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Ficha 1

I - Acórdão Van Gend & Loos 6


II - Acórdão Defrenne 13
III - Acórdão Costa/ENEL 15
IV - Princípio do primado norma constitucional 17
V - Acórdão Handelsgesellschaft 18
Ficha 2
I - Crise da Cadeira Vazia 20
II - Acórdão Cassis de Dijon 22
III- “Carta constitucional de uma comunidade de direito”. 24
Ficha 3
I- Nold Colen 26
II- Parecer do TJUE 2/13, de 18 de dezembro de 2014 27
III- Natureza da União Europeia 29
Ficha 4
I- Legislação da República da Polónia 34
II- Caso Sayn‑Wittgenstein 42
III- Regime geral da condicionalidade e interpretação da identidade nacional 44
Ficha 5
I- “Lei da Cidadania” da Malta 46
II- iniciativa de cidadania europeia 51
III- crise migratória e princípio da cooperação leal 52
IV- Polónia e o princípio da cooperação leal 54
V- propostas legislativas 61
Ficha 6
I- Acórdão AETR 62
II- Cláusula de Flexibilidade 66
III- Imposto especial sobre veículos automóveis romeno 68
Ficha 7
I - Fontes de direito 69
II - Os regulamentos 72
III - As diretivas 73
IV - Atos atípicos 75
Ficha 8
I - efeito direto e diretivas 76
II - efeito direto vertical 80

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Ficha 9 84

Sebenta de Direito da União Europeia

Preâmbulo
A presente sebenta foi elaborada pelos estudantes Margarida Taipa e Rita Ferreira
sob a coordenação de Victoria de Pinho tendo por base as aulas lecionadas pelo/a docente
Tiago Morais da Rocha.

A equipa de Direito da União Europeia deu o seu melhor para garantir a qualidade
dos apontamentos semanais e, agora, desta sebenta.

Esta sebenta constitui somente um complemento de estudo, não dispensando por


isso, a devida presença às aulas teóricas e práticas e a leitura das obras obrigatórias e
complementares da cadeira.

De estudantes para estudantes,

Bom Estudo!

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Noções introdutórias à cadeira de Direito da União Europeia
É importante reter, desde já, que o Direito da União Europeia não é um ramo do
direito - mais um, numa miríade de muitos outros (v. g. direito da família, direito das
sucessões, direito das obrigações, direito administrativo, entre outros) - é um verdadeiro
ordenamento jurídico; uma nova ordem jurídica autónoma. Sendo uma ordem jurídica
autónoma tem associado um sistema jurídico completo com as suas próprias fontes de
direito. Dessas fontes, uma das mais relevantes - independentemente de ser,
verdadeiramente, fonte de Direito ou não - é a jurisprudência do Tribunal de Justiça da
União Europeia (TJUE).

Assim, os casos práticos analisados, na sua esmagadora maioria, terão por base um
acórdão do TJUE o que, geralmente, acontece com os casos práticos de exames.

Importa mencionar também que, quer nas aulas práticas quer nas aulas teóricas
adota-se uma perspetiva constitucional do Direito da União Europeia (DUE). Haverá divisões
doutrinárias, mas é esta doutrina mais constitucionalista que preside ao nosso curso.

Para compreendermos o DUE não basta conhecermos o Direito originário - grosso


modo, os Tratados - nem basta conhecermos o direito derivado - os atos normativos do
direito da união europeia: regulamentos, diretivas, decisões e assim por diante - é, também,
imprescindível que conheçamos a jurisprudência, isto é, as principais decisões e principais
acórdãos e pareceres do TJUE, porque, como já referido, essa jurisprudência teve um reflexo
muito importante na estrutura jurídica, institucional e política da União Europeia (que são
alvo de análise nas aulas práticas sendo apenas referidas de passagem nas aulas teóricas).1

Quanto à estrutura dos acórdãos do TJUE, estes estão, geralmente, divididos em duas partes
principais:

1- Na primeira parte, o TJUE pronuncia-se sobre os chamados pressuposto processuais que


são, no fundo, as condições de admissibilidade da ação, ou seja, um conjunto de questões
que podem ou não determinar se o TJUE se poderá pronunciar sobre o mérito da causa (ex.:

1
No que diz respeito ao acesso ao DUE, além do sítio web do TJUE (CURIA) existe também o EUR-lex - que é um
repositório de todos os atos de direito da União Europeia; uma espécie de Diário da República).

É neste último sítio onde se encontra publicado a Jornal Oficial da União Europeia (que agora é exclusivamente
digital) e onde podemos encontrar todos os tratados - o Direito Originário - e também todos os outros atos
normativo (regulamentos, diretivas, decisões, etc.) - Direito derivado - em todas as línguas oficiais dos
estados-membros.

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uma parte invoca que o TJUE não tem competência para se pronunciar sobre essa matéria; a
outra parte refere que a contraparte apresentou uma peça processual que não cumpriu os
formalismos necessários- tudo isto são um conjunto de questões que delimitam a decisão de
mérito e que têm que ser decididas previamente.

2- Na segunda parte, ultrapassadas as questões processuais, o TJUE poderá pronunciar-se


(dizemos poderá porque dependerá da resposta à primeira parte) quanto ao mérito da
questão, aplicando o direito substantivo.

Portanto, geralmente segue-se esta divisão: primeiro as questões processuais - de


competência, de forma, etc. - depois o mérito da causa, a parte substantiva.

Além disto, no fim dos acórdão, veremos sempre uma parte destacada, geralmente a
negrito, separada de alguma forma, que é aquilo que designamos por dispositivo e
corresponde à fórmula da decisão do TJUE, ou seja, no final está sempre condensada a
decisão do TJUE.

Todos os acórdãos que serão analisados, são acórdãos que resultam de um


mecanismo de direito processual específico - o reenvio prejudicial - que está previsto no
art.º 267.º do TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). O mecanismo de
reenvio prejudicial é um mecanismo de diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o
Tribunal de Justiça (quem diz órgãos jurisdicionais nacionais diz, simplesmente, os Tribunais
Nacionais, se bem que esta realidade é, aqui, muito simplificada por motivo de economia).

Um exemplo prático: imaginemos que um trabalhador intenta, num Tribunal


nacional, uma ação contra a sua entidade empregadora e nessa ação invoca uma
determinada norma de DUE, uma norma dos Tratados ou uma norma de uma diretiva e o
juiz nacional, quando está a apreciar o caso, fica com dúvidas quanto à validade ou
interpretação da norma de DUE. Perante essas dúvidas, o juiz nacional poderá decidir
suspender a instância (suspender o processo que corre nos Tribunais nacionais) e formular
um conjunto de questões prejudiciais que envia para que o TJUE se pronuncie sobre elas -
dizem-se questões prejudiciais porque da boa decisão da causa depende uma resposta a
essas questões, pelo que elas prejudicam a decisão da causa principal. O TJUE analisará,
decidirá e devolverá ao tribunal nacional assumindo a interpretação ou a sua decisão quanto
à validade da norma e depois o juiz nacional, nos termos gerais decidirá o caso concreto.
Isto, em linhas muito simples, é o mecanismo do reenvio prejudicial ou questões
prejudiciais.

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Ficha Prática n.º 1 - A evolução constitucional da União
Europeia

I. Acórdão Van Gend & Loos


No acórdão VG&L (Van Gend & Loos), o tribunal nacional - órgão jurisdicional
nacional dos Países Baixos - colocou ao TJUE duas questões prejudiciais:

1- Perguntava se o artigo 12.º do Tratado CEE tem efeito interno, ou seja, se os particulares
podem, com base neste artigo, fazer valer direitos individuais que o juiz deva tutelar;

2- A segunda questão, que seria respondida no caso da primeira ter sido respondida no
sentido afirmativo, era se a aplicação de um direito aduaneiro de 8% à importação, pelos
Países Baixos, representa uma violação do artigo 12.º do Tratado CEE.

À época, o art.º 12.º do Tratado CEE, dizia que os estados-membros abstinham-se de


criar, entre eles, novos direitos aduaneiros. Os direitos aduaneiros são tarifas ou taxas que se
aplicam, numa determinada jurisdição, nas importações ou nas exportações. O art.º 12.º do
Tratado CEE, na sua redação inicial, já não existe, pelo que, atualmente, o equivalente está
previsto no art.º 30.º do TFUE e este, por sua vez, refere que são proibidos, entre os
estados-membros, os direitos aduaneiros de importação ou exportação (livre circulação de
mercadorias).

O Tratado de Roma foi assinado em 1957 e institui a CEE - Comunidade Económica


Europeia - e a CEEA - Comunidade Europeia de Energia Atómica - (Euratom ou Eurátomo).

Depois de expostas as questões prejudiciais, a decisão de mérito do TJUE veio dizer que
para saber se uma determinada norma de um tratado internacional tem ou não aquele
efeito, ou seja, se um particular pode ou não com base num artigo (art.º 12.º do Tratado
CEE) fazer valer direitos em juízo, o TJUE tinha que atender ao espírito, à economia e ao
conteúdo das normas dos Tratados.

Quando o TJUE se refere ao espírito está a apontar para o elemento teleológico da


interpretação da norma jurídica; quando se refere à economia dos tratados está a apontar
para o elemento sistemático; quando fala no conteúdo está a apontar para o elemento literal
(ou gramatical). Aqui a economia tem também em conta o elemento teleológico - ligado à
ratio legis - e, podemos dizer, tem que ver com o objetivo prosseguido globalmente pelo
Tratado: o de instituir um Mercado Comum cujo funcionamento diz diretamente respeito
aos nacionais da comunidade e, portanto, é mais do que um mero acordo que gera
obrigações para os estados-membros, gerando também obrigações para os particulares.

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Ora, as convenções internacionais, de acordo com o que já foi lecionado em DIP,
vinculam os estados parte (ou contratantes). Aquilo que o TJUE veio dizer é que o Tratado
CEE não é um tratado como outro qualquer. Dele não decorrem apenas obrigações que
vinculem os estados parte. Decorrem também obrigações que vinculam diretamente os
particulares, os nacionais desses estados-membros. Diz o TJUE que esta conceção é
confirmada pelo preâmbulo do Tratado de Roma (ou Tratado CEE) que faz referência não só
aos Governos mas também aos Povos. Para além disso, este tratado cria órgãos com poderes
soberanos cujo exercício afeta não só os estados-membros mas também os seus nacionais.

Deve também concluir-se, segundo o Tribunal, que a Comunidade constitui uma nova
ordem jurídica de direito internacional. Qual é o sentido desta afirmação? Primeiramente, a
ordem jurídica comunitária não se confunde com a ordem jurídica dos estados-membros.
Em segundo lugar, esta nova Ordem Jurídica comunitária também não se confunde com a
Ordem Jurídica do Direito Internacional. Portanto, é uma coisa nova, um ex novo, um tertium
genus. Não corresponde a um certo modelo estadual e não serve o modelo internacional, é
qualquer coisa de novo.

É uma nova ordem jurídica a favor da qual os estados limitaram, ainda que em
domínios restritos, os seus direitos soberanos e cujos sujeitos são não apenas os
estados-membros mas também os seus nacionais.

Portanto, o Direito Comunitário, independentemente da legislação dos


estados-membros, tal como impõe obrigações aos particulares também lhes atribui direitos
e entra na sua esfera jurídica. Aliás, os Tratados podem nem sequer atribuir direitos aos
particulares, mas podem, impondo obrigações aos estados-membros, e como o correspetivo
de uma obrigação é um direito, produzir direitos na esfera jurídica dos particulares (ex.:
direitos contra o próprio estado).

E, portanto, conclui o TJUE, segundo o espírito, a economia e o texto do Tratado, o


art.º 12.º deve ser interpretado no sentido de que produz efeitos imediatos e atribui direitos
individuais que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar.

a) Contexto factual do caso

Os países do BENELUX (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) adotaram, em 1960,


uma nova classificação aduaneira. Portanto, não houve, aqui, propriamente, um aumento
das taxas aduaneiras globalmente consideradas, o que aconteceu foi antes que os países
modificaram a classificação de algumas mercadorias às quais se passou a aplicar uma taxa
aduaneira superior. Esta empresa - Van Gend & Loos - que importava os seus produtos da
RFA, impugnou esta decisão junto do TJUE invocando que a reclassificação operada pelos
países do BENELUX violava o art.º 12.º do Tratado CEE.

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Note-se que este caso é um exemplo de como o Tribunal de Justiça profere decisões
absolutamente fundamentais para a arquitetura jurídica constitucional do DUE a propósito
de casos em que os factos são prosaicos, muito pouco relevantes, isto é, pequenos
problemas geralmente associados ao funcionamento do Mercado Interno.

Ora, como visto nas aulas teóricas o processo de construção europeia pode ser
dividido em seis fases, na sistematização que a Dr.ª Graça utiliza:

(1) criação - 1951 até 1957, aqui com a criação do Tratado de Roma;

(2) consolidação - 1958 até 1970;

(3) desenvolvimento, alargamento e aprofundamento - 1970 até 1993;

(4) refundação I: o aprofundamento para o alargamento - 1993 até 2003;

(5) refundação II: aprofundamento com diferenciação - 2003 até 2009;

(6) refundação III - 2009 até à atualidade.

O acórdão VG&L encontra-se na segunda fase, na consolidação. A fase da


consolidação é a fase da realização da política aduaneira, e destaca-se, nesta fase, em
termos normativos, o Tratado de Bruxelas de 1965, também conhecido como Tratado de
Fusão, tratado que institui a fusão do Conselho e da Comissão das Comunidades num só
(isto é, um só Conselho e uma só Comissão). Foi nesta segunda fase que começou a haver
uma orçamento único para as Comunidades e é também nesta fase a primeira vez que se
reconhece às comunidades terem recursos próprios, ou seja, até aí, o orçamento das
comunidades resultava exclusivamente das contribuições dos estados-membros.

Ao longo deste processo, o papel do TJUE é muito importante, especialmente nesta


fase da consolidação e na posterior (desenvolvimento). Note-se que os estados fundadores
da União Europeia quando assinaram o Tratado de Roma, não anteciparam nem quiseram os
termos em que o projeto europeu se veio posteriormente a desenvolver e consolidar como
uma Ordem Jurídica autónoma. Esse trabalho de construção jurídica de um Ordenamento
Jurídico da União Europa como um sistema autónomo e completo, resulta da doutrina e da
jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Foi o TJUE, assumindo plenamente um estatuto de jurisdição constitucional, o


principal arquiteto do sistema jurídico em que a União Europeia atualmente assenta,
fazendo-o através daquilo a que se pode qualificar (e se qualifica muitas vezes) como
"ativismo judicial inovador".

Nos anos sessenta este papel do Tribunal de Justiça é ainda mais relevante. Se de um
lado tínhamos, do ponto de vista político a "crise da cadeira vazia" e um conjunto de
cedências ao intergovernamentalismo, do outro lado tínhamos o Tribunal de Justiça a

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proferir decisões que tiveram um impacto muito grande na arquitetura constitucional da
União até aos dias de hoje.

b) Princípio consagrado

Qual é o princípio que o TJUE consagrou neste acórdão Van Gend & Loos? O princípio
do efeito direto. Este princípio consiste na suscetibilidade de invocação pelos particulares de
normas de Direito da União Europeia perante os tribunais nacionais ou outras autoridades
nacionais, normas essas que conferem direitos ou obrigações. Este princípio distingue-se da
aplicabilidade direta que é a suscetibilidade da norma de Direito da União aplicar-se
diretamente sem necessidade de um ato de recepção formal por parte dos
estados-membros (sem necessidade de um ato de transposição dessa norma europeia pelo
direito nacional; ela aplica-se diretamente no ordenamento jurídico).

O regulamento é o ato que por excelência goza de aplicabilidade direta, ao contrário


das diretivas. Nos termos do art.º 288.º do TFUE, as diretivas dependem de um ato de
transposição por parte do estado-membro para o ordenamento jurídico nacional. Os
regulamentos, nos termos do mesmo artigo, têm aplicabilidade direta. Note-se que os
tratados também têm aplicabilidade direta.

Isto significa que a aplicabilidade direta funciona ao nível da aplicação da norma, que
funciona de forma automática, ao passo que, o efeito direto funciona ao nível da
invocabilidade da norma, dependendo sempre da interpretação da norma em causa e do
preenchimento de um conjunto de condições ou requisitos que o TJUE também foi fixando.

Os tratados não preveem o princípio do efeito direito porque se trata de uma


construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça.

Consequências práticas do princípio do efeito direto

Vamos supor que A fez algumas cadeiras noutra Universidade e quando regressa à
Faculdade B esta não lhe reconhece os respetivos créditos. A Faculdade B não aceita porque
diz que o prestígio da outra Universidade é duvidoso. A não se conforma, consulta a lei
nacional e encontra uma norma que diz que efetivamente os reconhecimentos são
discricionários. Primeiro: querendo reagir judicialmente contra a decisão da Faculdade B, A
dirigir-se-ia a um tribunal nacional e em regra invocaria uma norma de direito nacional,
norma essa que não lhe dava razão. Contudo, imaginemos que A descobre que aquela
norma da lei nacional não estava conforme com uma norma de direito da união,
interessava-lhe mais invocar a norma de direito da União. Se essa norma não gozar de efeito
direito, A não a pode invocar, fica cingido ao direito nacional e os seus interesses ficarão

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desprotegidos porque essa norma não lhe dá razão, não obstante ela violar o direito da
União, mas, se a norma de direito da União gozar de efeito direto, pode invocá-la
diretamente, ou seja, A, pode chegar ao juiz nacional e pedir que ignore o direito nacional,
que ainda por cima é desconforme e aplique a norma de direito da união.

Esta é, na prática, a utilidade do efeito direto: a possibilidade do particular invocar


em tribunais nacionais, para além das normas nacionais, normas da UE que prevalecem
sobre as nacionais em caso de conflito.

Porque é que o juiz, numa situação em que se conclui pela desconformidade do


direito nacional com o direito da União, tem de aplicar o direito da União? Por causa do
princípio do primado, segundo o qual, o direito da união europeia, em caso de oposição,
prevalece sobre o direito nacional.

c) Fundamentos utilizados pelo TJ que justificam a consagração do


princípio

Os fundamentos encontram-se todo plasmados no acórdão em questão, mas


podemos dizer que, para além destes, o TJUE, invocou a finalidade específica da CEE - criar
um mercado comum - que não dizia apenas respeito aos estados-membros mas também aos
particulares, , isto é, aos nacionais desses estados uma vez que criava obrigações para esses
estados-membros, que entravam nas suas esferas jurídicas e que tinham como correspetivos
direitos para os particulares.

Invoca também um outro argumento com base no art.º 177.º do Tratado CEE
(atualmente art.º 267º do TFUE) que é o do reenvio prejudicial, dizendo que, se os Tratados
prevêem, desde o início, um mecanismo de reenvio prejudicial isso significa que desde o
início supuseram que perante os Tribunais nacionais pudessem ser invocadas normas de
direito da união. Caso se entendesse impor essa limitação, isto é, não se poder, a nível
nacional, invocar o direito da União, o mecanismo não existiria, uma vez que este seria
completamente inútil. Assim, se o reenvio prejudicial foi previsto, foi porque quiseram ou
pelo menos não limitaram que perante os tribunais nacionais pudessem ser invocadas
normas de direito da União.

O Tribunal dá ainda um outro argumento: supondo que um estado-membro está a


violar o direito da União, se não reconhecêssemos efeito direito a normas que atribuem
direitos ou deveres aos particulares, estaríamos a desproteger os cidadãos, porque eles
estariam exclusivamente dependentes de outros mecanismos destinados a garantir o
cumprimento do Direito da União Europeia, designadamente as ações por incumprimento

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(acontece que nesse mecanismo de ação por incumprimento, quem tem iniciativa é a
Comissão ou os outros estados-membros; se um particular não pudesse invocar diretamente
uma norma de direito da união estaria sempre limitado a ter de esperar que a Comissão
desencadeasse este mecanismo).

O efeito direto é típico das relações entre o cidadão e o estado, assim o que o TJUE
faz é transpor esta característica tipicamente estadual para o direito da UE

d) Condições referidas no acórdão para que um particular se possa


prevalecer de normas constantes dos Tratados perante os órgãos
jurisdicionais nacionais.

Ou seja, quais as condições ou requisitos do efeito direto?

Primeiro, a norma tem de enunciar uma obrigação incondicional - neste caso


tratava-se de uma abstenção-; o segundo requisito é a clareza - premissas claras; terceiro
requisito é a precisão; e quarto requisito a suficiência - na medida em que a norma não
pode ter a sua execução dependente de um ato positivo de direito interno; é uma norma
que se basta a si mesma; não depende de uma intervenção legislativa posterior.

Todos os atos que gozam de aplicabilidade direta gozam de efeito direto? Não, pode
haver normas com aplicabilidade direta sem efeito direto e o contrário também. O efeito
direto é sempre interpretativo e depende sempre do preenchimento daquelas condições.
Exemplo clássico: um regulamento tem sempre aplicabilidade direta, mas se se cria um
regulamento que define uma disciplina jurídica nova e neste há uma norma em que diz "Os
estados-membros designam no prazo X a entidade nacional responsável pela fiscalização
deste regime.", esta norma tem aplicabilidade direta mas não tem efeito direto porque não
é suficiente (depende de um ato positivo interno para que possa ser executada).

Estes requisitos (ou condições) inicialmente referidas no acórdão Van Gend & Loos
foram posteriormente flexibilizados pelo Tribunal de Justiça no sentido de permitir uma
aplicação mais lata do princípio do efeito direto. Das "normas claras e incondicionais"
passamos às "normas incondicionais e suficientemente precisas" e das "normas que
conferiam direitos e punham obrigações" passamos também a estender às normas que
conferem simples instrumentos de defesa em processo criminal.

Enfim, atualmente, os requisitos do efeito direto são: tratar-se de uma norma


prescritiva - no sentido de se tratar de uma norma que impõe ou proibe uma conduta
(embora não seja exatamente a mesma coisa)-, precisa, suficiente e incondicional.

É ainda possível reconhecer dois tipos distintos de efeito direto: (1) o efeito direto de
substituição e o (2) efeito direto de exclusão.

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O efeito direto de substituição é o mais comum. Nestes casos decorre do efeito
direto a possibilidade de um particular invocar uma norma de direito da união da qual
resultem obrigações para o estado, ou direitos a favor dos particulares, para suprir uma
legislação nacional que seja incoerente com essas obrigações ou direitos (ou seja, no fundo
há uma oposição entre a norma de DUE e a norma nacional e por via invocabilidade de
substituição o particular faz decorrer o seu direito diretamente da norma de DUE, que é
"suprema" face ao direito nacional). Portanto a norma de DUE com efeito direto substitui a
norma nacional que a contraria passando a ser essa norma que define a situação jurídica do
particular.

Já o efeito direto de exclusão não funciona assim. Nestes casos a norma de Direito da
União serve para afastar ou excluir uma norma nacional ou para permitir o controlo da
aplicação de uma norma de direito nacional contrária ao Direito da União. Nestas hipóteses
não decorre da norma de DUE nenhum direito subjetivo ou dever para o particular mas
apenas e só a possibilidade de se eliminar a aplicação da norma nacional no caso concreto,
quando essa norma nacional seja contrária ao direito da União Europeia que possui efeito
direto. No efeito direito de exclusão está-se menos a invocar um direito subjetivo mas antes
a reclamar ao tribunal nacional um controlo da conformidade do direito interno com o
direito comunitário, pedindo ao tribunal, no fundo, não que aplique a norma de direito da
União mas simplesmente que desaplique a norma de direito nacional.

O caso clássico do efeito direito de exclusão é o caso CIA Security International


(C-194/94).

Há uma determinada diretiva que impõe aos estados-membros que, quando queiram
adotar normas técnicas (normas que condicionam o exercício de uma atividade ou a
circulação de determinada mercadoria, isto é, que contêm exigências que os estados fazem
aos operadores económicos) têm de a notificar previamente à Comissão.

Neste contexto, um determinado estado não procede a essa notificação à Comissão e


aplica a norma técnica que editou a uma empresa de vigilância/segurança (CIA Security
International). Essa empresa de segurança dirige-se ao órgão jurisdicional nacional e
invocando os artigos da diretiva que obrigavam à notificação prévia diz que aquelas normas
técnicas não lhes eram aplicadas. Ora, as normas invocadas da diretiva não conferiam àquela
empresa qualquer direito ou qualquer obrigação, elas apenas eram procedimentos, ou seja,
exigiam aos estados-membros que notificassem previamente a adoção de uma norma
técnica, mas não proibiam esse estado-membro de adotar normas técnicas ou caso análogo.

O TJUE, neste acórdão, vem decidir que a norma tinha efeito direto de exclusão,
dizendo que, porque não foram respeitadas aquelas normas da diretiva e porque estas, que
impunham a notificação prévia, têm efeito direto, então, as normas técnicas nacionais são

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inoponíveis aos particulares, não são aplicáveis no caso concreto. Não foi a norma de direito
da união que passou a definir a situação jurídica do particular, a única coisa que a norma de
direito da união fez foi afastar a aplicação da norma técnica do direito nacional.

