Você está na página 1de 40

DIREITO CONSTITUCIONAL

Teoria da constituição

Professor Gustavo Fernandes


gustavo_fernandes_sales
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Sumário • 1. Teoria da constituição. 2. Constitucionalismo. 3. Constituição: conceito; concepções; objeto;


elementos; classificação. 4. Histórico das constituições brasileiras. 5. Supremacia da constituição.

1 Teoria da constituição

Segundo BULOS (2019, p. 99), a teoria da constituição “é o conjunto de categorias


dogmático-científicas que possibilitam o estudo dos aparelhos conceituais e dos métodos de
conhecimento da lei fundamental do Estado”.

Pode-se falar que a teoria da constituição busca elaborar e aprofundar o conceito de


constituição, e estudar suas funções, características, elementos, significação e natureza
(MIRANDA, 1996, t. 2, p. 53).

2 Constitucionalismo

2.1 Noções introdutórias

O termo “constitucionalismo” é equívoco. Costuma ser empregado em referência ao


movimento político-social de origens remotas que tem pretensão de limitar o poder
arbitrário.

KARL LOEWENSTEIN (apud TAVARES, 2018, p. 24-5) leciona que

(...) a história do constitucionalismo não é senão a busca pelo homem político das
limitações do poder absoluto exercido pelos detentores do poder, assim como o
esforço de estabelecer uma justificação espiritual, moral ou ética da autoridade, em
lugar da submissão cega à facilidade da autoridade existente. (...) Em um sentido

1
ontológico, dever-se-á considerar como o ‘telos’ de toda constituição a criação de
instituições para limitar e controlar o poder político.

Em boa verdade, podemos extrair dois principais sentidos para o termo


“constitucionalismo” (BULOS, 2019, p. 64):

(a) Constitucionalismo em sentido amplo: traduz o fato de que toda organização de


pessoas, mesmo em sociedades pré-estatais e mesmo em Estados absolutistas, possui uma
Constituição (em sentido amplo), isto é, um modo de se constituir, normas de conduta, de
convívio, ainda que orais ou com base na violência.

(b) Constitucionalismo em sentido estrito: é a técnica jurídica de tutela das liberdades,


assim evidenciada apenas no final do século XVIII, materializada em Constituições escritas
que pretendiam limitar o poder estatal. É sinônimo de “constitucionalismo moderno”.

Em vista disso, caberá ao estudante se atentar para o sentido eventualmente cobrado


em provas de concursos públicos. Geralmente o que se quer ouvir é simplesmente que o
constitucionalismo é um movimento social, político e jurídico que tem por objetivo limitar o
poder do Estado por meio de uma constituição (constitucionalismo em sentido estrito).

2.2 Retrospecto histórico

Importa analisar a evolução histórica do constitucionalismo (desde o sentido amplo,


passando pela concepção moderna até chegar aos dias atuais). São as seguintes etapas:

 1ª etapa: constitucionalismo primitivo ou pré-constitucionalismo (desde os


primeiros assentamentos humanos até o 4.000 a.C.);
 2ª etapa: constitucionalismo antigo (de 4.000 a.C., sobretudo a partir do século VIII
a.C. e com grande destaque para os séculos V a II a.C., até o século V d.C.);
 3ª etapa: constitucionalismo medieval (do século V d.C. até o final do século XVIII);

2
 4ª etapa: constitucionalismo moderno (dos fins do século XVIII até a 2ª Guerra
Mundial);
 5ª etapa: constitucionalismo contemporâneo (do após-2ª Guerra Mundial até os
dias atuais); e
 6ª etapa: constitucionalismo do futuro ou do porvir (previsão ou conjectura sobre
tempos futuros).

2.3 Constitucionalismo moderno

A distinção entre leis comuns e leis superiores, embora date da Antiguidade, somente
veio a ser valorizada no século XVIII, na Europa ocidental, com o propósito de limitar o poder
(FERREIRA FILHO, 2015, p. 31). Somente a partir de então o termo “Constituição” passou a
ser empregado para definir o conjunto de normas que organizam o Estado.

São duas as características primordiais do constitucionalismo moderno: a limitação


jurídica do poder do Estado em favor da liberdade individual (SOUZA NETO;
SARMENTO, 2014, p. 72) e a elaboração de textos escritos voltados a registrar o
documento fundamental do povo, denominado “Constituição”.

As duas versões mais influentes do constitucionalismo moderno são a norte-


americana e a francesa. Também merece ser estudado o constitucionalismo inglês, que
ostenta bases históricas muito mais antigas e encontrou grande expressão no século XVII.

O marco inicial do constitucionalismo moderno na França é a Revolução Francesa,


iniciada em 1789, que teve por objetivo destruir o Ancien Régime. As principais
características da experiência francesa são, portanto, a limitação dos poderes do Rei, a
consagração do princípio da separação dos poderes, embora de forma não tão rigorosa
quanto nos EUA, e a distinção entre o poder constituinte originário e o derivado (NOVELINO,
2019, p. 55).

3
Por sua vez, as principais características do modelo norte-americano estão na
criação da forma de governo federal e na instituição do presidencialismo e do sistema de
freios e contrapesos, associado à separação de poderes (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p.
78). Embora concisa e contando com poucas emendas ao longo de mais de 200 anos de
vigência, a Constituição norte-americana possui grau elevado de abertura de interpretação,
possibilitando adaptação às circunstâncias e valores emergentes em cada momento vivido
pela sociedade. Por isso, é considerada uma living Constitution (“constituição viva”) (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2014, p. 78). A supremacia da Constituição assegura aos juízes e tribunais
o papel de defendê-la mesmo diante das maiorias momentâneas formadas no Legislativo ou
no Executivo (judicial review).

O constitucionalismo inglês reflete modelo singular, historicista, baseado na


continuidade das tradições imemoriais e baseado em uma Constituição não escrita, composta
de textos esparsos, convenções constitucionais e princípios da common law, desenvolvidos
pelos tribunais. Até por isso é difícil classificar o modelo inglês como meramente moderno,
já que assenta raízes em tradições e atos solenes que remontam à invasão normanda da ilha
em 1066, sendo estudado por muitos autores em conjunto com o constitucionalismo
medieval. O traço mais marcante do modelo político inglês – é fácil notar – está no não
acolhimento das técnicas tradicionais do constitucionalismo, especialmente porque refuta o
seu dogma fundamental, que é a constituição escrita.

2.4 Constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo)

O chamado neoconstitucionalismo nada mais é do que a atual fase do


constitucionalismo, também conhecida pelas expressões constitucionalismo contemporâneo,
constitucionalismo pós-positivista ou constitucionalismo neopositivista (BULOS, 2019, p. 80).

Essa cultura constitucional surgiu na Europa, a partir da Segunda Guerra Mundial,


quando se desenvolve o Estado constitucional de direito, em reação às barbáries cometidas
naquele momento histórico.

4
O momento atual do constitucionalismo é marcado pela superioridade da
Constituição, garantida por instrumentos jurisdicionais de fiscalização e controle de
constitucionalidade, e pela absorção, em seu corpo, de valores morais e políticos
(MENDES; BRANCO, 2019, p. 53).

FENÔMENOS RELACIONADOS AO NEOCONSTITUCIONALISMO


(1) Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos, revestidos de elevada
carga axiológica, e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito;
(2) Nova hermenêutica jurídica, com recurso a métodos mais abertos de raciocínio
jurídico, como a ponderação e novas teorias da argumentação jurídica;
(3) Reaproximação entre o Direito e a Moral;
(4) Constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais
para todos os ramos do ordenamento jurídico;
(5) Crescimento da importância do Judiciário e expansão da jurisdição constitucional,
visualizada sobretudo pela frequente judicialização da política, com a transferência ao
Judiciário de decisões que antes se mantinham na esfera do Legislativo e do Executivo, e
pela flexibilização da visão antes rígida da separação dos poderes em defesa dos valores
constitucionais.

2.5 Transconstitucionalismo

O constitucionalismo contemporâneo engloba um outro fenômeno, que possibilita a


interpenetração ou o entrelaçamento de diversas ordens jurídicas, sejam elas de um mesmo
Estado (transconstitucionalismo lato sensu, presente nas Federações), sejam de Estados
diferentes (transconstitucionalismo stricto sensu), para a resolução de problemas jurídico-
constitucionais.

Segundo BULOS (2019, p. 90), o transconstitucionalismo “decorre do caráter


multicêntrico dos sistemas jurídicos mundiais, onde a conversa e o diálogo desenvolvem-se
em vários níveis que se integram, formando um bloco compacto de comunicação entre os

5
atores do cenário estatal”. O autor utiliza as expressões sinônimas constitucionalismo de
níveis múltiplos e constitucionalismo multiplex.

