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Direito da União Europeia

Prof. Doutora Maria Luísa Duarte

Aula de 14 de Abril de 2020

Sumário: Pontos 9 e 10 do Programa

I. Tópicos de análise

Procedimentos de decisão, separação de poderes e sistema de governo


na União Europeia: atipicidade v. tipicidade
- Sistema clássico da tripartição de poderes (legislativo/executivo/judicial)
que associamos ao Estado de direito, como instrumento fundamental de
limitação jurídica do Poder (com origem na teoria de Montesquieu), não
funciona qua tale no sistema jurídico-institucional da UE. Temos
instituições que, embora sujeitas ao princípio da competência e do respeito
pelo equilíbrio institucional (v. artigo 13.º, n.º 2, TUE), acumulam poderes
típicos da função legislativa e da função executiva, como é caso do Conselho
e, em certa medida, da Comissão. Existe separação de poderes numa acepção
funcional e política, mas de acordo com um modelo de bipartição de poderes,
mais próximo do sistema constitucional britânico que assenta na clara
distinção entre, por um lado, as instituições que cuidam as “matters of
policy” (órgãos de decisão política) e, por outro lado, os tribunais que
decidem sobre as “matters of law”. Esta dualidade primordial também a
encontramos no quadro institucional da UE que, apesar da atipicidade do
modelo decisório, respeita (e faz respeitar por parte dos EM) a linha que
separa a função política assumida, entre outros, pelo Conselho Europeu,
pelo Conselho, pela Comissão, pelo PE, pelo BCE da função jurisdicional,
confiada ao TJUE e aos tribunais dos EM (v. artigo 19.º, n.º 1, TUE).
- Qualquer tentativa de caracterização do sistema de governo da UE enfrenta
a dificuldade de um modelo que é, ao mesmo tempo, atípico e muito
permeável às adaptações impostas pela alteração da correlação de forças
entre a componente integrativa ou supranacional e a componente
intergovernamental (mutações). Existem três factores que, no período pós-
Tratado de Lisboa, influenciam, de modo particular, a análise do sistema de
governo da UE:
a) a coexistência de três fontes de legitimação do poder: a democrática, a
intergovernamental e a eurocomunitária, supranacional ou integrativa;
b) o Tratado de Lisboa alterou a balança de poderes, desenhando um novo
equilíbrio que se apoia na centralidade da legitimidade
intergovernamental (bem ilustrada no estatuto do Conselho Europeu como
super-instituição), ladeada, num plano politicamente secundarizado, pela
legitimidade democrática (PE) e pela legitimidade integrativa (Comissão)
c) a prática política, empurrada pelos cenários da crise financeira de 2008,
da crise dos refugiados a partir de 2015 e, agora, da crise provocada pela
doença COVID-19, aproveitando alguma indefinição nos Tratados sobre
o papel do Conselho Europeu, libertou os “demónios” de um governo
directorial, ora apoiado na vontade do eixo franco-alemão (e dando
expressão à crescente hegemonia da Alemanha, poderíamos, com alguma

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dose de ironia, apontar a preocupante existência de um novo eixo, o eixo
alemão-germânico), ora apoiado na suposta vontade de todos os EM pela
via da exigência do consenso, seja no que se refere directamente ao
Conselho Europeu (v. artigo 15.º, n.º 4, TUE) seja noutras instâncias que
replicam este modelo de decisão (como é o caso paradigmático do
Eurogrupo), o que constitui uma perigosa derrogação à deliberação por
maioria, inscrita no roteiro da integração eurocomunitária, e que é um
princípio basilar de construção de decisões e expressão de uma vontade
democrática dos Estados e dos povos
- Importa não confundir o elemento intergovernamental do sistema
eurocomunitário de decisão com a deturpação ou corrupção através da
chamada política do directório, isto é, o poder exercido por um grupo muito
restrito de Estados, com um auto-proclamado estatuto de “grandes” ou
mesmo hegemónicos. As decisões mais ou menos informais do directório
minam o elemento fundamental que, ao longo de décadas de integração
europeia, se revelou como o verdadeiro agente congregador da vontade dos
EM, elemento fundamental que se concretiza sob a forma do princípio da
igualdade e do espírito de confiança recíproca. A passagem do modelo do
intergovernamentalismo igualitário para um modelo de
intergovernamentalismo inigualitário e directorial pode explicar-se, no que
se refere à sua dimensão normativa, como a consequência de, por um lado,
uma certa indefinição das regras previstas no estatuto jurídico da UE após o
Tratado de Lisboa (flexibilidade) e, por outro lado, o resultado de uma certa
vulnerabilidade do sistema instituído pelos Tratados quando confrontado
com fenómenos há muito identificados na Teoria Constitucional de