No caso já referido a propósito da alínea b) (do sujeito A e da Faculdade B) o efeito


direto era de substituição, porque aquilo que ia passar a definir a posição jurídica era a
norma de direito da união (ia permitir obter o reconhecimento).

O efeito direto tem também muita importância nas diretivas. As diretivas, já vimos,
têm como característica não ter a aplicabilidade direta e têm destinatários exclusivos, nos
termos do art.º 288.º do TFUE, os estados-membros. Durante muito tempo colocou-se a
questão de saber se uma diretiva podia ter ou não efeito direto.

O TJUE veio dizer que sim e distingue duas grandes situações: efeito direto horizontal
e efeito direto vertical. O efeito direto vertical permite a invocação de uma norma europeia
contra o estado. É aí que o Tribunal de Justiça em algumas circunstâncias diz que as diretivas
podem ter efeito direto. O efeito direto horizontal permite a invocação de uma norma
europeia por um particular contra outro particular. Neste caso o TJUE reconhece que as
diretivas não têm efeito direto horizontal.

II. (Acórdão Defrenne) O art.º 119.º do Tratado CEE corresponde


ao atual art.º 157.º do TFUE. Tendo em conta o efeito direto, o
art.º. 119.º terá efeito direto?
Torna-se necessário saber se a norma cumpre todos os requisitos:

Argumentos:

1. "Cada estado-membro assegurará [...] a aplicação do princípio da igualdade de


remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por trabalho igual" através
desta expressão, vemos que a norma faz apelo a um princípio. Deste modo,
poder-se-ia colocar em causa o caráter prescritivo da norma. Contudo, este
argumento não é procedente uma vez que, tal como é dito pelo TJUE, a utilização da
expressão princípio nas normas do Tratado, serve para demonstrar o caráter
fundamental desta disposição (se eliminássemos aqui a expressão princípios
ficávamos na mesma com uma norma prescritiva).

2. O art.º 119.º diz que são os estados-membros que asseguram a aplicação do


princípio, portanto, esta norma destina-se aos estados-membros, ou seja,
argumenta-se que, do ponto de vista formal, a norma é dirigida apenas aos

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estados-membros, e por isso não pode ter como destinatários os cidadãos. Este
também não é um argumento suficiente porque não é pelo facto de uma norma se
dirigir apenas aos estados-membros que não possa, ao mesmo tempo, atribuir
direitos a qualquer particular que esteja interessado no cumprimento das obrigações
definidas pela norma com efeito direto.

3. Para se reconhecer o efeito direto desta norma não estaremos a violar o princípio da
autonomia privada? A Sr.ª Defrenne concluiu com a Sabena (companhia aérea) um
contrato e aceitou livremente aquelas condições remuneratórias. Não estaríamos a
imiscuir-nos na autonomia privada/ nas relações livres contratuais que as partes
estabelecem? Não. O art.º 119º é imperativo, tal como existem outras normas
imperativas no ordenamento jurídico interno, nomeadamente no Código do
Trabalho, que afetam a formação dos negócios jurídicos privados. Esta norma,
portanto, além de ser imperativa, também se aplica aos próprios particulares nas
suas relações contratuais (tem efeito direto horizontal).

Concluindo, o TJUE reconheceu ao art.º 119.º efeito direto, é uma norma precisa,
prescritiva, suficiente e incondicional

Neste acórdão, o TJUE reconhece o efeito direto dessa disposição mas não em
termos absolutos, sendo que acaba por estabelecer as condições em que o Efeito Direto
pode ser reconhecido no âmbito desta norma em particular:

● Quando a discriminação resultante da violação do princípio "trabalho igual,


remuneração igual" seja identificada com uma base puramente jurídica (resulta de
uma análise puramente jurídica), ou seja discriminações diretas que estão
expressamente previstas na lei.
○ Ex.: quando uma convenção nacional contém expressamente essa
discriminação (ter duas tabela de remuneração diferente, com base no sexo,
para trabalho igual)

● Discriminações indiretas, discriminações entre diferentes setores, etc., são casos em


que não existe efeito direto por serem mais dúbias e não poderem ser identificadas
com uma análise meramente jurídica

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III. Acórdão Costa/ENEL

a) Qual o princípio que o TJ enuncia no acórdão Costa/ENEL?

Contextualização:

Em 1962, a Itália decidiu nacionalizar a energia elétrica, através de duas leis


nacionais. O sr. Flaminio Costa, advogado milanês, opõe-se a esta nacionalização, na medida
em que a considerava contrária ao direito comunitário da época. Assim, deixa de pagar a
conta da eletricidade como forma de protesto. Quando tentaram cobrar
administrativamente a dívida, Flaminio segue para tribunal, invocando uma série de
disposições de direito comunitário a ser violado (art.º 102º, art.º 93, art.º 53 e 37º do
tratado da CEE). No âmbito dessa ação judicial, há uma série de questões colocadas ao TJUE;
pelo que ele se pronuncia nos termos acima.

O acórdão Costa/ENEL veio consagrar o princípio do primado do direito da UE: em caso de


conflito/contradição entre uma norma do ordenamento nacional e uma norma de DUE, a
norma de DUE prevalece sobre a norma da ordem jurídica nacional

A consequência do primado é a desaplicação da norma interna e aplicação da norma


comunitária, não obstante, este princípio estabelece uma relação de prevalência do direito
da UE sem invalidação (a norma interna não é revogada pela norma da UE).

O princípio do primado não está previsto em nenhum tratado (o tratado


constitucional previa-o expressamente mas este nunca chegou a entrar em vigor, sendo que
o tratado de Lisboa já não o prevê). Não obstante, existe uma declaração anexa ao TFUE, a
declaração nº 17, a propósito deste princípio.

b) Quais as razões invocadas pelo Tribunal de Justiça para que aos


Tratados não possa ser «oposto em juízo um texto interno, qualquer que
seja»?

Quais os fundamentos/argumentos do TJUE para construir jurisprudencialmente o princípio


do primado?

3 tipos de argumentos:

● Fundamentos principiais, que englobam:

14
○ Princípio da uniformidade: se um estado-membro pudesse adotar medidas
nacionais posteriores contrárias ao DUE, o direito desse estado teria
conteúdo diferente dos restantes e o alcance e conteúdo do DUE seria
variável em todos os estados-membros.

Precisamente por força deste princípio é que foi estabelecido o mecanismo


de reenvio prejudicial para assim garantir que os Estados-membros pudessem
entrar em diálogo com o Tribunal de Justiça para terem interpretações
uniformes do direito da União.

○ Princípio da igualdade/ não discriminação: com a possibilidade dos


Estados-membros adotarem medidas posteriores unilaterais contrárias ao
direito da União na prática levaria a que os nacionais dos estados-membros
seriam tratados de forma diferentes o que viola este princípio

○ Argumento "Estoppel"- é típico da common law e corresponde grosso modo


ao nosso venire contra factum proprium. Quem invoca um facto ou um direito
não pode depois atuar em contradição com essa invocação, o que aplicado,
neste contexto, significa que um estado-membro não pode depois vir criar
uma norma nacional que viole as disposições do tratado que anteriormente
aceitou de forma voluntária

■ Ou seja, os estados-membros, quando aderiram às comunidades


aceitaram e ratificaram um dado tratado de onde resultava uma
limitação/exercício partilhado de dados direitos soberanos, ora não
podem, depois de aceitarem estes termos ditar normas de sentido
oposto

● Fundamentos existenciais

○ O espírito e objetivos dos tratados, que têm como fim a integração e a


cooperação, obstam a uma primazia das ordens jurídica nacionais

○ Decorrem da própria ordem jurídica europeia e das suas características


(condensadas logo no primeiro tratado). Os estados consagraram uma
ordem jurídica autónoma que se tornou logo integrante das ordens jurídicas
nacionais. A ordem jurídica europeia baseia-se na atribuição de
competências para serem exercidas a nível supranacional e que introduzem
limitações auto-vinculativas da soberania (isto porque foram os próprios
estados-membros a atribuir estas competências à UE)

○ A própria natureza vinculativa das normas dos tratados ficaria


comprometida sem o primado. Se cada estado pudesse desaplicar o DUE
elas não teria qualquer significado ou efeito útil

15
● Fundamentos normativos

○ Os tratados prevêem um conjunto de normas derrogatórias (conjunto de


situações em que se admite a que num estado-membro não seja aplicado um
dado regime). Se cada estado-membro pudesse unilateralmente derrogar os
tratados estes regimes previstos seriam desnecessários.
■ Do ponto de vista normativo só pode haver derrogação das normas
comunitárias nos casos em que o próprio direito da UE o prevê. Assim,
a existência de normas derrogatórias é um argumento a favor do
primado do DUE porque sem primado não haveria esta necessidade
de prever regimes de diferenciação normativa

Note-se que do ponto de vista constitucional, o princípio do primado é característico


dos estados federais (a supremacia do direito do estado federal sobre os estados federados
é um dos traços fundamentais deste tipo de estados).

c) Compare a interpretação que o TJ faz das várias normas dos Tratados


invocadas (artigos 102.º, 93.º, 53.º e 37.º).

A interpretação dos artigos por parte do TJUE encontra-se entre as páginas 557 e 561
do Acórdão Costa/ENEL (páginas 5 a 9 do documento disponibilizado no Sigarra).

De um modo geral, o TJUE decide que, para a questão em causa, apenas o art. 53.º
do tratado CEE, que proíbe a introdução de novas restrições, é susceptível de atribuir aos
particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.

O princípio do primado implica que os estados não podem prevalecer-se de normas


nacionais para impedir a produção de efeitos das normas comunitárias.

IV. Poderia o princípio afirmado pelo TJ nessa jurisprudência valer se


em causa estivesse, não uma norma legal, mas uma norma
constitucional?
Esta questão equivale a perguntar qual o alcance do princípio do primado.

No caso de defender que este princípio se estende às normas constitucionais


podemos argumentar que a própria CRP, nos termos do art.º 8/4, estabelece que o direito
da UE originário e derivado vigora na nossa ordem jurídica nos termos por ele definidos
("nos termos definidos pelo direito da União"). Assim, tendo em conta que o DUE determina

16
o princípio do primado, o disposto no art.º 8/4 equivale a aceitar o primado. É de salientar
que existe, neste artigo, uma ressalva quanto ao "respeito pelos princípios fundamentais do
estado de direito democrático", contudo na prática esta é desnecessária porque o estado de
direito e democrático é um valor também defendido pela UE, pelo que nenhuma legislação
aprovada no âmbito europeu poria o mesmo em causa.

O caso paradigmático tem sido o TC alemão que, nunca pondo em causa o primado,
reserva um direito de aferição das normas de direito da união à luz da Constituição alemão
(ou Constituição de Bona). Essas dificuldades têm sido resolvidas através de um diálogo
jurisprudencial entre os tribunais constitucionais e o TTJ, sendo que inclusive, existem
válvulas de escape no TUE, mormente, no art.º4.º, n. 2, que estabelece princípio da
identidade nacional (ou da princípio da identidade constitucional) e no fundo diz, esse
artigo, que a União respeita a identidade constitucional nacional de que cada
Estado-membro. Ora, se a EU adotar ou um ato que viola essa identidade nacional esse ato
não goza preferência de aplicação (não se aplica o princípio do primado)

Analise o acórdão Handelsgesellschaft (proc. n.º 11/70), de 17 de


dezembro de 1970, tendo em especial atenção os seguintes tópicos:

a) Matéria de facto relevante e questões sobre as quais o Tribunal foi


chamado a emitir pronúncia (cfr. § 2, 5-8, 12-16 e 21);

b) Relação estabelecida entre o § 3 deste acórdão e a jurisprudência


Costa/ENEL;

c) Possibilidade de tutela dos direitos fundamentais pelo Direito da União.

Muitos ordenamentos jurídicos dos estados-membros têm uma cláusula de


integração europeia, onde se estabelece o modo como o direito nacional recebe o DUE.
Contudo, do ponto de vista do DUE o princípio do primado aplica-se mesmo que estejam em
causa normas constitucionais estando, aliás, já estabelecido no acórdão Costa/ENEL que este
princípio não é acompanhado de qualquer reserva e ao qual não pode ser oposto em juízo
um texto interno. Não obstante esta questão é esclarecida no acórdão Handelsgesellschaft.

Neste acórdão, o TJUE é chamado a apreciar o alcance do princípio do primado


quando um órgão jurisdicional alemão refere que dois regulamentos violam as leis
fundamentais alemãs, nomeadamente os princípios da liberdade de ação e de disposição, da
liberdade económica e da proporcionalidade. Assim, o TJUE esclarece esta questão: o

17
primado é absoluto e incondicional. O DUE prevalece sobre todo o direito nacional sem
distinções ou concessões

Esta perspetiva gerou controvérsias com as ordens jurídicas nacionais que reclamam
a sua primazia interna, ignorando que quando se fala de primado não aludimos a uma
pirâmide normativa mas ao facto de, paralelamente à constituição, existir uma ordem
jurídica que em caso de contradição prevalece sobre o ordenamento interno, por vontade
do próprio ordenamento interno. Estas dificuldades têm sido ultrapassadas através do
diálogo jurisprudencial entre o TJUE e os tribunais constitucionais dos estados-membros,
sem o prejuízo de continuarem a existir tentativas de colocar em causa o princípio do
primado.

Apesar da natureza absoluta e incondicional do princípio, os tratados tem


salvaguardas- ex.: art.º 4/2 do TUE em que se refere que o DUE está obrigado a respeitar a
entidade constitucional dos estados-membros, sob pena de não primar (não se aplica o
princípio).

Interessa dizer ainda que os tratados das comunidades não continham uma carta de
direitos fundamentais (nenhuma disposição dos tratados tutelava direitos fundamentais)
sendo que o TJUE, até este acórdão, se tinha recusado a apreciar as questões relacionadas
com os direitos fundamentais. Assim, se entendia que se a CEE podia produzir obrigações,
direitos e deveres, que até se podiam aplicar diretamente aos particulares, ela teria
necessariamente de ter um sistema de proteção de direitos fundamentais contra as
ingerências dessa Comunidade dos direitos dos cidadãos (os primeiros direitos - direitos
fundamentais clássicos - servem como garantias contra o Estado).A lógica era a seguinte: se
o sistema dos tratados não tutela estes direitos, então estes ficam sob a tutela dos
estados-membros.

Isto é uma situação que do ponto de vista da uniformidade e da efetividade do


direito da união é insustentável e levanta a questão de saber como é que o Tribunal de
Justiça pode tutelar os direitos fundamentais se não existe uma Carta de Direitos e se eles
não estão incluídos nos tratados.

O TJUE resolve este problema no parágrafo 4 do acórdão: o sistema de tratados não


tutela direitos fundamentais, mas apelando à tradição constitucional comum dos
estados-membros (direitos e princípios comuns a todos os estados-membros), estes passam
a ser princípios gerais de direito e enquanto tal (direitos fundamentais elevado à condição
de princípios gerais de direito), o TJUE tem competência para fiscalizar o seu respeito.

Ou seja, apesar de que não havia uma Carta de Direitos, se tinha um outro elemento:
todos os Estados-membros das Comunidades têm Constituições e têm cartas de direitos
fundamentais e então o TJ sentiu-se competente para apurar o mínimo denominador

18
comum e esse mínimo denominador comum vão designá-lo como a tradição constitucional
comum (os vários princípios constitucionais basilares comuns a todos os Estados-membros).

NOTA: quanto ao caso em apreço o TJUE entendeu que, em concreto, não há violação dos
direitos fundamentais

Ficha prática nº 2

I - Crise da Cadeira Vazia


Primeiramente, existem alguns elementos a ter em consideração. O Conselho (hoje
Conselho da União Europeia ou apenas Conselho) tem uma presidência rotativa (de seis em
seis meses um Estado-membro diferente assume a presidência do Conselho). Agora,
Conselho, Conselho Europeu e Conselho da Europa são coisas diferentes. Por uma parte, o
Conselho é uma instituição onde estão representados os Governos de cada Estado-membro.
Funciona como uma espécie de Câmara Alta (embora só aproximadamente). O Conselho
Europeu é uma outra instituição da União, um órgão de cúpula e de direção e que a
representação se faz ao nível dos chefes de Governo e chefes de Estado. Por sua vez, o
Conselho da Europa é uma outra Organização Internacional regional (anterior às
Comunidades).

A crise da cadeira vazia surge, em 1965, no seguimento da apresentação de 3


propostas ao conselho europeu: uma primeira para aumentar os poderes da assembleia
(que ainda não era eleita por sufrágio universal); outra que se prendia com a criação de um
sistema de recursos próprios para as comunidades; e uma terceira que se relacionava com a
revisão dos regulamentos financeiros aplicados à PAC.

Na altura do general De Gaulle, a França discordava destas propostas, especialmente


da 3ª que teria grande impacto para o país. Assim, no âmbito da troca de presidência do
conselho europeu (que à data era de 6 em 6 meses), a prática ditava que, quando o conselho
europeu se encontrava em reunião, estando prevista a troca de presidência para o dia
seguinte, e a reunião se prolongava para além da meia-noite, se parava o relógio para a
presidência continuar a mesma (simbolicamente permanecia-se no dia em que a reunião
começou). Neste contexto, a crise da "cadeira vazia" começa quando a França assume a
presidência a meio de uma reunião do conselho, termina-a e recusa-se a comparecer nas
reuniões do conselho durante toda a sua presidência.

Deste modo, durante os seis meses seguintes a França não convoca nenhum
conselho e só com a transição da presidência (para o Luxemburgo) a situação se altera. A
justificar esta atitude, o governo francês aponta o excessivo protagonismo da Comissão face
ao Conselho (estas queixas constam no Decálogo de Queixas da França)

19
Mais concretamente, são os acordos de Luxemburgo, de janeiro de 1966, que
permitiram a resolução da crise da "cadeira vazia". No seu conteúdo definiram que sempre
que estiver em causa uma questão de “interesse vital” para um estado-membro, os
membros do Conselho deverão tentar encontrar uma solução, em prazo razoável. Daqui
resulta o seguinte: sempre que um estado-membro invoque uma questão de interesse vital
esta deve ser discutida até à obtenção de consenso (diferente de unanimidade, situação em
que as abstenções não contam para a apuração da unanimidade). Na prática, o que se prevê
nestes acordos corresponde a um direito de veto, pois se um estado-membro não
concordasse com uma proposta da Comissão Europeia, bastaria invocar o interesse vital do
estado que passaria a ser exigido o consenso/unanimidade para que a decisão fosse tomada.
Para além disso, cada um dos estados-membros tinha total liberdade para definir o que,
para eles, era uma questão de interesse vital.

Assim, levou-se à paralisia do Conselho Europeu nas duas décadas seguintes (até
meados da década de 80). Acresce ainda que, o facto de terem alterado na prática as regras
de decisão do conselho- quando esta crise teve início, a regra de votação do conselho era de
maioria qualificada (em certos casos unanimidade)- sem serem alterados os tratados (estes
acordos vieram à margem dos tratados), traduz-se no enfraquecimento do DUE.

Destes acordos resultou um atenuar da dimensão integradora e supranacional do


DUE, ou seja, estes correspondem a uma cedência ao intergovernamentalismo, porque um
dos princípios basilares do supranacionalismo é o princípio maioritário, tendo presente um
interesse distinto dos interesses dos estado-membros a nível individual e que é um interesse
comum, resultante da agregação dos interesses dos estado-membros. No
intergovernamentalismo existe uma perspetiva oposta, isto é, uma cooperação sem prejuízo
dos interesses individuais dos estados.

A natureza jurídica destes acordos (acordo de cavalheiros, regras costumeiras etc.) é


também muito discutida.

Como já mencionado, a França de De Gaulle entendia que existia um excessivo


protagonismo da Comissão Europeia pelo que foi apresentada uma lista de queixas pelo
ministro dos negócios estrangeiros francês. Como resultado, também no âmbito dos acordos
de Luxemburgo foi alcançado um acordo quanto às relações com a comissão, com algumas
cedências por parte dos estados-membros à França.

NOTA: Conselho da União europeia/ europeu- instituição da EU

Conselho da Europa- organização regional (externa à UE)

20
II - Aprecie o caso à luz da jurisprudência do TJ fixada no Acórdão Cassis
de Dijon, de 20 de fevereiro de 1979 (proc. n.º 120/78).

O caso em apreço diz respeito à Irlanda, que legislou no sentido de introduzir nas
bebidas alcoólicas uma advertência de saúde (para o teor calórico, gramas de álcool etc.).
No seguimento da aprovação desta legislação, avisou também que o vinho do Porto não
poderá ser exportado na Irlanda se não estiver rotulado segundo as leis irlandesas.

Posto isto, para saber se a lei aprovada viola o DUE, deve-se questionar se esta
medida é proporcional, ou seja, se existe a necessidade, proporcionalidade em sentido
estrito e adequação da atuação.

Estabelecendo um paralelo com o tabaco, sobre o qual está definido a nível da


legislação da UE, que a sua comercialização tem de ser acompanhada por uma advertência
em texto ou texto e imagem, neste sentido e admitindo-se que o álcool é considerado uma
substância aditiva, pode-se aceitar que a medida é necessária, adequada e proporcional. À
luz do DUE uma medida deste género não viola os tratados podendo subsumir-se ao
previsto no art.º 36 do TFUE, isto é, é uma medida que impõe restrições à exportação de
produtos de estados-membros mas invoca razões de saúde pública para tal. Para além disso,
esta medida não é muito onerosa para os produtores (apenas precisam de alterar os rótulos
do produto).

Esta linha de raciocínio tem os seus primórdios na jurisprudência do caso Cassis de


Dijon.

Este diz respeito a uma empresa alemã que pretendia importar a bebida licorosa
Cassis de Dijon mas que não o conseguia fazer uma vez que o governo alemão aprovou uma
lei que proibia a comercialização no mercado alemão de bebidas brancas com um teor
alcoólico inferior a 25 graus. Assim, este importador via-se impossibilitado de introduzir esta
bebida no mercado alemão.

A empresa impugna a decisão das autoridades alemãs, sendo remetidas ao TJUE


questões prejudiciais no sentido de saber se o que o ordenamento jurídico alemão aprovou
constituía uma medida de restrição quantitativa de importações.

Por um lado, o governo alemão alega que esta restrição é legítima e usa como
fundamento a saúde pública, com a ideia de que as bebidas licorosas com menor teor
alcoólico (inferior a 25%) podiam criar mais facilmente efeitos de dependência. Quanto à
concorrência do mercado interno, diziam que a diminuição do teor alcoólico da bebida
licorosa assegura uma vantagem competitiva face às bebidas de teor elevado, por o álcool
(matéria prima) ser mais cara e ser mais taxada. Para além disso, argumenta que se a RFA se
visse obrigada a deixar circular no mercado todos os produtos alcoólicos desde que

21
obedecessem às leis do estado onde foram produzidos teriam de aceitar a legislação de um
estado que é menos exigente a nível da proteção do consumidor. Estes argumentos não
foram acolhidos pelo TJUE.

Em princípio, a ideia do governo alemão relativa à dependência das bebidas


alcoólicas está correta, mas os consumidores alemães têm à sua disposição uma variada
gama de produtos com baixo teor de álcool, pelo que parece que a medida imposta pelo
governo alemão não é a adequada; também não é adequada porque estas bebidas são
consumidas diluídas; embora a fixação de valores limites de teor alcoólico para a
comercialização de bebidas possa servir para a normalização dos valores, se o objetivo é
alcançar maior transparência tal consegue-se com outros mecanismos. Assim, esta medida
tem efeito equivalente a uma medida de restrição quantitativa a importações.

Este caso tem importância por ter estabelecido o princípio do reconhecimento


mútuo. Segundo este princípio, um estado-membro não pode impedir no seu território
nacional a comercialização de mercadoria que tenha sido produzida, comercializada e posta
em circulação com respeito pelas leis do estado-membro de origem, exceto quando se trata
de uma das exceções definidas no acórdão e as derrogações previstas no art.º 36 do TFUE.

Este princípio tem a sua relevância máxima na ausência de harmonização legislativa,


nomeadamente no espaço de segurança e justiça, pois neste caso os estados-membros são
livres de adotar a legislação que entenderem. Este acórdão é anterior ao mercado interno
(ao Ato único Europeu), e na fase em que é referido tínhamos o que se designava por
mercado comum. O mercado interno consiste atualmente num mercado sem fronteiras e
com 4 liberdades fundamentais (art.º 26 a 66º do TFUE)- livre circulação de pessoas,
capitais, mercadorias e serviços. Nesta fase, existiam ainda fronteiras e a possibilidade das
mercadorias puderem ser controladas nos pontos fronteiriços, designadamente por razões
sanitárias. Existiam também um conjunto de barreiras entre os estados membros em que
não estava assegurado o reconhecimento mútuo dos diplomas e graus académicos.

Quando se altera o paradigma do mercado comum para o mercado interno a ideia é


completar e fixar de forma significativa a integração e criar um só mercado sem barreiras
físicas e jurídicas. Antes do Ato Único Europeu, coube ao TJUE, através de jurisprudência
conhecida com new approach, concretizar esse mercado comum e estabelecer um conjunto
de princípios e regras relativos às 4 liberdades fundamentais.

