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A DEMOCRACIA
..,.
NAAMERICA
Leis e Costumes
De certas leis e certos costumes políticos que
foram naturalmente sugeridos aos americanos
por seu estado social democrático

Alexis de Tocqueville
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Prefácio, bibliografia e cronologia
FRANÇOIS FURET

I.

Martins Fontes
São Paulo I 998
68 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA

Há países em que um poder, de certa forma exterior ao


corpo social, atua sobre ele e força-o a caminhar em certo
sentido. CAPÍTULO V
Outros há em que a força é dividida, situando-se ao
mesmo tempo na sociedade e fora dela. Nada parecido se vê
nos Estados Unidos; lá a sociedade age por si e sobre si Necessidade de estudar o que
mesma. Só há força em seu seio; quase não se encontra nin- acontece nos Estados antes de falar
guém que ouse conceber e, sobretudo, exprimir a idéia de
buscá-la em outra parte. O povo participa da composição do governo da União
das leis pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela
eleição dos agentes do poder executivo; podemos dizer que
governa por si mesmo, a tal ponto a importância deixada à
administração é fraca e restrita, a tal ponto ela é marcada
por sua origem popular e obedece ao poder de que emana. Propomo-nos examinar, no capítulo seguinte, qual é, na
O povo reina sobre o mundo político americano como Deus América, a forma do governo fundado no princípio da sobe-
sobre o universo. Ele é a causa e o fim de todas as coisas. rania do povo, quais são seus meios de ação, seus embara-
Tudo provém dele e tudo nele se absorve (H). ços, suas vantagens e seus perigos.
Uma primeira dificuldade se apresenta: os Estados Uni-
dos têm uma constituição complexa; notamos ali duas socie-
dades distintas envolvidas e, se assim posso me explicar, en-
caixadas uma na outra; vemos dois governos completamente
separados e quase independentes: um, habitual e indefinido,
que responde ãs necessidades cotidianas da sociedade, o
outro, excepcional e circunscrito, que só se aplica a certos
interesses gerais. São, numa palavra, vinte e quatro pequenas
nações soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da
União.
Examinar a União antes de estudar os Estados é envere-
dar por um caminho semeado de obstáculos. A forma do
governo federal nos Estados Unidos foi a última a aparecer;
foi apenas uma modificação da república, um resumo dos
princípios políticos difundidos na sociedade inteira antes
dela e subsistindo na sociedade independentemente dela.
Aliás, o governo federal, como acabo de dizer, não passa de
uma exceção; o governo dos Estados é a regra comum. O
escritor que quisesse dar a conhecer o conjunto de seme-
lhante quadro antes de ter mostrado seus detalhes cairia ne-
cessariamente em obscuridades ou repetições.
Os grandes princípios políticos que regem hoje em dia
a sociedade americana nasceram e se desenvolveram nos
70 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 71

Estados. Disso não se pode duvidar. É portanto o Estado que passos desta e desespera o sucesso antes de alcançar o re-
precisamos conhecer para termos a chave de todo o resto. sultado final da experiência.
Todos os Estados que compõem atualmente a União Entre todas as liberdades, a das comunas, que se esta-
americana oferecem, quanto ao aspecto externo das institui- belece tão dificilmente, é também a mais exposta às inva-
ções, o mesmo espetáculo. A vida política ou administrativa sões do poder. Entregues a si mesmas, as instituições comu-
se encontra concentrada nos três focos de ação que pode- nais não seriam capazes de lutar contra um governo em-
riam ser comparados aos diversos centros nervosos que fa- preendedor e forte; para se defenderem com êxito, precisam
zem mover o corpo humano. ter-se desenvolvido plenamente e incorporado às idéias e
No primeiro degrau está a comuna, mais acima o con- aos hábitos nacionais. Assim, enquanto a liberdade comunal
dado, enfim o Estado. não estiver arraigada nos costumes, é fácil destruí-la, e ela só
se pode arraigar nos costumes depois de haver subsistido
por muito tempo nas leis.
Do sistema comunal na América A liberdade comunal escapa, pois, por assim dizer, ao
esforço do homem. Por isso é tão raro ser criada: ela nasce,
Por que o autor começa o exame das instituições políticas de certa forma, de si mesma. Ela se desenvolve quase em
pela comuna. - A comuna é encontrada em todos os povos. -
segredo no seio de uma sociedade semibárbara. A ação con-
Dificuldade de estabelecer e de conservar a liberdade comu-
nal. - Sua importância. - Por que o autor escolheu a organi- tínua das leis e dos costumes, as circunstâncias e, sobretudo,
zação comunal da Nova Inglaterra para objeto principal de o tempo é que conseguem consolidá-la. De todas as nações
seu exame. do continente europeu, podemos dizer que não há uma só
que a conheça.
