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Direito da União Europeia

Noções introdutórias
O Direito da União Europeia não é um ramo do direito - mais um, numa miríade de
muitos outros (v. g. direito da família, direito das sucessões, direito das obrigações, direito
administrativo, entre outros) - é um verdadeiro Ordenamento Jurídico; uma nova Ordem
Jurídica Autónoma. Sendo uma ordem jurídica autónoma tem associado um sistema jurídico
completo com as suas próprias fontes do Direito. Dessas fontes, uma das mais relevantes -
independentemente de ser, verdadeiramente, fonte de Direito ou não - é a jurisprudência do
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Ora, é dessa jurisprudência do TJUE que
nós nos ocuparemos e que vamos analisar nas aulas práticas, principalmente nestas primeiras
aulas.
Mais para a frente os casos práticos vão-se assemelhar àquilo a que já estamos
habituados, mas, até esses, na sua esmagadora maioria terão por base um acórdão do TJUE e,
aliás, geralmente, os casos práticos de exames têm por base acórdãos do TJUE (daí que muitas
vezes, quer os casos das aulas quer as hipóteses práticas dos exames sejam muito extensos ou
longos precisamente porque têm por base a jurisprudência e aquela informação toda é útil para
se compreender o que se quer depois ver respondido).
Além disso, quer nas aulas práticas quer nas aulas teóricas adotaremos uma perspetiva
constitucional do Direito da União Europeia (DUE). Haverá divisões doutrinárias, mas é esta
doutrina mais constitucionalista que preside ao nosso curso.
Para compreendermos o DUE não basta conhecermos o Direito originário - grosso modo
os Tratados -, nem basta conhecermos direito derivado - os atos normativos do direito da união
europeia: os regulamentos, as diretivas, as decisões e assim por diante é, também,
imprescindível que conheçamos a jurisprudência, as principais decisões, os principais
acórdãos e pareceres do TJUE, porque, na verdade, essa jurisprudência teve um reflexo muito
importante na estrutura jurídica, institucional e política da União Europeia (que será aqui
abordada sendo apenas referida de passagem nas aulas teóricas).

Ficha Prática n.º 1 - A evolução constitucional da União Europeia

I. Acórdão Van Gend & Loos


Um introito que deve ser feito, antes de analisarmos o acórdão Van Gend & Loos - um
acórdão fundamental do Tribunal de Justiça da União Europeia - é sobre a estrutura de um
acórdão do TJUE e sobre os mecanismos processuais que estão aqui em causa.
Quanto à estrutura, geralmente, um acórdão do TJUE está dividido em duas partes
principais:
1. Na primeira parte, o TJUE pronuncia-se sobre os chamados pressupostos processuais
- as condições de admissibilidade da ação, ou seja, um conjunto de questões que podem
ou não determinar se o TJUE se poderá pronunciar sobre o mérito da causa (v. g. uma
parte invoca que o TJUE não tem competência para se pronunciar sobre essa matéria;
ou que a outra parte que refere que a contraparte apresentou uma peça processual que
não apresentava os formalismos necessários; tudo isto são um conjunto de questões que
têm delimitam a decisão de mérito e que têm que ser decididas previamente).
2. Na segunda parte, ultrapassadas as questões processuais, o TJUE poderá pronunciar-
se (dizemos poderá porque dependerá da resposta à primeira parte) quanto ao mérito
da questão aplicando o direito substantivo.
Portanto, geralmente segue-se esta divisão: 1.º as questões processuais (de competência, de
forma, etc.) e depois o mérito da causa, a parte substantiva.

Para além disto, no fim do acórdão, veremos sempre uma parte destacada, geralmente a
negrito, separada de alguma forma, que é aquilo que designamos por dispositivo: corresponde
à fórmula da decisão do TJUE, ou seja, no final está sempre condensada a decisão do TJUE.
Todos os acórdãos que serão analisados, são acórdãos que resultam de um mecanismo de
direito processual específico - o reenvio prejudicial - que está previsto no artigo 267.º do
TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). O mecanismo de reenvio
prejudicial é um mecanismo de diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal
de Justiça (quem diz órgãos jurisdicionais nacionais diz, simplesmente, os Tribunais
Nacionais, se bem que esta realidade é, aqui, muito simplificada por motivo de economia).
Um exemplo prático: imaginemos que um trabalhador intenta, num Tribunal nacional, uma
ação contra a sua entidade empregadora e nessa ação invoca uma determinada norma de DUE,
ou uma norma dos Tratados, ou uma norma de uma diretiva, etc. e o juiz nacional, quando está
a apreciar o caso, fica com dúvidas quanto à validade ou interpretação da norma de DUE.
Perante essas dúvidas o juiz nacional poderá decidir suspender a instância (suspender o
processo que corre nos Tribunais nacionais) e formular um conjunto de questões prejudiciais
que envia para o TJUE responda.
O TJUE vai pronunciar-se sobre essas questões prejudiciais - são prejudiciais porque da
boa decisão da causa depende uma resposta a essas questões, prejudicam a decisão da causa
principal. O TJUE analisará, decidirá e devolverá ao tribunal nacional, assumindo a
interpretação ou a sua decisão quanto à validade da norma. Depois o juiz nacional, nos termos
gerais, decidirá o caso concreto. Isto, em linhas muito simples, é o mecanismo do reenvio
prejudicial ou questões prejudiciais.

No acórdão VG&L (Van Gend & Loos), o tribunal nacional - órgão jurisdicional nacional
(dos Países Baixos) - colocou ao TJUE duas questões prejudiciais:
1. Perguntava se o artigo 12.º do Tratado CEE tem efeito interno, ou seja, os particulares
podem, com base neste artigo, fazer valer direitos individuais que o juiz deva tutelar;

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2. A segunda questão, que seria respondida no caso de a primeira ter sido respondida no
sentido afirmativo, era se a aplicação de um direito aduaneiro de 8% à importação, pelos
Países Baixos, representa uma violação do artigo 12º do Tratado CEE.

À época, o artigo 12º do Tratado CEE, dizia que os estados-membros se abstinham de criar,
entre eles, novos direitos aduaneiros às importações ou exportações. Os direitos aduaneiros
são tarifas ou taxas que se aplicam, numa determinada jurisdição, nas importações ou nas
exportações.
O artigo 12.º do Tratado CEE, na sua redação inicial, já não existe. Atualmente o
equivalente está previsto no artigo 30.º do TFUE e este, por sua vez, refere que são proibidos,
entre os estados-membros, os direitos aduaneiros de importação ou exportação (livre
circulação de mercadorias).
O Tratado de Roma foi assinado em 1957 e institui a CEE - Comunidade Económica
Europeia - e a CEEA - Comunidade Europeia de Energia Atómica - (Euratom ou Eurátomo).
Depois de expostas as questões prejudiciais, temos a decisão de mérito do TJUE que veio
responder àquelas duas perguntas, dizendo que, para saber se uma determinada norma de um
tratado internacional tem ou não aquele efeito que o órgão jurisdicional dos Países Baixos
questiona (se um particular pode ou não, com base no artigo 12.º do Tratado CEE, fazer valer
direitos em juízo), o TJUE tinha de atender ao espírito, à economia e ao conteúdo das normas
dos Tratados.
Quando o TJUE se refere ao espírito, está a apontar para o elemento teleológico da
interpretação da norma jurídica; quando se refere à economia dos tratados está a apontar para
o elemento sistemático; quando fala no conteúdo está a apontar para o elemento literal (ou
gramatical).
Aqui a economia tem também em conta o elemento teleológico - ligado a “ratio legis” -
e, podemos dizer, que tem que ver com o objetivo prosseguido globalmente pelo Tratado: o de
instituir um Mercado Comum cujo funcionamento diz diretamente respeito aos nacionais da
comunidade e, portanto, é mais do que um mero acordo que gera obrigações para os estados-
membros, gera também obrigações para os particulares.
Ora, as convenções internacionais, de acordo com o que já foi lecionado em DIP,
vinculam os estados parte (ou contratantes). Aquilo que o TJUE veio dizer é que o Tratado
CEE não é um tratado como outro qualquer, deste não decorrem só obrigações que vinculam
os estados-parte, decorrem também obrigações que vinculam diretamente os particulares,
nacionais desses estados-membros. Diz o TJUE que esta conceção é confirmada pelo
preâmbulo do Tratado de Roma (ou Tratado CEE) que faz referência não só aos Governos,
mas também aos Povos. Para além disso, este tratado cria órgãos com poderes soberanos cujo
exercício afeta não só os estados-membros, mas também os seus nacionais.
Deve também concluir-se, segundo o Tribunal, que a Comunidade constitui uma nova
Ordem Jurídica de Direito Internacional. Qual é o sentido desta afirmação? (1) A Ordem
Jurídica comunitária confunde-se com a Ordem Jurídica dos estados-membros? Não. (2) Esta

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nova Ordem Jurídica comunitária confunde-se com a Ordem Jurídica do Direito Internacional?
Não. Portanto, é uma coisa nova, um “ex novo”, um “tertium genus”. Não corresponde a um
certo modelo estadual e não serve o modelo internacional, é “qualquer coisa de novo”.
É uma Nova Ordem Jurídica a favor da qual os estados limitaram, ainda que em
domínios restritos, os seus direitos soberanos e cujos sujeitos são não apenas os estados-
membros, mas também os seus nacionais.
Portanto, o Direito Comunitário, independentemente da legislação dos estados-
membros, tal como impõe obrigações aos particulares também lhes atribui direitos e entra na
sua esfera jurídica. Aliás, os Tratados podem nem sequer atribuir direitos aos particulares, mas
podem, impondo obrigações aos estados-membros, como o correspetivo de uma obrigação é
um direito, produzir na esfera jurídica dos particulares, direitos, v. g. direitos contra o próprio
estado.
E, portanto, conclui o TJUE, segundo o espírito, a economia e o texto do Tratado, o
artigo 12.º deve ser interpretado no sentido de que produz efeitos imediatos e atribui direitos
individuais que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar.

a) Contexto factual do caso


Os países do BENELUX (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) adotaram, em 1960,
uma nova classificação aduaneira. Portanto, não houve, aqui, propriamente, um aumento das
taxas aduaneiras globalmente consideradas, o que aconteceu foi antes que os países
modificaram a classificação de algumas mercadorias às quais se passou a aplicar uma taxa
aduaneira superior. Esta empresa - Van Gend & Loos - que importava os seus produtos da
RFA, impugnou esta decisão junto do TJUE invocando que esta reclassificação operada pelos
países do BENELUX violava o art.º 12.º do Tratado CEE.
Vejamos como o Tribunal de Justiça profere decisões absolutamente fundamentais para
a arquitetura jurídica constitucional do DUE a propósito de casos em que os factos são
prosaicos, muito pouco relevantes, isto é, pequenos problemas geralmente associados ao
funcionamento do Mercado Interno.

Ora, foi já visto nas aulas teóricas que o processo de construção europeia pode ser
dividido em seis fases, na sistematização que a Dr.ª Graça utiliza:
1. Criação - 1951 até 1957, aqui com a criação do Tratado de Roma;
2. Consolidação - 1958 até 1970;
3. Desenvolvimento, alargamento e aprofundamento - 1970 até 1993;
4. Refundação I: o aprofundamento para o alargamento - 1993 até 2003;
5. Refundação II: aprofundamento com diferenciação - 2003 até 2009;
6. Refundação III - 2009 até à atualidade.
O acórdão VG&L encontra-se na segunda fase, na consolidação. A fase da consolidação
é a fase da realização da política aduaneira, e destaca-se, nesta fase, em termos normativos, o
Tratado de Bruxelas de 1965, também conhecido como Tratado de Fusão, tratado que

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institui a fusão do Conselho e da Comissão das Comunidades num só (isto é, um só Conselho
e uma só Comissão). Foi nesta segunda fase que começou a haver um orçamento único para
as Comunidades e é também nesta fase a primeira vez que se reconhece às comunidades terem
recursos próprios, ou seja, até aí, o orçamento das comunidades resultava exclusivamente das
contribuições dos estados-membros.
Ao longo deste processo, o papel do TJUE é muito importante, especialmente nesta fase
da consolidação e na posterior (desenvolvimento). Note-se que os estados fundadores da União
Europeia quando assinaram o Tratado de Roma, não anteciparam nem quiseram os termos em
que o projeto europeu se veio posteriormente a desenvolver e consolidar como uma Ordem
Jurídica autónoma. Esse trabalho de construção jurídica de um Ordenamento Jurídico da União
Europa como um sistema autónomo e completo, resulta da doutrina e da jurisprudência do
Tribunal de Justiça da União Europeia.
Foi o TJUE, assumindo plenamente um estatuto de jurisdição constitucional, o principal
arquiteto do sistema jurídico em que a União Europeia atualmente assenta, aquilo a que se
pode qualificar (e se qualifica muitas vezes) como "ativismo judicial inovador".
Nos anos sessenta este papel do Tribunal de Justiça é ainda mais relevante. Se de um
lado tínhamos, do ponto de vista político a "crise da cadeira vazia" e um conjunto de cedências
ao intergovernamentalismo, do outro lado tínhamos o Tribunal de Justiça a proferir decisões
que tiveram um impacto muito grande na arquitetura constitucional da União até aos dias de
hoje.

b) Princípio consagrado
Qual é o princípio que o TJUE consagrou neste acórdão Van Gend & Loos? O princípio
do efeito direto. Este princípio consiste na suscetibilidade de invocação pelos particulares de
normas de Direito da União Europeia perante os tribunais nacionais ou outras autoridades
nacionais, normas essas que conferem direitos ou obrigações. Este princípio distingue-se da
aplicabilidade direta que é a suscetibilidade da norma de Direito da União aplicar-se
diretamente sem necessidade de um ato de receção formal por parte dos estados-membros (sem
necessária de um ato transposição dessa norma europeia pelo direito nacional; ela aplica-se
diretamente no ordenamento jurídico [OJ]).
O regulamento é o ato que por excelência goza de aplicabilidade direta, ao contrário das
diretivas. Nos termos do art.º 288.º do TFUE as diretivas dependem de um ato de transposição
por parte do estado-membro para o OJ nacional. Os regulamentos, nos termos do mesmo
artigo, têm aplicabilidade direta. Note-se que os tratados também têm aplicabilidade direta.
Isto significa que a aplicabilidade direta funciona ao nível da aplicação da norma que
funciona de forma automática, ao passo que, o efeito direto funciona ao nível da invocabilidade
da norma, dependendo sempre da interpretação da norma em causa e do preenchimento de um
conjunto de condições ou requisitos que o TJUE também foi fixando. Os tratados não preveem

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o princípio do efeito direto porque se trata de uma construção jurisprudencial do Tribunal de
Justiça.

Consequências práticas do princípio do efeito direto?


Vamos supor que A vai fazer umas cadeiras a outra Universidade e regressa à Faculdade
B e esta não lhe reconhece os respetivos créditos. A Faculdade B não aceita porque diz que o
prestígio da outra Universidade é duvidoso. A não se conforma, consulta a lei nacional e
encontra uma norma que diz que efetivamente os reconhecimentos são discricionários.
Primeiro: querendo reagir judicialmente contra a decisão da Faculdade B, A dirigir-se-
ia a um tribunal nacional e em regra invocaria uma norma de direito nacional, norma essa que
não lhe dava razão. Contudo, imaginemos que A descobre que aquela norma da lei nacional
não estava conforme com uma norma de direito da união, interessava-lhe mais invocar a norma
de direito da União.
Se essa norma não gozar de efeito direito, A não a pode invocar, fica cingido ao direito
nacional e os seus interesses ficarão desprotegidos porque essa norma não lhe dá razão, não
obstante ela violar o direito da União, mas, se a norma de direito da União gozar de efeito
direito, pode invocá-la diretamente; pode, A, chegar ao juiz nacional e pedir que ignore o
direito nacional, que ainda por cima é desconforme e aplique a norma de direito da união.
Esta é, na prática, a utilidade do efeito direto: a possibilidade de o particular invocar em
tribunais nacionais, para além das normas nacionais, normas da UE que prevalecem sobre as
nacionais em caso de conflito.
Porque é que o juiz, numa situação em que se conclui pela desconformidade do direito
nacional com o direito da União, tem de aplicar o direito da União? Por causa do princípio do
primado, segundo o qual, o direito da união europeia, em caso de oposição, prevalece sobre
o direito nacional.

c) Fundamentos utilizados pelo TJ que justificam a consagração do princípio


Eles encontram-se todos plasmados no acórdão que agora analisamos, mas podemos
dizer que, para além destes, o TJUE, invocou a finalidade específica da CEE - criar um
mercado comum - que não dizia apenas respeito aos estados-membros, mas também aos
particulares, aos nacionais desses estados uma vez que criava obrigações para esses estados-
membros, que entravam nas suas esferas jurídicas e que tinham correspetivos direitos.
Invoca também um outro argumento com base no art.º 177.º Tratado CEE (atualmente
art.º 266.º do TFUE) que é o do reenvio prejudicial, dizendo que, se o Tratados preveem, desde
o início, um mecanismo de reenvio prejudicial isso significa que desde o início supuseram que
perante os Tribunais nacionais pudesse ser invocadas normas de direito da união, porque se
entendessem impor essa limitação - a nível nacional não se podia invocar o direito da União -
o mecanismo do reenvio prejudicial seria completamente inútil, mas se ele foi previsto, foi
porque quiseram ou pelo menos não limitaram que perante os tribunais nacionais pudessem
ser invocadas normas de direito da União.