22
Analisando o documento acima, onde está representado o número de ações por
incumprimento relacionadas ao movimento de mercadorias, pode-se ver um antes e depois
do caso Cassis de Dijon. A partir do acórdão há um aumento significativo no número destes
processos, associados ao desrespeito das regras referentes à livre circulação de mercadorias.
Para a realização do mercado interno, teve também grande importância o relatório Cecchini
de 1988, que apontava os custos da não europa, ou seja, avaliava as necessidades para que
se cumprisse por completo o mercado comum e indicava os custos acrescidos para a CEE por
não ter terminado o mercado interno. É este documento que serve de base para a
harmonização legislativa que ocorre desde 1992.

Assim, por um lado o reconhecimento mútuo é um mecanismo especialmente


relevante quando não há legislação harmonizada, por outro fez perceber que não seria
necessário harmonizar todos os aspetos do mercado comum (apesar de aqui se poder
invocar o argumento usado pela RFA neste acórdão em que os estados-membros acabam
por se reger pela legislação menos exigente).

III- Comente, referindo as normas dos Tratados que justificam a sua


qualificação como “carta constitucional de uma comunidade de direito”.
O TJUE para além da função jurisdicional tem a função consultiva. É nesta última
função que este caso se insere.

Neste parecer, o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a compatibilidade do


acordo que criava o espaço económico europeu (EEE) com o tratado da CEE. O acordo do
EEE é celebrado entre a CEE e os países da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e

23
alargava as regras do mercado comum aos estados da EFTA o que geraria uma enorme
dificuldade de coordenação entre o ordenamento jurídico comunitário e os respetivos
ordenamentos jurídicos dos estados da EFTA. Assim, o TJUE deu um parecer negativo
relativamente ao acordo levando a que o mesmo fosse reformulado e só então aceite.

O porquê do parecer negativo do TJUE divide-se em dois aspetos fundamentais:

● Por um lado temos a argumentação que o TJUE estende sobre as diferenças entre os
objetivos que presidiam ao projeto do acordo do EEE e os objetivos do tratado da
CEE. Dizia que no caso do CEE a livre circulação e a concorrência das relações
económicas e sociais são um mero instrumento para atingir um outro objetivo: a
integração económica e o estabelecimento de uma união económica e monetária, ao
contrário do acordo do EEE em que as regras de livre circulação e concorrência eram
fins em si mesmos. Para além disso, usa-se a ideia de que este tratado do EEE era um
acordo internacional clássico que não implicava a transferência de quaisquer parcelas
de soberania para um ente superior ao passo que o tratado CEE sim, sendo um
acordo sui generis. Diz também que os tratados correspondem à carta constitucional
de base das comunidades/da união, estabelecendo um paralelo com uma ordem
jurídica nacional em que as constituições ocupam o topo da pirâmide normativa
nacional, tal como os tratados a nível internacional.

● Por outro lado, invoca-se uma razão que se prende com a autonomia jurisdicional da
CEE. No acordo do EEE, estava previsto um tribunal do espaço económico europeu,
cuja função era resolver os litígios que surgiam no seguimento deste tratado. O
tratado do EEE tinha como partes contratantes as comunidades e os países da EFTA,
mas para efeitos da resolução dos litígios era necessário interpretar a expressão
"parte contratantes" porque em alguns casos a legitimidade para intervir seria da
CEE e noutras dos Estados-Membros. Era necessário saber se quem teria que litigar
era a comunidade como um todo ou os estados-membros. Assim, no caso em que as
funções fossem partilhadas com a comunidade era a comunidade a litigar, se a
função em causa coubesse aos estados-membros eram eles que tinham a
legitimidade para intervir. Ora, colocava-se a questão de saber quem tinha
competência para definir as competências e o TJUE conclui que deveria ser ele, mas
este acordo atribuía a interpretação do conceito ao tribunal do espaço económico
europeu, pelo que o TJUE considerou que tal punha em causa a autonomia da
jurisdição da CEE.

Voltando à questão do enunciado, quais são as normas que se podem encontrar nos
tratados com traços tipicamente constitucionais?

● TUE

24
○ Artº 2 que contém a base axiológica da EU;
○ Artº 3 que contém os objetivos da EU onde se pode fazer um paralelo com a
tarefas fundamentais dos estados previstas nas constituições;
○ Artº 19 sobre os tribunais onde também se contempla um princípio típico do
estado de direito o da “tutela jurisdicional efetiva” ou direito de ação;
○ Artº 48 que trata de cláusulas relativas à revisão;
○ Artº 49; no domínio das instituições, sintetizadas

● TFUE
○ Artº 20 e seguintes sobre a cidadania europeia;
○ Artº 223 e seguintes

■ pode-se dizer que o quadro institucional da EU se assemelha ao


quadro constitucional de um estado: quem tem o poder legislativo
num estado é o parlamento (o parlamento e o conselho no caso da
EU); o poder executivo pertence ao governo a nível nacional e na EU
pertence à comissão; o poder jurisdicional estadual pertence aos
tribunais enquanto na EU pertence ao TJUE e aos tribunais nacionais
também. A nível nacional, nas constituições, também aparecem um
conjunto de princípios que regem a atividade do estado, no TFUE são
também previstos no artº 9 princípios e valores,
○ Art.º 263 e seguintes - quanto às fontes de direito (tal como as constituições
dos estados que preveem quais as fontes de direito a nível
infraconstitucional)
○ Artº 288 e seguintes, preveem regras procedimentais decisórias para adotar
um ato legislativo
○ existem outros exemplos.

Ficha prática nº 3

I- Nold Colen
A empresa pretende que o TJUE considere inválida por violação da CEDH. A
convenção europeia dos direitos humanos, a CEDH, é um instrumento regional de proteção
dos direitos fundamentais no âmbito do Conselho da Europa, uma instituição de cooperação
europeia criada no pós segunda guerra mundial. Já a carta dos direitos fundamentais da UE
é elaborada paralelamente ao tratado de Nice, altura em que ainda não tinha caráter
jurídico vinculativo (que só veio adquirir mais tarde no tratado da UE).

25
Neste caso, a carta dos direitos fundamentais ainda não existia e o tratado da CEE
não previa direitos fundamentais em forma de carta. O TJUE já analisava o respeito pelos
direitos fundamentais enquanto elevados a princípios gerais de direito internacional e
retirados da tradição constitucional comum.

Relativamente à questão que se coloca, é necessário analisar o art.º 6º do TUE.


Note-se que a adesão prevista no art.º6/2 não se chegou a verificar. A UE não é parte da
convenção mas, não obstante, esta carta pode ser usada como parâmetro de validade da
legislação e decisões da UE na medida em que todos os Estados-Membros aderiram a esta
convenção e portanto há acordo na validade destes direitos.

No acórdão Elliniki Radiophonia Tileorassi [ERT] (caso 260-89), veio-se acrescentar


que, dos vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos este tem um
significado particular não podendo ser aprovadas medidas pela EU que contradigam os
direitos protegidos--> este parecer fica consagrado no art.º 6/3 do TUE.

Assim, o TJUE pode anular a decisão estritamente com base na violação da CEDH.

Atualmente, à luz do art.º 6 a tutela jurisdicional do TJUE faz-se por uma


multiplicidade de instrumentos como a carta dos direitos fundamentais da União Europeia,
as tradições constitucionais comuns de onde se extraem princípios gerais de direitos e
também os princípios de direitos fundamentais tal como se encontram na convenção
europeia sobre os direitos do Homem (art6º/3)

II- Parecer do TJUE 2/13, de 18 de dezembro de 2014


Analisando os parágrafos 156 a 177, pronuncie-se quanto:

a) Condições de adesão da UE à CEDH;


Este parecer veio no contexto de uma antiga ambição da União Europeia para tentar
aderir à CEDH. Houve uma primeira tentativa nos anos 90 que não foi bem sucedida uma vez
que o TJUE, no parecer 2/94 negou a possibilidade de adesão da União Europeia à CEDH,
usando como argumento a falta de competência da UE devido à ausência de bases jurídicas,
ou seja, ao facto de não existirem bases nos tratados que a sustentasse. Assim, esperar-se-ia
que estes obstáculos fossem afastados com o tratado de Lisboa, que prevê a obrigação da
UE em aderir à convenção, nos termos do art.º 6/2 do TUE. Contudo, após ser feito um
projeto de acordo para a adesão da UE à CEDH, é pedido, em 2013, um novo parecer ao
TJUE, que dá também um parecer negativo.

São apresentadas diversas condições de adesão:

● parágrafo 160

26
○ A adesão não pode alterar a União como está estabelecida no tratado, ou
seja, não deve haver uma afetação das atribuições/competências da UE;

● parágrafo 161:

○ Tem de ser observada a preservação das características próprias da UE e do


seu direito. Esta condição decorre do Protocolo nº 8 anexo ao TFUE;

○ É necessário que a situação dos Estados-membros em relação à CEDH não


seja alterada com a adesão da UE à convenção;

○ A adesão não pode afetar o artigo 344º do TFUE- os estados-membros


obrigam-se a resolver todos os conflitos que existam e que se reportem à
interpretação e aplicação dos tratados nos termos previstos nos próprios, isto
é, tratados dentro do sistema jurisdicional da própria união (através do TJUE).

Outro argumento para o parecer negativo foi a PESC, um domínio da política


europeia onde ainda predomina o intergovernamentalismo. Uma das marcas desta
caraterística é que os atos adotados pela PESC não podem ser fiscalizados pelo TJUE, mas tal
não se sucedia no acordo de adesão sendo que no limite o TEDH podia fiscalizar atos
adotados no âmbito da PESC quanto à violação de direitos fundamentais.

Assim, o que levou o TJUE a dar um parecer negativo foi o facto de considerar que
não estava garantida a não violação do artigo 344º da TFUE, ou seja, não estava garantido
que um litígio que envolvesse estados-membros da EU não fosse submetido a mais nenhum
órgão jurisdicional que o TJUE, uma vez que poderia cair na jurisdição do TEDH.

Até aos dias de hoje, o desejo da UE de aderir à CEDH não se concretizou.

Contudo, a UE não ter aderido à CEDH não significa que os direitos, tal como
previstos na convenção, não sejam protegidos: resulta do art.º 6º/3 do TUE que os direitos
fundamentais consagrados na CEDH integram o direito da União enquanto princípios gerais
de direito. Também se retira do artigo 52º/3 da carta dos direitos fundamentais da EU
(CDFUE) que, na medida em que os direitos previstos na mesma tenham correspondência
com a CEDH devem ser considerados como tendo, pelo menos, o mesmo alcance. Por
último, nos termos do art.º 53 da CDFUE, prevê-se que nenhuma disposição da carta possa
ser interpretada no sentido de restringir os direitos humanos tal como compreendidos pela
CEDH.

Concluindo, os direitos previstos encontram-se tutelados no âmbito do sistema


europeu, não havendo contudo a possibilidade de recorrer ao tribunal europeu dos direitos
humanos.

27
b) Características específicas da ordem jurídica da União Europeia.
Há diversas características específicas da ordem jurídica da União Europeia. São
algumas delas as seguintes:

● Parágrafo 165:
○ Um quadro institucional e constitucional- artigo nº 13 e seguintes do TUE;
○ A atribuição de competência, tal como está previsto no artigo nº 4/1 do TUE;
○ Um quadro jurisdicional- artigo nº 19;
● parágrafo 166:
○ Princípio do primado, do efeito direito e o caráter autónomo da ordem
jurídica da UE;
● parágrafo 168:
○ A construção europeia tem por base uma inspiração identitária comum
● parágrafo 170:
○ Reitera-se a principal característica, isto é, a autonomia do DUE em relação
quer aos estados-membros quer ao direito internacional.
○ É por força dessa autonomia que o TJUE dá o seu parecer negativo à adesão à
EU.

III- Natureza da União Europeia


Qual é a natureza da União Europeia?

A União Europeia não é um Estado, havendo várias teorias sobre a sua verdadeira
natureza. Não obstante, o entendimento mais aceite é que a UE é uma organização
internacional sui generis ou um “OPNI”, objeto político não identificado, resultante da
transferência de soberania dos Estados.

Apesar de partilharem diversas características, a União Europeia não é um estado. O


que falta para poder ser considerado estado? De modo a poder ser considerado um Estado,
nos domínios de competência exclusiva falta-lhe:

● A União Europeia não dispõe de soberania originária- todos os poderes foram lhe
atribuídos- não houve uma vontade por parte dos Estados-membros de constituir
originariamente uma entidade estadual;

28
● A União só pode atuar sobre os domínios dos quais tenha recebido um mandato:
○ princípio da subsidiariedade- as competências ou as decisões devem ser
tomadas o mais próximo possível dos afetados

● A União Europeia não pode definir os seus próprios fins e as suas próprias
competências, uma vez que não dispõe de uma soberania absoluta
○ Ou seja, rege-se pelo princípio da atribuição (princípio da especialidade) ao
contrário dos estados que tem a "competência das competências", os seus
objetivos e atribuições são impostos de forma heterónoma

UE não goza dos mais típicos poderes do estado:

● força de segurança, podendo considerar-se a Frontex como uma exceção, apesar de


mesmo assim esta não ter a mesma amplitude que as forças de segurança dos
estados;

● direito de fazer a guerra e paz (iure belli ac pacis), não dispondo sequer um exército
próprio;

● não tem amplos poderes fiscais;

● não tem o poder de definir os critérios de atribuição da sua cidadania


○ A EU tem cidadania própria mas os cidadãos europeus são os cidadãos dos
estados-membros pelo que, a partir do momento em que uma pessoa deixa
de ser cidadã de um estado-membro também deixa de ser cidadã europeia;

Para além disso, a UE também não tem um chefe de estado (o mais semelhante é o
presidente o conselho europeu, mas esta posição não é de todo equivalente à de chefe de
estado)

Teoria Estadual Federal

A União Europeia tem um conjunto de características que a aproximam de um Estado


Federal, tais como:

● A existência de constituições próprias e de poder legislativo, administrativo e judicial;

○ O seu sistema é complexo e hierarquizado, com poderes interdependentes


entre si;

29
● A existência dos próprios princípios fundamentais da união;
● Tem um sistema de fontes de direito;
● Observam-se os mesmos elementos essenciais do Estado- tem cidadãos (povo) e
território tal como uma ordem jurídica autônoma face à ordem jurídica internacional
(dotada de uma hierarquia normativa e de um mecanismo de fiscalização não total,
nos domínios da intergovernabilidade, como a PESC);
● A ausência de fronteiras internas e liberdade de circulação;
● Cidadania própria com atribuição de poderes políticos;
● Eficácia direta dos direitos da união;
● Uma carta de direitos, isto é, uma carta constitucional;
● Existência da moeda única (sistema monetário) tal como de um banco central;
● Poder de concluir tratados internacionais, que pode ser exclusivo- artigo 3/2 TFUE
● Competências próprias observando por vezes uma coabitação política (legislação e
tribunais), como acontece nos estados federais.
○ Assim, quando o estado federal (ou a UE) está a exercer estas competências
os estados federados (ou os estados-membros) não o podem exercer e
vice-versa;
● Observa-se um sistema bicameral no que toca ao poder legislativo- parlamento para
representar os cidadãos e câmara baixa- tanto nos países federais como na União
Europeia.
● Tem também um governo a dois níveis: o do estado membro e o da EU, com
sobreposição, por exemplo, de instituições

Apesar das inúmeras características partilhadas a União Europeia não pode ser considerada
um estado federal:
● Não possui competências tão desenvolvidas;

● Não existe uma delimitação de competências tão distinta, sendo que muitas delas
são partilhadas entre os Estados-membro e a UE;
● Não goza de típicos poderes dos estados federais, como atribuições no domínio da
defesa
● Possui menos recursos financeiros próprios (depende da medida da contribuição dos
Estados Membros);
○ Esta característica tem vindo a alterar-se progressivamente
● A revisão dos tratados em regra tem de ser feita por unanimidade (enquanto nos
Estados Federais pode ser feita por maioria super-qualificada)
● Um estado federado não tem direito de cessação (de se retirar) enquanto um
estado-membro tem (artigo 50º do TFUE)

30
Teoria da organização internacional supranacional/ de integração:

Adotada por Gorjão-Henriques. Entende-se que a UE é uma organização


internacional de integração, por contraposição às conferências intergovernamentais.

Esta posição resulta do facto da UE ter um caráter de estabilidade ou permanência,


autonomia, autonomia em relação aos seus membros, órgãos próprios, regras
procedimentais próprias para se poder adotar um determinado ato legislativo (art.93 e ss do
TFUE), capacidade limitada pelo princípio da atribuição e capacidade internacional (na
medida que resulta dos tratados).

De entre as várias classificações possíveis para as OI o Prof. Gorjão-Henriques diz que


a União Europeia corresponde a uma Organização de integração ou supranacional por
oposição às Organizações de cooperação ou intergovernamentais.

Geralmente nestas últimas - as Organizações intergovernamentais - estabelecem-se,


geralmente, relações horizontais de cooperação entre soberanias, a regra é da unanimidade,
não são adotados normativos obrigatórios, mas meras recomendações e não existe efeito
direto, por conseguinte, os atos são adotados ou dirigidos aos Estados contratantes e não
podem ser invocados diretamente pelos seus cidadãos.

Por oposição, as Organizações internacionais de integração (ou supranacionais) têm


subjacente a ideia de limitação, delegação, transferência, partilha ou integração de poderes
soberanos.

Nesta prevalece a regra da maioria sobre a regra da unanimidade, na medida em


que, a própria Organização tem uma vontade própria que pode ser diferente da das Partes
contratantes. Existe a adoção de atos vinculativos que têm efeito direito e em regra
primado.

Críticas:
● As características que se apelam para classificar a UE como uma organização
internacional supranacional ou de integração, só se aplicam à UE, o que demonstra
precisamente a sua natureza original.

○ É a organização internacional com o leque de objetivos mais amplo que se


conhece
○ A existência de um quadro institucional mais independente dos estados
membros de que se tem registo- ex.: uma das suas instituições é eleita por
sufrágio indireto;
○ Tem um sistema de fontes original e mais completo- princípio direto, princípio
do primado;
○ É uma organização com um sistema de fiscalização jurisdicional mais
completo e obrigatório.

31
Conclui-se que a UE ao ser uma organização internacional seria uma sem par.

Teoria confederal:

Uma confederação é uma associação de estados constituída por um tratado


internacional, criando assim instituições próprias e comuns para o exercício de dadas
atribuições resultantes da transferência de poderes de soberania (ex.: confederação
helvética). Normalmente, estas atribuições implicam a existência de um exército comum,
poder de condução da guerra e poder de resolução de conflitos entre os estados federados.

Enfim, a União Europeia partilha algumas destas características, desde logo, tem
como membro os Estados, foi criada por um tratado internacional, tem um quadro
institucional próprio e os Estados-membros têm o direito de retirada .

Apesar de partilhar alguns traços, observamos as seguintes diferenças: a UE tem um


quadro institucional muito mais desenvolvido e o domínio dos próprios Estados é muito
mais reduzido em certas matérias como as económicas, enquanto noutras, como a militar,
se verifica o contrário. Por fim, e que nem sempre acontece nas confederações na União
existe um controlo jurisdicional de DUE.

Teoria da entidade sui generis ou do objeto político não identificado (OPNI):

Esta teoria é defendida por parte considerável da doutrina. Esta tese é uma solução
pragmática perante o facto de que a União Europeia, apesar de partilhar traços com os
Estados Federais, Estados Confederados e organizações internacionais de integração, não é
um deles, mas sim uma nova forma de integração do exercício do poder político à escala
internacional, havendo assim uma impossibilidade de categorização da União Europeia. Ou
seja, em virtude da sua especificidade e caráter inovador é uma organização internacional
sem paralelo.

Teoria da Professora Maria Guerra Martins:

A Professora Maria Guerra Martins defende uma tese semelhante: a União Europeia
é uma união de estados e de cidadãos, não só pelos e para os estados mas pelos e para os
cidadãos.

A União Europeia desafia a noção de soberania, sendo esta repartida entre dois
níveis distintos.

32
Em certo sentido, os Estados Membros deixaram de dispor das competências
embora que com rigor que possa dizer que a competência de poderes soberanos para outro
nível seja o exercício da soberania.

Esta caracterização como uma união de estados e cidadãos visa promover os laços de
coesão entre os povos da europa e os membros da união.

Críticas a ambas as teorias:

● limitam-se a enumerar as características sem as tentar enquadrar, isto é, há uma


ausência de natureza pelo que a EU simplesmente não é classificada

Ficha prática nº 4

I- Legislação da República da Polónia

1- Serão as alterações à legislação polaca susceptíveis de violar os valores


da União, conforme enunciados no art.º 2.º TUE?

Ao olhar para os valores da União Europeia não se encontra nenhuma referência à


independência estadual, mas sim ao Estado de Direito.

Qualquer comunidade política se deve fundar em valores- baseando assim uma


identidade em comum- e a União Europeia não é exceção, não é uma identidade
axiologicamente neutra, projetando os seus valores interna e externamente. Os valores são
parte da identidade europeia, presentes no processo de integração.

A previsão de uma cláusula de valores aproxima a União Europeia ao


constitucionalismo clássico, pois também a maior parte das constituições prevê um conjunto
de valores de matriz axiológica. Deste modo, se a UE se encontra constitucionalmente
limitada ela tem igualmente um quadro de valores que orienta a aplicação do direito.

A base axiológica da União Europeia é explícita, estando prevista tanto no preâmbulo


como no artigo nº2 do TUE- incluindo a cultura hereditária greco-romana cristã- com valores
como a liberdade da pessoa humana, o respeito pelos Direitos Fundamentais e a
democratização. No artigo nº3 do TUE estão explicitados os objetivos que concretizam os
valores fundamentais:
● O artigo 1 representa a União;
● O artigo 2 explica a razão de ser da UE

33
Na articulação do artigo nº 2 com o artigo nº 1 do TUE, o artigo nº 1 contém a matriz
definidora da União na sua dupla legitimação e nos seus originais contornos jurídicos, já o 2º
apela aos valores da União Europeia cuja convivência faz com que seja pertinente partilhar o
destino comum.

Só a partir do tratado de Lisboa é que passamos a levantar esta designação de


valores, até aí estes chamavam-se exclusivamente princípios.

O que é o Estado de Direito? Para que serve o Estado de Direito?

A ideia base do Estado de Direito é a ideia que a moderação ou limitação dos


poderes públicos, até aqueles que têm o poder de fazer normas jurídicas bem como os
titulares do poder constituinte estão submetidos ao direito.

Outra ideia importante é a de que o estado de direito luta sempre pela consagração dos
Direitos Fundamentais

Não há um conceito universalmente aceite de estado de direito uma vez que as


tradições jurídicas de cada país são diferentes, tal como as definições de cada país para a
noção de Estado de Direito são diferentes.

Atualmente, convivem duas conceções diversas de estado de direito:

● Uma conceção formal que corresponde ao estado em que todos os poderes estão
sujeitos ao direito que o dita segundo um procedimento pré-estabelecido
independentemente da natureza dessas normas (desliga-se do conteúdo/da natureza
das normas). Esta é uma conceção mais positivista e típica do direito anglo-saxónico
e é esta conceção que permite dizer que o regime Nazi não violava o princípio do
estado de direito;

● Uma conceção material de Estado de direito, típica do direito germânico, em que se


considera que este é indissociável do respeito pelos direitos fundamentais e pela
democracia. Assim, este é um "princípio chapéu", a partir do qual se deduzem outros
subprincípios.

Deste modo, a UE afirma, nos termos do art.º 2/a) do regime geral de


condicionalidade para a proteção do orçamento da União que :

"«Estado de direito», o valor da União consagrado no artigo 2.o do TUE. Inclui os


princípios da legalidade, que pressupõem um processo legislativo transparente, responsável,
democrático e pluralista, bem como os princípios da segurança jurídica, da proibição da
arbitrariedade dos poderes executivos, da tutela jurisdicional efetiva, incluindo o acesso à
justiça, por tribunais independentes e imparciais, inclusive no que diz respeito aos direitos
fundamentais, da separação de poderes, e ainda da não discriminação e da igualdade

34
perante a lei. O Estado de direito deve ser entendido à luz dos outros valores e princípios da
União consagrados no artigo 2.o do TUE. ".

O estado de direito serve pois a função de moderar o poder independentemente de


quem o exerça. Se existem poderes públicos que são exercidos ao nível da UE, então este
uso tem de estar controlado/limitado ao abrigo do princípio do estado de direito.

No relatório de 2011, da comissão de Veneza do Conselho da europa veio a indicar o


que são, a seu ver, os subprincípios do estado de direito, no parágrafo 41:

"(1) Legality, including a transparent, accountable and democratic process for


enacting law (2) Legal certainty (3) Prohibition of arbitrariness (4) Access to justice before
independent and impartial courts, including judicial review of administrative acts (5) Respect
for human rights (6) Non-discrimination and equality before the law", isto é, grosso modo: a
legalidade, transparência, segurança jurídica, proibição da arbitrariedade, acesso a um
processo judicial independente e imparcial, o respeito pelos direitos humanos e a não
discriminação e igualdade perante a lei.

No acórdão em causa, o TJUE conclui que a Polónia tinha violado o DUE ao violar o
princípio da igualdade e o princípio do estado de direito, nomeadamente o princípio da
independência dos tribunais. Ademais, verifica-se que também os princípios da tutela
jurisdicional efetiva (artigo 19º do TUE) e do processo equitativo- previsto na carta dos
direitos fundamentais- foram violados.

