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Direito da União Europeia

Prof. Doutora Maria Luísa Duarte

Aula de 28 Abril de 2020

Sumário: Capítulo 4 – A articulação entre a ordem jurídica eurocomunitária


e as ordens jurídicas nacionais – princípios e critérios
fundamentais
Pontos 18.1/18.2./18.3./18.4. (autonomia, primado e eficácia
directa)

I. Tópicos de análise

Aspectos introdutórios

Entramos numa fase do nosso estudo que é, particularmente, estimulante.


Desde logo, conciliar a teoria com a prática. Essa espécie de aforismo da
universidade da vida “na prática, a teoria é outra” serve como convite a uma
boa gargalhada, mas, em definitivo, é uma saída simplória para a exigência
que se espera da Ciência do Direito.
O ponto de partida da nossa análise é sempre a relação de equivalência e
de coexistência entre, por um lado, a ordem jurídica da UE e, por outro lado,
as ordens jurídicas nacionais. Em diversos domínios, como em especial o da
protecção dos direitos fundamentais, o espaço jurídico da internormatividade
abarca ainda, sob diferentes modalidades de recepção, as normas e princípios
de Direito Internacional Geral ou Convencional. A ideia seminal da
internormatividade consente relações entre as normas de diferentes origens
estamentais que podem ser de convergência, concorrência, justaposição e
conflito, mas da qual está arredado o critério da hierarquia. Por isso,
rejeitamos o termo multinível, de importação da doutrina alemã e anglo-
saxónica (v., por todos, Ingolf Pernice, “Multilevel constitutionalism and the
Treaty of Amesterdam: European Constitution-making revisited?”, Common
Market Law Review, 1999, n.º 4, p. 703-750), recebido um tanto
acriticamente entre nós por alguns autores. O chamado constitucionalismo
multinível pressupõe, sem o assumir, o critério da hieraquia na relação entre
normas de génese estadual e normas de génese comunitária, baseado na
suposta existência de uma identidade constitucional europeia, comum no seu
lastro valorativo e subordinante na sua autoridade. Em definitivo, não temos
problemas em declarar o nosso cepticismo intelectual sobre a adequação
dogmática de uma construção que coloca num plano superior normas que,
em rigor, dependem da habilitação que reside nas supostas normas inferiores
ou subordinadas. A função conformadora dos Tratados e o âmbito material
de regulação do direito derivado dependem da vontade pactícia dos EM que,
por sua vez, têm as Constituições como limite e enquadramento. Se uma
determinada construção doutrinária, para além da sua duvidosa proposição
científica, se revela, afinal, inútil ou excessiva para garantir um certo
objectivo ou resolver os casos concretos de aplicação internormativa – como
nos parece que aconteceu com a teoria do constitucionalismo multinível em
relação à garantia do primado e da aplicação preferente da norma

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eurocomunitária – então, uma tal teoria confunde mais do que esclarece.
Admitimos, contudo, que seja mesmo esse o propósito do constitucionalismo
multinível, o de banalizar uma narrativa que, passo a passo, promove a
substituição das Constituições dos Estados-membros por uma Constituição
supranacional. Uma espécie de prólogo para o grande salto constituinte em
direcção à federação europeia: sem vetos, sem referendos, sem as
contrariedades do controlo dos parlamentos nacionais. No passado, o da
transição para o Estado Liberal, o monarca outorgava a constituição. No
século XXI, a Constituição Europeia, na informalidade ambígua da sua
afirmação supranacional, é uma espécie de dávida da fé, óbolo generoso da
doutrina militante, ainda que incompreendida pelos que persistem em
valorizar as Constituições nacionais como o derradeiro dique que, em cada
Estado-membro, os defendem da maré da indiferenciação identitária que
arrastaria consigo o (pouco) que resta das vontades nacionais de fabrico
democrático.

Autonomia da ordem jurídica eurocomunitária

Não oferece reservas que uma ordem jurídica como a da UE – de resto,


como vimos em relação à ordem jurídica internacional – é autónoma. Com
as suas fontes, estrutura institucional de decisão normativa, tribunais
próprios, a ordem jurídica comunitária foi criada para funcionar em registo
de auto-suficiência, no quadro das competências atribuídas pelos EM às
Comunidades Europeias. A questão controvertida é a de saber quais os
limites dessa autonomia quando a ordem jurídica eurocomunitária se cruza

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com as ordens jurídicas dos EM ou com a ordem jurídica internacional. Já
abordámos o problema do ponto de vista teórico quando cuidamos de
fundamentar a relação do DIP com os ordenamentos nacionais:

“No espaço jurídico global, as relações típicas de internormatividade


contribuíram, fortemente, para esbater as fronteiras clássicas entre
ordenamentos jurídicos, mas, reconhecida a autonomia da ordem
jurídica internacional, permanece a sua dependência em relação às
ordens jurídicas descentralizadas (...)” (in Direito Internacional
Público e ordem jurídica global do século XXI, Lisboa, AAFDL,
2016, p. 314).

