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A filosofia jurídica da democracia

Bobbio, um work in progress

Roberto Bueno

Sumário
1. Diálogos teóricos, políticos e filosóficos
na obra bobbiana. 2. A filosofia bobbiana e sua
relação com os conceitos do formalismo jurídi-
co kelseniano. 3. Bobbio: funcionalismo e his-
toricismo como métodos de abordagem do fe-
nômeno jurídico. 4. Em torno ao historicismo e
ao positivismo. 5. Hermenêutica e o fenômeno
das lacunas no ordenamento jurídico. 6. Consi-
derações finais.

1. Diálogos teóricos, políticos e


filosóficos na obra bobbiana
O enquadramento de um filósofo do di-
reito e da política da estirpe e da dimensão
de Bobbio em uma e tão-só determinada cor-
rente de pensamento de modo preciso é ta-
refa sobejamente ingrata, acaso considera-
da realmente factível. Tal dificuldade em
classificar sua ampla produção leva à ado-
ção de uma metodologia que é a de aproxi-
mações temáticas e bastante objetivas ao seu
pensamento. Com esse procedimento é pos-
sível aproximar Bobbio de uma ou outra
corrente em temas pontuais sem, no entan-
to, pretender fixá-lo, de modo excludente, a
uma só linha filosófica. A essas dificulda-
des soma-se o fato de que o pensador em
questão não deixou em muitos momentos a
ambigüidade de lado, em outros tantos tra-
balhou com conceitos em paralelo, aliás, um
de seus métodos prediletos, sem que em al-
Roberto Bueno é Professor da Faculdade de guns casos procedesse a um exame exausti-
Direito da Unisep. vo da matéria em questão.
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Em uma primeira visão amplificada da frente a tantas, e influentes, linhas doutri-
filosofia bobbiana, ela demonstra uma evi- nárias, também é certo que o próprio filóso-
dente aversão a rótulos. Essa é uma prática fo reconhece ter sofrido forte atração pelo
do turinês desde seu período de juventude, neopositivismo tanto como pela filosofia
quando na Itália o cenário filosófico e polí- analítica. Em suas palavras, no ano de 1979,
tico era todavia disputado por idealistas, reconhecia que tinha se sentido “fortemen-
espiritualistas, positivistas e neokantianos. te atraído pelo neopositivismo e pela filoso-
Em que pese a multiplicidade de opções, fia analítica durante os anos em que tinha
Bobbio preferiu trabalhar com a oposição começado a ocupar-se continuamente da
de categorias, às vezes até ambíguas, a filiar- teoria geral do direito e da metodologia da
se a um ou outro ismo, ou, como disse Rossi ciência jurídica” (PECES-BARBA, 1990, p.
(2005, p. XVII), que “preferiva servirsi di un 11). Sem embargo, o reconhecimento da in-
procedimento analitico inteso a stabilire distin- fluência sofrida de modo algum faculta-nos
zioni, magari opposizioni”. Seguramente esse concluir sobre sua decisiva filiação a essas
é um método filosófico bastante promissor correntes, pois o autor arrematava acerca de
no que tange ao debate e à imersão no mun- suas incertezas dizendo que “nunca tinha
do das idéias, bem mais do que aquele que se considerado um neopositivista nem tam-
busca, por meio de certezas e pré-conceitos, pouco um filósofo analítico no sentido es-
afirmar seus pontos de partida, dogmas e trito da palavra” (PECES-BARBA, 1990, p.
axiomas de todo tipo. 11). Parece, portanto, que Bobbio distingue
Bobbio sempre fez referência, e expres- abertamente o “sentir-se fortemente atraído”
samente, à forma com que se autopercebia do “estar filiado a alguma corrente”.
no rol dos pensadores. Já no prólogo a uma Seu maior envolvimento com a filosofia
de suas obras, na primeira edição de sua analítica assim como com o denominado
Contribuição a Teoria do Direito, dizia clara e neopositivismo deu-se durante os anos em
expressamente que “não me considero um que esteve ocupado mais diretamente com a
filósofo neopositivista [...]” – oportunidade Teoria Geral do Direito e da Metodologia2
em que rechaçava, então, boa parte daque- da Ciência Jurídica. Esse foi o período que
les que o vinculavam de modo direto a essa teve início em sua juventude e que na matu-
corrente – “[...] nem tampouco um filósofo ridade (o qual é possível determinar como
analítico no sentido estrito da palavra”1. O sendo o do segundo quartel dos anos qua-
que era, então, Bobbio? Em princípio, como renta, período que sucede à última grande
todo filósofo, era alguém que, diante das guerra) desembocou em sua migração para
perplexidades da vida, dedicava-se funda- o campo da Ciência Política. O período ime-
mentalmente à de procura de respostas, e diatamente anterior à guerra compreende o
o fazia enfrentando questões específicas espaço temporal dos anos trinta. É do ano
e espinhosas nos campos do direito e da de 1934 que datam seus primeiros escritos.
política. A etapa que compreende o período que abre
Qualquer dessas possibilidades assina- em 1949 pode ser denominada como per-
ladas não deixaria de causar transforma- quiridora. Nela suas pesquisas o levaram a
ções sobre a interpretação bobbiana em ma- concentrar-se mais detidamente em temas
téria política. Além dessa clareza no senti- filosóficos, talvez influenciado por esse tema
do de desvincular-se das matrizes filosófi- ter sido seu último objeto de estudos univer-
cas apontadas, ele sustentava que nunca sitários, posto que, lembremos, obteve sua
sequer pensara que alguma vez poderia es- licenciatura em Direito em 1931 e em Filoso-
tar filiado a uma dessas correntes. No en- fia no ano de 1933.
tanto, paralelamente a essa postura que po- Relativamente às discussões estabeleci-
deríamos denominar como “independente” das sobre sua “confissão” da influência

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neopositivista e da filosofia analítica, diz Centro de Estudos foi extremamente ativo
Bobbio que, no período final de predomi- na promoção de cursos e conferências, sen-
nância com preocupações de índole filosó- do que uma delas, pronunciada por Bobbio
fica, já estava cansado de discursos dema- e intitulada Ciência do Direito e análise da lin-
siado generalistas, inclusive metafísicos3, guagem, tornou-se, no dizer de Alfonso Ruiz-
sobre o ser e o não ser. Isso se deveu à sua Miguel (Cf. 1994, p. 63; 1991, p. 18), “o con-
necessidade de “permanecer com os pés no teúdo programático” da escola e do positi-
chão” (PECES-BARBA, 1990, p. 11), o que vismo lógico dos estudos jurídicos na Itália
confere à sua filosofia um indesmentível (corrente a qual Bobbio nunca deixou de
caráter realista. Esse é um sólido ponto de matizar sua inscrição) e posteriormente deu
partida para uma filosofia realista que per- lugar à escola analítica de filosofia do direi-
mitiu o uso do rigor conceitual e o trato com to. Nessa conferência sobre Ciência do Direi-
os vocábulos que tanto o neopositivismo to e análise da linguagem, ele realizou uma
(BOBBIO, 2001)4 como a filosofia analítica análise prescritiva (e nesse sentido se torna
lhe ofereceram. Paralelamente à influência sinônimo de imperativo) e não meramente
dessas escolas, o filósofo turinês não deixa descritiva7. Em outros termos, dedicou aten-
de mencionar a de Hans Kelsen, a quem ex- ção não somente àquilo de que se ocupam
plicitamente diz dever “não só a metodolo- os juristas mas também à realidade das nor-
gia como os conteúdos que abordou” mas postas e em prescrever o que essas de-
(BOBBIO, 2001, p. 12)5 e, em algum caso, até veriam realizar e conter. É em momentos
mesmo a sua isenção no que se refere ao como este que fica claro o quanto Bobbio não
mundo dos valores (Cf. BOBBIO, 2001, p. foi “apenas” kelseniano. Mas nem sempre
125; VIGIO, 1991). Obviamente, sobre esse foi assim. Em alguns momentos, em torno
aspecto não se pode admitir uma influência aos anos cinqüenta até início dos sessenta,
continuada, pois é sabida a repercussão das tinha ensaiado ocupar-se do direito como
questões ético-morais no desdobramento de ele é, ou seja, do ser do direito e não do dever
seus trabalhos. Não obstante a referência à ser, o que bem caracterizava a concepção do
sua grande admiração desde seu primeiro positivismo jurídico na época.
contato com a teoria do direito kelseniana e Mas a postura de Bobbio perante o posi-
da impressão altamente positiva que lhe dei- tivismo e o jusnaturalismo é tudo, menos
xou devido ao seu caráter de “clareza con- clara e indiscutível. O filósofo assinalou por
ceitual, originalidade e simplicidade das diversas vezes sua proximidade a uma ou
soluções, além da coerência dentro do siste- outra das correntes, e em algum momento
ma como um todo” (BOBBIO, 1997, p. 155). mencionou estar dividido entre ambas. Há
Mas essa, em que pese ser uma das grandes circunstâncias em que ele se refere que, em
influências, está longe de ser a única. O termos políticos, o positivismo representa-
turinês reconhecia sua dívida em mesmo va a aceitação do status quo. Nesse âmbito
grau com outros de seus “mestres” como político, fica igualmente marcada sua opo-
Alf Ross, e, dizia, “desnecessário subli- sição ao jusnaturalismo, posto que histori-
nhar”, com Herbert Hart (BOBBIO, 1997, camente exerceu função altamente transfor-
p. 149). madora, senão inspiradora de movimentos
A relação mais íntima de Bobbio com a revolucionários.
filosofia analítica parece estar na fundação Nesse contexto de certas contradições e
do Centro de Estudos Metodológicos, o que indecisões, a melhor interpretação sobre o
realizou juntamente com reputados filóso- rumo da filosofia bobbiana parece ser a de
fos como Ludovico Geymonat e Nicola um de seus mais abalizados estudiosos,
Abbagnano6, na cidade de Turim no ano de Ruiz-Miguel (1990, p. 31). O autor sugere
1946. Sob a direção desse seleto grupo, o que Bobbio está muito mais próximo do po-