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O Tribunal dá ainda um outro argumento: supondo que um estado-membro está a violar
o Direito da União, se não reconhecêssemos efeito direto a normas que atribuem direitos ou
deveres aos particulares estaríamos a desproteger os cidadãos, porque eles estariam
exclusivamente dependentes de outros mecanismos destinados a garantir o cumprimento do
Direito da União Europeia, designadamente as ações por incumprimento (acontece que nesse
mecanismo de ação quanto ao incumprimento, quem tem iniciativa é a Comissão ou os outros
estados-membros; se um particular não pudesse invocar diretamente uma norma de direito da
união estaria para sempre limitado a ter de esperar que a Comissão desencadeasse este
mecanismo).
O efeito direto é típico das relações entre o cidadão e o estado, assim o que o TJUE faz
é transpor esta característica tipicamente estadual para o direito da UE

d) Condições referidas no acórdão para que um particular se possa prevalecer de normas


constantes dos Tratados perante os órgãos jurisdicionais nacionais (numa palavra:
condições ou requisitos do efeito direto).
Primeiro, a norma tem de enunciar uma obrigação incondicional, neste caso tratava-se
de uma abstenção; o segundo requisito é a clareza (premissas claras); terceiro requisito é a
precisão; quarto requisito a suficiência, na medida em que a norma não pode ter a sua
execução dependente de um ato positivo de direito interno, é uma norma que se basta a si
mesma, não dependendo de uma intervenção legislativa posterior.
Todos os atos que gozam de aplicabilidade direta gozam de efeito direto? Não, pode
haver normas com aplicabilidade direta sem efeito direto e o contrário também. O efeito direito
é sempre interpretativo e depende sempre do preenchimento daquelas condições.
Um exemplo clássico: um regulamento tem sempre aplicabilidade direta, mas se se cria
um regulamento que define uma disciplina jurídica nova e nesse regulamento há uma norma
em que diz "os estados-membros designam no prazo X a entidade nacional responsável pela
fiscalização deste regime", esta norma tem aplicabilidade direta, mas não tem efeito direto
porque não é suficiente (depende de um ato positivo interno para que possa ser executada).
Estes requisitos (ou condições) inicialmente referidas no acórdão Van Gend & Loos
foram posteriormente flexibilizadas pelo Tribunal de Justiça no sentido de permitir uma
aplicação mais lata do princípio do efeito direto, das "normas claras e incondicionais "
passamos às "normas incondicionais e suficientemente precisas" e das "normas que conferiam
direitos e punham obrigações" passamos também a estender às normas que conferem simples
instrumentos de defesa em processo criminal.

Atualmente, os requisitos do efeito direto são: tratar-se de uma norma prescritiva - no


sentido de se tratar de uma norma de conduta (embora não seja exatamente a mesma coisa) -
precisa, suficiente e incondicional.
É ainda possível reconhecer dois tipos distintos de efeito direto: o efeito direto de
substituição e o efeito direto de exclusão.

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O efeito direto de substituição é o mais comum. Nestes casos, decorre do efeito direto,
a possibilidade de um particular invocar uma norma de direito da união, da qual resultem
obrigações para o Estado, ou direitos a favor dos particulares, para suprir uma legislação
nacional que seja incoerente com essas obrigações ou direitos (ou seja, no fundo há uma
oposição entre a norma de DUE e a norma nacional e por via invocabilidade de substituição o
particular faz decorrer o seu direito diretamente da norma de DUE (que é "suprema" face ao
direito nacional). Portanto a norma de DUE com efeito direto substitui a norma nacional que
a contraria passando a ser essa norma que define a situação jurídica do particular.
Já o efeito direto de exclusão não funciona assim. Nestes casos a norma de Direito da
União serve para afastar ou excluir uma norma nacional ou para permitir o controlo da
aplicação de uma norma de direito nacional contrária ao Direito da União. Nestas hipóteses,
não decorre da norma de DUE nenhum direito subjetivo ou dever para o particular, mas apenas
e só a possibilidade de se eliminar a aplicação da norma nacional no caso concreto, quando
essa norma nacional seja contrária ao direito da União Europeia que possui efeito direto.
No efeito direito de exclusão está-se menos a invocar um direito subjetivo, mas antes a
reclamar ao tribunal nacional um controlo da conformidade do direito interno com o direito
comunitário, pedindo, no fundo, ao tribunal não que aplique a norma de direito da União mas
simplesmente que desaplique a norma de direito nacional.
O caso clássico do efeito direito de exclusão é o caso CIA Security International (C-
194/94). Há uma determina diretiva que impõe aos estados-membros que, quando queiram
adotar normas técnicas (normas que condicionam o exercício de uma atividade ou que
condicionam a circulação de determinada mercadoria; exigências que os estados fazem aos
operadores económicos) têm de a notificar previamente à Comissão.
Há um determinado estado que não procede a essa notificação à Comissão e aplica a
norma técnica que editou a uma empresa de vigilância/segurança (CIA Security International).
Essa empresa de segurança dirige-se ao órgão jurisdicional nacional e invocando os artigos da
diretiva que obrigavam à notificação prévia diz que aquelas normas técnicas não lhes eram
aplicadas.
Ora, as normas invocadas da diretiva não conferiam àquela empresa qualquer direito ou
qualquer obrigação, elas apenas eram procedimentos, exigiam aos estados-membros que
notificassem previamente a adoção de uma norma técnica, não proibiam esse estado-membro
de adotar normas técnicas ou caso análogo.
O TJ, neste acórdão, vem decidir que a norma tinha efeito direto de exclusão, dizendo
que porque não foram respeitadas aquelas normas da diretiva e porque estas, que impunham a
notificação prévia, têm efeito direto, então, as normas técnicas nacionais são inoponíveis aos
particulares, não são aplicáveis no caso concreto. Não foi a norma de direito da união que
passou a definir a situação jurídica do particular, a única coisa que a norma de direito da união
fez foi afastar a aplicação da norma técnica do direito nacional.

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Naquele caso (do sujeito A e da Faculdade B) o efeito direto era de substituição, porque
aquilo que ia passar a definir a posição jurídica era a norma de direito da união (ia permitir
obter o reconhecimento).
O efeito direto tem também muita importância nas diretivas. As diretivas, já vimos, têm
como característica não ter a aplicabilidade direta e tem destinatários exclusivos, nos termos
do artigo 288.º do TFUE, os estados-membros.
Durante muito tempo colocou-se a questão de saber se uma diretiva podia ter ou não efeito
direto. O TJUE chegou a dizer que sim e como veremos em detalhe vem distinguir duas
grandes situações entre: efeito direto horizontal e efeito direto vertical.
O efeito direto vertical permite a invocação da norma de uma diretiva contra o Estado e é
aí que o Tribunal de Justiça em algumas circunstâncias diz que as diretivas podem ter efeito
direto. O efeito direto horizontal permite a invocação de uma norma por um particular contra
outro particular e o que o TJUE veio dizer que as diretivas não têm efeito direto horizontal.

II. (Acórdão Defrenne) O art.º 119.º do Tratado CEE corresponde ao atual artigo
157.º do TFUE. Tendo em conta o efeito direto, o artigo 119.º terá efeito direto?

Torna-se necessário saber se a norma cumpre todos os requisitos:


Argumentos:
1. "Cada estado-membro assegurará [...] a aplicação do princípio da igualdade de
remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por trabalho igual" através
da expressão vemos que a norma faz apelo a um princípio. Deste modo, poder-se-ia
colocar em causa o caráter prescritivo da norma. Contudo, este argumento não é
procedente uma vez que, tal como é dito pelo TJUE, a utilização da expressão princípio
nas normas do Tratado, serve para demonstrar o caráter fundamental dessa disposição
(se eliminássemos aqui a expressão princípios ficávamos na mesma com uma norma
prescritiva).
2. O art.º 119.º diz que são os estados-membros que asseguram a aplicação do princípio,
portanto, é uma norma que se destina aos estados-membros, ou seja, argumenta-se que,
do ponto de vista formal, a norma é dirigida apenas aos estados-membros, e por isso não
pode ter como destinatários os cidadãos. Este também não é um argumento suficiente
porque não é pelo facto de uma norma se dirigir apenas aos estados-membros que não
possa, ao mesmo tempo, atribuir direitos a qualquer particular que esteja interessado no
cumprimento das obrigações definidas pela norma com efeito direto.
3. Para se reconhecer o efeito direto desta norma não estaremos a violar o princípio da
autonomia privada? A Sr.ª Defrenne concluiu com a Sabena (companhia aérea) um
contrato e aceitou livremente aquelas condições remuneratórias. Não estaríamos a
imiscuirmo-nos na autonomia privada/ nas relações livres contratuais que as partes
estabelecem? Não. O art.º 119.º é imperativo, tal como existem outras normas

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imperativas no ordenamento jurídico interno, nomeadamente no Código do Trabalho,
que afetam a formação dos negócios jurídicos privados e, portanto, além de ser
imperativo, também se aplica aos próprios particulares nas suas relações contratuais
(tem efeito direto horizontal).
Concluindo, o TJUE reconheceu ao art.º 119.º efeito direto, é uma norma precisa,
prescritiva, suficiente e incondicional.
Neste acórdão, o TJUE acaba por estabelecer as condições em que o Efeito Direto pode ser
reconhecido no âmbito desta norma em particular:
1. Quando a discriminação resultante da violação do princípio "trabalho igual,
remuneração igual" seja identificada com uma base puramente jurídica (resulta de uma
análise puramente jurídica). Ex.: quando uma convenção nacional contém
expressamente essa discriminação (ter duas tabelas de remuneração diferente, com base
no sexo, para trabalho igual)
2. Discriminações indiretas, discriminações entre diferentes setores, etc., são casos em que
não existe efeito direto por serem mais dúbias e não poderem ser identificadas com uma
análise meramente jurídica.

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III. Acórdão Costa/ENEL
a) Qual o princípio que o TJ enuncia no acórdão Costa/ENEL?
Contextualização:
Em 1962, a Itália decidiu nacionalizar a energia elétrica, através de duas leis nacionais.
O Sr. Flamínio Costa, advogado milanês, opõe-se a esta nacionalização, na medida em que a
considerava contrária ao direito comunitário da época. Assim, deixa de pagar a conta da
eletricidade como forma de protesto.
Quando tentaram cobrar administrativamente a dívida, Flamínio segue para tribunal,
invocando uma série de disposições de direito comunitário a ser violado (art.º 102º, art.º 93,
art.º 53 e 37º do tratado da CEE). No âmbito dessa ação judicial, há uma série de questões
colocadas ao TJUE; pelo que ele se pronuncia nos termos acima.
O acórdão Costa/ENEL veio consagrar o princípio do primado do direito da UE: em
caso de conflito/contradição entre uma norma do ordenamento nacional e uma norma de DUE,
a norma de DUE prevalece sobre a norma da ordem jurídica nacional.
A consequência do primado é a desaplicação da norma interna e aplicação da norma
comunitária, não obstante, este princípio estabelece uma relação de prevalência do direito da
EU sem invalidação (a norma interna não é revogada pela norma da UE).
O princípio do primado não está previsto em nenhum tratado (o tratado constitucional
previa-o expressamente, contudo este nunca chegou a entrar em vigor, sendo que o tratado de
Lisboa já não o prevê). Contudo, existe uma declaração anexa, a declaração nº 17, a propósito
deste princípio

b) Quais as razões invocadas pelo Tribunal de Justiça para que aos Tratados não possa
ser “posto em juízo um texto interno, qualquer que seja”?
Fundamentos/argumentos do TJUE para construir jurisprudencialmente o princípio do
primado (3 tipos de argumentos):
1. Fundamentos principiais, que englobam:
Princípio da uniformidade: se um estado-membro pudesse adotar medidas nacionais
posteriores contrárias ao DUE o direito desse estado teria conteúdo diferente dos restantes e o
alcance do DUE seria diferente em todos os estados-membros.
Princípio da igualdade/ não discriminação: na prática, os nacionais dos estados-membros
seriam tratados de forma diferentes o que viola este princípio
Argumento "Estoppel"- típico da common law e corresponde grosso modo ao nosso venire
contra factum proprium. Quem invoca um facto ou um direito não pode depois atuar em
contradição com essa invocação, o que aplicado, neste contexto, significa que um estado-
Membro não pode depois vir criar uma norma nacional que viole as disposições do tratado que
anteriormente aceitou de forma voluntária.

1. Fundamentos existenciais

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Prende-se com o espírito e objetivos dos tratados- têm como fim a integração e a cooperação
o que obsta a uma primazia das ordens jurídica nacionais
Decorrem da própria ordem jurídica europeia e das suas características (condensadas logo no
primeiro tratado). Os estados consagraram uma ordem jurídica autónoma que se tornou logo
uma ordem jurídica integrante das ordens jurídicas nacionais. A ordem jurídica europeia
baseia-se na atribuição de competências para serem exercidas a nível supranacional e que
introduzem limitações auto-vinculativas da soberania (isto porque foram os próprios estados-
membros a atribuir estas competências à UE)
A própria natureza vinculativa das normas dos tratados ficaria comprometida sem o primado.
Se cada estado pudesse desaplicar o DUE, este não teria qualquer significado ou efeito útil.

2. Fundamentos normativos
Os tratados preveem um conjunto de normas derrogatórias (conjunto de situações em que se
admite a que num estado-membro não seja aplicado um dado regime). Se cada estado-membro
pudesse unilateralmente derrogar os tratados estes regimes previstos seriam desnecessários.
Do ponto de vista normativo só pode haver derrogação das normas comunitárias nos casos em
que o próprio direito da UE o prevê. Assim, a existência de normas derrogatórias é um
argumento a favor do primado do DUE porque sem primado não haveria esta necessidade de
prever regimes de diferenciação normativa
Do ponto de vista constitucional, o princípio de primado é característica dos estados federais
(a supremacia do direito do estado federal sobre os estados federados é um dos traços
fundamentais deste tipo de estados)
Os estados-membros, quando aderiram às comunidades aceitaram e ratificaram um dado
tratado de onde resultava uma limitação/exercício partilhado de dados direitos soberanos, ora
não podem, depois de aceitarem estes termos de ditar normas de sentido oposto

c) Compare a interpretação que o TJ faz das várias normas dos Tratados invocadas
(artigos 102.º, 93.º, 53.º e 37.º).
A interpretação dos artigos por parte do TJUE encontra-se entre as páginas 557 e 561
do Acórdão Costa/ENEL (páginas 5 a 9 do documento disponibilizado no Sigarra).
De um modo geral, o TJUE decide que, para a questão em causa, apenas o art. 53.º do
tratado CEE, que proíbe a introdução de novas restrições, é suscetível de atribuir aos
particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.
O princípio do primado implica que os estados não podem prevalecer-se de normas
nacionais para impedir a produção de efeitos das normas comunitárias, mediante o seu
conteúdo.

11
IV
Poderia o princípio afirmado pelo TJ nessa jurisprudência valer se em causa estivesse,
não uma norma legal, mas uma norma constitucional?
(Esta questão equivale a perguntar qual o alcance do princípio do primado.)
No caso de defender que este princípio se estende às normas constitucionais podemos
argumentar que a própria CRP, nos termos do art.º 8/4 estabelece que o direito da EU
originário e derivado vigora na nossa ordem jurídica nos termos por ele definidos ("nos termos
definidos pelo direito da União").
Assim, tendo em conta que o DUE determina o princípio do primado, o disposto no art.º
8/4 equivale a aceitar o primado. É de salientar que existe, neste artigo, uma ressalva quanto
ao "respeito pelos princípios fundamentais do estado de direito democrático", contudo na
prática esta é desnecessária porque o estado de direito e democrático é um valor também
defendido pela União Europeia, pelo que nenhuma legislação aprovada no âmbito europeu
poria o mesmo em causa.

Analise o acórdão Handelsgesellschaft (proc. n.º 11/70), de 17 de dezembro de 1970, tendo


em especial atenção os seguintes tópicos:

a) Matéria de facto relevante e questões sobre as quais o Tribunal foi chamado a emitir
pronúncia (cfr. § 2, 5-8, 12-16 e 21);
b) Relação estabelecida entre o § 3 deste acórdão e a jurisprudência Costa/ENEL;
c) Possibilidade de tutela dos direitos fundamentais pelo Direito da União.

Muitos ordenamentos jurídicos dos estados-membros incluem uma cláusula de


integração europeia que estabelece como o direito nacional incorpora o Direito da União
Europeia (DUE). No entanto, sob a perspetiva do DUE, o princípio do primado aplica-se
mesmo quando se trata de normas constitucionais, como já foi estabelecido no acórdão
Costa/ENEL. Este princípio não admite exceções e não pode ser contestado no tribunal com
base em leis internas. Esta questão, no entanto, é esclarecida no acórdão Handelsgesellschaft.
No acórdão em questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é chamado a
analisar o alcance do princípio do primado quando um órgão jurisdicional alemão declara que
dois regulamentos da UE estão em conflito com os princípios fundamentais da legislação
alemã, incluindo a liberdade de ação e de disposição, a liberdade económica e da
proporcionalidade. O TJUE esclarece claramente essa questão, afirmando que o princípio do
primado é absoluto e incondicional. Isso significa que o Direito da União Europeia prevalece
sobre todo o direito nacional, sem exceções ou concessões.
Essa perspetiva gerou controvérsias com as ordens jurídicas nacionais que reivindicam
a primazia do seu direito interno, muitas vezes ignorando o facto de que o princípio do primado
não se refere a uma hierarquia de normas, mas sim ao princípio de que, em caso de conflito, o

12
Direito da União Europeia prevalece sobre o direito interno, de acordo com a vontade expressa
desse ordenamento interno. Essas questões têm sido abordadas por meio de um diálogo
jurisprudencial entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e os tribunais
constitucionais dos estados-membros, embora haja ainda tentativas de contestar o princípio do
primado.
Apesar da natureza absoluta e incondicional do princípio, o tratado tem salvaguardas-
ex.: art.º 4/2 do TUE em que se refere que o DUE está obrigado a respeitar a entidade
constitucional dos estados-membros, sob pena de não primar (não se aplica o princípio).
Interessa dizer ainda que os tratados das comunidades não continham uma carta de
direitos fundamentais (nenhuma disposição dos tratados tutelava direitos fundamentais) sendo
que o TJUE, até este acórdão, se tinha recusado a apreciar as questões relacionadas com os
direitos fundamentais. A lógica era a seguinte: se o sistema dos tratados não tutela estes
direitos, então estes ficam sob a tutela dos estados-membros.
O TJUE resolve este problema no parágrafo 4 do acórdão: o sistema de tratados não
tutela direitos fundamentais, mas apelando à tradição constitucional comum dos estados-
membros (direitos e princípios comuns a todos os estados-membros), estes passam a ser
princípios gerais de direito e enquanto tal (direitos fundamentais elevados à condição de
princípios gerais de direito) e, por isso, o TJUE tem competência para fiscalizar o seu respeito.