No caso da ordem jurídica eurocomunitária, o TJ, invocando a sua


especificidade em relação ao Direito Internacional, desenvolveu um
entendimento da exigência da autonomia que é auto-referencial:

“Diversamente dos tratados internacionais ordinários, o Tratado


CEE insitui uma ordem jurídica própria que é integrada nos sistemas
jurídicos dos Estados-membros a partir da entrada em vigor do
Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais” (v.
acórdão de 15.07.1964, Costa c. Enel, 6/64, p. 555).

Cabe ao Direito da União determinar se e com que alcance são aplicáveis


as suas normas em situações de conflito com disposições internas ou
internacionais. Uma tal determinação é feita pela via da interpretação dos

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Tratados e das normas eurocomunitárias aplicáveis que compete ao TJ: os
EM não podem subtrair os litígios à apreciação do TJ (v. artigo 344.º TFUE)
e os tribunais dos EM estão obrigados a seguir a jurisprudência existente do
TJ ou, em caso de dúvidas, devem colocar-lhe a questão para lhe dar o ensejo
de decidir (v. artigo 267.º TFUE).
Em todo o caso, autonomia não é sinónimo de auto-suficiência da ordem
jurídica da União, no sentido de justificar a exclusão de valores e princípios
que são imperativos no ordenamento internacional ou o são nas
Constituições dos EM, enquanto expressão de uma identidade nacional que
a União se compromete a respeitar (v. artigo 4.º, n.º 2, TUE). A
jurisprudência do TJ sobre o âmbito e as implicações da autonomia não é
linear e, sobretudo, não é consistente, em nossa opinião, com uma concepção
que deveria ser menos ortodoxa em relação ao primado e, por outro lado,
urgia que fosse mais dúctil no que toca ao monopólio jurisdicional do TJ. Se
no caso Kadi II (v. acórdão de 3.09.2008, C-402/05 P e C-415/05 P, n.º 326),
o TJ usou o argumento da autonomia da ordem jurídica eurocomunitária para
garantir um padrão adequado de tutela dos direitos fundamentais, já no
Parecer 2/13 a autonomia foi um pretexto mal justificado para manter o TJ
fora do eventual escrutínio por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, em contraste com decisões anteriores (v. Parecer 1/91, de
14.12.1991, sobre o Acordo EEE; Parecer 1/09, de 8.03.2011, sobre o
Acordo de criação de um sistema unificado de patentes) e posteriores em que
admitiu a existência de tribunais ou órgãos análogos, criados por acordo
internacional, com competência para interpretar e aplicar o Direito da União
Europeia. Em suma: sobre matéria desta importância, seria desejável uma

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directriz interpretativa menos serpenteante, menos casuística, sobre o
traçado da linha relativa à autonomia da ordem jurídica da União. Sobre esta
problemática, veja-se a análise arguta e aprofundada de Francisco Abreu
Duarte, “Autonomy and Opinion 1/17 – a matter of coherence”, European
Law Blog, 31.05.2019.

Princípio do primado

Segundo a glosada justificação de Pierre Pescatore, o primado é a


“exigência existencial” do Direito Comunitário. Carecida do reforço de
autoridade que lhe permite prevalecer sobre a norma interna, a norma
eurocomunitária não existiria enquanto compromisso de direito uniforme,
porque a sua aplicação interna poderia ser afastada ou mitigada por vontade
do decisor estadual.
No aresto proferido no caso Costa c. Enel, o primeiro que ofereceu uma
fundamentação clara e coerente do princípio do primado, o TJ, confrontado
com o dever de o tribunal italiano aplicar a norma interna existente sobre a
matéria, foi categórico sobre os alicerces teóricos da exigência do primado:

“(...) ao instituírem uma Comunidade de duração ilimitada, dotada de


poderes reais resultantes de uma limitação de competências ou de
uma transferência de atribuição dos Estados para a Comunidade,
estes limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos
soberanos e criaram, assim, um corpo de normas aplicável aos seus
nacionais e a si próprios”.

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e prossegue para concluir:
“Esta integração do direito de cada Estado-membro, de disposições
provenientes de fonte comunitária e, mais geralmente, os termos e o
espírito do Tratado têm por corolário a impossibilidade, para os
Estados, de fazerem prevalecer, sobre uma ordem jurídica por todos
aceite numa base de reciprocidade, uma medida unilateral posterior
que não se lhe pode opor (...). As obrigações assumidas no Tratado
que institui a Comunidade não seriam absolutas mas apenas
eventuais, se pudessem ser postas em causa por posteriores actos
legislativos dos signatários” (v. acórdão de 15.07.1964, 6/64, p. 555-
556) (ênfase acrecentada).