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sitivismo do que do jusnaturalismo, leitura É sabido como Bobbio expressou seu
que recebe apoio de Peces-Barba (1993, p. pouco apreço por seus primeiros escritos.
20), que fala de um positivismo moderado, No entanto, se o próprio filósofo identifica o
idéia à qual me somaria. Em favor de sua ano de 1949 como sendo o do início de seu
proximidade ao positivismo, é possível in- período de maturidade, eis que também dis-
vocar um argumento tomado das próprias pomos de escritos dessa época que, segun-
palavras do jusfilósofo. do ele mesmo, “não os aproveitaria”, ou seja,
Em uma de suas obras, dizia Bobbio que não voltaria a escrevê-los no mesmo sen-
(1993a, p. 53-54) que, em sua abordagem das tido. Um exemplo disso é o citado discurso
proposições prescritivas, iria respeitar o sobre a Ciência do Direito e a análise da lingua-
ponto de vista formal, considerando a nor- gem. Nessa conferência, realizada na cida-
ma como independente de seu conteúdo, de de Bruxelas, Bobbio expôs e defendeu a
apenas tomando-a em sua estrutura. Isso autonomia da ciência jurídica ante outras
tornaria possível que as normas viessem a disciplinas, advogando uma metodologia
ser “rellenada(s) por los más diversos conteni- de caráter meramente descritivo, ou seja,
dos”8, o que, enfim, admite ser a análise da abandonava sua anterior posição em que
norma desde a ótica formal. Tanto é assim adotava uma metodologia prescritiva, a
que ainda haveria de considerar que, por qual, de qualquer maneira, originou a Scienza
exemplo, o imperativo negativo contido na del Diritto e analisi del linguaggio, que é a base
norma “não pisar nas flores” equivale ao do que veio denominar-se Escola de Turim
da norma “não matar” (BOBBIO, 1993a, p. ou Escola Analítica de Filosofia do Direito.
54). Isso demonstra seu distanciamento da Isso é o que vem justificar que intérpretes
ponderação da questão axiológica. Desde como Ruiz-Miguel (1993, p. 18) sustentem a
logo, em um tema como o que se propõe ana- presença de um positivismo jurídico que se
lisar, esse tipo de abordagem que adota é esforça por converter o direito em uma au-
revelador do espírito filosófico que lhe ins- têntica ciência, “caracterizada por sua neu-
pirava naquele momento. tralidade valorativa”. Indubitavelmente,
Essa sua postura em prol do positivis- nesse momento paira no ar a teoria pura
mo, sem embargo, não lhe arrefeceu o âni- kelseniana.
mo na admissão da crise pela qual passara
como ideologia e teoria. A partir disso, con- 2. A filosofia bobbiana e sua relação com
cluiria que a concepção positivista do direi- os conceitos do formalismo jurídico
to implica a aceitação do status quo (apud,
kelseniano
RUIZ-MIGUEL, 1994, p. 214) e que ela é boa
ou má conforme seja a perspectiva de quem A aproximação à caracterização da filo-
analisa a situação a conservar. Em outro sofia de Bobbio, parece-me que a devemos
momento diria, em meio a crise do positivis- realizar de modo relativo, isto é, sem buscar
mo, “el positivismo ha muerto, ¡viva el iusnatu- determinar influências decisivas em sua
ralismo!” (Cf. RUIZ-MIGUEL, 1994, p. 82). obra que o classifiquem definitiva e pura-
Descontado o exagero da irrupção momen- mente entre tal ou qual “ismo”. Nesse senti-
tânea de um extremismo que nem remota- do cabe sublinhar que, embora o autor men-
mente é um elemento marcante em sua obra, cione sua grande dívida intelectual com
parece que, por regra, devemos aceitar que, Hans Kelsen9, no entanto, não deixou de
entre as afirmações feitas por Bobbio vida reconhecer, paralelamente, que deveria ser
afora, não é possível sustentar firmemente matizado o entendimento de que o repute-
uma outra postura de modo sólido senão mos como um positivista lógico.
nos termos matizados e relativizados utili- Por outro lado, como examinava, não
zados por Ruiz-Miguel. cabe dúvida que seus estudos sofreram gran-

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de influência do formalismo jurídico kelse- sempre em um contexto de normas com re-
niano, o que, entre outros aspectos, é de- lações particulares entre si”. Essa perspec-
monstrado por meio de um dos principais tiva vem substituir a anterior de analisar o
temas da filosofia jurídica, qual seja, o do direito por meio do estudo de normas isola-
fundamento de validade das normas jurídi- das, “olhando cada árvore mas nunca a flo-
cas. Nele o filósofo turinês não aceita a tese resta” (BOBBIO, 1989, p. 20). Essa sucessão
kelseniana de que tal fundamento do orde- pode ser apreciada no conteúdo, mas até
namento jurídico (Rechtsordnung) e de todas mesmo no título, de duas de suas mais im-
as normas que o compõem se encontra na portantes obras, Teoria da Norma Jurídica e
“norma fundamental” (Grundnorm) kelse- Teoria do Ordenamento Jurídico. Essa altera-
niana 10. ção de paradigma dentro da filosofia do di-
Relacionados a essa concepção das nor- reito leva Bobbio a entender que a própria
mas como sistema, podemos identificar ou- existência ou validade da norma jurídica
tros dois momentos do pensamento bobbia- individual depende de que seja considera-
no. No primeiro deles, o turinês assinala que do o ordenamento jurídico (Cf. RUIZ-
a validade das normas jurídicas depende MIGUEL, 1994, p. 224-225) ainda mesmo
de três elementos, quais sejam: a) determi- quando se demonstre ela, ou um grupo de-
nar se a autoridade que a promulgou tinha las, incompatível com o restante do sistema.
o poder legítimo para expedir normas jurí- Nesse ponto não difere essencialmente de
dicas; b) comprovar se ela não foi derroga- Kelsen, cuja filosofia não admite, ab initio,
da; c) comprovar que ela não seja incom- tal ordem de contradições internas.
patível com outras normas do sistema Outro aspecto no qual a doutrina de
(BOBBIO, 1993a, p. 34). Em uma segunda Bobbio acerca-se, embora não se confunda,
fase, contudo, é perceptível uma sensível al- dos postulados kelsenianos é no que diz res-
teração de perspectiva do jusfilósofo. Ele peito à análise da justiça das normas, e à
passa a sustentar, ao contrário, em que pese conseqüência que isso acarreta à validade
manter-se clara a influência do mestre do das mesmas. Esse é um dos núcleos temáti-
formalismo jurídico no que diz respeito à cos que Bobbio (1990f, p. 300) toma empres-
temática alvo de pesquisa, que a fundamen- tado de Hans Kelsen e que justifica a afir-
tação do ordenamento jurídico reside em mação do filósofo turinês de que se serviu
uma área que para Kelsen se localiza fora do triunfante positivista bem no que se refe-
do ordenamento. A discrepância entre am- re ao conteúdo ou bem no que se refere aos
bos, que sob nenhuma ótica é despicienda, temas abordados. Não obstante o emprésti-
informa que para Bobbio a fundamentação mo, e até mesmo a aproximação em vários
se dá na política, no poder (Cf. VIGO, 1991, pontos, tal como o de que uma norma pode
p. 157), e não nas condições formais que ser justa sem ser válida e válida sem ser jus-
possam ser eleitas para tanto, posição pela ta11, a solução bobbiana distanciar-se-ia
qual se inclinara em um primeiro momento. daquela encontrada por Kelsen, cujo cará-
Entretanto, em qualquer dos dois momen- ter cético é auto-evidente ao leitor do turi-
tos é perceptível como, desde certa leitura, nês. Em outro trecho de sua obra, Bobbio
demonstra não rejeitar a teoria kelseniana. (1990f, p. 43) volta ao tema para sublinhar
Ele o faz ao sustentar que as normas não que a justiça e a validade de uma norma são
deixam de ser válidas devido a sua ineficá- duas coisas diferentes, reiterando, assim,
cia (RUIZ-MIGUEL, 1983, p. 268). uma perspectiva positivista que o distancia
O que significará para Bobbio (1989, p. de um dos pressupostos basilares da tradi-
19-21) um ordenamento jurídico? Ele aceita ção jusnaturalista, na qual, segundo sugere
expressamente o fato de que “as normas ju- em alguns momentos, pretendeu demons-
rídicas nunca existem isoladamente, mas trar estar inserido.

