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A teoria da constituição no common law

Reflexões teóricas sobre o peculiar constitucionalismo


britânico

Bruno Galindo

Sumário
1. O conceito de constituição como proble-
ma da teoria da constituição. 2. As memórias
constitucionais do Reino Unido: da Magna Char-
ta Libertatum ao Bill of Rights. 3. A evolução cons-
titucional britânica a partir do século XVIII: a
sedimentação gradativa de um constituciona-
lismo sui generis. 4. As principais característi-
cas do constitucionalismo britânico. 4.1. Dis-
tinção entre direito da constituição (law of the
constitution) e convenções constitucionais (cons-
titutional conventions). 4.2. A supremacia do par-
lamento: entre a tradição e as possibilidades
contemporâneas.

1. O conceito de constituição como


problema da teoria da constituição
O debate histórico e atual acerca do que
seja uma constituição nunca tem fim, sim-
plesmente pelo fato de a teoria da constitui-
ção não ter construído um conceito razoa-
velmente preciso para tal fenômeno políti-
co-jurídico. A depender do conceito de cons-
tituição que se adote, a resposta à indaga-
ção que tem suscitado tantos debates entre
os constitucionalistas britânicos, qual seja,
Bruno Galindo é Professor Adjunto da Uni- se o Reino Unido1 possui ou não constitui-
versidade Federal do Rio Grande do Norte (Gra- ção, pode ser diversa, tanto em um sentido,
duação e Mestrado em Direito); Professor e quanto em outro.
Coordenador de Pós-Graduação da Faculdade
Em verdade, o debate proposto nestas
de Direito de Caruaru/ASCES; Doutor em Di-
reito Público pela Universidade Federal de considerações iniciais é muito antigo. A
Pernambuco/Universidade de Coimbra-Portu- partir do século XVIII, ele ganha uma enor-
gal; Mestre em Direito Público pela Universi- me importância em virtude dos fenômenos
dade Federal de Pernambuco. constitucionais insurgentes nos Estados
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Unidos e na França. Nesses dois países, te- terem ou não constituição é irrelevante. Tudo
mos a ocorrência de acontecimentos profun- muda com o novo constitucionalismo libe-
damente transformadores das respectivas ral e o seu conceito para a constituição que,
sociedades. As instituições políticas e jurí- com o passar dos anos, torna-se o conceito
dicas, conseqüentemente, também são afe- predominante e permanece até os nossos
tadas pela Independência das Treze Colô- dias, apesar da instabilidade conceitual a
nias e pela Revolução Francesa, movimen- partir do aprofundamento da integração
tos de inspiração liberal e democrática, in- européia (GALINDO, 2004, p. 35 et seq.,
fluenciados pelo Iluminismo e seus escrito- 2002a, passim). Contudo, é curioso perce-
res reformadores e, por vezes, revolucioná- ber que, pelo menos desde a Grécia antiga e
rios como Rousseau. a polis ateniense, há referências constitucio-
Para o nosso debate, o mais importante nais em sentidos, no mais das vezes, diver-
acontecimento, entre tantos de variadas or- sos dos que são referidos a partir do consti-
dens no Século das Luzes, é o surgimento, tucionalismo liberal do século XVIII. É im-
tanto nos EUA como na França, das consti- perioso, portanto, se queremos discutir ci-
tuições codificadas (na maioria das vezes entificamente a existência ou não de uma
denominadas de “escritas”). A proposta de constituição no Reino Unido, não ficarmos
reunir as normas constitucionais em um adstritos a uma uniformidade conceitual
corpo único, como um código normativo, que, embora possa ser cômoda, não ajuda
ganha contornos concretos nos dois países em nada no esclarecimento do problema.
após a transformação política revolucioná- As mais remotas referências a constitui-
ria por que passam. Nos EUA, a libertação ções são geralmente atribuídas a Aristóte-
colonial faz surgir um novo Estado, com les. Como se não bastasse a sua influência
uma intencionalidade (ao menos formal) de nas instituições atenienses em termos de fi-
ser um país bem diferente do que é a sua ex- losofia política, é Aristóteles o primeiro teo-
metrópole inglesa. Na França, a revolta da rizador do fenômeno constitucional que ele
classe burguesa contra as amarras do abso- concebia como a forma essencial do Estado.
lutismo monárquico propicia o advento do Não havia em Aristóteles qualquer refe-
movimento revolucionário que necessita rência à hierarquia normativa ou à supre-
afirmar-se como poder social legítimo. Em macia constitucional em relação às demais
ambos os casos, a constituição codificada normas jurídicas. Para ele, constituição é a
em um único documento serve a esse pro- estrutura política da polis, que ordena a dis-
pósito. Redigir em um documento solene e tribuição dos cargos governamentais, a de-
aprovado por uma assembléia constituinte a terminação do poder governamental supe-
organização do poder político do Estado e os rior e a finalidade da comunidade política2.
limites à atuação deste último, além dos di- Analisa o ser constitucional aliado a con-
reitos fundamentais dos cidadãos, é o modo teúdos ético-sociais, construindo um con-
encontrado pelos revolucionários franceses ceito empírico-axiológico de constituição
e norte-americanos para regulamentarem so- (Cf. ARISTÓTELES, 1998, p. 105; NEVES,
cialmente as condutas dos agentes estatais e 1994, p. 54; VERDÚ, 1994, p. 19).
dos cidadãos no espírito iluminista liberal. É bom esclarecer que a palavra original-
O surgimento da Constituição dos EUA, mente utilizada por Aristóteles é politeia, que
em 1787, e da Constituição da França, em passa a ser correntemente traduzida como
1791 (com a antecessora Declaração dos constituição a partir do século XVIII, mas
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789), não é a única acepção possível do termo, pois
é o divisor de águas do debate constitucio- há controvérsias acerca de sua tradução (Cf.
nal. Até então, não há constituições codifi- CANOTILHO, 1999, p. 50; DANTAS, 1999,
cadas e essa discussão acerca dos países p. 103-105; NEVES, 1994, p. 54-55).