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prevalência da dinâmica política sobre a regulação normativa (mutação
constitucional ou estatutária). No que respeita ao actual sistema de governo
da UE, mais do que em relação a qualquer outro aspecto abrangido pelos
Tratados, o manifesto desequilíbrio de poderes entre Estados, impulsionado
pela solução do directório, carece de base nos Tratados, enfraquece a lógica
pactícia do processo de revisão dos Tratados do artigo 48.º TUE e constitui,
em última análise, um exemplo de confinamento reiterado da União de
direito por razões nada virtuosas de realpolitik.
- Outro aspecto que importa considerar quando procuramos entender o
funcionamento do sistema de governo da União, que é igualmente uma
consequência da atipicidade do modelo governativo, é o relativo à existência
de várias presidências que, pelo menos em parte, actuam num contexto de
sobreposição/concorrência de poderes:
• Presidente do Conselho Europeu
• Presidente da Comissão
• Troika da presidência do Conselho
• Presidência do Conselho pelo EM que a exerce no período do semestre
• Alto Representante da União, que preside ao Conselho dos Negócios
Estrangeiros
• Presidente do Eurogrupo
- Seis presidências, das quais quatro são permanentes. Os maiores riscos de
descoordenação entre as diferentes presidências, com impacto muito
negativo no plano político e no plano económico, têm-se verificado, por um
lado, na política externa da União e, por outro lado, no quadro da política
económica e financeira. Por estes dias de pandemia, a Presidente da

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Comissão, a alemã Ursula von der Leyden, tem conseguido uma posição de
protagonismo no palco europeu, recuperando para a Comissão uma
visibilidade e autoridade que, claramente, foi perdida no mandato de Jean-
Claude Juncker. O que será mais decisivo para esta importante alteração que
favorece a posição relativa da Comissão e lhe proporciona a iniciativa
política que o modelo originário dos Tratados lhe reconhecia: a
personalidade da presidente ou as circunstâncias objectivas e políticas?
- Se na perspectiva do modelo político de governação da União Europeia a
nota mais saliente é a da atipicidade, conjugada com a flexibilidade, já no
que se refere aos procedimentos de decisão impera o princípio da tipicidade
como manifestação ou concretização do princípio da legalidade. Os
Tratados, através das chamadas bases jurídicas, definem os diferentes
procedimentos de decisão, mediante a caracterização, por vezes muito
pormenorizada, como acontece com o procedimento legislativo ordinário (v.
artigo 294.º TFUE) ou com o procedimento de vinculação internacional (v.
artigo 218.º TFUE), das fases e sub-fases, dos intervenientes institucionais,
formalidades exigidas, maxime regras de deliberação, natureza dos actos
praticados, etc.
- o Tratado de Lisboa teve a virtude de arrumar uma pluralidade caótica que
se formou e avolumou com as sucessivas revisões dos Tratados, desde o Acto
Único Europeu até ao Tratado de Nice. Para além da existência de um
número excessivo de procedimentos, a incerteza sobre a escolha do
procedimento de decisão adequado em função da matéria e do acto jurídico
a adoptar nascia também da indefinição sobre o traçado da linha que
delimitava as competências da União relativamente às competências de