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Bobbio caminha sob o fio da navalha no Alguns anos após, em uma de suas di-
sentido de não deixar confundir seu traba- versas revisões de conteúdo, o filósofo volta
lho com a obra kelseniana, bem como com ao mesmo tema para reconhecer que as teo-
seus postulados formalistas. Quando por rias que se ocupam meramente da estrutura
teoria formal do direito entende o estudo da ou da forma do direito como sistema inde-
estrutura normativa prescindindo do con- pendente não perfazem uma alternativa vi-
teúdo das normas, ele começa a colocar as ável. Em outros termos, elas acabam em cer-
condições para concluir posteriormente da to sentido desmarcando-se da proclamada
impossibilidade de abarcar o fenômeno ju- influência de seu mestre Kelsen13, o autor a
rídico em toda sua amplitude. Não obstante quem reconhecia mais dívida intelectual
as idas e vindas em que esteve imerso du- (BOBBIO, 1990, p. 12)14. Tudo isso levado
rante muito tempo, em sua Teoria Geral do em conta, parece mesmo que, embora em seu
Direito defende a idéia de que sua filosofia período de formação intelectual essa rela-
jurídica deve permanecer alheia aos juízos ção entre Bobbio e a teoria kelseniana possa
de valor assim como às análises sociológi- ser reputada como de rechaço, ao fim e ao
cas. Esse posicionamento provavelmente cabo, como diz Ruiz-Miguel (1983, p. 244),
reflete uma aceitação, embora parcial, da “lo cierto es que Bobbio no ha seguido ni mucho
posição de Ayer (1965, p. 165). Segundo este, menos a la teoría pura del Derecho al pie de la
os “juicios de valor [...] son simplemente expre- letra”. Isto caracteriza não uma especial
siones de emoción que no pueden ser ni verdade- oposição a Kelsen e a sua teoria, mas sim a
ras ni falsas”. Nesse mesmo sentido a posi- predominância, mesmo em sua fase madu-
ção de Ruiz-Miguel (1983, p. 238), para ra, daquela que em seu momento o mesmo
quem em Bobbio a distinção entre prescri- intérprete espanhol qualificou como sua
ções e valorações diz respeito à relação en- posição “antiformalista, antiiusnaturalista
tre normas e juízos de valor. Ao fim e ao y antisociologista” (RUIZ-MIGUEL, 1983,
cabo, essa descrição aproxima-se das teses p. 191).
positivistas, cuja defesa é remetida à área Não obstante, quando Bobbio transita de
da filosofia analítica no campo jurídico. seu período de juventude ao seu momento
Essa tomada de posição de Bobbio ocor- maduro, em torno ao ano de 1949 – segun-
re na década de 1950 e coincide com o que do sugere Ruiz-Miguel –, torna-se possível
Ruiz-Miguel (1994, p. 67) afirma ser o mo- apreciar em que termos ocorre sua aproxi-
mento em que o turinês coloca os pilares de mação à teoria kelseniana do direito. Perce-
sua teoria geral do direito e não menos do be-se como dialoga com aspectos que em tese
positivismo. No sentido de proceder a defe- lhe são distantes tanto quanto com outros
sa dos postulados dessa teoria, o nosso au- dos quais se aproxima. Mais uma vez bro-
tor escreve 1955 seu Studi sulla teoria genera- tam as ambigüidades bobbianas que, segun-
le del diritto. Nele a teoria geral do direito se do ele próprio, não lhe ocupou tempo em
encontra como disciplina de caráter formal. desatar os nós teóricos.
Cabe lembrar que, alguns anos antes, escre-
vera, em um de seus artigos, abertos elogios 3. Bobbio: funcionalismo e historicismo
à teoria kelseniana, quando a descrevera como métodos de abordagem do
como “a doutrina mais importante e [...] a
fenômeno jurídico
mais rigorosa que a ciência jurídica produ-
ziu até agora” (BOBBIO apud RUIZ-MI- É necessário aclarar que boa parte dos
GUEL, 1994, p. 70). Mesmo que dotados de trabalhos realizados por Bobbio – e está por
alta carga, em elogios de tamanha força re- determinar se não foram os mais influentes
tórica ao mestre de Praga Bobbio não andou – puderam ser realizados segundo o méto-
desacompanhado. do funcionalista de conceber o Direito. O

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novo entendimento, que poderíamos deno- fase de Bobbio, em um segundo momento
minar com algum cuidado de “virada bob- de sua maturidade, tornou-se altamente in-
biana”, acontece em torno ao início da dé- satisfatório para quem via “a floresta e não
cada de setenta, no mesmo período em que mais as árvores isoladamente”. Bobbio ad-
surge a Rechtssoziologie de Luhmann (1992)15, mitiria, de uma posição de crítica metodoló-
e estabelece que a teoria formal deveria abrir gica, que todo direito não pode prescindir
espaços a uma teoria funcional ou socioló- da introdução de valorações ideológicas no
gica. Isso possibilitaria evitar as acérrimas conteúdo da laboração legislativa dos legis-
críticas que brotavam desde a esquerda acer- ladores. Com segurança, a preocupação com
ca do suposto amoralismo das teses relati- esse tema indica o quanto começa a distan-
vistas que necessariamente emanavam do ciar-se razoavelmente dos postulados mais
positivismo jurídico. caros ao positivismo. Não obstante, não o
A validade da teoria formal não é posta faz completamente, e não apenas no que ao
em questão por Bobbio (1990b) à medida que direito como também ao que à política pos-
esta seja completada em seu vácuo qualita- sa ser aplicado.
tivo por uma outra que contemple uma am- Tudo isso serve para ir estruturando a
pla abordagem sociológica. O autor propug- argumentação no sentido de demonstrar o
nou pela formação de um direito antitradi- quanto o enquadramento da filosofia de
cional, o qual buscaria seu objetivo não nas Bobbio é uma tarefa que requer atenção, cui-
regras do sistema, mas na análise das rela- dado e, ainda assim, de êxito incerto. Creio
ções e valores sociais16 (BOBBIO, 1990b, p. que assim seja porque é complexa, pois, à
228). Essa é uma tarefa possível de realizar medida que o tempo flui, ela termina por
apenas por uma aliança da ciência jurídica alterar alguns de seus postulados. Segundo
com as ciências sociais (BOBBIO, 1990b, p. penso, ela o faz com força suficiente para
229), o que, desde logo, termina por distanci- enquadrá-lo predominante, mas não exclu-
ar a reflexão bobbiana dos princípios basila- siva e excludentemente, em uma ou outra
res do positivismo jurídico. Enfim, Bobbio das correntes filosóficas de modo seguro. Na
desenvolve uma trajetória que lhe conduz realidade, Bobbio incorporou a contribuição
desde uma posição antipositivista e forma- de diversos setores da filosofia jurídica.
lista a uma segunda, mais próxima e, para- Nesse sentido, Vigo (1991, p. 165) sustenta
lelamente, a defensora dos postulados do que Bobbio não prescindiu de análises soci-
normativismo kelseniano. Foi apenas em um ológicas, políticas e valorativas, pois sem
momento posterior que desembocou em uma elas perderia em sistematicidade e realismo
espécie de termo médio das duas anterio- assim como em veracidade.
res, tanto no que se refere a uma teoria jurí- Dessa maneira, parece próprio evitar um
dica como política, que, ao fim e ao cabo, rótulo pretensamente seguro e bem defini-
não passavam de dois pólos entre os quais do em um personagem não apenas multifa-
cabiam perfeitamente teorias intermediári- cético como cambiante. Mais genuína e do-
as (BOBBIO, 1965, p. 211). tada de cientificidade é a aceitação do per-
Bobbio parece ter alcançado teoria inter- sonagem como eclético, ambíguo e, por ve-
mediária impulsionado pelo desconforto zes, e não raro, contraditório. Não obstante,
sentido em sua convivência, digamos, com pode ser dito com propriedade que o ponto
os estritos postulados do formal-positivismo de arranque de sua filosofia jurídica esteja
jurídico de origem kelseniana. Ao excluir na junção do positivismo jurídico (Cf. RUIZ-
toda e qualquer possibilidade de contribui- MIGUEL, 1990, p. 15) com a filosofia analí-
ção da ética, da sociologia ou mesmo da tica. Poderá isso permitir a interpretação do
política para os estudos do mundo do direi- conjunto de sua filosofia jurídica como per-
to, o sistema, nessa que denomino terceira tencente a uma férrea linha positivista-jurí-

