudesse ser realizado somente após a reabrir um processo criminal concluído com a condenação do acusado, quan-
atuação do legislador ou, prescindindo deste, em particular, possa ser realizado do o mesmo tiver sido julgado pela Corte de Estrasburgo, em violação ao
pelos juízes comuns. princípio do processo justo (artigo 62 da Convenção europeia dos direitos
A indicação de "princípio" parecia, portanto, capaz de poder trilhar dois dife- humanos - CEDH).
rentes caminhos: o do legislador e o do juiz, podendo-se realizar, quando o segun- A Corte Constitucional lançou uma ignorada decisão "mônito" ao Legis-
do não tivesse sido demonstrado possível, aquele que foi chamado de " duplo efei- lador, invocando a sua intervenção, porque, face à inércia deste último, foi ela
to paralisante" (PARODI, La sentenza additiva a dispositivo generico, 1996), uma "forçada" a utilizar o instrumento mais forte e demolitório, ou seja, a declaração
vez que o juiz, no caso de inércia do legislador, não poderia ter aplicado a norma de inconstitucionalidade, declarando inconstitucional o artigo 630 do Código de
declarada inconstitucional, nem tampouco resolvido o caso de forma autônoma. Processo Penal, na parte em que não previa outra hipótese de revisão da sentença
Na realidade, a natureza concreta do juízo incidental e a obrigação para o ou da decisão penal condenatória, a fim de conseguir a reabertura do processo,
juiz de fornecer uma resposta, não sendo prevista a possibilidade de suspender o quando isso fosse necessário para se conformar a uma sentença definitiva da
processo na espera da intervenção do legislador, levaram à conclusão que o juiz, Corte europeia dos direitos do homem.
através de seus poderes de interpretação e do uso da analogia, teria, ainda assim, Na motivação da decisão, e visando a sua aplicação, a Corte se dirige tanto
que solucionar o caso, tomando como base o "princípio" expresso pela Corte. ao legislador quanto ao Juiz, embora em termos diferentes: "competirá ( ... ) aos
O então presidente Granata teve que afirmar que, com as sentenças aditivas juízes comuns extrair da decisão os corolários necessários no plano de aplica-
de princípio "declara-se a inconstitucionalidade da ausência de previsão de um ção, utilizando as ferramentas hermenêuticas à sua disposição" e "ao legislador,
mecanismo idôneo a tornar efetivos os direitos em questão, deixando, todavia, providenciar e eventualmente disciplinar, na forma mais rápida e oportuna, os
ao legislador o poder de identificar tal mecanismo na linha abstrata e habili- aspectos que se demonstrem carentes de regulamentação própria".
tando, no entanto, o juiz comum para encontrar a regra do caso concreto no A tarefa do legislador é, portanto, expressa em termos de "eventualidade",
princípio expresso pela Corte". enquanto a do juiz, em termos de "dever-poder", ressaltando a delicadeza e pecu-
O legislador é, portanto, solicitado a intervir para a realização do "princí- liaridade da operação de interpretação ("o juiz deverá proceder a uma avaliação
pio" indicado, mas é, porém, livre para escolher quando e como fazê-lo, na cons- de compatibilidade de cada disposição individual relativa ao juízo de revisão.
ciência de que a sua inércia significará um substancial endosso a que a escolha Deverão, com efeito, ser consideradas inaplicáveis as disposições que parecerem
venha a ser operada em nível jurisprudencial, caso a caso. inconciliáveis, no plano lógico-jurídico, com o objetivo perseguido (... ) primor-
Na sequência do quanto foi observado, nos questionamos, para além das dialmente (... ) em referência à tradicional preordenação do juízo de revisão ape-
finalidades em relação às quais as sentenças aditivas de princípio foram pensadas, nas à absolvição do condenado" ) ( sent. 113, de 2011).
se elas tinham representado de fato uma maior valorização das escolhas discri-
cionárias do legislador ou, ao contrário, se elas proporcionaram uma substancial 5. CONTINUA: A OBRIGATORIEDADE DE INTERPRETAÇÃO
ampliação do poder interpretativo e "criativo" dos juízes, vendo alguma contra- CONSTITUCIONALMENTE CONFORME
dição na afirmação segundo a qual a Corte, para respeitar a discricionariedade
do legislador, não poderia fazer uma decisão autoaplicativa por meio da especi- A terceira e última referência que pretendo fazer é à exigência da assim
ficação do "princípio", decisão esta que caberia apenas ao juiz. nominada interpretação constitucionalmente conforme.
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Em várias oportunidades, a Corte constitucional salientou que o juiz, fren- A experiência das aditivas de princípio e a da interpretação conforme teve,
te às varias possíveis interpretações, tem, em primeiro lugar, a obrigação de esco- em determinada medida, o efeito de transformar a questão de constituciona-
lher qual delas pretende seguir, excluindo que ele possa levantar uma questão de lidade em questão de interpretação, levantando em alguns a dúvida acerca da
constitucionalidade com o único fim de solicitar à Corte a solução de uma conformidade da segunda experiência ao nosso modelo de justiça constitucional