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decisão mantidas na esfera estadual. Não admira que uma das questões que
mais alimentou a discórdia entre instituições, levada com frequência ao
escrutínio judicial do Tribunal de Justiça, fosse o problema da escolha da
base jurídica: aprovar uma directiva ou um regulamento com fundamento no
artigo x ou no artigo y dos Tratados era determinante para saber qual o
procedimento de decisão e o âmbito / intensidade dos poderes jurídicos do
decisor da União sobre a matéria em causa. O chamado contencioso da base
jurídica ainda justifica nas situações mais complexas o recurso ao TJ (veja-
se, a título de exemplo de casos recentes, um da iniciativa da Comissão e
outro por instauração do Conselho – v. acórdão TJUE, de 20.11.2018,
Comissão c. Conselho, Proc. C-626/16 e C-559/16; e acórdão TJUE, de
6.10.2015, Conselho c. Comissão, Proc. C-73/14), mas o Tratado de Lisboa
introduziu elementos fundamentais de clarificação em dois planos
interdependentes: 1) a definição de princípios e directrizes de funcionamento
de um verdadeiro sistema eurocomunitário de competências; 2) a tipificação
dos procedimentos de decisão, em particular no domínio da regulação
normativa. Deixamos o que designamos como “sistema eurocomunitário de
competências” para uma análise em momento ulterior de explanação das
matérias (v. infra Capítulo 5, e ponto 22 do Programa). Tratamos na próxima
aula da caracterização de três procedimentos que seleccionámos pela sua
importância de um conjunto ainda razoavelmente vasto de tipos de decisão
procedimental previstos nos Tratados:
- procedimento de aprovação de actos legislativos
- procedimento de aprovação de actos não legislativos
- procedimento de vinculação internacional da União Europeia

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II. Leituras
• Maria Luísa DUARTE, União Europeia..., cit., p. 228-233; p. 293-299.

Aula de 16 de Abril de 2020

Sumário: Pontos 11, 12 e 13 do Programa

I. Tópicos de análise

11. Procedimento de aprovação de actos legislativos


- O artigo 294.º TFUE regula o procedimento-regra designado como
procedimento legislativo ordinário (PLO)*, para o qual remete a maioria das
bases jurídicas que autorizam a aprovação de actos legislativos pelo decisor
da União. Nos termos do artigo 289.º, n.º 1, TFUE:
“O processo legislativo ordinário consiste na adopção de um
regulamento, de uma directiva ou de uma decisão conjuntamente pelo
Parlamento Europeu e pelo Conselho, sob proposta da Comissão” (ênfase
acrescentada).
Os procedimentos legislativos especiais (PLE) são aplicáveis nos casos
específicos expressamente previstos pelos Tratados e, nos termos do artigo

*
O texto dos Tratados, na versão oficial portuguesa, usa a expressão processo legislativo ordinário e
processo legislativo especial; não obstante, por fidelidade à terminologia jurídica portuguesa, preferimos
falar em procedimento e não em processo, porque, assumindo a dualidade entre procedimento e processo,
que nos parece de manter, o processo se adequa a identificar o ciclo de início, desenvolvimento e formação
da decisão judicial (direito processual) ao passo que o procedimento se refere aos outros tipos de decisões,
administrativa e legislativa.

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289.º, n.º 2, TFUE, são regulamentos, directivas ou decisões aprovadas pelo
PE, com a participação do Conselho, ou aprovadas pelo Conselho, com a
participação do PE (v. artigo 81.º, n.º 3, TFUE). O aspecto distintivo do
procedimento legislativo especial é a aprovação por uma única instituição do
duo legislativo formado pelo PE e pelo Conselho, constituindo, por isso, um
desvio à regra da co-decisão que inspirou o PLO. O artigo 289.º, n.º 2, TFUE,
estabelece um padrão de PLE que não abrange todas as variantes previstas
nos Tratados (v.g. 226.º, § 3.º, TFUE, acto próprio do PE, após aprovação do
Conselho e da Comissão).
O artigo 48.º, n.º 7, TUE, permite a revisão simplificada dos Tratados,
mediante decisão do Conselho Europeu, no sentido de substituir a exigência
do PLE pela regra do PLO. Uma tal alteração, que não requer a ratificação
pelos EM, pressupõe o acordo tácito de todos os parlamentos nacionais,
bastando a oposição de um parlamento nacional para inviabilizar a adopção
de decisão de revisão pelo Conselho Europeu (v. artigo 48.º, n.º 7, § 3.º, in
fine, TUE).
Nos termos do artigo 295.º TFUE, o trio institucional, formado pela
Comissão (autora da proposta de acto legislativo) e pelo PE e Conselho que
aprovam o acto legislativo, pode celebrar acordos interinstitucionais que,
respeitando os Tratados ( o que exclui soluções de tipo derrogatório), podem
desenvolver, especificar e adaptar as regras previstas no artigo 289.º, n.º 1,
TFUE sobre o PLO, bem como, assim interpretamos o alcance do artigo
295.º TFUE, as regras constantes do artigo 289.º, n.º 2, TFUE e de bases
jurídicas avulsas sobre os PLE. Tais acordos interinstitucionais,