O princípio da tutela jurisdicional efetiva, traduz-se na expressão "onde há direito há


remédio" (ubi ius ibi remedium), isto é, a cada direito deve corresponder um meio
jurisdicional que permita efetivá-lo. No caso da UE este princípio é assegurado ao nível do
TJUE bem como ao nível dos tribunais nacionais dos estados-membros, que são os tribunais
de 1º linha de aplicação e interpretação do DUE. É especialmente por isso que esta
legislação coloca em causa o princípio da jurisdição efetiva da UE. Tendo em conta que a
matéria regulada é de competência exclusiva dos estados-membros, o TJUE apenas pôde
pronunciar-se sobre esta legislação, sem ir além das suas competências, precisamente
porque os tribunais nacionais são os tribunais comuns da EU e por isso integram o sistema
jurisdicional da UE e têm de garantir a tutela jurisdicional. Deste modo, os tribunais
nacionais têm de obedecer a determinadas obrigações decorrentes, por exemplo, do
princípio da independência e da imparcialidade, obrigações essas que permitem um
controlo por parte do TJUE, nos termos do art.47 da CDFUE.

No caso concreto, viola-se, ainda, o direito a um processo equitativo. No âmbito


deste direito, é no acórdão da associação sindical dos juízes portugueses (C-64/16) que se
admitiu pela primeira vez que o TJUE pode controlar atos nacionais do poder executivo que
afetem a estrutura e funcionamento do poder jurisdicional. Neste caso, as medidas adotadas
durante o período da troika acarretaram um corte salarial para toda a função pública, sendo

35
que esta associação recorre ao TJUE por considerar esta alteração legislativa suscetível de
violar o princípio da independência dos tribunais. O TJUE não deu provimento a estas
alegações mas, como dito anteriormente, garantiu pela primeira vez que podia controlar
atos nacionais que afetassem a estrutura e funcionamento a nível jurisdicional.

2. Identifique os mecanismos políticos e jurisdicionais de tutela dos


valores da UE que conhece.

Tal é o mesmo que perguntar "se um estado-membro viola o DUE o que é que a UE
pode fazer?".

Atualmente, os estados-membros com maiores problemas neste âmbito são a


Polónia e a Hungria.

Existe uma variedade de mecanismos de tutela de valores da EU, que formam uma
estrutura complexa e multinível. Contudo parece-se colocar em causa a sua eficácia, isto é, o
design desses instrumentos contribuem para uma sensação de inoperância. São três as
circunstâncias que contribuem para esta sensação: pelo facto dos mecanismos não serem
imperativos (soft law), por dependerem de unanimidade ou maioria qualificadas e por
dependerem de uma ação política.

Para além disso, os mecanismos vinculam os estados-membros de forma diversa,


alguns com assento no direito originário, outros no direito derivado e ainda alguns que
resultam de instrumentos não vinculativos (sem força jurídica obrigatória.). Assim, a criação
de cada vez mais instrumentos tem acompanhado as situações nos estados-membros que
evidenciam o risco ou incumprimento dos valores da UE.

O primeiro caso conhecido foi o caso austríaco "Haider", em que um partido de um


candidato de extrema direita teve uma votação expressiva nas eleições e se formou a
hipótese de uma coligação de governo com este partido. Esta situação gerou uma tensão
diplomática e daqui resultou o acrescento de um "braço" ao artigo 7º do TFUE, que iremos
abordar adiante. Verificaram-se também situações delicadas relativamente à Polónia e à
Hungria.

Deste modo, hoje a doutrina fala de uma crise de valores da EU, isto é, argumenta-se
que há um défice democrático nas decisões tomadas no seio da EU, ou seja, que estas não
resultam de uma verdadeira democracia e que isto transitou para as decisões tomadas
também a nível nacional.

36
Não obstante, os mecanismos de controlo dos valores dividem-se em 2 grandes
grupos:

● ex ante (Mecanismos anteriores à adesão dos estados-membros à EU)

○ Neste âmbito, os valores são tidos como um critério de adesão

■ resultante do art.º 49 da TUE, mas que já vem dos critérios de


Copenhaga adotados em 1993 que consagram as condições que um
estado tinha de reunir para aderir à UE

● ex post (Mecanismo posteriores à adesão à EU)

○ Numa perspetiva ex post, o respeito pelos valores previstos no art.º 2 não é


uma condição de permanência na EU mas antes uma condição para o gozo
dos direitos decorrentes dos tratados, uma vez que nenhum dos mecanismos
permite a expulsão de um estado-membro

Os mecanismos (ex post) são:

● O quadro de estado de direito para a União Europeia

○ Mecanismo político criado pela comissão europeia que visa corresponder


numa perspetiva preventiva a ameaças ao estado de direito e não substitui,
mas antes antecede todos os outros mecanismos existentes.

○ É ativado quando as autoridades nacionais de um estado-membro tomam


decisões que sejam suscetíveis de afetar de forma sistemática a integridade,
estabilidade ou o bom funcionamento das instituições ou mecanismos de
salvaguarda do estado de direito.

○ Numa primeira etapa há uma avaliação pela comissão europeia, que depois
emite uma recomendação e numa terceira fase há um acompanhamento por
parte da comissão da implementação dessa recomendação. Se o estado
membro, findo o estado fixado na recomendação, não a implementar, a
comissão europeia tem a possibilidade de ativar os mecanismos de tutela dos
valores nomeadamente o artigo 7º do TUE.

● Art.º 7º do TUE

○ Note-se que o âmbito de aplicação deste artigo não se restringe aos domínios
abrangidos pelo DUE, pelo que ao abrigo deste artigo, a EU fica autorizada a

37
intervir com o objetivo de proteger os valores em que se funda, mesmo nos
domínios em que os estados-membro atuem de forma autónoma, isto é nos
domínios em que tenham competências exclusivas ou partilhadas, mas que
não estejam a ser exercidas pela UE.

○ Durante muito tempo, este mecanismo foi encarado como a designada


"opção nuclear" por ter um caráter iminentemente político, pelo que se foi
resistindo à ativação do mesmo. Contudo este artigo foi ativado em 2017
relativamente à Polónia, por iniciativa da comissão europeia e em 2018 face à
Hungria, por iniciativa do parlamento europeu e através do "relatório
Tavares".

○ Desde do tratado de Nice que este artigo tem 2 "braços": um primeiro de


alerta (previsto no nº 1) e um sancionatório (nº 2 e 3).

■ A diferença é que, para o primeiro ser usado é necessário que haja um


risco de violação do artigo 2º do TUE, ao passo que no segundo essa
violação tem já de ser efetiva, grave e persistente.

■ São também diferentes as maiorias exigidas num e noutro. No braço


preventivo basta uma maioria qualificada de 4/5 dos membros do
conselho europeu para este ser ativado, ao passo que no outro é
necessária a unanimidade.

■ No "braço" sancionatório, o conselho europeu, após declarar a


violação grave e persistente de artigo 2º decide por maioria
qualificada, as sanções que aplicará. Note-se que o estado-membro
em causa não participa nas votações, nos termos do artigo 354º TFUE
ex vi (por força) do artigo e 7º/5 do TUE.

■ Sanções possíveis: a mais grave é a suspensão do direito de voto do


estado-membro no conselho (prevista no art.º 7/3 do TUE), mas
existem outras relacionadas com a liberdade de circulação e recepção
de fundos, sendo que estas últimas têm de ter em conta e proteger os
particulares do estado-membro.

■ Um bom exemplo do caráter iminentemente político do art.º 7 é o


facto do TJUE, nos termos do art.º 269 do TFUE apenas poder exercer
um controlo procedimental/processual não podendo pronunciar-se
nunca relativamente ao mérito da questão, isto é, pronunciar-se por
exemplo, se o estado-membro está em risco ou violou de forma grave
e persistente o art.º 2º do TUE.

38
■ Apesar do art.º 7 ter sido ativado relativamente a Hungria e Polónia,
estes processo nunca avançaram nem avançarão, pelo facto de uma
decisão sancionatória ser impossível, por requerer unanimidade,
sendo que estes estados-membros formaram um "pacto" de não votar
a favor destas sanções e por questões de diplomacia.

● A comissão pode recorrer a uma ação por incumprimento junto do TJUE, que pode
aplicar sanções pecuniárias compulsórias até ao estado-membro adotar o
comportamento devido

○ Ao passo que o art.º 7 pode abranger domínios da competência dos


estados-membros, o artigo 258º do TFUE só pode ter lugar perante uma
infração de um estado-membro do DUE, tendo assim um âmbito mais
restrito.

○ Também ao nível das sanções, a ação por incumprimento apenas dá lugar a


sanções pecuniárias compulsórias até que o estado-membro cumpra o DUE.

○ Neste âmbito, existem várias ações por incumprimento relativas a vários


estados-membros.

● Regulamento geral da condicionalidade, que permite à UE suspender a transferência


de fundos europeus para os Estados-membros.

○ Este mecanismo existe para a proteção do orçamento da UE. A execução por


parte de um estado-membro do orçamento da EU tem como condição prévia
o respeito por esse estado-membro pelo estado de direito, de modo a
garantir o princípio da boa gestão financeira previsto no 317º do TFUE. Um
estado-membro só pode assegurar uma boa gestão financeira se as
autoridades públicas desse estado agirem em conformidade com a lei, isto é,
se os casos de fraude, branqueamento de capitais, conflito de interesse, etc.
forem efetivamente objeto de inspeção e sanção pelas autoridades estaduais.

○ Podem ser adotadas uma série de medidas para proteção do orçamento da


UE, nomeadamente as do artigo 5º do regulamento, que prevê, por exemplo,
a suspensão de desembolsos ou reembolsos. No nº 2 deste artigo ficam
salvaguardados os beneficiários finais (particulares) dos fundos comunitários.
Para além disso, o procedimento inerente a este regulamento está previsto
no artigo 6º do mesmo.

○ Este mecanismo já foi utilizado em relação à Hungria, ficando suspensos


milhões de euros em fundos comunitários.

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Todos os mecanismos já mencionados estão associados a um risco ou incumprimento
específico por um estado-membro, mas existem ainda mecanismos ex post não associados a
um incumprimento específico que visam promover o respeito pelos valores da EU:

● Mecanismos de soft law

○ Relatório a nível anual relativo ao cumprimento pelo estado de direito, que


visa antecipar o eventual risco de violação deste valor

○ Painel de avaliação da justiça na UE (justice scoreboard), relatório anual que


agrega dados sobre a independência, eficiência e qualidade dos sistemas
judiciais

○ Semestre europeu

■ Ciclo de coordenação de políticas económicas, orçamentais, laborais e


sociais na EU. No início era um exercício meramente económico, mas
passou a integrar outros domínios.

■ De cada semestre resulta um conjunto de recomendações para os


estados-membros aprovadas pelas instituições europeias sendo que
cada estado-membro deve nos seus orçamentos refletir essas
recomendações (apesar de serem soft law)

○ Relatório anual sobre a aplicação da CEDH na EU

● Mecanismo de cooperação e verificação para a Bulgária e Roménia que quando


aderiram tinham problemas quanto, por exemplo, ao crime organizado e que por isso
necessitavam de uma acompanhamento permanente

○ Este acompanhamento deixou de existir em 2019 na Bulgária e em 2022 na


Roménia, por atingirem os standards médios dos estados-membros da EU

● Mecanismos de apoio à sociedade civil

● Mecanismo de recuperação e resiliência, que deu origem aos PRR (planos de


recuperação e resiliência) nacionais, em que os fundos que a EU atribuiu ao
estados-membros estavam condicionados ao respeito por obrigações do estado de
direito (verificação de um conjunto de reformas relativas ao respeito pelos valores da
UE)

Concluindo, a importância dos valores da EU reside no facto de serem:

40
● Condição de adesão
● Condição de gozo dos direitos decorrentes dos tratados
● Parâmetros de atuação das instituições da EU
○ Transversalidade vertical e horizontal da cláusula de valores, isto é, esta
cláusula tem de ser respeitada não só pelos estados-membros como também
pelas próprias instituições da UE

● Condição para a cooperação leal e confiança mútua dentro da EU


● Parâmetros e objetivos de atuação no âmbito da atuação externa (art.º 3/5 TUE e
21/1 TUE)
○ Dimensão interna e externa da cláusula de valores

● Parâmetros normativos
○ Os valores da EU concretizam-se em princípios e regras dos quais se extraem
direitos e deveres para os estados-membro, um standard de validade e
constitucionalidade dos atos jurídicos e permitem a integração de lacunas do
direito originário e derivado

II- Caso Sayn‑Wittgenstein


1. Indique os direitos e liberdades fundamentais que a decisão das
autoridades austríacas poderá eventualmente colocar em causa.
Poderão estar em causa o direito ao nome e à vida privada e familiar, que é protegido
pela CDFUE no artigo 7º e pelo artigo 8º da CEDH, o direito integrante e fundamental da
identidade da pessoa. Assim, podem-se colocar dúvidas relativas à identidade da pessoa,
isto é, a senhora estava registada num estado-membro, pelo que os seus assentos de
nascimento tinham de ser fornecidos por esse estado-membro, mas a sua vida profissional e
pessoal encontrava-se noutro. Coloca então em causa a livre circulação de pessoas, porque a
sua identidade de pessoa varia consoante o EM (art. 21º do TFUE) e a livre prestação de
serviços (art. 56º do TFUE). A firma da senhora tinha o seu nome, pelo que poderia ser
forçada a mudar o próprio nome da firma.

A Áustria arguiu que o título nobiliárquico não constitui um instrumento que auxilie
na identificação da pessoas (feita apenas pelo nome e apelidos) sendo que apenas atribui
um dado estatuto a pessoas, contudo no direito alemão (ao contrário do direito austríaco) o
apelido é unitário e por isso integra os títulos nobiliárquicos, pelo que esta alteração onerava
especialmente a pessoa em causa que teria de alterar diversos documentos.

41
Assim, à primeira vista esta decisão seria suscetível de violar o DUE.

Existiam, para além disso, decisões do TJUE anteriores no mesmo sentido, ex.: Garcia
Avello. Neste caso queriam registar uma criança, num outro estado-membro, mas segundo
as regras de registo da Espanha (primeiro nome do pai e depois o da mãe), pelo que as
autoridades deste país não o queriam autorizar e o TJUE deu prevalência ao direito de Garcia
Avello.

2. Poderão as autoridades austríacas suportar a sua decisão em algum ou


alguns preceitos da “carta constitucional” da União?
Com que norma pode a Áustria fundamentar à luz dos tratados a sua decisão?
Decorre do artigo 4º/2 da TUE o princípio da identidade nacional. Este artigo é relevante
tendo em conta a ideia de que a forma republicana de governo e da igualdade formal, com a
consequência da abolição de toda a aristocracia e títulos nobiliárquicos, integram a
identidade fundamental do estado austríaco.

Efetivamente este artigo diz que a UE respeita a igualdade dos estados-membros


perante os tratados bem como a identidade nacional destes. O respeito pela identidade
nacional é um fator essencial de uma UE que se diz unida na diversidade, sendo que a
identidade nacional corresponde à expressão última dos fatores que conferem
especificidade aos estados-membros e os diferem em relação aos outros.

Até ao tratado de Lisboa este princípio era tratado sobretudo enquanto à sua
dimensão cultural e linguística (art.º 3/3 e 55 TUE, 24/4 TFUE). Com este tratado institui-se
uma nova manifestação apontando às estruturas políticas e constitucionais fundamentais
desse estado-membro um respeito devido pela própria UE e pelas suas instituições. Exige-se
um duplo respeito por este princípio com a introdução do caráter jurídico apontado ao
respeito pelas estruturas políticas e constitucionais dos estados-membros, devido pela UE e
por todas as suas instituições (artigo 4/2 do TUE). Esta face do princípio está diretamente
relacionada com a expansão das atribuições da UE e o receio que esta provoca nos
estados-membros, apesar dos seus efeitos práticos serem reduzidos.

O artigo 4/2 do TUE tem sobretudo interesse e valor quando essas estruturas
políticas e constitucionais não integram uma tradição constitucional comum, ou seja que são
especificidades jurídico-constitucionais que varia de estado-membro , o que é o caso da
forma republicana de governo (porque ainda há monarquias entre os estados-membro). A
sua principal consequência foi colocar em causa a concepção absoluta do primado do DUE
uma vez que a UE não pode legislar contra as estruturas constitucionais e políticas
fundamentais dos estados-membros, sob pena de violar este artigo.

42
Neste caso, o TJUE aceitou que o respeito pela forma republicana na Áustria fosse
apto a afastar o direito de livre circulação e livre estabelecimento legitimando a eliminação
da partícula "von" do nome da senhora.

O respeito pela identidade nacional tem várias dimensões: relativo às funções


essenciais do estado, reconhecimento das línguas oficiais do estado-membro,
reconhecimento de competências próprias dos estados membros (165 /1 TFUE), etc.

III- Regime geral da condicionalidade e interpretação da identidade


nacional
1. Comente o argumento utilizado, referindo-se à sua implicação
prática nas relações entre o direito nacional e o direito da União.
Este caso diz respeito à Hungria e à Polónia. Esta linha argumentativa é uma forma de
manipulação do próprio princípio da identidade nacional de modo a permitir aos estados
desvincularem-se das suas obrigações.

Efetivamente a identidade constitucional impõe ao DUE a obrigação de respeitarem


os elementos nucleares das estruturas políticas e constitucionais dos estados-membro e os
seus tribunais constitucionais, sendo a identidade nacional um contra limite das ordens
jurídicas estaduais face a elementos da EU que sejam intrusos a estes princípios (limite ao
primado do DUE). Este princípio aparece também para a UE e o TJUE como um critério de
avaliação de legitimidade das ações das suas instituições (uma ação não é legítima se
interferir com as estruturas nucleares, políticas e constitucionais de um estado-membro).

A propósito tem-se desenvolvido uma longa jurisprudência entre o TJUE e os


tribunais nacionais sobretudo com o tribunal constitucional italiano e o Tribunal
constitucional federal Alemão. Quanto ao TC alemão relevam a "decisão de Lisboa" em que
este tribunal se pronunciou quanto à conformidade do tratado de Lisboa com a constituição
alemã e a decisão OMT em que o TC introduziu a possibilidade de realizar um "teste de
identidade" de um programa do BCE que tinha como objetivo a compra de dívida pública de
países do leste europeu, ao qual a Alemanha se opunha. No âmbito desta última decisão, o
TC alemão, com base no princípio de autonomia orçamental específico da estrutura
jurídico-constitucional alemã, podia fazer esta avaliação. Para além disso, o TC recusou
também um mandato de detenção europeu por estar em causa a dignidade da pessoa
humana. Poder-se-ia falar também dos casos Tarico e Tarico II, relativos ao TC italiano e
respeitantes ao princípio da legalidade e da responsabilidade criminal.

43
A identidade nacional pode corresponder à identidade da constituição e integra as
previsões constitucionais através das quais um estado se identifica numa comunidade e as
previsões em que se distingue dos demais (carácter único).

Em todo o caso essas caraterísticas específicas de um estado têm ainda de ter alguma
correspondência ao quadro europeu de princípios jurídicos constitucionais e a uma tradição
constitucional comum que chegue em substância a resultados semelhantes, ou seja, não
obstante de existirem dados aspetos de uma identidade constitucional de um estado, estes
têm de ter algum tipo de correspondência com um quadro europeu de princípios jurídicos
constitucionais. Alguns estados-membros vieram usar a identidade nacional com estratégia
para rejeitarem o primado do DUE ( ex.: Polónia), ou para procurar obter a anulação de atos
jurídicos da UE (como neste caso).

Neste processo o TJUE formula conclusões inovadoras: lança as bases para a


emergência de uma identidade constitucional da EU que não pode ser colocada em causa ou
violada pelos estados-membro tendo em conta o art.º 4/2 TUE e invertendo-o -> da mesma
forma que a EU tem de respeitar a identidade nacional dos estados-membros também os
estados-membros têm de respeitar a identidade constitucional da EU. Numa segunda
decisão inovadora, o TJUE clarifica a impossibilidade de um estado-membro invocar o 4/2 de
modo abusivo, isto é, um estado-membro não pode justificar uma violação dos princípios da
EU com base na sua identidade nacional pois estes dois princípios estão no mesmo patamar,
sendo que a invocação do 4 /2 para legitimar a violação dos valores da EU do art.º 2 é um
abuso desta cláusula, pelo que esta não operará. Assim, a identidade nacional é um conceito
fundamental do DUE pelo que as entidade nacionais dos estados-membros não podem ser
manipuladas de tal forma que violem a própria identidade constitucional da UE

Relativamente ao argumento usado neste caso, o TJUE diz que há um conceito


partilhado de estado de direito enquanto valor comum que decorre das tradições
constitucionais que os estados-membros se comprometem a respeitar de modo contínuo e
que, apesar de haver alguma margem de interpretação, esta não é incompatível com
existência de critérios de apreciação uniformes por parte da EU como estão definidos no
art.º 4 TUE e na definição de estado de direito.

2. Suponha que a Comissão apresentou ao Conselho uma proposta de


decisão de suspensão de pagamentos de fundos ao abrigo da al. a) do nº
1 do art. 5º do Regulamento relativamente a um Estado-Membro.
Imediatamente o Estado- Membro invocou o considerando 26) do
Regulamento, solicitando a submissão da questão ao Conselho Europeu.
Quid iuris?

44
Qual é a força jurídica dos considerandos num ato? Os considerandos são uma parte
de um ato jurídico que deve fundamentar de forma concisa o conteúdo posterior do
articulado. Não têm em si mesmo efeito jurídico, podem ter um efeito auxiliar e
interpretativo, mas sem força jurídica

Assim, o considerando per si não pode interferir no poder de decisão do conselho e


papel da comissão na tomada de decisão.

Ficha prática nº 5

I- “Lei da Cidadania” da Malta

1- Será o programa maltês suscetível de violar o Direito da União


Europeia?

Neste caso, Malta institui um programa de "venda" da sua cidadania: nacionais de


estados terceiros que queiram investir na Malta, concretizando esses investimentos,
recebem a nacionalidade maltesa. Deste modo, pode-se questionar se um programa deste
género viola o DUE.

Decorre do art.º 20/1 do TFUE que são cidadãos da UE todos os nacionais dos 27
estados-membros, pelo que os cidadãos malteses são também cidadãos da União Europeia.
Porém, os critérios de acesso e atribuição da cidadania nacional são da exclusiva
competência dos estados-membros e integram o núcleo duro das suas soberanias.

Assim sendo, de que modo pode intervir a União Europeia?

À primeira vista, a UE não poderá interferir nesta matéria. Se a determinação dos


critérios de aquisição e perda da soberania nacional são da competência exclusiva dos
estados-membros estes podem fazer o que entenderem.

Considerações genéricas sobre a nacionalidade e cidadania


(com base no documento “CIVIS EUROPAEUS SUM? O Brexit e a (perda de) Cidadania da
União” disponibilizado no Sigarra) :
O que significa ser cidadão, ou seja, qual é a importância deste conceito? A cidadania
é um vínculo jurídico-político. Os esforços para encontrar um conceito único de cidadania
não são geralmente bem-sucedidos, mas destacam-se várias conceções de cidadania:

45
- Numa conceção formalista (de Kelsen), define-se os cidadãos «como a esfera pessoal
de validade da ordem jurídica nacional». Os cidadãos são o conjunto de indivíduos
cuja conduta é regulada pela ordem jurídica nacional.

- Na conceção de Hannah Arendt, a cidadania trata-se de um direito a ter direitos, é


um estatuto jurídico primário do indivíduo, sendo a fonte de onde decorrem direitos
e deveres perante o Estado, isto é, a cidadania corresponde a uma condição prévia
ao gozo e exercício de certos direitos e deveres. É o vínculo jurídico existente entre as
pessoas e os estados, que é o reflexo da pessoa ter com o Estado uma forte e
genuína ligação – essa pessoa encontra-se mais próxima do estado que lhe confere a
cidadania do que de qualquer outro estado.

- Numa perspetiva descritiva, a cidadania corresponde a um status pessoal, um status


civitas, cuja aquisição e perda é primariamente regulada pelo direito nacional, pelo
DIP e ainda pelo DUE.

Cidadania Vs Nacionalidade
Note-se que cidadania ≠ nacionalidade apesar de ambas as expressões serem
empregues frequentemente como sinónimas, nomeadamente nos tratados da UE:

- Quando os tratados usam a expressão "nacionais" normalmente referem-se aos


cidadãos de um estado-membro

- A nacionalidade designa uma pertença sociológica e não uma qualidade jurídica.


Refere-se sempre a um determinado grupo cultural ou étnico, aquilo que poderia ser
uma pertença psicológica intangível da nação.

- A cidadania reporta-se a uma pertença jurídica que pode ter por base um critério
nacional (só são cidadãos do estado, os seus nacionais). Quando o critério da
cidadania se sujeita ao critério da nacionalidade está em causa a proteção da
identidade do estado-nação. Não obstante, a maioria dos estados adota critérios
mais ou menos flexíveis de acesso à cidadania, raramente reservando-a
exclusivamente aos seus nacionais pelo que preveem forma de aquisição de
cidadania para outros indivíduos que não sendo nacionais, nela se encontrem
integrados ou a ela se encontrem efetivamente ligados.