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dica? Absolutamente. Conforme sustenta ção à existência de algum tipo de concep-
Vigo (1991, p. 155), Bobbio defenderia, se- ção abstrata tal como a de um suposto “ho-
guindo a linha funcionalista, que o direito mem” universal. Por outro lado, a concep-
não pode ser estudado de modo “puro”, isto ção proposta pelos revolucionários france-
é, sem que sejam tomadas em consideração ses era inversa. Eram proclives a admitir a
também suas dimensões econômicas, polí- existência de uma natureza universal do
ticas, sociais, etc. A razão disso é que nelas homen, abstração não compartilhada por
são encontradas todas as condições de onde contra-revolucionários como Burke. Univer-
o fenômeno jurídico pode brotar. Em pa- sal em sua concepção, necessariamente o
lavras do próprio Bobbio, “el derecho no es seriam também os direitos do homem. Não
un sistema cerrado e independiente, aunque existia, para o historicista, o homem com “h”
nada impide considerarlo como tal cuando nos maiúsculo que fascinava os revolucioná-
ponemos en el punto de vista de sus estructu- rios franceses. Para o historicista, existia
ras formales” (apud RUIZ-MIGUEL, 1994, tão-somente o homem concreto, ambicio-
p. 218). so e – diria, algo hobbesianamente – ca-
Tudo isso leva Ruiz-Miguel (1994, p. rente de saciar desejos, que perambulava
211) a concluir que a passagem de uma “te- pelas ruas.
oría estructural a la teoría funcional es también O historicismo filosófico não podia mais
el paso de una teoría formal (!o pura) a una teo- do que ater-se aos aspectos concretos da
ría sociológica (!o impura!)”. Em outros ter- vida, materiais e distanciados de qualquer
mos, dedicar-se a compreender o direito dis- sorte de metafísica. Marx, a seu tempo, sa-
tanciado da realidade fática no pensamen- beria recolher os restos dessa trilha e, de for-
to de Bobbio seria como tentar descobrir o ma engenhosa, articular os princípios de seu
potencial de crescimento de uma planta ol- materialismo histórico. Os historicistas opu-
vidando completamente as circunstâncias nham-se às peculiaridades de ordem abs-
climáticas bem como do solo onde se pre- trata que se pudessem atribuir ao homem
tende plantá-la. As sintéticas palavras de pelas suas características substanciais e fi-
Vigo (1991, p. 155) são muito ilustrativas e sicamente expressáveis. Assim, por exem-
convergentes com as de Bobbio quando diz plo, a argumentação do pioneiro Gustav
que a realidade humana compreende a rea- Hugo não era distinta. Ao perguntar-se o
lidade jurídica, e não o inverso, como a teo- que era o Direito, respondia que ele era o
ria pura levada ao extremo tenta de forma produto da ação legislativa estatal (apud
altamente persuasiva fazer crer. BOBBIO, 1993b, p. 62). Nada mais parecido
Em consonância com uma perspectiva com a futura argumentação do positivismo
histórica, Bobbio sustenta que o positivis- e de sua versão jurídica, na medida em que
mo tem sua origem remota na Compilação ambos tinham como objeto central de preo-
de Justiniano e que realiza notáveis avan- cupação os fatos que pudessem ser aborda-
ços com as reflexões proporcionadas pelo dos cientificamente, i.e., controlados experi-
pensamento de Hobbes sobre o direito. Não mentalmente.
menos importante foi o debate da teoria pio- O historicismo igualmente apresentou
neira de Gustav Hugo e da Escola Histórica um caráter filosófico que mais tarde rende-
de Savigny, precedidos pelo historicismo ria ampla condenação ao positivismo jurí-
filosófico, com a escola do direito natural, dico. Em seus passos iniciais, o historicis-
momentos que se desdobrariam já entrado mo se encaminhava pela trilha da condena-
o século XIX17. A argumentação historicista ção ao pensamento iluminista, ao passo que
que o pôs nas origens do positivismo se si- o potencial da racionalidade era visto com
tuava basicamente no fato de que combatia muita cautela. Isso, por outro lado, propici-
o direito natural a partir de sua contraposi- ava que a crença na desordem e, mesmo, na

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irracionalidade do avanço histórico ganhas- iluministas-jusnaturalistas desembocariam
se espaço na interpretação da ordem das em cinco conceitos-chave para a formação
coisas também no seio de vários dos culto- do que atualmente se compreende como
res do historicismo. Foi precisamente essa positivismo jurídico: a) o dogma da onipo-
ampliação de espaço ao imponderável pro- tência do legislador; b) a crítica do direito
veniente da natureza o que veio permitir natural; c) o movimento a favor da codifica-
amplas e duríssimas críticas ao positivis- ção19; d) o abandono do direito natural; e) a
mo jurídico. Elas se concentraram em que, assunção dos postulados e a emergência
ao promover uma clivagem metodológica, das teses da Escola da Exegese (RUIZ-
terminaram por auxiliar a que fossem aber- MIGUEL, 1993, p. 13). Por outro lado, ao
tas as portas a doutrinas de estirpe totalitá- analisar o positivismo jurídico, Bobbio dei-
ria. Daí o espaço ao nazi-fascismo, que, tri- xa claras pelo menos outras cinco linhas ar-
unfa na Europa nos anos 30 e 40 do século gumentativas. A primeira delas diz que o
XX. A ignominiosa e funesta obra das di- positivismo jurídico não deve ser identifi-
versas faces do totalitarismo materializou- cado com o positivismo filosófico. A segun-
se na memória individual e coletiva através da diz que o positivismo jurídico tem como
do Gulag passando por Auschwitz, de Bi- núcleo central o conceito de direito positi-
rkenau a Treblinka, passando pelas tristes vo, termo que deve ser situado à frente do
figuras humanas de Adolf Hitler, Josef Sta- direito natural. Por situar-se à “frente”, tal-
lin, Benito Mussolini, Rudolf Hess, Adolf Ei- vez possamos identificar a questão da pre-
chmann, Josef Mengele Hermann Goering, cedência da análise científica do direito pe-
Joseph Goebbels et caterva. rante a cientificidade do direito natural.
No século XX, começou o debate entre o Uma terceira linha sustenta que o positivis-
construcionismo histórico e a crença irres- mo jurídico é a doutrina para a qual não
trita no potencial da razão. Nesse ponto se existe mais direito que o positivo (RUIZ-
manifesta o caráter otimista do Iluminismo, MIGUEL, 1993, p. 12). Disso é possível co-
que se somaria à leitura já realizada pelo meçar a extrair a conclusão de sua insa-
racionalismo jusnaturalista, principalmen- tisfação com os limites estreitos do positi-
te a partir do XVII. Ele buscava um univer- vismo.
salismo imutável de um direito oposto ao Por sua vez, a quarta linha que sugere
ceticismo contra-revolucionário dos histo- diz respeito ao fenômeno jurídico que toma
ricistas. Os historicistas incidiam no exage- o direito como um juízo de fato e não como
ro de acreditar excessivamente na precisão um juízo de valor, com o que a conclusão de
das forças humanas como base do costume que em sua tarefa o operador do direito de-
e da tradição18. Esses eram elementos que verá abster-se de formular juízos de valor. O
operariam como forjadores naturais da cri- juízo de fato, por sua vez, consiste em uma
ação de estruturas sociais justas, mais do mera descrição da realidade. Seu intuito é o
que por meio da reflexão. Talvez aqui seu de meramente informar o que ocorre, en-
pecado. Aqui se materializaria a oposição quanto o juízo de valor, que segundo o posi-
entre um direito universal construído pelo tivismo jurídico deve permanecer alheio às
esforço da razão e um outro imerso no seio tarefas do jurista, consiste em externar pon-
dos costumes e nas névoas da tradição. tos de vista valorativos sobre a realidade,
sobre a qual inflete a norma jurídica. Sua
4. Em torno ao historicismo e ao quinta linha argumentativa tem conexão
positivismo com a quarta, uma vez que não possa for-
mular juízos de valor, ocorre o reflexo na
Todos os debates precedentes entre os teoria da validade das normas, dá-se de
historicistas, os contra-revolucionários e os modo a estabelecer uma teoria formalista da

