Você está na página 1de 9

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

Apresentadas em 23 de novembro de 2021

Processo C-447/19

República Atlântida Vs Comissão

A UE (União Europeia) é uma união económica e política constituída


por 27 Estados-membros independentes situados principalmente na
Europa, os quais são passíveis de se estenderem segundo os “critérios de
Copenhaga” - artigo 49º do TUE (Tratado da União Europeia).1
Segundo o definido no TUE e no TFUE (Tratado do Funcionamento da
União Europeia), a UE funciona essencialmente em torno de três
instituições, cada uma das quais com poderes e funções distintas: o
Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia, a Comissão Europeia,
entre outros, tal como consta no artigo 13.º, nº1 do TUE.
As competências da UE encontram-se estipuladas nos respetivos
artigos 3.º nº1 e 4.º do TFUE;
A Comissão é um órgão "executivo", esta apresenta propostas
legislativas ao Parlamento Europeu e ao Conselho e é responsável pela
execução da legislação adotada. A Comissão é igualmente responsável pela
implementação da política da UE, assim como pela gestão dos programas
e ações da mesma em todo o mundo. Este órgão é composto por 27
Comissários, um de cada Estado-Membro, cada um responsável por uma
determinada pasta, e é liderada por um Presidente. Na componente
administrativa, o funcionamento desta Instituição é assegurado atualmente
por 55 Direções-Gerais ou agências com atribuições específicas, e tem
ainda 139 delegações em outros países fora da UE.2
Este órgão encontra-se discriminado nos artigos 244º a 250º do TFUE, e os
objetivos de toda a União no artigo 3.º do Tratado de Lisboa.
A UE rege-se ainda por vários valores, todos estes consagrados no
artigo 2.º do TUE e na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, tais como: a
Dignidade do ser humano, a Liberdade, a Democracia, a Igualdade, os
Direitos Humanos e sobretudo, o Estado de Direito – valor este que tem

1
Disponível em:

https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/accession_criteria_copenhague.html?locale=pt
2
Disponível em: https://www.dgae.gov.pt/servicos/assuntos-europeus/instituicoes-europeias.aspx

1
especial relevância para o caso em análise, uma vez que a UE se baseia no
Estado de direito, ou seja, todas as ações da União assentam em Tratados
acordados voluntária e democraticamente pelos países que a constituem.3
No caso a desenvolver de seguida, é submetido o princípio do primado
do Direito Europeu (DE), e segundo este, o direito europeu tem um valor
superior ao dos direitos nacionais dos Estados-Membros e é aplicado a
todos os atos europeus com força vinculativa. Assim, os Estados-Membros
não podem aplicar uma regra nacional contrária a este direito.
Este princípio garante a superioridade do DE sobre os direitos
nacionais, sendo um princípio fundamental do DE, no entanto, não está
consignado nos Tratados, tendo sim sido consagrado pelo próprio Tribunal
de Justiça da União Europeia (TJUE).
O TJUE consagrou o princípio do primado no acórdão Costa Enel de
15 de julho de 1964. Neste acórdão, o Tribunal declara que o direito
proveniente das instituições europeias se integra nos sistemas jurídicos dos
Estados-Membros, sendo estes obrigados a respeitá-lo, tendo desta
maneira o DE o primado sobre os direitos nacionais, garantindo assim uma
proteção uniforme dos cidadãos em todo o território da UE, através do DE.
Deste modo, se uma regra nacional for contrária a uma disposição
europeia, as autoridades dos Estados-Membros devem aplicar a disposição
consagrada. O direito nacional não é anulado, nem alterado, mas a sua força
vinculativa é suspensa.
O primado é absoluto, e assim, todos os atos europeus com força
vinculativa beneficiam do mesmo, quer sejam provenientes do direito
primário ou do direito derivado. De igual modo, todos os atos nacionais estão
sujeitos a este princípio, seja qual for a sua natureza, bem como também o
poder judicial.
O Tribunal de Justiça considerou que as constituições nacionais estão
também sujeitas a este princípio, e compete assim ao juiz nacional não
aplicar as disposições de uma constituição contrária ao DE.4