A norma eurocomunitária prevalece sobre a norma interna contrária não


porque seja hierarquicamente superior – e não é –, mas porque é
materialmente competente para regular o litígio concreto. Como sempre
defendemos, desde a primeira abordagem teórica que dedicámos a este tema
num estudo publicado em 1995 (v. infra Leituras), a relação entre o Direito
Comunitário e os Direitos do EM constrói-se com base no princípio da
competência por atribuição, nos limites definidos pela exigência de
colaboração ou complementariedade funcional entre ordenamentos jurídicos
e autónomos. O primado não tem o efeito de destruir a autonomia dos
ordenamentos nacionais nem o de pôr em causa a função legitimadora e
paramétrica das Constituições nacionais. Como o TJ enfatiza no caso Costa
c. Enel, foram os Estados que aceitaram a limitação de competências em
domínios definidos nos Tratados. Não se trata de uma hetero-limitação de

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competências, mas antes uma auto-limitação de poderes de regulação
jurídica, formalizada por via convencional, nos termos previstos e
consentidos pelas respectivas Constituições nacionais.
A consequência operativa do princípio do primado é o afastamento ou
desaplicação da norma interna contrária e, no quadro do litígio concreto, os
direitos e interesses envolvidos serão juridicamente determinados pela
norma eurocomunitária aplicável. Note-se, que o princípio do primado
funciona, em termos metodológicos, como uma espécie de ultima ratio ou
critério subsidiário: só depois de esgotadas outras vias de superar o problema
colocado pela existência de norma eurocomunitária e norma interna
aparentemente contrária, o Juiz (nacional ou TJUE) pode avançar para a
decisão aplicativa com fundamento no primado. Com efeito, o primado é um
critério reservado para a existência de verdadeiros conflitos entre norma
eurocomunitária e norma interna contrária. Não existirá um verdadeiro
conflito se a norma interna for susceptível de uma interpretação conforme
(v. infra 18.5. do Programa) ou no caso de, tornando-se impossível a
aplicação da norma eurocomunitária, apenas restar a alternativa de
reconhecer aos lesados a indemnização com fundamento na responsabilidade
extracontratual dos EM por violação do Direito da União (v. infra 18.8. do
Programa).
No caso Simmenthal, outro dos acórdãos históricos sobre o princípio do
primado, o TJ, ao tratar das consequências do primado como critério de
superação de um conflito entre norma eurocomunitária e norma interna,
epilogou que a norma interna contrária é “inaplicável de pleno direito, desde

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o momento da sua entrada em vigor” (v. acórdão de 9.03.1978, 106/77, n.º
17).
A norma interna contrária deve ser desaplicada e, por força do princípio
da leal cooperação (v. artigo 4.º, n.º 3, TUE), os órgãos nacionais
competentes estão obrigados a promover a sua revogação ou alteração de
modo a eliminar a incompatibilidade detectada com o Direito da União
Europeia. O princípio do primado não se repercute directamente na validade
ou invalidade da norma interna contrária. Esta norma não pode, todavia, ser
aplicada, devendo ser removida do ordenamento interno, sob pena de o EM
em causa ser demandado perante o TJ por acusação de incumprimento (v.
artigo 258.º TFUE), sujeitando-se, se reiterar na vigência da norma contrária,
à aplicação de sanções pecuniárias pesadas (v. artigo 260.º TFUE).
O primado como imposição comunitária, de fonte jurisprudencial,
envolve para os EM uma obrigação de resultado que consiste na garantia de
aplicação da norma ou acto jurídico do Direito da União em qualquer
situação de litígio concreto que oponha os particulares aos EM (litígio
vertical) ou que envolva um dissídio entre particulares (litígio horizontal). O
destino final da norma interna desaplicada (revogação / declaração de
ilegalidade / declaração de inconstitucionalidade) é um problema que
cumpre decidir no quadro das vias internas de fiscalização judicial da
legalidade e/ou da inconstitucionalidade, corolário do princípio da
autonomia constitucional e processual da ordem jurídica dos EM. Sem
prejuízo de cada Constituição fixar as consequências do desvalor associado
à contradição entre norma eurocomunitária e norma interna, incluindo de
estalão constitucional, o TJ entende, à luz do princípio do efeito útil e do

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respeito pelo estatuto do juiz nacional como tribunal comum de aplicação
interna do Direito da União, que a Constituição de um Estado não pode inibir
o juiz do litígio concreto de decidir sobre a desaplicação da norma interna
contrária:

“(...) o juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências,


pela aplicação de disposições de direito comunitário, tem obrigação
de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade
própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de
direito interno que as contraria, ainda que tal norma seja posterior,
sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida
norma por via legislativa ou por qualquer outro processo
constitucional” (v. caso Simmenthal, n.º 24).

O problema coloca-se em relação aos sistemas de fiscalização da


inconstitucionalidade que, como o sistema italiano no caso Simmenthal,
condicionam a desaplicação da norma interna à declaração prévia de
inconstitucionalidade que só o Tribunal Constitucional poderá apreciar. Em
jurisprudência mais recente, relativa à fiscalização da constitucionalidade em
França (v. acórdão de 22.06.2010, Melki, C-188/10, n.ºs 42-43) e na
Eslováquia (v. acórdão de 15.10.2013, Krizan, C-416/10, n.º 68), o TJ
reiterou a doutrina Simmenthal ao afirmar a competência, e acrescente-se o
dever, por parte do juiz do litígio concreto para, por si, garantir a aplicação
da norma eurocomunitária:

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“(...) O juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua
competência, as disposições do direito da União tem a obrigação de
garantir a plena eficácia dessas normas, não aplicando, se necessário
e no exercício da sua autoridade, qualquer disposição contrária de
legislação nacional, mesmo posterior, sem que tenha de pedir ou
aguardar a sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer
outro procedimento constritucional” (v. caso Melki, n.º 43).

