Você está na página 1de 13

Doutrina Estrangeira

A COMPETÊNCIA E A METODOLOGIA
INTERPRETATIVO-DECISÓRIA DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPÉIA

JÖRG NEUNER**

RESUMO: O Tribunal de Justiça da União Européia desempenha um papel muito


importante no processo de integração européia. O objetivo da presente contribuição
consiste em analisar suas competências e metodologia interpretativo-decisória, com ênfase
no exame da vinculação de seus juízes ao direito legislado e aos precedentes judiciais.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal de Justiça da União Européia; Competência; Interpretação.

ABSTRACT: The Court of Justice of the European Union plays a very important role in
the european integration process. The following essay aims to examine the competences
and the legal reasoning deployed by the Court, emphasizing the analysis of the binding
of its judges to law and precedents.
KEYWORDS: Court of Justice of the European Union; Competence; Legal reasoning.

SUMÁRIO: I. Fundamentos; 1. A construção escalonada da Ordem Jurídica;


2. As especificidades do Direito Comunitário; 3. As competências do Tribunal de Justiça
da União Européia; II. A Vinculação à Lei; 1. A Dimensão Relativa às Competências;
2. A dimensão Relativa ao Conteúdo; 3. A Dimensão Temporal; III. A Vinculação aos

Artigo recebido em 16.12.2009 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 30.03.2010.

O Autor gostaria de registrar seu agradecimento ao Sr. Pedro Scherer de Mello Aleixo, Professor-
Assistente na Universidade de Augsburg, pela tradução do presente texto e pelas valiosas referências para
a complementação das notas de rodapé.
O presente artigo consiste em versão, acrescida de notas de rodapé, de duas palestras proferidas pelo Autor
em setembro/outubro de 2009 nas Cidades de Porto Alegre (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul - 30.09) e São Paulo (Congresso Anual de Estudos Constitucionais promovido pelo Instituto Brasileiro
de Estudos Constitucionais - 2.10).
Cf. a título meramente ilustrativo da produção bibliográfica existente a respeito do direito comunitário
europeu na literatura jurídica portuguesa: Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Coimbra, 2008;
Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, 5. ed., Coimbra, 2008; José Luís Caramelo Gomes, Lições
de Direito da União Europeia, Coimbra, 2009; cf. ainda, também com caráter meramente exemplificativo,
na literatura jurídica brasileira: José Souto Maior Borges, Curso de Direito Comunitário, 2. ed., São Paulo,
2009; Maria Teresa de Cárcomo Lobo, Manual de Direito Comunitário, 3. ed., Curitiba, 2007; José
Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria Geral do Direito Constitucional Comum Europeu, Revista da
Associação dos Magistrados Brasilerios vol. 11 (2001), p. 20 ss. Os trechos de legislação de direito
comunitário europeu transcritos no presente artigo foram extraídos do portal oficial da União Européia na
internet (http://europa.eu/index_pt.htm).

Professor Catedrático de Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Comercial e Filosofia do Direito na
Universidade de Augsburg - Alemanha.
____________________________________________________________________
58 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
Precedentes; 1. A Tomada de Decisão Concreta e Individual; 2. O Princípio da Liberdade
Decisória; 3. O Princípio da Proteção da Confiança; IV. Considerações Finais.

SUMMARY: I. Foundations; 1. The Leveled Construction of the Legal Order;


2. The Specificities of EU Law; 3. The European Court of Justice’s Competences;
II. The Binding to Law; 1. The Competences-related Dimension; 2. The Content-related
Dimension; 3. The Time-related Dimension; III. The Binding to Precedents; 1. The
Concrete and Individual Decision-making; 2. The Decision-making Freedom Principle;
3. The Protection of Trust Principle; IV. Final Remarks.

O Tribunal de Justiça da União Européia, sediado em Luxemburgo, consiste no


órgão judicial supremo da União Européia.1 Dele fazem parte, nos termos do art. 19,
alínea 2, frase 1, do Tratado da União Européia (TUE), um juiz de cada Estado-Membro;
atualmente, portanto, 27 juízes dos 27 Estados-Membros. Além do Tribunal de Justiça
da União Européia, há, nos termos do art. 19, alínea 1, do TUE, o Tribunal Geral (de
primeira instância),2 bem como tribunais especializados (o Tribunal da Função
Pública da União Européia).3 O Tribunal de Justiça da União Européia é auxiliado,
nos termos do art. 19, alínea 2, frase 2, do TUE, por advogados-gerais.4 De acordo
com o art. 252, alínea 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Européia
(TFUE), ao advogado-geral “cabe apresentar publicamente, com toda a imparcialidade
e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do
Estatuto do Tribunal de Justiça da União Européia, requeiram a sua intervenção”.
Ele aduz, após os debates orais, uma proposta de decisão.
I. FUNDAMENTOS
A fim de classificar as competências do Tribunal de Justiça da União Européia,
precisa-se, primeiramente, delimitar o direito comunitário em relação às ordens jurídicas
nacionais.
1. A Construção Escalonada da Ordem Jurídica
O direito comunitário possui, na moldura da construção escalonada da ordem
jurídica,5 uma primazia prima facie diante do direito nacional dos Estados-Membros.6