3
Disponível em: https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/principles-and-

values/aims-and-values_pt

44
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=LEGISSUM%3Al14548

2
Neste caso concreto, trata-se de uma disputa entre um órgão da UE,
nomeadamente a Comissão, e um Estado-membro, sendo um dos Estados
discriminados no artigo 52.º TUE, nomeadamente, a República Atlântida.
Em 2017, este membro adotou um novo regime disciplinar para os
juízes dos tribunais atlânticos através da Lei Justitia Atlantis.
Segundo esta lei, foi criada uma nova secção no Supremo Tribunal Atlântico,
denominada de Sad Atlantida.
O artigo 4.º da mesma lei dispõe que “são da competência da Sad
Atlantida os processos disciplinares relativos a juízes do Supremo Tribunal
e tribunais comuns.” Processo este que nunca ocorre em tribunais, mas sim
em conselhos superiores.
Desta maneira, a República Atlântida viola o princípio da
independência judicial, disposto no artigo 19.º, nº1 do TUE. Dado que,
segundo a Comissão, o conceito de “tutela jurisdicional efetiva” mencionada
no segundo parágrafo deste, deve ser interpretado tendo em conta o
conteúdo do artigo 47.º da Carta Dos Direitos Fundamentais da UE e,
nomeadamente, as garantias inerentes ao direito a uma ação efetiva
consagrado nesta disposição. A primeira destas disposições, implica que
deve ser garantida a preservação da independência de instâncias, como os
tribunais comuns da República Atlântida, aos quais é, nomeadamente,
confiada a tarefa de interpretar e aplicar o direito da UE.
Por conseguinte, para decidir sobre a presente alegação, há que
examinar se a República Atlântida não cumpriu as obrigações que lhe
incumbem por força do artigo já mencionado.
Apoiando-se, em particular, no Acórdão de 27 de fevereiro de 2018,
Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C-64/16, EU:C:2018:117), a
Comissão sustenta que, para cumprir a obrigação que lhe impõe o artigo
19.º, nº1, segundo parágrafo, TUE, de prever um sistema de vias de recurso
que assegure uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo
direito da UE.
A República Atlântida é obrigada, nomeadamente, a garantir que
instâncias nacionais que, tal como os tribunais comuns da Atlântida, são
suscetíveis de se pronunciar sobre questões relativas à aplicação ou
interpretação desse direito, satisfazendo a exigência da independência dos
magistrados, uma vez que esta se insere no conteúdo essencial do direito
fundamental a um processo equitativo, conforme resulta, nomeadamente,

3
do artigo 47.º, segundo parágrafo, da Carta Dos Direitos Fundamentais da
UE5, equiparando-se esta situação ao caso da República da Polónia.
O artigo 6.º da Lei Justitia Atlantis determina que “os membros da Sad
Atlantida são eleitos por maioria pelos deputados da Assembleia da
República Atlântida.”, sendo outra violação por parte da República, uma vez
que, os membros são eleitos por mérito e não por maioria pelos deputados
da Assembleia da República Atlântida.
Já o artigo 8.º da mesma lei, determina que “a Sad Atlantida poderá
levantar a imunidade dos juízes com vista à instauração de processos
penais ou deter os mesmos, suspendê-los temporariamente do exercício de
funções ou reduzir o seu salário.” Violando ainda desta forma o princípio da
igualdade disposto no artigo 2º do TUE.
Tendo em consideração todo o fundamento mencionado sobre a Lei
Justitia Atlantis, em 04/04/2018, a Comissão notificou a Atlântida de que o
novo regime violava as obrigações decorrentes do TUE e do TFUE.
Em 06/05/2019, a Comissão intentou uma ação contra a Atlântida, no
TJUE, invocando que o novo regime disciplinar não garantia a
independência e imparcialidade da Sad Atlântida, cujos juízes-membros
eram nomeados pelo Parlamento Atlântico.

A União Europeia está interligada em vários valores comuns, estes


consagrados no artigo universal, o artigo 2.º do TUE, particularmente o
Estado de Direito. O Estado de Direito é um dos princípios de base que
decorre das tradições constitucionais comuns de todos os Estados-
Membros da UE, sendo um dos valores primordiais, pelo que a sua violação
colocará em causa a UE. A definição de Estado de Direito terá que observar
princípios, tais como: a legalidade, a segurança jurídica, tribunais
independentes e imparciais e a igualdade perante a lei.