Baseando-se em MARCELO NEVES, CUNHA JR. (2017, p. 39) afirma que no


transconstitucionalismo o Direito Constitucional se afasta da análise doméstica (do Estado)
e passa a se dedicar a questões transconstitucionais, aquelas que perpassam os diversos
tipos de ordens jurídicas, como, por exemplo, os problemas relacionados aos direitos
humanos.

2.6 Constitucionalismo transnacional

É preciso ter cuidado para não confundir o transconstitucionalismo, visto


anteriormente, com o constitucionalismo transnacional. Embora os fenômenos possam
partir de pressupostos fáticos assemelhados, há uma concepção mais restrita no que toca ao
segundo deles, que busca a unificação normativa entre vários países, ao contrário do
primeiro, que – como vimos – prega a cooperação entre ordens jurídicas diversas.

O constitucionalismo transnacional está ligado à defesa de uma nova modalidade


de constituição, compatível com essa mitigação das fronteiras, identificando-se como a força
ou processo por meio do qual se pretende formar uma constituição transversal, nos moldes
da fracassada tentativa de internalização do Tratado de Lisboa, em 2004, por todos os países
da União Europeia, no intuito de criar o que seria uma “Constituição europeia”.

2.7 Patriotismo constitucional

Em linguagem comum, o patriotismo corresponde à devoção à pátria. Já a expressão


patriotismo constitucional está associada a uma ideia oposta, de respeito não a ideias
dominantes de um país ao qual se pertence como cidadão, mas aos valores universais de
solidariedade, consagrados nos princípios constitucionais.

Foi o cientista político alemão DOLF STERNBERGER, por ocasião do 30º aniversário
da República Federal alemã (no final da década de 1970), o primeiro a usar o termo

6
patriotismo constitucional (Verfassungspatriotismus), como forma de oposição ao conceito
tradicional de nacionalismo, cuja hipertrofia houvera conduzido ao nazismo e à violação
massiva de direitos humanos. Assim é que o Estado Alemão deveria buscar obedecer à ordem
política e aos princípios constitucionais. Com JÜRGEN HABERMAS a expressão foi difundida
no âmbito acadêmico, traduzindo a ideia de “uma identidade política coletiva conciliada com
uma perspectiva universalista comprometida com os princípios do Estado Democrático de
Direito”, em superação ao nacionalismo étnico (CUNHA JR., 2017, p. 37).

2.8 Constitucionalismo do futuro

Sempre citadas são as previsões do jurista argentino JOSÉ ROBERTO DROMI. O autor
(apud TAVARES, 2018, p. 37) afirma que o futuro do constitucionalismo (el
constitucionalismo del “por-venir”) “deve estar influenciado até identificar-se com a verdade,
a solidariedade, o consenso, a continuidade, a participação, a integração e a universalização”.

3 Constituição

3.1 Conceito e concepções

Nos tempos atuais, pode-se definir a constituição (positivada de um país) como “um
conjunto normativo fundamental, adquirindo, por isso, cada um de seus preceitos a
característica da superioridade absoluta, ou seja, da supremacia, em relação às demais
normas de um mesmo ordenamento jurídico estatal” (TAVARES, 2018, p. 120).

Embora alguém possa querer fazer algum reparo, cuida-se de um conceito, que
difere de concepção. Concepções de constituição existem aos montes, a depender do autor e
do critério utilizado, pois retratam diferentes compreensões (particulares) de um objeto.

Mais recentemente, tem-se observado que a evolução dos movimentos


constitucionais teve por efeito alterar a percepção inicial que se tinha de uma constituição, a
qual passou a agregar novos conteúdos essenciais. Indo mais longe, pode-se dizer que nela,

7
atualmente, “parecem caber quaisquer conteúdos”. Esse fenômeno deu origem aos dois
usuais sentidos de uma constituição, sempre lembrados: o material e o formal.

3.2 Constituição em sentido material

Em sentido material ou substancial, a constituição de um Estado é “o conjunto de


normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da
autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como
sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento
da ordem política exprime o aspecto material da Constituição” (BONAVIDES, 2018, p. 81).

3.3 Constituição em sentido formal

Em sentido formal, a constituição é o complexo de normas jurídicas dotadas de


superior hierarquia no ordenamento estatal, independentemente do conteúdo que venham
a possuir, e que derivam de um processo constituinte específico.

Disso se extrai que o conceito sob estudo leva em conta dois fatores: (1) as fontes de
produção das normas constitucionais, que aderem ao texto da constituição, não importando
a substância ou o conteúdo (MENDES; BRANCO, 2019, p. 57); (2) a posição das normas
constitucionais em face das demais normas jurídicas (MIRANDA, 1996, t. 2, p. 10).

3.4 Constituição em sentido ideal, moderno, liberal ou ocidental

A expressão constituição em sentido ideal faz referência “ao sistema normativo do


Estado que corresponde a um determinado modelo: o modelo do constitucionalismo, que
envolve a contenção do poder dos governantes e a garantia de direitos dos governados”
(SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 55). Esse conceito é materializado no art. 16 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na França, em 1789, in verbis:
“Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação de
poderes determinada, não tem Constituição.”

8
É o modelo que traduz a ideia de Direito liberal (conceito liberal de constituição),
conforme os princípios proclamados nos grandes textos revolucionários do
constitucionalismo do século XVIII, em prol da tutela da liberdade e dos direitos dos cidadãos
(MIRANDA, 1996, t. 2, p. 17).

GOMES CANOTILHO (2003, p. 52) menciona que, como esse conceito converteu-se
progressivamente num dos pressupostos básicos da cultura jurídica ocidental, recebeu de
ROGÉRIO SOARES a alcunha de “conceito ocidental de constituição”.

3.5 Concepções

3.5.1 Concepção sociológica

Para LASSALLE (1988, p. 6), o que os jurisconsultos vulgarmente chamam de


constituição – “a lei fundamental proclamada pelo país, na qual baseia-se a organização do
Direito público” –, não traduz a essência da verdadeira constituição de um Estado; é apenas
uma folha de papel.

A verdadeira constituição, a constituição real e efetiva é a soma dos fatores reais


do poder que regem uma nação (LASSALE, 1988, p. 19), isto é, aquela força ativa capaz de
imprimir seus interesses nas leis e instituições jurídicas da sociedade.

No embate entre as duas constituições de um país, a efetiva e real, “integralizada


pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade”, e aquela outra, escrita, é certo, para o
autor, que a segunda sucumbirá necessariamente perante a constituição real, “a das
verdadeiras forças vitais do país”. Só é “boa e verdadeira” a constituição escrita que
corresponda, efetivamente, à constituição real; do contrário, não tem qualquer valor.

3.5.2 Concepção normativa

Essa perspectiva de constituição é idealizada por KONRAD HESSE (1991). Em boa


verdade, trata-se de uma crítica aberta à concepção sociológica de LASSALLE. Segundo

9
HESSE, o Direito Constitucional não se reduz à função de justificar as relações de poder
dominantes, pois, assim, não poderia ser concebido como uma ciência normativa, do dever
ser (Sollen), mas como uma simples ciência do ser (Sein), tal qual a Sociologia ou a Política.

A constituição tem “pretensão de eficácia” e procura imprimir ordem e conformação


à realidade política e social. HESSE defende a força normativa da constituição, que, assim, se
converte em força ativa capaz de condicionar a realidade fática.

Se é certo que a constituição é determinada pela realidade social, também é


verdadeiro que seja, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela. As ditas “constituição
real” e “constituição jurídica”, consoante nomenclatura utilizada por LASSALLE, estariam em
uma constante relação de coordenação e, em caso de eventual conflito, a constituição jurídica
não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Desde que preenchidos certos
pressupostos realizáveis, a força normativa da constituição será capaz de ordenar e
conformar a realidade política e social.

3.5.3 Concepção política

CARL SCHMITT, em sua obra Teoria da Constituição, publicada em 1928, distingue


constituição e lei constitucional.

Nesse contexto, constituição, enquanto modo de ser de uma unidade política, é


decisão política fundamental e vale porque deriva de uma vontade política preexistente, da
unidade política que é a Nação. Surge mediante um ato do poder constituinte, o qual não
contém disposições outras que não a decisão sobre a concreta forma de conjunto pela qual
se pronuncia a unidade política, “a totalidade da unidade política considerada em sua
particular forma de existência”.