1
Com respeito à história do Tribunal de Justiça da União Européia, ver, pormenorizadamente, Anthony
Arnull, The European Union and its Courts of Justice, 2. ed., New York, 2006, p. 5 ss.
2
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, números de margem 378 s.; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 136; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein, Europarecht,
6. ed., Tübingen, 2009, números de margem 274 s.; Jörg Pirrung, Europäisches Gericht erster Instanz, in:
Jürgen Basedow et al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts, vol. I, Tübingen, 2009, p. 527 ss.
3
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 379; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 137.
4
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 377; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 135; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein,
Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, números de margem 270 ss.; Jörg Pirrung, Europäischer Gerichtshof, in:
Jürgen Basedow et al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts, vol. I, Tübingen, 2009, p. 512.
5
Ver, com respeito à estrutura escalonada da ordem jurídica, Adolf Julius Merkl, Die Lehre von der
Rechtskraft, Leipzig/Wien, 1923; Adolf Julius Merkl, Prolegomena einer Theorie des rechtlichen Stufenbaus,
in: Dorothea Mayer-Maly et al. (Orgs.), Gesammelte Schriften, vol. I/1, Berlin, 1993, p. 437 ss.; Hans
Kelsen, Teoria Pura do Direito, São Paulo, 2003, p. 246 ss. Cf., ainda, Martin Borowski, Die Lehre vom
Stufenbau des Rechts nach Adolf Julius Merkl, in: Stanley Paulson/Michael Stolleis (Orgs.), Hans Kelsen
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 59
a) A primazia em princípio existente em favor do direito comunitário
De acordo com o Tribunal de Justiça da União Européia, o direito comunitário
ocupa sempre e de modo irrestrito uma posição de primazia em relação às ordens
jurídicas nacionais. Isto decorre da autonomia do ordenamento jurídico europeu e do
seu caráter de direito comunitário.7 O Tribunal Constitucional Federal alemão também
parte de uma primazia em princípio existente em favor do direito comunitário, mas
identifica a base de legitimação do direito comunitário em uma instrução nacional de
aplicação (em virtude da ausência de suficiente legitimidade democrática).8 O art. 23,
alínea 1, da Lei Fundamental alemã exige, com respeito à transferência de direitos de
soberania, que a União Européia satisfaça exigências estruturais e materiais mínimas
e que remanesçam ao legislador nacional competências nacionais de peso substancial.
Abstraindo-se destes limites extremos (até agora, teóricos), o direito comunitário
desfruta de uma primazia no plano da aplicação, a qual também irradia eficácia
diante do direito constitucional nacional.
b) A primazia do direito primário comunitário
O direito comunitário subdivide-se em direito primário e secundário.9 Ambos
possuem primazia diante do direito nacional. O direito primário consiste nos tratados
celebrados entre os Estados-Membros, especialmente no Tratado de Lisboa, em
vigor desde 1.12.2009.10 O Tratado de Lisboa compõe-se do Tratado da União
Européia (TUE) e do Tratado sobre o Funcionamento da União Européia (TFUE).
Pertencem ao direito comunitário europeu secundário os atos jurídicos promulgados
pelos órgãos da União Européia. Nos termos do art. 288 do TFUE, compreendem-se
nesta categoria especialmente os regulamentos e as diretivas. Um regulamento possui
validade geral. Ele é vinculativo em sua integralidade e vale diretamente em todos os

- Staatsrechtslehrer und Rechtstheoretiker des 20. Jahrhunderts, Tübingen, 2005, p. 122 ss.; Peter Koller,
Zur Theorie des rechtlichen Stufenbaues, in: Stanley Paulson/Michael Stolleis (Orgs.), Hans Kelsen -
Staatsrechtslehrer und Rechtstheoretiker des 20. Jahrhunderts, Tübingen: Mohr Siebeck, 2005, p. 106 ss.;
Robert Walter, Der Aufbau der Rechtsordnung, 2. ed., Wien, 1974; Theo Öhlinger, Der Stufenbau der
Rechtsordnung - Rechtstheoretische und ideologische Aspekte, Wien, 1975; Heinz Mayer, Die Theorie des
rechtlichen Stufenbaues, in: Clemens Jabloner et al. (Orgs.), Schwerpunkte der Reinen Rechtslehre, Wien,
1992, p. 37 ss.; Marietta Auer, A interpretação em conformidade com o direito primário, in: António Pinto
Monteiro/Jörg Neuner/Ingo Sarlet (Orgs.), Direitos Fundamentais e Direito Privado - Uma Perspectiva de
Direito Comparado, Coimbra, 2007, p. 50 ss.; Theodor Schilling, Rang und Geltung von Normen in
gestuften Rechtsordnungen, Berlin, 1994, p. 159 ss., p. 401 ss.
6
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 201; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 209 ss.; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein,
Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, número de margem 56, números de margem 187 ss.
7
TJUE (Tribunal de Justiça da União Européia), Processo 6/64 (Costa/E.N.E.L.), de 15.7.1964, Col.
(Colectânea da Jurisprudência) 1964, p. 1251 ss. (p. 1269 ss.); TJUE, Processo C-453/99 (Courage) de
20.9.2001, Col. 2001, p. I-6297, número de margem 19.
8
Cf. o acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão acerca do Tratado de Lisboa: BVerfG, 2 BvE
2/08, de 30.6.2009, NJW 2009, 2267-2295.
9
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, números de margem 2 ss.; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 149 ss.; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein,
Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, número de margem 85, números de margem 323 ss.
10
Cf. Rudolf Streinz/Christoph Ohler/Christoph Herrmann, Der Vertrag von Lissabon zur Reform der EU, 2. ed.,
München, 2008; Ingolf Pernice/Miroslav Angelov, Auf dem Weg zum Vertrag von Lissabon, Baden-Baden,
2008; Waldemar Hummer/Walter Obwexer (Orgs.), Der Vertrag von Lissabon, Baden-Baden, 2009.
____________________________________________________________________
60 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
Estados-Membros. Diferentemente de um regulamento, uma diretiva não vale, via de
regra, diretamente, mas contém uma instrução de transposição para os Estados-Membros
individuais. Ela “vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar,
deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos
meios”, nos termos do art. 288, alínea 3, do TFUE. Os Estados-Membros precisam,
portanto, primeiro transpor os preceitos das diretivas mediante um ato legislativo nacional.
O direito comunitário primário não possui primazia apenas em relação às ordens
jurídicas nacionais, mas também ocupa uma posição de superioridade na hierarquia
normativa em relação ao direito comunitário secundário. Esta última decorre do
caráter semelhante ao direito constitucional do direito primário, especialmente da
regulamentação prevista no § 288 do TFUE acerca das competências normativas no
plano secundário.
2. As Especificidades do Direito Comunitário
O direito comunitário apresenta, do ponto de vista metodológico, sobretudo
duas particularidades:
a) A pluralidade linguística
Afigura-se, em primeiro lugar, significativo o fato de não haver uma língua
européia comum. O Tribunal de Justiça da União Européia precisa, por isso, levar
em consideração, de modo equivalente, as línguas oficiais dos Estados-Membros
(entrementes 23), nos termos do art. 55, alínea 1, do TUE, e realizar uma
correspondente comparação textual na moldura do método gramatical de interpretação.11
Este fenômeno não é, todavia, singular, já tendo sido abordado no art. 33, alínea 4, da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados12 e ocorre, igualmente, em países
com diferentes línguas oficiais.13 A pluralidade linguística conduz a uma análise
textual mais complexa e trabalhosa, mas pode também trazer a vantagem de que um