Cidadania da UE
Quando surgiu o projeto europeu, este era um projeto de paz alcançado pela via
económica. O desenvolvimento do mercado comum e das quatro liberdades foi instrumental

46
face a um objetivo mais largo: a manutenção da paz na Europa. A liberdade económica, latu
sensu, atribuída aos estados, nomeadamente a liberdade de circulação, era conferida à
pessoa económica (homo economicus) e não propriamente à pessoa encarada como titular
de direitos naturais e inerentes, ou seja, inicialmente a liberdade de circulação era atribuída
a trabalhadores e não a qualquer pessoa na estrita medida do necessário ao funcionamento
do mercado comum.
Com a introdução da cidadania da UE esse cenário altera-se radicalmente. Isto não
quer dizer que a cidadania veio inventar algum direito para os cidadãos europeus, sendo que
a maioria dos direitos associados à cidadania já existia e mantiveram-se inalterados; o que
se altera é o fundamento desses direitos. A introdução da cidadania permite dar a esses
direitos já existentes uma novação no seu fundamento que passa a ser constitucional, isto é,
associado a uma dada matriz política deixando de ser estritamente econômico.
A ideia de uma cidadania europeia não é recente (pode-se dizer tão antiga como a
ideia da UE). Os primeiros passos práticos são dados em 1972 na cimeira de Paris, onde
foram estudadas formas de aprofundar a união de modo a favorecer a criação de uma
identidade europeia. Em 1974 verificou-se que a forma mais eficaz de aprofundar a união
passava por envolver os nacionais. Assim, em 1990 são adotadas três diretivas que vieram a
reconhecer o direito de entrada, permanência e residência dos nacionais de um
estado-membro noutro estado-membro, nomeadamente a nacionais que não fossem
trabalhadores. Por fim, em 1991, na conferência intergovernamental para o tratado de
Maastricht, a Espanha apresentou uma proposta para a criação da cidadania europeia, que é
discutida e modificada até ser aprovada com o tratado, deste modo, em 1992 criou-se a
cidadania europeia.

É necessário aludir à extensão da cidadania e o seu conteúdo:


Extensão: quem são os cidadãos da UE?
O artigo 20.º/1 TFUE responde a essa questão. A cidadania da UE é uma cidadania
derivada, uma vez que o seu acesso é referido por remissão ao direito nacional. Todos os
cidadãos dos estados-membros são simultaneamente cidadãos da UE. A UE absteve-se de
intervir na definição do círculo de pessoas que beneficiam do conteúdo da sua cidadania,
sendo um estatuto complementar à cidadania nacional que não a substitui – artigo 9.º/1
TUE.
Qual o conteúdo dessa Cidadania?
A CDFUE eleva quase todos os direitos associados à cidadania à qualidade de direitos
fundamentais, para além disso, acrescenta à lista de direitos previamente existentes dois
novos direitos e ainda alarga o âmbito de outros direitos já reconhecidos pelos tratados.
A cidadania da UE tem uma dupla dimensão:
- Proibição de discriminação de quem partilha o mesmo estatuto – artigo 18.º TFUE
- Reconhecimento de direitos. Esses direitos são:

47
○ Direito de livre circulação e permanência- art 20.º/2/a) e art 21.º TFUE, art
45.º CDFUE e a Diretiva 2004/38/CE). Esta última diretiva regula o exercício
do direito de livre circulação e permanência dos nacionais de um
estado-membro, noutro estado da União em três âmbitos:
● Define os critérios para a residência até aos 3 meses. Esse é um direito
incondicional com a posse de um documento de identificação.
● Define os critérios para residência acima de 3 meses. Esta já está
condicionada e só é permitida a (1) um cidadão que exerça alguma
atividade económica noutro estado; (2) um cidadão economicamente
inativo mas que disponha de recursos suficientes e de um seguro de
doença, de modo a evitar que o indivíduo seja um encargo para o
estado-membros de residência; (3) a estudantes com seguro de saúde
e declaração de que possuem recursos suficientes para se
sustentarem; (4) alguém que seja membro da família de uma das
pessoas nas situações anteriores.
● Define os critérios para residência permanente que se adquire quando
um cidadão reside noutro estado-membro por mais de 5 anos e é
incondicional e extensível aos membros da família ainda que nacionais
de um estado terceiro
○ Direito de eleger e ser eleito para o parlamento europeu e nas eleições
municipais- art 20.º/2/b), art 22.º TFUE, art 39.º e 40.º CDFUE
○ Direito a proteção diplomática e consular- art 20.º/2/c), art 23.º TFUE e art
46.º CDFUE
○ Direito a dirigir petições ao parlamento europeu e ao provedor de justiça
europeu- art 20.º/2/d), art 24.º art 227.º e 228.º TFUE art 43.º e 44.º CDFUE
○ Direito a apresentar uma iniciativa legislativa europeia- art 11.º/4 TUE e art
24.º TFUE
Direitos apenas previstos na CDFUE:
○ Direito a uma boa administração (art 41.º CDFUE)
○ Direito de acesso a documentos (art 42.º CDFUE)
Assim, por um lado, a cidadania europeia proíbe, dentro da comunidade dos
cidadãos, um tratamento diferenciado (discriminações), por outro, serve de base e critério
para a discriminação relativamente a terceiros (não cidadãos da UE).
Quais os deveres dos cidadãos europeus?
Não estão previstos nos tratados quaisquer deveres (esta é uma das críticas feitas à
cidadania da UE).

Retomando a questão anterior, a definição dos critérios de aquisição ou perda da


cidadania são da competência exclusiva dos estados. Contudo, o exercício dessa
competência encontra-se regulado quer pelo DIP ou pelo DUE, conforme já reconheceu o
TJUE.

48
Quanto ao DIP, há que considerar instrumentos como a DUDH (art 15.º - princípio
geral de proibição da apatridia), bem como a Convenção para redução dos casos da
apatridia, de 1961, e a Convenção Europeia sobre a nacionalidade.
Para além destes instrumentos de DIP, há que considerar o princípio base da
efetividade – diz o TJUE que a cidadania é um vínculo legal que tem por base um facto social
de pertença, uma genuína ligação de existência, interesses e sentimentos conjuntamente
com a existência de direitos e deveres recíprocos. Este princípio eternizou a doutrina da
ligação genuína aos estados que ainda hoje é aplicada na resolução de conflitos negativos e
positivos relacionados com a cidadania. Esta doutrina defende que a cidadania deve estar
associada à forte ligação da pessoa àquela comunidade.
Assim, quanto ao DUE, o TJUE estabeleceu no caso 184-99 RUDY GAZEL CZYK, que a
cidadania da União corresponde ao estatuto fundamental dos cidadãos dos estados perante
o DUE.
Já no C–369/90-Micheletti, o TJUE referiu que, não obstante os estados serem
independentes para exercer o seu direito de ditar os critérios da cidadania, estes estão
limitados pelo respeito do DUE na determinação desses critérios. Esses limites são
necessários porque se a cidadania europeia se adquire através da aquisição da cidadania
nacional, então as regras sobre o estatuto da cidadania nacional devem obedecer aos
princípios do DUE.
Mais recentemente, em dois casos referentes à perda da cidadania nacional e
consequente perda da cidadania europeia (c- 135/08 - Rottman e C-221/17), onde as leis dos
estados-membros prevêem critérios de perda automática de cidadania (por os agentes
estarem ausentes do território por muito tempo ou por terem dupla cidadania), o TJ,
exercendo o seu poder de controlo, veio dizer que a perda automática da cidadania é
incompatível com o DUE, que exige uma análise casuística e o respeito pelo princípio da
proporcionalidade.
Assim, no caso concreto, um programa deste género é suscetível de violar o direito
da União e uma cidadania por investimento viola o princípio da efetividade que pressupõe a
existência de uma forte ligação entre a pessoa e o Estado que a concede. A somar a isto, é
evidente que as pessoas que participarão neste projeto quererão na verdade ter acesso à
cidadania europeia, pelo que a cidadania maltesa serve de veículo de acesso à cidadania
europeia, nomeadamente aos direitos de livre acesso e residência noutros
estados-membros. É sobre este prisma que este programa é censurável do ponto de vista do
DUE: o princípio da efetividade opõe-se a um regime deste género, sendo que a exigência
deste estado-membro configura também uma violação do princípio da cooperação leal (art.º
4/3 do TUE).
Note-se que o TJUE tem legitimidade para se pronunciar quanto à legislação de um
estado-membro relativamente aos critérios da cidadania, na medida em que estes
contendem com o estatuto de cidadão da UE.

49
NOTA: no âmbito português, a lei dos sefarditas, também deixou muito a desejar, tendo já
sofrido alterações, uma vez que a definição dos critérios de acesso à cidadania,
nomeadamente a comprovação da ligação às raízes ancestrais portuguesas, estavam mal
formulados.

II- iniciativa de cidadania europeia


1. Parte dos organizadores da iniciativa são cidadãos britânicos. Tal
será óbice ao sucesso da iniciativa?

O mecanismo da iniciativa legislativa de cidadania foi criado pelo Tratado de Lisboa e


corresponde a um esforço de democratização participativa da UE. A iniciativa da cidadania
integra um dos direitos associados ao status civitas e está prevista no 11º/4 do TUE e 24º/1
do TFUE.
Este direito surge como um direito paralelo, atribuído aos cidadãos da UE, àquele
que é conferido quer ao parlamento europeu quer ao Conselho, de poder instar à comissão
que use o seu poder de iniciativa no âmbito do procedimento legislativo ordinário (art 225.º
e 241.º TFUE), em vez de apresentarem eles esse ato legislativo.
O artigo 24º TFUE manda o conselho e o parlamento europeu adotar um
regulamento com as normas processuais da iniciativa legislativa de cidadania. Esse é o
regulamento 2019/788.
Assim, quanto ao caso concreto, a resposta encontra-se no art 5.º do referido
regulamento, que prevê que a iniciativa é preparada e dirigida por um grupo de 7 pessoas
singulares, sendo que estas devem ser cidadãos da UE com idade para votar nas eleições do
parlamento europeu.
Deste modo, a iniciativa não preenche os requisitos do art 5.º/2 do regulamento,
uma vez que o Reino Unido não pertence à UE e teria de ser rejeitada aplicando-se o artigo
6º do regulamento, segundo o qual a comissão europeia faz uma avaliação preliminar da
iniciativa no prazo de 2 meses e se considerar que todos os requisitos previstos no 6º/3
estão preenchidos regista a iniciativa, caso contrário não a regista.

2. E se forem cidadãos da União nacionais de 7 Estados-Membros, mas


um deles residir nos Estados Unidos da América?
Se o grupo organizador tem 7 nacionais de 7 estados diferentes mas um deles reside
nos EUA, a iniciativa não podia ser registada nos termos do art 5.º/2 do regulamento.

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3. Se a iniciativa for apoiada por 2 milhões de cidadãos da União de 5
Estados-Membros, será válida?
Supondo que a iniciativa foi aceite, registada e encontra-se num momento de
subscrição pelos cidadãos da EU, nos termos do art.º 3 do regulamento, o primeiro requisito
estava preenchido, mas o segundo não (teria de ser pelo menos 7 estados-membros).

4. E se reunir o apoio de 1,5 milhões cidadãos da União, de 7


Estados-Membros, mas num deles o número de subscritores for de 3
000?
A iniciativa não deve ser aceite por não preencher o requisito do at.º 3/1/b).

Se a iniciativa fosse válida seguir-se-ia depois uma apresentação à comissão, uma


sessão pública e nos termos no art.º 15 do regulamento, a comissão europeia iria avaliar a
proposta e decidir se tomaria medidas sobre o caso, sendo que se não o fizesse teria de
apresentar uma justificação.

III- crise migratória e princípio da cooperação leal


1. O comportamento dos referidos Estados-Membros viola os
princípios aplicáveis às relações entre a União e os
Estados-Membros?

Por volta de 2014, a União Europeia teve uma crise migratória muito intensa com um
fluxo elevado de migrantes que vinham do norte de África e eram na sua maioria
requerentes de asilo. Rapidamente a situação se tornou ingerível e ao abrigo do art.º 78º/3
do TFUE o conselho decide adotar medidas extraordinárias e provisórias para mitigar a
situação, fixando um regime de quotas para a receção de requerentes de asilo, para aliviar a
pressão em regiões como a Itália (porta de entrada deste migrantes). A decisão fixava que de
3 em 3 meses os estados-membros deveriam indicar o número de requerentes que podiam
receber. Três desses estados-membros nunca o fizeram. Esse comportamento coloca em
causa algum princípio da relação entre os estados-membros e a União?

Efetivamente, é violado o princípio da cooperação leal (art 4.º/3 TUE) que integra o
DUE desde o início do processo de integração europeia. O princípio da cooperação leal
assume uma função oleadora da relação dos estados-membros com a União.

Este princípio tem 3 grandes referências axiológicas:

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● o princípio da boa-fé que caracteriza as relações entre os estados-membros nas
relações internacionais;

● o princípio da lealdade federal (bundestreue), que caracteriza as relações entre os


estados federados e o estado federal. Este tem um âmbito mais lato que o princípio
da boa-fé, na medida em que a UE ainda não é um estado federal.

● o pacta sunt servanda, que tem um âmbito mais restrito, na medida em que as
relações entre a União e os estados-membros vão para além de relações contratuais

Note-se que o princípio da cooperação leal é fundamental para o funcionamento da


UE e ao cumprimento da sua missão. A UE só cumpre plenamente os seus objetivos se os
estados-membros colaborarem de forma total, uma vez que a UE não tem uma
administração europeia comparável às administrações nacionais, regendo-se por um
princípio de aplicação descentralizada (cabe às administrações públicas nacionais aplicar o
direito da UE). Deste modo, por força do princípio da aplicação descentralizada, o princípio
da cooperação leal é fundamental.

O princípio da cooperação leal tem um duplo conteúdo nos termos do art.º 4/3 TUE:

● Positivo: os estados-membros devem adotar todas as medidas necessárias ao


cumprimento da missão da UE

● Negativo: os estados-membros devem abster-se de praticar quaisquer atos que


ponham em causa a aplicação dos tratados

O princípio da cooperação leal apresenta ainda uma quádrupla relevância:


● Vertical ascendente – Nas relações dos estados-membros com a UE. Os estados
devem fidelidade à União
● Vertical descendente – Nas relações da UE com os estados-membros. A União deve
fidelidade aos estados
● Horizontal nacional – No âmbito das relações entre os estados-membros
● Horizontal supranacional – as instituições da União devem cooperar entre si

Este princípio está também na base de outros princípios da UE como o do primado,


da tutela jurisdicional efetiva, do efeito direto, da responsabilidade do estado por violação
de DUE, etc.

NOTA: Sempre que um estado-membro não cumpre o DUE estará em causa, em princípio, a
violação do princípio da cooperação leal

Concluindo, a Polónia e a República Checa violaram o DUE, na sua vertente positiva e


negativa, uma vez que não cumpriram com uma decisão emitida pelas suas instituições e ao
não cumprirem com essa decisão, obstaram contra estas medidas.

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2. Comente a hipótese à luz do princípio da solidariedade.
O princípio da cooperação leal expressa de forma genérica uma ideia de
solidariedade entre os estados-membros e a UE, embora esta ideia de solidariedade mereça
uma consagração autónoma, como acontece nos art 2.º TUE, art 3.º/3 TUE, 42º/7 TUE e art
222.º TFUE

Neste hipótese concreta têm relevância os art.º 67º/2 e 80º do TFUE que definem
que no espaço de liberdade e segurança, mais concretamente na política de segurança e
asilo, se aplica este princípio.

O caráter normativo deste princípio diverge na doutrina, contudo ele está presente
no DUE, ora como aspiração comum de valores (art 2.º TUE); sob a forma de exigência de
assistência mútua (art 42.º/7 TUE); ou como instrumento de coesão regional (artigo 122.º e
art 174.º TFUE).

Para além disso, a solidariedade é a expressão da igualdade de todos os


estados-membros, exortada através de uma assistência mútua, sendo também o princípio
mais facilmente violável.

IV- Polónia e o princípio da cooperação leal


1. Analise a questão à luz do princípio da cooperação leal.

Do ponto de vista da cooperação leal, este caso prático evidencia a sua relevância a
nível vertical descendente, sendo que é um estado-membro que reclama das instituições (do
conselho) a observância deste princípio, nomeadamente, evidencia que a cooperação leal
não é apenas devida dos estados-membros para a União mas também da União para os
estados-membros.

À partida, a invocação de uma violação do princípio da transparência (invocado


quando se diz que as negociações foram pouco claras), do direito a ser ouvido ao longo do
procedimento e do dever de fundamentação (invocado quando se diz que não foram
transmitidas as informações necessárias), podem servir como fundamento para a invalidade
de um ato jurídico. São por isso deveres/obrigações que as instituições têm de respeitar no
âmbito do procedimento legislativo e que decorrem do princípio da cooperação leal.

Contudo, o dever de cooperação leal, conforme o TJ confirmou neste acórdão, não


pode ser interpretado a ter um tal alcance que obrigue, em todas as circunstâncias, o
legislador da União a apresentar, a pedido de um estado-membro, os documentos e
informações alegadamente em falta ou a corrigir as informações de que dispõe antes da
adoção de um ato.

53
Uma interpretação desse género teria dois efeitos inaceitáveis: impediria as
instituições da EU de exercerem o seu poder de apreciação, ou seja, contenderia com o
poder de conformação política das instituições, bem como bloquearia o procedimento
legislativo (um estado-membro que discordasse de uma dada medida teria sempre a
possibilidade de solicitar mais informações para atrasar este procedimento).

Por outras palavras, se é verdade que o princípio da cooperação leal tem alcance
vertical ele não deve ou não pode ser manipulado de tal forma que imponha às instituições
obrigações desproporcionais que bloqueiem o exercício das suas competências.

O dever de cooperação leal contém em si próprio uma obrigação de assistência


mútua que implica, entre outras coisas, o intercâmbio de informações pertinentes entre as
instituições e os estados-membros no âmbito do procedimento legislativo mas não pode
significar que um estado-membro possa, só com base nesse argumento, contestar a
legalidade do processo decisório.

A Polónia não avançava com nenhum argumento que permitisse colocar em causa a
validade dos dados em que a União baseou a sua ação pelo que simplesmente pretendia,
colocando em causa esses dados, obstar a aprovação do ato.

Por fim, o TJUE concluiu que não constitui uma violação da obrigação do princípio da
cooperação leal a situação em que se adote um ato legislativo em que uma minoria dos
estados se queira opor.

2. Quais os princípios relevantes no que toca à repartição de


atribuições entre a União e os Estados-Membros?

O princípio mais relevante é o da atribuição, previsto no artigo 5º/1 e 2º do TUE. Esta


ideia de que a UE apenas pode atuar no âmbito das competências que lhe tenham sido
transferidas pelos estados-membros através dos tratados, sendo que todas as outras não
transferidas pertencem aos estados-membros, é ainda reforçada no art.º 4º/1 do TUE.
Importa ainda ter presente a declaração nº 18 anexa aos tratados que salienta novamente
este aspeto.

Tendo em conta a formulação dos artigos referidos, pode dizer-se que as


competências nacionais são a regra e as competências da UE são a exceção. A verdade é que
realmente os tratados não concederam às instituições da UE uma competência genérica
para adotarem todas as medidas necessárias para a concretização dos objetivos dos
tratados, mas estabeleceram, a propósito das diferentes políticas, o âmbito dos poderes da
EU, conformando a sua atuação em pormenor (os tratados podiam ter-se limitado a fixar de
forma genérica os objetivos da UE e dizer que a UE tem os poderes necessários para os

54
alcançar. Contudo não é isso que acontece, sendo discriminados, a propósito de cada
política concreta, os meios que a UE dispõe para os alcançar).

Além disso, ao contrário dos estados-membros, a UE não dispõe da competência das


competências (competência de fixar os seus objetivos e os meios necessários para os
alcançar). Assim, a UE não pode tomar decisões por si própria sobre as bases jurídicas da sua
atuação ou sobre as suas competências.

Vale a pena salientar que o princípio da atribuição é muitas vezes referido como uma
manifestação do princípio da especialidade, que se aplica a organizações internacionais (OI)
e pessoas coletivas e que serve para delimitar a sua personalidade jurídica. A personalidade
jurídica destes é instrumental e por isso é atribuída tendo em vista dados fins e objetivos
pelo que as OI e pessoas coletivas só podem exercer os meios necessários na medida em
que alcancem os seus objetivos. No caso da UE, a lógica é a mesma: a UE só dispõe da
capacidade para praticar os atos necessários à prossecução dos seus fins. A principal
implicação prática do princípio da atribuição é que todo e qualquer ato jurídico da UE tem
de fazer menção expressa à base jurídica que permite a adoção desse ato, ou seja, tem de
mencionar a concreta norma dos tratados que fundamenta a sua atuação nesse domínio.

3. Teria a União competência para legislar sobre esta matéria?

O tratado de Lisboa introduziu pela primeira vez uma enumeração das várias
categorias de competências da UE (art.º 2º e 6º do TUE), pelo que antes do Tratado de
Lisboa e apesar do TJUE ter desenvolvido na sua jurisprudência as principais categorias de
competências, o direito originário limitava-se a enumerar os objetivos das comunidades e
os instrumentos necessários para os atingir (ex.: artigos 2º e 3º do tratado de Roma).

Este método de enumeração de objetivos e instrumentos foi, ao longo dos anos,


fonte de vários conflitos positivos e negativos de competências entre a UE e os
estados-membros. Por outro lado, este método também acabou por levar a que as
instituições comunitárias fossem interpretando as competências das comunidades de forma
cada vez mais expansionista (muitas vezes à revelia das vontades dos estados-membros).

Para esta interpretação expansiva contribuiu o TJUE, que com muita frequência
retirou dos objetivos, dos instrumentos para os alcançar e do sistema dos tratados,
competências para a UE, caracterizando algumas delas até como exclusivas quando tal não
se retirava dos tratados. Esta atuação pode ser explicada pelo facto da UE já ter esgotado
todo o domínio da competência pelo que esta passava a ser uma competência exclusiva. A
doutrina entende que o TJUE procedeu a uma interpretação das competências
"pró-comunidade", ultrapassando a questão de que as competências soberanas nunca se
presumem.

55
Assim sendo, no tratado Lisboa exigiu-se uma delimitação mais clara das
competências da UE face às competências dos estados-membros. O tratado de Lisboa veio
também resolver outra questão, incluindo novas bases jurídicas em relação a matérias que
antes não faziam parte dos tratados ou eram insuficientemente reguladas.

Durante algum tempo, para as situações em que não existia uma base jurídica
suficiente nos tratados, recorria-se à teoria das competências implícitas (se a UE tem um
dado objetivo tem também de ter as competências necessárias para o atingir), bem como à
cláusula de flexibilidade prevista atualmente no art.º 352º do TFUE. Para resolver este
problema, o tratado de Lisboa veio integrar matérias que anteriormente entendiam-se
competências da UE por via do princípio das competências implícitas (ex.: 179º TFUE, 194º
TFUE, 165/2 TFUE, etc.). Assim, com a positivação e categorização das competências a UE e
o alargamento das bases jurídicas, os estados-membros quiseram evitar uma erosão futura
das suas competências nacionais (deixando bem claro quais são as competências da UE e
impedindo uma invasão das suas competências), daí existir de forma bem explícita que as
competências não atribuídas à UE pertencem aos estados-membros. A este propósito, o
art.º 2º/6 do TFUE dispõe que a extensão e as regras dos domínios da competência da UE
são fixadas pelas disposições dos tratados relativamente a cada política

A categorização das competências da UE consta atualmente do TFUE, que no 1º/1 diz


logo que o tratado determina os domínios, a delimitação e as regras do exercício das suas
competências, com exceção da PESC (nos termos do art.º 2/4 do TFUE, não tem as suas
bases desenvolvidas neste tratado mas no TUE).

As várias categorias de competências da UE estão previstas no art.º 2 do TFUE:

● Competências exclusivas
○ Nos termos do artigo 2º/1 do TFUE, só a UE pode legislar e adotar atos
juridicamente vinculativos nestas matérias. Admite-se, todavia, que os
estados-membros também possam adotar atos legislativos, mas apenas se
forem habilitados para o facto pela UE ou se estiver em causa a execução dos
atos da UE
○ Previstas no art.º 3 do TFUE

● Competências partilhadas
○ Nos termos do artigo 2º/2 do TFUE, tanto a UE como os estados-membros
podem legislar e adotar atos juridicamente vinculativos.
○ A propósito destas competências é necessário ter em conta o protocolo nº 25
"quando a UE toma medidas num determinado domínio, o âmbito desse
exercício de competências apenas abrange os elementos regidos pelo ato da
União em causa, e por conseguinte, não abrange o domínio na sua
totalidade", que evita, no domínio da preempção, que uma competência

56
partilhada se transforme numa competência exclusiva de facto. Só quanto aos
elementos abrangidos pelo ato é que a EU exerce a sua competência
○ Previstas no art.º 4 do TFUE
■ Nº 1 contém uma regra residual de competências - quando a EU tem
competências que não são previstas como exclusivas ou de
coordenação, estas classificam-se como partilhadas

○ 3 tipos de competências partilhadas:


○ Concorrentes (art.º 4º/2 TFUE)
■ Aplica-se o princípio da preempção, que nos diz que quando estamos
perante uma competência partilhada concorrente os
estados-membros só podem exercer a competência na medida em
que EU não tenha exercido a sua e podem voltar a exercê-la na
medida em que a UE deixe de a ter usado→ elasticidade do domínio
nacional das competências (que pode aumentar ou diminuir em
função da circunstância da UE ter ou não legislado neste domínio)
○ Paralelas (art.º 4/3 e 4 TFUE)
■ Aquelas em que não se aplica o princípio da preempção- o exercício
da competência pela UE nunca impede os estados-membros de
igualmente exercerem as sua competências
○ De coordenação (2/3 TFUE + art.º 5 do TFUE)
■ Que correspondem a domínios de competência da UE de fronteira
entre tipo intergovernamental e tipo supranacional.