As leis constitucionais seriam os demais dispositivos inscritos do texto do


documento formal constitucional que não contêm matéria de decisão política fundamental;

10
necessitam, para serem válidas, de uma decisão política prévia, derivada da vontade do poder
constituinte, esta, sim, autêntica constituição.

Enfim, a gênese das constituições, para SCHMITT, apresentaria o seguinte


encadeamento lógico (TEIXEIRA, 2011, p. 73): unidade política –> vontade política de existir
–> decisão concreta de conjunto sobre o modo e a forma de existir (constituição).

3.5.4 Concepção jurídica

A concepção estritamente jurídica de constituição é liderada por HANS KELSEN, que


a leva às últimas consequências. Comentando o pensamento do jurista austríaco, JOSÉ
AFONSO DA SILVA (2017, p. 41) afirma que a constituição, sob esse viés, é considerada
“norma pura, puro dever-ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política
ou filosófica”. É a escola do “normativismo jurídico”, que considera Direito apenas o Direito
positivo, não competindo ao jurista o estudo da realidade social complexa, por uma questão
de método. KELSEN concebe a Constituição em dois sentidos:

1. Lógico-jurídico: constituição, aqui, significa justamente norma fundamental


hipotética (Grundnorm), norma que não é posta, mas pressuposta, e cuja função é servir de
fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídico-positiva. Para
fundamentar sua teoria do direito, KELSEN (2006, p. 222) optou pelo entendimento de que
deve existir um ponto de partida: no caso do processo da criação do Direito positivo, o ponto
de partida é a norma fundamental, ou seja, a constituição no sentido lógico-jurídico, que não
se confunde com a norma posta/positiva.

2. Jurídico-positivo: por esta acepção, constituição equivale à “norma positiva


suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu
mais alto grau” (SILVA, 2017, p. 41). É a norma jurídica que fundamenta todo o sistema
jurídico-positivo (CUNHA JR., 2017, p. 80).

11
3.5.5 Concepção culturalista

As concepções culturalistas de constituição são trabalhadas por diversos autores. No


Brasil, sempre citado é o jurista J. H. MEIRELLES TEIXEIRA (2011). Para ele, é possível dizer
que a constituição é um produto cultural (assim como o próprio Direito), produzido pela
sociedade e que sobre ela pode influir. O Direito pertence ao mundo da Cultura porque é
criação do homem.

Como a Cultura se trata de uma unidade organizada ou sistema, cada uma de suas
partes (Direito, Moral, Religião, Economia, Arte etc.) considera-se simultaneamente causa e
efeito das demais (causalidade ou condicionamento recíproco). Por exemplo, se a Economia
influi no Direito, o Direito reage sobre a Economia (CUNHA JR., 2017, p. 85). Assim, o Direito
atua como fator configurante de outras manifestações culturais e produz efeitos sobre a vida
individual e social.

Essa visão revela a ideia de constituição total, que reúne aspectos econômicos,
sociológicos, jurídicos e filosóficos em uma perspectiva unitária, fugindo ao unilateralismo
das concepções puras.

3.6 Objeto

O objeto ou conteúdo das constituições varia conforme o momento histórico.

Quando foram editadas as primeiras constituições escritas, o conteúdo correspondia


à organização fundamental do Estado e à declaração de um conjunto de direitos e garantias
fundamentais. Podemos falar que esse é o conteúdo mínimo de qualquer Constituição
moderna.

O aumento do objeto das constituições decorre da ampliação das funções estatais


nos tempos modernos. Numa sociedade complexa como a atual, é compreensível a
preocupação do legislador constituinte de regulamentar a vida total do Estado e da sociedade
(CUNHA JR., 2017, p. 103). Assim, além da notória ampliação dos direitos fundamentais,

12
assumem relevância constitucional temas como os fins sociais, econômicos e financeiros do
Estado (programas de ação política), o que corrobora o pensamento doutrinário crítico no
sentido de que não há mais razão de ser em diferenciar constituição material e constituição
formal (SILVA, 2017, p. 45; CUNHA JR., 2017, p. 103).

De toda forma, a título exemplificativo de normas apenas formalmente


constitucionais, podem ser citados os dispositivos que estabelecem o regime jurídico dos
servidores notariais (art. 236) e o status federal do Colégio Pedro II, localizado no Rio de
Janeiro (art. 242).

Lado outro, as normas apenas materialmente constitucionais, como as que


tratam da vigência das leis, do direito intertemporal, de hermenêutica, e, para alguns, do
direito eleitoral e dos detalhes do processo legislativo, apesar da relevância do conteúdo, não
têm status de superioridade hierárquica, porque não compõe o corpo formal da Carta Magna.

3.7 Elementos

O estudo dos elementos da constituição é de remissão obrigatória ao professor JOSÉ


AFONSO DA SILVA. Segundo o mestre (2017, p. 46-7), as constituições contemporâneas
contêm normas que tratam de matérias de natureza e finalidade as mais diversas, geralmente
agrupadas em Títulos ou Capítulos temáticos.

São cinco as categorias de elementos sistematizadas por SILVA:

(1) Elementos orgânicos: contidos nas normas que regulam a estrutura do Estado
e do poder. São encontrados nos Títulos III (Da Organização do Estado), IV (Da Organização
dos Poderes), V (especificamente nos Capítulos II e III, que tratam Das Forças Armadas e Da
Segurança Pública) e VI (Da Tributação e do Orçamento).

(2) Elementos limitativos: extraídos das normas que formam o catálogo de direitos
e garantias fundamentais, que limitam a ação dos poderes estatais. Estão inscritos,

13
majoritariamente, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais, com exceção dos
chamados Direitos Sociais, que entram na próxima categoria).

(3) Elementos socioideológicos: correspondem às normas “que revelam o caráter


de compromisso das constituições modernas entre o Estado individualista e o Estado Social,
intervencionista”, como as do Capítulo II do Título II (Dos Direitos Sociais) e as dos Títulos VII
(Da Ordem Econômica e Financeira) e VIII (Da Ordem Social).

(4) Elementos de estabilização constitucional: inscritos nas normas destinadas a


assegurar a solução dos conflitos constitucionais, a defesa da constituição, do Estado e das
instituições democráticas. Exemplos: arts. 34 a 36 (Da Intervenção nos Estados e Municípios),
art. 60 (Processo de emendas à Constituição), art. 102, I (controle de constitucionalidade) e
arts. 136 a 141 (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio).

(5) Elementos formais de aplicabilidade: consagrados nas normas que estatuem


regras de aplicação das constituições, como o art. 5º, § 1º (que impõe a aplicação imediata
das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais), as disposições
constitucionais transitórias (ADCT) e o preâmbulo da Constituição (que, em boa verdade, não
se trata de norma jurídica).

3.8 Classificações das constituições

3.8.1 Quanto ao conteúdo (ou natureza) das normas

Quanto ao conteúdo as constituições podem ser materiais (substanciais) ou formais


(procedimentais).

(a) Constituição em sentido material ou substancial – é aquela concebida como


o conjunto de “normas constitucionais escritas ou costumeiras, inseridas ou não num
documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os
direitos fundamentais” (SILVA, 2017, p. 42).

14
Só compõe a constituição material aquela classe de normas que dispõem sobre
matéria essencialmente constitucional, que se revestem de importância ímpar para a
existência do Estado, não havendo qualquer relevância na forma dessa disposição (CUNHA
JR., 2017, p. 104). O que importa é o conteúdo da norma.

(b) Constituição em sentido formal ou procedimental – é o conjunto de normas


reduzidas à forma escrita e reunidas em um “documento solenemente estabelecido pelo
poder constituinte e somente modificável por processos e formalidades especiais nela
própria estabelecidos” (SILVA, 2017, p. 43), tenham ou não valor constitucional material,
podendo tratar de qualquer assunto, ainda que não tipicamente constitucional.

3.8.2 Quanto à forma

Quanto à forma, as constituições podem ser escritas (instrumentais) ou não escritas


(consuetudinárias ou costumeiras).

(a) Constituição escrita ou instrumental – para JOSÉ AFONSO DA SILVA (2017, p.


43), escrita é constituição “codificada e sistematizada num texto único, elaborado
reflexivamente por um órgão constituinte”. Muitos autores repetem essa ideia. Por esse
conceito, se as normas constitucionais estiverem previstas em textos esparsos, a constituição
será não escrita.

Com a evolução dos critérios tipológicos, esse conceito já não parece mais adequado.
Constituições escritas (como gênero) devem ser as materializadas em textos escritos, sejam
eles esparsos ou codificados; e como espécies de constituições escritas (subclassificação
quanto à sistematização), há as constituições codificadas ou orgânicas, sistematizadas em um
único texto, e as constituições não codificadas, inorgânicas ou “legais”, que admitem textos
separados que contenham normas constitucionais.