mera dúvida interpretativa, uma vez que isso é de competência da autoridade (G.U. Rescigno) e interligando a primeira ao mais amplo fenômeno de jurisdi-
judiciária, ou, ainda, que uma exceção de constitucionalidade possa ser pro- cionalização do ordenamento (P. Falzea).
posta à Corte com o único objetivo fazer prevalecer uma interpretação de uma Na realidade, o convite para operar através da interpretação conforme pa-
lei em relação à outra, devendo ser o juiz a escolher a interpretação conforme rece residir no âmbito dos relacionamentos de necessária colaboração entre o
a Constituição. juízo comum e a Corte constitucional e, assim como sempre tem acontecido
Nesse sentido, uma afirmação muito importante, muitas vezes repetida nos para as sentenças interpretativas de rejeição, parece pacífico como a sugestão
últimos anos pelo Juiz constitucional, é aquela segundo a qual uma lei não pode desta última, por quanto seja proveniente de uma autoridade, não pode, todavia,
ser denunciada e declarada inconstitucional apenas porque é possível dar a ela considerar-se dotada de efeito vinculante para os destinatários. A possibilidade
interpretações inconstitucionais, mas o deve ser apenas quando for impossível de a Corte em impor a própria vontade é, em verdade, limitada às declarações de
dar a ela interpretações constitucionalmente conformes. inconstitucionalidade, que são e continuam sendo de sua exclusiva competência.
A tendência que emerge da supramencionada jurisprudência constitucional Isto leva a excluir que a superação, quando possível, das dúvidas de constitu-
é claramente no sentido de instar o juiz a fazer o uso dos próprios poderes de cionalidade através da interpretação conforme possa ser qualificada como a realiza-
interpretação visando avaliar, previamente, se há a possibilidade de superar as ção, de fato, no nosso ordenamento de um controle difuso de constitucionalidade.
dúvidas de constitucionalidade através de uma interpretação "adequadora", evi- Por esta razão, não me parece aceitável a posição daquele que, ao contrário,
tando, assim, envolver na solução da dúvida a Corte constitucional, que parece acredita que o convite (até mesmo como condição de admissibilidade) para pro-
recentemente empenhada a valorizar precisamente a atividade de interpretação ceder na tentativa de uma interpretação conforme, mesmo quando esta última
da lei e da Constituição (e da primeira à luz da segunda) por parte do juiz, evitan- for sugerida pela Corte, conduza a uma transformação do modelo de justiça
do ela própria assumir interpretações "militantes", como inicialmente ocorria constitucional previsto na Constituição, possível apenas através de uma revisão
com as decisões interpretativas de rejeição. da Constituição (ainda G.U. Rescigno).
O pedido da Corte ao juiz para seguir, quando possível, uma interpretação Acredito, ao invés, compartilhável a posição manifestada a este respeito por
da norma impugnada que viesse a salvar a mesma da declaração de inconstitucio- aqueles que falaram do nosso modelo como de "controle não difuso, porém cola-
nalidade, inicialmente apresentada como um convite, um pedido ao juiz a quo, borativo", na realística consciência de que a proteção dos direitos fundamentais
foi, a partir de 1998, convertida em uma obrigação. no nosso país não pode ser garantido apenas por quinze juízes da Consulta, mas
Na verdade, a questão de constitucionalidade é atualmente declarada inad- também - e acrescentaria principalmente - pelos juízes comuns, com base nas
missível (ou, mais frequentemente, manifestamente inadmissível) se há, em juris- recomendações e orientações elaboradas pela Corte Constitucional (Modugno).
prudência, uma leitura diferente da disposição impugnada que supere as dúvidas
de constitucionalidade e, em qualquer maneira, no caso em que o juiz remetente 6. AS REAÇÕES À EXPANSÃO DA FUNÇÃO INTERPRETATIVA
não demonstre ter experimentado a possibilidade de alcançar uma interpretação DO JUIZ: O CASO ENGLARO, O CONFLITO ENTRE PODERES
"conforme" a Constituição. E A RECUSA DO CHEFE DO ESTADO EM EXPEDIR O
O fundamento da posição assumida pela Corte a este respeito é absolu- DECRETO-LEI
tamente o mesmo subjacente, desde 1998, à obrigação do juiz de proceder à
interpretação conforme, ou seja, a convicção pela qual, em muitos casos, uma A expansão do papel do juiz determinou uma série de reações, especialmen-
mais eficaz proteção dos direitos constitucionais pode ser efetuada pelo juiz, que te no que diz respeito à já mencionada atividade "criativa" do juiz, no sentido
é quem pode considerar as especificidades do caso, no lugar de uma intervenção que ao mesmo competiria a proteção, mas não a determinação dos direitos, e que
demolitória, necessariamente de repercussão geral, da Corte, capaz de causar pro- estaríamos testemunhando à criação de uma espécie de imperialismo judicial,
blemas ulteriores e diferentes (discricionariedade do legislador e muito mais) que com consequente marginalização dos sujeitos políticos-representativos e esvazia-
podem induzir a Corte à sua não adoção. mento do poder legislativo ou a criação de um único grande poder judiciário,
52 ROBERTO ROMBOLI f MARCELO LABANCA (ÜRGS.) JusTIÇA CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS 53