NOTA: quanto ao caso em apreço o TJUE entendeu que, em concreto, não há violação dos
direitos fundamentais.

Ficha prática nº 2
I - Crise da Cadeira Vazia
Esta crise surge, em 1965, no seguimento da apresentação de 3 propostas ao conselho
europeu: uma primeira para aumentar os poderes da assembleia (que ainda não era eleita por
sufrágio universal); outra que se prendia com a criação de um sistema de recursos próprios
para as comunidades; e uma terceira que se relacionava com a revisão dos regulamentos
financeiros aplicados à PAC.
Na época do General De Gaulle, França estava em desacordo com algumas propostas
da União Europeia, especialmente a terceira, que teria um grande impacto no país. Para evitar
que essas propostas fossem aprovadas, França usou uma estratégia interessante. Durante a
rotação da presidência do Conselho Europeu, que acontecia a cada seis meses, havia uma regra
não escrita. Se uma reunião do Conselho Europeu continuasse após a meia-noite e a
presidência fosse passar para outro país no dia seguinte, o relógio seria "parado"
simbolicamente, e a presidência continuaria nas mãos do país anterior, como se o dia da
reunião nunca tivesse terminado.
A crise da "cadeira vazia" começou quando a França assumiu a presidência do Conselho
Europeu no meio de uma reunião, encerrou a reunião e se recusou a participar das reuniões do
Conselho durante todo o período de sua presidência, que durava seis meses. Durante esse

13
tempo, França não convocou nenhuma reunião do Conselho. A situação só mudou quando a
presidência foi transferida para o Luxemburgo.

A França justificou essa atitude alegando que a Comissão Europeia tinha muito poder
em relação ao Conselho, e essas preocupações estavam registadas em um documento chamado
"Decálogo de Queixas da França".
A crise da "cadeira vazia" foi finalmente resolvida em janeiro de 1966, com a assinatura
dos Acordos de Luxemburgo. No seu conteúdo definiram que sempre que estiver em causa
uma questão de interesse vital para um estado-membro, os membros do Conselho deverão
tentar encontrar uma solução, em prazo razoável. Daqui resulta o seguinte:
Sempre que um Estado-membro invoque uma questão de interesse vital, esta deve ser
discutida até à obtenção de consenso (diferente de unanimidade, em que as abstenções não
contam para a apuração). Na prática, o que se prevê nestes acordos corresponde a um direito
de veto, pois se um Estado-membro não concordasse com uma proposta da Comissão
Europeia, bastaria invocar o interesse vital do Estado e, passaria a ser exigido o
consenso/unanimidade para que a decisão fosse tomada. Para além disso, cada um dos estados-
membros tinha total liberdade para definir o que, para eles, era uma questão de interesse vital.
Assim, levou-se à paralisia do Conselho Europeu nas duas décadas seguintes (até
meados da década de 80). Acresce ainda que, o facto de terem alterado na prática as regras de
decisão do conselho- quando esta crise teve início, a regra de votação do conselho era de
maioria qualificada (em certos casos unanimidade) - sem serem alterados os tratados (estes
acordos vieram à margem dos tratados), traduz-se no enfraquecimento do DUE.
Por outro lado, destes acordos resultou um atenuar da dimensão integradora e
supranacional do DUE, ou seja, estes correspondem a uma cedência ao
intergovernamentalismo, porque um dos princípios basilares do supranacionalismo é o
princípio maioritário, tendo presente um interesse comum que resulta da agregação dos
interesses dos estado-membros. No intergovernamentalismo existe uma perspetiva oposta, isto
é, os estados cooperam, mas cada um protege seus próprios interesses individuais, e as decisões
são tomadas com base no acordo entre os estados, sem necessariamente levar em consideração
um interesse comum que vá além dos interesses nacionais. A natureza jurídica destes acordos
(acordo de cavalheiros, regras costumeiras etc.) é também muito discutida.
Como já mencionado, a França de “De Gaulle” entendia que existia um excessivo
protagonismo da Comissão Europeia pelo que foi apresentada uma lista de queixas pelo
ministro dos negócios estrangeiros francês. Como resultado, também no âmbito dos acordos
de Luxemburgo, foi alcançado um acordo quanto às relações com a comissão, com algumas
cedências por parte dos estados-membros à França.
NOTA: Conselho da União europeia/ europeu- instituição da EU
Conselho da Europa- organização regional (externa à UE)

14
Semana 3
09 a 13 de outubro

II - Aprecie o caso à luz da jurisprudência do TJ fixada no Acórdão Cassis de Dijon, de


20 de fevereiro de 1979 (proc. n.º 120/78).

O caso em apreço diz respeito à Irlanda, que legislou no sentido de introduzir nas
bebidas alcoólicas uma advertência de saúde (para o teor calórico, gramas de álcool etc.). No
seguimento da aprovação desta legislação, avisou também que o vinho do Porto não poderá
ser exportado na Irlanda se não estiver rotulado segundo a leis irlandesas.
Posto isto, para saber se a lei aprovada viola o DUE, deve-se questionar se esta medida
é proporcional, ou seja, se existe a necessidade desta atuação-proporcionalidade em sentido
estrito e adequação da atuação.
Estabelecendo um paralelo com o tabaco, sobre o qual está definido a nível da legislação
da União Europeia, que a sua comercialização tem de ser acompanhada por uma advertência,
neste sentido e admitindo-se que o álcool é considerado uma substância aditiva, pode-se aceitar
que a medida é necessária, adequada e proporcional.
À luz do DUE, uma medida deste género não viola os tratados, podendo subsumir-se ao
previsto no art.º 36 do TFUE, isto é, é uma medida que impõe restrições à exportação de
produtos de estados-membros, mas invoca razões de saúde pública para tal. Para além disso,
esta medida não é muito onerosa para os produtores.

Ao apreciar o caso tendo em conta a jurisprudência do caso cassis de Dijon, em que


uma empresa alemã pretendia importar a bebida licorosa em causa, mas o governo alemão
proibiu a comercialização de bebidas brancas com um teor alcoólico inferior a 25 graus.
A empresa impugna a decisão das autoridades alemãs, sendo remetidas ao TJUE
questões prejudiciais, no sentido de saber se o que o ordenamento jurídico alemão aprovou
constituía uma medida de restrição quantitativa de importações.
Por um lado, o governo alemão alega que esta restrição é legítima e usa como
fundamento a saúde pública e para manter a concorrência justa no mercado interno. Com
a ideia de que as bebidas licorosas com menor teor alcoólico (inferior a 25%) podiam criar
mais facilmente efeito de dependência (1); quanto à concorrência do mercado interno, a
diminuição do teor alcoólico da bebida licorosa assegura uma vantagem competitiva face às
bebidas de teor elevado, por o álcool (matéria prima) ser mais cara e ser mais taxada; para
além disso, argumenta que se a RFA se visse obrigada a deixar circular no mercado todos os
produtos alcoólicos, desde que obedecessem às leis do estado onde foram produzidos, teriam
de aceitar a legislação de um estado que é menos exigente a nível da proteção do consumidor.
Estes argumentos não foram acolhidos pelo TJUE.
Em princípio, a ideia do governo alemão relativa à dependência das bebidas alcoólicas
está correta. No entanto, os consumidores alemães têm à sua disposição uma variada gama de

15
produtos com baixo teor de álcool, pelo que parece que a medida imposta pelo governo alemão
não é a adequada: estas bebidas são consumidas diluídas, embora a fixação de valores limites
de teor alcoólico para a comercialização de bebidas possa servir para a normalização dos
valores, se o objetivo é alcançar maior transparência tal consegue-se com outros mecanismos.
Assim, esta medida tem efeito equivalente a uma medida de restrição quantitativa a
importações.
Este caso tem a sua importância no facto de ter sido estabelecido aqui o princípio do
reconhecimento mútuo. Um estado-membro não pode impedir no seu território nacional a
comercialização de mercadoria que tenha sido produzida, comercializada e posta em
circulação com respeito pelas leis do Estado-membro de origem, exceto quando se trata de
uma das exceções definidas no acórdão e as derrogações previstas no art.º 36 do TFUE.
Este acórdão é anterior ao mercado interno (ao Ato único Europeu), e na fase em que é
referido tínhamos o que se designava por mercado comum. Este princípio tem a sua relevância
máxima na ausência de harmonização legislativa, nomeadamente no espaço de segurança e
justiça, pois neste caso os Estados-membros são livres de adotar a legislação que entenderem.
Nesta fase, existiam ainda fronteiras e a possibilidade das mercadorias puderem ser
controladas nos pontos fronteiriços, designadamente por razões sanitárias. Existiam também
um conjunto de barreiras entre os estados-membros em que não estava assegurado o
reconhecimento mútuo dos diplomas e graus académicos.
O mercado interno consiste atualmente num mercado sem fronteiras e com 4 liberdades
fundamentais (art.º 26 a 66 do TFUE) - livre circulação de pessoas, capitais, mercadorias e
serviços.
Quando se altera o paradigma do mercado comum para o mercado interno a ideia é
completar e fixar de forma significativa a integração e criar um só mercado sem barreiras
físicas e jurídicas. Antes do Ato único europeu, coube ao TJUE, através de jurisprudência
conhecida com new approach, concretizar esse mercado comum e estabelecer um conjunto de
princípios e regras relativos às 4 liberdades fundamentais.

16
Analisando o documento acima, onde está representado o número de ações por
incumprimento relacionadas ao movimento de mercadorias, pode-se ver um antes e depois do
caso cassis de Dijon. A partir do acórdão, há um aumento significativo no número destes
processos, associados ao desrespeito das regras referentes à livre circulação de mercadorias.
Para a realização do mercado interno, teve também grande importância o relatório Cecchini
de 1988, que apontava os custos da não europa, ou seja, avaliava as necessidades para que se
cumprisse por completo o mercado comum e indicava os custos acrescidos para a CEE por
não ter terminado o mercado interno. É este documento que serve de base para a harmonização
legislativa que ocorre desde 1992.
Assim, por um lado o reconhecimento mútuo é um mecanismo especialmente relevante
quando não há legislação harmonizada, por outro fez perceber que não seria necessário
harmonizar todos os aspetos do mercado comum (apesar de aqui se poder invocar o argumento
usado pela RFA neste acórdão em que os estados-membros acabam por se reger pela legislação
menos exigente).

III- Comente, referindo as normas dos Tratados que justificam a sua qualificação como
“carta constitucional de uma comunidade de direito”.

O TJUE para além da função jurisdicional tem a função consultiva. É nesta última
função que este caso se insere. Neste parecer, o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a
compatibilidade do acordo que criava o espaço económico europeu (EEE) com o tratado da
CEE.
O acordo do EEE é celebrado entre a CEE e os países da Associação Europeia de Livre
Comércio (EFTA) e alargava as regras do mercado comum aos estados da EFTA o que geraria
uma enorme dificuldade de coordenação entre o ordenamento jurídico comunitário e os
respetivos ordenamentos jurídicos dos estados da EFTA. Assim, o TJUE deu um parecer
negativo relativamente ao acordo que levou a que o mesmo fosse reformulado e só então aceite.

17
- O porquê do parecer negativo do TJUE divide-se em dois aspetos fundamentais:
1. Por um lado, a argumentação que o TJUE estende sobre as diferenças de objetivos do
acordo que presidiria ao EEE e os do tratado da CEE.
No caso do CEE, a livre circulação e a concorrência das relações económicas e sociais são
um mero instrumento para atingir um outro objetivo: a integração económica e o
estabelecimento de uma união económica e monetária, ao contrário do acordo do EEE em que
as regras de livre circulação e concorrência eram fins em si mesmos.
Para além disso, usa-se a ideia de que este tratado da EEE era um acordo internacional
clássico que não implicava a transferência de quaisquer parcelas de soberania para um ente
superior ao passo que o tratado CEE sim, sendo um acordo sui generis. Diz também que os
tratados correspondem à carta constitucional de base das comunidades/da união, estabelecendo
um paralelo com uma ordem jurídica nacional em que as constituições ocupam o topo da
pirâmide normativa nacional, tal como os tratados a nível internacional.
2. Por outro lado, e considerando a prática, a razão prende-se com a autonomia
jurisdicional da CEE.
No acordo do EEE, estava previsto um tribunal do espaço económico europeu, cuja função
era resolver os litígios que surgiam no seguimento deste tratado. Ou seja, o tratado do EEE
tinha como partes contratantes as comunidades e os países da EFTA, mas para efeitos da
resolução dos litígios era necessário interpretar a expressão "parte contratantes" porque em
alguns casos a legitimidade para intervir seria da CEE e noutras dos Estados-Membros.
Era necessário saber se quem teria de litigar era a comunidade como um todo ou os estados-
membros. Assim, no caso em que as funções fossem partilhadas com a comunidade era a
comunidade a litigar, se a função em causa coubesse aos estados-membros eram eles
legitimidade para intervir. Coloca-se a questão de saber quem tem competência para definir as
competências (conclui-se que deveria ser o TJUE), mas este acordo atribuía a interpretação do
conceito ao tribunal do espaço económico europeu e o TJUE considerou que tal punha em
causa a autonomia da jurisdição da CEE.

- Que normas se podem encontrar nos tratados com traços tipicamente constitucionais?
TFUE
Artigo 2º que contém a base axiológica da UE;
Artigo 3º que contém os objetivos da UE onde se pode fazer um paralelo com a tarefas
fundamentais dos estados previstas nas constituições;
Artigo 19º sobre os tribunais onde também se contempla um princípio típico do estado de
direito o da “tutela jurisdicional efetiva” ou direito de ação;
Artigo 20º e seguintes sobre a cidadania europeia;
Artigo 48º que trata de cláusulas relativas à revisão;
Artigo 49º no domínio das instituições, sintetizadas
Artigo 103º

18
Artigo 223º e seguintes
O quadro institucional da EU pode-se dizer que se assemelha ao quadro constitucional
de um Estado, quem tem o poder legislativo é o parlamento (e o conselho no caso da UE), o
poder executivo pertence ao governo a nível nacional e na EU à comissão; o poder judicial
pertence aos tribunais a nível nacional a na EU ao TJUE e aos tribunais nacionais também; a
nível nacional nas constituições aparecem um conjunto de princípios que regem a atividade do
estado, no TFUE são também previstos no artigo 9º princípios e valores,
Artigo 293º e seguintes - quanto às fontes de direito as constituições preveem quais as fontes
de direito a nível infraconstitucional.
Artigo 288º e seguintes, preveem regras procedimentais decisórias para adotar um ato
legislativo
- Existem outros exemplos.

Ficha prática nº 3
I- Nold Colen
A empresa pretende que o TJUE considere inválida por violação da CEDH. A convenção
europeia dos direitos humanos é um instrumento regional de proteção dos direitos
fundamentais no âmbito do Conselho da Europa que é uma instituição de cooperação europeia
criada no pós- segunda guerra mundial. Já a carta dos direitos fundamentais da UE é elaborada
paralelamente ao tratado de Nice, altura em que ainda não tinha caráter jurídico vinculativo
(que só veio adquirir mais tarde no tratado da UE).
Neste caso a carta dos direitos fundamentais ainda não existia e o tratado da CEE não
tinha nenhuma carta de direitos fundamentais. O TJUE já analisava o respeito pelos direitos
fundamentais enquanto elevados a princípios gerais de direito internacional e retirados da
tradição constitucional comum.
Relativamente à questão que se coloca, é necessário analisar o artigo 6º do TUE. Note-
se que a adesão prevista no artigo 6º/2 não se chegou a verificar. A UE não é parte da
convenção, mas, não obstante, esta carta pode ser usada como parâmetro de validade da
legislação e decisões da UE na medida em que todos os Estados-Membros aderiram a esta
convenção e, portanto, há acordo na validade destes direitos.
No acórdão Elliniki Radiophonia Tileorassi [ERT] (caso 260-89), veio-se acrescentar
que, dos vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, este tem um
significado particular, não podendo ser aprovadas medidas pela UE que contradigam os
direitos protegidos - este parecer fica consagrado no art.º 6/3 do TUE.
Assim, o TJUE pode anular a decisão estritamente com base na violação da CEDH.
Atualmente, à luz do artigo 6º, a tutela jurisdicional do TJUE faz-se por uma
multiplicidade de instrumentos como a carta dos direitos fundamentais da UE, as tradições
constitucionais comuns de onde se extraem princípios gerais de direitos e também os princípios
de direitos fundamentais tal como se encontram na convenção europeia sobre os direitos do
Homem (art6º/3).

19
Relativamente à questão que se coloca, é necessário analisar o art.º 6º do TUE. Note-
se que a adesão prevista no art.º6/2 não se chegou a verificar. A UE não é parte da convenção
mas, não obstante, esta carta pode ser usada como parâmetro de validade da legislação e
decisões da UE na medida em que todos os Estados-Membros aderiram a esta convenção e
portanto há acordo na validade destes direitos.

No acórdão Elliniki Radiophonia Tileorassi [ERT] (caso 260-89), veio-se acrescentar


que, dos vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos este tem um
significado particular não podendo ser aprovadas medidas pela EU que contradigam os
direitos protegidos--> este parecer fica consagrado no art.º 6/3 do TUE.

Assim, o TJUE pode anular a decisão estritamente com base na violação da CEDH.

Atualmente, à luz do art.º 6 a tutela jurisdicional do TJUE faz-se por uma multiplicidade
de instrumentos como a carta dos direitos fundamentais da União Europeia, as tradições
constitucionais comuns de onde se extraem princípios gerais de direitos e também os
princípios de direitos fundamentais tal como se encontram na convenção europeia sobre os
direitos do Homem (art6º/3)

Semana 4
16 a 20 de outubro

II- Parecer do TJUE 2/13, de 18 de dezembro de 2014


Analisando os parágrafos 156 a 177, pronuncie-se quanto:

a) Condições de adesão da UE à CEDH;


Este parecer veio no contexto de uma antiga ambição da União Europeia para tentar aderir
à CEDH. Houve uma primeira tentativa nos anos 90 que não foi bem sucedida uma vez que o
TJUE, no parecer 2/94 negou a possibilidade de adesão da União Europeia à CEDH, usando
como argumento a falta de competência da UE devido à ausência de bases jurídicas, ou seja,
ao facto de não existirem bases nos tratados que a sustentasse. Assim, esperar-se-ia que estes
obstáculos fossem afastados com o tratado de Lisboa, que prevê a obrigação da UE em aderir
à convenção, nos termos do art.º 6/2 do TUE. Contudo, após ser feito um projeto de acordo
para a adesão da UE à CEDH, é pedido, em 2013, um novo parecer ao TJUE, que dá também
um parecer negativo.