11
Ver, a respeito, pormenorizadamente, Anthony Arnull, The European Union and its Courts of Justice,
2. ed., New York, 2006, p. 608 ss., com documentação comprobatória adicional. Cf., ainda, Isabel
Schübel-Pfister, Sprache und Gemeinschaftsrecht, Berlin, 2004, p. 37 ss.; Franz C. Mayer, Europäisches
Sprachenverfassungsrecht, Der Staat 44 (2005), p. 367 ss.; Hans-Martin Gebauer, Europa und seine
Sprachen, Merkur 60 (2006), p. 642 ss.; Fabrizio Vismara, The Role of the Court of Justice of the
European Communities in the Interpretation of Multilingual Texts, in: Barbara Pozzo/Valentina Jacometti
(Orgs.), Multilingualism and the Harmonization of European Law, Alphen aan den Rijn, 2006, p. 61 ss.
12
“Artigo 33 - Interpretação de Tratados Autenticados em duas ou mais Línguas.
1. Quando um tratado foi autenticado em duas ou mais línguas, seu texto faz igualmente fé em cada uma
delas, a não ser que o tratado disponha ou as partes concordem que, em caso de divergência, prevaleça um
texto determinado.
2. Uma versão do tratado em língua diversa daquelas em que o texto foi autenticado só será considerada
texto autêntico se o tratado o previr ou as partes nisso concordarem.
3. Presume-se que os termos do tratado têm o mesmo sentido nos diversos textos autênticos.
4. Salvo o caso em que um determinado texto prevalece nos termos do parágrafo 1, quando a comparação
dos textos autênticos revela uma diferença de sentido que a aplicação dos artigos 31 e 32 não elimina,
adotar-se-á o sentido que, tendo em conta o objeto e a finalidade do tratado, melhor conciliar os textos.”
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>.
Acesso em: 14 dez. 2009.
13
Ver, exemplificativamente, com respeito às três línguas oficiais da Suíca, Ernst A. Kramer, Juristische
Methodenlehre, 2. ed., Bern, 2005, p. 68 s.
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 61
significado literal desprovido de clareza ou difuso pode ser elucidado por intermédio
de um sentido literal mais claro e preciso existente em outra língua oficial.
b) A competência limitada de regulamentação
Em segundo lugar, afigura-se característico o fato de a União Européia,
diferentemente dos Estados-Membros, não dispor de uma competência-competência,
i. e., não poder ela, por si só, ampliar suas próprias competências (em relação aos
Estados-Membros). Vale, antes o contrário, o princípio da atribuição de competências
por intermédio dos Estados-Membros.14 Mesmo este não constitui, é bem verdade,
um fenômeno novo, podendo ocorrer também no âmbito da legislação concorrente
entre um Estado federal e seus Estados federados singulares.15 Uma restrição
adicional de competência é promovida pelo princípio da subsidiariedade, nos termos
do art. 5, alínea 1, frase 2 e alínea 3, do TUE.16 De acordo com este dispositivo, a
União “intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada
não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível
central como ao nível regional e local, podendo contudo, devido às dimensões
ou aos efeitos da acção considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União”.
Esta restrição de competência realizada pelo princípio da subsidiariedade vale não
apenas para os Poderes Legislativo e Executivo, devendo também o Judiciário atentar
a este limite por ocasião do desenvolvimento judicial do direito. O Tribunal de
Justiça da União Européia não deve, portanto, determinar consequências jurídicas
que também não possam ser promulgadas como normas jurídicas pelo legislador
comunitário.17
3. As Competências do Tribunal de Justiça da União Européia
As competências do Tribunal de Justiça da União Européia estendem-se sobretudo
a dois âmbitos, nos termos do art. 19 do TUE c/c os arts. 251 e ss. do TFUE.18
a) O Tribunal de Justiça da União Européia como instância controladora
O Tribunal de Justiça da União Européia tem, de um lado, a tarefa de zelar pelo
cumprimento do Tratado por parte dos Estados-Membros. Por outro lado, o Tribunal
tem a missão de exercer vigilância com respeito à validade da atuação dos órgãos