O caso do sistema português é diferente: por um lado, temos um sistema


descentralizado de fiscalização da inconstitucionalidade (v. artigo 204.º
CRP) e, por outro lado, a jurisprudência do TC segue o entendimento que
não lhe compete pronunciar-se sobre situações de alegada desconformidade
entre norma interna e norma convencional, incluindo os Tratados institutivos
da UE (ilegalidade atípica), pelo que a questão deve ser resolvida pelo Juiz
do caso concreto, com a eventual colocação de questões prejudiciais ao TJ
(v. artigo 267.º TFUE).
Cumpre, contudo, referir o caso Mecanarte, suscitado por um tribunal
português que formulou uma questão específica sobre se o desvalor da norma
interna contrária ao Direito Derivado se traduziria ou não numa
inconstitucionalidade, o que, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, al. a), e n.º 3,
CRP, tornaria obrigatório o recurso para o TC. Na sua resposta, o TJ
reafirmou os pressupostos da fórmula Simmenthal: o juiz da causa tem o
poder de decisão e o dever de garantir a plena eficácia da norma
eurocomunitária aplicável, sem prejuízo de a sua decisão, por imperativo do
direito interno, neste caso norma constitucional, ser depois objecto de

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recurso (v. acórdão de 27.06.1991, C-348/89, n.º 38 e segs.). Assim, mesmo
que se verifiquem os pressupostos de recurso obrigatório para o TC [v. artigo
70.º, n.º 1, alínea i), LOTC; e artigo 72.º, n.º 3, LOTC], tal não afecta a
liberdade decisória do juiz da causa, incluindo a de não aplicar a norma
interna por violar o Direito da União.
Até aqui temos falado, em termos genéricos, da contradição entre norma
eurocomunitária e norma interna. Sob esta designação de “norma interna”,
temos desde uma portaria, uma lei da AR e, no topo, a própria Constituição.
Para o TJ, a prevalência do Direito da União não depende nem da natureza
da norma ou acto jurídico da União (uma decisão da Comissão, um acto
legislativo, um acórdão do TJUE, os Tratados institutivos) nem do lugar que
a norma interna ocupa na estrutura escalonada da ordem jurídica interna. Já
para os tribunais constitucionais dos EM, ou órgãos judiciais dotados de
competência análoga de garantia das respectivas Constituições, o chamado
primado supraconstitucional coloca problemas sérios e não deve ser
abordado como se o primado, numa versão inutilmente dogmática ou
ortodoxa, tivesse de ser absoluto e incondicional.
A constante que é possível identificar na jurisprudência do TJ permite
concluir que a natureza constitucional da norma interna invocada no litígio
concreto não altera a posição do TJ sobre as exigências do primado, mesmo
que uma tal interpretação tenha no caso concreto um impacto deveras
negativo sobre o nível de protecção dos direitos fundamentais, como seja o
caso de garantias de direito penal na Constituição Espanhola (v.g. caso
Melloni, acórdão de 26.02.2013, C-399/11):

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“(...) é jurisprudência assente que, por força do princípio do primado
do direito da União, que é uma característica essencial da ordem
jurídica da União (...), a invocação por um Estado-membro de
disposições de direito nacional, ainda que de natureza
constitucional, não pode afectar o efeito do direito da União no
território desse Estado” (caso Melloni, n.º 59 (ênfase acrescentada).

No caso Michaniki, estando em causa também uma norma constante da


lei fundamental da Grécia, o TJ optou por abordar o problema sem
mencionar expressamente o estatuto constitucional da norma interna julgada
contrária ao Direito da União em matéria de direito da contratação pública
(v. acórdão de 16.12.2008, C-213/07, n.º 69).
Importa recordar que os Tratados não têm uma referência expressa ao
princípio do primado. Constava do artigo I-6.º do projecto de Constituição
Europeia, com o seguinte texto:

“A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no


exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre o
direito dos Estados-membros”.

Na transição do texto da Constituição Europeia para o texto do Tratado


de Lisboa, o artigo I-6.º foi obliterado por ser considerado excessivo para
alguns Estados-membros. Ficou apenas a Declaração n.º 17 que, no
essencial, remete para o adquirido jurisprudencial em matéria de princípio
fiundamental do primado. Em contrapartida, surgiram nos Tratados, após a