Não é por acaso que examino antes de mais nada a co- No entanto, é na comuna que reside a força dos povos
muna. livres. As instituições comunais estão para a liberdade assim
É a única associação tão natural que, onde quer que como as escolas primárias estão para a ciência: elas a colo-
haja homens reunidos, forma-se por si mesma. cam ao alcance do povo, fazem-no provar seu uso tranqüilo
A sociedade comunal existe, pois, em todos os povos, e habituam-no a empregá-la. Sem instituições comunais uma
quaisquer que sejam seus usos e suas leis; é o homem que nação pode se dotar de um governo livre, mas não possui o
faz os reinos e cria as repúblicas; a comuna parece sair dire- espírito da liberdade. Paixões passageiras, interesses de um
tamente das mãos de Deus. Mas se ela existe desde que há momento, o acaso das circunstâncias podem lhe dar as for-
homens, a liberdade comunal é coisa rara e frágil. Um povo mas externas da independência; mas o despotismo reprimi-
sempre pode estabelecer grandes assembléias políticas, por- do no interior do corpo social cedo ou tarde volta à tona.
que existe habitualmente em seu seio certo número de Para fazer o leitor compreender bem os princípios ge-
homens nos quais as luzes substituem até certo ponto a rais sobre os quais repousa a organização política da comu-
experiência nos negócios. A comuna se compõe de elemen- na e do condado nos Estados Unidos, achei útil tomar por
tos grosseiros que freqüentemente se recusam à ação do modelo um Estado em particular, examinar em detalhe o
legislador. A dificuldade de fundar a independência das co- que nele sucede e lançar em seguida um olhar rápido sobre o
munas, em vez de diminuir à medida que as nações se escla- resto do país.
recem, aumenta com suas luzes. Uma sociedade muito civili- Escolhi um dos Estados da Nova Inglaterra.
zada tem grande dificuldade de tolerar os intentos de liber- A comuna e o condado não são organizados da mesma
dade comunal; ela se revolta à vista dos numerosos descom- maneira em todas as partes da União; contudo é fácil reco-
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nhecer que em toda a União mais ou menos os mesmos prin- ca, é um amo ao qual foi necessário agradar até os extremos
cípios presidiram a formação de uma e de outro. limites do possível.
Ora, pareceu-me que esses princípios tinham recebido Na Nova Inglaterra a maioria age por meio de represen-
na Nova Inglaterra desenvolvimentos mais consideráveis e tantes quando é necessário tratar dos negócios gerais do
alcançado conseqüências mais distantes do que em qualquer Estado. Era preciso que assim fosse. Mas na comuna, onde a
outra parte. Logo eles se mostram aí, por assim dizer, mais ação legislativa e governamental é mais próxima' dos gover-
em relevo e se entregam assim mais facilmente à observação nados, a lei da representação não é admitida. Não há conse-
do estrangeiro. lho municipal; o corpo dos eleitores, depois de nomear seus
As instituições comunais da Nova Inglaterra formam um magistrados, dirige-os ele mesmo em tudo o que não é a
conjunto completo e regular; elas são antigas; são fortes pelas execução pura e simples das leis do Estado'.
leis, mais fortes ainda pelos costumes; exercem uma influên- Essa ordem de coisas é tão contrária a nossas idéias e
cia prodigiosa sobre toda a sociedade. tão oposta a nossos hábitos, que é necessário fornecer aqui
Por todos esses motivos merecem atrair nossa atenção. alguns exemplos para que seja possível compreendê-la bem.
As funções públicas são extremamente numerosas e bas-
tante divididas na comuna, como veremos adiante; no en-
tanto, a maioria dos poderes administrativos está concentra-
Circunscrição da comuna
da nas mãos de um pequeno número de indivíduos eleitos
cada ano e que se chamam select-men3 .