15
Também é importante registrar que as constituições escritas não são incompatíveis
com o reconhecimento de elementos constitucionais não escritos, como normas implícitas e
costumes constitucionais (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 56).

(b) Constituição não escrita, costumeira ou consuetudinária – para JOSÉ


AFONSO DA SILVA (2017, p. 43), é aquela Constituição “cujas normas não constam de um
documento único e solene, mas se baseie principalmente nos costumes, na jurisprudência e
em convenções e em textos constitucionais esparsos, como é a Constituição inglesa”.

3.8.3 Quanto à sistematização ou unidade documental

Quanto à sistematização ou unidade documental, as constituições podem ser, de um


lado, unitárias, orgânicas, codificadas, unitextuais ou reduzidas, e, de outro, variadas,
inorgânicas, pluritextuais, dispersas, não codificadas ou “legais”.

(a) Constituições unitárias, orgânicas, unitextuais, reduzidas ou codificadas –


são as constituições escritas que se apresentam num instrumento único e exaustivo de todo
o seu conteúdo, em um corpo único de lei, geralmente dividido em títulos, capítulos e seções.

(b) Constituições variadas, inorgânicas, pluritextuais, dispersas, não


codificadas ou “legais” – são aquelas compostas de normas espalhadas em diversos
documentos fisicamente distintos.

3.8.4 Quanto ao modo de elaboração

Quanto ao modo de elaboração, as constituições podem ser dogmáticas ou históricas.

(a) Constituição dogmática – “sempre escrita, é a elaborada por um órgão


constituinte, e sistematiza os dogmas ou ideias fundamentais da teoria política e do Direito
dominantes no momento” (SILVA, 2017, p. 43). É criada de um só fôlego.

(b) Constituição histórica – “não escrita, é, ao contrário, a resultante de lenta


formação histórica, do lento evoluir das tradições, dos fatos sociopolíticos, que se cristalizam

16
como normas fundamentais da organização de determinado Estado, e o exemplo ainda vivo
é o da Constituição inglesa” (SILVA, 2017, p. 43).

3.8.5 Quanto à origem

Quanto à origem, a constituição pode ser promulgada, outorgada, cesarista ou


dualista.

(a) Constituição popular (promulgada, democrática ou votada) – as


constituições populares são as “que se originam de um órgão constituinte composto de
representantes do povo, eleitos para o fim de as elaborar e estabelecer” (SILVA, 2017, p. 43).
São fruto de uma Assembleia Constituinte (Convenção) dotada de legitimidade popular.

Em nossa história constitucional, são exemplos as Constituições de 1891, 1934, 1946


e 1988.

(b) Constituição outorgada – as outorgadas são as “elaboradas e estabelecidas sem


a participação do povo, aquelas que os governantes – Rei, Imperador, Presidente, Junta
Governativa, Ditador – por si ou por interposta pessoa ou instituição, outorga, impõe,
concede ao povo” (SILVA, 2017, p. 43).

São exemplos as Constituições brasileiras de 1824, 1937, 1967 e 1969.

(c) Constituição cesarista (bonapartista) – é aquela que não é considerada


outorgada, pois conta com participação popular, mas também não se enquadra como
democrática, já que essa participação do povo visa apenas ratificar a vontade do detentor do
poder, ou seja, trata-se de participação de cunho meramente formal. JOSÉ AFONSO DA SILVA
(2017, p. 43-4) afirma que é cesarista porque formada por “plebiscito popular” sobre um
projeto elaborado por um Imperador (plebiscitos napoleônicos) ou um Ditador (plebiscito
de Pinochet, no Chile). A redação do texto não conta com participação de representantes
eleitos pelo povo (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 67). No mesmo sentido, NOVELINO

17
(2019, p. 103) aduz que “as constituições outorgadas submetidas a plebiscito ou referendo na
tentativa de aparentarem legitimidade são denominadas de constituições cesaristas”.

(d) Constituição dualista (pactuada) – é a que surge mediante pacto entre o


soberano e a organização nacional, “um compromisso instável de duas forças políticas rivais”
(BONAVIDES, 2018, p. 90).

3.8.6 Quanto à estabilidade ou grau de alterabilidade

Quanto à estabilidade, as constituições podem ser rígidas, flexíveis, semirrígidas


(semiflexíveis), transitoriamente flexíveis, super-rígidas, imutáveis ou fixas.

(a) Constituição flexível – a constituição é flexível “quando pode ser livremente


modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de elaboração das leis ordinárias. Na
verdade, a própria lei contrastante muda o texto constitucional” (SILVA, 2017, p. 44).

(b) Constituição rígida – é a constituição “somente alterável mediante processos,


solenidades e exigências formais especiais, diferentes e mais difíceis que os de formação das
leis ordinárias ou complementares” (SILVA, 2017, p. 44). Uma autoridade superior emana
das normas constitucionais e, por isso, não se admite que sejam revogadas ou alteradas por
leis comuns.

(c) Constituição semirrígida (semiflexível) – é a constituição “que contém uma


parte rígida e outra flexível, como fora a Constituição do Império do Brasil, à vista de seu art.
178” (SILVA, 2017, p. 44). Pela Constituição de 1824, seriam rígidas as normas que dissessem
respeito aos limites e atribuições dos Poderes Políticos, e aos direitos políticos e individuais
dos cidadãos; as demais normas seriam flexíveis, isto é, poderiam ser alteradas pelas
legislaturas ordinárias, não demandando um procedimento especial como aquelas outras.

(d) Constituições transitoriamente flexíveis – são aquelas que só podem ser


modificadas pelo mesmo rito das leis comuns durante determinado período; uma vez

18
ultrapassado este interregno, o documento constitucional se torna rígido. BULOS (2019, p.
118) cita como exemplos a Constituição de Baden de 1947 e a Carta irlandesa de 1937.

(e) Constituições super-rígidas – ALEXANDRE DE MORAES (2020, p. 9) defende o


caráter super-rígido da Constituição brasileira de 1988, por conta da existência de cláusulas
pétreas, imutáveis (art. 60, § 4º). As normas que contam com essa proteção, em verdade,
podem ser modificadas; o que não se admite é o atingimento do seu “núcleo essencial”.

(f) Constituições imutáveis (graníticas, permanentes ou intocáveis) – são as que


se pretendem eternas, por força da crença de que seus valores são imutáveis. Geralmente são
associadas a Estados teocráticos ou civilizações mais primitivas, marcadas pelo medo da
maldição dos deuses. NOVELINO (2019, p. 105) cita como exemplos o Código de Hamurabi e
a Lei das XII Tábuas.

(g) Constituições fixas (silenciosas ou em branco) – são as que não preveem o


procedimento e a competência para a sua reforma. Há quem entenda que essas constituições
só poderiam ser modificadas por um poder de competência idêntica àquele que as criou, ou
seja, pelo constituinte originário (BULOS, 2019, p. 119). O exemplo que o autor cita é o
Estatuto do Reino da Sardenha de 1848, que viria a ser a primeira Constituição da Itália.

3.8.7 Quanto à essência, ao modo de ser ou à conformação à realidade

Essa classificação tem por base “a análise ontológica da concordância das normas
constitucionais com a realidade do processo do poder” (MIRANDA, 1996, t. 2, p. 23), ou seja,
a aptidão para produzir efeitos concretos na realidade social e política.

A construção é tributada a KARL LOEWENSTEIN, para quem a mudança fundamental


que o papel da constituição escrita sofreu na realidade sociopolítica deu origem a três tipos
de constituição: a normativa, a nominal e a semântica (LOEWENSTEIN, 1983, p. 216).

19
(a) Constituições normativas – são “aquelas cujas normas dominam o processo
político, aquelas em que o processo do poder se adapta às normas constitucionais e se lhes
submete” (MIRANDA, 1996, t. 2, p. 23-4).

(b) Constituições nominais (nominalistas) – são “aquelas que não conseguem


adaptar as suas normas à dinâmica do processo político, pelo que ficam sem realidade
existencial” (MIRANDA, 1996, t. 2, p. 23-4). A dita constituição nominal, apesar de
juridicamente válida, não teve êxito em adaptar a dinâmica do processo político às suas
disposições normativas, carecendo de “realidade existencial”.