onde iriam trabalhar lado a lado os juízes e a Corte Constitucional, compacta- Além do que anteriormente foi escrito, pode ser útil lembrar a questão rela-
mente contraposto, em função anti-majoritária, ao poder político. tiva à possibilidade, para o marido, que houvesse dado o seu consentimento para
Expressão quase emblemática dessa atitude pode ser vista no caso que viu a inseminação heteróloga da esposa, proceder depois à negação de paternidade,
o Parlamento levantar um conflito de competências entre poderes em relação à nos termos do art. 235 do Código Civil.
sentença da Cassação que decidiu acerca do pedido de suspensão do tratamen- Também neste caso, como se sabe, há tempos o Parlamento estava discutin-
to que mantinha em estado vegetativo permanente, há longos anos, a jovem do para disciplinar a matéria.
Eluana Englaro. O Juiz a quo, seguindo ante litteram o ensinamento que pareceria emergir
O Parlamento, com o supramencionado conflito, denunciou invasão de do recurso do legislativo, havia levantado a questão da constitucionalidade dessa
competências por parte da Cassação, acusada de ter produzido a radical sub- disposição, na parte em que, na falta de uma disciplina de inseminação artificial,
versão do princípio de separação dos poderes, criando do caso concreto uma não descartava a sua aplicabilidade ao caso concreto.
disciplina inovadora, não extraível do ordenamento vigente. A Corte, observando "uma situação de carência do atual ordenamen-
Era ainda salientado como isso poderia assumir especial relevância em rela- to, com implicações constitucionais", procede à identificação dos princípios
ção à matéria de qua, uma vez que, para a disciplina dos direitos constitucionais constitucionais relevantes na matéria e conclui no sentido que "a identificação
sujeitos à reserva de lei, "a lei é o meio 'privilegiado', destinado à conformação" de um razoável ponto de equilíbrio entre os diferentes bens constitucionais en-
desses direitos. A razão consistiria no fato que "a recondução do assunto em volvidos, respeitando a dignidade da pessoa humana, pertence primariamente
questão para o âmbito do circuito da representação política parlamentar permite às avaliações do Legislador. No entanto, na atual situação de carência legislati·
assegurar a participação das mais diferentes componentes da sociedade civil, aí va, compete ao juiz buscar, no sistema normativo total, a interpretação idônea
incluída a expressão das comunidades científica, cultural, religiosa. Segundo uma capaz de assegurar a proteção dos supramencionados bens constitucionais" (grifo
abordagem que parece de dificil contestação, o recurso à lei permite respeitar o nosso) (sent. 347/1998).
princípio do art. 67 Const. na adoção de escolhas de concreto interesse de toda a Porquanto concerne ao caso Englaro, a Corte Constitucional tem, como
comunidade nacional", especialmente na presença de uma disciplina de direitos desejável e esperado, solucionado o conflito levantado pelas Câmaras, julgando·o
fundamentais reservados à lei. Alguns parlamentares, que participaram dos deba- inadmissível, em sede deliberativa, por falta do requisito objetivo (ord. 334/2008).
tes em plenária, haviam observado como "esta sentença representa uma tentativa A corte lembrou a própria jurisprudência em relação aos limites entre os
de influenciar o parlamento que está se preparando para tratar do mesmo assun- quais é permitido colocar uma decisão jurisdicional como objeto de um conflito,
to. Uma sentença inevitavelmente acaba afetando o comportamento do parla- sem transformar o mesmo em um "atípico meio de gravame em contraste aos
mento em uma direção ou em outra. É uma evidente invasão" (on. Buttiglione). pronunciamentos dos juízes", excluindo que, na espécie, as providências jurisdi-
No recurso do Parlamento, ainda, verificada a possibilidade de duas dife- cionais poderiam qualificar-se como "meras telas formais para exercer, ao invés,
rentes possíveis leituras, observa-se que somente ao Parlamento competiria "de- funções de produção normativa" e evidenciando como, ao contrário, os reque-
satar o nó" e não ao juiz, que, para atingir o resultado a que chegou, deveria ter rentes fizessem valer principalmente supostos errares in iudicando.
levantado a questão da constitucionalidade da legislação vigente, na parte em que O Juiz Constitucional conclui significativamente afirmando que "o caso
não permite tal resultado. processual que deu origem ao presente juízo ainda não se exauriu, e que, por
Acredito que parece totalmente evidente como a abordagem adotada pelo outro lado, o parlamento pode, ainda, em qualquer tempo, adotar uma específica
Parlamento no recurso em questão é colocada em termos totalmente conflituo- regulamentação da matéria, com base em adequados pontos de equilíbrio entre
sos com a evolução anteriormente indicada, marcando, em determinado sentido, os bens fundamentais constitucionais envolvidos".
o ressurgimento da distinção entre normas constitucionais programáticas e nor- Quando já se haviam iniciado os processos de desligamento previstos no
mas preceptivas e o retorno à concepção de uma Constituição como documento protocolo, o governo aprovou um decreto lei com o fim declarado de impedir
político dirigido ao legislador que deve implementá-lo e não também como fonte a execução do pronunciamento da Corte de apelação de Milão. Contudo, o
do direito imediatamente aplicável, igualmente pela autoridade judiciária. Chefe do Estado, pela primeira vez na história da República, recusou-se a assi-
Igualmente evidente é o contraste com os ensinamentos há tempo manifes- nar o decreto.
tados pela Corte Constitucional em relação à atividade interpretativa dos juízes e As razões da recusa, extraíveis da carta enviada pelo Chefe de Estado, antes
à necessidade de uma leitura constitucionalmente conforme a lei. da aprovação do decreto ao Presidente do Conselho, são identificáveis, a meu
54 ROIJERTO ROMIJOLI/ MARCELO LABANCA (ÜRGS.) JusTIÇA CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS 55