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manifestação privilegiada do princípio da cooperação, podem revestir
carácter vinculativo.
- O PLO é o sucessor de um procedimento de decisão que, na versão
originária dos Tratados, apresentava uma estrutura básica em três
andamentos:
o proposta da Comissão
o parecer do PE, com eventual consulta de outros órgãos
o deliberação do Conselho
A necessidade de adequar os poderes do PE ao seu estatuto de instituição
parlamentar dotada de legitimidade democrática exigiu uma solução de
recorte muito difícil: por um lado, valorizar o papel do PE que deixaria de
ser um órgão de mera consulta e passaria a partilhar com o Conselho a
responsabilidade pela decisão normativa; por outro lado, dada a oposição dos
EM a uma solução de “emancipação legislativa” do PE, a simplicidade
originária teve de ser sacrificada em nome de um equilíbrio institucional
entre PE e Conselho, envolvendo também a Comissão, que deu lugar a um
procedimento labiríntico, com fases e sub-fases, e previsivelmente
demorado, muito dependente da negociação permanente e abertura para o
acordo entre os vários intervenientes que representam, recorde-se, a
legitimidade democrática, a legitimidade intergovernamental e a
legitimidade integrativa. A chamada trilogia institucional do PLO
(Comissão, Conselho e PE).
Em termos muito sumários, vamos percorrer as várias fases do PLO (v.
artigos 293.º e 294.º TFUE

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1. Proposta da Comissão
a) Um direito exclusivo de iniciativa legislativa (v. artigo 17.º, n.º 2,
TUE), robustecido por garantias: a Comissão não pode ser substituída
no exercício deste direito por outras instituições, embora possa ser
instada pelo PE (v. artigo 225.º TFUE) ou pelo Conselho (v. artigo
241.º TFUE) a submeter as propostas adequadas, fórmula que deve ser
interpretada no sentido de abranger as propostas de actos legislativos;
se a Comissão ignorar a solicitação que lhe foi dirigida pelo PE e /ou
pelo Conselho, poderá ser demandada por estas instituições perante o
TJUE no quadro do recurso por omissão (v. artigo 265.º TFUE)
b) A Comissão é a “senhora da proposta” com um triplo alcance: o
Conselho só pode alterar a proposta de acto legislativo por
unanimidade (v. artigo 293.º, n.º 2, TFUE); a Comissão pode
livremente alterar o conteúdo da proposta, em qualquer fase do
procedimento, enquanto o Conselho não tiver deliberado (v. artigo
293.º, n.º 2, TFUE); a Comissão pode decidir retirar a proposta (poder
implícito e enquadrado pelo princípio da leal cooperação e pelo
princípio do equilíbrio institucional)
2. Vaivém institucional (em busca do acto legislativo possível)
- a Comissão envia a proposta, ao mesmo tempo, para apreciação do PE
e do Conselho (v. artigo 294.º, n.º 2, TFUE). Depois da primeira leitura,
o PE transmite ao Conselho a sua posição (v. artigo 294.º, n.º 3, TFUE),
que poder ser de concordância (Conselho aprova o acto, artigo 294.º, n.º
4, TFUE), de emendas (Conselho pode aprovar, mas por deliberação
unânime, artigo 293.º, n.º 1, TFUE) ou de rejeição e transmite ao PE a sua

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posição (v. artigo 294.º, n.º 5). Na prática, uma percentagem muito
elevada de propostas são adoptadas na fase da Primeira Leitura. No
período entre 2009 e 2016, 85% dos actos legislativos da União foram
adoptados na fase de primeira leitura. Nos casos em que tal não acontece,
o procedimento é prosseguido com várias tentativas de, pela via da
negociação e da conciliação, chegar na medida do possível a uma posição
conjunta do PE e do Conselho que viabilize a aprovação do acto, com
participação directa e reiterada da Comissão sob a forma de pareceres e
através dos quais se pronuncia sobre a adaptação da sua proposta e os
limites das revisões preconizadas pelo PE e/ou pelo Conselho
relativamente ao projecto legislativo inicial. Está prevista a intervenção
de um Comité de Conciliação (v. artigo 294.º, n.º 10, TFUE), de
composição mista, no qual também participa a Comissão (v. artigo 294.º,
n.º 1, TFUE) e do qual se espera, já numa fase algo extremada de posições
desencontradas, a definição de um compromisso. Nesta fase da
conciliação, a proposta da Comissão perde a blindagem do artigo 293.º,
n.º 1, TFUE e pode ser aprovado por maioria qualificada do Conselho um
acto legislativo diferente da proposta da Comissão (v. artigo 294.º, n.º 13,
TFUE). Apesar dos esforços de aproximação de posições durante a fase
da conciliação, incluindo o expediente facilitador que permite ao
Conselho e ao PE, por maioria, ultrapassar a eventual recusa por parte da
Comissão de alterar a sua proposta, um desfecho possível é a rejeição e o
procedimento termina com a constatação da falta de acordo que
inviabiliza ou, pelo menos, adia para momento mais propício a adopção
de medidas legislativas da União sobre a matéria. Não é raro a Comissão