São apresentadas diversas condições de adesão:

● parágrafo 160

25
○ A adesão não pode alterar a União como está estabelecida no tratado, ou seja,
não deve haver uma afetação das atribuições/competências da UE;

● parágrafo 161:

○ Tem de ser observada a preservação das características próprias da UE e do


seu direito. Esta condição decorre do Protocolo nº 8 anexo ao TFUE;

○ É necessário que a situação dos Estados-membros em relação à CEDH não seja


alterada com a adesão da UE à convenção;

○ A adesão não pode afetar o artigo 344º do TFUE- os estados-membros


obrigam-se a resolver todos os conflitos que existam e que se reportem à
interpretação e aplicação dos tratados nos termos previstos nos próprios, isto
é, tratados dentro do sistema jurisdicional da própria união (através do TJUE).

Outro argumento para o parecer negativo foi a PESC, um domínio da política europeia
onde ainda predomina a intergovernamental. Uma das marcas desta caraterística é que os
atos adotados pela PESC não podem ser fiscalizados pelo TJUE, mas tal não se sucedia no
acordo de adesão sendo que no limite o TEDH podia fiscalizar atos adotados no âmbito da
PESC quanto à violação de direitos fundamentais.

Assim, o que levou o TJUE a dar um parecer negativo foi o facto de considerar que não
estava garantida a não violação do artigo 344º da TFUE, ou seja, não estava garantido que um
litígio que envolvesse estados-membros da EU não fosse submetido a mais nenhum órgão
jurisdicional que o TJUE, uma vez que poderia cair na jurisdição do TEDH.

Até aos dias de hoje, o desejo da UE de aderir à CEDH não se concretizou.

Contudo, a UE não ter aderido à CEDH não significa que os direitos, tal como previstos
na convenção, não sejam protegidos: resulta do art.º 6º/3 do TUE que os direitos
fundamentais consagrados na CEDH integram o direito da União enquanto princípios gerais
de direito. Também se retira do artigo 52º/3 da carta dos direitos fundamentais da EU
(CDFUE) que, na medida em que os direitos previstos na mesma tenham correspondência
com a CEDH devem ser considerados como tendo, pelo menos, o mesmo alcance. Por último,
nos termos do art.º 53 da CDFUE, prevê-se que nenhuma disposição da carta possa ser
interpretada no sentido de restringir os direitos humanos tal como compreendidos pela
CEDH.

Concluindo, os direitos previstos encontram-se tutelados no âmbito do sistema


europeu, não havendo contudo a possibilidade de recorrer ao tribunal europeu dos direitos
humanos.

26
b) Características específicas da ordem jurídica da União Europeia.
Há diversas características específicas da ordem jurídica da União Europeia. São
algumas delas as seguintes:

● Parágrafo 165:
○ Um quadro institucional e constitucional- artigo nº 13 e seguintes do TUE;
○ A atribuição de competência, tal como está previsto no artigo nº 4/1 do TUE;
○ Um quadro jurisdicional- artigo nº 19;
● parágrafo 166:
○ Princípio do primado, do efeito direito e o caráter autónomo da ordem jurídica
da UE;
● parágrafo 168:
○ A construção europeia tem por base uma inspiração identitária comum
● parágrafo 170:
○ Reitera-se a principal característica, isto é, a autonomia do DUE em relação
quer aos estados-membros quer ao direito internacional.
○ É por força dessa autonomia que o TJUE dá o seu parecer negativo à adesão à
EU.

III- Natureza da União Europeia


Qual é a natureza da União Europeia?

A União Europeia não é um Estado, havendo várias teorias sobre a sua verdadeira
natureza. Não obstante, o entendimento mais aceite é que a UE é uma organização
internacional sui generis ou um “OPNI”, objeto político não identificado, resultante da
transferência de soberania dos Estados.

Apesar de partilharem diversas características, a União Europeia não é um estado. O


que falta para poder ser considerado estado? De modo a poder ser considerado um Estado,
nos domínios de competência exclusiva falta-lhe:
● A União Europeia não dispõe de soberania originária- todos os poderes foram lhe
atribuídos- não houve uma vontade por parte dos Estados-membros de constituir
originariamente uma entidade estadual;

● A União só pode atuar sobre os domínios dos quais tenha recebido um mandato:

27
○ princípio da subsidiariedade- as competências ou as decisões devem ser
tomadas o mais próximo possível dos afetados
● A União Europeia não pode definir os seus próprios fins e as suas próprias
competências, uma vez que não dispõe de uma soberania absoluta
○ Ou seja, rege-se pelo princípio da atribuição (princípio da especialidade) ao
contrário dos estados que tem a "competência das competências", os seus
objetivos e atribuições são impostos de forma heterónoma

UE não goza dos mais típicos poderes do estado:

● força de segurança, podendo considerar-se a Frontex como uma exceção, apesar de


mesmo assim esta não ter a mesma amplitude que as forças de segurança dos estados;

● direito de fazer a guerra e paz (iure belli ac pacis), não dispondo sequer um exército
próprio;
● não tem amplos poderes fiscais;
● não tem o poder de definir os critérios de atribuição da sua cidadania
○ A EU tem cidadania própria mas os cidadãos europeus são os cidadãos dos
estados-membros pelo que, a partir do momento em que uma pessoa deixa
de ser cidadã de um estado-membro também deixa de ser cidadã europeia;

Para além disso, a UE também não tem um chefe de estado (o mais semelhante é o
presidente o conselho europeu, mas esta posição não é de todo equivalente à de chefe de
estado)

Teoria Estadual Federal

A União Europeia tem um conjunto de características que a aproximam de um Estado


Federal, tais como:

● A existência de constituições próprias e de poder legislativo, administrativo e judicial;

○ O seu sistema é complexo e hierarquizado, com poderes interdependentes


entre si;
● A existência das próprios princípios fundamentais da união;
● Tem um sistema de fontes de direito;
● Observam-se os mesmos elementos essenciais do Estado- tem cidadãos (povo) e
território tal como uma ordem jurídica autônoma face à ordem jurídica internacional

28
(dotada de uma hierarquia normativa e de um mecanismo de fiscalização não total,
nos domínios da intergovernabilidade, como a PESC);
● A ausência de fronteiras internas e liberdade de circulação;
● Cidadania própria com atribuição de poderes políticos;
● Eficácia direta dos direitos da união;
● Uma carta de direitos, isto é, uma carta constitucional;
● Existência da moeda única (sistema monetário) tal como de um banco central;
● Poder de concluir tratados internacionais, que pode ser exclusivo- artigo 3/2 TFUE
● Competências próprias observando por vezes uma coabitação política (legislação e
tribunais), como acontece nos estados federais.
○ Assim, quando o estado federal (ou a UE) está a exercer estas competências os
estados federados (ou os estados-membros) não o podem exercer e vice-
versa;
● Observa-se um sistema bicameral no que toca ao poder legislativo- parlamento para
representar os cidadãos e câmara baixa- tanto nos países federais como na União
Europeia.
● Tem também um governo a dois níveis: o do estado membro e o da EU, com
sobreposição, por exemplo, de instituições

Apesar das inúmeras características partilhadas a União Europeia não pode ser considerado
um estado federal:
● Não possui competências tão desenvolvidas;

● Não existe uma delimitação de competências tão distinta, sendo que muitas delas são
partilhadas entre os Estados-membro e a UE;
● Não goza de típicos poderes dos estados federais, como atribuições no domínio da
defesa
● Possui menos recursos financeiros próprios (depende da medida da contribuição dos
Estados Membros);
○ Esta característica tem vindo a alterar-se progressivamente
● A revisão dos tratados em regra tem de ser feita por unanimidade (enquanto nos
Estados Federais pode ser feita por maioria super-qualificada)
● Um estado federado não tem direito de cessação (de se retirar) enquanto um estado-
membro tem (artigo 50º do TFUE)

Existem ainda outras teses quanto à natureza da UE:

Teoria da organização internacional supranacional/ de integração:

Adotada por Gorjão-Henriques. Entende-se que a UE é uma organização internacional


de integração, por contraposição às conferências intergovernamentais. Esta posição resulta
do facto da UE ter um caráter de estabilidade ou permanência, autonomia, órgãos próprios,
regras procedimentais próprias para se poder adotar um determinado ato legislativo (art.93

29
e ss do TFUE), capacidade limitada pelo princípio da atribuição e capacidade internacional (na
medida que resulta dos tratados).

Críticas:
● As características que se apelam para classificar a UE como uma organização
internacional supranacional ou de integração, só se aplicam à UE, o que demonstra
precisamente a sua natureza original.

○ É a organização internacional com o leque de objetivos mais amplo que se


conhece
○ A existência de um quadro institucional mais independente dos estados
membros de que se tem registo- ex.: uma das suas instituições é eleita por
sufrágio indireto;
○ Tem um sistema de fontes original e mais completo- princípio direto, princípio
do primado;
○ É uma organização com um sistema de fiscalização jurisdicional mais completo
e obrigatório.

Conclui-se que a UE ao ser uma organização internacional seria uma sem par.

Teoria confederal:

Uma confederação é uma associação de estados constituída por um tratado


internacional, criando assim instituições próprias e comuns para o exercício de dadas
atribuições resultantes da transferência de poderes de soberania (ex.: confederação
helvética). Normalmente, estas atribuições implicam a existência de um exército comum,
poder de condução da guerra e poder de resolução de conflitos entre os estados federados.

As confederações partilham alguns traços com a União Europeia, tal como a atribuição
de cidadania.

Apesar de partilhar alguns traços, observamos as seguintes diferenças: a UE tem um


quadro institucional muito mais desenvolvido e o domínio dos próprios Estados é muito mais
reduzido em certas matérias como as económicas, enquanto noutras, como a militar, se
verifica o contrário.

Teoria da entidade sui generis ou do objeto político não identificado (OPNI):

Esta teoria é defendida por parte considerável da doutrina. Esta tese é uma solução
pragmática perante o facto de que a União Europeia, apesar de partilhar traços com os
Estados Federais, Estados Confederados e organizações internacionais de integração, não é
um deles, mas sim uma nova forma de integração do exercício do poder político à escala

30
internacional, havendo assim uma impossibilidade de categorização da União Europeia. Ou
seja, em virtude da sua especificidade e caráter inovador é uma organização internacional
sem paralelo

Teoria da Professora Maria Guerra Martins:

A Professora Maria Guerra Martins defende uma tese semelhante: a União Europeia
é uma união de estados e de cidadãos, não só pelos e para os estados mas pelos e para os
cidadãos.

A União Europeia desafia a noção de soberania, sendo esta repartida entre dois níveis
distintos.

Em certo sentido, os Estados Membros deixaram de dispor das competências embora


que com rigor que possa dizer que a competência de poderes soberanos para outro nível seja
o exercício da soberania.

Esta caracterização como uma união de estados e cidadãos visa promover os laços de
coesão entre os povos da europa e os membros da união.

Críticas a ambas as teorias:

● limitam-se a enumerar as características sem as tentar enquadrar, isto é, há uma


ausência de natureza pelo que a EU simplesmente não é classificada

Ficha prática nº 4

I- Legislação da República da Polónia

1- Serão as alterações à legislação polaca susceptíveis de violar os valores


da União, conforme enunciados no art.º 2.º TUE?

Ao olhar para os valores da União Europeia não se encontra nenhuma referência à


independência estadual, mas sim ao Estado de Direito.

Qualquer comunidade política se deve fundar em valores- baseando assim uma


identidade em comum- e a União Europeia não é exceção, não é uma identidade
axiologicamente neutra, projetando os seus valores interna e externamente.

Os valores são parte da identidade europeia, presentes no processo de integração.

31
A previsão de uma cláusula de valores aproxima a União Europeia ao
constitucionalismo clássico, pois também a maior parte das constituições prevê um conjunto
de valores de matriz axiológica. Deste modo, se a UE se encontra constitucionalmente
limitada ela tem igualmente um quadro de valores que orienta a aplicação do direito.

A base axiológica da União Europeia é explícita, estando prevista tanto no preâmbulo


como no artigo nº2 do TUE- incluindo a cultura hereditária greco-romana cristã- com valores
como a liberdade da pessoa humana, o respeito pelos Direitos Fundamentais e a
democratização. No artigo nº3 do TUE estão explicitados os objetivos que concretizam os
valores fundamentais:
● O artigo 1 representa a União;
● O artigo 2 explica a razão de ser da UE

Na articulação do artigo nº 2 com o artigo nº 1 do TUE, o artigo nº 1 contém a matriz


definidora da União na sua dupla legitimação e nos seus originais contornos jurídicos, já o 2º
apela aos valores da União Europeia cuja convivência faz com que seja pertinente partilhar o
destino comum.

Só a partir do tratado de Lisboa é que passamos a levantar esta designação de valores,


até aí estes chamavam-se exclusivamente princípios.

O que é o Estado de Direito? Para que serve o Estado de Direito?

A ideia base do Estado de Direito é a ideia que a moderação ou limitação dos poderes
públicos, até aqueles que têm o poder de fazer normas jurídicas bem como os titulares do
poder constituinte estão submetidos ao direito.

Outra ideia importante é a de que o estado de direito luta sempre pela consagração dos
Direitos Fundamentais

Não há um conceito universalmente aceite de estado de direito uma vez que as


tradições jurídicas de cada país são diferentes, tal como as definições de cada país para a
noção de Estado de Direito são diferentes.

Atualmente, convivem duas conceções diversas de estado de direito:

● Uma conceção formal que corresponde ao estado em que todos os poderes estão
sujeitos ao direito que o dita segundo um procedimento pré-estabelecido
independentemente da natureza dessas normas (desliga-se do conteúdo/da natureza
das normas). Esta é uma conceção mais positivista e típica do direito anglo-saxónico e
é esta conceção que permite dizer que o regime Nazi não violava o princípio do estado
de direito;

32
● Uma conceção material de Estado de direito, típica do direito germânico, em que se
considera que este é indissociável do respeito pelos direitos fundamentais e pela
democracia. Assim, este é um "princípio chapéu", a partir do qual se deduzem outros
subprincípios.

Deste modo, a UE afirma, nos termos do art.º 2/a) do regime geral de condicionalidade para
a proteção do orçamento da União que :

"«Estado de direito», o valor da União consagrado no artigo 2.o do TUE. Inclui os princípios
da legalidade, que pressupõem um processo legislativo transparente, responsável,
democrático e pluralista, bem como os princípios da segurança jurídica, da proibição da
arbitrariedade dos poderes executivos, da tutela jurisdicional efetiva, incluindo o acesso à
justiça, por tribunais independentes e imparciais, inclusive no que diz respeito aos direitos
fundamentais, da separação de poderes, e ainda da não discriminação e da igualdade perante
a lei. O Estado de direito deve ser entendido à luz dos outros valores e princípios da União
consagrados no artigo 2.o do TUE. ".

O estado de direito serve pois a função de moderar o poder independentemente de


quem o exerça. Se existem poderes públicos que são exercidos ao nível da UE, então este uso
tem de estar controlado/limitado ao abrigo do princípio do estado de direito.

No relatório de 2011, da comissão de Veneza do Conselho da europa veio a indicar o


que são, a seu ver, os subprincípios do estado de direito, no parágrafo 41:

" (1) Legality, including a transparent, accountable and democratic process for
enacting law (2) Legal certainty (3) Prohibition of arbitrariness (4) Access to justice before
independent and impartial courts, including judicial review of administrative acts (5) Respect
for human rights (6) Non-discrimination and equality before the law", isto é, grosso modo: a
legalidade, transparência, segurança jurídica, proibição da arbitrariedade, acesso a um
processo judicial independente e imparcial, o respeito pelos direitos humanos e a não
discriminação e igualdade perante a lei.

No acórdão em causa, o TJUE conclui que a Polónia tinha violado o DUE ao violar o
princípio da igualdade e o princípio do estado de direito, nomeadamente o princípio da
independência dos tribunais. Ademais, verifica-se que também os princípios da tutela
jurisdicional efetiva (artigo 19º do TUE) e do processo equitativo- previsto na carta dos
direitos fundamentais- foram violados.

O princípio da tutela jurisdicional efetiva, traduz-se na expressão "onde há direito há


remédio" (ubis ius ibi remedium), isto é, a cada direito deve corresponder um meio
jurisdicional que permita efetivá-lo. No caso da UE este princípio é assegurado ao nível do

33
TJUE bem como ao nível dos tribunais nacionais dos estados-membros, que são os tribunais
de 1º linha de aplicação e interpretação do DUE. É especialmente por isso que esta legislação
coloca em causa o princípio da jurisdição efetiva da UE. Tendo em conta que a matéria
regulada é de competência exclusiva dos estados-membros, o TJUE apenas pôde pronunciar-
se sobre esta legislação, sem ir além das suas competências, precisamente porque os
tribunais nacionais são os tribunais comuns da EU e por isso integram o sistema jurisdicional
da UE e têm de garantir a tutela jurisdicional. Deste modo, os tribunais nacionais têm de
obedecer a determinadas obrigações decorrentes, por exemplo, do princípio da
independência e da imparcialidade, obrigações essas que permitem um controlo por parte do
TJUE, nos termos do art.47 da CDFUE.

No caso concreto, viola-se, ainda, o direito a um processo equitativo. No âmbito deste


direito, é no acórdão da associação sindical dos juízes portugueses (C-64/16) que se admitiu
pela primeira vez que o TJUE pode controlar atos nacionais do poder executivo que afetem a
estrutura e funcionamento do poder jurisdicional. Neste caso, as medidas adotadas durante
o período da troika acarretaram um corte salarial para toda a função pública, sendo que esta
associação recorre ao TJUE por considerar esta alteração legislativa suscetível de violar o
princípio da independência dos tribunais. O TJUE não deu provimento a estas alegações mas,
como dito anteriormente, garantiu pela primeira vez que podia controlar atos nacionais que
afetassem a estrutura e funcionamento a nível jurisdicional.