● Competência complementares de apoio e coordenação


○ Nos termos do artigo 2º/5 do TFUE, correspondem ao desenvolvimento,
tendo em conta o previsto nos tratados, de certas ações de apoio e
coordenação em complemento às competências nacionais mas sem qualquer
substituição de competências nacionais
○ Aqui, a UE não tem objetivos próprios autónomos dos objetivos dos
estados-membros
○ O atos adotados neste tipo de competência não podem implicar a
harmonização legislativa
○ A União limita-se a complementar em moldes de tipo intergovernamental,
até porque alguns desses domínios são de reserva dos estados-membros

NOTA: neste tipo de casos práticos:


1. É preciso identificar a matéria em causa

57
2. Integrar a matéria num domínio de atuação da UE com referência aos artigos 3º a 6º
do TFUE
3. Proceder à classificação da competência (exclusiva, partilhada, etc.)
4. Identificar a concreta base jurídica (norma do tratado) que dá à UE poder de atuar no
âmbito de adoção daquele ato

Estas tarefas nem sempre são fáceis porque há áreas de sobreposição. Por exemplo,
a política social está no artigo 4º/2/b) o que nos poderia levar a crer que se trata de
competência partilhada concorrente, mas não, porque só a parte “que se refere aos aspetos
definidos no presente tratado” é que é concorrente, e o grosso da política social
corresponde a uma competência partilhada de coordenação, nos termos do artigo 5º/3.

No caso prático em análise, está em causa a matéria do ambiente, que consta no


art.º 4º/2/e) do TFUE e portanto é uma competência partilhada concorrente. Quanto às
normas presentes nos tratados que permitem a adoção da diretiva (são base jurídica desta
competência) são os artigos 191º e 192º do TFUE.

NOTA: A Parte I do TFUE é dedicada aos princípios, e toda a Parte III é dedicada às políticas e
ações da união (tudo o que consta do artigo 3º ao 6º será desenvolvido no âmbito da Parte
III do TFUE)

4- Que princípio deve presidir ao exercício de uma competência


partilhada?

No âmbito daquelas competências que não são exclusivas, isto é, onde quer a UE
quer os estados-membros podem legislar, é preciso saber em que casos deve ser a União a
legislar e quando é que os estados-membros o devem fazer.

Coloca-se assim a questão: quando é que a UE, no âmbito das competências


partilhadas, está autorizada a adotar atos jurídicos vinculativos? É através do princípio da
subsidiariedade que se percebe a resposta a esta pergunta.

Existe ainda outro princípio que se aplica a todas as competências e que guia a UE
quando exerce as suas competências: o princípio da proporcionalidade (que tem a ver com a
intensidade do exercício das competências)

Princípios fundamentais para o exercício das competências:


● Subsidiariedade- essencial no exercício das competências partilhadas
○ art.º 5/1 e 3 do TUE
○ É também preciso ter em conta o protocolo nº1 e nº2 anexos aos tratados

58
○ Este princípio só se aplica no exercício de competências não exclusivas
○ Princípio típico dos estados federais e regionais embora não seja estranho aos
estados unitários (ex.: CRP art.º6)
○ Traduz a ideia de que as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível
dos seus destinatários
○ Introduzido formalmente no Tratado de Maastricht para compensar o
alargamento das atribuições da UE, o aumento do nº de caso em que o
Conselho passou a votar por maioria qualificada e o reforço dos poderes do
PE
○ Integra um movimento de constitucionalização do DUE por permitir uma
maior participação dos seus cidadãos, principalmente através dos
parlamentos nacionais, havendo um reforço do princípio democrático
○ No âmbito de uma competência não exclusiva, a EU só deve atuar quando os
estados-membros não possam atuar de forma suficiente e eficiente
○ A ação da UE está limitada por dois critérios
■ De descentralização
■ A EU só pode atuar se os objetivos não poderem ser
suficientemente alcançados pelos estados-membros
■ De eficiência ou valor acrescentado
■ A UE só pode atuar se os objetivos poderem ser melhor
alcançados a nível supranacional, tendo em conta a dimensão
da ação e os seus efeitos (se extravasam o nível nacional
geralmente este critério cumpre-se)
● Proporcionalidade
○ Art.º 5/1 e 4 do TUE
○ Uma ação da UE, independentemente da competência, não pode exceder o
necessário para alcançar os objetivos previstos no tratados
○ O princípio da proporcionalidade está associado a 3 conceitos: proibição do
excesso (proporcionalidade em sentido estrito)- tem de haver uma relação de
justa medida entre a ação e os efeitos produzidos; a necessidade da atuação,
que implica que a medida seja exigível de tal modo que não se possa dizer
que os objetivos poderiam ter sido alcançados por outros meios menos
onerosos; a adequação dos meios, que devem ser idóneos e apropriados para
o objetivo que se visa alcançar.
○ Uma ação da UE deve sempre escolher as medidas menos onerosas,
prejudiciais ou rígidas, quando existam várias opções. O princípio da
proporcionalidade implica uma análise custo-benefício e também se aplica
aos estados-membros, principalmente quando se adotam medidas restritivas,
nomeadamente à luz do mercado interno.

59
V- propostas legislativas
Suponha o seguinte:
a) Aquando da adoção da proposta de Diretiva, a Comissão apenas a
enviou ao Parlamento Europeu e ao Conselho;
b) A proposta era omissa quanto à ficha de impacto do ato
legislativo;
c) Quinze parlamentos nacionais manifestaram-se contra a adoção da
referida Diretiva, considerando que devem ser os Estados-Membros,
de acordo com as suas realidades e especificidades nacionais, a
legislar sobre a matéria.

Quid iuris?

Primeiramente, a UE tinha competência nesta matéria? Pode dizer-se que a matéria


em causa é a do mercado interno, uma vez que as discrepâncias horárias podem obstaculizar
a comunicação entre, por exemplo, fornecedor e empresa, colocando em causa a livre
prestação de serviços, mercadorias, trabalhadores e capitais. Assim, a matéria diz respeito às
competências partilhadas concorrentes, nos termos do artigo 4/2/a). A concreta base
jurídica para a adoção do ato seria o artigo 114º do TFUE.

É nos protocolos 1 e 2 que encontramos a resposta à pergunta em causa. Uma das


inovações introduzidas pelo tratado de Lisboa foi um mecanismo de dupla tutela política e
jurídica pelo respeito do princípio da subsidiariedade. Este duplo controlo é feito não só
pelos estados-membros mas também pelos parlamentos nacionais nos termos dos dois
protocolos referidos.

Quanto ao papel dos parlamentos nacionais, o protocolo nº 1 diz que a Comissão


Europeia tem de enviar aos mesmos os documentos de consulta e de programação. No art.º
2º diz-nos que quem tem o poder de iniciativa tem de enviar as propostas aos parlamentos
nacionais.

Quanto ao protocolo nº 2 salienta-se o artigo 7º que contém o "sistema de semáforo"


● Nos termos do nº 2, cada parlamento tem direito a 2 votos e se os pareceres
fundamentados sobre a inobservância do princípio da subsidiariedade totalizarem
pelo menos 1/3 dos votos atribuídos aos parlamentos nacionais, o projeto de ato
legislativo tem de ser analisado pela instituição que o propôs, que, por sua vez, pode
manter o ato, retirar ou alterar a proposta de ato tendo sempre de fundamentar a
sua opção → cartão amarelo

60
● Nos termos do nº 3, caso o número de pareceres atingir, pelo menos, a maioria
simples do número de votos dos parlamentos nacionais a proposta deve re-analisada
e o legislador deve ter em conta a compatibilidade da proposta com o princípio da
subsidiariedade, tendo especial atenção às razões expressamente invocadas pelos
parlamentos nacionais (art.º 3/a) → cartão laranja
● Nos termos do art.º 3/b), há um afastamento automático da proposta no caso de, na
ponderação exigida na verificação do disposto da alínea anterior, se atingir a maioria
de 55% dos membros do Conselho, ou a maioria dos votos expressos no PE, e por
isso o legislador considerar que a resposta não é compatível com o princípio da
subsidiariedade → cartão vermelho

No caso prático, a comissão tinha violado os protocolos ao não enviar a proposta de


diretiva simultaneamente para os parlamentos nacionais e ao não apresentar a ficha de
impacto. Se 15 parlamentos nacionais apresentassem um parecer fundamentado sobre a
inobservância do princípio da subsidiariedade aplicava-se o "cartão laranja", e se a maioria
prevista no artigo 3/b) entendesse que a proposta violava o princípio da subsidiariedade
esta seria automaticamente afastada.

Ficha prática nº 6

I- Acórdão AETR
Quid iuris?

Este caso está inserido no âmbito do princípio da atribuição, sendo que o acordo em
causa era relativo às tripulações de veículos e aplicava-se aos motoristas rodoviários.

Os estados-membros das comunidades negociaram e concluíram, com estados


terceiros, este acordo internacional. Não obstante de, ao abrigo da sua soberania própria,
cada um dos estados-membros ter a competência de celebrar e concluir este acordo, a
verdade é que definiram uma posição negocial comum no âmbito do Conselho.

Contudo, a Comissão, à época, entendeu que os estados-membros, individualmente


considerados ou atuando em conjunto, não tinham competências para celebrar este acordo,
pelo que a competência pertencia exclusivamente à CEE.

Como argumentos, usa o atual artigo 91º do TFUE que refere expressamente que, no
âmbito de um política comum de transportes, as comunidades podiam adotar todas as
disposições adequadas, o que incluía a celebração de convenções internacionais. Para além
disso, já existiam atos/regras internas sobre pelo menos parte desse domínio.

Assim, a questão chegou ao TJUE, dando origem ao acórdão AETR.

61
Historicamente, através de vários mecanismos, a UE foi muitas vezes além daquilo que era
competente, à primeira vista, pelo princípio da atribuição. Estes mecanismos que
permitiram o alargamento do âmbito de ação das competências da UE podem ser
sintetizados em três (segundo Gorjão-Henriques):

● O princípio das competências implícitas

● A cláusula de flexibilidade (artigo 352º do TFUE)

● Métodos de interpretação teleológico-finalísticos do TJUE

Destes três mecanismos, o acórdão em causa coloca em evidência o princípio das


competências implícitas. De forma simples, este princípio afirma que uma OI deve ter todas
as competências que sejam necessárias ou convenientes para a prossecução dos seus fins,
ou seja, as competências implícitas correspondem às competências que, não estando
enunciadas de formas direta ou expressa na norma enunciadora da competência, são
inerentes ou necessárias à realização eficaz dos objetivos da entidade ou das respetivas
competências expressas.

Efetivamente, as Comunidades surgiram com fins primordialmente económicos, pelo


que as competências nos tratados se concentram essencialmente no plano interno (ex.:
regulação de aspectos atinentes ao mercado comum e à concorrência).

É por essa razão que o Tratado de Roma tinha poucas referências às competências
externas das Comunidades, ou seja, à afirmação da sua participação nas decisões
internacionais (possibilidade de concluir acordos internacionais), não obstante de, desde o
início, ter ficado expresso nos tratados que as comunidades tinham personalidade jurídica
(atual artigo 47º do TUE). Tal significa, essencialmente, que nas relações externas a UE goza
da capacidade de estabelecer vínculos com estados terceiros ou outras OI, isto é, que tem
capacidade jurídica internacional.

À medida que a integração europeia se foi formando, tornou-se claro que, se os


estados-membros mantivessem intocada a sua própria capacidade internacional, e
pudessem celebrar acordos internacionais com outros estados ou com OI, isso representaria
um risco para as comunidades (para o DUE), colocando em causa, especialmente, o princípio
do primado e da autonomia. No limite, mantendo-se a capacidade dos estados-membros
intocada, poder-se-ia assistir à desagregação das Comunidades, pelo que os acordos
celebrados à margem dos tratados podiam ir contra os valores da CEE. Para mitigar esses
riscos, na década de 70 o TJ iniciou um percurso jurisprudencial, (este é o primeiro acórdão
do percurso), onde decidiu alargar o treaty-making power das Comunidades.

Neste caso concreto, a comissão defendia que só as Comunidades podiam concluir


aquele acordo, sendo que o Conselho entendia que, ao abrigo do princípio da atribuição, a
competência da CEE para concluir acordos com estados terceiros não existia a menos que

62
esta estivesse expressamente prevista nos tratados (ou a competência está atribuída e
existe, ou não está atribuída e não existe). Assim, segundo o conselho, olhando para o atual
artigo 91º do TFUE, a competência da CEE era no plano estritamente interno. Mesmo que se
pudesse extrair deste artigo uma competência externa, esta nunca seria exclusiva, pelo que
os estados-membros poderiam concluir convenções internacionais.

O TJUE, quanto à questão apresentada formula um conjunto de conclusões:

1. A capacidade jurídica da CEE decorre inequivocamente da norma que lhe confere


personalidade jurídica (art.º 47 TFUE)

2. Para se saber, num dado caso, se a comunidade tem ou não competência para
celebrar acordos internacionais é necessário fazer uma interpretação sistemática dos
tratados e atender às disposições materiais.

3. A competência internacional da CEE pode resultar não apenas de uma atribuição


explícita que conste de uma norma do tratado mas pode também ser implícita e
decorrer de outras disposições dos tratados ou dos atos adotados, no âmbito dessas
disposições, pelas instituições (estabelece-se assim a ideia do princípio dos poderes
implícitos).

4. Sempre que no âmbito de uma política comum, como neste caso, a comunidade
adote atos que instituem regras comuns, como também se verificava aqui, os
estados-membros coletiva ou individualmente, deixam de ter o direito de contrair
com estados terceiros, obrigações que afetem essas regras comuns. À medida que se
instituem regras comuns num dado domínio, só a comunidade pode assumir
obrigações com estados terceiros.

5. Na aplicação das disposições dos tratados não é possível separar as


medidas/competências internas das externas.

A principal inovação deste acórdão foi, por isso, instaurar o princípio do paralelismo
das competências que estende, ainda que implicitamente, a competência interna da
CEE à competência externa (internacional) quando tal seja necessário para a
realização dos seus objetivos.

NOTA: nos termos do artigo 218º/11 do TFUE, pode ser pedido um parecer do TJ quanto à
compatibilidade de um projeto de acordo com os tratados, pelo que se for emitido um
parecer negativo, o projeto não pode entrar em vigor a menos que tenha sido alterado ou os
tratados revistos.

Mais tarde, continuando o caminho jurisprudencial, no parecer 1/76, o TJ vai mais


longe e refere que a capacidade internacional da CEE não se limitava apenas aos casos em
que a nível interno a competência do domínio em causa já tinha sido exercida (já tinham
sido adotados atos) mas também abrangia as situações em que as medidas internas apenas

63
podiam ser adotadas por convenções internacionais (quando a única forma de exercer
competências internas é através de acordos internacionais)

Já no âmbito do parecer 1/03, o TJ volta a referir que a competência para celebrar


uma nova convenção (a nova Convenção de Lugano, relativa à competência judiciária, ao
reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial) é exclusiva da UE
porque já existiam regras internas, por via de um regulamento, no mesmo domínio.

Por último, o TJ pronunciou-se no parecer 1/13, estando em causa a convenção de


Haia relativa ao rapto internacional de crianças. Inicialmente, tinham sido os
estados-membros que tinham concluído este tratado, a título individual. Assim, em 2013,
um novo estado queria aderir à convenção sendo que para isso, como geralmente acontece,
teria de ser aceite pelos estados signatários da convenção. Contudo, tendo em conta o
desenvolvimento, nomeadamente a nível político, da UE, colocava-se a questão de saber se
deveriam ser os estados a aceitar ou não a adesão ou a UE.

O TJUE diz que, por um lado, sempre que o DUE confira às instituições competências
a nível interno, com vista a realizar um objetivo, a UE fica investida igualmente de
competências externas para a realização desse objetivo, mesmo na falta de uma disposição
prévia nesse sentido (princípio do paralelismo e das competências implícitas). Por outro
lado, sempre que haja o risco de violação de regras comuns da UE ou da alteração do
alcance dessas regras internas por força de compromissos internacionais assumidos pelos
estados-membros, esse risco justifica a existência de uma competência externa exclusiva da
UE. Deste modo, pode haver uma competência exclusiva no plano externo para conclusão de
tratados sobre uma matéria que não é da competência exclusiva a nível interno. Para além
disso, esse risco é tão mais evidente quanto mais a UE tenha exercido a sua competência no
domínio em causa (esta ideia decorre do princípio da preempção), ou seja:

● se estivermos perante um domínio já em grande parte coberto por regras internas,


ainda que não totalmente, o risco de afetação por meio de um acordo internacional
é mais saliente

● se estivermos perante um domínio onde a UE exerceu ainda a sua competência de


forma comedida, esse riscos será menor

É importante esclarecer que para que possamos concluir que a UE tem competência
internacional num dado domínio e para perceber se a competência é exclusiva, é preciso
fazer uma avaliação casuística para saber se o risco é efetivado, ou seja, uma análise global
entre o acordo projetado e o DUE em vigor para verificar se esse acordo põe em causa a
aplicação uniforme e coerente das regras da UE e o bom funcionamento das regras
existentes.

Neste último parecer, o TJ entende que a UE tinha competência exclusiva para


celebrar o acordo

64
Já no acórdão AETR, o regulamento invocado é posterior ao início das negociações do
acordo pelo que, no momento em que as negociações do acordo se desenvolveram, a UE
ainda não tinha exercido a sua competência no domínio da política comum dos transportes.
Assim, tendo especialmente em conta o facto dos estados-membros terem coordenado a
sua ação em conselho, a competência para celebração dos acordos era dos estados.

Note-se que o atual art.º 3/2 TFUE, consagra as conclusões desta jurisprudência do
TJUE. A UE tem competência exclusiva para celebrar acordos internacionais em 3 hipóteses:

1. Quando a celebração do acordo está prevista num ato legislativo da UE

2. Quando a celebração é necessária para dar à UE a possibilidade de adotar um ato


interno

3. Quando a celebração do acordo seja suscetível de afetar ou alterar o alcance das


regras internas

Relativamente à celebração de acordos internacionais pela UE, são relevantes os art.º


216º a 219º do TFUE. Nestes estão plasmados o alcance e os procedimentos decisórios para
o exercício da competência externa da UE. É necessário, também, ter em conta a existência
de um regime específico para a política comercial comum, nos termos do art.º 207º do
TFUE, por ser uma competência exclusiva da UE (face ao regime geral do art.º 218º), por
exemplo, regra geral, o conselho designa um negociador ou equipa de negociação (como
aconteceu com o Brexit) ao passo que na Política comercial comum quem negoceia é a
comissão, nos termos do art.º 207º/3.

II- Cláusula de Flexibilidade

Atualmente, poderia a UE sustentar a sua competência em alguma norma


dos Tratados?

Neste caso, releva o artigo 352º do TFUE, antigo art.º 235º do TCEE. Este artigo
corresponde ao que se designa na doutrina como cláusula de flexibilidade/de
subsidiariedade/dos poderes subsidiários.

Este mecanismo pode ser usado:


● como base jurídica para um ato da EU, enquanto base jurídica subsidiária ou residual
○ nos casos em que, para dada ação da UE, não existem nos tratados outro
fundamento expresso ou implícito
● enquanto base jurídica complementar

65
○ nas situações em que, para uma ação, existe um fundamento expresso ou
explícito mas que é insuficiente para constituir um fundamento adequado
para os atos que se querem adotar.

Antes do Tratado de Lisboa, a cláusula de flexibilidade foi usada diversas vezes para
integrar lacunas dos tratados, sendo usada pela primeira vez em 1962 e depois empregue
inúmeras vezes em vários domínios.

Após este tratado, não se tem em mente um caso em que a cláusula de flexibilidade
tenha sido usada neste contexto, uma vez que o tratado aditou inúmeras bases jurídicas e
procurou proceder uma delimitação mais clara das competência da União. Para além disso,
o recurso a este mecanismo obriga à unanimidade, o que dificulta procedimentalmente a
sua ativação.

Pressupostos iniciais do uso do mecanismo (352º/1 do TFUE):


1. Tem de haver uma ação da UE que seja necessária
2. A ação tem de ser no quadro das políticas definidas nos tratados
3. A ação tem de ser de tal molde, que seja para atingir um dos objetivos presentes nos
tratados, com exceção da PESC (tal como previsto no artigo 352º/4 e na declaração
nº 41 anexa aos tratados
4. Não existam poderes de ação necessários para a adoção do ato

Do ponto de vista procedimental a utilização do artigo com base no ato implica:


1. Uma proposta da comissão
2. A aprovação pelo PE
3. Deliberação por unanimidade no conselho

Limites da cláusula de flexibilidade


● Nos termos do 352º/2, a utilização desta base jurídica precisa de respeitar o princípio
da subsidiariedade, com o respetivo controlo político dos parlamento nacionais e
controlo jurídico do TJUE do respeito pelo princípio
● Nos termos do artigo 352º/3, as medidas baseadas neste artigo não podem levar a
uma harmonização regulamentar ou legislativa quando esta harmonização é excluída
dos tratados

Jurisprudencialmente, acrescentam-se mais dois limites (previstos também declaração nº 42


anexa aos tratados)

● Respeito pela carta constitucional dos tratados


○ O artigo não pode resultar numa revisão camuflada dos tratados

66
● A impossibilidade de, com base neste artigo, se fundar o que o TJ designa como "um
salto qualitativo de integração"

Ou seja, o artigo não pode constituir fundamento para alargar o âmbito das
competências a UE para além do quadro geral resultante do conjunto das disposições do
tratado e não pode servir de fundamento à adoção de disposições que, em substância ou
nas suas consequências, correspondem a uma alteração dos tratados que escape aos
processos de revisão estabelecidos

Note-se que o parecer do TJUE 2/94, relativo à primeira tentativa de adesão das
comunidades à CEDH incidiu sobre esta matéria. À data, a base jurídica que possibilitava a
adesão da CE à CEDH era a cláusula de flexibilidade. Assim, o TJUE diz que a utilização desta
cláusula implicava uma verdadeira alteração constitucional, alargando o âmbito das
competências da comunidade para além daquilo que era o seu quadro geral (daquilo que
resulta da interpretação sistemática dos tratados), por isso a adesão só podia ser alcançada
através da revisão (o que veio acontecer no tratado de Lisboa).

III- Imposto especial sobre veículos automóveis romeno

1. Será o princípio da equivalência pertinente para a análise desta


situação diferenciada entre os processos de natureza administrativa e
cível?

O princípio da equivalência diz-nos que a totalidade das regras processuais aplicáveis


às ações e recursos por violação do direito interno deve ser aplicada indistintamente, ou
seja, de forma equivalente, ao conjunto das regras processuais aplicáveis às ações ou
recursos baseados na violação do DUE. Mas o princípio não se pronuncia quanto à existência
de regras diferentes, tendo em conta a natureza administrativa ou não do processo, pelo que
esta diferença não viola o princípio em causa.

2. Decorrerá do princípio da efetividade a obrigatoriedade de o juiz


nacional afastar a aplicação das regras processuais internas que conferem
a autoridade de caso julgado a uma decisão judicial, isto é, que
impossibilitam que essa decisão possa ser impugnada, através de recurso
ordinário?

67
O princípio da efetividade diz-nos que as modalidades processuais destinadas a
assegurar direitos conferidos pelo DUE não devem ser estruturadas de modo a impossibilitar
na prática ou a dificultar excessivamente o exercício dos direitos exercidos na UE.

Contudo, o instituto do caso julgado tem muito poucas exceções, pelo que, quando
transita em julgado, a decisão se "cristaliza" na ordem jurídica. O TJUE reconhece esta ideia,
daí que o princípio da efetividade não possa ser aplicado neste caso, não sendo o juiz
obrigado a desrespeitar o caso julgado.

Assim, para este caso, seria relevante o princípio da responsabilidade dos


estados-membros por violação do direito da UE, uma vez que a Roménia violou o DUE e daí
decorreram prejuízos para particulares.

Também decorre da jurisprudência do TJUE que o princípio da responsabilidade


permite que um particular seja indemnizado quando da violação do DUE decorre o prejuízo
para si.