ver, não tanto, como alguém já pode ter argumentado, na falta de necessidade e encontrar no ordenamento uma solução para o caso concreto toda vez que exista
de urgência do decreto (que não justificaria a não rejeição em hipóteses em que uma aparente lacuna normativa- recentemente, em uma decisão importante acerca
fosse evidente a ausência dos requisitos constitucionais do artigo 77 Const.), mas da constitucionalidade da disciplina civilista (na parte em que não prevê a possibili-
sim na clara violação dos princípios essenciais do nosso ordenamento constitu- dade de casais do mesmo sexo de recorrer ao instituto do casamento), argumentou
cional, como aquele do exercício dos direitos constitucionais e da separação dos que, na interpretação do artigo 29 da Constituição e da noção de casamento ali
poderes, uma vez que o decreto pretendia impedir o exercício de um direito, prevista, não é possível dar a ela determinados significados enquanto "não seria uma
derivado de princípios constitucionais, comprovado através de uma série de pro- simples releitura do sistema ou de abandonar uma mera prática de interpretação,
nunciamentos da autoridade judiciária, a respeito das quais a Corte Constitucio- mas sim, de efetuar uma interpretação criativa" (sent. 138, de 2010) (grifo nosso).
nal excluiu, com a mencionada decisão, que se possa dar importância a eventual Entre os limites que são claramente colocados à atividade interpretativa-
ultrapassamento dos limites postos pela Constituição à atividade jurisdicional. -criativa do juiz está, sem dúvida, a necessidade de respeitar o texto normativo e
as regras da interpretação.
7. OS LIMITES À ATMDADE INTERPRETATIVO-CRIATIVA São significativos, a esse respeito, dois casos aproximados, que se apresen-
DO JUIZ: OS CASOS PEZZELLA E O CASO DA TRANSLATIO taram na jurisprudência constitucional e que deram origem a um "diálogo", às
IUDICII; A PROTEÇÃO DOS "NOVOS DIREITOS" E A vezes até mesmo vivaz entre a Corte Constitucional e a de Cassação.
DIFERENTE LEGITIMAÇÃO DO LEGISLADOR E DO JUIZ No primeiro caso, conhecido como o caso Pezzella, a Corte constitucional
propôs uma interpretação da disposição impugnada, declarando a mesma como
O tema dos limites da atividade jurisdicional lembra, de imediato, aquele a única constitucionalmente correta, enquanto a Cassação a considerou em con-
bastante conhecido e debatido concernente ao caráter "criativo" da interpreta- traste com a formulação literal da lei e, portanto, não praticável, solicitando ao
ção do juiz, em relação ao qual podemos até dizer que a literatura é realmente juiz Constitucional a remoção do obstáculo que se interpunha à leitura sugeri-
interminável. da, através de uma declaração de inconstitucionalidade. Frente à persistência da
Uma parte da doutrina, expressando uma posição que hoje pode ser con- Corte constitucional em reiterar a única interpretação correta, a Cassação achou
siderada absolutamente dominante, há tempos solucionou o problema posi- não ser vinculada à mesma, e seguiu uma leitura diferente. O juiz constitucional,