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O termo constituição tem origem no vo- EUA serem, em última análise, britânicas,
cábulo constitutio, utilizado pelos romanos. apesar da tentativa dos sobrinhos do Tio
É utilizado tanto para traduzir a palavra Sam de se afastarem do common law inglês.
grega politeia, como assume outros signifi- O que chamamos aqui de modelo euro-
cados. Sobretudo por influência de Cícero, peu continental de inspiração francesa é o
o vocábulo assume o significado de organi- modelo de constituição que se consagra na
zação jurídica da civitas romana (equivalente Europa continental (visto que a Grã-Breta-
a polis grega). A maior predominância dos nha é uma ilha européia separada do conti-
aspectos técnico-jurídicos e um certo distan- nente). Praticamente todos os Estados euro-
ciamento do telos axiológico apontado por peus ocidentais (e atualmente até mesmo os
Aristóteles diferenciam Cícero do filósofo do leste europeu, saídos do regime socialis-
ateniense quanto ao conceito de constitui- ta) adotam um modelo de constituição cu-
ção (VERDÚ, 1994, p. 18-19). Mais uma vez, jas principais características são, em geral:
a noção de constituição confunde-se com a 1) em termos formais, a supremacia hie-
idéia de ordem jurídica, compreendendo as rárquico-normativa, a rigidez (imutabilida-
normas de direito positivo em geral, sem as de relativa), o controle de constitucionali-
idéias concernentes ao constitucionalismo dade e a forma escrita codificada;
da modernidade. 2) em termos substanciais, a regulamen-
Na Idade Média, apesar do surgimento tação fundamental da organização e fun-
de documentos constitucionalmente impor- cionamento do aparato estatal e a relação
tantes, como a Magna Charta Libertatum dos direitos fundamentais mais relevantes
(1215) que comentaremos adiante, ainda há concernentes aos cidadãos, alegáveis
nebulosidade acerca da idéia de constitui- dogmaticamente contra os demais cidadãos
ção. Somente no final da Idade Moderna é e/ou grupos de cidadãos e contra o próprio
que temos o debate conceitual efetivamente Estado.
estabelecido a partir das experiências revo- Além da própria prática constitucional
lucionárias norte-americana e francesa. dos Estados, em especial após a Segunda
A partir das ditas revoluções e da ascen- Guerra Mundial e a progressiva democrati-
são do constitucionalismo liberal, ganha zação da Europa ocidental, há uma crescen-
importância a questão destas considerações te sedimentação teórica que vai do séc. XVIII
iniciais. “O que é uma constituição?”, per- ao séc. XX que estabelece pouco a pouco
guntam todos, já que, se considerarmos que padrões conceituais que se tornam usuais
britânicos, norte-americanos e franceses nesses países e também nos que estão sob a
possuem constituições, torna-se evidente sua esfera de influência, como o Brasil. Não
que estamos falando de coisas distintas ao há dúvida que inúmeros autores contribuí-
utilizarmos o vocábulo. Se o conceito for o ram ao longo de mais de dois séculos para a
mesmo, é difícil equipararmos as experiên- criação de tais padrões, mas aqui destaca-
cias dos EUA e da França com o singular mos a contribuição de apenas dois, separa-
experimento britânico. São necessários con- dos por mais de um século: Emmanuel
ceitos distintos para aceitar a existência de Sieyès e Hans Kelsen.
uma constituição do Reino Unido, tão dife- O primeiro estabelece uma sólida teoria
rente das que usualmente conhecemos, no- do poder constituinte, diferencia este em re-
tadamente para os brasileiros habituados lação aos poderes constituídos (legislativo,
com uma constituição codificada, à seme- executivo e judiciário), e ainda propugna por
lhança com o modelo europeu continental uma teoria da representação política e pro-
de inspiração francesa, assim como alguma põe a idéia de controle de constitucionali-
influência norte-americana, embora menor dade das leis (BARACHO, 1979, p. 17;
devido às origens do constitucionalismo dos BONAVIDES, 1997, p. 120; CANOTILHO,

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1999, p. 64-67; SALDANHA, 2000, p. 77-78; sui uma constituição. Por outro lado, se le-
SIEYÈS, 1997, p. 97-98). varmos em conta apenas os aspectos subs-
O segundo, ao propor uma teoria pura tanciais, com uma certa relativização no que
do direito, estrutura este em uma gradua- diz respeito à idéia de separação de pode-
ção hierárquica na qual a constituição ocu- res, pode-se dizer que há uma constituição
pa a supremacia normativa em relação aos britânica, na medida em que existem no Rei-
demais atos de natureza jurídico-positiva. no Unido normas regulamentadoras dos
Para assegurar a supremacia constitucional, fundamentos organizacionais do Estado,
são estruturadas teoricamente algumas pro- assim como cartas de direitos fundamentais
posições, tais como: a rigidez constitucio- dos cidadãos.
nal (que consagra uma espécie de imutabi- A partir do exposto, analisemos a cons-
lidade relativa da constituição), pois a cons- trução do constitucionalismo britânico, ob-
tituição só pode ser alterada por um proces- viamente sem a menor pretensão de exaurir
so legislativo mais difícil do que o existente a temática.
para a modificação das normas infraconsti-
tucionais; o controle de constitucionalida- 2. As memórias constitucionais do
de destas últimas, ou seja, a possibilidade Reino Unido: da Magna Charta
de que cortes judiciais ou outros órgãos es-
Libertatum ao Bill of Rights
tatais possam anular atos normativos que
contrariem a constituição, estruturando a Conhecer o direito constitucional do Rei-
idéia de jurisdição constitucional (KELSEN, no Unido é conhecer a sua história3. Mais
1984, passim, 1998, p. 168-170, 182-184, do que em qualquer outro país ocidental, o
2003, passim). direito constitucional britânico é fruto de
As características substanciais que refe- suas tradições e consolidações históricas,
rimos acima são oriundas da contribuição mais do que de fórmulas racionais estrutu-
ideológica liberal, consubstanciadas no art. radas legislativa ou constitucionalmente.
16 da famosa Declaração dos Direitos do Daí a importância dessas memórias consti-
Homem e do Cidadão: “toda sociedade na tucionais.
qual não esteja assegurada a garantia dos Tida por muitos como o primeiro docu-
direitos (fundamentais – grifo nosso) e a se- mento constitucional escrito, a Magna Char-
paração de poderes determinada não pos- ta Libertatum, de 1215, é, sem dúvida, o pon-
sui constituição”. Esses caracteres perma- to de partida histórico para o constitucio-
necem como conteúdo mínimo fundamen- nalismo em terras inglesas. Na verdade, tra-
tal de toda e qualquer constituição inspira- ta-se de uma carta de direitos destinada
da nas idéias da modernidade, embora o apenas aos nobres feudais, insatisfeitos com
surgimento do constitucionalismo social no a política desenvolvida pelo Rei João Sem
séc. XX exija novos conteúdos para a cons- Terra, especialmente no que diz respeito à
tituição, tornando-a um instrumento de con- tributação. Não se trata de uma revolução
sagração de direitos sociais e econômicos e classista ou de uma ruptura drástica com o
não apenas individuais. Mas isso não ex- modelo anterior; antes, ao contrário, os se-
clui os caracteres liberais clássicos do art. nhores feudais desejam estabelecer docu-
16 da declaração francesa, antes os comple- mentalmente a confirmação de seus privilé-
menta e os condiciona (mais pormenoriza- gios e liberdades existentes em regras con-
damente em GALINDO, 2003, p. 61 et seq.). suetudinárias e que se vêem ameaçados pe-
Se considerarmos um conceito de cons- los decretos reais. É bom salientar que o feu-
tituição que exija a presença dos caracteres dalismo inglês se desenvolve de forma di-
formais esboçados acima, podemos afirmar versa do feudalismo europeu continental e
com segurança que o Reino Unido não pos- há, já nessa época, uma centralização mo-