Ficha prática nº 7

I- Fontes de direito
Quid iuris?
Este caso é referente à matéria das fontes de direito. O sistema de fontes divide-se
em dois grandes grupos: o direito originário/primário, composto principalmente pelos
tratados e o direito derivado/secundário onde, nos termos do art.º 288º do TFUE, se
incluem os regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres.

Para além disso, o sistema de fontes engloba os princípios gerais de direito, a


jurisprudência do TJ, entre outros.

No que respeita ao direito derivado/ secundário, este é genericamente constituído


pelo conjunto de atos adotados pelas instituições e órgãos da união, no desenvolvimento
das competências que são atribuídas aos mesmos pelo direito originário. Os atos de direito
derivado podem ser:

○ legislativos (emitidos pelo parlamento europeu e/ou pelo conselho da UE através do


procedimento legislativo ordinário ou procedimentos legislativos especiais)

○ não legislativos
● atos delegados (adotados pela comissão nos termos do art. 290º TFUE)

68
● de base (correspondem ao exercício de um poder regulamentar autónomo)
○ Ex.: atos de aprovação de regulamentos internos de funcionamento das
instituições
● de execução (podem ser adotados por uma instituição, ao abrigo do art. 291º
TFUE

Além desta categorização, podemos ter também:


○ atos gerais ou especiais
○ atos internos ou externos
○ atos típicos (contemplados no art. 288º TFUE) ou atípicos (não estão expressamente
previstos nos tratados.
○ atos juridicamente vinculativos (hard law) ou não juridicamente vinculativos (soft
law)

Regime comum dos atos de direito derivado

○ A natureza de um ato não está dependente da sua qualificação formal/ da sua


designação, mas antes do seu conteúdo – princípio da materialidade normativa
subjacente

○ Existe uma presunção de legalidade a favor das normas e dos atos da União Europeia
– quem invoca a invalidade de uma norma, tem o ónus de a provar

○ Em relação a todos os atos jurídicos da união, verifica-se um dever de


fundamentação – art. 296º TFUE, fundamentação essa que deve incluir a base
jurídica que permite a adoção do ato, por referência ao direito primário

○ Os atos legislativos estão sempre sujeitos a publicação no jornal oficial da União, para
que possam ser conhecidos pelos seus destinatários – art. 297º TFUE. No caso de um
ato não legislativo que tenha destinatários concretos não há publicação, mas antes
notificação

O nosso caso prático remete para um regulamento – art. 288º/2º parágrafo do TFUE.
Enquanto ato juridicamente vinculativo da UE, o regulamento apresenta três grandes
características:

○ Generalidade e abstração: todas as pessoas singulares e coletivas, que recaem no


âmbito subjetivo de aplicação do regulamento, ficam vinculadas ao mesmo e o
regulamento aplica-se a um número indeterminado de situações típicas
○ Aplicabilidade direta
○ Obrigatoriedade de todos os seus elementos e força erga omnes: os
Estados-membros, perante um regulamento, não podem adaptar, através do direito

69
interno, o seu conteúdo, nem modificar o sentido e alcance das suas normas, nem as
aplicar de forma parcelar ou incompleta. Não podem também invocar o seu direito
interno nem a sua objeção à adoção do regulamento, para não o cumprir

Segundo Gorjão Henriques, em regra, os regulamentos gozam da presunção de


autossuficiência normativa, ou seja, em regra, as normas do regulamento são completas,
precisas e suficientes (o que não significa que para que um regulamento possa ser aplicável
ou ter efeito útil, não sejam necessários atos de execução ou atos delegados).
○ Ex.: pode ser necessário que cada estado-membro, para aplicar e fiscalizar o
cumprimento do regulamento, tenha de designar uma entidade competente, o que
normalmente faz através de uma lei ou decreto-lei.

Assim, a transposição, por parte de Itália, de alguns elementos do regulamento para


a ordem jurídica nacional não é admissível e viola o DUE, designadamente o art. 288º TFUE,
o princípio da cooperação leal (sempre que um estado-membro viola o DUE, viola também o
princípio da cooperação leal) e o art. 344º do TFUE.

Isto porque uma das características do regulamento é a aplicabilidade direta, ou seja,


o regulamento vigora na ordem jurídica dos estados-membros, dispensando qualquer ato de
recessão interna, incorporando-se automaticamente na ordem jurídica dos
estados-membros, sempre que se encontrem preenchidos 5 requisitos:

○ o regulamento é adotado pelos órgãos competentes


○ tem de ser respeitado o processo de adoção (as regras procedimentais)
○ tem de estar preenchido o dever de fundamentação (art. 296º)
○ dá-se publicidade apropriada ao regulamento (art. 297º)
○ tenha decorrido a vacatio legis (art. 297º)
● os atos jurídicos da UE entram em vigor na data por eles fixada sendo que, se
nada for dito, aplica-se o prazo supletivo de 20 dias, nos termos do artigo 297º.

Desta forma, imaginemos que a norma atribui ao particular um determinado direito


e que esse direito é violado. O particular, em tribunal, para fazer valer a sua posição jurídica,
não irá invocar a norma de DUE, mas a norma de direito nacional (cópia da norma da união).
Um estado-membro, numa situação como esta, está a ocultar o caráter comunitário daquela
norma, isto é, está a transformar uma norma de DUE numa norma nacional.

Para além disso, apesar desta situação não contender diretamente com o reenvio
prejudicial, não deixa de existir uma afetação das competências do TJ. Suponha-se que o TJ
declarava que o regulamento era nulo, em Itália, essa decisão não produziria efeitos
relativamente às normas transpostas.

Coloca-se ainda uma problemática relativa ao princípio da uniformidade do DUE: os


estados-membros estão obrigados a não obstaculizar ao efeito direto próprio dos

70
regulamentos, sendo que o cumprimento desse dever é um requisito essencial para a
aplicação uniforme e simultânea dos regulamentos em toda a UE

NOTA: o regulamento assemelha-se, paralelamente ao nível nacional, à lei

II - Os regulamentos

Poderia a Muñoz ter interposto uma ação contra a Frumar, ao abrigo do


artigo 3.º daquele Regulamento?

Neste caso, temos um regulamento que previa que determinados produtos frescos,
destinados a serem entregues aos consumidores, tinham de observar certas normas de
qualidade e só podiam ser vendidos se as respeitassem, sendo que os estados-membros
podiam designar os organismos responsáveis por efetuar o controlo do cumprimento dessas
normas de qualidade. As uvas integraram a lista de produtos a que estas normas se aplicam.

Tendo isto presente, a Muñoz, entendia que as uvas que a Frumar começou a vender
eram da mesma variedade que as que a Muñoz vendia, sendo que a Frumar não respeitava
as normas de qualidade do regulamento, facto que se vem a comprovar.

Numa primeira instância, os tribunais do Reino Unido indeferiram a pretensão da


Muñoz: o tribunal embora reconhecesse que a Frumar violava o regulamento e que as uvas
eram da mesma variedade, entendeu que aquele regulamento e, em específico, aquela
norma não conferia direitos aos produtores.

Assim, coloca-se uma questão prejudicial ao TJ se saber se um regulamento da UE


pode servir de fundamento para uma pretensão de um particular contra outro particular, o
que equivale a questionar se os regulamentos têm efeito direto

É indubitável que os regulamentos têm efeito direto, mas este não é absoluto e por
isso não impede que haja normas sem efeito direto: as normas que não forem precisas,
suficientes, incondicionais e prescritivas não têm efeito direto vertical ou horizontal.

Preenchendo estas condições, os regulamentos gozam de efeito direto, não só


vertical (contra o Estado), mas também horizontal (contra outros particulares)

Deste modo, o efeito direto das normas dos regulamentos pode-se colocar em causa
quando estas carecem de medidas de execução pelos estados-membros – aparentemente
não são suficientes. Mas o TJ já reconheceu que essa suficiência só não se verifica quando é
dado ao estado-membro uma ampla margem de conformação ou apreciação quanto à
medida de execução. Se houver uma ampla discricionariedade, então a condição da

71
suficiência não está preenchida. Se o estado-membro gozar apenas de uma diminuta ou
reduzida margem de discricionariedade, o TJ já reconheceu o efeito direto da norma em
questão.

Quanto à situação concreta, o TJ reconhece que o art. 3º tem efeito direto, com base
nos seguintes argumentos:

● De acordo com o art. 288º, o regulamento tem carácter geral e é directamente


aplicável em todos do estados-membros, estando apto a produzir direitos para os
particulares, que os tribunais nacionais têm de proteger
● Os tribunais nacionais são tribunais comuns de DUE pelo que cabe a eles velar, em
primeira linha, pela eficácia das disposições do regulamento, que neste caso tinham
como objetivo proteger os consumidores e facilitar a concorrência leal.
○ Para que o regulamento fosse eficaz, os estados-membros estavam obrigados
a garantir atuações jurídicas com base naquela norma, no âmbito de um
processo civil intentado por um particular contra o seu concorrente. Se isso
não fosse possível, a norma não teria efeito útil

III - As diretivas

Quid iuris?
Por norma, as diretivas fixam elas próprias o prazo máximo de transposição/
implementação de todas as medidas nacionais necessárias à efetividade da diretiva.

Neste caso, no fim desse prazo, a Alemanha não havia transposto a diretiva. Assim, a
comissão lança uma ação por incumprimento (Art. 258º TFUE), todavia, a Alemanha diz que
já havia transposto a diretiva através de uma circular.

Nos termos do art. 288/ 3º parágrafo, os estados-membros têm, no que toca às


diretivas, liberdade quanto à forma, ou seja, escolhem as formas de receção de uma diretiva
no direito interno. Deste modo, coloca-se a questão de saber se uma transposição feita
através de uma circular administrativa, pode ser considerada um ato de transposição válido
à luz do DUE:

● O facto de se tratar de uma circular interna da administração e por isso não ser
pública ou conhecida pelos cidadãos, pode ter algum impacto? Só posso invocar um
direito que eu conheça, logo é necessário publicidade do ato.

72
● A própria natureza das circulares permite que estas sejam livremente modificadas e
revogadas a qualquer momento, pelo que esta forma de transposição não garante a
segurança e certeza jurídica

Considerações teóricas acerca das diretivas

As diretivas estão previstas no art. 288/3º parágrafo do TFUE e vinculam os


estados-membros destinatários quanto ao resultado a alcançar, mas deixam aos mesmos e
às suas instâncias nacionais, a competência quanto à forma e meios para se atingir esse
resultado.

Há 3 grandes diferenças entre diretivas e regulamentos:


● Regulamento: obrigatório em todos os seus elementos
○ Diretiva: vincula apenas quanto ao resultado a alcançar, deixando uma
margem de conformação para os estados-membros decidirem, internamente,
quais os meios que vão empregar para alcançar esses objetivos

● Regulamento: tem caráter geral


○ Diretiva: tem como únicos e imediatos destinatários os estados-membros,
apesar de poderem estabelecer uma disciplina de alcance geral

● Regulamento: goza de aplicabilidade direta


○ Diretiva: não goza de aplicabilidade direta, ou seja, tem de ser incorporada no
direito interno através de um ato de transposição

Apesar de não constar do enunciado do caso prático, a Alemanha ainda invocou


outro argumento: no seu direito interno, relativamente a estrangeiros, existia uma cláusula
genérica de remissão para o direito comunitário, de que todo o direito comunitário é
aplicável na ordem jurídica alemã relativamente àquela matéria. Este tipo de transposição
designa-se de transposição por remissão. Será este argumento admissível?

A aprovação de uma diretiva vincula os estados-membros, dentro do prazo


estabelecido, a recebê-la no ordenamento jurídico nacional, sendo que, em regra, só após
esse ato de incorporação nacional é que a diretiva está apta a gerar direitos e obrigações,
produzindo efeitos na esfera jurídica dos particulares (há casos em que uma diretiva não
transposta pode produzir efeitos jurídicos → efeito direto vertical)

● Relativamente às diretivas não vigora uma regra de aplicabilidade direta, antes de


transformação em ato de direito interno, sendo esse ato que atribui os direitos e
obrigações que dela decorram
○ Havendo uma correta transposição, para invocar os direitos e deveres que daí
emergem, usa-se a norma de transposição e não a diretiva. No caso de uma

73
transposição por remissão, invocam-se as duas, a norma que remete e a
norma comunitária

Embora os estados-membros disponham de liberdade quanto à forma de


transposição, estes devem exercer essa liberdade dentro de determinados limites, de forma
a garantir a certeza e segurança jurídica e a uniformidade do direito da união, bem como o
seu efeito útil.

● No caso de uma transposição por circular: como esta pode ser modificada a qualquer
momento, não constitui uma forma de transposição que respeite as obrigações
decorrentes dos tratados, daí não poder ser usada. O TJ reconhece que não estão
satisfeitas as necessidades de clareza, segurança e publicidade através da circular
● Nas situações de transposição por remissão: o TJ reconhece que, efetivamente, a
transposição para o direito nacional de uma diretiva não exige que a diretiva seja
reproduzida formal e literalmente num ato interno, pelo que pode haver essa
transposição por remissão. Mas tal só é possível quando a margem de conformação
do legislador nacional para saber quais os meios empregues para a transposição for
inexistente ou reduzida.
○ este tipo de transposição pode ser utilizado desde que se garanta a plena
aplicação da diretiva, de forma suficientemente clara e precisa – se a diretiva
criar deveres e direitos a favor de particulares, a remissão só pode ser válida
se os particulares poderem tomar conhecimento das disposições que lhes são
aplicadas – têm de ficar informados exaustivamente quanto à informação.
■ Uma simples disposição genérica não é suscetível de assegurar o
conhecimento exaustivo, tendo de ser recusada

IV - Atos atípicos

Sabendo que um Código de conduta corresponde a uma forma de soft


law, pronuncie-se quanto à admissibilidade do recurso de anulação.

O artigo 263º do TFUE refere-se à anulação, sendo que, nos termos do mesmo,
apenas atos legislativos (que não sejam recomendações ou pareceres) ou atos que têm
caráter vinculativo, que se destinam a produzir efeitos relativamente a terceiros é que
podem ser alvo de anulação pelo TJ.

Posto isto, um código de conduta é um ato não legislativo, ademais, a comissão não
tem funções legislativas, mas apenas poder de iniciativa. Este ato é também um ato atípico,
não existindo menção ao mesmo no art. 288º ou noutras disposições dos tratados e integra,
por isso, a categoria da soft law criando um conjunto de regras, princípios, compromissos e

74
linhas de ação que, em princípio, não têm força vinculativa (embora na prática esses atos
produzam certos efeitos jurídicos, na medida em que influenciam/conformam as atuações
das instituições ou dos estados-membros).

Não obstante, considera-se que os atos atípicos geralmente não tem força jurídica
vinculativa, com as seguintes exceções:

● Os atos podem auto vincular o órgão que os emite (declarações interinstitucionais)


● Podem ter um valor jurídico interno sem vinculação de terceiros (ex.: regulamentos
internos financeiros)

Note-se que é necessário analisar o concreto conteúdo do ato e não a sua forma: se
um ato atípico produz, em relação a terceiros, efeitos jurídicos obrigatórios, criando direitos
ou impondo obrigações, não pode ser considerado como não vinculativo
Quanto ao caso concreto, o TJ entende que o código de conduta se trata de um ato
destinado a produzir efeitos jurídicos próprios, mesmo que distintos do regulamento,
podendo ser objeto de um recurso de anulação.

V
O caso prático evidencia o efeito direto vertical descendente (invertido), sendo que
este é proibido.

Por um lado, as diretivas (nos termos do artigo 288º/3º parágrafo do TFUE) são
instrumentos carecidos de transposição dos estados-membros, dentro de um dado prazo
que a própria diretiva fixa e por isso mesmo, por se tratarem de atos incompletos e por
terem como destinatários os estados-membros, numa fase inicial entendeu-se que as
normas das diretivas não produziam qualquer efeito direto.

Note-se que o efeito direto é uma das particularidades da ordem jurídica da EU e foi
elaborado pelo TJ (no caso Van Gend & Loos).

Pese embora a jurisprudência inicial acerca do efeito direto, esta veio a ser
flexibilizada, permitindo que as normas sejam invocadas quer enquanto garantias de defesa,
quer enquanto standards de revisão das normas nacionais (efeito direito de exclusão).

No caso particular das diretivas, mais tarde, de modo a evitar que os particulares se
vissem lesados por duas situações patológicas: a não transposição de uma diretiva pelo
estado-membro no prazo fixado ou a sua transposição deficiente (incompleta ou incorreta),
o TJ desenvolve jurisprudência na qual admite efeito direto de normas das diretas quando
estas preenchem os requisitos do efeito direto (quando são normas precisas, incondicionais,
suficientes e prescritivas), ainda que a diretiva não tenha sido transposta ou tenha sido
deficientemente transposta.

75
Nestas situações, o TJ admite que um particular possa invocar as normas destas
diretiva contra o estado- reconhece-lhes efeito direto vertical.

NOTA: Vale a pena relembrar que se houver lugar à transposição atempada e correta de uma
diretiva, os particulares deverão invocar em juízo as normas nacionais de transposição e não
as normas da diretiva.

Argumentos do TJ para reconhecer efeito vertical a estas normas:


1. A diretiva é, não obstante de desprovida de efeito direto, um ato vinculativo quanto
ao resultado a alcançar, nos termos do artigo 288º do TFUE. Esta vinculatividade
sairia prejudicada se um estado-membro se pudesse cortar à obrigação de
transposição e, com isso, prejudicar os direitos dos particulares
2. O artigo 267º do TFUE (reenvio prejudicial) determina que os atos adotados pelas
instituições possam ser objeto de reenvio para o TJ. Pela interpretação sistemática
dos tratados pode-se concluir que as diretivas também podem ser invocadas perante
os tribunais nacionais
3. O estado-membro também está obrigado, nos termos do princípio da cooperação
leal, a assegurar o cumprimento das diretivas.

Ora, o caráter obrigatório das diretivas apenas diz respeito aos estados-membros
(são os seus destinatários exclusivos), pelo que uma diretiva, per si, não pode criar
obrigações para os particulares. Assim, se se permite o efeito vertical ascendente de dadas
disposições das diretivas, já não se consente o efeito direto vertical descendente e por isso a
diretiva não podia ser aplicada enquanto tal, neste processo. Um estado-membro não se
pode valer de um incumprimento seu para fundamentar a responsabilidade penal de um
particular.

Contudo, poder-se-ia colocar a questão de saber se ainda assim o juiz nacional podia,
por via do princípio da interpretação conforme, ter em conta as normas da diretiva
enquanto elemento hermenêutico e com isso garantir a responsabilidade/condenação desta
empresa.

Efetivamente, o princípio da interpretação conforme reconhece alguns limites,


nomeadamente, o respeito pelo princípio da legalidade, pelo que não pode uma norma da
diretiva, por via interpretativa, servir para fundamentar ou agravar a responsabilidade
criminal de um particular.

Acerca do princípio da interpretação conforme deve-se ter em consideração dois


acórdãos:
● Von Kolson
● Marleasing

76
Decorre do princípio da interpretação conforme que o juiz nacional tem a obrigação
de interpretar o direito nacional à luz do DUE. No caso das diretivas, tem de interpretar a lei
nacional para fazê-la corresponder ao texto e às finalidades da diretiva, com o objetivo de
atingir o resultado obrigatório prosseguido pela mesma.

Argumentos que fundamentam o princípio da interpretação conforme:


● A ideia resultante dos tratados de que a diretiva vincula os estados-membros quanto
ao resultado a alcançar- o resultado é obrigatório
● O princípio da cooperação leal que impõe ao estados-membros e todas as
autoridades nacionais que adotem todas as medidas necessárias gerais e especiais
adequadas a assegurar esse resultados pretendido pela diretiva (nas quais se inclui a
interpretação conforme do direito nacional à luz do DUE)

Ficha prática nº 8

I - efeito direto e diretivas


1. Considerando que a Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da
organização do tempo de trabalho, determina, no seu artigo 7.º, n.º 1 que «Os
Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os
trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro
semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas
nas legislações e/ou práticas nacionais», aprecie a compatibilidade desta
norma de DUE com a referida legislação laboral francesa.

Aqui coloca-se a questão de saber se a legislação francesa em causa é compatível


com o DUE.

Entende o TJ que o direito a férias remuneradas corresponde a um princípio social da


UE, e por isso não pode ser derrogado pelos estados-membros e a sua concretização pelos
estados-membros só pode ser feita nos termos que se contenham dentro daquilo que é
expressamente permitido pela diretiva. Do artigo 7º/1 da diretiva, resulta uma proibição
para os estados-membros de impor condições que resultem na exclusão do direito a férias
remuneradas para certos trabalhadores, sendo que a competência dos estados-membros é
apenas a de adotar dadas regras de execução do direito (cinge-se ao modo de execução do
direito, de definir como e de que forma o direito se vai exercer, mas não abrange a questão
de saber se existe este direito). Respondendo à questão que se suscitou de saber se é

77
legítima a distinção entre os trabalhadores ausentes, por se encontrarem de baixa e aqueles
que estão ao serviço, o TJ responde que a diretiva não faz essa distinção e por isso, uma
ausência de um trabalhador por motivo de doença não se opõe à constituição do seu direito
a férias remuneradas, pelo que, a legislação francesa é, de facto, incompatível com esta
diretiva.

2. Poderá o artigo 7.º, n.º 1 da Diretiva ser, de algum modo, utilizado pelo juiz
nacional, de forma a garantir o direito a férias de D?
a) Sendo a sua resposta negativa, disporá D de alguma via alternativa, para
efeitos de ver ressarcido o dano decorrente desta situação?

Efetivamente, o que está em causa é o efeito direto das diretivas e a eventual


obrigação do juiz nacional de considerar uma norma de diretiva não transposta ou
transposta incorretamente. Neste caso, estamos perante uma transposição incorreta, pois o
direito nacional não respeitava o disposto na diretiva.

Como vimos, nos casos em que houver uma transposição errada de dadas normas da
diretiva é possível o particular invocar, perante um tribunal nacional, as normas dessa
diretiva, desde que preenchidos dois requisitos:
● que a norma cumpra os requisitos do efeito direto
● que se trate de uma relação de natureza vertical

Neste caso, aparentemente, estamos entre um litígio entre particulares, já que o


Centre informatique du Centre Ouest Atlantique aparece nas vestes de empregador e a
relação de emprego é regida por direito privado, pelo que as disposições da diretiva não
pode, por si mesma, criar obrigações para um particular e por isso não pode ser invocada
perante ele.

Por outras palavras, mesmo quando as disposições da diretiva cumpram os requisitos


do efeito direto, a norma não pode ser aplicada, enquanto tal, nas relações entre
particulares, porque isso seria reconhecer que a diretiva provoca efeitos jurídicos
diretamente na esfera dos particulares, mas esta é um ato que não tem como destinatário
os particulares. Se admitíssemos que a diretiva tinha efeito direto horizontal estaríamos a
dificultar a distinção entre regulamentos e diretivas (estaríamos a aproximar e confundir
estes dois tipos de atos).

Assim, como compensação desta falta de efeito direto e para dar resposta a situações
de injustiça que pudessem ocorrer (ex.: um trabalhador com uma entidade empregadora
pública poder-se-ia fazer valer de normas de diretivas que preencham os requisitos do efeito

78
direto, enquanto outro, com uma entidade empregadora privada não) o TJ, na sua
jurisprudência, encontrou algumas soluções alternativas que visam satisfazer um particular
que se sinta lesado pela inexistência ou incorreta transposição da diretiva.
Essa vias de solução podem ser desdobradas em três:

● Conceito amplo de estado

○ O que está em causa é procurar uma relação vertical quando o aparente


particular integra ainda um conceito de estado em sentido lato
○ A este propósito resulta da jurisprudência que quando os particulares estão
em condições de invocar uma diretiva contra o estado, podem fazê-lo
qualquer que seja a qualidade em que o estado atua (qualidade de
autoridade pública ou empregador).
■ Isto porque pode haver casos, em certos ordenamentos jurídicos, em
que as relações entre o estado enquanto empregador e os
trabalhadores são regidas por direito privado.
■ Se, do outro lado, podemos reconduzir o organismo à entidade
"estado" não interessa se a relação jurídica é regida por regras de
direito privado.
○ Segundo a jurisprudência do TJ (acórdãos Foster e Marshall), estamos perante
o conceito de estado, não só quando os organismos em causa estão
encarregues das funções clássicas do estado, mas também quando se trate de
um organismo que exerça outras tarefas e funções, enquanto agentes do
estado, e que se encontrem ou sujeitos à autoridade e controlo do estado, ou
que disponham de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas
aplicáveis às relações entre particulares (exerçam poderes de autoridade
pública).
■ Já temos jurisprudência que diz que podemos falar de efeito direto
vertical quando estamos perante autoridades fiscais, autoridades
públicas descentralizadas (por exemplo, autarquias locais),
coletividades territoriais, autoridades independentes encarregues da
manutenção da ordem e segurança pública e autoridades públicas que
assegurem serviços públicos

● Princípio da interpretação conforme

○ A obrigatoriedade do juiz nacional proceder a uma interpretação conforme


do direito nacional com o DUE
○ Este princípio aplica-se pelo facto de a diretiva impor uma obrigação de
resultado aos estados-membros e, nos termos da cooperação leal, o dever de

79
adotar todas as medidas gerais e especiais adequadas ao cumprimento dessa
obrigação
○ O direito deve ser interpretado à luz das finalidades da diretiva, de forma a
cumprir o art. 288º/ 3º parágrafo do TFUE. No entanto, conhece alguns
limites:
■ O respeito pelos princípios gerais de direito, pelo que não pode haver
interpretação conforme se do resultado dessa interpretação resultar
uma interpretação que viole os princípio gerais de direito
■ A interpretação conforme não pode servir de fundamento para uma
interpretação contra legem do direito nacional
■ Não pode servir de fundamento para a responsabilidade penal dos
particulares

● Responsabilidade dos estado-membros por violação do DUE

○ A circunstância de uma diretiva não possuir efeito direto horizontal não


significa que um particular fica desprovido da tutela dos seus direito, pelo
que pode sempre intentar uma ação fundada em responsabilidade contra o
estado-membro que não implementou a diretiva, permitindo obter uma
compensação dos danos sofridos pela não implementação da diretiva

○ 3 requisitos para haver lugar à indemnização:


■ Regras de direito violadas têm de ter por objeto conferir direitos
objetivos aos particulares
■ A violação por parte do estado-membros tem de ser suficientemente
caracterizada
■ Tem de existir nexo de causalidade direto entre a obrigação que
vincula o estado-membro e os danos sofridos pelos lesados

○ Em princípio é aos órgãos jurisdicionais nacionais que compete determinar se


estão preenchidos os requisitos para averiguar se há ou não responsabilidade
civil extracontratual
■ Este tipo de ações são intentadas juntos dos tribunais nacionais. Por
vezes, como pode estar em causa a interpretação do direito da união,
o TJ, por via do mecanismo reenvio prejudicial, pode pronunciar-se.