cionando-se em termos totalmente definitivos sobre o assunto e, portanto, de portanto, novamente provocado por um outro juiz referente à mesma questão,
severa critica em relação àqueles que ainda colocavam em discussão a natureza declarou, portanto, inconstitucional a norma na interpretação adotada pelo juí-
criativa da atividade jurisdicional. Assim, há alguns anos, Mauro Cappelletti zo de legitimidade (Cassação).
definiu o caráter criativo da jurisprudência como sendo uma "verdade trivial" e, A Corte Constitucional, com efeito, tem evidenciado a tentativa de, na
em seguida, Gaetano Silvestri falou, em relação ao juiz que extrai da lei o único medida do possível, salvar a disposição impugnada de um pronunciamento de-
significado possível, pré-constituído através da única interpretação correta, de molitório de inconstitucionalidade através de uma interpretação "adequadora"
"um mito totalmente desacreditado e desde já tão mergulhado em refutações da mesma, considerada possível e precisamente indicada nas decisões anteriores,
tanto teóricas como práticas, que tornam supérflua e repetitiva a reprodução de "inclusive visando evitar a formação de lacunas no sistema, particularmente críti-
assuntos contrários". Já Ugo Rescigno tem, mais recentemente, declarado: "que cas quando a disciplina censurada refere-se à liberdade pessoal". Tendo em conta
os juízes criem eles também normas para o caso individual sobre o qual opinam que as Seções Unidas da Corte de Cassação decidiram não poder acompanhar a
é tanto evidente que surpreende o fato de ainda ser necessário discutir a questão". interpretação sugerida pela Corte constitucional e indicada como a única consti-
O aspecto em questão parece, portanto, não tanto aquele da natureza cria- tucionalmente possível, dando assim origem, a um "direito vivente" contrastante
tiva da atividade jurisdicional, mas aquele de estabelecer os limites entre os quais com os princípios constitucionais, para a Corte constitucional não ficou outra
a mesma pode ser considerada legitimamente exercida, sendo que a extrapolação alternativa senão a declaração de inconstitucionalidade do direito vivente que se
desses limites realiza a invasão de um espaço que legitimamente pertence a ou- formou (sentença 299, de 2005).
tros, espaço que pode ser protegido, portanto, através do instrumento do confli- A segunda está relacionada ao problema da translatio iudicii, que registrou
to de atribuições entre poderes do Estado. duas intervenções das nossas Cortes em tempos bastante próximos entre si (Cas-
A própria Corte Constitucional - que, como já mencionado, tem nos últi- sação, seções unidas civis, 22 de fevereiro de 2007, n. 4.109 e Corte Constitucio-
mos anos valorizado bastante a intervenção do Juiz, inclusive com o propósito de nal, 12 de março de 2007, n. 77).
56 ROBERTO ROMBOLI/ MARCELO LABANCA (ÜRGS.) JusncA CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL DOS DmEITOS FuNDAMENTAIS 57