Estes princípios deverão ser garantidos pela Comissão, juntamente


com o Parlamento Europeu, os Estados-Membros e o Conselho. A sua
violação poderá levar a uma rotura da confiança e coesão da UE e de ligação
dos Estados-Membros, e nesse caso, leva a Comissão a acionar os
mecanismos consagrados no artigo 7.º do TUE, como prevenção e forma de

5
Disponível em: https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=PT&num=C-192/18

4
proteger os valores comuns. Estes mecanismos não poderão ser acionados
sem que a Comissão dê cumprimento às três fases:

Na primeira fase, é a “Apreciação da Comissão”, esta procede à


recolha e análise das informações significativas, avaliando se há ou não uma
clara ameaça sistémica ao Estado de Direito. Se desta análise resultar a
existência da referida ameaça, a Comissão deverá proceder à abertura de
um diálogo com o Estado-Membro. Para tal, a Comissão deverá enviar um
parecer, que poderá ser o resultado de uma troca de correspondência e da
realização de reuniões, sobre o Estado de Direito onde fundamente
claramente as suas preocupações, mas dando sempre a possibilidade do
contraditório ao Estado-Membro.

Como segunda fase, trata-se da “Recomendação da Comissão”,


no caso que persista a ameaça sistémica, a Comissão poderá emitir uma
Recomendação sobre o Estado de Direito dirigida a esse Estado-Membro.
Nesta Recomendação, a Comissão deverá indicar e fundamentar os motivos
da sua preocupação e recomendar o Estado-Membro a resolver os
problemas identificados, estipulando um prazo para que se efetive essa
mesma resolução. Face a esta medida, o Estado-Membro deverá informar
as medidas a adotar para pôr termo aos problemas identificados como
ameaça sistemática ao Estado de Direito.

Na terceira e última fase, no “Seguimento da recomendação da


Comissão”, a Comissão acompanha e verifica se o Estado-Membro seguiu
as recomendações indicadas por esta.

Todo este processo assenta num diálogo entre a Comissão e o Estado-


Membro. Findo o prazo estipulado pela Comissão, se não houver um
seguimento satisfatório, aí sim, é possível aplicar-se o artigo 7.º do TUE,
este também só poderá ser acionado através de uma proposta
fundamentada de um terço dos Estados-Membros, pelo Parlamento
Europeu ou pela Comissão.

Neste caso, o artigo 7.º não poderá ser acionado, pois, mesmo que a
República Atlântida não tenha alterado o que infringira durante o prazo entre
a notificação e o intento da ação judicial por parte da Comissão, o órgão da
UE, não cumpriu o procedimento do artigo referido. A Comissão apenas se
limitou a notificar a República Atlântida, falhando no diálogo exigido entre o
Conselho e o Estado-Membro de maneira a chegar a um consenso de

5
ambas as partes (uma recomendação por parte do Conselho e uma
solicitação de explicação por parte da República Atlântida).

De seguida, segundo o processo descrito anteriormente, caso persistisse o


mesmo erro, isto é, se a República Atlântida não cumprisse o recomendado
pelo Conselho, aí é que se seguia para medidas mais pesadas.
Nomeadamente, intentar uma ação ao Estado-Membro por ameaça ao
Estado de Direito.

Por conta da falha da Comissão, já não se aplica o artigo 7.º, porém, num
caso hipotético de este ter sido cumprido, este artigo ainda contém os
instrumentos de resposta: um com dimensões preventivas, e outro com
dimensões mais severas, isto é, com medidas sancionatórias.6

As medidas preventivas são utilizadas quando existe um risco


manifesto de violação grave dos valores da UE, já as medidas
sancionatórias são utilizadas no caso de violação grave e persistente dos
valores da UE. Embora as possíveis sanções contra o Estado-Membro não
estejam claramente definidas nos Tratados, podem incluir a suspensão do
direito de voto no Conselho e no Conselho Europeu.

Nos dois mecanismos, a decisão final tem de ser tomada pelos


representantes dos Estados-Membros no Conselho. No mecanismo de
prevenção, a decisão no Conselho requer uma maioria de 4/5 dos Estados-
Membros. A determinação da existência de uma violação grave requer a
unanimidade dos chefes de Estado e de governo. O Estado-Membro em
causa não participa em nenhuma das votações.