Semana 5

22 a 27 de outubro

2. Identifique os mecanismos políticos e jurisdicionais de tutela dos valores


da UE que conhece.
Tal é o mesmo que perguntar "se um estado-membro viola o DUE o que é que a UE
pode fazer?".

Atualmente, os estados-membros com maiores problemas neste âmbito são a Polónia


e a Hungria.

Existe uma variedade de mecanismos de tutela de valores da EU, que formam uma
estrutura complexa e multinível. Contudo parece-se colocar em causa a sua eficácia, isto é, o
design desses instrumentos contribuem para uma sensação de inoperância. São três as
circunstâncias que contribuem para esta sensação: pelo facto dos mecanismos não serem
imperativos (soft law), por dependerem de unanimidade ou maioria qualificadas e por
dependerem de uma ação política.

34
Para além disso, os mecanismos vinculam os estados-membros de forma diversa,
alguns com assento no direito originário, outros no direito derivado e ainda alguns que
resultam de instrumentos não vinculativos (sem força jurídica obrigatória.). Assim, a criação
de cada vez mais instrumentos tem acompanhado as situações nos estados-membros que
evidenciam o risco ou incumprimento dos valores da UE.

O primeiro caso conhecido foi o caso austríaco "Haider", em que um partido de um


candidato de extrema direita teve uma votação expressiva nas eleições e se formou a
hipótese de uma coligação de governo com este partido. Esta situação gerou uma tensão
diplomática e daqui resultou o acrescento de um "braço" ao artigo 7º do TFUE, que iremos
abordar adiante. Verificaram-se também situações delicadas relativamente à Polónia e à
Hungria.

Deste modo, hoje a doutrina fala de uma crise de valores da EU, isto é, argumenta-se
que há um défice democrático nas decisões tomadas no seio da EU, ou seja, que estas não
resultam de uma verdadeira democracia e que isto transitou para as decisões tomadas
também a nível nacional.

Não obstante, os mecanismos de controlo dos valores dividem-se em 2 grandes


grupos:

● ex ante

○ Mecanismos anteriores à adesão dos estados-membros à EU

○ Neste âmbito, os valores são tidos como um critério de adesão

■ resultante do art.º 49 da TUE, mas que já vem dos critérios de


Copenhaga adotados em 1993 que consagram as condições que um
estado tinha de reunir para aderir à UE

● ex post

○ Mecanismo posteriores à adesão à EU

○ Numa perspetiva ex post, o respeito pelos valores previstos no art.º 2 não é


uma condição de permanência na EU mas antes uma condição para o gozo dos
direitos decorrentes dos tratados, uma vez que nenhum dos mecanismos
permite a expulsão de um estado-membro

Os mecanismos (ex post) são:

35
● O quadro de estado de direito para a União Europeia

○ Mecanismo político criado pela comissão europeia que visa corresponder


numa perspetiva preventiva a ameaças ao estado de direito e não substitui,
mas antes antecede todos os outros mecanismos existentes.

○ É ativado quando as autoridades nacionais de um estado-membro tomam


decisões que sejam suscetíveis de afetar de forma sistemática a integridade,
estabilidade ou o bom funcionamento das instituições ou mecanismos de
salvaguarda do estado de direito.

○ Numa primeira etapa há uma avaliação pela comissão europeia, que depois
emite uma recomendação e numa terceira fase há um acompanhamento por
parte da comissão da implementação dessa recomendação. Se o estado
membro, findo o estado fixado na recomendação, não a implementar, a
comissão europeia tem a possibilidade de ativar os mecanismos de tutela dos
valores nomeadamente o artigo 7º do TUE.

● Art.º 7º do TUE

○ Note-se que o âmbito de aplicação deste artigo não se restringe aos domínios
abrangidos pelo DUE, pelo que ao abrigo deste artigo, a EU fica autorizada a
intervir com o objetivo de proteger os valores em que se funda, mesmo nos
domínios em que os estados-membro atuem de forma autónoma, isto é nos
domínios em que tenham competências exclusivas ou partilhadas, mas que
não estejam a ser exercidas pela UE.

○ Durante muito tempo, este mecanismo foi encarado como a designada "opção
nuclear" por ter um caráter iminentemente político, pelo que se foi resistindo
à ativação do mesmo. Contudo este artigo foi ativado em 2017 relativamente
à Polónia, por iniciativa da comissão europeia e em 2018 face à Hungria, por
iniciativa do parlamento europeu e através do "relatório Tavares".

○ Desde do tratado de Nice que este artigo tem 2 "braços": um primeiro de alerta
(previsto no nº 1) e um sancionatório (nº 2 e 3).

■ A diferença é que, para o primeiro ser usado é necessário que haja um


risco de violação do artigo 2º do TUE, ao passo que no segundo essa
violação tem já de ser efetiva, grave e persistente.

■ São também diferentes as maiorias exigidas num e noutro. No braço


preventivo basta uma maioria qualificada de 4/5 dos membros do
conselho europeu para este ser ativado, ao passo que no outro é
necessária a unanimidade.

36
■ No "braço" sancionatório, o conselho europeu, após declarar a violação
grave e persistente de artigo 2º decide por maioria qualificada, as
sanções que aplicará. Note-se que o estado-membro em causa não
participa nas votações, nos termos do artigo 354º TFUE ex vi (por força)
do artigo e 7º/5 do TUE.

■ Sanções possíveis: a mais grave é a suspensão do direito de voto do


estado-membro no conselho (prevista no art.º 7/3 do TUE), mas
existem outras relacionadas com a liberdade de circulação e recepção
de fundos, sendo que estas últimas têm de ter em conta e proteger os
particulares do estado-membro.

■ Um bom exemplo do caráter iminentemente político do art.º 7 é o facto


do TJUE, nos termos do art.º 269 do TFUE apenas poder exercer um
controlo procedimental/processual não podendo pronunciar-se nunca
relativamente ao mérito da questão, isto é, pronunciar-se por exemplo,
se o estado-membro está em risco ou violou de forma grave e
persistente o art.º 2º do TUE.

■ Apesar do art.º 7 ter sido ativado relativamente a Hungria e Polónia,


estes processo nunca avançaram nem avançarão, pelo facto de uma
decisão sancionatória ser impossível, por requerer unanimidade, sendo
que estes estados-membros formaram um "pacto" de não votar a favor
destas sanções e por questões de diplomacia.

● A comissão pode recorrer a uma ação por incumprimento junto do TJUE, que pode
aplicar sanções pecuniárias compulsórias até ao estado-membro adotar o
comportamento devido

○ Ao passo que o art.º 7 pode abranger domínios da competência dos estados-


membros, o artigo 258º do TFUE só pode ter lugar perante uma infração de
um estado-membro do DUE, tendo assim um âmbito mais restrito.

○ Também ao nível das sanções, a ação por incumprimento apenas dá lugar a


sanções pecuniárias compulsórias até que o estado-membro cumpra o DUE.

○ Neste âmbito, existem várias ações por incumprimento relativas a vários


estados-membros.

● Regulamento geral da condicionalidade, que permite à UE suspender a transferência


de fundos europeus para os Estados-membros.

○ Este mecanismo existe para a proteção do orçamento da UE. A execução por


parte de um estado-membro do orçamento da EU tem como condição prévia

37
o respeito por esse estado-membro pelo estado de direito, de modo a garantir
o princípio da boa gestão financeira previsto no 317º do TFUE. Um estado-
membro só pode assegurar uma boa gestão financeira se as autoridades
públicas desse estado agirem em conformidade com a lei, isto é, se os casos
de fraude, branqueamento de capitais, conflito de interesse, etc. forem
efetivamente objeto de inspeção e sanção pelas autoridades estaduais.

○ Podem ser adotadas uma série de medidas para proteção do orçamento da


UE, nomeadamente as do artigo 5º do regulamento, que prevê, por exemplo,
a suspensão de desembolsos ou reembolsos. No nº 2 deste artigo ficam
salvaguardados os beneficiários finais (particulares) dos fundos comunitários.
Para além disso, o procedimento inerente a este regulamento está previsto no
artigo 6º do mesmo.

○ Este mecanismo já foi utilizado em relação à Hungria, ficando suspensos


milhões de euros em fundos comunitários.

Todos os mecanismos já mencionados estão associados a um risco ou incumprimento


específico por um estado-membro, mas existem ainda mecanismos ex post não associados a
um incumprimento específico que visam promover o respeito pelos valores da EU:

● Mecanismos de soft law

○ Relatório a nível anual relativo ao cumprimento pelo estado de direito, que


visa antecipar o eventual risco de violação deste valor

○ Painel de avaliação da justiça na UE (justice scoreboard), relatório anual que


agrega dados sobre a independência, eficiência e qualidade dos sistemas
judiciais

○ Semestre europeu

■ Ciclo de coordenação de políticas económicas, orçamentais, laborais e


sociais na EU. No início era um exercício meramente económico, mas
passou a integrar outros domínios.

■ De cada semestre resulta um conjunto de recomendações para os


estados-membros aprovadas pelas instituições europeias sendo que
cada estado-membro deve nos seus orçamentos refletir essas
recomendações (apesar de serem soft law)

○ Relatório anual sobre a aplicação da CEDH na EU

38
● Mecanismo de cooperação e verificação para a Bulgária e Roménia que quando
aderiram tinham problemas quanto, por exemplo, ao crime organizado e que por isso
necessitavam de uma acompanhamento permanente

○ Este acompanhamento deixou de existir em 2019 na Bulgária e em 2022 na


Roménia, por atingirem os standards médios dos estados-membros da EU

● Mecanismos de apoio à sociedade civil

● Mecanismo de recuperação e resiliência, que deu origem aos PRR (planos de


recuperação e resiliência) nacionais, em que os fundos que a EU atribuiu ao estados-
membros estavam condicionados ao respeito por obrigações do estado de direito
(verificação de um conjunto de reformas relativas ao respeito pelos valores da UE)

Concluindo, a importância dos valores da EU reside no facto de serem:


● Condição de adesão
● Condição de gozo dos direitos decorrentes dos tratados
● Parâmetros de atuação das instituições da EU
○ Transversalidade vertical e horizontal da cláusula de valores, isto é, esta
cláusula tem de ser respeitada não só pelos estados-membros como também
pelas próprias instituições da UE

● Condição para a cooperação leal e confiança mútua dentro da EU


● Parâmetros e objetivos de atuação no âmbito da atuação externa (art.º 3/5 TUE e 21/1
TUE)
○ Dimensão interna e externa da cláusula de valores

● Parâmetros normativos
○ Os valores da EU concretizam-se em princípios e regras dos quais se extraem
direitos e deveres para os estados-membro, um standard de validade e
constitucionalidade dos atos jurídicos e permitem a integração de lacunas do
direito originário e derivado

II- Caso Sayn‑ Wittgenstein

1. Indique os direitos e liberdades fundamentais que a decisão das


autoridades austríacas poderá eventualmente colocar em causa.

39
Poderão estar em causa o direito ao nome e à vida privada e familiar, que é protegido
pela CDFUE no artigo 7º e pelo artigo 8º da CEDH, o direito integrante e fundamental da
identidade da pessoa. Assim, podem-se colocar dúvidas relativas à identidade da pessoa, isto
é, a senhora estava registada num estado-membro, pelo que os seus assentos de nascimento
tinham de ser fornecidos por esse estado-membro, mas a sua vida profissional e pessoal
encontrava-se noutro. Coloca então em causa a livre circulação de pessoas, porque a sua
identidade de pessoa varia consoante o EM (art. 21º do TUE) e a livre prestação de serviços
(art. 56º do TFUE). A firma da senhora tinha o seu nome, pelo que poderia ser forçada a mudar
o próprio nome da firma.

A Áustria arguiu que o título nobiliárquico não constitui um instrumento que auxilie
na identificação da pessoas (feita apenas pelo nome e apelidos) sendo que apenas atribui um
dado estatuto a pessoas, contudo no direito alemão (ao contrário do direito austríaco) o
apelido é unitário e por isso integra os títulos nobiliárquicos, pelo que esta alteração onerava
especialmente a pessoa em causa que teria de alterar diversos documentos.

Assim, à primeira vista esta decisão seria suscetível de violar o DUE.

Existiam, para além disso, decisões do TJUE anteriores no mesmo sentido, ex.: Garcia
Avello. Neste caso queriam registar uma criança, num outro estado-membro, mas segundo
as regras de registo da Espanha (primeiro nome do pai e depois o da mãe), pelo que as
autoridades deste país não o queriam autorizar e o TJUE deu prevalência ao direito de Garcia
Avello.

2. Poderão as autoridades austríacas suportar a sua decisão em algum ou


alguns preceitos da “carta constitucional” da União?
Com que norma pode a Áustria fundamentar à luz dos tratados a sua decisão? Decorre
do artigo 4º/2 da TFUE o princípio da identidade nacional. Este artigo é relevante tendo em
conta a ideia de que a forma republicana de governo e da igualdade formal, com a
consequência da abolição de toda a aristocracia e títulos nobiliárquicos, integram a
identidade fundamental do estado austríaco.

Efetivamente este artigo diz que a UE respeita a igualdade dos estados-membros


perante os tratados bem como a identidade nacional destes. O respeito pela identidade
nacional é um fator essencial de uma UE que se diz unida na diversidade, sendo que a
identidade nacional corresponde à expressão última dos fatores que conferem especificidade
aos estados-membros e os diferem em relação aos outros.

40
Até ao tratado de Lisboa este princípio era tratado sobretudo enquanto à sua
dimensão cultural e linguística (art.º 3/3 e 55 TUE, 24/4 TFUE). Com este tratado institui-se
uma nova manifestação apontando às estruturas políticas e constitucionais fundamentais
desse estado-membro um respeito devido pela própria UE e pelas suas instituições. Exige-se
um duplo respeito por este princípio com a introdução do caráter jurídico apontado ao
respeito pelas estruturas políticas e constitucionais dos estados-membros, devido pela UE e
por todas as suas instituições (artigo 4/2 do TUE). Esta face do princípio está diretamente
relacionada com a expansão das atribuições da UE e o receio que esta provoca nos estados-
membros, apesar dos seus efeitos práticos serem reduzidos.

O artigo 4/2 do TUE tem sobretudo interesse e valor quando essas estruturas políticas
e constitucionais não integram uma tradição constitucional comum, o que é o caso da forma
republicana de governo (porque ainda há monarquias entre os estados-membro). A sua
principal consequência foi colocar em causa a concepção absoluta do primado do DUE uma
vez que a UE não pode legislar contra as estruturas constitucionais e políticas fundamentais
dos estados-membros, sob pena de violar este artigo.

Neste caso, o TJUE aceitou que o respeito pela forma republicana na Áustria fosse apto
a afastar o direito de livre circulação e livre estabelecimento legitimando a eliminação da
partícula "von" do nome da senhora.

O respeito pela identidade nacional tem várias dimensões: relativo às funções


essenciais do estado, reconhecimento das línguas oficiais do estado-membro,
reconhecimento de competências próprias dos estados membros (165 /1 TFUE), etc.

III- Regime geral da condicionalidade e interpretação da identidade


nacional

1. Comente o argumento utilizado, referindo-se à sua implicação


prática nas relações entre o direito nacional e o direito da União.
Este caso diz respeito à Hungria e à Polónia. Esta linha argumentativa é uma forma de
manipulação do próprio princípio da identidade nacional de modo a permitir aos estados
desvincularem-se das suas obrigações.

Efetivamente a identidade constitucional impõe ao DUE a obrigação de respeitarem


os elementos nucleares das estruturas políticas e constitucionais dos estados-membro e os
seus tribunais constitucionais, sendo a identidade nacional um contra limite das ordens
jurídicas estaduais face a elementos da EU que sejam intrusos a estes princípios (limite ao
primado do DUE). Este princípio aparece também para a UE e o TJUE como um critério de

41
avaliação de legitimidade das ações das suas instituições (uma ação não é legítima se
interferir com as estruturas nucleares, políticas e constitucionais de um estado-membro).

A propósito tem-se desenvolvido uma longa jurisprudência entre o TJUE e os tribunais


nacionais sobretudo com o tribunal constitucional italiano e o Tribunal constitucional federal
Alemão. Quanto ao TC alemão relevam a "decisão de Lisboa" em que este tribunal se
pronunciou quanto à conformidade do tratado de Lisboa com a constituição alemã e a decisão
OMT em que o TC introduziu a possibilidade de realizar um "teste de identidade" de um
programa do BCE que tinha como objetivo a compra de dívida pública de países do leste
europeu, ao qual a Alemanha se opunha. No âmbito desta última decisão, o TC alemão, com
base no princípio de autonomia orçamental específico da estrutura jurídico-constitucional
alemã, podia fazer esta avaliação. Para além disso, o TC recusou também um mandato de
detenção europeu por estar em causa a dignidade da pessoa humana. Poder-se-ia falar
também dos casos Tarico e Tarico II, relativos ao TC italiano e respeitantes ao princípio da
legalidade e da responsabilidade criminal.

A identidade nacional pode corresponder à identidade da constituição e integra as


previsões constitucionais através das quais um estado se identifica numa comunidade e as
previsões em que se distingue dos demais (carácter único).

Em todo o caso essas caraterísticas específicas de um estado têm ainda de ter alguma
correspondência ao quadro europeu de princípios jurídicos constitucionais e a uma tradição
constitucional comum que chegue em substância a resultados semelhantes, ou seja, não
obstante de existirem dados aspetos de uma identidade constitucional de um estado, estes
têm de ter algum tipo de correspondência com um quadro europeu de princípios jurídicos
constitucionais. Alguns estados-membros vieram usar a identidade nacional com estratégia
para rejeitarem o primado do DUE ( ex.: Polónia), ou para procurar obter a anulação de atos
jurídicos da UE (como neste caso).