A situação parece diferente da anterior, porque desta vez é a Cassação A natureza rígida da Constituição ensejaria, com efeito, para uma operação
que, modificando fundamentalmente a jurisprudência, seguiu uma leitura desse gênero, o processo da reforma constitucional. Assim, com a supramencio-
constitucionalmente conforme a lei, e a Corte Constitucional que, apesar de nada expressão, deve-se mais propriamente entender a possibilidade que a noção
tudo, declarou a inconstitucionalidade da lei em seguida, utilizando os mesmos de "direitos invioláveis" ou direitos fundamentais receba uma atuação concreti-
parâmetros constitucionais em relação aos quais a Cassação já havia efetuado zadora por meio da intervenção do legislador ordinário e também por parte da
a intepretação conforme. A Corte constitucional, decidindo sobre a questão, jurisprudência, embora com modalidades e limites diferentes, sendo claramente
poucos dias após o pronunciamento interpretativo "conforme" da Cassação, diversa a sua legitimação para a criação do direito.
destacou a própria jurisprudência, segundo a qual sempre que seja possível uma Entre os limites que são postos está, portanto, a necessidade do respeito ao
leitura constitucionalmente conforme, esta deve ser seguida e, portanto, a ques- texto. Por isso, pode-se concordar com Massimo Luciani quando considera o
tão constitucional torna-se manifestamente inadmissível, mas considerou que art. 2 o da Constituição uma espécie de principio-válvula que garante a dinâmica
isso não podia valer no caso da espécie, contestando os argumentos pelos quais do patrimônio constitucional dos direitos, porém sempre entre as coordenadas
a cassação considerarou solucionável de iure condito a questão de constituciona- fixadas pelo texto, na justa consideração que a individuação de um "novo" direi-
lidade e, em particular, aquele pelo qual faltaria no ordenamento uma proibição to coloca, inevitavelmente, a necessidade de que o mesmo venha a ser balanceado
expressa da translatio nas relações entre juiz comum e juiz especial. com os outros "já existentes".
A Corte constitucional chega, por fim, a uma declaração de inconstitucio- A legitimação da atividade de produção do direito, por parte do legislador,
nalidade, apesar de a sentença das seções unidas da Cassação poder ser consi- conecta-se ao relacionamento de representação direta do eleitorado, a quem irá
derada ao menos como um direito vivente em formação, e apesar, também, do responder pelas próprias escolhas e, portanto, as modalidades da intervenção são
fato de que a Cassação tivesse se achado capaz de resolver e superar a exceção de tais que caberá somente a ele estabelecer se e quando fazê-lo, e com que especifico
constitucionalidade por meio de uma interpretação conforme. conteúdo. Ao legislador é permitido também, através do exercício do próprio
O que a Corte Constitucional submete à crítica não é tanto a falta de poder normativo, contrastar eventuais interpretações consideradas não corretas
alcance através da via interpretativa da superação das dúvidas de constitucio- que sejam dadas às próprias leis, através da aprovação de leis de interpretação
nalidade, mas a utilização errônea, por parte das Seções Unidas, do poder de autêntica que podem prever, também, a sua aplicação para processos em anda-
interpretação e da validade dos argumentos colocados à base das conclusões mento (leis em diferentes oportunidades consideradas constitucionais pela Corte
alcançadas, dando a impressão de querer salientar como estas, de alguma for- constitucional) e a ele permanece, assim, a última palavra também em relação
ma, abusaram dos próprios poderes interpretativos, excluindo a presença nor- às declarações de inconstitucionalidade das próprias leis pois tem o poder de re-
mativa de uma proibição, ao revés, existente, cuja eliminação seria, portanto, forma constitucional (embora seja desejável que esse poder venha a ser utilizado
possível apenas pela ação do legislador ou da Corte Constitucional através da apenas rarissimamente e em situações absolutamente excepcionais).
declaração de inconstitucionalidade. Diversa, pelo contrário, deve ser considerada a fonte de legitimidade da ati-
Em síntese, com base nos dois casos supramencionados, podemos con- vidade normativa, no sentido mencionado, do juiz, que encontra primeiramente
cluir que, por um lado, a Corte Constitucional não tem instrumentos, exceto uma série de restrições e de limitações, a partir obviamente da letra da lei e das
os de persuasão, para impor ao juiz comum a própria interpretação da lei, regras de interpretação comumente aceitas.
conforme a Constituição e, por outro lado, os juízes comuns não podem, Elemento legítimo de primordial importância, em contraposição com o
apelando-se à necessidade de uma interpretação conforme a Constituição, ex- que acontece com a atividade política, é constituído pelo que tem sido chamado
trapolar determinados limites e, em especial, aqueles que lhes são impostos por alguns de "processualidade" do agir do juiz (Cappelletti) e, por outros, mais
pelos textos da lei interpretada. recentemente, de "armadura de ferro", com a qual o juiz deve proceder (Di Gio-
O tema dos limites da atividade interpretativa-criativa do juiz colocou-se vine), de forma tal a colocar um intervalo visível entre a escolha política geral
particularmente em relação à proteção dos "novos direitos". e a decisão do caso concreto. Pretendo referir-me ao princípio dispositivo, pelo
A feliz expressão "novos direitos" não deve, entretanto, ser tomada ao pé qual o Juiz deve agir somente se solicitado pelas partes interessadas (ne procedat
da letra e levar a pensar no fenômeno pelo qual os mesmos, não previstos no iudex ex officio), no respeito das garantias de imparcialidade, da proteção do
texto constitucional, são "criados" mais ou menos ex novo pela jurisprudência contraditório, da obrigação de decidir sob qualquer forma e, também, àquele
constitucional ou pelos juízes ordinários. fundamental motivação das de próprias decisões.
58 ROBERTO ROMBOLI /MARCELO LABANCA (ÜRGS.) JusTIÇA CoNSTITUCIONAL E TuTELA JuRISDICIONAL DOS DIREITos FuNDAMENTAIS 59