14
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, números de margem 147 ss., número de
margem 413, números de margem 498 s.; Matthias Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 176
ss.; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein, Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, números
de margem 166 ss.; Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung im europarechtlichen Bezugsrahmen, München,
2006, p. 159; Clemens Höpfner, Die systemkonforme Auslegung, Tübingen, 2008, p. 66.
15
Cf., acerca da competência para legislação concorrente no Brasil, art. 24 da Constituição Federal de 1988.
16
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 39, número de margem
166; Matthias Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 93 ss.; Andreas Haratsch/Christian
Koenig/Matthias Pechstein, Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, números de margem 174 ss.; Carsten
Herresthal, Rechtsfortbildung im europarechtlichen Bezugsrahmen, München, 2006, p. 153; Clemens
Höpfner, Die systemkonforme Auslegung, Tübingen, 2008, p. 66.
17
Ver, pormenorizadamente, Jörg Neuner, in: Karl Riesenhuber (Org.), Europäische Methodenlehre,
2. ed., Berlin, 2010, § 13, número de margem 15, com documentação comprobatória adicional.
18
Cf., a título exemplificativo, com respeito ao Tribunal de Justiça da União Européia como intérprete e
aplicador do direito comunitário europeu na produção bibliográfica luso-brasileira: Fausto de Quadros,
Direito da União Europeia, Coimbra, 2008, p. 455 ss.; Jorge Fontoura, A Construção Jurisprudencial do
Direito Comunitário Europeu, Revista de Informação Legislativa vol. 140 (1998), p. 163 ss.
____________________________________________________________________
62 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
comunitários, nomeadamente em relação à juridicidade dos atos legislativos. Neste
sentido, pode o Tribunal, nos termos do art. 264, alínea 1, do TFUE, por exemplo,
declarar nula uma norma do direito comunitário secundário.
b) O Tribunal de Justiça da União Européia como instância interpretativa
De modo correspondente à visão clássica da doutrina da separação dos poderes,
o Tribunal tem, além disso, a tarefa de interpretar a totalidade do direito comunitário
de modo vinculativo. O Tribunal garante, nos termos do art. 19, alínea 1, do TUE,
“o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados”. Isto abrange, para
além da mera interpretação do direito legislado orientada ao sentido literal da norma,
também a competência para o desenvolvimento judicial do direito (interpretação
extensiva), na medida em que o direito comunitário contenha uma lacuna de
regulamentação contrária ao plano.19 Neste sentido, destaca também o Tribunal:
“Consoante jurisprudência reiterada, hão de ser considerados na interpretação de um
preceito jurídico-comunitário não apenas o seu sentido literal, mas também o seu
contexto e as finalidades perseguidas com a regulamentação da qual ele faz parte”.20
Os tribunais nacionais, inclusive os tribunais constitucionais, têm, nos termos
do art. 267, alíneas 2 e 3, do TFUE, competência e – na medida em que estejam
decidindo em última instância – são obrigados a remeter a questão para o Tribunal de
Justiça da União Européia com a finalidade de obter uma decisão prévia acerca da
interpretação do direito comunitário primário, bem como da interpretação e validade
do direito comunitário secundário.21 Não há necessidade de levar a cabo uma remessa,
nos termos da doutrina do “acte-clair” do Tribunal de Justiça da União Européia,
excepcionalmente, “quando o preceito jurídico-comunitário em apreço já tiver sido
objeto de interpretação pelo Tribunal ou (...) a correta aplicação do direito comunitário
for de tal forma evidente, que não haja espaço para uma dúvida razoável”.22
II. A VINCULAÇÃO À LEI
A vinculação do Tribunal de Justiça da União Européia ao direito comunitário
possui três dimensões: uma relativa às competências, outra relativa ao conteúdo e
outra temporal.

19
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, números de margem 567 ss.; Matthias
Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 187 ss.; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias
Pechstein, Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, número de margem 408; Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung
im europarechtlichen Bezugsrahmen, München, 2006; Clemens Höpfner, Die systemkonforme Auslegung,
Tübingen, 2008, p. 235; Hannes Rösler, Auslegung des Gemeinschaftsrechts, in: Jürgen Basedow et al.
(Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts, vol. I, Tübingen, 2009, p. 123.
20
TJUE, Processos C-14/06 e C-295/06 (Parlamento/Comissão), de 1º.04.2008, Col. 2008, p. I-1649,
número de margem 67, com documentação comprobatória adicional.
21
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, números de margem 630 ss.; Matthias
Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 201 ss.; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias
Pechstein, Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, números de margem 495 ss.; Franz C. Mayer,
Verfassungsgerichtsbarkeit, in: Armin von Bogdandy/Jürgen Bast (Orgs.), Europäisches Verfassungsrecht,
2. ed., Berlin, 2009, p. 562 ss.; Jörg Pirrung, Europäischer Gerichtshof, in: Jürgen Basedow et al. (Orgs.),
Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts, vol. I, Tübingen, 2009, p. 513.
22
TJUE, Processo 283/81 (C.I.L.F.I.T.), de 6.10.1982, Col. 1982, p. 3415, número de margem 21; ver,
ainda, Anthony Arnull, The European Union and its Courts of Justice, 2. ed., New York, 2006, p. 626 s.,
com documentação comprobatória adicional.
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 63
1. A dimensão relativa às competências
Do ponto de vista das competências, afigura-se característico o fato de o Tribunal
de Justiça da União Européia não estar vinculado apenas aos preceitos do legislador
comunitário, devendo ele, simultaneamente, levar também em consideração a competência
limitada de regulamentação deste último.
a) O equilíbrio institucional
O chamado princípio do equilíbrio institucional constitui a contrapartida
jurídico-comunitária da visão clássica da separação dos poderes, na medida em que
ele fixa a estrutura de competências dos órgãos comunitários uns em relação aos
outros.23 Para o Poder Judiciário, decorre deste princípio do “equilíbrio institucional”
o dever de respeitar sobretudo a prerrogativa decisória do legislador comunitário, eis
que, de outro modo, este último restaria desprovido de qualquer função como
instância criadora do direito. O Tribunal de Justiça da União Européia está, portanto,
em princípio vinculado ao direito comunitário e não deve atuar na arena política.
b) A competência concorrente de regulamentação
Em virtude das competências limitadas da Comunidade, o Tribunal tem ainda a
tarefa de controlar a observância dos princípios da atribuição de competências e da
subsidiariedade. Outra consequência consiste no dever de o Tribunal também levar
em consideração estes preceitos em relação à sua própria atuação e de não perder de
vista ambos os limites atinentes às competências em se tratando de suas próprias
decisões. 24
2. A dimensão relativa ao conteúdo
Do ponto de vista relativo ao conteúdo, a vinculação à lei significa que o
Tribunal de Justiça da União Européia deve interpretar e aplicar (lege artis) o direito
comunitário.
a) Os cânones de interpretação
O sentido literal da lei constitui também para o Tribunal de Justiça da União
Européia o ponto de partida da interpretação.25 Em se tratando, nomeadamente, de