Através deste artigo, os Estados-Membros, estando vinculados a


determinados valores comuns, estão sujeitos a uma fiscalização
permanente por parte dos órgãos da UE.7

6
Disponível em:
http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/2860/1/Do%20artigo%207.%C2%BA%20do%20tratado
%20da%20Uniao%20Europeia%20na%20situa%C3%A7ao%20da%20Polonia.pdf

7
Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/eu-
affairs/20180222STO98434/respeito-do-estado-de-direito-na-ue-o-procedimento-do-artigo-7-o-passo-a-
passo

6
Junto ao não cumprimento do procedimento do artigo 7.º do TUE, a
Comissão viola o artigo 258.º do TFUE, que diz:

“Se a Comissão considerar que um Estado membro não cumpriu


qualquer das obrigações que lhe incubem por força dos Tratados, formulará
um parecer fundamentado sobre o assunto, após ter dado a esse Estado
oportunidade de apresentar as suas observações (…)”

As disposições do artigo 258.º, bem como do 260.º, regulam a ação


por incumprimento e dizem respeito ao incumprimento por ação ou por
omissão, de obrigações que incumbem aos Estados-membros “por força
dos Tratados”, em sentido lato. O processo previsto no artigo 258.º comporta
2 fases:

Uma fase administrativa ou pré-contenciosa que delimita o objeto do


litígio e muitas vezes, em função da resposta apresentada pelo Estado-
membro, leva ao encerramento do processo pela Comissão;

E uma fase judicial no TJUE, em que o acórdão apenas declara o


incumprimento, e só numa segunda fase, de novo acionado aplica uma
sanção pecuniária.

No entanto, tal como referido anteriormente, neste caso, a Comissão


não cumpriu com o disposto, o que a poderá encaminhar estar sujeita a
fiscalizações e sanções por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia,
segundo o artigo 263.º do TFUE:

“O Tribunal de Justiça da União Europeia fiscaliza a legalidade dos


atos legislativos, dos atos (…) da Comissão (…) destinados a produzir
efeitos jurídicos em relação a terceiros. (…) fiscaliza também a legalidade
dos atos dos órgãos ou organismos da União destinados a produzir efeitos
jurídicos em relação a terceiros.

Para o efeito, o Tribunal é competente para conhecer dos recursos


com fundamento em (…) violação dos Tratados (…) interpostos (…) pela
Comissão (…)”8

8
Disponível em: file:///C:/Users/arian/Desktop/10432-Texto%20do%20Trabalho-38269-1-10-
20170801.pdf

7
Passados 2 anos e 2 meses, o Tribunal Constitucional Atlântico
deliberou que o direito da UE colide com a Constituição Atlântida, sendo
incompatível com a mesma, e concluiu que “a UE não tem competência para
avaliar a Justiça Atlântida e o seu funcionamento”, rejeitando desta forma as
exigências de Bruxelas sobre a abolição da reforma judicial operada pela
Lei Justitia Atlantis, o que é perfeitamente legítimo porque o direito do
Estado-membro tem obrigatoriamente que coincidir com o direito da UE,
caso contrário não seria um membro.

No dia 13/03/2021, o comissário europeu de justiça instou a República da


Atlântida a “aplicar a legislação comunitária para proteger a independência dos
juízes” e declarou que o conjunto dos comportamentos Atlântidos pode ser
interpretado como a notificação a que alude o artigo 50.º, n. º2 TUE.

De facto, o artigo 50.º, nº2 comprova que a Comissão não apresenta


competências para expulsar ou forçar um Estado-membro a se retirar da UE, mas
sim o próprio deve notificar o Conselho Europeu, para que sejam estabelecidas
as condições da sua saída. Podendo- se assim equiparar ao caso de Wightman9,
caso este em que a Comissão também excede as suas competências. Posto isto,
a Comissão viola os princípios da atribuição, da subsidiariedade e da
proporcionalidade dispostos no artigo 5.º do TUE.

Conclusões

Tendo em consideração toda a exposição feita anteriormente, o Advogado-


Geral conclui e solicita ao Tribunal de Justiça que tanto a República Atlântida,
como a Comissão sejam sancionadas ao abrigo da legislação da União Europeia,
respetivamente, pela violação das obrigações dos Tratados e pela excedência de
competências por parte do órgão.

9
Para mais pormenores sobre o caso de Wightman aceder: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/pt/TXT/?uri=CELEX:62018CJ0621

Você também pode gostar