Em tudo isto, pode-se considerar que, hoje, consubstancia-se o significado da lei) capaz de atribuir-lhe um significado constitucionalmente conforme e,
do princípio constitucional da legalidade e de sujeição do juiz somente à lei quando isso não for possível, levantar a questão de legitimidade constitucional.
(rectius ao direito). A produção do direito pela ação do legislador e do juiz O problema coloca-se em termos obviamente diferentes quando o legislador
ocorre, pois, certamente com formas e modalidades diversas e ambos os sujeitos considere não efetuar uma escolha e não intervir para ditar uma disciplina qualquer.
operam no ordenamento segundo diferentes formas de responsabilidade. Como Nesses casos, para os fins do assunto em exame, acredito que se deva fazer
bem escreve Alessandro Pizzorusso, o ato legislativo é voltado diretamente para uma distinção dos direitos para os quais se busca proteção, se eles possuem seu
produzir direito e impõe uma regra para o futuro, enquanto o ato jurisdicional fundamento no texto constitucional ou em um texto com força de lei.
é voltado para solucionar uma controvérsia com base em normas pré-existentes, No primeiro caso, visando não frustrar o significado assumido em matéria
somente com o efeito indireto de produção normativa e, enquanto o primeiro é da Carta constitucional, não parece possível reconhecer ao legislador, ou seja, à
alicerçado na vontade política, o segundo encontra o seu fundamento na forma maioria parlamentar, a possibilidade de frustrar, na essência, com a sua inércia, a
da razão e é qualificável como fonte cultural. existência de um direito constitucional. É o que parece ocorrer no caso dos assim
chamados direitos certos, porém não tutelados, quando, após o reconhecimento
8. A ATIVIDADE INTERPRETATIVO-CRIATIVA DO JUIZ da existência de um direito constitucional, lhe é negada proteção, invocando-se
DIANTE DE UMA ATUAÇÃO DO LEGISLADOR, DA como justificativa a falta de intervenção do legislador (por exemplo, o caso bem
SUA OMISSÃO OU TAMBÉM DIANTE DE UM DIREITO conhecido de George Welby ou do reconhecimento de sobrenome da mãe).
REIVINDICADO COM FUNDAMENTO NO TEXTO A jurisprudência constitucional, em várias oportunidades, tem convidado
CONSTITUCIONAL OU NA LEI nestas circunstâncias o próprio juiz a procurar a solução e assegurar a tutela
dos direitos fundamentais, buscando-a diretamente nos princípios constitucio-
A necessidade de intervenção do legislador é, em diferentes ocasiões, assina- nais. Lê-se, portanto, nessas decisões que "compete ao juiz, através do pleno
lada pela jurisprudência, seja aquela constitucional, através do instrumento dos exercício dos poderes de interpretação da lei e do direito, solucionar, conforme
"mônitos", mais ou menos explícitos, seja também pela comum e das específicas a Constituição, o problema que a detectada lacuna normativa em hipótese de-
decisões sobre casos concretos, que levam à evidência a necessidade de uma dis- termina" (sent. 11, de 1998) ou que "na atual situação de carência legislativa,
ciplina da matéria. cabe ao juiz buscar no sistema normativo global a interpretação apta a assegu-
Por outro lado, também é claro que o legislador não pode ser obrigado a rar a proteção dos supramencionados bens constitucionais" (347, de 1998) (
fazê-lo, não sendo expressamente sancionável a hipótese de omissão legislati- grifos acrescentados) .
va, na medida em que a decisão de não intervir pode representar uma precisa A conhecida teoria crisafulliana das "rimas obrigadas", há muito incorpo-
escolha através da qual os sujeitos políticos demonstrem aceitar que a regula- rada pela jurisprudência constitucional, parece ser aplicável também aos juízes
mentação da matéria seja deixada, pelo menos naquele momento, ao direito comuns, obviamente, não em relação à parte demolitória das decisões manipula-
jurisprudencial. tivas, mas àquela reconstrutiva.
Frente a uma intervenção do legislador, o poder interpretativo do juiz, que Na verdade, como já observado a esse respeito por Gustavo Zagrebelsky, "se
sob nenhuma hipótese pode ser excluído, pode resultar limitado em menor ou a norma está presente no sistema, cabe aos juízes (todos os juízes) extraí-la; se não
maior intensidade, conforme a técnica legislativa mais ou menos consciente- estiver presente, cabe ao legislador (apenas ao legislador) estabelecê-la".
mente utilizada pelo legislador. Assim, parece evidente o maior espaço deixado O segundo caso é constituído por aquelas hipóteses em que a Constituição
à intervenção interpretativa do juiz quando for seguida de uma técnica de legis- "permite" uma determinada solução e disciplina, porém não a "impõe", deixan-
lação assim chamada de "de malhas largas", ao invés de uma legislação pontual do, portanto, a realização de um determinado direito à esfera da decisão política
e específica ou de um texto que se apresente formulado em maneira obscura ou e às regras da maioria parlamentar, à qual caberá avaliar a evolução dos resulta-
contraditória, em vez de clara e, portanto, evidente. dos da ciência médica, dos costumes, da consciência social, etc.
De uma forma mais geral, então, o juiz tem condições de avaliar se a esco- Pode, portanto, ocorrer que, em momentos diferentes (mas também entre
lha do legislador esteja, ou não, conforme com os princípios constitucionais, de- eles muito próximos uns dos outros), venha a ser corretamente julgada como
vendo incialmente, de qualquer modo, experimentar, como mencionado, a pos- não conflitantes com os princípios constitucionais, seja uma escolha restritiva
sibilidade de dar à mesma uma interpretação (permitida obviamente pelo texto ou até mesmo negativa em relação a um determinado direito, seja uma escolha
60 ROBERTO ROMBOLI /MARCELO LABANCA (ÜRGS.)