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nárquica semi-absolutista, o que antecipa Gloriosa de 1688. Esta, com a fuga do mo-
também as lutas antiabsolutistas modernas, narca, ocorre praticamente sem derrama-
embora os direitos e liberdades sejam ape- mento de sangue, em contraste com o res-
nas para os “homens livres”, os pertencen- tante do sangrento séc. XVII inglês. São pro-
tes a setores privilegiados da sociedade clamados monarcas William e Mary de
(CANOTILHO, 1999, p. 65; DAVID, 1998, Orange e estabelecidas normas de sucessão.
p. 285). Apesar disso, é no documento me- É firmado um catálogo de direitos e liberda-
dieval inglês que surgem importantes ins- des extensivos aos comuns (portanto, não
trumentos de garantias de direitos funda- somente às classes nobres privilegiadas),
mentais, assim como limitações ao poder es- que dizem respeito: aos poderes do Parla-
tatal, tais como o princípio da legalidade mento e suas relações com a Coroa; às leis,
tributária e penal, e a ação de habeas corpus. sua execução e suspensão; aos tributos; ao
A luta antiabsolutista que toma vulto no exército, seu recrutamento e manutenção; às
séc. XVIII tem uma antecipação em mais de eleições, liberdade de expressão, penas e
um século no solo inglês, talvez devido ao sentenças; entre outros (CUNHA, 2002, p.
maior centralismo existente desde a Idade 137-138)4. É a partir daqui que se pode con-
Média. Na Idade Moderna, as lutas religio- ceber uma nova evolução constitucional
sas, que culminam com o embate entre os entre os britânicos.
súditos leais ao Rei Charles I e os puritanos
de Oliver Cromwell, propiciam o surgimen- 3. A evolução constitucional
to de novos documentos constitucionais. Em britânica a partir do século XVIII: a
1628, surge o Petition of Rights como conces-
sedimentação gradativa de um
são de Charles I que, no entanto, fez dessa
carta de direitos, que reforça a legalidade
constitucionalismo sui generis
tributária e as garantias penais dos cida- Do ponto de vista formal, a história cons-
dãos, entre outras, praticamente letra mor- titucional britânica nasce com a Revolução
ta. Com a queda do monarca e a ascensão Gloriosa e o Bill of Rights. Pela primeira vez,
de Cromwell, temos o efêmero período re- há uma carta constitucional que, de certo
publicano na Inglaterra, com a outorga em modo, está de acordo com aquele conceito
1653 do Instrument of Government, conside- substancial que discutimos no ponto 1 des-
rado por alguns como a primeira constitui- te ensaio, inclusive com a aprovação por um
ção escrita (LOEWENSTEIN, 1964, p. 158). poder constituinte tido como autêntico
Curiosamente, essa efêmera carta constitu- (STRECK, 2002, p. 242).
cional tem poucos caracteres das constitui- Entretanto, essa Carta não possui a es-
ções modernas: não possui catálogo de di- truturação codificada que caracteriza as
reitos, nem separação de poderes. Apesar modernas constituições pós-revolucionári-
disso, estabelece uma superioridade hierár- as. Não é uma carta totalizante, não derro-
quica em relação aos atos regulares do ga os atos constitucionais anteriores, assim
Parlamento e a organização institucional da como não é protegida por critérios de modi-
República Inglesa. Mas o Instrument of ficação mais rigorosos do que os estabeleci-
Government não sobrevive à morte do seu dos para a modificação da legislação ordi-
autor, assim como a própria República nária proveniente do Parlamento.
(CUNHA, 2002, p. 130-131, 137-138). Ao longo de três séculos (XVIII, XIX e
Com a restauração monárquica, surgem XX), consolidam-se princípios constitucio-
outros atos como o Habeas Corpus Act de nais e são expedidos atos constitucionais
1679, e, finalmente, o célebre Bill of Rights, específicos, sem uma preocupação efetiva
de 1689, que legitima juridicamente a mu- com uma codificação sistematizada dos pre-
dança dinástica ocorrida com a Revolução ceitos constitucionais ou com mecanismos