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optar por retirar a proposta (entre Julho de 2014 e final de 2016 decidiu
retirar 19 das 129 propostas apresentadas), o que faz ou para evitar um
prolongamento que antecipa como desnecessário do procedimento ou
para impedir uma aliança PE/Conselho que venha a desvirtuar a sua
proposta. Do lado do PE, cumpre notar que o seu poder de veto ou de
rejeição é exercido com muita prudência, certamente para minimizar as
situações de não adopção da legislação eurocomunitária, cujos custos
políticos seriam mais negativos para o PE do que para o Conselho ou para
a Comissão (no período compreendido entre Maio de 1999 e Janeiro de
2018, quase 20 anos, o PE só usou o direito de veto quatro vezes no
conjunto de 1620 procedimentos de decisão).
Reproduzimos um esquema que incorpora os vários passos e possíveis
desfechos do PLO e que constitui um utilíssimo instrumento de
interpretação do artigo 294.º TFUE. O esquema está publicado no livro
de R. SCHÜTZE, European Union Law, 2.ª ed., Cambridge Univ. Press,
2018, p. 251. Agradecemos ao Mestre Miguel Mota Delgado que o
traduziu e adaptou.

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- Participação dos parlamentos nacionais: o Tratado de Lisboa deu
expressão à participação institucional dos parlamentos dos EM no processo
legislativo da UE (v. Protocolo n.º 1, relativo ao papel dos Parlamentos
nacionais na União Europeia, e Protocolo n.º 2, relativo à aplicação dos
princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Compreende-se este
envolvimento dos parlamentos nacionais, embora muito limitado quanto aos
seus efeitos, na discussão de propostas de actos legislativos que têm como
destinatários os cidadãos nacionais e que regulam matérias que, em muitos
casos, são atributos clássicos da prerrogativa parlamentar e estão previstas
na Constituição como matéria de reserva legislativa do Parlamento.
Tomemos como exemplo o artigo 165.º da CRP, sobre a reserva da
competência legislativa da Assembleia da República: várias das matérias aí
arroladas são, por força do artigo 7.º, n.º 6, CRP, reguladas total ou
parcialmente pelo decisor legislativo da União e não pelo legislador
português [v.g. alíneas i), j), o), p) do artigo 165.º CRP]. A Constituição
Portuguesa prevê o poder de pronúncia da AR [v. artigo 161.º, alína n)] que
deveria ser, mas não é, vinculativo para o Governo Português quanto à
posição a adoptar no seio do Conselho. Com efeito, a Lei n.º 43/2006
(alterada pela Lei n.º 21/2012 e pela Lei n.º 18/2018), relativa ao
Acompanhamento, Apreciação e Pronúncia pela AR no âmbito do processo
de construção da UE, reduz a pronúncia à forma de parecer, com relevância
meramente indicativa para o Governo (v. artigo 1.º-A).
- Iniciativa legislativa e cidadania da União: o mecanismo de iniciativa
de cidadania europeia (ICE), prevista no artigo 11.º, n.º 4, TUE, uma
manifestação da participação política dos cidadãos da União, permite,

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verificadas exigentes condições de ordem procedimental e formal [v.
novo quadro regulamentar aprovado pelo Regulamento (UE) n.º
2019/788, de 17 de Abril de 2019], a apresentação à Comissão de uma
proposta de regulação jurídica sobre matérias em relação às quais os
cidadãos proponentes consideram necessária a existência de um acto
jurídico da União. Em rigor, constitui um convite dirigido à Comissão
que, embora obrigada a fundamentar, pode recusar dar seguimento ao
pedido de legislação ou regulamentação (v. artigo 15.º, n.º 2, Reg. n.º
2019/788). Esta recusa não é passível, em nossa opinião, de impugnação
judicial pelo grupo de organizadores da ICE, mormente nos termos do
recurso por omissão do artigo 265.º TFUE, salvo se a resposta da
Comissão que recusa a adopção de medidas violar o dever de explicitação
dos motivos que justificam a sua posição sobre a inoportunidade /
desnecessidade de um acto jurídico da União sobre a matéria em causa.