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versão de Lisboa, disposições que não devem ser ignoradas como elementos
integrantes de uma interpretação sistemática – em especial, o artigo 4.º, n.º
2, TUE, o artigo 6.º, n.º 3, TUE e o artigo 53.º CDFUE. Da análise conjunta
e coerente destas disposições, resulta claro – para nós, pelo menos – que o
texto e o espírito das Constituições nacionais não é indiferente ao processo
hermenêutico de garantia do primado. Neste sentido, o princípio do
primado não é absoluto nem é incondicional. Por um lado, existem limites
à prevalência da norma eurocomunitária, o que aconteceria, por exemplo, se
uma directiva comunitária no domínio do espaço de liberdade, segurança e
justiça (v. artigos 67.º e segs., TFUE), viesse a impor aos EM a criação de
tribunais especiais para o julgamento de crimes de terrorismo de incidência
transfronteiriça, com fundamento no artigo 83.º, n.º 1, TFUE. Uma iniciativa
de harmonização das legislações nacionais que violaria, de modo flagrante,
o princípio do juiz natural, arrimo estrutural do Estado de direito, e,
directamente, a proibição do artigo 209.º, n.º 4, CRP. Não requer um
esforçado sentido de demonstração verificar que o princípio do juiz natural
e a proibição de tribunais especiais integram uma opção legítima e essencial
da estrutura constitucional portuguesa (e de qualquer Estado de direito) que
a União se compromete a respeitar, nos termos definidos pelo artigo 4.º, n.º
2, TUE.
Por outro lado, existem limites ao primado que funcionam numa lógica
de auto-limitação, uma espécie de exigência metodológica de congruência
do sistema jurídico da União. Também neste caso os Tratados oferecem ao
TJ uma base textual que este não deveria desvalorizar – o artigo 6.º, n.º 3,
TUE e o artigo 53.º CDFUE. Os direitos fundamentais, enquanto princípios

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gerais, “tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos
Estados-membros”, fazem parte integrante do direito da União e, portanto,
devem ser observados e respeitados. No artigo 53.º da Carta, as Constituições
dos Estados-membros são referidas como critério relevante de determinação
do nível mais elevado de protecção dos direitos fundamentais na ordem
jurídica da União. Um exemplo: o artigo 28.º CDFUE, ao prever o direito de
trabalhadores e entidades patronais de recorrer a acções colectivas para a
defesa dos seus interesses, não pode ser interpretado no sentido de considerar
o artigo 57.º, n.º 4, CRP, que proíbe o lock-out, como contrário ao direito de
acção colectiva tal como previsto na Carta. Com efeito, a proibição do lock-
out, pressupondo a desigualdade de armas nos conflitos laborais entre
trabalhadores e empregadores, visa garantir protecção à parte mais fraca e
proporcionar, assim, um nível mais elevado de protecção, objectivo de
renovada actualidade em que cabe ao Estado uma acrescida responsabilidade
político-social na tentativa de recuperar algum equilíbrio na relação
profundamente assimétrica entre “empresários e colaboradores”.
Nesta lógica de auto-limitação, o TJ só pode exigir a aplicação
prevalecente de uma determinada norma eurocomunitária se, pelo menos em
matéria de direitos fundamentais, esta norma tiver sido interpretada (e
integrada no caso de lacunas) em conformidade com as normas
constitucionais e tradições constitucionais comuns que, nessa qualidade,
fazem parte integrante do Direito da União. Com este alcance, o TJ está ainda
a aplicar o Direito da União, interpretado à luz dos padrões constitucionais
de protecção mais exigentes (neste sentido, v. acórdão de 12.06.2003,

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Schmidberger, C-112/00, n.º 76 e segs.; acórdão de 14.10.2004, Omega, C-
36/02, n.º 33 e segs.).
A dupla relativização do primado, que resulta, por um lado, do respeito
pela identidade constitucional dos EM, e deriva, por outro lado, do
alargamento do “bloco de fundamentalidade” da União aos princípios
fundamentais de regime jurídico-constitucional em matéria de direitos, tem,
na verdade, uma justificação comum e que é inerente ao sistema jurídico da
União. O artigo I-6.º do projecto de Constituição Europeia estabelecia,
recorde-se:

“A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no


exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre o
direito dos Estados-membros” (ênfase acrescentada).

O princípio da competência por atribuição é um limite inerente ao


primado. A norma eurocomunitária prevalece na medida em que
traduza o exercício de uma competência atribuída pelos Tratados. Ainda
assim, o limite poderá ser pouco efectivo se o TJ enveredar por uma
interpretação marcadamente criativa e extensiva dos Tratados como base de
habilitação do decisor da União. Para o Tribunal Constitucional alemão, a
aplicação interna do Direito da União deve ser sujeita a um teste de controlo
ultra vires: a vocação prevalecente da norma eurocomunitária sobre a norma
interna é neutralizada no caso de se concluir que o decisor da União violou
os limites de competência definida pelos Tratados. A questão crucial é aqui
a de saber qual o tribunal competente para decidir sobre o teste ultra vires.