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de proteção a estes. As proteções formais à cional britânica consolida, ao longo de três
constituição britânica são muito tênues, séculos, o entendimento segundo o qual fa-
quase inexistentes, e a sua consagração tem- zem parte da Constituição britânica:
se dado muito mais pela força material e 1) As regras concernentes à estru-
dimensão político-institucional dos seus turação do Parlamento, do governo e
preceitos do que pela existência de garanti- da magistratura, assim como seus
as formalizadas. poderes, o exercício destes e o relacio-
Não é difícil perceber que o Reino Unido namento interinstitucional;
não possui uma constituição sistematizada 2) A proteção dos direitos e liberda-
em um único documento, como o Brasil, os des individuais (tais como liberdade de
EUA, a França ou a Alemanha. Por outro expressão e de locomoção), assim como
lado, parece-nos de afastar a idéia de que os direitos políticos (BARENDT, 1998,
não há uma constituição britânica. Juízes, p. 29)5.
políticos e doutrinadores do Reino Unido
freqüentemente fazem referência, em termos 4. As principais características do
gerais, a uma constituição; além disso, des- constitucionalismo britânico
crevem várias regras e princípios como cons-
Autores mais tradicionais, como Albert
titucionais, assim como muitos juízes e tri-
Dicey (1982, p. CXL passim), afirmam que o
bunais salientam que, em certos casos, há a
direito constitucional britânico compreen-
presença de questões de importância cons-
de todas as regras que, direta ou indireta-
titucional (BARENDT, 1998, p. 26).
mente, afetem a distribuição ou o exercício
Afinal de contas, o que é essa Constitui-
do poder soberano no Estado. Nele tanto
ção do Reino Unido?
estão as normas referentes à estruturação
Pode ser uma questão simples, se consi-
fundamental dos principais poderes esta-
derarmos apenas uma definição teórica.
tais, como também as suas limitações (aqui
Assim mesmo, não é tão simples quanto
se enquadrando os direitos e garantias fun-
definir constituição em um país que a tenha
damentais). Além disso, aponta esse céle-
corporificado em um documento único, à
bre doutrinador inglês dois pontos que, no
semelhança de um código. No Brasil e em
meu entender, são básicos para a compre-
outros países, é relativamente simples (ao
ensão do direito constitucional do Reino
menos de um ponto de vista formal) dizer o
Unido: a) a diferença entre direito da consti-
que é ou não norma constitucional. Basta
tuição (law of the constitution) e convenções
abrir o código constitucional e conferir os
constitucionais (constitutional conventions); b)
seus dispositivos. Estes ainda recebem uma
a soberania/supremacia do parlamento.
proteção especial contra modificações fei-
tas por maiorias parlamentares eventuais 4.1. Distinção entre direito da constituição
(quorum de três quintos dos deputados e dos (law of the constitution) e convenções
senadores, no Brasil, para aprovação de constitucionais (constitutional conventions)
emendas constitucionais), assim como pos-
suem um guardião especial de sua obser- O direito constitucional britânico é com-
vância, geralmente uma corte constitucio- posto por dois tipos de regras que regulam
nal, que exerce o controle de constituciona- o exercício do poder político soberano no
lidade dos atos normativos infraconstituci- Reino Unido. De um lado, o direito da cons-
onais que possam estar em conflito com os tituição; de outro, as convenções constituci-
artigos da constituição. onais. Nesses dois tipos de regras estão in-
Nada disso é possível, em termos de de- cluídas: a definição dos membros do poder
finição, para a Constituição do Reino Uni- soberano, a regulamentação de suas rela-
do. Em termos teóricos, a doutrina constitu- ções recíprocas, o modo como esse poder

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exerce a sua autoridade, a ordem de suces- O statute law, por sua vez, compreende
são ao trono, as prerrogativas da magistra- os diversos atos oriundos do Parlamento
tura, o processo legislativo e a forma das que regulamentam as aludidas matérias
eleições parlamentares, entre outras coisas. constitucionais. Fazem parte do statute law
No primeiro caso, direito da constitui- a Magna Charta Libertatum (1215), o Petition
ção, podemos afirmar que estão aquelas re- of Rights (1628), os Habeas Corpus Acts (1679
gras que podemos denominar jurídicas em e 1816), o Bill of Rights (1689), o Act of Settle-
um sentido estrito. Compreendem o direito ment (1701), os Judicature Acts (1873-1875),
da constituição as regras que, uma vez com os Acts of Parliament (1911 e 1949), o Statute
os conteúdos assinalados acima, sejam con- of Westminster (1931), o European Communi-
solidadas pelas cortes judiciais, indepen- ties Act (1972) e o Human Rights Act (1998),
dentemente de sua origem, se do direito legis- apenas para citar os mais importantes
lado do statute law, ou do direito jurispruden- (CUNHA, 2002, p. 138-139; DAVID, 1998,
cial do common law. São regras que, em última p. 300; DICEY, 1982, p. CXL et seq.; HAR-
análise estabelecem-se pela força que tem a TLEY, 1999, p. 168 et seq.; O’NEILL, 2002,
jurisprudência no direito britânico em geral, p. 724 et seq.; STRECK, 2002, p. 247).
e em particular no direito da Inglaterra. O common law, o statute law e os costumes
E esse é um outro ponto relevante: ao e tradições jurídicas aceitos como tais pelos
contrário de certos mitos criados em torno tribunais compõem o chamado direito da
do direito inglês afirmando que o mesmo é constituição.
não escrito e costumeiro, dá-se concretamen- As convenções constitucionais, por sua
te o fenômeno inverso: o direito inglês é pre- vez, seriam o que Dicey (1982, p. CXLI) de-
dominantemente escrito (a parte não escrita nomina de “moralidade constitucional”.
– se é que podemos denominá-la assim – é São convenções, entendimentos, hábitos ou
reduzida) e é um direito que, em termos mate- práticas que, embora não consolidadas pe-
riais, é basicamente jurisprudencial, apesar las cortes judiciais, regulam a conduta de
do princípio da supremacia do parlamento, muitos membros do poder soberano, tais
que será visto adiante (neste sentido Cf. DA- como ministros e os próprios parlamenta-
VID, 1998, p. 281 et seq.; BARENDT, 1998, res, entre outros. São regras convencionais
passim; em sentido diverso, Cf. MIRANDA, de conduta ordinária dessas pessoas que se
2002, p. 75-76). sedimentam na prática constitucional britâ-
O common law, muitas vezes referido nica ao longo do tempo, de modo que se torna
como direito não escrito e como direito cos- um impensável contra-senso desrespeitá-las.
tumeiro, não é nem uma coisa nem outra. As mais importantes convenções consti-
Ele é escrito, na medida em que surge das tucionais estão relacionadas com os limites
decisões judiciais, sobretudo dos Tribunais dos poderes legais do monarca e com a re-
de Westminster, que consolidam, a partir do gulação das relações recíprocas entre gover-
séc. XIII, um direito comum a toda a Ingla- no e parlamento.
terra, em oposição aos costumes locais. Tam- Quem observar somente os atos consti-
bém não é costumeiro, visto que surge da tucionais formais do Reino Unido pode in-
jurisprudência e vem justamente tomar o correr em inúmeros equívocos compreensi-
lugar de determinados costumes (DAVID, vos, notadamente se utilizar os tradicionais
1998, p. 286 et seq.). Consiste fundamental- paradigmas racionalistas a que estamos
mente nos precedentes judiciais que possu- habituados. Em termos de estrito direito
em força obrigatória. No caso do direito cons- constitucional formal, o monarca pode, por
titucional, somente os precedentes referen- exemplo, recusar conceder o Assentimento
tes às matérias constitucionais é que pas- Real (Royal Assent) ao nome do Primeiro
sam a fazer parte do direito da constituição. Ministro escolhido pela bancada parlamen-