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validez do direito (BOBBIO, 1993b, p. 141), nas, que o Direito termina por ser coloniza-
levando em consideração nada mais do que do igualmente. Nos anos iniciais do século
aspectos alheios ao conteúdo da norma, sen- XIX, já era possível perceber como o Código
do, portanto, de ordem estritamente formal Napoleônico sugeria uma hermenêutica
ou extra-material. A esse respeito, são escla- profundamente devedora dos princípios do
recedoras as linhas de Zagrebelsky (2005, positivismo quando admitia uma visão fe-
p. 4) ao estudar o positivismo jurídico e sua chada da obra civil levada a termo, cuja ta-
relação com a filosofia bobbiana: “Il positi- refa primordial, agora, seria tão-somente a
vismo giuridico come modo di avvicinarsi allo de interpretar literalmente a letra daquela
studio del diritto presuppone la ´netta distinzio- legislação elaborada por portentos das le-
ne´ tra diritto reale e diritto ideale, fra diritto tras jurídicas francesas do período como
come fatto e diritto come valore, tra diritto qual è Portallis. Mas um dos sinais mais evidentes
e il diritto quale deve essere”. da relação entre a filosofia Iluminista e a
O historicismo jurídico apresenta-se, em nova concepção positivista foi essa afirma-
síntese, como um movimento nitidamente ção do valor da interpretação literal. Fun-
ligado ao desenvolvimento do pensamento damentalmente isso se deveu ao fator histó-
filosófico e jurídico alemão. Suas duas prin- rico de que os juízes do Antigo Regime to-
cipais características foram a oposição à davia permaneciam exercendo suas funções,
codificação e aos princípios do Direito Na- aliás, como em vários processos revolucio-
tural. Nessa medida, como se percebe, opu- nários sói acontecer. Assim sendo, e tam-
nha-se a duas teorias que revolucionariam, bém considerando que os revolucionários
respectivamente, o direito e, na prática, a desejavam assegurar-se de que seus avan-
política. O argumento último do historicis- ços não seriam comprometidos por um Ju-
mo propõe que o legítimo mecanismo para diciário preso aos valores do Ancien Regi-
promover a alteração das normas e o me- me, a técnica jurídica do período napoleô-
lhor instrumento para verificar qual é a von- nico recorreu ao artifício de atribuir o
tade que deve inspirá-la é o que denominou menor espaço concebível à interpretação
de Volksgeist ou, precisamente, espírito do judicial.
povo. O historicismo se inspira, portanto, A postura de Bobbio perante o positivis-
em um fenômeno de construção jurídica mo pode ser abordada a partir de sua pers-
cujas origens não são dirigidas mas, ao con- pectiva da norma jurídica. Ela é interpreta-
trário, são absolutamente espontâneas. For- da por Ruiz-Miguel (1993, p. 18) em algum
mado no decorrer do tempo, sua forma ini- momento como eminentemente positivista.
cial é a dos costumes. Esses é que são, em O jusfilósofo espanhol constata que Bobbio
sua essência, a plataforma sobre a qual o identifica norma jurídica como sendo
historicismo desenvolve suas propostas de “aquellas que se producen en la forma estableci-
reforma jurídica. da por el propio ordenamiento jurídico”. Nesse
O positivismo, por sua vez, encontra sentido, desde logo, a interpretação do po-
suas origens e seu desenvolvimento em ou- sitivismo jurídico realizada por Bobbio pos-
tra gênese. Seus argumentos podem remeter tularia a adoção de um critério eminente-
à consideração dos eventos que envolveram mente formalista para o reconhecimento das
Sócrates na Grécia Antiga ou, modernamen- normas jurídicas, dispensando completa-
te, aos argumentos hobbesianos sobre o Es- mente considerações acerca do conteúdo
tado e o Direito. Entretanto, é com a aproxi- das normas produzidas. Nesse ponto, al-
mação do século XIX e com o avanço do gumas versões do positivismo se encontram.
positivismo como teoria aplicada a diver- Entre elas a de Austin e sua teoria do dever
sas áreas além das ciências denominadas de obediência a um soberano juridicamente
exatas, e, portanto, incluindo aí as huma- limitado. Encontra-se com um Kelsen, e a

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sua limitação na Grundnorm. Por fim, nesse ma do Tribunal encarregada do julgamento
tópico das regras últimas, deparamo-nos determinou a nulidade do testamento20 por
com a teoria do positivista moderado Hart entender que, se a última vontade do testa-
sobre as regras de reconhecimento. dor tivesse sido assegurar-se da fidelidade
A teoria de Hart das regras de reconhe- da esposa após a sua morte, a fortiori, teria
cimento lança mão do argumento de que o desaprovado uma situação como aquela.
fundamento último de um ordenamento ju- Avaliando a situação, Muguerza (1998, p.
rídico é essa regra que denomina de reco- 29-30) conclui que não consegue imaginar
nhecimento. Dessa maneira, ele distancia- que o argumento dessa decisão proceda li-
se das preferências de um positivista extre- teralmente de algum texto legal. Mas se não
mado, para quem o mero cumprimento das procede daí, de onde então terão sido extra-
regras formais para a transformação de um ídos os fundamentos para uma decisão des-
projeto de lei em uma norma jurídica lhe se gênero? O filósofo espanhol atribui o cer-
confere o caráter de válida. Uma similarida- ne da decisão do Tribunal aos princípios
de entre o positivismo hartiano e o kelsenia- morais de seus membros, ou seja, recorre, de
no é que suas respectivas concepções de re- certa maneira, aos referenciais teóricos de
gra de reconhecimento e Grundnorm são re- Hart e Dworkin, preservadas as diferenças
gras últimas de um sistema jurídico. Não que subsistem entre as teorias de ambos. Em
obstante, há diferença considerável a sepa- ambos há em comum a referência à existên-
rá-las. Enquanto a hartiana é uma regra que cia de princípios morais. A evocação de tais
propicia critérios para a determinação do princípios em ambos funciona como poten-
sentido e, em certos casos, até da validade ciais elucidadores para os casos difíceis, ali
das normas, a Grundnorm, em que pese tam- onde o ordenamento jurídico não alcança
bém operar no campo da validade, pode para dar resposta satisfatória ao caso que
demonstrar-se muito pouco eficiente no sen- se apresenta. Como dizia Holmes (apud VI-
tido de estabelecer parâmetros hermenêuti- EIRA, 1999, p.187-188), “proposições gerais
cos com referências a princípios, ética e não decidem casos concretos”. Portanto,
moral para a solução daqueles que Dworkin nessa versão o positivismo não se identifica
denominou hard cases. Nesse sentido, por ao estrito purismo que caracteriza, por exem-
exemplo, dificilmente a concepção kelseni- plo, a filosofia jurídica de Kelsen.
ana ofereceria resposta adequada ao curio- Retomando a linha argumentativa, é in-
so caso mencionado por Javier Muguerza. teressante questionar nesse instante se aca-
Conta o filósofo espanhol que, em algum so poderia encontrar, entre as idas e vindas
momento dos anos cinqüenta, em plena vi- do pensamento bobbiano, uma certa forma
gência do regime franquista, o madrilenho de aproximação desse tipo de argumenta-
jornal ABC publicava crônica em que infor- ção ou se, ao contrário, estaria mais próxi-
mava de um curioso testamento. Um homem mo de um notável positivismo jurídico. Na
testara em favor de sua mulher, declaran- verdade, Ruiz-Miguel (1993, p.21) detecta
do-a sua herdeira universal, sob a condição com precisão que, no conjunto de O positi-
de que ela não voltaria a contrair núpcias. vismo jurídico, o turinês termina por decla-
Morto o homem, a mulher seguiu escrupu- rar-se favorável a uma teoria do direito ca-
losamente durante dois anos a disposição racterizada por ser “coativa, legislativa e
testamentária até que apareceu grávida. imperativa do direito”. Mas o que ele enten-
Conseqüência direta do fato, os herdeiros dia como conteúdo da coação? Por coação
mais próximos que se sentiram prejudica- entende um “elemento essencial e típico do di-
dos pelo suposto descumprimento da von- reito” (BOBBIO, 1993b, p. 157-168), um “cons-
tade do falecido marido demandaram-na titutivo de la norma jurídica” (BOBBIO, 1990d,
judicialmente. Muguerza narra que a Tur- p. 107), o qual vai ligado ao conceito de for-