(c) Constituições semânticas – são “aquelas cuja realidade ontológica não é senão
a formalização da situação do poder político existente em benefício exclusivo dos detentores
de facto desse poder” (MIRANDA, 1996, t. 2, p. 23-4). Os detentores do poder dispõem do
aparato coativo do Estado e o utilizam para formalizar a situação de domínio e restringir a
liberdade de ação das pessoas, exatamente o contrário do que seria o papel original de uma
constituição (a limitação da concentração do poder).

3.8.8 Quanto à ideologia (ou dogmática)

(a) constituições ortodoxas ou monistas – são as elaboradas com base em um


pensamento ideológico único. São exemplos as Constituições soviéticas de 1923, 1936 e
1977, que contemplavam projeto ideológico socialista.

(b) constituições ecléticas, pluralistas, heterogêneas ou compromissárias – são


aquelas que conciliam linhas ideológicas diversas, aparentemente contrapostas, a exemplo
da Constituição brasileira de 1988. Resultam do fato de que nenhum grupo, no momento
constituinte, tem força suficiente para, sozinho, tomar a decisão soberana; assim, um
compromisso entre as correntes antagônicas dá ensejo ao texto constitucional (SOUZA NETO;
SARMENTO, 2014, p. 63).

20
(c) constituições imparciais – são as que mantêm neutralidade política. A seu
respeito, vejam-se as lições de SOUZA NETO e SARMENTO (2014, p. 64):

A Constituição imparcial não tem a pretensão de instituir um amplo projeto


econômico e social. Ela visa a garantir que a interação democrática entre os
diversos grupos plurais ocorra de maneira justa e pacífica: protege os direitos
fundamentais, os procedimentos democráticos e as instituições políticas básicas.
Mas não se pronuncia sobre a forma de organizar a vida econômica e social.

3.8.9 Quanto à extensão

Quanto à extensão, as constituições podem ser sintéticas ou analíticas.

(a) Constituições sintéticas, sumárias, tópicas, breves, concisas, sucintas,


básicas ou curtas – como todos esses nomes dizem, são as que contêm poucos dispositivos,
são concisas e compactas, restringindo-se aos elementos substancialmente constitucionais.
Abrangem os princípios gerais ou enunciam regras básicas de organização e funcionamento
do sistema jurídico estatal (BONAVIDES, 2018, p. 91). O detalhamento é deixado à tarefa do
legislador ordinário.

(b) Constituições analíticas, prolixas, extensas, amplas, inchadas, minuciosas,


detalhistas, desenvolvidas ou longas – são as cartas detalhistas, repletas de número
elevado de artigos que muitas vezes se desdobram em parágrafos, incisos e alíneas.
Geralmente trazem matéria alheia ao Direito Constitucional propriamente dito.

3.8.10 Quanto à função ou finalidade (ou estrutura)

Quanto à função, as constituições se subdividem em constituição-garantia,


constituição dirigente e constituição-balanço.

(a) constituições-garantia, estatutárias ou orgânicas – são as que se ocupam do


estatuto do poder, do sistema dos seus órgãos e da participação política dos cidadãos, sem
detalhar o sistema econômico e social (MENDES; BRANCO, 2019, p. 63). Pode-se falar

21
também que são as que visam a garantir a liberdade, limitando o poder (FERREIRA FILHO,
2015, p. 42).

(b) constituições dirigentes, programáticas, diretivas ou doutrinais – são


aquelas que não se limitam a organizar politicamente o Estado (embora também o façam),
mas ainda estabelecem programas, diretrizes e metas para a atividade estatal no domínio
econômico, social e cultural.

(c) constituições-balanço (constituições-registro) – descrevem e registram a


organização política estabelecida, ou melhor, registram um estágio das relações de poder,
conforme a doutrina soviética (FERREIRA FILHO, 2015, p. 42).

3.8.11 Quanto ao grau de liberdade deferido ao legislador ordinário

(a) constituição-lei – é aquela entendida como uma norma que está no mesmo nível
das demais normas do sistema jurídico. A função seria meramente indicativa para a atuação
do Legislativo, sem qualquer supremacia ou vinculação. Assim o legislador teria amplo
campo de atuação e liberdade.

(b) constituição-fundamento – a constituição é entendida como lei fundamental de


toda a vida social (constituição total; ubiquidade constitucional), tornando-se o legislador
mero intérprete da Carta, com espaço de liberdade bastante reduzido. VIRGÍLIO AFONSO DA
SILVA (apud NOVELINO, 2019, p. 100-1) afirma que essa ideia não é aceita em muitos países,
mas está implícita em grande parte da doutrina brasileira.

(c) constituição-moldura – a constituição é concebida como um limite para a


atividade legislativa, que poderá atuar dentro desses contornos. A jurisdição constitucional
apenas fiscalizaria se o legislador age dentro da moldura. Seria uma posição intermediária
entre as anteriores. NUNES JÚNIOR (2019, p. 216) afirma que essa posição é a que prevalece
no Brasil. O STF, inclusive, já se manifestou nesse sentido:

22
(...) CONSTITUIÇÃO-MOLDURA. NORMAS FUNDAMENTAIS LIMITADORAS DA
DISCRICIONARIEDADE LEGISLATIVA. (...) A Constituição da República, a despeito
de não ter estabelecido um modelo normativo pré-pronto e cerrado de
financiamento de campanhas, forneceu uma moldura que traça limites à
discricionariedade legislativa, com a positivação de normas fundamentais (e.g.,
princípio democrático, o pluralismo político ou a isonomia política), que norteiam
o processo político, e que, desse modo, reduzem, em alguma extensão, o espaço de
liberdade do legislador ordinário na elaboração de critérios para as doações e
contribuições a candidatos e partidos políticos. (...) (ADI 4650, j. 17.9.15)

3.8.12 Quanto ao sistema

Quanto ao sistema, as constituições podem ser principiológicas ou preceituais.

(a) Constituições principiológicas – são, para alguns doutrinadores (FERNANDES,


2017, p. 43), as constituições em que predominam os princípios, embora também possam
conter normas do tipo regra.

(b) Constituições preceituais – são aquelas em que predominam as regras, embora


possam conter princípios, a exemplo da Constituição do México de 1917 (FERNANDES, 2017,
p. 44).

3.8.13 Quanto à origem da decretação

Quanto à origem da decretação, as constituições podem ser autônomas


(autoconstituições) ou heterônomas (heteroconstituições).

(a) Constituições autônomas, autoconstituições ou homoconstituições – são as


constituições elaboradas por órgãos do próprio Estado, democraticamente ou não. É o que
ocorreu com todas as Constituições brasileiras.

23
(b) Constituições heterônomas ou heteroconstituições – são aquelas decretadas
fora do Estado que irão reger, ou seja, são impostas por outras nações ou por uma
organização internacional.

3.8.14 Quanto à pretensão de ser um instrumento definitivo ou de transição

Quanto à pretensão de ser um instrumento definitivo ou de transição, as


constituições podem ser provisórias ou definitivas.

(a) Constituições provisórias, revolucionárias ou pré-constituições – são


aquelas que têm por finalidade definir o regime de elaboração e aprovação da constituição
formal e estruturar o poder político no intervalo constitucional entre o antigo regime o novo.
Seria o caso da Constituição interina da África do Sul de 1993, país que editou, três anos
depois, a sua constituição definitiva (NOVELINO, 2019, p. 109, citando as lições de JORGE
MIRANDA).

(b) Constituições definitivas ou de duração indefinida para o futuro – são as que


pretendem constituir o produto final do processo constituinte.

3.8.15 Classificação da Constituição brasileira de 1988

A vigente Constituição brasileira pode ser classificada da seguinte forma:

1. Quanto ao conteúdo: é constituição formal, por conter dispositivos que são


considerados apenas formalmente constitucionais. No sistema adotado no Brasil, importa não
o conteúdo, mas a superioridade formal das normas que integram o texto constitucional.

2. Quanto à forma: nossa constituição é escrita, embora não seja incompatível com
costumes constitucionais.

3. Quanto à sistematização: ao menos originariamente, tratava-se de constituição


unitária, unitextual ou codificada. Com o passar do tempo, percebem-se normas
constitucionais autônomas constantes de emendas à Constituição, além de normas sobre

24
direitos humanos de documentos internacionais que são internalizadas com status de
equivalência às emendas constitucionais, sem que sejam encartadas no texto formal e
codificado da Lei Maior (embora possam ser formalmente constitucionais, nos termos do art.
5º, § 3º, da CF). Se isso não é suficiente para enquadrá-la como variada ou não codificada, ao
menos permite concluir que a Carta vem paulatinamente caminhando para tal rumo.

4. Quanto ao modo de elaboração: a constituição brasileira de 1988 é dogmática,


consagradora das ideias dominantes do período e criada de um só fôlego.