23
Cf. TJUE, Processo C-133/06 (Parlamento/Conselho), de 6.5.2008, Col. 2008, p. I-3189, números
de margem 56 s.; TJUE, Processo C-70/88 (Parlamento/Conselho), de 22.5.1990, Col. 1990, p. I-2041,
números de margem 21 ss.; com respeito à viabilidade de comparação com a tradicional separação de
poderes, ver, pormenorizadamente, Peter Häberle, Europäische Verfassungslehre, 6. ed., Baden-Baden,
2009, p. 422 ss. Cf. ainda, Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 566;
Matthias Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 147; Andreas Haratsch/Christian
Koenig/Matthias Pechstein, Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, números de margem 166 ss.
24
Ver, a respeito do assunto, pormenorizadamente, Jörg Neuner, in: Karl Riesenhuber (Org.), Europäische
Methodenlehre, 2. ed., Berlin: De Gruyter, 2010, § 13, número de margem 15, com documentação
comprobatória adicional.
25
Ver, apenas de modo exemplificativo, TJUE, Processo 55/81 (Levin), de 23.03.1982, Col. 1982, p. 1035,
número de margem 9; ver, ainda, Ninon Colneric, EuZA 2008, p. 212 ss. (p. 216), com documentação
comprobatória adicional; Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 570;
Matthias Herdegen, Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 187; Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung
im europarechtlichen Bezugsrahmen, München, 2006, p. 59; Hannes Rösler, Auslegung des
Gemeinschaftsrechts, in: Jürgen Basedow et al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts,
vol. I, Tübingen, 2009, p. 122.
____________________________________________________________________
64 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
proibições de analogia, o sentido literal ainda possível pode constituir um limite às
decisões admissíveis (por exemplo, no caso da imposição de multas).26 Para além do
princípio “nulla poena sine lege stricta”, afigura-se indicada uma proibição de
analogia para intervenções impositoras de ônus sobre os cidadãos. Assim, por
exemplo, o Tribunal rejeita, no âmbito do direito relativo ao recolhimento de taxas,
uma aplicação analógica de regras que onerem os cidadãos individuais.27
A interpretação não deve se limitar ao significado gramatical, mas também precisa
levar em consideração todo o contexto de significação dentro do qual o preceito
singular está inserido. Isto é, em primeira linha, um prosseguimento da interpretação
gramatical, mas vai, em seguida, na direção de uma interpretação sistemática em
sentido estrito. Na interpretação sistemática, trata-se de compreender um preceito
singular como parte integrante dos sistemas jurídico interno e externo e, em decorrência
da posição por ele ocupada nesta totalidade de regulamentação, extrair conclusões
relativas ao seu sentido e finalidade.28 Os preceitos singulares não se encontram
isolados uns ao lado dos outros, mas são intentados pelo legislador como uma totalidade
coerente, desprovida de contradições e ordenada de acordo com princípios.29 Um caso
especial de interpretação sistemática constitui a interpretação do direito secundário
conforme o direito primário.30 Trata-se, aqui, de uma máxima semelhante à do dever
de interpretação conforme a Constituição no direito nacional.31 O dever de interpretação
conforme o direito primário decorre sobretudo do pensamento de sistema, bem como
da autoridade do legislador de direito primário (i. e., dos Estados-Membros – ou seja
– das partes signatárias do Tratado). Uma interpretação conforme o direito primário
afigura-se, todavia, apenas admissível de modo subsidiário, após a identificação da
ausência de uma intenção regulamentadora concreta do legislador comunitário de
direito secundário; além disso, uma tal interpretação não deve perder de vista os
limites das decisões contra legem. Caso o legislador de direito secundário persiga uma
finalidade ilícita, o Tribunal de Justiça da União Européia deve declarar a respectiva
norma ineficaz. Uma substituição da norma por iniciativa própria do Tribunal
desprezaria, em havendo opções alternativas de regulamentação por parte do legislador,
o princípio do equilíbrio institucional. Havendo, em contrapartida, mais de uma opção

26
Cf. TJUE, Processo 117/83 (Könecke), de 25.09.1984, Col. 1984, p. 3291, números de margem 11, 13, 16.
27
TJUE, Processo 325/85 (Irlanda/Comissão), de 15.12.1987, Col. 1987, p. 5041, número de margem 18.
28
Ver, pormenorizadamente, Karl Riesenhuber, in: Karl Riesenhuber (Org.), Europäische Methodenlehre,
2. ed., Berlin, 2010, § 11, números de margem 23 ss.
29
Cf. TJUE, Processo 283/81 (C.I.L.F.I.T.), de 6.10.1982, Col. 1982, p. 3415, número de margem 20.
30
Cf. Marietta Auer, A interpretação em conformidade com o direito primário, in: António Pinto
Monteiro/Jörg Neuner/Ingo Sarlet (Orgs.), Direitos Fundamentais e Direito Privado - Uma Perspectiva de
Direito Comparado, Coimbra, 2007, p. 41 ss.; Clemens Höpfner, Die systemkonforme Auslegung, Tübingen,
2008, p. 217 ss., p. 220 ss.
31
Cf. com respeito à interpretação conforme a Constituição no direito brasileiro, a título meramente
ilustrativo, Gilmar Ferreira Mendes, Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht
und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal, Berlin, 1991, p. 203 ss.; Paulo Bonavides,
A presunção de constitucionalidade das leis e interpretação conforme a Constituição, in: Paulo Bonavides,
Teoria da Democracia Participativa, São Paulo, 2001, p. 235 ss.; Virgílio Afonso da Silva, Interpretação
conforme a constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial, Revista Direito GV vol. 3 (2006),
p. 191 ss.
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 65
de interpretação, deve ser dada preferência àquela que for compatível com o direito
primário.32
Com respeito à interpretação histórica, havia, de início, a dificuldade de os
trabalhos preparatórios dos Tratados não terem sido publicados. Nos atos legislativos
mais recentes, especialmente no caso do Tratado de Lisboa, os materiais legislativos
são, todavia, acessíveis a todos e podem ser utilizados pelos tribunais na interpretação.33
No âmbito do direito comunitário secundário, a reconstrução da vontade histórica do
legislador também foi facilitada, na medida em que, nos termos do art. 296, alínea 2,
do TFUE, há um dever de fundamentação para os atos jurídicos e, além disso, os
documentos devem ser disponibilizados ao público, nos termos do art. 15 do TFUE.
Na moldura da interpretação teleológica, o Tribunal de Justiça da União
Européia orienta-se a partir de duas máximas interpretativas especiais.34 De um lado,
tem-se o princípio do “effet utile”, i. e., há de ser escolhida a interpretação que mais
promova a realização dos objetivos do Tratado.35 Por outro lado, o Tribunal defende
a doutrina dos “implied powers”, segundo a qual os preceitos relativos às competências
devem ser interpretados de modo a abranger também competências não-expressas,
sem as quais o exercício das competências explicitamente regulamentadas não seria
possível ou tornar-se-ia absurdo.36
b) A finalidade da interpretação
O direito comunitário deve ser interpretado, em primeira linha, de modo autônomo,
i. e., desvinculado do entendimento dos Estados-Membros individuais.37 Do mesmo
modo que na interpretação do direito nacional, deve-se, todavia, interpretar também o
direito comunitário, em primeira linha, de modo subjetivo-teleológico.38 A primazia
da interpretação histórica decorre sobretudo dos princípios da democracia, do
equilíbrio institucional e da transparência metodológica. A jurisprudência do Tribunal