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ça. Com isso é possível concluir que onde teoria jurídica com uma visão estritamente
não existir coação não poderá ser identifi- aliada ao positivismo jurídico. Segundo a
cada a presença de uma norma jurídica, mas doutrina clássica, a coação se apresenta
sim de qualquer outra similar. Essa não é como um meio para tornar eficazes as re-
uma teoria nova. Ela teve seu início na obra gras jurídicas, enquanto a teoria moderna a
de Jhering, segundo quem a aproximação a apresenta como o próprio objeto das regras
uma definição de direito deve estar compos- jurídicas. Em suma, enquanto, para a teoria
ta pela presença de normas coativas. Con- clássica, a coação se oferece ao direito como
tudo, essa noção encontrou forte obstáculo instrumento para alcançar o fim de tornar
em teoria vigente no século anterior, cujo as regras deste efetivamente cumpridas, por
núcleo sustentava a existência de normas e outro lado, a teoria moderna aceita a coação
ordenamentos jurídicos desprovidos de um como o próprio conteúdo da regra de direi-
conteúdo sancionatório, idéia com a qual to, o qual disporá como utilizá-la. Em ou-
Bobbio (1990a, p. 333) se apresenta perfeita- tras palavras, o que Bobbio (1990a, p. 334)
mente de acordo. sustenta é que o ordenamento jurídico não
Tomando o assunto desde outra ótica, se caracteriza tanto pela presença de san-
acaso caberia uma resposta positiva ao ques- ções como pela presença de normas que re-
tionamento de se Bobbio sempre se inclinou gulam as sanções. Em sintética conclusão,
pela teoria que define o direito como susten- diz Ruiz-Miguel (1983, p. 264) que sua ten-
tado na idéia de coação? Absolutamente. dência é a de não identificar o direito apenas
Ruiz-Miguel (1983, p. 275) é um dos primei- com a utilização da coação. Nesse contexto,
ros a ressaltar que para Bobbio a coativida- deve ser ressaltado o apenas, posto que fica
de não é um elemento essencial do direito, claro como e em que sentido utiliza no de-
“sino un elemento fáctico añadido que denomi- correr de sua obra.
naba ‘coercibilidad’”. Isso se deve tanto às O aspecto legislativo, em segundo lugar,
idas e vindas da teoria bobbiana como às diz respeito à ordem das fontes do direito
diversas fases evolutivas do seu pensamen- no esquema teórico que concebe. Para Bobbio
to. Nesse sentido, o jusfilósofo espanhol (1993d, p. 169), a definição de fonte do di-
sublinha que, “como en tantos otros temas, tam- reito pode ser apresentada da seguinte for-
bién en éstos se produce una inversión en el ma: “son fuentes del Derecho los hechos o los
pensamiento de Bobbio” (RUIZ-MIGUEL, actos a los que en un determinado Ordenamiento
1983, p. 276), trânsito que parece ter tido jurídico atribuye idoneidad o capacidad para la
lugar nos anos cinqüenta e sessenta, quan- producción de normas jurídicas”. Mas por qual
do da preparação e escritura de Presente e motivo chamar a atenção para o que seja
avvenire dei diritti dell´uomo (1967), quando uma fonte do direito? O motivo é tão óbvio
sua preferência coativista começava a abrir quanto relevante: não atentar às fontes do
espaço a um consensualismo de extração direito implica desconhecer a matéria-pri-
contratualista. O final dos anos sessenta ma com a qual o operador jurídico se de-
ainda coincidiria com o término de seus es- fronta no cotidiano, ou seja, quais são as
tudos sobre a teoria kelseniana, depois de normas jurídicas aplicáveis aos casos con-
longos e frutíferos vinte anos dedicando-se cretos que se apresentam.
a ela. Passaria a ocupar-se do funcionalis- Como é perceptível mesmo ao olhar me-
mo, da função promocional do direito repre- nos atento, no âmbito analítico bobbiano,
sentada em sua obra Dalla strutura allá a lei será a fonte primordial do direito,
funzione. mas não apenas isso, a norma também terá
Seguindo a mesma linha de raciocínio, de ser posta na forma legislada (BOBBIO,
afirmaria que, neste particular, Bobbio não 1993d, p. 169-186). O argumento remete à
promoveu o estreitamento dos laços de sua teoria positivista, para quem o direito é um

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conjunto de mandatos promulgados pelo so- 5. Hermenêutica e o fenômeno das
berano (BOBBIO, 1993d, p.151), algo que se lacunas no ordenamento jurídico
aproxima da teoria do mandato soberano
de Austin. Bobbio conclui que o caráter im- Acerca do conceito de plenitude que per-
perativo das normas jurídicas explicita o passa a teoria juspositivista, Bobbio susten-
fato de que elas se constituem em uma es- ta que ela é um elemento que se contradita
trutura mandamental, isto é, que ela ex- com a existência de lacunas. Existe uma
pressa um querer. Esse querer é exatamen- anteposição entre os conceitos de plenitude
te o vetor volitivo pessoal e subjetivo que e o de lacunas, posto que a possibilidade de
lhe é emprestado pelo legislador (BOBBIO, um ordenamento jurídico completo é anta-
1993d, p. 187-200). gônica à da inexistência de normas especí-
Dentro da abordagem de seu período em ficas para a resolução de um determinado
que permaneceu mais atento às questões problema jurídico.
próximas ao positivismo jurídico, em Bobbio Para descrever a relação entre o princí-
surgem duas das características básicas do pio da plenitude e o ordenamento jurídico,
ordenamento jurídico que serão objeto de Bobbio afirma que o primeiro é seu “cora-
atenção, a coerência e a plenitude. No pri- ção do coração”. Enfim, trata-se é de dizer
meiro caso, o turinês sustenta que a exigên- que é o seu próprio núcleo. Contudo, em sua
cia de coerência diz respeito à necessidade bastante típica argumentação, em outro
de que um ordenamento jurídico não pos- momento, admitirá ser impossível à lingua-
sua normas jurídicas antinômicas, ou seja, gem jurídica, por mais rigorosa que seja, eli-
que elas sejam discrepantes e válidas ao minar as lacunas. Com isso se pode con-
mesmo tempo ou21, ainda, que, uma vez an- cluir que o “coração do coração” (BOBBIO,
tinômicas, são proposições que se excluem 1993d, p. 210) do ordenamento jurídico en-
mutuamente. De qualquer forma, a consta- contrar-se-á permanentemente sujeito às bre-
tação de uma antinomia no cerne do siste- chas e lacunas que o legislador não tem como
ma não implica a sua perda de vigência evitar aparecer no sistema, do qual, entretan-
imediata (Cf. BOBBIO, 1990c, p. 194), mas, to, é o seu próprio núcleo. Em síntese, e como
tão-somente, indica a necessidade de, con- a boa doutrina reconhece, deve admitir-se a
siderando ambas válidas, esclarecer qual impossibilidade de que a linguagem jurídica,
das normas conflitantes deverá permanecer por mais rigorosa que seja, venha eliminar as
no ordenamento jurídico. Por outro lado, lacunas do ordenamento (BOBBIO, 1990c, p.
ainda buscando controlar as hipóteses de 195) em sua integralidade.
ocorrência das antinomias, Bobbio (1990d, Por definição, o princípio da plenitude
p. 110) ainda estabelece a diferença entre a exclui a possibilidade da existência de la-
coerência lógica, essa que assinalei acima, e cunas no ordenamento jurídico. Mas essa
a coerência jurídica, a qual diz ser uma con- exclusão é, desde logo, teorética. Tentar levá-
cepção legalista da justiça que, fundamen- la às raias da prática é prova indelével de
talmente, se assenta no respeito à máxima má percepção do fenômeno jurídico. Na prá-
pacta sunt servanda. Assim, essa que Bobbio tica, as lacunas se apresentam, e, nesses ca-
denomina coerência lógica, em oposição à sos, a doutrina que lhe postula, com maior
jurídica, surge como uma demanda verda- vigor e desembaraço, o positivismo jurídi-
deiramente lógica na organização interna co, o que faz é propor formas de preenchi-
de um ordenamento que não pode admitir mento que satisfaçam o princípio da pleni-
contraditoriedades entre as normas que o tude. Disso se pode concluir, como encon-
compõem e em que, caso se verifiquem, en- tra-se referência em Bobbio (1993d, p. 213),
tão, a existência de uma delas terá de ser que esse princípio tem uma ligação estreita
sacrificada. com o princípio da completabilidade do di-