5. Quanto à origem: é popular, democrática, promulgada ou votada, por ter


contado com intensa participação popular.

6. Quanto à estabilidade: é rígida, por demandar procedimento solene e mais


dificultoso para a reforma. Há quem a classifique como super-rígida.

7. Quanto à essência: embora haja controvérsia doutrinária, deve-se anotar que a


CF/88 é nominal, uma vez que diversos dos seus preceitos ainda não encontram consonância
na vida real. Para fins de concurso público, é preciso reconhecer que há bancas que
consideram que a CF/88 é normativa.

8. Quanto à ideologia ou dogmática: é eclética, pluralista, heterogênea ou


compromissária, por conciliar ideologias distintas.

9. Quanto à extensão: a CF/88 é analítica, prolixa, extensa, ampla, inchada,


minuciosa, detalhista, desenvolvida ou longa, por conter número elevado de dispositivos,
extremamente detalhistas.

10. Quanto à função ou estrutura: é constituição dirigente, por contemplar os


objetivos a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade (art. 3º, art. 170 etc.).

11. Quanto ao grau de liberdade deferido ao legislador ordinário: não há uma


classificação correta, pois depende da concepção adotada pelo estudioso. Para alguns, trata-

25
se de uma constituição-fundamento, aquela que conforma toda a vida social e deixa pouco
espaço para o legislador atuar. Parece prevalecer, contudo, tratar-se de constituição-
moldura, que concebe limites para a atividade legislativa, a qual só poderá atuar dentro
desses contornos. Assim já se manifestou o STF (ADI 4.650, j. 17.9.15).

12. Quanto ao sistema: fala-se que se trata de constituição principiológica, por


conferir destaque a normas do tipo princípio.

13. Quanto à origem da decretação: é uma autoconstituição, por ter sido


elaborada por órgão do próprio Estado, eleito por seu povo.

14. Quanto à pretensão de ser um instrumento definitivo ou de transição: é


definitiva ou de duração indefinida para o futuro, pois concebida como produto final do
processo constituinte.

4 Histórico das constituições brasileiras

4.1 Constituição imperial (1824)

Apesar de tolerar a escravidão, adotar um poder moderador e estabelecer um


sistema eleitoral censitário amplamente excludente, a ideologia adotada pela Carta de 1824
era liberal, inspirada pelas Revoluções do século XVIII, e se pautava sobretudo na
Constituição francesa de 1814 (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 101).

O texto era extenso e tinha caráter semirrígido (ou semiflexível), por força do seu
art. 178. Adotada a forma unitária de Estado, o Senado não exercia a função de representar
os estados, mas a de moderar os excessos da Câmara dos Deputados (SOUZA NETO;
SARMENTO, 2014, p. 102). Não havia qualquer referência ao controle judicial de
constitucionalidade.

26
A forma de governo era a monarquia hereditária (art. 3º) e o monarca não estava
“sujeito a responsabilidade alguma”, por ser pessoa “inviolável” e “sagrada” (art. 99). A
religião oficial era a Católica Apostólica Romana (Estado confessional), embora se permitisse
o culto doméstico de outras religiões (art. 5º).

O exercício do Poder Moderador pelo Imperador se dava mediante as seguintes


competências (art. 101): I. Nomeando os Senadores; II. Convocando a Assembleia Geral
extraordinariamente nos intervalos das Sessões, “quando assim o pede o bem do Império”;
III. Sancionando os Decretos, e Resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de
Lei; IV. Aprovando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciais;
V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, “nos
casos, em que o exigir a salvação do Estado”, convocando imediatamente outra, que a
substitua; VI. Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado; VII. Suspendendo
os Magistrados nos casos do Art. 154; VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os
Réus condenados por Sentença; IX. Concedendo Anistia em caso urgente, “e que assim
aconselhem a humanidade, e bem do Estado”.

Adotou-se no texto constitucional (art. 6, inc. IV) a chamada naturalização tácita,


reputando-se “cidadãos brazileiros” todos os “nascidos em Portugal, e suas Possessões, que
sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias,
onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua
residência”.

A pouca efetividade da Constituição do Império permitiu que se instalasse, no


segundo Reinado, à revelia do texto, um regime parlamentarista (que vigorou de 1847 a
1889).

4.2 Constituição de 1891

Na confecção do texto da nova Carta, revisado por Ruy Barbosa, a influência europeia
acabou sendo sufocada pelos ventos e influxos constitucionais norte-americanos. A

27
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil alinhou-se a uma repartição clássica
de poderes, com Legislativo bicameral, Executivo chefiado pelo Presidente da República e
Judiciário dotado de prerrogativas como vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e
competência para declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos (controle difuso).
O Supremo Tribunal Federal, criado um ano antes pelo Decreto 510, era o órgão de cúpula,
inspirado na Suprema Corte norte-americana, e contava com 15 membros, escolhidos não
necessariamente pelo notável saber jurídico (embora o Senado não os houvesse aprovado
quando destituídos da formação em Direito). O Poder Moderador consagrado na Constituição
Imperial foi suprimido.

A laicidade do Estado foi evidenciada em vários dispositivos.

Reconheceu-se novamente a naturalização tácita (grande naturalização), agora de


forma mais ampliada, considerando-se cidadãos brasileiros os “estrangeiros, que achando-se
no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de
entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem” (art. 69, 4º),
e “os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiros ou
tiverem filhos brasileiros contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção
de não mudar de nacionalidade” (art. 69, 5º).

As antigas Províncias foram transformadas em Estados com autonomia política,


administrativa e financeira (art. 63). O modelo de federalismo era dual, com separação entre
as esferas estadual e federal e pouco espaço para a cooperação. Os Municípios possuam
autonomia (art. 68), mas não eram considerados entidades federativas.

4.3 Constituição de 1934

Em razão de forte influência da Constituição alemã de Weimar, de 1919, e contando


com menor inspiração na Constituição mexicana de 1917, o texto da Carta de 1934
estabeleceu uma democracia social, atendendo a uma das principais preocupações de Vargas,

28
que era a promoção dos direitos sociais (TAVARES, 2018, p. 92). Assim, incorporou uma série
de temas como a ordem econômica, a família, a cultura, a educação e as relações de trabalho.

Fala-se, então, em função social da propriedade (art. 113, n. 17). No âmbito das
garantias individuais, foram previstos o mandado de segurança (art. 113, n. 33) e a ação
popular (art. 113, n. 38).

O modelo federativo passou a ser cooperativo, contando com previsão de


competências concorrentes (art. 10), apesar da tendência centralizadora, evidenciada pela
ampliação das competências privativas da União (art. 5º).

O Senado foi objeto de arquitetura constitucional controvertida, eis que incumbido


de “promover a coordenação dos Poderes federais entre si, manter a continuidade
administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos
da sua competência” (art. 88). SOUZA NETO e SARMENTO (2014, p. 119) concluem que, sob
a vigência da Constituição de 1934, o Senado deixou de ser um órgão do Legislativo, que se
tornou unicameral, não tendo mais participação no processo legislativo, salvo em temas
determinados (art. 91).

O texto previu a criação da Justiça do Trabalho (art. 122), mas a inscreveu na esfera
do Executivo. A Justiça Eleitoral, criada no regime provisório, encontrou previsão
constitucional (arts. 82 e 83). No âmbito do controle de constitucionalidade, três novos
instrumentos foram criados: a cláusula de reserva de plenário (art. 179), a competência do
Senado para suspender a execução das normas declaradas inconstitucionais pelo Judiciário
(art. 91, IV) e a criação da representação interventiva, como embrião do controle de
constitucionalidade concentrado (art. 12, § 2º).

O Ministério Público passa a encontrar expressa previsão no texto constitucional, no


capítulo que tratava “dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais” (arts. 95 a
98). Antes, na Constituição de 1891, havia menção apenas ao Procurador-Geral da República,

29
que era designado pelo Presidente da República, dentre os membros do Supremo Tribunal
Federal, e cujas atribuições seriam definidas em lei (art. 58, § 2º).

4.4 Constituição de 1937

Em 10 de novembro de 1937, o Presidente Getúlio Vargas fechou o Congresso


Nacional com o apoio de tropas da Polícia Militar (o que perdurou até 1946) e outorgou uma
nova Carta Política, sem qualquer participação de um órgão de representação popular.
Inspirada na Constituição polonesa de 1935 e de outras fontes autoritárias, foi batizada de
“A Polaca”.