32
Cf. TJUE, Processo 218/82 (Comissão/Conselho), de 13.12.1983, Col. 1983, p. 4063, número de margem 15.
33
Tratado de Lisboa. Base de Dados. Disponível em
<http://www.consilium.europa.eu/App/Cig/Cig2007.aspx?modeCIG=register&lang=PT&cmsid=1300>.
Acesso em: 14 dez. 2009.
34
Cf. Rudolf Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 444; Matthias Herdegen,
Europarecht, 11. ed., München, 2009, p. 187; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein,
Europarecht, 6. ed., Tübingen, 2009, número de margem 182, número de margem 173; Carsten Herresthal,
Rechtsfortbildung im europarechtlichen Bezugsrahmen, München, 2006, p. 107, p. 140, nota de rodapé 166.
35
Fundamental: TJUE, Processo 9/70 (“Leberpfennig”), de 6.10.1970, Col. 1970, p. 825, número de
margem 5.
36
Ver, por exemplo, TJUE, Processo C-476/98 (“Open Skies”), de 5.11.2002, Col. 2002, p. I-9855,
número de margem 82; TJUE, Processo 8/55 (Fédéchar), de 29.11.1956, Col. 1956, p. 297 (p. 311 s.).
37
Por fim: TJUE, Processo C-208/07 (von Chamier-Glisczinski), de 16.7.2009, (ainda não consta em
coletânea) número de margem 48; TJUE, Processo 327/82 (Ekro), de 18.1.1984, Col. 1984, p. 107,
número de margem 11.
38
Ver, pormenorizadamente, Jörg Neuner, Privatrecht und Sozialstaat, München, 1998, p. 190 ss.;
Clemens Höpfner/Bernd Rüthers, AcP 209 (2009), p. 1 ss. (p. 13 ss., p. 35). Cf., em sentido diverso, Claus-
Wilhelm Canaris, Die richtlinienkonforme Auslegung und Rechtsfortbildung im System der juristischen
Methodenlehre. in: Helmut Koziol/Peter Rummel (Orgs.), Festschrift für Franz Bydlinski, Wien, 2002,
p. 47 ss. (p. 69, p. 87); Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung im europarechtlichen Bezugsrahmen,
München: C. H. Beck, 2006, p. 319, bem como os demais autores mencionados na nota de rodapé 156.
____________________________________________________________________
66 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
de Justiça da União Européia a respeito da finalidade primacial da interpretação
afigura-se inconsistente. Em decisões mais recentes, o Tribunal asseverou, todavia,
mais uma vez, que os preceitos de direito comunitário “(devem) ser interpretados
segundo a real vontade do seu autor e o fim por ele perseguido, nomeadamente à luz
de sua redação em todas as línguas”.39
c) Analogia e restrição
O enunciado da igualdade em sua dimensão positiva impõe que pressupostos
de fato similares sejam tratados de modo equivalente; portanto, que a consequência
jurídica C não valha apenas para o pressuposto de fato regulamentado por lei P1, mas
também de modo análogo para o pressuposto de fato similar P2.40 Tais conclusões
por analogia são frequentemente encontradas na jurisprudência do Tribunal de
Justiça da União Européia. Um exemplo consiste em uma recente decisão relativa aos
deveres de indenização no âmbito do transporte aéreo. O Tribunal de Justiça da
União Européia desenvolve nesta decisão, primeiramente, a diferenciação entre a
anulação e o atraso de um vôo; em seguida, assevera que uma pretensão de indenização
por atrasos “não (decorre) diretamente do sentido literal do Regulamento nº 261/2004”;
por fim, extrai a seguinte conclusão por semelhança: “Devido ao fato de os danos
sofridos pelos passageiros no caso de uma anulação e de um atraso serem
semelhantes, os passageiros de vôos atrasados e anulados não podem ser tratados
diferentemente sem que seja violado o princípio da igualdade de tratamento”.41
O enunciado da igualdade em sua dimensão negativa impõe que situações
distintas sejam tratadas diferentemente. Consequentemente, o Tribunal de Justiça da
União Européia não lança mão apenas de um desenvolvimento judicial do direito que
ultrapassa o sentido literal mediante conclusão analógica, mas também, na direção
contrária, de uma interpretação restritiva,42 a qual também pode ser caracterizada
metodologicamente como redução teleológica, porque e na medida em que o texto
normativo tenha sido redigido de modo demasiadamente amplo e careça de uma
necessária restrição.