12. Procedimento de aprovação de actos não legislativos

A. Actos delegados (artigo 290.º TFUE)


Compete à Comissão a aprovação dos chamados actos delegados (v. infra
Ponto 15.3.), na observância dos limites definidos no acto legislativo pelo
PE e pelo Conselho (v. artigo 290.º TFUE). Na qualidade de instituições
delegantes, o PE e o Conselho podem prever a possibilidade de revogação
da delegação, assumindo assim a competência para o desenvolvimento e
adaptação do acto legislativo. Outra manifestação da autoridade das
instituições delegantes é o direito de objecção que, se exercido no prazo

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fixado, impede a entrada em vigor do acto delegado aprovado pela Comissão
[v. artigo 290.º, n.º 2, al. b)]

B. Actos de execução normativa (procedimentos de comitologia)


- A competência-regra de execução das normas dos Tratados dos actos
juridicamente vinculativos adoptados pelo decisor da União é da
responsabilidade dos EM (v. artigo 291.º, n.º, TFUE). Da conjugação do
princípio da cooperação leal (v. artigo 4.º, n.º 3, TUE) com o princípio do
primado, os EM estão obrigados a adoptar as medidas necessárias (actos
normativos e actos não normativos) para garantir a aplicação plena e eficaz
do Direito da União Europeia na ordem jurídica interna. Trata-se de uma
obrigação de resultado que não tolhe a liberdade do decisor nacional na
escolha dos meios e procedimentos mais adequados (autonomia processual)
- A opção por este modelo de execução descentralizada, a mais consentânea
com o princípio da subsidiariedade (v. artigo 5.º, n.º 3, TUE), não é passível
de aplicação em todos os vastos domínios de regulação material do Direito
da União Europeia. Existem matérias em que a eficácia do regime jurídico
adoptado no plano eurocomunitário através de acto legislativo depende da
aprovação de um regime que garanta “condições uniformes de execução”,
isto é, iguais no território de todos os EM (v. artigo 291.º, n.º 2, TFUE)
- O Tratado de Lisboa positivou no artigo 291.º, n.º 3, TFUE, o modelo que
a prática institucional desenvolveu sob a designação de comitologia. Sem
especificar o procedimento a que fica sujeita a aprovação das normas de
execução, o artigo 291.º, n.º 3, TFUE, clarifica, contudo, três aspectos
fundamentais:

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- à Comissão compete a aprovação destas normas eurocomunitárias de
execução
- como titulares da competência legislativa, PE e Conselho estipulam
previamente as regras e princípios que enquadram o exercício da
competência de controlo
- e, o que é muito importante, o objectivo subjacente a este
procedimento de adopção de actos de execução é o de permitir aos EM
a participação em mecanismos de controlo sobre a forma como a
Comissão desempenha as suas competências de execução
- Com base no artigo 291.º, n. 3, TFUE, foi aprovado o Regulamento (UE)
n.º 182/2011, do PE e do Conselho, que estabelece as regras e os princípios
relativos aos mecanismos de controlo pelos Estados-membros do exercício
de competências de execução pela Comissão. O chamado Regulamento-
comitologia define dois tipos de procedimento:
- procedimento consultivo (artigo 4.º)
- procedimento de exame (artigo 5.º)
- Algumas notas de análise das soluções acolhidas pelo Regulamento n.º
182/2011:
1. a opção por um ou outro procedimento é feita no acto legislativo (o
chamado acto de base) e configura, por isso, uma escolha do decisor
legislativo (v. artigo 2.º, n.º 1)
2. os comités técnicos, que assistem a Comissão, são constituídos por
representantes dos EM, pelo que, na lógica do artigo 291.º, n.º 3,
TFUE, são os EM que controlam a Comissão e não as instituições que
adoptam o acto de base