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tar majoritária da Câmara dos Comuns e direito constitucional do Reino Unido, se-
escolher livremente o Primeiro Ministro. Por guramente responderão: a supremacia do
sua vez, o princípio da responsabilidade parlamento (BARENDT, 1998, p. 86-89;
coletiva do Gabinete, segundo o qual há DICEY, 1982, p. 3; HARTLEY 1999, p. 168;
uma responsabilização solidária de todos MIRANDA, 2002, p. 74)6. Mas, em verdade,
os ministros pelas decisões do Gabinete, no que consiste essa supremacia parlamen-
também não consta em nenhum documento tar?
constitucional. No entanto, esse princípio Para responder, é necessário mais uma
sedimenta-se na prática parlamentarista vez proceder a alusões retrospectivas. Des-
britânica, assim como o Royal Assent não é de a Magna Charta Libertatum, ainda na Ida-
recusado ao líder do partido majoritário há de Média, o constitucionalismo britânico se
quase trezentos anos (BARENDT, 1998, p. desenvolve basicamente nas lutas entre o
40 et seq.). Também a exigência de que so- monarca e os súditos, sobretudo nas ques-
mente um Lorde Jurista (Law Lord) possa to- tões referentes à limitação dos poderes do
mar parte nas decisões da Câmara dos Lor- primeiro. Basta observar que todas as car-
des quando esta atua como Corte de Apela- tas inglesas de direitos até o séc. XVII são o
ção é comumente enquadrada como conven- produto legislativo das tentativas limitado-
ção constitucional (DICEY, 1982, p. CXLII). ras por parte dos representantes dos súdi-
As convenções constitucionais, apesar tos (embora muitas vezes não os represen-
da aparente informalidade, regulam parte tem por inteiro). Sempre traduzem uma cer-
importante do direito constitucional britâ- ta desconfiança em relação ao monarca e
nico, e este é incompreensível se não as es- propugnam por esses limites, que, em ter-
tudarmos. Nesse ponto, elas se aproximam mos políticos, são estabelecidos a partir da
dos “fatores reais de poder” descritos por suposta vontade democrática e popular.
Lassalle, embora o direito da constituição Antes de qualquer outro país europeu, há
também integre estes últimos. uma rejeição do absolutismo monárquico e
Ainda em relação às convenções consti- uma aspiração por uma monarquia consti-
tucionais, pode-se dizer que são a parte efe- tucionalmente limitada e por um órgão re-
tivamente consuetudinária da constituição, presentativo dos súditos que efetivamente
na medida em que se trata de consolidações determine a direção política do Estado.
de costumes parlamentares e/ou governa- O único órgão apto a desempenhar sa-
mentais. Porém, dizer que são não escritas, tisfatoriamente essa função seria o Parla-
no meu entender, é passível de discussão. mento.7
Não se pode esquecer que as mesmas são No Reino Unido, o Parlamento é estru-
direta ou indiretamente reduzidas a termo turado em duas câmaras: a Câmara dos Lor-
nos documentos oficiais solenes, assim des (House of Lords) e a Câmara dos Comuns
como existe até mesmo a possibilidade de (House of Commons), sendo a primeira repre-
ser verificada a sua existência nas cortes que sentativa dos nobres cuja investidura não é
declaram ou não a existência da convenção, eletiva, e a segunda representativa dos sú-
e tudo isso é feito de forma escrita. Daí a ditos que não detêm títulos de nobreza (daí
nossa discordância, com a devida venia a serem chamados de “comuns”), eleitos di-
grandes mestres como Dicey, em caracteri- retamente pela população. Pode-se falar que
zar tais normas como não escritas. existe no Reino Unido uma espécie de bica-
meralismo aristocrático. Ao longo do tem-
4.2. A supremacia do parlamento: entre a po, a competência efetivamente legislativa
tradição e as possibilidades contemporâneas da Câmara dos Lordes é esvaziada pela cri-
Se perguntarmos aos constitucionalistas ação de convenções constitucionais que
britânicos qual a principal característica do posteriormente se transformam nos dois

310 Revista de Informação Legislativa


Parliament Acts (1911 e 1949), que estabele- com a disseminação das cirurgias de mu-
cem a predominância da Câmara dos Co- dança de sexo, até isso o Parlamento pode-
muns nas questões legislativas e governa- ria nos dias atuais, a estar correta a obser-
mentais. Subsistem importantes atribuições vação de De Lolme) (DICEY, 1982, p. 5).
judiciais para os Lordes, notadamente as do A idéia é, portanto, de que o Parlamento
Comitê de Apelação (Appellate Committee), não tem limitações ao seu poder, podendo
formado por Lordes Juristas (Law Lords), e revogar quaisquer das cartas de direitos e
que funciona como um último grau de re- liberdades fundamentais, os atos constitu-
curso judicial no Reino Unido. cionais em geral e até mesmo proceder a uma
Poder legislativo formado em grande modificação na forma e no sistema de go-
parte por representantes eleitos diretamen- verno, transformando o Reino Unido de uma
te pelos súditos de Sua Majestade, é o Parla- monarquia parlamentarista em uma repú-
mento britânico a instância adequada e con- blica presidencialista. Em termos formais,
fiável para a sociedade atribuir um conjun- não há supremacia hierárquico-normativa,
to de poderes e prerrogativas para o desem- não há dispositivos pétreos imutáveis, não
penho não somente das funções legislati- há procedimentos mais difíceis para a re-
vas, mas de funções executivas governamen- forma constitucional do que os estabeleci-
tais, o que ocorre com o tempo e o desenvol- dos para a modificação das leis em geral,
vimento do sistema parlamentarista com um assim como não existe controle judicial de
Gabinete e um Primeiro Ministro oriundos constitucionalidade dos atos do Parlamen-
da agremiação partidária que obtém a mai- to (BARENDT, 1998, p. 86-89; DICEY, 1982,
or parte dos votos populares nas eleições. p. 3; HARTLEY, 1999, p. 168; WEILL, 2003,
Somente o Parlamento teria legitimidade, passim). Tudo isso tem conseqüências im-
pelo seu grau de representatividade, para portantes para a construção de uma teoria
determinar efetivamente a direção política da constituição britânica. Vejamos quais
do Estado e as obrigações e direitos atribuí- são.
dos aos súditos. 1) Inexistência de supremacia hierárqui-
A partir daí, desenvolve-se, ao longo de ca dos atos constitucionais em relação aos
três séculos, a idéia da soberania ou supre- demais atos do Parlamento. Não há, no Rei-
macia do parlamento como princípio cons- no Unido, a determinação de que os atos do
titucional fundamental no Reino Unido. É Parlamento tenham hierarquia entre si, de
talvez o mais importante dos princípios modo que não se pode falar em normas cons-
constitucionais britânicos e produz conse- titucionais como normas hierarquicamente
qüências teóricas e práticas igualmente re- superiores às leis e atos infraconstitucionais
levantes. Vejamos. a que estamos acostumados na Europa con-
Por incrível que possa parecer, o princí- tinental e no Brasil.
pio da supremacia do Parlamento significa 2) Não há dispositivos constitucionais
(ao menos em um sentido formal) precisa- imutáveis. O que conhecemos no direito
mente a idéia de que as decisões fundamen- constitucional brasileiro como “cláusulas
tais são provenientes desse órgão sem a pos- pétreas” (CF, art. 60) também inexiste no
sibilidade de revisão por parte de qualquer Reino Unido. Qualquer norma constitucio-
outro órgão estatal. Não há, em princípio, nal pode ser modificada, até mesmo a forma
limites formais ao poder do Parlamento. Para e o sistema de governo, como afirmamos
se ter uma idéia da dimensão da suprema- acima.
cia parlamentar, De Lolme afirma, com um 3) Não há maior dificuldade para a re-
certo exagero, que o Parlamento pode fazer forma dos atos constitucionais do que para
tudo, menos transformar mulher em homem os atos legislativos comuns. Com a mesma
e homem em mulher (isso no séc. XIX, pois maioria parlamentar, é possível modificar