que, pelo contrário, reconheça e garanta aquele mesmo direito ou um particu-


lar aspecto do mesmo.
Neste caso, resulta também evidente que a atitude e a intervenção do juiz
constitucional e dos juízes comuns deverá ser necessariamente mais cautelosa e
cuidadosa em relação às escolhas (ou não escolhas) legislativas. Já no caso em que CAPÍTULO 4
a Constituição "imponha" (e não somente "permita") a realização de um direito,
a posição da Corte constitucional e dos juízes comuns deverá ser mais firme e A LEGITIMAÇÃO DAS CoRTEs. ENTRE MoDELos DE
conduzir, de regra e quando possível, à declaração de inconstitucionalidade da JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E CRITÉRIOS DE COMPOSIÇÃO,
disciplina "na parte em que não prevê", e também à aplicação direta da Consti-
ORGANIZAÇÃO E FuNCIONAMENT0 1
tuição por parte destes últimos.

Saulle Panizza2

Sumário: 1. O estudo do nascimento e da evolução da justiça constitucional através


dos modelos; 2. A compreensão do papel dos órgãos de justiça constitucional por meio
de uma pluralidade de indicadores e da progressiva valorização dos fatores correlatos à
composição e às modalidades de organização e funcionamento; 3. A composição, a orga-
nização e o fimcionamento dos órgãos de justiça constitucional, com os vários aspectos
a eles relacionados: uma classificação esquemática; 4. A conexão entre composição, or·
ganização e fimcionamento dos órgãos de justiça constitucional e a sua legitimação no
sistema; 5. Indicações bibliográficas essenciais.

1. O ESTUDO DO NASCIMENTO E DA EVOLUÇÃO DA


JUSTIÇA CONSTITUCIONAL ATRAVÉS DOS MODELOS

A "invenção" da justiça constitucional, ao menos no sentido no qual se fala


comumente do instituto, no interior do nascimento e da evolução do Estado
(modernamente compreendido), remonta aproximadamente a dois séculos. A
maneira como isso ocorreu e o percurso evolutivo da afirmação da justiça consti-
tucional conduziram a valorizar, em notável medida e um pouco por toda parte,
o estudo dos "modelos" como elemento central para a compreensão da dinâmica
do instituto ao longo do tempo.
1.1. Como é sabido, as origens da justiça constitucional se encontram na
experiência norte-americana do judicial review o/ legislation.
Sem estar diretamente previsto na Constituição, torna-se realidade graças à
atividade da Suprema Corte, originalmente concebida como órgão judiciário fun-
damentalmente de última instância, competente para reexaminar as controvérsias
definitivamente decididas por um juiz federal, ou por juízes estaduais em determi-

Tradução de Luiz Henrique Diniz Araújo c Marcelo Labanca Corrêa de Araújo.


Professor Catedrático de Direito Constitucional. Universidade de Pisa-- Itália.

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