Neste processo o TJUE formula conclusões inovadoras: lança as bases para a


emergência de uma identidade constitucional da EU que não pode ser colocada em causa ou
violada pelos estados-membro tendo em conta o art.º 4/2 TUE e invertendo-o -> da mesma
forma que a EU tem de respeitar a identidade nacional dos estados-membros também os
estados-membros têm de respeitar a identidade constitucional da EU. Numa segunda decisão
inovadora, o TJUE clarifica a impossibilidade de um estado-membro invocar o 4/2 de modo
abusivo, isto é, um estado-membro não pode justificar uma violação dos princípios da EU com
base na sua identidade nacional pois estes dois princípios estão no mesmo patamar, sendo
que a invocação do 4 /2 para legitimar a violação dos valores da EU do art.º 2 é um abuso
desta cláusula, pelo que esta não operará. Assim, a identidade nacional é um conceito
fundamental do DUE pelo que as entidade nacionais dos estados-membros não podem ser
manipuladas de tal forma que violem a própria identidade constitucional da UE

42
Relativamente ao argumento usado neste caso, o TJUE diz que há um conceito
partilhado de estado de direito enquanto valor comum que decorre das tradições
constitucionais que os estados-membros se comprometem a respeitar de modo contínuo e
que, apesar de haver alguma margem de interpretação, esta não é incompatível com
existência de critérios de apreciação uniformes por parte da EU como estão definidos no art.º
4 TUE e na definição de estado de direito.

2. Suponha que a Comissã o apresentou ao Conselho uma proposta de


decisã o de suspensã o de pagamentos de fundos ao abrigo da al. a) do nº 1
do art. 5º do Regulamento relativamente a um Estado-Membro.
Imediatamente o Estado- Membro invocou o considerando 26) do
Regulamento, solicitando a submissã o da questã o ao Conselho Europeu.
Quid iuris?
Qual é a força jurídica dos considerandos num ato? Os considerandos são uma parte
de um ato jurídico que deve fundamentar de forma concisa o conteúdo posterior do
articulado. Não têm em si mesmo efeito jurídico, podem ter um efeito auxiliar e
interpretativo, mas sem força jurídica

Assim, o considerando per si não pode interferir no poder de decisão do conselho e


papel da comissão na tomada de decisão.

Semana 6

43
30 de outubro a 3 de novembro

Ficha prática nº 5

I- “Lei da Cidadania” da Malta

1- Será o programa maltês suscetível de violar o Direito da União Europeia?

Neste caso, a Malta institui um programa de "venda" da sua cidadania: nacionais de estados
terceiros que queiram investir na Malta, concretizando esses investimentos recebem a
nacionalidade maltesa. Questiona-se se um programa deste género viola o DUE.

Decorre do art.º 20/1 do TFUE que são cidadãos da UE todos os nacionais dos 27 estados-
membros. Deste modo, os cidadãos malteses são também cidadãos da União Europeia.
Porém, os critérios de acesso e atribuição da cidadania nacional são da exclusiva competência
dos estados-membros e integram o núcleo duro das suas soberanias.

Assim sendo, de que modo pode intervir a União Europeia?

À primeira vista, a UE não poderá interferir nesta matéria, se a determinação dos critérios de
aquisição e perda da soberania nacional são da competência exclusiva dos estados-membros
estes podem fazer o que entenderem.

Considerações genéricas sobre a nacionalidade e cidadania (baseadas no documento “CIVIS


EUROPAEUS SUM? O Brexit e a (perda de) Cidadania da União” disponibilizado no Sigarra) :
O que significa ser cidadão, ou seja, qual é a importância deste conceito? A cidadania é um
vínculo jurídico-político. Os esforços para encontrar um conceito único de cidadania não são
geralmente bem-sucedidas, mas destacam-se duas conceções de cidadania:

- Numa conceção formalista (de Kelsen), define-se os cidadãos «como a esfera pessoal
de validade da ordem jurídica nacional». Os cidadãos são o conjunto de indivíduos
cuja conduta é regulada pela ordem jurídica nacional.
- Noutra conceção (de Hannah Arendt), a cidadania trata-se de um direito a ter direitos,
é um estatuto jurídico primário do indivíduo sendo a fonte de onde decorrem direitos
e deveres do estado. É uma condição prévia ao gozo de alguns direitos e poderes, é o
vínculo jurídico entre as pessoas e os estados, vínculo esse que é o reflexo de uma
forte e genuína ligação – essa pessoa encontra-se mais próxima do estado que lhe
confere a cidadania do que de qualquer outro estado.

Corresponde ainda a um status pessoal, um status civitas, cuja aquisição e perda é


primariamente regulada pelo direito nacional, pelo DIP e ainda pelo DUE.

Cidadania Vs Nacionalidade

44
Note-se que cidadania ≠ nacionalidade apesar de ambas as expressões serem empregues
frequentemente como sinónimas, nomeadamente nos tratados da UE:

- Quando os tratados usam a expressão "nacionais" normalmente referem-se aos


cidadãos de um estado-membro

- A nacionalidade designa uma pertença psicológica e não uma qualidade jurídica.


Refere-se sempre a um determinado grupo cultural ou étnico.

- A cidadania reporta-se a uma pertença jurídica que pode ter por base um critério
nacional (só são cidadãos do estado, os seus nacionais). Quando o critério da cidadania
se sujeita ao critério da nacionalidade está em causa a proteção da identidade do
estado-nação. Não obstante, a maioria dos estados adota critérios mais ou menos
flexíveis de acesso à cidadania raramente reservando-a exclusivamente aos seus
nacionais pelo que preveem forma de aquisição de cidadania para outros indivíduos
que não sendo nacionais, nela se encontrem integrados ou a ela se encontrem
efetivamente ligados.

Cidadania da UE
Quando surgiu o projeto europeu, este era um projeto de paz alcançado pela via económica.
O desenvolvimento do mercado comum e das quatro liberdades, foi instrumental face a um
objetivo mais largo: a manutenção da paz na Europa. A liberdade económica, latu sensu,
atribuída aos estados, nomeadamente a liberdade de circulação, era conferida à pessoa
económica (homo economicus) e não propriamente à pessoa encarada como titular de
direitos naturais e inerentes, ou seja, inicialmente a liberdade de circulação era atribuída a
trabalhadores e não a qualquer pessoa.

Com a introdução da cidadania da UE esse cenário altera-se radicalmente. Isto não quer dizer
que a cidadania veio inventar algum direito para os cidadãos europeus, sendo que a maioria
dos direitos associados à cidadania já existia e mantiveram-se inalterados, o que se altera é o
fundamento desses direitos. A introdução da cidadania permite dar a esses direitos já
existentes uma novação no seu fundamento que passa a ser constitucional, isto é, associado
a uma dada matriz política.

A ideia de uma cidadania europeia não é recente (pode-se dizer tão antiga como a ideia da
UE). Os primeiros passos práticos são dados em 1972 na cimeira de Paris, onde foram
estudadas formas de aprofundar a união de modo a favorecer a criação de uma identidade
europeia. Em 1974 verificou-se que a forma mais eficaz de aprofundar a união passava por
envolver os nacionais. Assim, em 1990 são adotadas três diretivas que vieram a reconhecer o
direito de entrada, permanência e residência dos nacionais de um estado-membro noutro
estado-membro, nomeadamente a nacionais que não fossem trabalhadores. Por fim, em
1991 na conferência intergovernamental para o tratado de Maastricht, a Espanha apresentou
uma proposta para a cidadania europeia, que é discutida e modificada até ser aprovada com
o tratado. Deste modo, em 1992 criou-se a cidadania europeia.

45
É sempre necessário aludir à extensão da cidadania e o seu conteúdo:
Extensão: quem são os cidadãos da UE?
O artigo 20.º/1 TFUE responde a essa questão. A cidadania da UE é uma cidadania derivada,
uma vez que o seu acesso é referido por remissão ao direito nacional. Todos os cidadãos dos
estados-membros são simultaneamente cidadãos da UE. A UE absteve-se de intervir na
definição do círculo de pessoas que beneficiam do conteúdo da sua cidadania. É um estatuto
complementar à cidadania nacional e não a substitui – artigo 9.º/1 TUE.
Qual o conteúdo dessa Cidadania?
A CDFUE, eleva quase todos os direitos associados à cidadania à qualidade de direitos
fundamentais, acrescenta à lista de direitos previamente já existentes dois novos direitos e
ainda alarga o âmbito de outros direitos.
A cidadania da UE tem uma dupla dimensão:
- Proibição de discriminação de quem partilha o mesmo estatuto – artigo 18.º TFUE
- Reconhecimento de direitos. Esses direitos são:
○ Direito de livre circulação e permanência (art 20.º/2/a) e art 21.º TFUE, art 45.º
CDFUE e a Diretiva 2004/38/CE). Esta última diretiva regula o exercício do
direito de livre circulação e permanência dos nacionais de um estado-membro,
para outro estado da União). Três âmbitos:
● Define os critérios para a residência até aos 3 meses. Esse é um direito
incondicional com a posse de uma documento de identificação.
● Define os critérios para residência acima de 3 meses. Esta já está
condicionada e só é permitido a um cidadão que exerça alguma
atividade económica noutro estado; um cidadão economicamente
inativo mas que disponha de recursos suficientes e de um seguro de
doença, de modo a evitar que o indivíduo seja um encargo para o
estado-membros de residência; a estudantes com seguro de saúde e
declaração de que possui recursos suficientes; ou alguém que seja
membro da família de uma das pessoas nas situações anteriores.
● Define os critérios para residência permanente que se adquire quando
um cidadão reside noutro estado-membro por mais de 5 anos e é
incondicional e extensível aos membros da família ainda que nacionais
de um estado terceiro
○ Direito de eleger e ser eleito para o parlamento europeu e nas eleições
municipais (art 20.º/2/b), art 22.º TFUE, art 39.º e 40.º CDFUE)
○ Direito a proteção diplomática e consular (art 20.º/2/c) art 23.º TFUE art 46.º
CDFUE)
○ Direito a dirigir petições ao parlamento europeu e ao provedor de justiça
europeu (art 20.º/2/d), art 24.º art 227.º e 228.º TFUE art 43.º, 44.º CDFUE)
○ Direito a apresentar uma iniciativa legislativa europeia (art 11.º/4 TUE, art 24.º
TFUE)

46
Direitos apenas previstos na CDFUE:
○ Direito a uma boa administração (art 41.º CDFUE)
○ Direito de acesso a documentos (art 42.º CDFUE)
Assim, por um lado, proíbe dentro da comunidade dos cidadãos um tratamento diferenciado
(discriminações), por outro serve de base e critério para a discriminação relativamente a
terceiros (não cidadãos da UE).
Quais os deveres dos cidadãos europeus?
Não estão previstos nos tratados quaisquer deveres (esta é uma das críticas feitas à
cidadania da UE)

A definição dos critérios de aquisição ou perda da cidadania são da competência exclusiva dos
estados. Contudo, o exercício dessa competência encontra-se regulado quer pelo DI ou pelo
DUE, conforme já reconheceu o TJUE.
Quanto ao DIP, há que considerar instrumentos como a DUDH (art 15.º - princípio geral de
proibição da apatridia), bem como a Convenção para redução dos casos da apatridia, de 1961
e a Convenção Europeia sobre a nacionalidade.
Para além destes instrumentos de DIP, há que considerar o princípio base da efetividade – diz
o TJUE que a cidadania é um vínculo legal que tem por base um facto social de pertença, uma
genuína ligação de existência, interesses e sentimentos conjuntamente com a existência de
direitos e deveres recíprocos. Este princípio eternizou a doutrina da ligação genuína aos
estados que ainda hoje é aplicada na resolução de conflitos negativos e positivos relacionados
com a cidadania. Esta doutrina defende que a cidadania deve estar associada à forte ligação
da pessoa àquela comunidade.
Assim, quanto ao DUE, o TJUE estabeleceu no caso 184-99 RUDY GAZEL CZYK, que a cidadania
da União corresponde ao estatuto fundamental dos cidadãos dos estados perante o DUE.
Já no C – 369/90 – Micheletti, o TJUE referiu que não obstante os estados serem
independentes para exercer o seu direito de ditar os critérios da cidadania, estes estão
limitados pelo respeito do DUE na determinação desses critérios. Esses limites são
necessários porque se a cidadania europeia se adquire através da aquisição da cidadania
nacional, então as regras sobre o estatuto da cidadania nacional devem obedecer aos
princípios do DUE.

Mais recentemente, em dois casos referentes à perda da cidadania nacional e


consequentemente à perda da cidadania europeia (c- 135/08 - Rottman e C-221/17), onde as
leis dos estados-membros prevêem critérios de perda automática de cidadania (por estarem
ausente do território por muito tempo ou por terem dupla cidadania), o TJ, exercendo o seu

47
poder de controlo, veio dizer que a perda automática da cidadania é incompatível com o DUE
que exige uma análise casuística e o respeito pelo princípio da proporcionalidade.

No caso concreto
Um programa deste género é suscetível de violar o direito da União e, neste caso,
uma cidadania por investimento viola o princípio da efetividade que pressupõe a existência
de uma forte ligação entre a pessoa e o estado. A somar a isto é evidente que as pessoas que
participarão neste projeto quererão na verdade ter acesso à cidadania europeia pelo que a
cidadania maltesa serve a veículo de acesso à cidadania europeia nomeadamente aos direitos
de livre acesso e residência noutros estados-membros. É sobre este prisma que este
programa é censurável do ponto de vista do DUE, o princípio da efetividade opõe-se a um
regime deste género, sendo que a exigência deste estado-membro configura também uma
violação do princípio da cooperação leal (art.º 4/3 do TUE).

O TJUE tem legitimidade para se pronunciar quanto à legislação de um estado-


membro relativamente aos critérios da cidadania, na medida em que estes contendem com
o estatuto de cidadão da UE.

NOTA: no âmbito português, a lei dos sefarditas, também deixou muito a desejar,
tendo já sofrido alterações, uma vez que a definição dos critérios de acesso à cidadania,
nomeadamente a comprovação da ligação às raízes ancestrais portuguesas estavam mal
formulados.

II- iniciativa de cidadania europeia


1. Parte dos organizadores da iniciativa são cidadãos britânicos. Tal
será óbice ao sucesso da iniciativa?
Este mecanismo foi criado pelo Tratado de Lisboa e corresponde a um esforço de
democratização participativa da UE. A iniciativa da cidadania integra um dos direitos
associados ao status civitas, está prevista no 11/4 do TUE e 24/1 do TFUE. O artigo 24.º TFUE
manda o conselho e o parlamento europeu adotar um regulamento com as normas
processuais da iniciativa legislativa de cidadania. Esse é o regulamento 2019/788. Este surge
como um direito paralelo, atribuído aos cidadãos da UE, àquele que é conferido quer ao
parlamento europeu quer ao Conselho, de poder instar à comissão que use o seu poder de
iniciativa no âmbito do procedimento legislativo ordinário (art 225.º e 241.º TFUE), em vez de
apresentarem eles esse ato legislativo.

Quanto ao caso concreto, a resposta encontra-se no art 5.º do Regulamento


2019/778, que prevê que a iniciativa é preparada e dirigida por um grupo de 7 pessoas

48
singulares, sendo que estas devem ser cidadãos da UE com idade para votar nas eleições do
parlamento europeu. Esta iniciativa não preenche os requisitos do art 5.º/2 do regulamento,
uma vez que o Reino Unido não pertence à UE.

Assim, não estão verificados os requisitos impostos por este artigo e a iniciativa teria
de ser rejeitada aplicando-se o artigo 6º, segundo o qual a comissão europeia faz uma
avaliação preliminar da iniciativa no prazo de 2 meses e se considerar que todos os requisitos
previstos no 6º/3 estão preenchidos regista a iniciativa, caso contrário não a regista.

2. E se forem cidadãos da União nacionais de 7 Estados-Membros, mas um


deles residir nos Estados Unidos da América?

Se o grupo organizador tem 7 nacionais de 7 estados diferentes mas um deles reside


nos EUA, a iniciativa não podia ser registada nos termos do art 5.º/2 do regulamento.
O art 3.º enumera os requisitos de validade da iniciativa.

3. Se a iniciativa for apoiada por 2 milhões de cidadãos da União de 5


Estados-Membros, será válida?

Supondo que a iniciativa foi aceite, registada e encontra-se num momento de


subscrição pelos cidadãos da EU, nos termos do art.º 3 do regulamento, o primeiro requisito
estava preenchido, mas o segundo não (teria de ser pelo menos 7 estados-membros).

4. E se reunir o apoio de 1,5 milhões cidadãos da União, de 7 Estados-


Membros, mas num deles o número de subscritores for de 3 000?

Não deve ser aceite por não preencher o requisito do at.º 3/1/b).

Se a iniciativa fosse válida seguir-se-ia depois uma apresentação à comissão, uma


sessão pública e nos termos no art.º 15 do regulamento a comissão europeia iria avaliar a
proposta e decidir se tomaria medidas sobre o caso, sendo que se não o fizesse teria de
apresentar uma justificação.

49
III- crise migratória e princípio da cooperação leal
1. O comportamento dos referidos Estados-Membros viola os princípios
aplicáveis às relações entre a União e os Estados-Membros?

Por volta de 2014 a União Europeia teve uma crise migratória muito intensa com um
fluxo elevado de migrantes que vinham do norte de África e eram na sua maioria requerentes
de asilo. Rapidamente a situação se tornou ingerível e ao abrigo do 78/3 do TFUE o conselho
decide adotar medidas extraordinárias e provisórias para mitigar a situação, fixando um
regime de quotas para a receção de requerentes de asilo, para aliviar a pressão em regiões
como a Itália (porta de entrada deste migrantes). A decisão fixava que de 3 em 3 meses os
estados-membros deveriam indicar o número de requerentes que podiam receber. Três
desses estados-membros nunca o fizeram. Esse comportamento coloca em causa algum
princípio da relação entre os estados-membros e a União?

É violado o princípio da cooperação leal (art 4.º/3 TUE) que integra o DUE desde o
início do processo de integração europeia. O princípio da cooperação leal assume uma função
oleadora da relação dos estados-membros com a União.

Este princípio tem 3 grandes referências axiológicas:

● o princípio da boa-fé que caracteriza as relações entre os estados-membros nas


relações internacionais;

● o princípio da lealdade federal (bundestreue), que caracteriza as relações entre os


estados federados e o estado federal. Este tem um âmbito mais lato que o princípio
da boa-fé, na medida em que a UE ainda não é um estado federal.