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reito, o qual, por sua vez, remete-nos direta- reitos humanos. Sem inclinar-se por um
mente à questão da hermenêutica jurídica e positivismo estrito denegatório de sua exis-
das fontes do direito. tência, admite que o processo de reconheci-
Mas qual o significado da expressão in- mento e até de criação desses direitos é um
terpretação? Podemos aceitá-la como a ten- processo em marcha. Ademais, e talvez pre-
tativa, a bem da verdade nem sempre frutí- vendo a crise das liberdades nesse início de
fera, de buscar o preciso significado de um século lideradas exemplarmente pelo Patri-
objeto, que pode ser literário, a partir daqui- ot Act nos EUA, afirmava que ninguém po-
lo que acreditamos ser sua genuína expres- deria garantir a perpetuação dos direitos já
são. Interpretar é, portanto, emprestar nos- criados e em torno dos quais houvera sido
sa capacidade intelectiva à apreensão do que estabelecido consenso.
seja o significado de um objeto, e esse signi-
ficado é aquilo que o objeto pode expressar
por meio de nossa mente em sua tentativa
Notas
de interagir com o mundo.
Ao aplicar o conceito de interpretação 1
Neopositivismo ou positivismo lógico são ex-
ao âmbito jurídico, deparamo-nos com a in- pressões que designam a mesma corrente filosófica
terpretação jurídica. Essa nada mais é do que tem raízes remotas no positivismo inaugurado
que essa tentativa de apreender o alcance por Auguste Comte e no Círculo de Viena, assim
de um determinado objeto no mundo jurídi- como em seus sucessores americanos e ingleses, a
qual alcança transformar-se de modo a ser rebati-
co. De qualquer forma, o êxito nem sempre zada sob o nome de positivismo lógico. A caracte-
aguarda o hermeneuta nessa tarefa, ao me- rística básica dessa corrente filosófica é a redução
nos não de forma incondicional e indubitá- dos conteúdos filosóficos à análise da linguagem.
vel. Como reconhece Bobbio (1993d, p. 216), Muito embora existam algumas diferenciações de
“existe siempre un cierto desfase entre la idea y abordagem entre algumas escolas neopositivistas,
elas possuem em comum a refutação de todo e
la palabra”, e nada mais do que isso tem for- qualquer enunciado metafísico, posto que este não
ça para impedir que nossa interação com o é passível de verificação empírica, desse modo, faz-
objeto possa ter lugar. Assim, o positivismo nos lembrar da similaridade do neopositivismo com
jurídico não parece ter maior alcance na o empirismo, tanto que se lhe pode também deno-
matéria, senão enquanto mero refúgio de minar como empirismo lógico. Nesse sentido, em-
bora não deseje afastar-me demasiado do conteú-
vãs tentativas de criar um sistema teórico do exposto nestas linhas, cabe mencionar que se
fechado – de cientificidade duvidosa –, em aproxima ou mesmo confunde-se o neopositivis-
que a presença da completa segurança em mo ou positivismo lógico com a premissa wittgens-
um universo de certeza fosse a marca e, por teiniana exposta em seu Tractatus Logicus-Philoso-
conseguinte, pudesse tornar-se realidade. phicus, no qual enunciados que se referem ao mun-
do dos fatos, concretos, têm significado se esses
forem empiricamente verificáveis, ou, como diz
6. Considerações finais Ludwig Wittgenstein (1992, p. 23), “a totalidade
dos estados de coisas que se dão efetivamente de-
Seguramente essas últimas linhas ape- termina também que estados de coisas não se dão
nas servirão para reiterar algumas idéias efetivamente”, ou seja, que o que se dá é a marca
definitiva do que ocorre, e nada mais, não sendo
que foram expostas com o acréscimo de al- possível, no entanto, desse dar-se ou não dar-se
gumas outras que podem vir a abrir uma ou extrair o dar-se ou não dar-se futuro. De qualquer
outra linha para futura investigação, acaso forma, alguns como Ruiz-Miguel (Cf. 1983, p. 177)
tenha suficiente fortuna nessas linhas. localizam uma “aplicação neopositivista de Bob-
Entre as ponderações filosóficas de Nor- bio”, a qual pouco teria a ver com a fundamenta-
ção neokantiana.
berto Bobbio que atestam o caráter aberto e 2
Por metodologia deve entender-se o conjunto
progressivo de sua filosofia jurídica e polí- de procedimentos metódicos adotados por cada
tica, encontra-se o nevrálgico tema dos di- uma das ciências com o escopo de garantir às ditas