39
TJUE, Processo C-188/03 (Junk), de 27.01.2005, Col. 2005, p. I-885, número de margem 33, com
documentação comprobatória adicional.
40
Cf. Hans-Joachim Koch/Helmut Rüßmann, Juristische Begründungslehre, München, 1982, p. 257 ss.;
Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6. ed., Berlin et al., 1991, p. 381 ss.; Franz
Bydlinski, Juristische Methodenlehre und Rechtsbegriff, 2. ed., Wien/New York, 1991, p. 475 ss. Cf.
ainda, no âmbito da literatura jurídica anglo-americana, Zenon Bankowski, Analogical Reasoning and
Legal Institutions, in: Zenon Bankowski/Ian White/Ulrike Hahn (Orgs.), Informatics and the Foundations
of Legal Reasoning, Dordrecht, 1995, p. 177 ss.; Cass Sunstein, Legal Reasoning and Political Conflict,
New York, 1996, p. 62 ss.; Scott Brewer, Exemplary Reasoning: Semantics, Pragmatics, and the Rational
Force of Legal Argument by Analogy, 109 Harvard Law Review (1996), p. 923 ss. Cf., por fim, com
ênfase no direito europeu, Katja Langenbucher, Argument by Analogy in European Law, The Cambridge
Law Journal vol. 57 (1998), p. 481 ss.; Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung im europarechtlichen
Bezugsrahmen, München, 2006, p. 239 ss., p. 335 ss.
41
TJUE, Processos C-402/07 e C-432/07 (Sturgeon), de 19.11.2009 (ainda não constam em coletânea),
números de margem 60, 41, 39.
42
Cf., por exemplo, TJUE, Processos C-14/06 e C-295/06 (Parlamento/ Comissão), de 1.4.2008, Col. 2008,
p. I-1649, números de margem 65 ss., 71; TJUE, Processo C-183/90 (van Dalfsen et al.), de 4.10.1991,
Col. 1991, p. I-4743, números de margem 19 ss.
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 67
3. A dimensão temporal
Com respeito à vinculação à lei, também deve ser levado em consideração, por
fim, o fato de as leis poderem desenvolver tanto efeitos ultra-ativos como retroativos.
a) O efeito ultra-ativo
De acordo com a jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça da União
Européia, as leis que ainda não entraram em vigor mas já foram publicadas não
dão azo uma eficácia geral bloqueadora, no sentido de uma proibição geral de
desenvolvimento judicial do direito.43 A jurisprudência não deve, todavia, obstruir a
finalidade legislativa estabelecida pela nova regulamentação (trata-se da chamada
proibição de frustração).44
Além de uma eficácia bloqueadora, futuras normas jurídicas também podem
influenciar positivamente uma interpretação extensiva. Elas podem inspirar e
legitimar a jurisprudência na condição de “soft laws”.
b) O efeito retroativo
Diferentemente de um efeito ultra-ativo, o efeito retroativo refere-se a um
comando de aplicação relativo a uma lei em vigor. De acordo com o Tribunal de
Justiça da União Européia, o princípio da segurança jurídica proíbe, de regra, um
efeito retroativo (verdadeiro), a não ser que a retroatividade seja necessária tendo em
vista a finalidade pretendida e seja devidamente levada em conta a confiança legítima
dos cidadãos atingidos.45
III. A VINCULAÇÃO AOS PRECEDENTES

43
TJUE, Processo C-212/04 (Adeneler), de 4.07.2006, Col. 2006, p. I-6057, número de margem 122
(Obrigação de omissão [de adotar disposições capazes de comprometer os objetivos de uma diretiva que
esteja em curso de transposição] vale também para tribunais nacionais); TJUE, Processo C-144/04 (Mangold),
de 22.11.2005, Col. 2005, p. I-9981, número de margem 68 (independentemente se a regulamentação
nacional objetiva ou não a transposição [da diretiva]); TJUE, Processo C-129/96 (Inter-Environnement
Wallonie), de 18.12.1997, Col. 1997, p. I-7411, números de margem 35 ss., 44 s. Cf. a respeito, Rudolf
Streinz, Europarecht, 8. ed., Heidelberg, 2008, número de margem 460; Matthias Herdegen, Europarecht,
11. ed., München, 2009, p. 165; Andreas Haratsch/Christian Koenig/Matthias Pechstein, Europarecht, 6. ed.,
Tübingen, 2009, número de margem 338; Carsten Herresthal, Rechtsfortbildung im europarechtlichen
Bezugsrahmen, München, 2006, p. 259; Clemens Höpfner, Die systemkonforme Auslegung, Tübingen,
2008, p. 291.
44
Cf. a proibição paralela de direito internacional, prevista no art. 18 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados: “Artigo 18. Obrigação de não Frustrar o Objeto e Finalidade de um Tratado antes de
sua Entrada em Vigor.
Um Estado é obrigado a abster-se da prática de atos que frustrariam o objeto e a finalidade de um tratado,
quando:
a) tiver assinado ou trocado instrumentos constitutivos do tratado, sob reserva de ratificação, aceitação ou
aprovação, enquanto não tiver manifestado sua intenção de não se tornar parte no tratado; ou
b) tiver expressado seu consentimento em obrigar-se pelo tratado no período que precede a entrada em
vigor do tratado e com a condição de esta não ser indevidamente retardada.” Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>. Acesso em: 14 dez. 2009”.
45
TJUE, Processo C-459/02 (Gerekens e Procola), de 15.07.2004, Col. 2004, p. I-7315, números de
margem 22 s.; TJUE, Processo 98/78 (Racke), de 25.01.1979, Col. 1979, p. 69, número de margem 20.
____________________________________________________________________
68 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010
O Tribunal de Justiça da União Européia está vinculado não apenas aos preceitos
legislativos, mas parcialmente também aos precedentes.
1. A tomada de decisão concreta e individual
Diferentemente da eficácia abstrata e genérica dos atos legislativos, a tarefa do
Tribunal se limita à tomada de uma decisão concreta e individual. Afigura-se
característico, do ponto de vista funcional, o fato de o Tribunal não dispor de nenhum
direito próprio de iniciativa e depender do diálogo com as partes do processo.
Do ponto de vista institucional, falta aos juízes uma legitimação democrática direta,
bem como, do ponto de vista organizatório, o aparato que lhes permita desempenhar
tarefas legislativas.
2. O princípio da liberdade decisória
Diferentemente dos sistemas de common law, não há no direito comunitário
uma vinculação estrita aos precedentes, no sentido de uma barreira ao desenvolvimento
judicial do direito.46 Desse modo, evita-se o risco de uma petrificação da jurisprudência,
viabilizando-se que entendimentos jurídicos que venham a ser considerados mais
corretos possam se consolidar. De modo consequente, o Tribunal não se vê, em
princípio, impedido de levar a cabo um desenvolvimento judicial do direito em
virtude da existência de julgados próprios divergentes.47
3. O princípio da proteção da confiança
Apesar de o Tribunal de Justiça da União Européia tomar apenas decisões de
caráter concreto e individual, afigura-se significativo o fato de sua jurisprudência
desenvolver uma eficácia bastante ampla na vida jurídica e constituir uma fonte
“fática” do direito.48 Os cidadãos da União Européia orientam-se a partir dos julgados
do Tribunal e esperam segurança jurídica por intermédio do igual tratamento de
casos similares.49 De regra, também o Tribunal se orienta, por conseguinte, a partir
de sua jurisprudência pregressa. Um pressuposto de fato ensejador de confiança