● o pacta sunt servanda que tem um âmbito mais restrito, na medida em que as
relações entre a União e os estados-membros vão para além de relações contratuais

Note-se que o princípio da cooperação leal é fundamental ao funcionamento da UE


ao cumprimento da sua missão. A UE só cumpre plenamente os seus objetivos se os estados-
membros colaborarem de forma total uma vez que a UE não tem uma administração europeia
comparável às administrações nacionais, regendo-se por um princípio de aplicação
descentralizada (cabe às administrações públicas nacionais aplicar o direito da UE). Deste
modo, por força do princípio da aplicação descentralizada, o princípio da cooperação leal é
fundamental.

O princípio da cooperação leal tem um duplo conteúdo nos termos do art.º 4/3 TUE

● Positivo: os estados-membros devem adotar todas as medidas necessárias ao


cumprimento da missão da UE

50
● Negativo: os estados-membros devem abster-se de praticar quaisquer atos que
ponham em causa a aplicação dos tratados

o princípio da cooperação leal apresenta ainda uma quádrupla relevância:

● Vertical ascendente – Nas relações dos estados-membros com a UE. Os estados


devem fidelidade à União
● Vertical descendente – Nas relações da UE com os estados-membros. A União deve
fidelidade aos estados
● Horizontal nacional – No âmbito das relações entre os estados-membros
● Horizontal supranacional – as instituições da União devem cooperar entre si

Este princípio está na base de outros princípios da UE como o do primado, da tutela


jurisdicional efetiva, do efeito direto, da responsabilidade do estado por violação de DUE, etc.

NOTA: Sempre que um estado-membro não cumpre o DUE estará, em princípio, em


causa o princípio da cooperação leal

Concluindo, a Polónia e a República Checa violaram o DUE na sua vertente positiva e


negativa uma vez que não cumpriram com uma decisão emitida pelas suas instituições e ao
não cumprirem com essa decisão, obstaram contra estas medidas.

2. Comente a hipótese à luz do princípio da solidariedade.


O princípio da cooperação leal expressa de forma genérica uma ideia de solidariedade
entre os estados-membros e a UE, embora esta ideia de solidariedade mereça uma
consagração autónoma, como é caso dos (art 2.º TUE, art 3.º/3 TUE, 42/7 e art 222.º TFUE)

Aqui tem relevância os art.º 67/2 e 80 do TFUE que definem que no espaço de
liberdade e segurança, mais concretamente na política de segurança e asilo, se aplica este
princípio.

O caráter normativo deste princípio diverge na doutrina, contudo ele está presente
do DUE ora como aspiração comum de valores (art 2.º TUE) ou exigência de assistência mútua
(art 42.º/7 TUE) ora como instrumento de coesão regional (artigo 122.º, art 274.º TUE).

Para além disso, a solidariedade é a expressão da igualdade de todos os estados-


membros, exortada através de uma assistência mútua, sendo também o princípio mais
facilmente violável.

51
Semana 7

6 a 10 de novembro

IV- Cooperação leal


1. Analise a questão à luz do princípio da cooperação leal.

Do ponto de vista da cooperação leal, este caso prático evidencia a sua relevância a
nível vertical ascendente, sendo que é um estado-membro que reclama das instituições (do
conselho) a observância deste princípio, nomeadamente evidencia que a cooperação leal não
é apenas devida dos estados-membros para a união mas também da União para os estados-
membros.

À partida, a invocação de uma violação do princípio da transparência (invocado


quando se diz que as negociações foram pouco claras), do direito a ser ouvido ao longo do
procedimento e do dever de fundamentação (invocado quando se diz que não forma
transmitidas as informações necessárias), podem servir como fundamento para a invalidade
de um ato jurídico. São por isso deveres/obrigações que as instituições têm de respeitar no
âmbito do procedimento legislativo e que decorrem do princípio da cooperação leal.

O dever de cooperação leal, conforme o TJ confirmou neste acórdão, não pode ser
interpretado a ter um tal alcance que obrigue em todas as circunstâncias o legislador da União
a apresentar, a pedido de um estado-membro, os documentos e informações alegadamente
em falta ou a corrigir as informações de que dispõe antes da adoção de um ato.

Uma interpretação desse género teria dois efeitos inaceitáveis: impediria as


instituições da EU de exercerem o seu poder de apreciação, ou seja, contenderia com o poder
de conformação política das instituições, bem como bloquearia o procedimento legislativo
(um estado-membro que discordasse de uma dada medida teria sempre a possibilidade de
solicitar mais informações para atrasar este procedimento).

Se é verdade que o princípio da cooperação leal tem alcance vertical ele não deve ou
não pode ser manipulado de tal forma que imponha às instituições obrigações
desproporcionais que bloqueiem o exercício das suas competências.

O dever de cooperação leal contém em si próprio uma obrigação de assistência mútua


que implica, entre outras coisas, o intercâmbio de informações pertinentes entre as
instituições e os estados-membros no âmbito do procedimento legislativo mas não pode

52
significar que um estado-membro possa, só com base nesse argumento, contestar a
legalidade do processo decisório.
A Polónia não avançava com nenhum argumento que permitisse colocar em casa a
validade dos dados em que a união baseou a sua ação pelo que simplesmente pretendia,
colocando em causa esses dados, obstar à aprovação do ato.

Por fim, o TJUE concluiu que não constitui uma violação da obrigação do princípio da
cooperação leal a situação em que se adote um ato legislativo em que uma minoria dos
estados se queira opor.

2. Quais os princípios relevantes no que toca à repartição de atribuições


entre a União e os Estados-Membros?

O princípio mais relevante é o da atribuição, previsto no artigo 5º/1 e 2 do TUE. Esta


ideia de que a UE apenas pode atuar no âmbito das competências que lhe tenham sido
transferidas pelos estados-membros através dos tratados, sendo que todas as outras não
transferidas pertencem aos estados-membros, é ainda reforçada no art.º 4/1 do TUE. Importa
ainda ter presente a declaração nº 18 anexa aos tratados que salienta novamente este aspeto.

Tendo em conta esta formulação, pode dizer-se que as competências nacionais são a
regra e as competências da EU são a exceção. A verdade é que realmente os tratados não
concederam às instituições da UE uma competência genérica para adotarem todas as
medidas necessárias para a concretização dos objetivos dos tratados, mas estabeleceram a
propósito das diferentes políticas o âmbito dos poderes da EU, conformando a sua atuação
em pormenor (os tratados podiam ter-se limitada a fixar de forma genérica os objetivos a EU
e dizer que a EU tem os poderes necessários para alcançá-los, contudo não é isso que
acontece sendo discriminados, a propósito de cada política concreta, os meios que a UE
dispõe para os alcançar).

Ao contrário dos estados-membros, a UE não dispõe da competência das


competências (competência de fixar os seus objetivos e os meios necessários para os
alcançar). Assim, a UE não pode tomar decisões por si própria sobre as bases jurídicas da sua
atuação ou sobre as suas competências.

O princípio da atribuição é muitas vezes referido como uma manifestação do princípio


da especialidade que se aplica a organizações internacionais (OI) e pessoas coletivas e que
serve para delimitar a sua personalidade jurídica. A personalidade jurídica destes é
instrumental e por isso é atribuída tendo em vista dados fins e objetivos pelo que as OI e
pessoas coletivas só podem exercer os meios necessários na medida em que alcancem os seus

53
objetivos. No caso da UE, a lógica é a mesma: a UE só dispõe da capacidade para praticar os
atos necessários à prossecução dos seus fins. A principal implicação prática do princípio da
atribuição é que todo e qualquer ato jurídico da EU tem de fazer menção expressa à base
jurídica que permite a adoção desse ato, ou seja, tem de mencionar a concreta norma dos
tratados que fundamenta a sua atuação nesse domínio.

3. Teria a União competência para legislar sobre esta matéria?

O tratado de Lisboa introduziu pela primeira vez uma enumeração das várias
categorias de competências da UE (art.º 2 e 6 do TUE), pelo que antes do Tratado de Lisboa e
apesar do TJUE ter desenvolvido na sua jurisprudência as principais categorias de
competências, o direito originário limitava-se a enumerar os objetivos das comunidades e os
instrumentos necessários para os atingir (ex.: artigos 2 e 3 do tratado de Roma).

Este método de enumeração de objetivos e instrumentos foi, ao longo dos anos, fonte
de vários conflitos positivos e negativos de competências entre a UE e os estados-membros.
Por outro lado, este método também acabou por levar a que as instituições comunitárias
fossem interpretando a competências das comunidades de forma cada vez mais
expansionista (muitas vezes à revelia das vontades dos estados-membros). Para esta
interpretação expansiva contribuiu o TJUE que com muita frequência retirou dos objetivos,
dos instrumentos para os alcançar e do sistema dos tratados, competências para a EU,
caracterizando algumas delas até como exclusivas quando tal não se retirava dos tratados.
Esta atuação pode ser explicada pelo facto da UE já ter esgotado todo o domínio da
competência pelo que esta passava a ser uma competência exclusiva. A doutrina entende que
o TJUE procedeu a uma interpretação das competências "pró-comunidade", ultrapassando a
questão de que as competências soberanas nunca se presumem.

Assim, no tratado Lisboa exigiu-se uma delimitação mais clara das competências da
UE face às competências dos estados-membros. O tratado de Lisboa veio também resolver
outra questão, incluindo novas bases jurídicas em relação a matérias que antes não faziam
parte dos tratados ou eram insuficientemente reguladas.

Durante algum tempo, para as situações em que não existia uma base jurídica
suficiente nos tratados, recorria-se à teoria das competências implícitas (se a EU tem um dado
objetivo tem também de ter as competências necessárias para o atingir), bem como à cláusula
de flexibilidade prevista atualmente no art.º 352 do TFUE. Para resolver este problema o
tratado de Lisboa veio integrar matérias que anteriormente entendiam-se competências da
UE por via do princípio das competências implícitas (179 TFUE 194 TFUE, 165/2 TFUE etc.).
Assim, com a positivação e categorização das competências a EU e o alargamento das bases

54
jurídicas, os estados-membros quiseram evitar uma erosão futura das suas competências
nacionais (deixando bem claro quais são as competências da EU e impedindo uma invasão
das competências nacionais), daí existir de forma bem explícita que as competências não
atribuídas à EU pertencem aos estados-membros.

A categorização das competências da UE consta atualmente do TFUE, que no 1/1 diz


logo que o tratado determina os domínios, a delimitação e as regras do exercício das suas
competências, com exceção da PESC (não tem as suas bases desenvolvidas no TFUE mas no
TUE). As várias categorias de competências da EU estão previstas no art.º 2 do TFUE:

● Competências exclusivas
○ Nos termos do artigo 2/1 do TUE só a UE pode legislar e adotar atos
juridicamente vinculativos. Admite-se todavia que os estados-membros
também possam adotar atos legislativos, mas apenas se forem habilitados
para o facto pela UE ou se estiver em causa a execução dos atos da EU
○ Previstas no art.º 3 do TFUE

● Competências partilhadas
○ Nos termos do artigo 2/2 do TFUE, tanto a UE como os estados-membros
podem legislar e adotar atos juridicamente vinculativos.
○ A propósito destas competências é necessário ter em conta o protocolo nº 25
"quando a UE toma medidas num determinado domínio, o âmbito desse
exercício de competências apenas abrange os elementos regidos pelo ato da
União em causa, e por conseguinte, não abrange o domínio na sua totalidade",
que evita no domínio da preempção, que uma competência se transforme
numa competência exclusiva de facto, só quanto aos elementos abrangidos
pelo ato é que a EU abrange a sua competência
○ Previstas no art.º 4 do TFUE
■ Nº 1 contem uma regra residual de competências - quando a EU tem
competências que não são previstas como exclusivas ou de
coordenação, estas classificam-se como partilhadas

● 3 tipos de competências partilhadas:


○ Concorrentes (art.º 4/2 TFUE)
■ Aplica-se o princípio da preempção que nos diz que quando estamos
perante uma competência partilhada concorrente os estados-
membros só podem exercer a competência na medida em que EU não
tenha exercido a sua e podem voltar a exercer na medida em que a UE
deixe de a ter usado--> elasticidade do domínio nacional das

55
competências (que pode aumentar ou diminuir em função da
circunstância da UE ter ou não legislado neste domínio)

○ Paralelas (art.º 4/3 e 4 TFUE)


■ Aquelas em que não se aplica o princípio da preempção- o exercício da
competência pela UE nunca impede os estados-membros de
igualmente exercerem as sua competências

○ De coordenação (2/3 TFUE + art.º 5 do TFUE)


■ Que correspondem a domínios de competência da UE de fronteira
entre tipo intergovernamental e tipo supranacional.

● Competência complementares de apoio e coordenação--> art.º 2/5


○ Correspondem ao desenvolvimento, nos termos previstos nos tratados, de
certas ações de apoio e coordenação em complemento às competências
nacionais mas sem qualquer substituição de competências nacionais
○ a UE não tem objetivos próprios autónomos dos objetivos dos estados-
membros
○ O atos adotados neste tipo de competência não podem implicar a
harmonização legislativa
○ Limita-se a complementar em moldes de tipo intergovernamental, até porque
alguns desses domínios são de reserva dos estados-membros

● PESC -art.º 2/4


● Art.º 2/6 dispõe que a extinção e as regras dos domínios da competência da EU são
fixadas pelas disposições dos tratados relativamente a cada política

NOTA: neste tipo de casos práticos:


1. É preciso identificar a matéria em causa
2. Integrar a matéria num domínio de atuação da EU com referência aos artigos 3º a 6º
do TFUE
3. Proceder à classificação da competência (exclusiva, partilhada, etc.)
4. Identificar a concreta base jurídica (norma do tratado) que dá à UE poder de atuar no
âmbito de adoção daquele ato

Estas tarefas nem sempre são fáceis porque há áreas de sobreposição. Por exemplo,
a política social está no artigo 4º/2 b) o que nos poderia levar a crer que se trata de
competência partilhada concorrente, mas não, porque só a parte “que se refere aos domínios
tratados pelo tratado” é concorrente, e o grosso da política social corresponde a uma
competência partilhada de coordenação, nos termos do artigo 5º/3.

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No caso prático em análise, está em causa a matéria do ambiente, que consta no art.º
4/2/e) e portanto é uma competência partilhada concorrente. Quanto às normas presentes
nos tratados que permitem a adoção da diretiva (são base jurídica desta competência) são os
artigos 191 e 192 do TFUE.

NOTA: A Parte I do TFUE é dedicada aos princípios, e toda a Parte III é dedicada às
políticas e ações da união (tudo o que consta do artigo 3º ao 6º será desenvolvido no âmbito
da Parte III do TFUE)

4- Que princípio deve presidir ao exercício de uma competência partilhada?

No âmbito daquelas competências que não são exclusivas, onde quer a UE quer os EM
podem legislar, é preciso saber em que casos deve ser a União a legislar e quando é que os
estados-membros o devem fazer.

Coloca-se assim a questão: quando é que EU no âmbito das competências partilhadas


está autorizada a adotar atos jurídicos vinculativos? É através do princípio da subsidiariedade
que se percebe se a UE pode exercer as competências no âmbito das competências
partilhadas.

Existe ainda outro princípio que se aplica a todas as competências e que guia a EU
quando exerce as suas competências: o princípio da proporcionalidade (que tem a ver com a
intensidade do exercício das competências)

Princípios fundamentais para o exercício das competências:


● Subsidiariedade- essencial no exercício das competências partilhadas
○ art.º 5/1 e 3 do TUE
○ É também preciso ter em conta o protocolo nº1 e nº2 anexos aos tratados
○ Só se aplica no exercício de competências não exclusivas
○ Princípio típico dos estados federais e regionais embora não seja estranho aos
estados unitários (ex.: CRP art.º6)
○ Traduz a ideia de que as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível
dos seus destinatários
○ Introduzido formalmente no Tratado de Maastricht para compensar o
alargamento das atribuições da EU, o aumento do nº de caso em que o
Conselho passou a votar por maioria qualificada e o reforço dos poderes do PE
○ Integra um movimento de constitucionalização do DUE por permitir uma maior
participação dos seus cidadãos, principalmente através dos parlamentos
nacionais, havendo um reforço do princípio democrático

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○ No âmbito de uma competência não exclusiva, a EU só deve atuar quando os
estados-membros não possam atuar de forma suficiente e eficiente
○ A ação da EU está limitada por dois critérios
■ De descentralização
■ A EU só pode atuar se os objetivos não poderem ser
suficientemente alcançados pelos estados-membros
■ De eficiência ou valor acrescentado
■ A EU só pode atuar se os objetivos poderem ser melhor
alcançados a nível supranacional tendo em conta a dimensão
da ação e os seus efeitos (se extravasam o nível nacional
geralmente este critério cumpre-se)
● Proporcionalidade
○ Art.º 5/1 e 4 do TUE
○ Uma ação da EU independentemente da competência não pode exceder o
necessário para alcançar os objetivos previstos no tratados
○ O princípio da proporcionalidade associado a 3 conceitos: proibição do excesso
(proporcionalidade em sentido estrito), tem de haver uma relação de justa
medida entre a ação e os efeitos produzidos; a necessidade da atuação, que
implica que a medida seja exigível de tal modo que não se possa dizer que os
objetivos poderiam ter sido alcançados por outros meios menos onerosos; a
adequação dos meios, que devem ser idóneos e apropriados para o objetivo
que se visa alcançar.
○ Uma ação da UE deve sempre escolher as medidas menos onerosas,
prejudiciais ou rígidas, quando existam várias opções. O princípio da
proporcionalidade implica uma análise custo-benefício e também se aplica aos
estados-membros, principalmente quando se adotam medidas restritivas,
nomeadamente à luz do mercado interno.

V- Proposta legislativa
Suponha o seguinte:
a) Aquando da adoção da proposta de Diretiva, a Comissão apenas a
enviou ao Parlamento Europeu e ao Conselho;
b) A proposta era omissa quanto à ficha de impacto do ato legislativo;
c) Quinze parlamentos nacionais manifestaram-se contra a adoção da
referida Diretiva, considerando que devem ser os Estados-Membros,
de acordo com as suas realidades e especificidades nacionais, a legislar
sobre a matéria.

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Quid iuris?