Previa a existência do Legislativo, formado pela Câmara dos Deputados e pelo


Conselho Federal – que substituiu o Senado. Também previu o Judiciário, enfraquecido pela
não alusão à Justiça Eleitoral e à Justiça Federal de 1º e 2º graus, pela manutenção da Justiça
do Trabalho na esfera administrativa (art. 139) e pelo disposto no parágrafo único do art. 96,
que assim versava:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do


Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou
defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços
de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.

Também tratou do Executivo, a cuja chefia conferiu a “autoridade suprema do


Estado” (art. 73) e órgão ao qual possibilitou, nos períodos de recesso do Parlamento ou de
dissolução da Câmara dos Deputados, expedir decretos-leis sobre as matérias de
competência legislativa da União (art. 13).

Houve coartação de direitos individuais. O mandado de segurança e a ação popular


foram desconstitucionalizados.

30
4.5 Constituição de 1946

A Carta é tida como uma das mais avançadas. Restaurou as conquistas obtidas com a
Constituição de 1934, como a vedação à pena de morte e a previsão do mandado de segurança
e da ação popular; restituiu o equilíbrio entre os Poderes; reestruturou o Senado; atribuiu ao
Judiciário a palavra final sobre questões de inconstitucionalidade das leis; restaurou a
eletividade dos Prefeitos, antes suprimida pela Carta de 1937.

O sufrágio era universal e direto, e o voto era secreto (art. 134). Vedou-se a
organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo
programa ou ação contrariasse o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e
na garantia dos direitos fundamentais do homem (art. 141, § 13).

Os decretos-lei, novidade da Constituição de 1937 (art. 12), não encontraram


previsão no texto de 1946, e só voltariam com as Constituições de 1967 (art. 49, V) e 1969
(art. 46, V).

No Judiciário, houve a integração da Justiça do Trabalho (art. 94, V), antes inserida
no Executivo; a volta da Justiça Eleitoral (art. 94, IV); e a instituição do Tribunal Federal de
Recursos (arts. 103 a 105). O que não havia era previsão da Justiça Federal de 1º grau, que só
seria criada durante o Governo Militar, mediante o Ato Institucional 2, de 27 de outubro de
1965.

Com a Emenda Constitucional 4, de 2 de setembro de 1961, a Constituição foi


alterada para modificar o sistema de governo presidencialista para o parlamentarista, em
razão da aversão a João Goulart, que assumiria a Presidência por força da renúncia de Jânio
Quadros. No ano seguinte, realizou-se plebiscito para deliberação sobre a manutenção, ou
não, do parlamentarismo. Decidiu-se, então, pelo retorno ao presidencialismo, o que foi
formalizado pela Emenda Constitucional 6, de 23 de janeiro de 1963.

31
Posteriormente, a Emenda Constitucional 16/1965 previu a primeira ação de
controle abstrato de constitucionalidade do sistema constitucional brasileiro: “a
representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou
estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República” (art. 101, I, “k”).

4.6 Constituição de 1967

A Constituição de 1967 foi fortemente marcada pelo autoritarismo, enunciado pelo


uso reiterado da expressão “segurança nacional”; pela instituição de ressalvas à liberdade de
pensamento; pela exclusão da apreciação judicial de atos praticados pelo “Comando Supremo
da Revolução de 31 de março de 1964” (art. 173, caput); pelo poder conferido ao Presidente
da República, inclusive com previsão de competência legislativa, a exemplo dos decretos-lei
(art. 49, V), utilizados para quase tudo. Aliás, se o texto do decreto não fosse rejeitado em 60
dias pelo Congresso Nacional, seria tido como aprovado (art. 58, parágrafo único).

A Constituição de 1967 foi extremamente centralizadora no pacto federativo. Os


direitos e garantias fundamentais sofreram alguns retrocessos.

O pior ainda estava por vir: o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, cuja
ementa sintetizava: “São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições
Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e
municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de
quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e
municipais, e dá outras providências.”

4.7 Constituição de 1969

Em 17 de outubro de 1969, a Junta Militar editou a Emenda Constitucional n. 1,


arvorando-se na competência atribuída ao Presidente da República para elaborar emendas à
Constituição durante o recesso parlamentar. Muitos estudiosos defendem o caráter não
apenas reformador, mas instituidor de uma nova Carta Política, tantos foram os dispositivos

32
constitucionais substituídos. Conforme apontam SOUZA NETO e SARMENTO (2014, p. 148),
“as emendas, como emanação de um poder constituinte derivado, têm o seu fundamento na
própria Constituição que modificam. Porém, a assim chamada Emenda n. 1 não foi outorgada
com fundamento na Constituição de 1967, mas sim com base no suposto poder constituinte
originário da ‘Revolução vitoriosa’, que se corporificava, mas não se exauria, nos atos
institucionais editados pelos militares”. Aliás, o texto outorgado pela Junta Militar reproduziu
todos os dispositivos da Carta de 1967 e não apenas os que foram alterados, como
comumente ocorre com as emendas constitucionais.

4.8 Constituição de 1988

Nos termos da Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, os membros


da Câmara dos Deputados e do Federal reunir-se-iam, unicameralmente, em Assembleia
Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso
Nacional (art. 1º). Não houve, portanto, eleição específica para os constituintes (“constituinte
exclusiva”).

O fato de a Assembleia Constituinte ter sido convocada por Emenda Constitucional


levou juristas do porte de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO a defenderem a tese de
que se tratava de exercício de um poder derivado e, portanto, limitado. Essa linha de
pensamento é minoritária e merece ser afastada, já que a emenda foi apenas o veículo formal
de convocação da Constituinte de 87/88, mas não o seu autêntico fundamento de validade,
que repousava na soberania popular, evidenciada por movimentos democráticos como o das
Diretas Já (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 158-9).

Como inovações, trouxe novos remédios constitucionais como o habeas data e o


mandado de injunção, além de ter ampliado os bens jurídicos salvaguardados pela ação
popular. Tutelou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito do
consumidor e cuidou de elenco generoso de direitos sociais, sobretudo os trabalhistas. A
extinção do Tribunal Federal de Recursos e a criação do Superior Tribunal de Justiça

33
modificou a estrutura do Judiciário, o que foi ainda mais alargado com a “Reforma do
Judiciário” promovida pela Emenda Constitucional 45/2004, com a criação do instituto da
súmula vinculante e dos efeitos vinculantes das decisões em determinadas ações especiais,
bem como a criação do Conselho Nacional de Justiça. Ações novas no âmbito do controle de
constitucionalidade (ADO, ADPF, ADC) e a ampliação dos legitimados para deflagrar tais
instrumentos jurisdicionais alçaram o Supremo Tribunal Federal a um protagonismo nunca
antes visto.

O Ministério Público, que na Constituição de 1967 figurou como integrante do Poder


Judiciário (arts. 137 a 139) e na Constituição de 1969 foi encartado no âmbito do Poder
Executivo (arts. 94 a 96), passa a ser instituição autônoma, situada fora dos três Poderes,
como uma das “funções essenciais à Justiça” (arts. 127 a 130-A).

Os Municípios foram elevados a entes componentes da Federação, com autonomia


política, administrativa e jurídica (arts. 1º e 18) (federalismo tridimensional). Apesar de
manter um modelo centrípeto (centralizador) de federalismo, buscou promover maior grau
de centralização administrativa e financeira. Buscou-se fortalecer o combate à corrupção no
setor público por meio da ação de improbidade administrativa (art. 37, § 4º).

5 Supremacia da constituição

Modernamente, entende-se que a constituição é o conjunto normativo fundamental


de um Estado, situado no topo do ordenamento jurídico, cujos dispositivos ostentam
superioridade em face das demais normas que integram o sistema.

Embora sob críticas e sugestões de reformulações, ainda ostenta força, nos dias de
hoje, a tese magna do jurista e filósofo austríaco HANS KELSEN, segundo a qual a ordem
jurídica não é um sistema de normas que estejam ladeadas ou ordenadas em um mesmo
plano; é, ao revés, um sistema hierarquizado, “uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de normas jurídicas” (KELSEN, 2006, p. 246-7).

34
Essa construção idealizada pelo mestre de Viena é representada graficamente por
uma pirâmide. No topo da pirâmide habita a Constituição; na região intermediária ou central,
situam-se as leis (em sentido amplo) e os costumes; na base, as sentenças e os atos normativos
(secundários) (SOUZA NETO; SARMENTO, 2014, p. 23).

O princípio da supremacia da constituição consiste, portanto, na posição superior que


a constituição ocupa dentro do sistema jurídico de um determinado Estado. Nas palavras de
JOSÉ AFONSO DA SILVA (2017. p. 47), “significa que a constituição se coloca no vértice do
sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos
na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos”.