A comuna da Nova Inglaterra (township) fica a meio
As leis gerais do Estado impuseram aos select-men certo
caminho entre o cantão e a comuna da França. Em geral,
número de obrigações. Eles não necessitam da autorização
conta dois a três mil habitantes\ portanto não é tão extensa
de seus administrados para cumpri-las e não podem furtar-
a ponto de seus habitantes não terem mais ou menos os
se a elas sem comprometer sua responsabilidade pessoal. A
mesmos interesses e, por outro lado, é suficientemente po-
lei do Estado os encarrega, por exemplo, de elaborar as lis-
voada para que sempre se tenha a certeza de encontrar em
tas eleitorais; se se omitirem, tomam-se culpados de um delito.
seu seio os elementos de uma boa administração. Mas, em todas as coisas que são deixadas à direção do po-
der comunal, os select-men são executantes das vontades po-
pulares, como entre nós o maire [prefeito] é o executor das
Poderes comunais na Nova Inglaterra deliberações do conselho municipal. Na maioria das vezes,.
eles agem sob sua responsabilidade privada e apenas se-
O povo, origem de todos os poderes, na comuna como
guem, na prática, a conseqüência dos princípios que a maio-
fora dela. - Na comuna ele trata dos principais assuntos por si
mesmo. - Ausência de conselho municipal. - A maior parte da ria fixou precedentemente. Mas se quiserem introduzir uma
autoridade comunal concentrada ·na mão dos select-men. - mudança qualquer na ordem estabelecida, se desejarem lan-
Como os select-men agem. - Assembléia geral dos habitantes çar-se numa nova empreitada, precisarão remontar à fonte
da comuna Cí:own-meeting). - Enumeração de todos os fun- de seu poder. Suponhamos que se trate de construir uma es-
cionários comunais. - Funções obrigatórias e retribuídas. cola; os select-men convocam para certo dia, num lugar indi-
cado com antecedência, a totalidade dos eleitores; aí ex-põem
Na comuna, como em tudo o mais, o povo é a fonte a necessidade que se faz sentir, apresentam os meios de
dos poderes sociais, mas em nenhuma outra parte ele exer- satisfazê-la, o dinheiro que será preciso despender, o lugar que
ce seu poder de maneira mais imediata. O povo, na Améri- éonvém escolher. A assembléia, consultada acerca de todos
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esses pontos, adota o princípio, fixa o lugar, vota o imposto Contam-se ao todo dezenove funções principais na co-
e remete a execução de sua vontade às mãos dos select-men. muna. Cada habitante é obrigado, sob pena de multa, a acei-
Somente os select-men têm o direito de convocar a reu- tar essas diferentes funções; mas também a maioria delas é
nião comunal Ctown-meetinf), mas pode-se provocá-los a retribuída, de modo que os cidadãos pobres possam consa-
fazer isso. Se dez proprietários concebem um novo projeto e grar a elas seu tempo sem ter prejuízo. De resto, o sistema
querem submetê-lo ao assentimento da comuna, eles recla- americano não é o de pagar um vencimento fixo aos funcio-
mam uma convocação geral dos habitantes; os select-men nários: em geral, cada ato de seu ministério tem um preço, e
são obrigados a subscrevê-la e conservam tão-só o direito de eles são remunerados apenas proporcionalmente ao que fi-
presidir a assembléia4 • zeram.
Esses costumes políticos, esses usos sociais estão sem
dúvida bem distantes de nós. Não tenho neste momento Da existência comunal
vontade de julgá-los nem de dar a conhecer as causas ocul-
tas que os produzem e os vivificam; limito-me a expô-los. Cada qual é o melhor juiz do que só a si concerne. -
Os select-men são eleitos todos os anos no mês de abril Corolário do princípio da soberania do povo. - Aplicação que
ou de maio. A assembléia comunal escolhe ao mesmo tem- fazem as comunas americanas dessas doutrinas. - A comuna
po uma série de outros magistrados municipais s, encarrega- da Nova Inglaterra, soberana em tudo o que diz respeito exclu-
dos de certos detalhes administrativos importantes. Uns, com sivamente a ela, súdita em tudo o mais. - Obrigação da comu-
na para com o Estado. - Na França, o governo empresta seus
o nome de assessores, devem estabelecer o imposto; outros, agentes à comuna. - Na América, a comuna empresta os seus ao
com o de coletores, devem arrecadá-lo. Um funcionário, governo.
chamado constable, é encarregado da função de polícia, de
zelar pelos lugares públicos e dar mão forte à execução Disse precedentemente que o princípio da soberania do
material das leis. Outro, nomeado escrivão da comuna, re- povo paira sobre todo o sistema político dos anglo-america-
gistra todas as deliberações; ele escritura os atestados do nos. Cada página deste livro dará a conhecer algumas novas
registro civil. Um caixa guarda os fundos comunais. Acres- aplicações dessa doutrina.
centem a esses funcionários um zelador dos pobres, cujo Nas nações em que reina o dogma da soberania do
dever, dificílimo de cumprir, é executar a legislação relativa povo, cada indivíduo constitui uma porção igual do sobera-
aos indigentes, os comissários das escolas, que dirigem a no e participa igualmente do governo do Estado.
instrução pública, os supervisores das vias públicas, que se Portanto cada indivíduo é tido como tão esclarecido,
encarregam de todos os detalhes viários, e terão a lista dos tão virtuoso, tão forte quanto qualquer outro de seus seme-
principais agentes da administração comunal. Mas a divisão lhantes.