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 311


uma norma constitucional ou uma lei ordi- pleno vigor e consolidados social e politica-
nária. Em virtude disso, a Constituição bri- mente, apesar da possibilidade formal de
tânica é concebida como uma constituição alteração e até de supressão dos mesmos
flexível. pelo Parlamento. Em termos substanciais,
4) Inexistência de um controle judicial tem-se afirmado como uma constituição até
de constitucionalidade das leis. Como o mais rígida do que certas constituições for-
Parlamento detém supremacia, os seus atos malmente classificadas como rígidas, a
não podem ser passíveis de revisão judicial exemplo do próprio Brasil. O Parlamento,
(judicial review). Só o próprio Parlamento portanto, tem sido prudente na observância
pode rever os seus atos. Ao contrário do que e na modificação dos atos constitucionais,
ocorre na maioria dos Estados constitucio- assim como na institucionalização de no-
nais da atualidade, não há controle judicial vos atos legislativos dessa natureza.
de constitucionalidade, seja na forma difu- Um outro dado interessante que confir-
sa (deferido a qualquer juiz ou tribunal), seja ma essa postura parlamentar britânica é a
de modo concentrado (adstrito a um tribu- utilização, até com uma certa freqüência, da
nal constitucional ou a uma corte específi- prerrogativa de renunciar à supremacia le-
ca). Nem mesmo os Law Lords do Comitê de gislativa se presentes motivos relevantes
Apelação da Câmara dos Lordes podem re- para tal. Situação meramente hipotética nos
ver os atos parlamentares. sécs. XVIII e XIX passa a ser concreta no séc.
Tendo em vista as considerações feitas XX. Destacamos três atos que expressamen-
até aqui, o leitor pode vir a pensar que o te declaram a renúncia à supremacia legis-
Reino Unido é simplesmente uma ditadura lativa diante de determinadas motivações:
da maioria, com um Parlamento incontrolá- o Statute of Westminster (1931), o European
vel e autoritário, determinando despotica- Communitties Act (1972) e o Human Rights
mente a direção política estatal. Simplesmen- Act (1998).
te substituíram o absolutismo real por um O Estatuto de Westminster estabelece em
absolutismo parlamentar. 1931 que o Parlamento não poderá legislar
Em termos meramente formais, é preci- para uma colônia ou domínio britânico sem
samente isso. Em termos substanciais, no o requerimento ou o consentimento dos mes-
entanto, é bem diferente. Vejamos. mos. É bom lembrar que, nessa época, ainda
Dissemos anteriormente que conhecer o há muitos e importantes domínios britâni-
direito constitucional britânico é conhecer cos e essa renúncia do Parlamento configu-
a sua história. Mais do que isso, é conhecer ra um primeiro passo para a completa inde-
suas tradições e suas práticas, seus costu- pendência que se verifica posteriormente na
mes e sua forma de pensar. Mais que em maioria desses domínios (BARENDT, 1998,
qualquer outro direito, no caso do Reino p. 89).
Unido, é mesmo imprescindível esse conhe- O Ato das Comunidades Européias é a
cimento. conseqüência constitucional da adesão do
Ao longo dos séculos, o próprio Parla- Reino Unido às Comunidades Européias,
mento vem procurando comportar-se de com a conseqüente aceitação das normas
maneira sóbria e moderada, apesar de al- presentes nos Tratados Comunitários, as-
guns momentos despoticamente desviantes, sim como no direito comunitário derivado
como o caso do Septennial Act (1716)8. Pode- (CAMPOS, 2002, p. 275). Em virtude desse
se perceber tal comportamento, por exem- Ato de 1972, o Parlamento cede parte de sua
plo, em relação à preservação das normas supremacia legislativa aos entes comunitá-
constitucionais ao longo do tempo. Veja-se rios e aceita, como Estado membro da agora
a longevidade do Bill of Rights, do Act of Set- União Européia, a superioridade do direito
tlement e do Statute of Westminster, todos em comunitário em relação ao direito nacional,