Primeiramente, a UE tinha competência nesta matéria? Pode dizer-se que a matéria


em causa é a do mercado interno, uma vez que as discrepâncias horárias podem obstaculizar
a comunicação entre, por exemplo, fornecedor e empresa, colocando em causa a livre
prestação de serviços, mercadorias, trabalhadores e capitais. A matéria diz respeito às
competências partilhadas concorrentes nos termos do artigo 4/2/a). A concreta base jurídica
para a adoção do ato seria o artigo 114º do TFUE.

É nos protocolos 1 e 2 que encontramos a resposta à pergunta em causa. Uma das


inovações introduzidas pelo tratado de Lisboa foi um mecanismo de dupla tutela política e
jurídica pelo respeito do princípio da subsidiariedade. Este duplo controlo é feito não só pelos
estados-membros mas também pelos parlamentos nacionais nos termos dos dois protocolos
referidos.

Quanto ao papel dos parlamentos nacionais, o protocolo nº 1 diz que a Comissão


Europeia têm de enviar aos parlamentos nacionais os documentos de consulta e de
programação. No art.º 2 diz-nos que quem tem o poder de iniciativa tem de enviar as
propostas aos parlamentos nacionais.

Quanto ao protocolo nº 2 salienta-se o artigo 7º que contém o "sistema de semáforo"


● Nos termos do nº 2, cada parlamento tem direito a 2 votos e se os pareceres
fundamentados sobre a inobservância do princípio da subsidiariedade totalizarem
pelo menos 1/3 dos votos atribuídos aos parlamentos nacionais, o projeto de ato
legislativo tem de ser analisado pela instituição que o propôs, que, por sua vez, pode
manter o ato, retirar ou alterar a proposta de ato tendo sempre de fundamentar a sua
opção--> cartão amarelo
● Nos termos do nº 3, caso o número de pareceres atingir, pelo menos, a maioria
simples do número de votos dos parlamentos nacionais a proposta deve reanalisada
e o legislador deve ter em conta a compatibilidade da proposta com o princípio da
subsidiariedade, tendo em especial conta as razões expressamente invocadas pelos
parlamentos nacionais (art.º 3/a)--> cartão laranja
● Nos termos do art.º 3/b), há um afastamento automático da proposta no caso de se
atingir a maioria de 55% dos membros do Conselho, ou por maioria qualificada de
votos expressos no PE, o legislador considerar que a resposta não é compatível com o
princípio da subsidiariedade--> cartão vermelho

No caso prático, a comissão tinha violado os protocolos ao não enviar a proposta de


diretiva simultaneamente para os parlamentos nacionais e ao não apresentar a ficha de
impacto. Se 15 parlamentos nacionais apresentassem um parecer fundamentado sobre a

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inobservância do princípio da subsidiariedade aplicava-se o "cartão laranja", e se a maioria
prevista no artigo 3/b) entendesse que a proposta violava o princípio da subsidiariedade esta
seria automaticamente afastada.

Semana 8

13 a 17 de novembro

Ficha prática nº 6

I- Acórdão AETR
Quid iuris?

Este caso está inserido no âmbito do princípio da atribuição. O acordo era relativo às
tripulações de veículos, aplicam-se aos turistas rodoviários.

Os estados-membros das comunidades negociaram e concluíram, com estados


terceiros, este acordo internacional. Não obstante de, ao abrigo da sua soberania própria,
cada um dos estados-membros de celebrar e concluir este acordo, a verdade é que definiram
uma posição negocial comum no âmbito do Conselho.

Contudo, a Comissão, à época, entendeu que os estados-membros, individualmente


considerados ou atuando em conjunto, não tinham competências para celebrar este acordo,
pelo que a competência pertencia exclusivamente à CEE.

Como argumentos usa o atual artigo 91º do TFUE que refere expressamente que no
âmbito de um política comum de transportes as comunidades podiam adotar todas as
disposições adequadas e isto aplica-se a celebração de convenções internacionais. Para além
disso, já existiam atos internos/regras internas sobre pelo menos parte desse domínio.

A questão chegou ao TJUE, dando origem ao acórdão AETR.

Historicamente, através de vários mecanismos, a UE foi muitas vezes além daquilo que
era competente, à primeira vista, pelo princípio da atribuição. Estes mecanismos que
permitiram o alargamento do âmbito de ação das competências da UE podem ser sintetizados
em três (segundo Gorjão-Henriques):

● O princípio das competências implícitas

● A cláusula de flexibilidade (artigo 352º do TFUE)

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● Métodos de interpretação teleológico-finalísticos do TJUE

Destes três mecanismos, o acórdão em causa coloca em evidência o princípio das


competências implícitas. De forma simples, este princípio afirma que uma OI deve ter todas
as competências que sejam necessárias ou convenientes para a prossecução dos seus fins, ou
seja, as competências implícitas correspondem às competências que não estando enunciadas
de formas direta ou expressa na norma enunciadora da competência, são inerentes ou
necessárias à realização eficaz dos objetivos da entidade ou das respetivas competências
expressas.

Efetivamente, as Comunidades surgiram com fins primordialmente económicos, pelo


que as competências nos tratados se concentram essencialmente no plano interno (ex.:
regulação de aspectos atinentes ao mercado comum e à concorrência).

É por essa razão que o Tratado de Roma tinha poucas referências às competências
externas das Comunidades, ou seja, à afirmação da sua participação nas decisões
internacionais (possibilidade de concluir acordos internacionais), não obstante de, desde o
início, ter ficado expresso nos tratados que as comunidades tinham personalidade jurídica
(atual artigo 47º do TUE). Tal significa, essencialmente, que nas relações externas a UE goza
da capacidade de estabelecer vínculos com estados terceiros ou outras OI, isto é, que tem
capacidade jurídica internacional.

À medida que a integração europeia se foi formando, tornou-se claro que se os


estados-membros mantivessem intocada a sua própria capacidade internacional, e pudessem
celebrar acordos internacionais com outros estados ou com OI, isso representaria um risco
para as comunidades (para o DUE), colocando em causa, especialmente o princípio do
primado e da autonomia. No limite, mantendo-se a capacidade dos estados-membros
intocada, poder-se-ia assistir à desagregação das Comunidades. Para mitigar esses riscos, na
década de 60 o TJ iniciou um percurso jurisprudencial, (este é o primeiro acórdão do
percurso), onde decidiu alargar o treaty-making power das Comunidades.

Neste caso concreto, a comissão defendia que só as Comunidades podiam, em


exclusivo, concluir aquele acordo, sendo que o Conselho entendia que, ao abrigo do princípio
da atribuição, a competência da CEE para concluir acordos com estados terceiros não existia
a menos que esta estivesse expressamente prevista nos tratados (ou a competência está
atribuída e existe, ou não está atribuída e não existe). Assim, segundo o conselho, olhando
para o atual artigo 91º do TFUE, a competência da CEE era no plano estritamente interno.
Mesmo que se pudesse extrair deste artigo uma competência externa, esta nunca seria
exclusiva, pelo que os estados-membros poderiam concluir convenções internacionais.

O TJUE, quanto à questão apresentada formula um conjunto de conclusões:

1. A capacidade jurídica da CEE decorre inequivocamente da norma que lhe confere


personalidade jurídica (art.º 47 TFUE)

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2. Para se saber, num dado caso, se a comunidade tem ou não competência para
celebrar acordos internacionais é necessário fazer uma interpretação sistemática dos
tratados e atender às disposições materiais.

3. A competência internacional da CEE pode resultar não apenas de uma atribuição


explícita que conste de uma norma do tratado mas pode também ser implícita e
decorrer de outras disposições dos tratados ou dos atos adotados no âmbito dessas
disposições pelas instituições (estabelece-se assim a ideia do princípio dos poderes
implícitos)

4. Sempre que no âmbito de uma política comum, como o caso, a comunidade adote
atos que instituem regras comuns, como também era o caso, os estados-membros
coletiva ou individualmente, deixam de ter o direito de contrair com estados terceiros,
obrigações que afetem essas regras comuns. À medida que se instituem regras
comuns num dado domínio, só a comunidade pode assumir obrigações com estados
terceiros

5. Na aplicação das disposições dos tratados não é possível separar as


medidas/competências internas das externas

A principal inovação deste acórdão foi por isso instaurar o princípio do paralelismo das
competências que estende, ainda que implicitamente, a competência interna da CEE à
competência externa (internacional) quando tal seja necessário para a realização dos seus
objetivos.

NOTA: nos termos do artigo 218/11, pode ser pedido um parecer do TJ quanto à
compatibilidade de um projeto de acordo com os tratados, pelo que se for emitido um
parecer negativo pelo TJUE, o projeto não pode entrar em vigor a menos que tenha sido
alterado ou os tratados revistos.

Mais tarde, continuando o caminho jurisprudencial, no parecer 1/76, o TJ vai mais


longe e refere que a capacidade internacional da CEE não se limitava apenas aos casos em
que a nível interno a competência do domínio em causa já tinha sido exercida (já tinha sido
adotados atos) mas também abrangia as situações em que as medidas internas apenas
podiam ser adotadas por convenções internacionais (quando a única forma de exercer
competências internas é através de acordos internacionais)

Já no âmbito do parecer 1/03, o TJ volta a referir que a competência para celebrar


uma nova convenção (a nova Convenção de Lugano relativa à competência judiciária, ao

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reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial) é exclusiva da UE
porque já existiam regras internas, por via de um regulamento, no mesmo domínio.

Por último, o TJ pronunciou-se no parecer 1/13, estando em causa a convenção de Haia


relativa ao rapto internacional de crianças.

Inicialmente, tinham sido os estados-membros que tinham concluído este tratado, a


título individual. Assim, em 2013, um novo estado queria aderir à convenção tendo, como
geralmente acontece, de ser aceite pelos estados signatários da convenção, pelo que tendo
em conta o desenvolvimento, nomeadamente a nível político, da EU, colocava-se a questão
de saber se deveriam ser os estados a aceitar ou não a adesão ou a UE.

O TJUE diz que, por um lado, sempre que o DUE confira às instituições competências
a nível interno com vista a realizar um objetivo, a UE fica investida igualmente de
competências externas para a realização desse objetivo, mesmo na falta de uma disposição
prévia nesse sentido (princípio do paralelismo e das competências implícitas). Por outro lado,
sempre que haja o risco de violação de regras comuns da UE ou da alteração do alcance dessas
regras internas por força de compromissos internacionais assumidos pelos estados-membros,
esse risco justifica a existência de uma competência externa exclusiva da UE. Deste modo,
pode haver uma competência exclusiva no plano externo para conclusão de tratados sobre
uma matéria que não é da competência exclusiva a nível interno. Para além disso, esse risco
é tão mais evidente quanto mais a EU tenha exercido a sua competência no domínio em causa
(esta ideia decorre do princípio da preempção), ou seja:

● se estivermos perante um domínio já em grande parte coberto, ainda que não


totalmente por regras internas, esse risco de afetação por um acordo internacional é
mais saliente

● se estivermos perante um domínio onde a EU exerceu ainda a sua competência de


forma comedida esse riscos será menos

Para que possamos concluir que a EU tem competência internacional num dado
domínio e para perceber se é exclusiva é preciso fazer uma avaliação casuística para saber se
o risco é efetivado, ou seja, uma análise global entre o acordo projetado e o DUE em vigor
para verificar se esse acordo põe em causa a aplicação uniforme e coerente das regras da EU
e o bom funcionamento das regras existentes.

No parecer 1/13 o TJ entende que a EU tinha competência exclusiva para celebrar o


acordo

Já no acórdão AETR, o regulamento invocado é posterior ao início das negociações do


acordo pelo que, no momento em que as negociações do acordo se desenvolveram, a UE
ainda não tinha exercido a sua competência no domínio da política comum dos transportes.

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Assim, tendo especialmente em conta os estados-membros terem coordenado a sua ação em
conselho, a competência para celebração dos acordos era dos estados.

Note-se que o atual art.º 3/2 TFUE, consagra as conclusões desta jurisprudência do TJUE. A
EU tem competência exclusivas para celebrar acordos internacionais em 3 hipóteses:

1. Quando a celebração do acordo está prevista num ato legislativo da EU

2. Quando a celebração é necessária para dar à EU a possibilidade de adotar um ato


interno

3. Quando a celebração do acordo seja suscetível de afetar ou alterar o alcance das


regras internas

Relativamente à celebração de acordos internacionais pela UE, são relevantes os art.º


216 a 219º do TFUE. Nestes estão plasmados o alcance e os procedimentos decisórios para o
exercício da competência externa da UE. É necessário, também, ter em conta a existência de
um regime específico para a política comercial comum, nos termos do art.º 207 do TFUE, por
ser uma competência exclusiva da UE (face ao regime geral do art.º 218º), por exemplo, regra
geral, o conselho designa um negociador ou equipa de negociação (como aconteceu com o
Brexit) ao passo que na Política comercial comum quem negoceia é a comissão, nos termos
do art.º 207º/3.

II- Cláusula de Flexibilidade

Atualmente, poderia a UE sustentar a sua competência em alguma norma


dos Tratados?

Neste caso, releva o artigo 352º do TFUE, antigo artigo 235º do TCEE. Este artigo
corresponde ao que se designado na doutrina como cláusula de flexibilidade/ de
subsidiariedade/ dos poderes subsidiários.

Pode ser usado:


● como base jurídica para um ato da EU, enquanto base jurídica subsidiária ou residual,

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○ nos casos em que para dada ação da UE não existem nos tratados outros
fundamento expresso ou implícito
● enquanto base jurídica complementar
○ Para as situações em que para uma ação existe um fundamento expresso ou
explícito mas que é insuficiente para constituir um fundamento adequado para
os atos que se querem adotar.

Antes do Tratado de Lisboa a cláusula de flexibilidade foi usada diversas vezes para
integrar lacunas dos tratados, sendo usada pela primeira vez em 1962 e depois empregue
inúmeras vezes em vários domínios.

Desde o Tratado de Lisboa que não se tem em mente um caso em que a cláusula de
flexibilidade tenha sido usada neste contexto, uma vez que este tratado aditou inúmeras
bases jurídicas e procurou proceder uma delimitação mais clara das competência da União.
Para além disso, o recurso a este mecanismo obriga à unanimidade, o que dificulta
procedimentalmente a sua ativação

Pressupostos iniciais do uso do mecanismo (352º/1 do TFUE):


1. Tem de haver uma ação da EU que seja necessária
2. A ação tem de ser no quadro das políticas definidas nos tratados
3. Tem de ser de tal molde, que seja para atingir um dos objetivos presentes nos
tratados, com exceção da PESC ( tal como previstos no artigo 352/4 e na declaração
nº 41 anexa aos tratados
4. Não existam poderes de ação necessários para a adoção do ato

Do ponto de vista procedimental a utilização do artigo com base no ato implica:


1. Uma proposta da comissão
2. A aprovação pelo PE
3. Deliberação por unanimidade no conselho

Limites da cláusula de flexibilidade


● Nos termos do 352/2, a utilização desta base jurídica precisa de respeitar o princípio
da subsidiariedade, com o respetivo controlo político dos parlamento nacionais e
controlo jurídico do TJUE do respeito pelo princípio
● Nos termos do artigo 352/3, as medidas baseadas neste artigo não podem levar a uma
harmonização regulamentar ou legislativa quando esta harmonização é excluída dos
tratados

Jurisprudencialmente acrescentam-se mais dois limites (previstos também declaração nº 42


anexa aos tratados)
● Respeito pela carta constitucional dos tarados

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○ O artigo não pode resultar de uma revisão camuflada dos tratados
● A impossibilidade de com base neste artigo se fundar o que o TJ designa como "um
salto qualitativo de integração"

Ou seja, o artigo não pode constituir fundamento para alargar o âmbito das
competências a EU para além do quadro geral resultante do conjunto das disposições do
tratado e não pode implicar uma alteração dos tratados que em substância ou nas suas
consequências corresponde a uma alteração dos tratados que escape aos processos de
revisão estabelecidos

Note-se que o parecer do TJUE 2/94, relativo à primeira tentativa de adesão das
comunidades para a CEDH incidiu sobre esta matéria. À data, a base jurídica que possibilita a
adesão da CE à CEDH era o artigo 235º, assim, o TJUE diz que a utilização desta cláusula
implicava uma verdadeira alteração constitucional, alargando o âmbito das competências da
comunidade para além daquilo que era o seu quadro geral (daquilo que resulta da
interpretação sistemática dos tratados), por isso a adesão só podia ser alcançada através da
revisão (o que veio acontecer no tratado de lisboa).

III- Imposto especial sobre veículos automóveis romeno

1. Será o princípio da equivalência pertinente para a análise desta situação


diferenciada entre os processos de natureza administrativa e cível?

O princípio da equivalência diz-nos que a totalidade das regras processuais aplicáveis


às ações e recursos por violação do direito interno seja aplicada indistintamente, ou seja, seja
equivalente, ao conjunto das regras processuais aplicáveis às ações ou recursos baseados em
violação do DUE. Mas o princípio não se pronuncia quanto à existência de regras diferentes
tendo em conta a natureza administrativa ou não do processo, pelo que esta diferença não
viola o princípio em causa.

2. Decorrerá do princípio da efetividade a obrigatoriedade de o juiz


nacional afastar a aplicação das regras processuais internas que conferem
a autoridade de caso julgado a uma decisão judicial, isto é, que
impossibilitam que essa decisão possa ser impugnada, através de recurso
ordinário?

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O princípio da efetividade diz-nos que as modalidades processuais destinadas a
assegurar direitos conferidos pelo DUE não devem ser estruturadas de modo a impossibilitar
na prática ou a dificultar excessivamente o exercício dos direitos exercidos na EU.

O instituto do caso julgado tem muito poucas exceções, pelo que, quando transita em
julgado, a decisão se "cristaliza" na ordem jurídica. O TJUE reconhece esta ideia, daí que o
princípio da efetividade não possa ser aplicado neste caso, não sendo o juiz obrigado a
desrespeitar o caso julgado.

Para este caso seria relevante o princípio da responsabilidade dos estados-membros


por violação do direito da UE, uma vez que a Roménia violou o DUE e daí decorreram
prejuízos para particulares.

Também decorre da jurisprudência do TJUE que o princípio da responsabilidade


permite que um particular seja indemnizado quando da violação do DUE decorre o prejuízo
para si.

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