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3. o procedimento consultivo é aquele que garante maior liberdade de
escolha à Comissão, enquanto o procedimento de exame coloca a
Comissão numa posição de maior dependência do sentido do parecer
emitido pelo comité técnico que, se for negativo, impede a adopção do
acto de execução ou, pelo menos, obriga a Comissão a uma revisão do
projecto na sequência de consultas aos EM e da intervenção do comité
de recurso
4. assiste, contudo, ao PE e ao Conselho um direito de controlo nos
casos em que o acto de base foi adoptado no quadro do procedimento
legislativo ordinário e que consiste na fiscalização dos limites ao poder
de execução por parte da Comissão, obrigada a rever o acto se se
verificar uma violação desses limites, o que será o caso de um regime
de execução que altera ou vai para além do previsto no acto de base
(v. artigo 11.º)
Reproduzimos em anexo um esquema sobre o funcionamento do
procedimento consultivo e do procedimento de exame, publicado no livro de
R. SCHÜTZE, European Union Law, 2.ª ed., Cambridge Univ. Press, 2018,
p. 329. Agradecemos ao Mestre Miguel Mota Delgado que o traduziu e
adaptou).

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13. O procedimento de vinculação internacional da União Europeia

- a União Europeia é um sujeito de Direito Internacional, dotada de


personalidade jurídica (v. artigo 47.º TUE)
- o poder de celebrar acordos internacionais com países terceiros e
organizações internacionais é um corolário do atributo de personalidade
jurídica, com previsão expressa no artigo 216.º, n.º 1, TFUE
- a matéria relativa à celebração de acordos internacionais pela União
Europeia suscita duas ordens de questões:
a) saber se a UE tem ou não competência para se vincular
internacionalmente sobre determinada matéria? Qual a natureza de tal
competência, exclusiva ou partilhada?
b) quais as instituições que, em nome da União, serão responsáveis
pela negociação, conclusão e execução do acordo?
Deixamos a primeira questão para depois, quando tivermos de analisar o
acordo internacional como fonte de Direito da União (v. infra Ponto 16.1.)
- O artigo 218.º TFUE, uma base jurídica procedimental, descreve o
procedimento de vinculação da União de acordo com o esquema clássico da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, com a identificação de
três fases:

1) Negociação – conduzida pela Comissão, após autorização do


Conselho e na base de directrizes (não confundir com directivas como
actos jurídicos na acepção do artigo 288.º TFUE), definidas pelo
Conselho no mandato de negociação; se for matéria que caia exclusiva

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ou principalmente no perímetro da Política Externa e de Segurança
Comum, cabe ao Alto Representante a proposta de abertura de
negociações, a apresentação de recomendações e a responsabilidade
pela condução do trabalho de negociação (v. artigo 218.º, n.ºs 2 e 3).
O controlo por parte do Conselho pode exigir a designação de um
comité especial que funcionará como órgão de consulta e
acompanhamento da Comissão (v. artigo 218.º, n.º 4). E, salvo o caso
específico dos acordos sobre política comercial (v. artigo 207.º, n.º 3,
TFUE), o Conselho pode nomear um negociador ou chefe de equipa
que não seja membro ou funcionário da Comissão – e foi o que
aconteceu com o acordo do Brexit, negociado do lado da UE por
Michel Barnier.
2) Assinatura – fechada a negociação, a assinatura é autorizada pelo
Conselho, sob proposta do negociador, incluindo, se for necessário, a
sua aplicação provisória (v. artigo 218.º, n.º 5)
3) Conclusão – cabe ao Conselho a manifestação do consentimento, sob
a forma de aprovação da decisão de celebração do acordo (v. artigo
218.º, n.º 6). Esta decisão deve ser precedida de aprovação pelo PE
nos casos especificados pelo n.º 6 do artigo 218.º e que, todos eles,
correspondem a matérias de notável relevância política e orçamental,
com ligação especial ao núcleo duro das competências próprias do PE.
Ao longo de todo o procedimento, o Conselho delibera por maioria
qualificada, exigindo-se, contudo, a unanimidade em relação aos
acordos:

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- sobre matérias que exijam a unanimidade para a aprovação de actos
jurídicos da União (princípio do paralelismo);
- acordos de associação;
- acordos de cooperação técnica e financeira com países candidatos à
adesão;
- acordo de adesão da União à Convenção Europeia para a Protecção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH),
único caso de acordo internacional da UE que requer a sua aprovação
pelos EM, em conformidade com as respectivas normas
constitucionais (diferente do acordo de adesão do artigo 49.º TUE que
é celebrado entre os EM e o Estado candidato à adesão)