312 Revista de Informação Legislativa


assim como sua aplicabilidade e efeito dire- do Parlamento, o European Communitties Act,
tos (Cf. GALINDO, 2002b, p. 103; HILL, 2001, não poderiam os tribunais do Reino Unido
p. 685). Apesar dos problemas em torno da deixar de aplicar o novo Act parlamentar
adaptação do Reino Unido à legislação co- (GALINDO, 2004, p. 270; HILL, 2002, p. 28-
munitária, com certas vacilações e recuos 32)9.
como no caso da unificação monetária (vis- Por sua vez, o Ato dos Direitos Huma-
to que os britânicos não entraram ainda na nos de 1998 nada mais é do que a tardia
denominada “zona euro”), o entendimento incorporação no direito constitucional bri-
predominante tem sido o de que, como mem- tânico da Convenção Européia de Direitos
bro da União Européia, o Reino Unido se Humanos da década de 50. Não obstante o
obriga a determinadas condutas que impli- fato de que boa parte dos referidos direitos
cam uma renúncia, ainda que não absoluta, já estava consagrada anteriormente em ou-
à supremacia do Parlamento (HARTLEY, tros Acts, o Ato traz importantes inovações,
1999, p. 174-175). Alguns, como Bradley, vão sobretudo no campo processual. Regula dois
ainda mais longe e afirmam a quebra do novos procedimentos, a Declaração de In-
princípio da supremacia do Parlamento compatibilidade e o Remédio Judicial, ins-
com o Ato de 1972 (STRECK, 2002, p. 246). trumentos processuais que propiciam a
Parece assistir certa razão ao entendi- compatibilidade entre a legislação nacional
mento predominante. É o mesmo entendi- e a Carta Européia, assim como com a juris-
mento consolidado no Comitê de Apelação prudência do Tribunal Europeu dos Direi-
da Câmara dos Lordes de que a supremacia tos Humanos, possibilitando o afastamen-
do Parlamento, a partir do European Com- to da aplicação da lei ou ato que sejam in-
munitties Act, é relativizada e não pode ser compatíveis com a Convenção Européia
oposta ao direito comunitário. Contudo, (BARENDT, 1998, p. 46-48; O’NEILL, 2002,
subsistem restrições a essa relativização que p. 724-726; STRECK, 2002, p. 245-246).
merecem um exame mais acurado. Ademais há controvérsias sobre se de fato
Em virtude da dificuldade que ensejaria inexiste um judicial review dos atos do Par-
a possibilidade de, com a aplicação do prin- lamento no Reino Unido. Tendo em vista
cípio da lex posteriori derogat priori, qualquer ser o direito britânico concretamente um di-
lei implicitamente poder revogar o Ato de reito jurisprudencial, a dimensão efetiva dos
1972, assim como impossibilitar a aplica- próprios Atos do Parlamento termina sen-
ção dos atos normativos comunitários, os do dada pela jurisprudência. Destaca René
tribunais têm decidido não aplicar os Atos David (1998, p. 343-344) que, “de fato, as
que conflitem com os dispositivos do direi- disposições da lei inglesa acabam rapida-
to comunitário. Qualquer Ato do Parlamen- mente sendo submersas por uma massa de
to que possa implicitamente revogar aquela decisões jurisprudenciais, cuja autoridade
legislação não deve ser aplicado, prevale- se substituiu à dos textos legais; o espírito
cendo a supremacia do direito comunitário geral da lei arrisca-se a ser esquecido e a
em lugar da supremacia da Câmara dos finalidade que ela procurava atingir perde-
Comuns. se de vista, no emaranhado das decisões que
Todavia, há diferença entre a revogação se destinaram a resolver, cada uma delas,
implícita e a explícita. No segundo caso, um ponto de pormenor particular”.
prevalece a supremacia do Parlamento, pois Em adendo ao que diz David, percebe-se
a superioridade hierárquica do direito co- que a supremacia do Parlamento, embora
munitário somente se verifica com a perma- não seja negada diretamente por nenhum
nência do Reino Unido na União Européia. juiz ou tribunal britânico, termina por ser
Se os britânicos se retiram desta última, re- mitigada na prática interpretativa das cor-
vogando expressamente, mediante novo Ato tes judiciais. Fazendo uso de processos in-

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terpretativos, os magistrados ditam senten- 32,52) no séc. XIX. O conceito lassalliano afirma a
ças criativas e, em vez de anular as leis in- diferença entre constituição formal (que seria uma
mera “folha de papel”) e constituição real, a verda-
constitucionais, interpretam-nas até criar deira constituição de um Estado que seria “a soma
uma nova norma, incorporando-a ao orde- dos fatores reais de poder” que efetivamente regem
namento jurídico do Estado, por meio da o Estado. O conceito de Lassalle é meramente em-
técnica do precedente vinculante. Como as- pírico, não possuindo características axiológicas ou
severa Lafuente Balle, é o que faz a House of formalistas. Para uma visão panorâmica dos con-
ceitos clássicos, Cf. SCHMITT, 1996, p. 29 et seq.
Lords: acata o princípio da supremacia do 3
Para Jorge Miranda (2002, p. 71-73), “Na for-
Parlamento e reconhece que não pode anu- mação e na evolução do Direito constitucional in-
lar a legislação oriunda deste último, mas glês ou britânico distinguem-se três grandes fases:
interpreta as normas, ditando sentenças a) A fase dos primórdios, iniciada em 1215 com a
corretivas, manipulativas, aditivas, reduti- concessão da Magna Carta (pela primeira vez, por-
que diversas outras vezes viria posteriormente a
vas ou diretivas, enfim, o mesmo tipo de sen- ser dada e retirada consoante os fluxos e refluxos
tenças criativas que os tribunais constitu- da supremacia do poder real; b) A fase de transi-
cionais da Europa continental (STRECK, ção, aberta em princípios do século XVII pela luta
2002, p. 246-247). Tudo pela via interpreta- entre o Rei e o Parlamento e de que são momentos
tiva, verdadeiramente concretizante (Cf. culminantes a Petição de Direito (Petition of Right)
de 1628, as revoluções de 1648 e 1688 e a Declara-
GALINDO, 2003, passim; MÜLLER, 2000, ção de Direitos (Bill of Rights) de 1689; c) A fase
passim). contemporânea, desencadeada a partir de 1832
Para complementar a análise, deve-se pelas reformas eleitorais tendentes ao alargamento
fazer menção à discussão que está aconte- do direito de sufrágio”.
cendo no Parlamento britânico, mais preci-
4
É importante destacar o contributo de John
Locke (1998, p. 479, 514 et seq.) para o legado da
samente no Joint Committee on House of Lords Revolução Gloriosa e do Bill of Rights. O filósofo
Reform, uma das comissões parlamentares inglês é a grande influência em termos de estrutu-
existentes, a possibilidade de criação de uma ração de uma teoria de separação e limitação dos
efetiva jurisdição constitucional, com carac- poderes estatais em solo britânico e seu discurso
terísticas semelhantes à norte-americana, o legitima a nova ordem revolucionária, apesar de
sua teoria não ser tão engenhosa como a de Mon-
que seria uma verdadeira revolução em um tesquieu. Cf. BONAVIDES, 1996, p. 46-49;
princípio tricentenário como a supremacia GALINDO, 2003, p. 37, 2002a, p. 108).
do Parlamento10. É esperar para ver. 5
Os direitos sociais não são, em geral, conside-
rados no Reino Unido como de importância consti-
tucional, prevalecendo entre eles uma teoria consti-
tucional liberal. Não obstante isso, o Estado social
Notas tem sido realizado em solo britânico pelo que cha-
maríamos de via legislativa ordinária, com a insti-
1
Note-se que sempre fazemos referência ao tucionalização de proteções sociais relevantes, ape-
Reino Unido, já que os atos constitucionais britâni- sar do liberalismo formal. O Welfare State depende,
cos têm validade para todo o território que com- portanto, diretamente da discricionariedade políti-
preende Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda ca governamental e tem sido revisto a partir da
do Norte. Até o início do séc. XVIII, ainda se pode aceitação da ideologia neoliberal pelo governo
falar em um direito constitucional inglês, vigente Thatcher, a partir da década de 80 do século XX
na Inglaterra e em País de Gales. A partir da união (Cf. DAINTITH, 1995, p. 136 et seq.).
com a Escócia, em 1707, há direitos diversos apli- 6
Autores consagrados como os citados Dicey e
cados no Reino Unido, um para ingleses e galeses e Hartley utilizam a expressão “soberania” do Par-
outro para escoceses. Mas em termos de direito lamento em lugar de supremacia. Mas parece ter
constitucional, passamos a ter um único para todo razão Barendt quando afirma que a expressão par-
o Reino Unido, inclusive com a jurisdição da Câ- liamentary sovereignty deve ser evitada, sobretudo
mara dos Lordes para a Escócia como tribunal su- por ser mais usual para designar a afirmação da
premo para toda a Grã-Bretanha. Cf. DAVID, 1998, independência de um Estado nacional, assim como
p. 281 et seq.; MIRANDA, 2002, p. 71-72. das suas prerrogativas mais genéricas. O Professor
2
É importante não confundir o conceito aristo- londrino é um dos que prefere a expressão suprema-
télico com aquele defendido por Lassalle (1998, p. cy e, seguindo sua lição, adotaremo-la aqui.