46
Cf. Joxerramon Bengoetxea, The Legal Reasoning of the European Court of Justice - Towards a
European Jurisprudence, Oxford, 1993, p. 69; Stefan Vogenauer, Rule of Precedent, in: Jürgen Basedow et
al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts, vol. II, Tübingen, 2009, p. 1172.
47
Ver, pormenorizadamente, Anthony Arnull, The European Union and its Courts of Justice, 2. ed., New
York, 2006, p. 629 s.; Günter Hager, Rechtsmethoden in Europa, Tübingen, 2009, p. 254 s.; Stefan
Vogenauer, Rule of Precedent, in: Jürgen Basedow et al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen
Privatrechts, vol. II, Tübingen, 2009, p. 1172.
48
Cf., de modo geral, com respeito às fontes do direito, Konrad Zweigert/Hein Kötz, Einführung in die
Rechtsvergleichung, 3. ed., Tübingen, 1996, p. 34 ss., p. 71 ss.; Stefan Vogenauer, Sources of Law and
Legal Method in Comparative Law, in: Mathias Reimann/Reinhard Zimmermann (Orgs.), The Oxford
Handbook of Comparative Law, Oxford, 2008, p. 869 ss. Cf. ainda, mais especificamente sobre o direito
judicial como fonte do direito, Franz Bydlinski, Hauptpositionen zum Richterrecht, JZ 1985, p. 149 ss.; Bernd
Rüthers, Richterrecht als Methoden- und Verfassungsproblem, in: Franz Gamillscheg et al. (Orgs.), Festschrift
für Karl Molitor zum 60. Geburtstag, München, 1988, p. 293 ss.; John Bell, Judicial Law-making, in: Peter
Cane/Joanne Conaghan (Orgs.), The New Oxford Companion to Law, Oxford, 2008, p. 653; Stefan
Vogenauer, Richterrecht, in: Jürgen Basedow et al. (Orgs.), Handwörterbuch des Europäischen Privatrechts,
vol. II, Tübingen, 2009, p. 1305.
49
O Tribunal de Justiça da União Européia precisa, por isso, justificar suas decisões de modo correspondente;
cf., pormenorizadamente, Joxerramon Bengoetxea, The Legal Reasoning of the European Court of Justice
- Towards a European Jurisprudence, Oxford, 1993, p. 116 s., p. 141 ss.
____________________________________________________________________
DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010 69
pode ser fundamentado já com base em uma única decisão e sedimentar-se por
intermédio da reiteração jurisprudencial. Ele adquire ainda mais intensidade quando a
jurisprudência for amplamente referendada pela ciência jurídica. Uma proteção da
confiança baseada na jurisprudência pode, todavia, cair por terra quando uma decisão
não corporifica um pressuposto de fato ensejador de confiança, pelo fato de ela ser,
por exemplo, contraditória em si mesma ou quando aquele que investe a confiança
tiver se comportado de maneira desleal. As expectativas de continuidade deflagradas
pelos precedentes do Tribunal não são, portanto, grandezas fixas, mas variáveis,
as quais devem ser ponderadas com a pretensão concorrente a uma decisão
materialmente correta.50 Nos raros casos em que o Tribunal até agora alterou sua
jurisprudência, isto ocorreu de modo retroativo, i. e., com eficácia não apenas para as
decisões futuras no sentido um mero prospective overruling.51
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o art. 19, alínea 1, frase 2, do TUE, o Tribunal de Justiça da
União Européia deve garantir o “respeito do direito”. Ele não se submete, assim, a
um judicial self-restraint e não deve ficar aquém de suas competências. Por outro
lado, o Tribunal está vinculado ao direito comunitário primário e secundário e
também não deve extrapolar suas competências. Deve-se atentar, aqui, especialmente
aos princípios da separação horizontal e vertical de poderes, bem como da proteção
da confiança.

50
Cf. Katja Langenbucher, JZ 2003, p. 1132, p. 1134 ss.; Katja Langenbucher, Die Entwicklung und
Auslegung von Richterrecht, München, 1996, p. 121 ss.
51
Cf. Franz Bydlinski, JBl. 2001, p. 1, p. 26; Verena Klappstein, Die Rechtsprechungsänderung mit
Wirkung für die Zukunft, Berlin, 2009, p. 209 ss.
____________________________________________________________________
70 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIÇA Nº 10 – JAN./MAR. 2010

Você também pode gostar