Neste caso, o TJ não tem dados suficientes para saber se o centro integra ou não o
conceito amplo de estado mas, em princípio, integra, uma vez que as funções de segurança
social integram as funções clássicas dos estados, isto é, esta é uma função integrada nas
funções soberanas dos estados. Seria também irrelevante saber se a relação era regida por
direito privado ou público e se não fosse possível reconduzir o centro ao conceito alargado

80
de estado seria sempre possível tutelar a posição de D através da interpretação conforme ou
da responsabilidade civil extracontratual do estado por violação do DUE.

II - efeito direto vertical

1. Poderia Maria invocar contra o Município de Wuppertal o n.º 1 e 2


do artigo 7.º da Diretiva 2003/88/CE, sabendo que o n.º 2 do
referido artigo dispõe que «O período mínimo de férias anuais
remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira,
exceto nos casos de cessação da relação de trabalho»?

Esta questão implica saber se a legislação nacional é ou não conforme com o DUE,
isto é, saber se há uma transposição incorreta da diretiva; saber se a norma tem efeito
direto e saber qual a natureza da relação em causa.

Primeiramente, a norma em causa preenche os requisitos do efeito direto, sendo


incondicional, prescritiva, suficiente e precisa.

Além disso, a legislação alemã não é compatível com o DUE, considerando que o
direito a férias é um princípio de direito social de DUE, previsto na diretiva, que não pode ser
derrogado pelos estados-membros e cuja concretização pelas autoridades nacionais só pode
ser efetuada dentro dos limites da diretiva. A isto acresce que, na sua vertente financeira,
este direito tem natureza estritamente patrimonial, de modo a que a morte do interessado
não pode privá-lo desse património retroativamente e, consequentemente, deve ser
entregue àqueles que por via sucessória passem a gozar do mesmo.

Por fim, a relação do caso é de natureza pública, pelo que a haver efeito direto este
seria vertical.

Assim, parece que Maria podia invocar este artigo contra o município, garantindo
assim a atribuição do benefício financeiro e o consequente afastamento da legislação
nacional contrária ao DUE, fazendo uso de um efeito direto de substituição.

Note-se, porém, que a obrigação de afastamento do juiz nacional do direito interno


só existiria se não fosse possível recorrer à interpretação conforme. Neste caso, resulta do
próprio enunciado, que esta não seria possível, uma vez que resultaria numa interpretação
contra legem.

81
2. Martina Broßonn encontra-se na mesma situação, porém, o seu marido era,
à data do falecimento, trabalhador da empresa privada Willmeroth.

a) Poderia Martina invocar contra a entidade empregadora o artigo 7.º da


Diretiva 2003/88/CE?

Martina não poderia invocar o artigo 7º da diretiva contra a entidade empregadora,


uma vez que as diretivas não têm efeito direto horizontal.

b) Sabendo que o n.º 2 do artigo 31.º da CDFUE dispõe que «Todos os


trabalhadores têm direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a
períodos de descanso diário e semanal, bem como a um período anual de férias
pagas», poderia Martina invocar em juízo, para lhe ser reconhecido e atribuído
o direito a retribuição financeira, consequentemente desaplicando-se a
legislação nacional alemã, o artigo 31.º, n.º 2 da CDFUE?

Esta questão equivale a perguntar se a CDFUE tem efeito direto horizontal.


Inicialmente, a doutrina parecia rejeitar essa possibilidade, porém o TJ, em alguma
jurisprudência (essencialmente a partir de 2018) veio reconhecer o efeito direto horizontal
de algumas das disposições da Carta. Assim, dados direito fundamentais previstos na Carta
aplicam-se também às relações entre particulares.

Neste sentido, o TJ invoca que o artigo 51º, ao contrário do que se sucede no artigo
288º/3º parágrafo do TFUE (respeitante às diretivas) não exclui os particulares como
destinatários da Carta, sendo apenas omisso quanto a saber se os particulares podem ou
não ser destinatários da mesma.

Assim, o TJ reconhece efeito direto horizontal a certos direitos fundamentais da Carta


que se reconduzem a princípio gerais de direitos, dentro dos quais, os princípios de direito
social da UE

Para que as normas da Carta possam ter efeito direto horizontal têm de estar
reunidas duas condições:
● A norma tem de conceder um direito subjetivo
● A norma, atendendo ao seu conteúdo, tem de ser incondicional e suficientemente
precisa
○ A norma é incondicional quando é aplicada sem reservas e condições, não
necessitando de ouras medidas por parte dos estados-membros ou da UE
○ É suficientemente precisa quanto enuncia uma obrigação em termos
inequívocos

82
Posto isto, o TJ diz que é este o caso do artigo 31º/2, que tem caráter imperativo e
incondicional não carecendo, quanto à existência do direito de qualquer intervenção do
legislador nacional ou da EU, que so é chamado a concretizar as condições de exercício, não
podendo pôr em causa o próprio direito e o seu núcleo essencial.

Também aqui, se não fosse possível uma interpretação conforme do direito nacional
à luz da Carta, o juiz estava obrigado pelo princípio do primado a afastar a lei nacional e
aplicar o artigo 31º/2 da Carta, fazendo decorrer o direito da autora dessa norma- efeito
direto de substituição.

III

1. B decide, com base na Diretiva, cujo artigo 2.º não encontrava amparo em
qualquer norma nacional, acionar a Secretaria de Estado competente.
Considerando a natureza da Secretaria de Estado, analise a possibilidade de
invocação da Diretiva neste litígio.
Neste caso, a natureza da relação é vertical, pois a secretaria de estado integra o
governo; a norma tem efeito direto, pois impõe uma obrigação que tem como correspetivo
o direito para um particular, parece ser prescritiva, suficiente e incondicional; e estamos
perante uma não transposição da diretiva. Assim, B poderia invocar a diretiva em juízo num
tribunal nacional.

2. X, proprietária da pedreira, entende que o Tribunal nacional nunca


poderia aplicar as disposições da Diretiva, dado que isso teria por
consequência privar X dos seus direitos enquanto proprietário. Quid iuris

No caso concreto estamos perante uma relação triangular (entre o Estado [E], o dono
da pedreira [X] e B). Deste modo:

● B e X têm uma relação horizontal


● B e E têm uma relação vertical
● E e X têm uma relação vertical

Assim, poder-se-ia chegar à conclusão que B ficaria privado de usar a norma da


diretiva, porque isso teria consequências negativas para um terceiro que é um particular
porém, não é esse o entendimento do TJ. O que se verifica aqui é o efeito direto horizontal
incidental (também designado de efeito direto indireto ou colateral), isto é, como já referido,
estamos perante uma situação em que, por força da existência de uma relação triangular, a
norma invocada contra o estado vai causar efeitos negativos/adversos a um terceiro
particular.

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Neste caso, o estado estaria obrigado a realizar a avaliação de impacto, o que
obrigaria X a suspender a exploração da pedreira ou, se o resultado da avaliação for
negativo, terminar com a mesma. Todavia, estas são apenas repercussões negativas do
efeito direto vertical, coisa diferente seria se em causa estivesse o cumprimento por X de
uma obrigação, ou seja, se a norma da diretiva, ainda que invocada contra o estado,
obrigasse X a algo pelo que aí estaríamos perante efeito direto horizontal e a invocação não
seria possível.

Concluindo, o TJ veio entender que o efeito direto horizontal incidental é irrelevante


e pode um particular continuar a invocar uma norma contra o estado, ainda que estejam em
causa efeitos adversos contra outro particular. Assim, no fundo, entende-se que se continua
no domínio de uma relação vertical e por isso, B poderia invocar a diretiva.

Ficha prática nº 9

1. Deveria o Tribunal Administrativo da Sardenha recorrer ao mecanismo


previsto no art.º 267.º do TFUE se a CM tivesse colocado as mesmas questões
prejudiciais junto daquele órgão jurisdicional? A sua resposta seria diferente,
caso as questões prejudiciais colocadas respeitassem à validade da própria
Diretiva?

O caso prático reporta-se ao mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo


267º do TFUE.

O reenvio prejudicial corresponde a um instrumento de cooperação judiciária, sendo


que o TJ nos diz que é um mecanismo de diálogo "juiz a juiz", entre os juízes nacionais (os
órgãos jurisdicionais nacionais), a linguagem dos tratados e o TJUE.

Assim, coloca-se a questão: para que serve o reenvio prejudicial?

● Por um lado, para garantir a uniformidade na aplicação do DUE em todos os


estados-membros
○ E dessa forma garantir o princípio da uniformidade

● Por outro, tem subjacente a ideia de que a cada direito conferido pelo ordenamento
jurídico da UE deve corresponder um meio judicial para o efetivar, ainda que esse

84
meio de tutela não provenha do sistema jurídico da UE, onde o acesso dos
particulares é muito limitado.
○ E dessa forma garantir o princípio da tutela jurisdicional efetiva

Note-se que não existe nenhuma relação de hierarquia entre o TJUE e os tribunais
nacionais (a ordem jurídica nacional e a ordem jurídica da UE são autónomas), o que
significa que o TJ não tem poderes para anular uma norma nacional ainda que essa norma
contrarie o DUE, nem tem poderes para rever ou alterar uma decisão proferida pelos
tribunais nacionais.

A intervenção do TJ não tem natureza contenciosa, isto é, nunca se substitui ao órgão


jurisdicional nacional que recorre ao reenvio. No máximo fixa a interpretação de uma norma
de DUE ou aprecia a sua validade e pode até fornecer ao juiz nacional os elementos que ele
necessita para operar a subsunção dos factos ao direito aplicável ao caso concreto, mas essa
tarefa é uma competência exclusiva do juiz nacional e nunca do TJ. Resumindo, a última
palavra/decisão do concreto litígio é sempre da competência do órgão jurisdicional nacional
e nunca da competência do TJ.

Claro está que se o Tribunal nacional submeter questões prejudiciais do TJUE fica
vinculado às respostas que o TJUE der , mas a decisão final é sempre do juiz nacional.

O juiz nacional, sendo o juiz comum do DUE (por força do princípio da aplicação
descentralizada do DUE) é muitas vezes chamado (oficiosamente - por sua própria iniciativa -
ou a requerimento das partes), a aplicar/interpretar uma norma de DUE (quer se trate de
normas de direito originário, quer se trate de normas de direito derivado).
● Tal acontece por força da aplicabilidade direta (no caso dos regulamentos), por força
do princípio do primado, do efeito direto ou ainda por força do princípio da
interpretação conforme.

Confrontado com essa tarefa, podem surgir dúvidas ao juiz nacional sobre:
● a interpretação da norma de DUE (sobre o seu sentido e alcance);
● a compatibilidade de uma norma nacional com DUE (o que não deixa de ser uma
questão de interpretação do DUE, de saber se o DUE permite um regime nacional
daquele género);
● quanto à validade de um ato de direito derivado do DUE.

Assim, se este mecanismo não existisse e por isso se cada juiz, mesmo que tivesse
dúvidas, pudesse decidir como bem entendesse, teríamos uma situação em que as normas
de DUE teriam um significado e alcance distinto entre os vários estados-membros e mesmo
dentro do mesmo estado-membro.

85
Note-se que quanto às questões prejudiciais, como o próprio nome indica, estas
precisam de ser prejudiciais, ou seja, terem relevo ou serem necessárias à decisão da
questão principal/da causa.
● Temos um litígio perante um tribunal nacional e surge uma questão quanto ao DUE.
A questão é prejudicial, se a resposta que se dá ao litígio está dependente da
resposta que se dá à questão prejudicial (a resposta do reenvio prejudica a resposta
ao litígio).

Além disso, em matéria de reenvio, uma das questões mais relevantes é determinar o
que é um "órgão jurisdicional nacional". A tarefa de determinar a interpretação do que é um
"órgão jurisdicional nacional" poderia ficar a cargo dos direitos nacionais (cada
estado-membro definiria a expressão no seu ordenamento jurídico) ou o DUE poderia criar
um conceito autónomo de órgão jurisdicional nacional. Quanto à questão, o TJ apontou para
esta segunda hipótese e apesar de não ter formulado até hoje uma definição de "órgão
jurisdicional nacional" tem apontado os critérios que um órgão jurisdicional nacional tem de
cumprir para ser considerado como tal (que se agrupam em critérios materiais, orgânicos e
processuais).

Não obstante, de um modo resumido, o preenchimento da noção de órgão


jurisdicional nacional está dependente de 4 fatores:

1. A composição do órgão não deve ser deixada à livre escolha das partes
2. O órgão deve funcionar de acordo com o princípio do contraditório
3. O órgão deve ser chamado a aplicar normas de direito.
○ Isto é, a decidir segundo o direito e não segundo a equidade e as partes
devem-se dirigir ao órgão como instância judiciária de resolução de litígios
4. O órgão deve ser independente, permanente, ter origem legal e ser de jurisdição
obrigatória para as partes

Com base nestes fatores o TJ já rejeitou questões prejudiciais por exemplo de


árbitros privados, comissões consultivas e de tribunais que tramitam processos de jurisdição
voluntária, mas também já aceitou questões prejudiciais suscitadas por tribunais arbitrais
que preenchem certas características, como no caso Ascendi (em que a questão prejudicial é
colocada pelo Tribunal Arbitral Tributário).

Os órgãos jurisdicionais nacionais podem colocar ao TJ dois tipos diferentes de questões,


que dão origem a duas modalidades diferentes de reenvio:

● Reenvio prejudicial de interpretação (267º/a e 267º/b/2ª parte)


○ Os órgãos jurisdicionais nacionais pedem ao TJ que esclareça o sentido
material, o alcance ou os efeitos das normas de direito originário ou derivado
da UE

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○ Na alínea b) do referido artigo, o conceito de "atos adotados" tem sido
interpretado pelo TJ de modo muito lato para incluir recomendações,
resoluções do conselho, princípios gerais de direito e acórdãos do próprio TJ
(ex.: o esclarecimento de uma decisão anterior sua), ou mesmo se forem
questões prejudiciais para interpretar acordos internacionais concluídos pela
UE e atos adotados nesse âmbito

● Reenvio prejudicial de validade (267/b)/1ª parte)


○ Os órgãos jurisdicionais nacionais pedem ao TJ que apreciem a
legalidade/validade de um ato de direito secundário.
○ Salienta-se que o reenvio de validade nunca se aplica a normas de direito
originário (o TJ não pode avaliar a validade do próprio ato que o funda).

Porém, nem todo o direito derivado pode ser objetivo do reenvio prejudicial (de
validade ou de interpretação). Não estão abrangido pelo artigo 267º todos os setores para
os quais o TJ não tem competência, ou seja:
● a PESC
○ nos termos do artigo 275º TFUE, com as exceções aí previstas
● certos domínios do ELSJ
○ nos termos do artigo 276º TFUE

No caso em apreço, não se coloca a questão de estarmos ou não perante um órgão


jurisdicional nacional e além disso, estamos perante um reenvio de interpretação.

NOTAS: se a questão colocada fosse a de avaliar a validade de uma norma nacional à luz de
uma diretiva, o tribunal de justiça não tem competência para o fazer. O TJ apenas declara a
conformidade ou a desconformidade da norma nacional com o DUE, depois compete ao
órgão jurisdicional atuar em conformidade com a decisão através da desaplicação da norma
ou através da interpretação conforme, se fosse possível.
Quando o juiz procede à questão para ao TJ o processo principal fica suspenso a aguardar a
decisão da questão prejudicial

Qualquer órgão jurisdicional nacional pode submeter questões prejudiciais ao TJ,


contudo nos termos do artigo 267º/3º parágrafo se a questão prejudicial for suscitada
perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso
ordinário de acordo com as regras de direito nacional, então o órgão é obrigado a proceder à
questão para o TJ. Assim, surgem mais duas divisões do reenvio prejudicial, desta vez em
relação à voluntariedade do envio das questões:

● Reenvio facultativo
○ Art.º 267/2º parágrafo

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○ Este é o regime regra e reconhece aos órgão jurisdicional nacional a mais
ampla faculdade de suscitar questões ao TJ relacionadas com a interpretação
ou validade de normas do DUE
● Reenvio obrigatório
○ Art.º 267/3º parágrafo
○ Se se tratar de um órgão jurisdicional nacional que decida em última
instância, este está obrigado a proceder ao reenvio

NOTA: decorre da jurisprudência ainda mais uma modalidade/situação de reenvio


obrigatório (não desenvolvida em aula)

A este propósito, tem-se colocado uma questão na doutrina que se relaciona com a
identificação dos tribunais que estão obrigados a proceder ao reenvio dando origem a duas
teorias:

● Teoria orgânica
○ Só os tribunais nacionais que tivessem colocados no topo da hierarquia
judicial é que estariam obrigados a submeter uma questão prejudicial (no
caso português o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional)

● Teoria do litígio concreto


○ É irrelevante a posição que o tribunal ocupa na hierarquia jurídica mas sim
que, naquele caso concreto, ele decida sem possibilidade de recurso
ordinário para uma instância superior
■ Por exemplo, em Portugal, temos um sistema de alçadas que limita a
possibilidade de recurso para tribunais superiores. A alçada está
relacionada com o valor que é atribuído a uma ação, ou seja, todas as
ações tem de ter um valor económico e em função do mesmo
conjugado com a alçada, define-se até onde se pode recorrer. A alçada
do tribunal de primeira instância é de 5 000 euros e a alçada do
tribunal da relação é de 30 000 euros. Assim, se uma ação tiver um
valor inferior aos definidos não se pode recorrer a um tribunal
superior (uma ação com um valor inferior a 5 000 euros não é
suscetível de recurso ordinário para um tribunal da relação).
○ No fundo, de acordo com a teoria do litígio concreto o que interessa saber é
se o tribunal decide ou não em última instância.
○ É esta a teoria que tem maior adesão e que corresponde melhor à letra do
artigo 267º TFUE

Posto isto, conclui-se, quanto à primeira questão do enunciado, que o tribunal não
estava obrigado a enviar a questão ao TJ e o reenvio seria facultativo.

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Note-se que a decisão de suscitar uma questão prejudicial perante um TJ prende-se
exclusivamente ao juiz nacional não obstante da pronúncia do TJ poder ser requerida pelas
partes, da mesma forma que é apenas e só ao juiz nacional que compete identificar a
existência de uma questão prejudicial de DUE. Por outras palavras, quer se trate de um
reenvio facultativo ou obrigatório o juiz nacional atua com autonomia na deteção e
afirmação da existência de uma questão prejudicial de DUE. A única diferença reside no
seguinte: se se tratar de um tribunal que decide em última instância, uma vez afirmada a
existência da questão prejudicial ele está obrigado a reenviá-la ao TJ e se se tratar de um
tribunal que não decide em última instância o juiz pode não enviar a questão o TJ.

Quanto à segunda questão do enunciado, à primeira vista parece que o Tribunal de


Sardenha não seria obrigado a tal, não sendo um tribunal que decidia em última instância.
Porém, o TJ, no acórdão FOTO-FROST, veio desenvolver jurisprudência que estabelece o
seguinte:
● Estando em causa questões de validade de uma norma de DUE e se o órgão
jurisdicional nacional se inclinar para a solução da invalidade da norma, então o
órgão jurisdicional nacional está obrigado a proceder ao reenvio para o TJ ainda que
no caso concreto a decisão admita recurso ordinário.
No fundo, pode-se dizer que o TJ, com esta jurisprudência, faz uma interpretação
contra legem do artigo 267º: com os argumentos da necessidade de uniformidade na
aplicação do DUE; da coesão do sistema de proteção jurisdicional da UE, na medida em que
só o TJ tem competência para controlar a validade dos atos de DUE; da segurança jurídica;
do reforço do princípio da legalidade, entre outros.

Assim, se a questão levantada tivesse sido de validade da diretiva e o juiz se


inclinasse para a solução da invalidade, estaria obrigado a proceder ao reenvio para o TJ. Se
se inclinasse para a validade, não estaria obrigado ao reenvio.

2. Entretanto, em novembro de 2018, no âmbito do mesmo processo, a CM


pediu ao Conselho de Estado que submetesse ao Tribunal de Justiça novas
questões prejudiciais, o que acabaria por alterar o objeto do litígio num
momento em que as regras do direito processual italiano já não o permitiam.
De acordo com os Tratados e com a jurisprudência fixada, refira se o Conselho
de Estado estava ou não obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça as novas
questões colocadas pela recorrente.

Por outras palavras questiona-se se estará, ainda assim, o conselho de estado (última
instância) obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando já não é possível a luz do
direito nacional alargar o âmbito de litígio.

Os perigos de se aceitar essa possibilidade são dois:

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● A possibilidade das partes se servirem do reenvio obrigatório para atrasarem a
resolução do litígio e colocar em causa o efeito útil da tutela jurisdicional efetiva e o
direito de uma decisão em prazo razoável
● A possibilidade de conseguirem, por via do DUE, algo que no direito nacional se
estava a vedar (alargar o objeto do processo em curso)

A resposta do TJ vem desenvolver a doutrina do ato claro, introduzida pela primeira


vez no acórdão CILFIT. Esta doutrina surge apara evitar que o TJ seja sobrecarregado com
processos de reenvio prejudicial obrigatório. Segundo esta jurisprudência, um órgão
jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso ordinário, só está
isento da obrigação de reenvio de questões prejudiciais de interpretação em 3 situações:

● A questão suscitada não é pertinente ou necessária à boa decisão da causa principal,


ou seja, a questão suscitada não é verdadeiramente uma questão prejudicial
● A disposição do DUE já foi objeto de interpretação por parte do TJUE
○ O TJUE já se pronunciou sobre a interpretação da norma anteriormente
● Quando a correta aplicação do DUE impõe-se com tal evidência que não há lugar a
nenhuma dúvida razoável
○ De acordo com a expressão In claris non fit interpretatio (não se faz
interpretação nas coisas claras)

Neste último ponto, o TJ exige ao tribunal nacional que, antes de decidir pela clareza
deve convencer-se que essa mesma clareza se impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais dos
outros estados-membros e ao próprio TJ
● Quando o juiz nacional faz este exercício, não vale apenas a sua
interpretação/convicção, tem de se convencer que todos os tribunais de todos os
estados-membros e o TJ chegariam à mesma conclusão. Se, por exemplo, noutro
estado-membro a questão não fosse tão clara a teoria do ato claro já não vale

Neste sentido, a doutrina enunciou três critérios interpretativos para auxiliar o juiz
neste exercício:
● O facto dos atos da UE serem traduzidos em todas as línguas e fazerem fé em todas
elas implica que se faça uma comparação entre elas para verificar se há alguma
divergência ou dificuldades interpretativas entre elas
● O facto da UE ter uma terminologia própria torna necessário que se analise se os
conceitos do DUE coincidem com os de direito nacional
● O facto de cada disposição de DUE dever ser colocada no seu contexto e interpretada
à luz das restantes disposições e das suas finalidades (deve-se fazer uma
interpretação teleológica)

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Se com a ajuda destes critérios interpretativos, mesmo assim, o juiz concluir que não
existem elementos para se chegar a uma dúvida razoável, o juiz poderá abster-se de
submeter a questão.

Neste caso concreto, o TJ vem dizer que, se de acordo com o direito nacional o objeto
de litígio não pode ser alterado então a questão não se pode ter como pertinente ou
necessária para a questão em causa, isto desde que se respeite o princípio da equivalência e
efetividade, ou seja, não é permissível uma questão prejudicial de DUE da mesma forma que
não é permissível uma questão prejudicial de direito nacional.

Assim, o conselho de estado estava dispensado de proceder ao reenvio prejudicial.

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