Intervenção do Tribunal de Justiça – no caso de dúvidas sobre a


compatibilidade de um projecto de acordo com os Tratados (questão de
competência da União ou de compatibilidade com as disposições
fundamentais dos Tratados), o TJ pode ser chamado a dar parecer, a pedido
de qualquer EM, Comissão, Conselho ou PE. O parecer não é necessário no
sentido em que a eventual existência de dúvidas de compatibilidade com os
Tratados não torna obrigatória a consulta. No entanto, se o parecer for
solicitado e se o TJ se pronunciar no sentido de considerar o projecto de
acordo como contrário aos Tratados, a sua aprovação ficará dependente da
remoção do obstáculo jurídico, por via de revisão dos Tratados ou por
alteração do texto do projecto de acordo (v. artigo 218.º, n.º 11). Um dos
casos mais interessante é o relativo ao projecto de acordo de adesão da UE à
CEDH e que nos permite avaliar o elevado grau de influência do TJ sobre o

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curso de uma decisão que teria um enorme impacto político e jurídico na
criação de um verdadeiro espaço europeu de protecção dos direitos
fundamentais. Em 1996, no Parecer 2/94, o TJ travou a adesão por
considerar que faltava nos Tratados uma base jurídica adequada e necessária.
Com o Tratado de Lisboa, a norma de habilitação passou a estar prevista no
artigo 6.º, n.º 2, TUE. Sobre a base de um projecto de acordo de adesão da
UE à CEDH, o TJ foi chamado de novo a pronunciar-se, agora sobre a
compatibilidade das soluções previstas com os Tratados no domínio da tutela
jurisdicional. No surpreendente e polémico Parecer 2/13, de 18.12.2014, o
TJ foi mais sensível à preservação da autonomia do sistema judicial da União
e, contrariando a posição da generalidade dos EM e das instituições da
União, emitiu um veredicto negativo sobre a compatibilidade do projecto de
acordo com os Tratados. Passados mais de cinco anos, a União continua, sem
sucesso, a procurar o caminho para cumprir o mandato do artigo 6.º, n.º 2,
TUE. Não será nada fácil ultrapassar o obstáculo: seja pela via da revisão
dos Tratados que se afigura improvável e até inconveniente se implicar uma
alteração do artigo 344.º TFUE, pedra angular do princípio de competência
do TJ; seja pela via da renegociação do projecto de acordo que enfrenta as
objecções suscitadas por Estados que são partes contratantes da CEDH, mas
não são membros da UE e constituem, no mínimo que se pode dizer,
parceiros renitentes (v.g. Rússia, Turquia), ao que acresce o facto de a
própria União, representada pela Comissão, não saber exactamente o que
quer para satisfazer as exigências que o TJ enunciou no Parecer 2/13.

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Aplicação interna – o acordo internacional celebrado pela UE é vinculativo
para as instituições da UE e, importa sublinhá-lo, para os EM (v. artigo 216.º,
n.º 2, TFUE). A obrigação de execução dos actos jurídicos vinculativos da
União que impende sobre os EM (v. artigo 291.º, n.º 1, TFUE) também se
refere às disposições do Tratado, sendo-lhes exigível um grau de diligência
equivalente ao da execução dos actos jurídicos unilaterais da União, à luz do
princípio da cooperação leal (v. artigo 4.º, n.º 3, TUE). Nos termos do artigo
8.º, n.º 3, da Constituição Portuguesa, estes acordos vigoram directamente
na ordem jurídica portuguesa e, nos termos do n.º 4 da citada disposição,
prevalecem sobre o direito interno nos limites e condições da exigência do
primado do Direito da União (v. infra 18.2. do Programa)

II. Leituras
• Maria Luísa DUARTE, União..., cit., p. 299-317
• Damien CHALMERS / G. DAVIES / G. MONTI, European Union Law,
4.ª ed., Cambridge Univ. Press, 2019, p. 11-157
• Paul CRAIG / G. de BURCA, EU Law. Text, cases and materials, 6.ª ed.,
Oxford Univ. Press, 2015, p. 124-160
• C. ROEDERER-RYNNING / J. GRENNWOOD, “The Culture of
triologues”, Journal of European Public Policy, 2015, 22, p. 1148.
• Robert SCHÜTZE, European Union Law, 2.ª ed., Cambridge Univ.
Press, 2018.

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