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No caso Honeywell, uma decisão do Tribunal de Karlsruhe de 6 de Julho de
2010, foram definidos dois critérios complementares: o TC alemão invoca o
direito de se pronunciar sobre a compatibilidade de uma norma ou acto
jurídico da União com o princípio da competência por atribuição e,
eventualmente, declarar a sua inaplicabilidade na ordem jurídica alemã, mas
condiciona o veredicto de ultra vires aos casos em que haja uma transgressão
manifesta dos limites da competência e só depois de ter sido dada a
oportunidade ao TJ para se pronunciar, ao abrigo do processo das questões
prejudiciais (267.º TFUE). O TC alemão aceita o diálogo com o TJ que, no
quadro do artigo 267.º, al. b), TFUE, pode declarar a invalidade da norma
inquinada do vício da incompetência.
Independentemente da fluidez dos limites da competência atribuída,
movidos pelo impulso mais ou menos criativo da jurisprudência do TJ, existe
um limite fundamental e implícito que o TJ deve levar a sério sob pena de se
desgastar na relação de diálogo com os tribunais superiores dos EM que é,
sublinhe-se, um diálogo entre iguais. A atribuição de competências que o TJ
menciona expressamente no caso seminal Costa c. Enel tem por base os
Tratados que, por sua vez, foram aprovados com fundamento das
Constituições dos Estados. Assim, o âmbito de habilitação não pode
extravasar os limites imanentes à garantia do Estado de direito. A ideia é
simples nos seus pressupostos e firme, sem ambiguidades, nas consequências
jurídicas: tal como o delegante está impedido de permitir o que a ele próprio
a lei proíbe, também os Estados (soberanos) de direito não podem atribuir
competências à União que, em si mesmas ou em resultado do seu exercício
abusivo, violem os princípios nucleares e regras fundamentais de

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configuração do sistema democrático e de protecção dos direitos
fundamentais.

A eficácia directa

O artigo 288.º TFUE estabelece como característica do regulamento que


é “directamente aplicável em todos os Estados-membros”, o que garante a
este acto a produção de efeitos nas ordens jurídicas nacionais de modo
directo, sem depender de actos de intermediação ou de recepção. E em
relação às disposições dos Tratados? E as directivas? E outro tipo de actos
jurídicos da União? Será que também podemos, com acuidade, falar em
aplicabilidade directa? A partir do caso Van Gend en Loos (acórdão de
5.03.1963, 26/62), entra em cena o conceito de efeito directo, primeiro tendo
por objecto as disposições dos Tratados e, mais tarde, no caso Van Duyn (v.
acórdão de 4.12.1974, 41/74) a propósito de uma norma constante de
directiva. O TJ usa, de modo um tanto indiferenciado, os termos efeito
imediato, efeito directo, aplicabilidade directa, aplicação imediata. Do lado
da doutrina, vingou a distinção entre, por um lado, aplicabilidade directa,
próxima da noção jusinternacionalista de self-executing, e, por outro lado, o
efeito directo como sinónimo de susceptibilidade de invocação directa pelos
particulares como titulares de direitos cuja fonte é a norma eurocomunitária
em causa. Por nós, admitindo que esta distinção faria sentido no período de
afirmação jurisprudencial de um tipo de eficácia jurídica que carecia de
consagração expressa nos Tratados, pensamos que, no quadro actual de
evolução do direito da União, no qual se acentuou a vertente de

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reconhecimento de direitos aos particulares e vinculação das autoridades
nacionais, incluindo os tribunais dos EM, podemos usar indistintamente a
expressão eficácia directa, com o benefício de constituir uma designação
mais clara. A jurisprudência do TJ, muito centrada no objectivo de
“espremer” da norma o máximo do seu efeito jurídico, cuida cada vez menos
da natureza formal do acto (regulamento, decisão, directiva, disposição dos
Tratados) para garantir aos particulares, com base na interpretação do
conteúdo regulador da norma, a invocação dos direitos individuais perante
os tribunais e, eventualmente, perantes as autoridades administrativas.
Em suma, a eficácia directa refere-se ao atributo da norma
eurocomunitária que, reconhecendo direitos subjectivos, proporciona ao
particular a sua invocação, independentemente da existência de legislação
interna contrária.
A eficácia directa está, por outro lado, indissociavelmente ligada ao
princípio do primado. Temos defendido que existe uma relação lógica e
necessária entre o primado e a eficácia directa que é particularmente evidente
no domínio dos direitos fundamentais. Desde o aresto seminal no caso Van
Gend en Loos (v. p. 212), o TJ estabelece uma associação virtuosa entre a
norma atributiva de direitos individuais que produz efeitos imediatos
(eficácia directa) e o dever por parte dos órgãos jurisprudenciais nacionais
de tutelar e garantir o exercício de tais direitos (primado).
O desenvolvimento e o contínuo aprofundamento da jurisprudência em
torno da ideia da eficácia directa da norma eurocomunitária, desde a década
de sessenta do século passado até aos nossos dias, operou a transformação
desta eficácia qualificada como um princípio geral. Nas conhecidas palavras