A supremacia material da Constituição está ligada ao conteúdo da norma


constitucional. Noutro giro, a ideia de supremacia formal está associada ao estudo da rigidez
constitucional, isto é, ao fato de uma norma pertencer ao documento formal que materializa
a constituição, independentemente de seu teor, somado à exigência de observância de um
procedimento mais dificultoso e solene para a alteração do texto constitucional do que aquele
necessário para a criação ou alteração da legislação infraconstitucional.

É assente na doutrina que a superioridade hierárquico-normativa da Carta Magna


(supremacia formal) só se coaduna com as constituições classificadas como rígidas (CUNHA
JR., 2017, p. 99-100). Conforme aduzem SOUSA NETO e SARMENTO (2014, p. 282), “a
supremacia da Constituição impõe que as mudanças no texto constitucional sejam mais
difíceis do que a elaboração da legislação ordinária. Esta exigência de rigidez constitucional
possibilita o entrincheiramento das decisões do poder constituinte originário, o que serve à
proteção de valores considerados fundamentais, cuja alteração ou supressão pelas maiorias
é dificultada ou mesmo impedida”.

De fato, se a constituição pudesse sofrer alterações pela mesma maneira como se


elaboram as demais leis, não se poderia falar em hierarquia da Carta Magna sobre a legislação
ordinária, ao menos no aspecto formal, por força do princípio lex posterior derogat legi priori.

35
As constituições ditas flexíveis, por seu turno, não demandam qualquer diferença
formal entre norma constitucional e norma legal e, por isso, não pressupõem um
escalonamento hierárquico-normativo. Por isso, do ponto de vista jurídico, e não apenas
político, só é possível falar em supremacia formal da constituição quando estivermos
tratando de uma constituição rígida, como é a brasileira e como é a norte-americana.

SÚMULAS

Não há súmulas de jurisprudência relevantes sobre o tema.

JURISPRUDÊNCIA

(...) CONSTITUIÇÃO-MOLDURA. NORMAS FUNDAMENTAIS LIMITADORAS DA


DISCRICIONARIEDADE LEGISLATIVA. (...) A Constituição da República, a despeito de não ter
estabelecido um modelo normativo pré-pronto e cerrado de financiamento de campanhas,
forneceu uma moldura que traça limites à discricionariedade legislativa, com a positivação
de normas fundamentais (e.g., princípio democrático, o pluralismo político ou a isonomia
política), que norteiam o processo político, e que, desse modo, reduzem, em alguma extensão,
o espaço de liberdade do legislador ordinário na elaboração de critérios para as doações e
contribuições a candidatos e partidos políticos. (...) (ADI 4650, j. 17.9.15)

QUESTÕES

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


1. Prova: VUNESP - 2019 - TJ-AC - Juiz de Direito Substituto. O constitucionalismo
antigo teve início com a Magna Carta de 1215, não havendo antes desse período indícios
de experiências democráticas que contrastassem com os poderes teocráticos ou
monárquicos dominantes.

36
COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:
2. Prova: VUNESP - 2019 - TJ-RO - Juiz de Direito Substituto. O constitucionalismo
representa uma série de movimentos históricos, culturais, sociais e políticos cujo objetivo
central é a limitação do poder estatal mediante o estabelecimento de uma Constituição.
Sobre a sua evolução histórica e caraterísticas, é correto afirmar que as Revoluções liberais
do Século XVIII e início do Século XIX, promovidas na Europa Ocidental, são fruto do
denominado constitucionalismo moderno, e foram caracterizadas, dentre outros
elementos, pela consagração das liberdades individuais e defesa da igualdade em sentido
formal.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


3. Prova: VUNESP - 2018 - TJ-MT - Juiz Substituto. O modelo de constitucionalismo
praticado no mundo contemporâneo segue, nas suas linhas gerais, o padrão que foi
estabelecido pela Constituição francesa de 1791, especialmente no que diz respeito à
função do Judiciário.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


4. Prova: VUNESP - 2019 - TJ-RS - Titular de Serviços de Notas e de Registros -
Provimento. Considerando o histórico do constitucionalismo, que culmina com o
neoconstitucionalismo, e atentando, em especial, para os seus elementos formadores e
integrantes, assinale a alternativa que, corretamente, contempla uma afirmação
relacionada a uma das particularidades ou características do neoconstitucionalismo: A
Constituição caracteriza-se pela absorção de valores morais e políticos, fenômeno
conhecido pela materialização da Constituição.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


5. Prova: MPE-GO - 2014 - MPE-GO - Promotor de Justiça Substituto. O
transconstitucionalismo, também chamado de constitucionalismo transnacional, propugna
a criação de uma Constituição internacional, como forma de solução dos problemas
decorrentes da globalização, ou seja, o Direito Constitucional doméstico estaria
hierarquicamente vinculado a uma Constituição global, nas questões comuns aos Estados
envolvidos.

37
COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:
6. Prova: MPE-GO - 2014 - MPE-GO - Promotor de Justiça Substituto. O
denominado patriotismo constitucional, ao contrário do que parece sugerir, apregoa o
abandono de ideias nacionalistas e a associação aos fundamentos do republicanismo,
buscando um potencial inclusivo calcado nos valores plurais do Estado Democrático de
Direito e no multiculturalismo.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


7. Prova: MPE-MS - 2018 - MPE-MS - Promotor de Justiça Substituto. Para
Ferdinand Lassalle, que a entende no sentido sociológico, a constituição de um país é, em
essência, a soma dos fatores reais do poder que regem esse país, sendo esta a constituição
real e efetiva, não passando a constituição escrita de “uma folha de papel”.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


8. Prova: CEFET-BA - 2015 - MPE-BA - Promotor de Justiça Substituto (com
adaptações). Observe a seguinte formulação acerca do fundamento de uma constituição:
“(...) surge a ideia de constituição total, com aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e
filosóficos, a fim de abranger o seu conceito em uma perspectiva unitária (...)”. Trata-se da
concepção culturalista.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


9. Prova: CESPE - 2017 - TJ-PR - Juiz Substituto. De acordo com o conceito de
Constituição-moldura, o texto constitucional deve apenas apresentar limites para a
atividade legislativa, cabendo ao Poder Judiciário avaliar se o legislador agiu conforme o
modelo configurado pela Constituição.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


10. Prova: UEG - 2018 - PC-GO - Delegado de Polícia. A Constituição Federal
brasileira de 1988 classifica-se quanto à origem, ao modo de elaboração, à alterabilidade,
à dogmática e ao critério ontológico de Karl Loewenstein, respectivamente, em
promulgada, dogmática, rígida, eclética e normativa.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


11. Prova: FCC - 2018 - MPE-PB - Promotor de Justiça Substituto. A Constituição
do Império do Brasil, de 1824, é considerada “semirrígida” porque admitia ser alterada em
parte por lei comum e em parte por emenda constitucional.

38
COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:
12. Prova: MPT - 2020 - MPT - Procurador do Trabalho. A Constituição de 1891
inaugurou no nosso direito constitucional o chamado controle difuso de
constitucionalidade.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


13. Prova: TRF - 3ª REGIÃO - 2016 - TRF - 3ª REGIÃO - Juiz Federal Substituto. A
forma federativa de Estado foi prevista na Constituição de 1891, mas ainda assim não foi
assegurada autonomia aos Municípios na condição de entes federados.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


14. Prova: FUNDEP (Gestão de Concursos) - 2019 - MPE-MG - Promotor de
Justiça Substituto. Em qual Constituição o Presidente da República poderia submeter
novamente ao exame do Poder Legislativo lei declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal?

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


15. Prova: VUNESP - 2018 - TJ-SP - Juiz Substituto. O Ato Institucional n° 5
suspendeu as garantias constitucionais e legais da vitaliciedade, inamovibilidade e
estabilidade e excluiu da apreciação judicial os atos nele fundados.

COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO:


16. Prova: CESPE - 2019 - SEFAZ-RS - Auditor Fiscal da Receita Estadual. A
supremacia material deriva do fato de a CF organizar e distribuir as formas de
competências, hierarquizando-as. Já a supremacia formal apoia-se na ideia da rigidez
constitucional.

_________________________________________________________________________________________________________
Gabarito

1. Errado. 2. Certo. 3. Errado. 4. Certo. 5. Errado. 6. Certo. 7. Certo. 8. Certo. 9. Certo. 10.
Certo (polêmico). 11. Certo. 12. Certo. 13. Certo. 14. 1937. 15. Certo. 16. Certo.

39

Você também pode gostar