314 Revista de Informação Legislativa


7
Charles Mac Ilwain destaca que o fato do Par- Communities Act 1972, as a consequence of Uni-
lamento britânico ter sido criado ainda na Idade ted Kingdom withdrawal from the Union. The
Média, faz com que o mesmo tenha peculiares ca- courts would almost certainly apply that legislati-
racterísticas da época, dentre as quais a divisão on over the Treaty of Rome and Community law.
bicameral aristocrática. O autor norte-americano However, this expectation is not enough to support
salienta que o Parlamento não era um law-maker, the view that Parliament still enjoys unqualified
isto é, não criava direito. Antes se tratava de uma legislative supremacy. It does not while the United
corte judicial, justamente a “corte mais alta” do Kingdom remains a member of the European Uni-
Reino, em sentido muito diverso do que vieram a on. (...) Lord Bridge emphasised in Factortame that
ter os parlamentos e instituições judiciárias moder- Parliament had voluntarily accepted a limit on its
nas. Cf. SALDANHA, 2000, p. 53; MIRANDA, legislative powers through passage of the Europe-
2002, p. 75. an Communities Act 1972. Parliament had di-
8
Em 1716, a duração do mandato dos parla- rected the courts, in sections 2 and 3 of the Act,
mentares da Câmara dos Comuns é de três anos, to give priority to directly effective Community
segundo um Ato do Parlamento de 1694, e estão law”.
previstas eleições para o ano seguinte. O Rei e o 10
Disponível em <www.parliament.uk/
Ministério estão convencidos de que eleições gerais parliamentary_committees/joint_com mittee_
em 1717 ameaçam não somente o Gabinete Minis- on_house_of_lords_reform>. Acesso em: 22 maio
terial, mas a própria tranqüilidade do Estado, em 2004.
virtude da tendência revolucionária de parte do elei-
torado britânico de então. Por proposta do Gabine-
te, o Parlamento aprova o Septennial Act, que pror-
roga o mandato dos parlamentares então compo-
nentes da House of Commons de três para sete anos. Bibliografia
Sem dúvida, uma violação da confiança popular
ao sabor das conveniências políticas momentâne- ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal
as, considerado por autores como Hallam como Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
um excesso de prerrogativas e um abuso do princí-
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria da Cons-
pio da supremacia do Parlamento (DICEY, 1982,
tituição. São Paulo: Resenha Universitária, 1979.
p. 7). Todavia, momentos como esse são excepcio-
nais na história constitucional britânica. BARENDT, Eric. An introduction to constitutional law.
9
Merece transcrição a lição de Barendt (1998, p. Oxford: Oxford University Press, 1998.
99) acerca da questão: “As cortes têm decidido não
aplicar estatutos que conflitem com dispositivos BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.
de direito comunitário diretamente aplicáveis. A 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
posição seria, quase certamente, bem diferente se o CAMPOS, João Mota de. Manual de direito comuni-
Parlamento está a promulgar legislação expressa- tário. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.
mente revogando o Ato das Comunidades Euro-
péias de 1972, como uma conseqüência da retirada CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito consti-
do Reino Unido da União. As cortes aplicariam, tucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Al-
quase certamente, aquela legislação sobre o Trata- medina, 1999.
do de Roma e o direito comunitário. Todavia, essa
CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da Constituição I:
expectativa não é suficiente para sustentar a visão
mitos, memórias, conceitos. Lisboa: Verbo, 2002.
de que o Parlamento ainda desfrute de supremacia
legislativa indiscriminada. Não é assim enquanto o DAINTITH, Terence. European Community law
Reino Unido continua um membro da União Euro- and the redistribution of regulatory power in the
péia (...). Lord Bridge enfatizou no caso Factortame United Kingdom. European Law Journal, Oxford, v.
de que o Parlamento tem voluntariamente aceito 1, n. 2, Oxford, p. 134-156, 1995.
um limite nos seus poderes legislativos através da
vigência do Ato das Comunidades Européias de DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional
1972. O Parlamento tem direcionado as cortes, pe- brasileiro. Curitiba: Juruá, 1999. v. 1.
las seções 2 e 3 do Ato, a dar prioridade ao direito DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contem-
comunitário diretamente aplicável”. No original, em porâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 3. ed.
idioma inglês: “The courts have decided not to ap- São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ply statutes which conflict with directly effective
provisions of Community law. The position would DICEY, Albert V. Introduction to the study of the law
almost certainly be quite different if Parliament were of the Constitution. 8. ed. Indianápolis: Liberty Fund,
to enact legislation expressly repealing European 1982.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 315


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