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ciências controle mais efetivo sobre suas técnicas e 7
Nesse sentido, Bobbio traz à tona a aborda-
procedimentos. Dessa maneira, que se fale em me- gem sobre o tema realizada por D. D. Raphael.
todologia das ciências naturais ou metodologia his- Para o professor britânico, a tarefa da Filosofia
toriográfica não obsta a que, eventualmente, a mes- Política não é meramente descritiva, mas sim nor-
ma metodologia venha a ser comum a mais de uma mativa. Cf. Raphael, D. D. (1983, p. 11-37). Por
ciência. No entanto, a expressão metodologia pode outro lado, a conferência Ciência do Direito e análise
também ser empregada com outras significações, a da linguagem acabou servindo para que Bobbio sis-
saber: 1. a análise filosófica dos procedimentos ado- tematizasse seu pensamento e organizasse materi-
tados pelas ciências, conforme mencionado acima; al para a confecção de uma de suas mais conheci-
2. a lógica ou a parte da lógica que estuda os méto- das obras, a Teoria da Ciência Jurídica.
dos. 8
Ruiz-Miguel (Cf. 1994, p. 235) reforça a inter-
3
Metafísica pode ser explicada, sinteticamente, pretação de que Bobbio apóia a tese de que as nor-
em que pese suas várias acepções, como a “ciência mas possuam um caráter prescritivo. Também no
primeira, ou seja, a ciência que tem como objeto que se refere à relação entre o positivismo e sua
aquele comum a todas as demais ciências e tam- crise com o tema do legalismo, Ruiz-Miguel (1983,
bém ocupa-se de um princípio que igualmente seria p. 270-271) crê perceber em Bobbio (1993a, p. 54)
princípio condicionador da validade de todas as um “legalismo moderado”.
demais ciências”. A metafísica pressupõe uma si- 9
Dizia Norberto Bobbio (1990, p. 12) que, “en-
tuação na qual o saber organizou-se em ramos di- tre los juristas, el autor del que en mayor medida soy
ferenciados, e ela o que busca, em última análise, é deudor - y es una deuda que me agrada reconocer de una
o fundamento comum de todas, algo como o obje- vez para siempre - ha sido Hans Kelsen”.
to e princípio comum a todos esses saberes hoje 10
De qualquer forma, vale a pena assinalar que,
organizados e diferenciados. como diz Ruiz-Miguel (1983, p. 177), o positivis-
4
Sobre a relação de Bobbio (2001) com o positi- mo e o normativismo não supõem a aceitação do
vismo e o neopositivismo, podemos encontrar kelsenianismo na íntegra. Exemplo disso, diz, é o
material para análise em sua Teoria Geral da Po- caso de Herbert L. H. Hart.. Na obra de Bobbio (Cf.
lítica. Em artigo intitulado A Filosofia Política 1990e, p. 307-321), há pelo menos um artigo dedi-
(principalmente entre as páginas 73 e 78), o tu- cado a Hart, especialmente ao tema das normas
rinês aborda a relação entre o cientista e a valo- primárias e secundárias.
ração na pesquisa. 11
Essa temática é igualmente abordada por
5
Assim mesmo a obra de Bobbio (2001) intitu- Bobbio (Cf. 1990a, p. 35-37) em outro de seus li-
lada Autogoverno e liberdade política, especialmente vros. Nessa mesma oportunidade, ele faz referên-
seu capítulo XVI. Além disso, Bobbio (2001, p. 106) cia, ademais, ao fato de que as normas podem ser
se refere a Kelsen como “um dos meus mestres”. válidas sem serem eficazes, que podem ser eficazes
Nesse mesmo sentido, sustenta Vigo (1991, p. 66), sem serem válidas, que podem ser justas sem se-
tomando a Ruiz-Miguel (1990) como referência, que rem eficazes e que podem ser eficazes sem que es-
a teoria bobbiana foi coincidente “a grandes rasgos en tejam revestidas de justiça.
su contenido con la concepción normativista de raíz kel- 12
No mesmo sentido, a coerência do sistema
seniana”. Essa mesma idéia Ruiz-Miguel (Cf. 1994, teórico-jurídico de Kelsen é destacada por Manero
p. 66) apresenta em outra obra. Não obstante, como e Atienza (1995, p.238).
diz o referido autor, em meados da década de ses- 13
Assim mesmo sustenta Ruiz-Miguel (Cf. 1983,
senta foi possível perceber o quanto Bobbio matiza p. 176) que a teoria bobbiana supera o horizonte
sua orientação positivista. (RUIZ-MIGUEL, kelseniano, em que pese o ponto de contato entre
1994, p. 126). Sobre essas referências a Kelsen ambos e a dívida de Bobbio com o vienês seja ine-
ver BOBBIO, 1973, p. 426-449. gável. O mesmo autor mais adiante volta a referir-
6
Ludovico Geymonat foi um dos filósofos pre- se ao tema para resumir sua posição: “sí existe una
cursores na defesa das teses neopositivistas em solo gran congenialidad entre la aproximación de Kelsen y la
italiano. Por outro lado, Ruiz-Miguel (Cf. 1994, p. de Bobbio , las soluciones dadas por Bobbio a los temas
172) atribui a ambos filósofos citados a liderança más importantes de la teoría general del Derecho disien-
do movimento “neoiluminista” italiano. Nesse ten de la teoría pura del derecho en puntos que me pare-
movimento, sublinha o espanhol, Bobbio teria com- cen nucleares” (RUIZ-MIGUEL, 1983, p.187). O pró-
batido em favor da filosofia como metodologia prio Bobbio (1989, p. 21) em outro momento de
perante a filosofia como concepção de mundo. Essa sua obra deixa ver seu apreço pela obra kelsenia-
relação possibilitou que Bobbio, Geymonat e Ab- na ao considerá-lo um dos “mais autorizados
bagnano estivessem entre os fundadores do Cen- juristas de nossa época”.
tro de Estudos Metodológicos inaugurado em Tu- 14
Um desses claros pontos de contato é o reco-
rim no ano de 1946. Sobre essa temática, é interes- nhecimento da dívida por parte de Bobbio (1989, p.
sante a obra de Unzueta (1990). 22) relativamente ao seu livro Teoria do ordenamento

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jurídico, no qual diz que este “está ligado direta- BOBBIO, Norberto. A filosofia política. In: ______
mente à problemática de Kelsen”. Em outro trecho . Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Campus,
de sua obra, Bobbio (1998, p. 11) reconhece sua dívi- 2001a.
da com a Teoria pura do direito de Kelsen particular-
______ . Autogoverno e liberdade política. In: VIA-
mente no que se refere a sua Teoria geral do direito,
mas também em seus escritos de teoria política. NA, Luiz Werneck. Entre duas repúblicas. Brasília:
15
Há tradução para o português dessa sua obra Editora Universidade de Brasília, 2001b.
capital (Cf. LUHMANN, 1992). ______ . Ciencia del derecho y analisis del lenguaje.
16
Isso não o leva a afirmar que se trata de uma In: ______ . Contribución a la teoría del derecho. Ma-
e única função. Ao contrário, sustenta que, apesar drid: Debate, 1990c.
de toda ajuda que o jurista possa vir a obter da
sociologia, “jurista y sociólogo hacen dos oficios distin- ______ . Derecho y ciencias sociales. In: ______ .
tos” (BOBBIO, 1990b, p. 229). Contribución a la teoría del derecho. Madrid: Debate,
17
Sobre esse tema, remeto o leitor ao capítulo 1990b.
Los orígenes del positivismo jurídico en Alemania (Cf.
______ . Derecho y fuerza. In: ______ . Contribución
BOBBIO, 1993d, p. 61-77). Sobre a origem do posi-
a la teoría del derecho. Madrid: Debate, 1990a.
tivismo na França, ver op. cit., capítulo III. Sobre a
Escola Histórica, ver BOBBIO, 1993a, p. 47. ______ . El positivismo jurídico. Madrid: Debate,
18
Como sublinha Bobbio (Cf. 1993b, p. 134), o 1993d.
fato de que o foco da Escola Histórica estivesse
______ . Estudio preliminar. In: ______ . El positi-
colocado sobre o costume e a tradição como fontes
vismo jurídico. Madrid: Debate, 1993b.
do direito não quer dizer que ela fosse avessa a
quaisquer câmbios na legislação, senão que, em vez ______ . Filosofía y derecho en Norberto Bobbio. Ma-
de crer na codificação para tal finalidade, acredita- drid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983.
va que isso seria possível por meio do desenvolvi-
mento da ciência jurídica. ______ . Formalismo jurídico y formalismo ético.
19
Nesse aspecto, convém lembrar a observação In: ______ . Contribución a la teoría del derecho. Ma-
de Bobbio (1993b, p. 69) de que as grandes codifi- drid: Debate, 1990d.
cações constituem a base do positivismo jurídico e ______ . Giusnaturalismo e positivismo giuridico. Mi-
que, não obstante, constituem um antípoda do his- lano: Edizioni di Comunità, 1965.
toricismo jurídico, posto que este salienta a impor-
tância da tradição e do costume como construtores ______ . Hans Kelsen. Rivista internazionale di filoso-
do direito. fia del diritto, Roma, a. 1, n. 3, 1973.
20
O autor espanhol refere-se a “nulidade do ______ . Igualdad y libertad. Barcelona: Paidós I.C.E.;
testamento”. Não obstante, salvo melhor entendi- U.A.B, 1993c.
mento, me pareceria ter andado mais acertadamen-
te se houvesse feito referência ao descumprimento ______ . La communità internazionale e il diritto.
de condição para tornar-se titular do direito à he- In: RUIZ-MIGUEL, Alfonso. Política, historia y dere-
rança, posto que, ao fim e ao cabo, o Tribunal incli- cho en Bobbio. Mexico: Fontamara, 1994.
nou-se por reconhecer a perda de direitos da viúva.
______ . Normas primarias y normas secundarias.
21
Bobbio (1993b, p. 208) sustenta a existência
In: ______ . Contribución a la teoría general del derecho.
de três critérios para a solução das antinomias das
Madrid: Debate, 1990e.
normas jurídicas, quais sejam, o critério cronológi-
co, o critério hierárquico e o critério da especialida- ______ . O tempo da memória: de senectute. Rio de
de. Não obstante, sublinha que esses três critérios Janeiro: Campus, 1997.
não são suficientes para resolver todas as antino-
mias possíveis, com o que passa a examinar a solu- ______ . Prologo. In: GREPPI, Andrea. Teoría e ide-
ção para o caso de conflitos entre dois critérios e o ología en el pensamiento político de Norberto Bobbio.
da inaplicabilidade dos três critérios (BOBBIO, Madrid: Universidad Carlos III; M. Pons, 1998.
1993b, p. 209-210). Sobre as antinomias, ver assim ______ . Sobre el principio de legitimidad. In: ______
mesmo Bobbio, 1990c, p. 193-196. . Contribución a la teoría general del derecho. Madrid:
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