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de Pierre Pescatore, um dos mais notáveis artífices da base pretoriana do
Direito Comunitário na qualidade de juiz do TJCE e de brilhante académico,
“o efeito directo é o estádio normal de saúde da norma comunitária” (in
“The doctrine of direct effect: an infant disease of Community Law”,
European Law Review, 1983, n.º 3, p. 155). Para simplificar podemos
assumir que a precompreensão do TJ é favorável ao reconhecimento da
eficácia directa, desde que verificados certos requisitos relativos à norma (e
não ao acto jurídico que a aloja). A norma em causa deve ser:
- clara e precisa
- incondicional
Sobre a exigência da clareza e precisão no que toca à forma como a norma
enuncia os direitos individuais, para o TJ será suficiente verificar que a
norma reconhece direitos aos particulares que envolvem obrigações para os
Estados, ainda que estes disponham de uma certa margem de apreciação na
escolha dos meios jurídicos de garantia de tais direitos (sobre esta orientação
jurisprudencial mais recente, v,g acórdão de 12.10.2017, Lombard, C-
404/16, n.º 38). Já o requisito da incondicionalidade, apresenta um duplo
alcance: por um lado, exclui da eficácia directa as normas cuja aplicação
interna fica dependente do exercício de uma competência discricionária,
legislativa ou administrativa, por parte dos EM; por outro lado, no caso
específico das directivas, a incondicionalidade só se verifica depois de
esgotado o prazo de transposição.
Em relação às directivas, e cumpre destacar que boa parte da
jurisprudência relevante sobre a matéria do efeito directo se debruça sobre
litígios concretos que envolvem a aplicação interna de directivas, a sua

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eficácia directa estará dependente do litígio concreto. Nos termos do artigo
288.º TFUE, a directiva nem estaria destinada a criar direitos invocáveis
pelos particulares, já que o destinatário formal é o Estado. Para atalhar os
problemas resultantes da ausência de transposição dentro do prazo ou de uma
transposição parcial e incorrecta, o TJ vislumbrou no reconhecimento do
efeito directo a solução para o problema. Ao tornar a norma da directiva
invocável pelos particulares, decorrido o prazo de transposição e se
verificada a natureza clara e precisa da norma tipificadora de direitos, seria
subtraído ao infractor o benefício do incumprimento. Mesmo que protelasse
o acto de transposição da directiva, o tempo deixava de contar a favor do
EM, porque este poderia ser demandado perante os tribunais nacionais pelos
particulares na qualidade de titulares de direitos. A ideia da directiva como
acto dirigido aos EM nunca foi completamente abandonada e daria mesmo
lugar à distinção entre efeito directo vertical e efeito directo horizontal. No
primeiro caso, a relação de litígio opõe um particular ao Estado (na sua
acepção mais ampla de entidades dotadas de poderes de prerrogativa pública:
administração central, autárquica, indirecta, regional, empresa
concessionária); no caso do efeito directo horizontal, o litígio ocorre entre
dois particulares. A directiva como acto dirigido aos EM é susceptível de
criar direitos que os particulares poderão reclamar, mas não poderá, por si,
impor deveres que vincularão os particulares, susceptíveis ademais de lhes
serem exigíveis pelo próprio EM que não cumpriu a obrigação fundamental
de transposição (v. acórdão de 26.02.1986, Marshall, 152/84, n.º 47-49).
Por conseguinte, o efeito directo pleno que conjuga a desaplicação da
norma interna contrária (efeito de exclusão) com a aplicação da norma da

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directiva como critério de decisão do litígio concreto (efeito de substituição)
estará limitado aos litígios verticais que opõem os particulares ao Estado,
entidades públicas e equivalentes. O TJ não exclui, todavia, a produção de
efeitos colaterais ou indirectos nas chamadas “relações de tipo triangular”.
No âmbito de um litígio entre particulares, a norma da directiva é passível
de invocação por uma das partes com fundamento na violação pelo EM de
uma obrigação específica (para uma ilustração desta situação, v. caso
UNILEVER, acórdão de 26.09.2000, C-443/98, n.º 49).
No caso de directivas cujo prazo de transposição ainda não se esgotou,
importa clarificar:
- a regra é a da insusceptibilidade da sua invocação contenciosa;
- jurisprudência Wallonie, os EM devem abster-se enquanto decorre o prazo
de transposição de adoptar disposições susceptíveis de comprometer
seriamente a realização do resultado prescrito por essa directiva (v. acórdão
de 18.12.1997, C-129/96, n.º 45); os particulares não se podem valer dos
direitos previstos na directiva, mas podem, por invocação do princípio do
primado e do princípio da cooperação leal, opor-se à legislação interna que
foi adoptada em sentido contrário ao regime previsto na directiva;
- jurisprudência Mangold e Seda (relação entre directiva e um princípio geral
de direito da União). O particular pode invocar direitos resultantes da
directiva, ainda que não transposta, se for possível demonstrar que tais
direitos tem a sua origem em princípios gerais de direito, como foi
reconhecido a propósito do direito à não discriminação em razão da idade,
no caso Mangold (v. acórdão dde 22.11.2005, C-144/04, n.ºs 74-76) e no
caso Seda (v. acórdão de 19.01.2010, C-555/07, n.º 21 e segs.). Para o TJ, o

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respeito do princípio geral da igualdade de tratamento não pode, enquanto
tal, depender do termo do prazo de transposição. Não é legítimo – e
sobretudo não é rigoroso do ponto de vista jurídico – concluir pela
irrelevância do decurso do prazo de transposição.
O prazo é uma garantia para os EM, aos quais assiste o direito de usar o
prazo até ao seu término, desde que observado o princípio da boa fé (v. caso
Wallonie). A possibilidade aberta pela doutrina Mangold e Seda de invocar
um determinado direito no contexto de uma directiva cujo prazo de
transposição ainda não se esgotou está inteiramente dependente da
demonstração que um tal direito tem uma outra fonte reveladora, um
princípio geral de direito ou, eventualmente, uma disposição dos Tratados
ou da CDFUE. No sentido de se manter a exigência do esgotamento do prazo
de transposição fora deste contexto de relevância autónoma de um princípio
geral de direito, v. caso Barsch (acórdão de 23.09.2008, C-427/06, n.º 25).

Eficácia directa e meios sucedâneos – se não for possível a invocação da


norma da directiva pelos particulares, seja porque não estão reunidos os
requisitos do efeito directo seja porque se trata de um litígio horizontal, o TJ
soube encontrar meios alternativos que facilitam ao particular o acesso, ainda
que indirecto e parcial, às vantagens associadas ao exercício do direito
previsto na norma da directiva:
1) O dever de interpretação conforme que impende sobre o juiz nacional
(v. infra)
2) A acção de indemnização por responsabilidade extracontratual dos
EM com fundamento na violação do direito da União (v. infra)

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Eficácia directa e vinculação – a face mais visível do princípio da eficácia
directa é, decerto, a da vinculação do juiz nacional, adstrito, no quadro das
respectivas competências, a garantir aos particulares o exercício dos direitos
que convocam na qualidade de titulares. No entanto, e dado que o Direito da
União tem como destinatários as instituições, órgãos e organismos da União,
os EM e os particulares, a garantia da eficácia directa das normas
eurocomunitárias também se impõe à vontade do decisor da União e, o que
suscita maior controvérsia, as autoridades administrativas dos EM (v. Maria
Luísa Duarte, União Europeia e Direitos Fundamentais..., cit., p. 307 e
segs.). Sem prejuízo do princípio da legalidade da actividade administratriva
(v. artigo 266.º, n.º 2, CRP), cumpre reconhecer que o “bloco de legalidade”
no direito interno abrange o direito da União, por força dos n.ºs 3 e 4 do
artigo 8.º CRP. Uma vez que a eficácia directa não é automática, nem
porventura se pode pretender que se presume, porque depende da verificação
pelo juiz – nacional ou eurocomunitário – dos requisitos do efeito directo, a
autoridade administrativa estará limitada no seu poder / dever de desaplicar
a norma interna, sob pena de violação do princípio da separação de poderes
(com posição diferente, TJ sustenta um dever por parte da Administração de
desaplicação da legislação nacional desconforme com o direito da União,
colocando no mesmo plano tribunais e autoridades administrativas – v. caso
Costanzo, de 22.06.1989, 103/88, n.ºs 30-31). Concedemos, contudo, que o
possa fazer, com fundamento na articulação entre o princípio do primado, o
princípio da eficácia directa e o princípio da cooperação leal, mas apenas nas
situações em que seja evidente ou manifesta a contradição entre norma

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interna e norma eurocomunitária. Se a norma eurocomunitária em causa,
atributiva de um direito que é invocado pelo administrado perante a
administração, estiver prevista numa directiva, a autoridade administrativa
estará impedida de desaplicar a norma interna existente enquanto decorrer o
prazo de transposição.

II. Leituras

• Maria Luísa DUARTE – União Europeia e Direitos Fundamentais – no


espaço da internormatividade, Lisboa, AAFDL, 2006, p. 270 e segs.
• Maria Luísa DUARTE – “ O Tratado da União Europeia e a garantia da
Constituição (notas de uma reflexão crítica)”, in Estudos em memória do
Prof. Castro Mendes, Lisboa, 1995, p. 665.
• Maria Luísa DUARTE – “O tempo e a transposição das directivas no
direito da União Europeia”, Estudos em homenagem a Miguel Galvão
Teles, Coimbra, 2012, vol. I, p. 423.
• Maria Luísa DUARTE – “O Tratado de Lisboa e o teste da “identidade
constitucional” dos Estados-membros – uma leitura prospectiva da
decisão do Tribunal Constitucional alemão de 30 de Junho de 2009”,
Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2010, p. 117.
• Maria Luísa DUARTE, Direito Internacional Público e ordem jurídica
global do século XXI, Lisboa, AAFDL, 2016, p. 314 e segs.
• Afonso Chuva BRÁS – “Direito da União Europeia, mutações
constitucionais e sistema de governo” Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, 2019/2, p. 211, disponível em:

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https://drive.google.com/file/d/1cYx6ZwrD8sTJYoyGqxwPDtM8V5v1
c8Xl/view
• Nuno PIÇARRA – “A génese dos princípios do efeito directo e do
primado do direito da União Europeia e o seu impacto constitucional nos
Estados-membros”, Revista Themis, 2013, n.ºs 24-25, p. 101.
• Paul CRAIG / G. de BURCA, EU Law..., cit., p. 184-223, p. 266-314.
• Damian CHALMERS / G. DAVIES / G. MONTI – European Union...,
cit., p. 202-248, p. 289-309.

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