Por que então ele obedece à sociedade e quais são os
das funções não pára aí: encontramos ainda, entre os funcio-
limites naturais dessa obediência?
nários municipais 6 , comissários de paróquia, que devem cui- Ele não obedece à sociedade por ser inferior aos que a
dar das despesas do culto e supervisores de vários gêneros, dirigem, ou menos capaz que outro homem de governar a si
encarregados uns de dirigir os esforços dos cidadãos em mesmo; obedece à sociedade porque a união com seus
caso de incêndio, outros de cuidar das colheitas; estes, de semelhantes lhe parece útil e porque sabe que essa união
suspender provisoriamente as dificuldades que podem surgir não pode existir sem um poder regulador.
em relação às cercas das terras, aqueles, de vigiar a medição Em tudo o que diz respeito aos deveres mútuos dos ci-
da lenha ou fiscalizar os pesos e medidas. dadãos, tornou-se súdito, pois. Em tudo o que só diz respei-
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to a si mesmo, permaneceu senhor: é livre e só deve prestar seu orçamento ou aliviá-lo, sem que nenhuma autoridade
conta de seus atos a Deus. Daí a máxima de que o indivíduo administrativa sequer cogite de se opor7 •
é o melhor e único juiz de seu interesse particular e que a Quanto aos deveres sociais, são obrigadas a cumprir
sociedade só tem o direito de dirigir seus atos quando se com eles. Assim, se o Estado necessitar de dinheiro, a comu-
sente lesada por um feito dele ou quando precisa reclamar na não tem liberdade de lhe prestar ou recusar seu concur-
seu concurso. soS. Se o Estado quiser abrir uma estrada, a comuna não tem
Essa doutrina é universalmente admitida nos Estados o poder de lhe fechar seu território. Se ele promulgar um
Unidos. Examinarei em outro lugar que influência geral ela regulamento de polícia, a comuna deve executá-lo. Se quiser
exerce até mesmo nas ações ordinárias da vida; mas agora organizar a instrução num plano uniforme em toda a exten-
estou falando das comunas. são do território, a comuna é obrigada a criar as escolas que-
A comuna, considerada em massa e com relação ao go- ridas pela lei 9 • Veremos, quando falarmos da administração
verno central, não é mais que um indivíduo como outro qual- nos Estados Unidos, como e por quem as comunas, em to-
quer, ao qual se aplica a teoria que acabo de indicar. dos esses diferentes casos, são constrangidas à obediência.
A liberdade comunal decorre, pois, nos Estados Unidos, Aqui desejo apenas estabelecer a existência da obrigação.
do próprio dogma da soberania do povo; todas as repúbli- Essa obrigação é estrita, mas o governo do Estado, ao impô-
cas americanas reconheceram mais ou menos essa indepen- la, unicamente decreta um princípio; para sua execução, a
dência; mas nos povos da Nova Inglaterra as circunstâncias comuna em geral volta a exercer todos os seus direitos de
favoreceram particularmente seu desenvolvimento. individualidade. Assim, a taxa é, com efeito, votada pela le-
Nessa parte da União, a vida política nasceu no próprio gislatura, mas é a comuna que a reparte e a arrecada; a exis-
seio das comunas; quase poderíamos dizer que, em sua ori- tência de uma escola é imposta, mas é a comuna que a
gem, cada uma delas era uma nação independente. Quando, constrói, a paga e a dirige.
mais tarde, os reis da Inglaterra reclamaram sua parte da Na França, o coletor do Estado arrecada as taxas comu-
soberania, limitaram-se a tomar o poder central. Deixaram a nais; na América, o coletor da comuna arrecada a taxa do
comuna no estado em que a encontraram. Agora as comu- Estado.
nas da Nova Inglaterra são súditas; mas no início não eram Assim, entre nós, o governo central empresta seus agen-
ou apenas eram. Portanto não receberam seus poderes; ao tes à comuna; na América, a comuna empresta seus funcio-
contrário, parecem é ter aberto mão, em favor do Estado, de nários ao governo. Esse simples fato permite compreender
uma porção de sua independência - distinção importante em que grau as duas sociedades diferem.
que deve permanecer presente no espírito do leitor.
As comunas, em geral, só são submetidas ao Estado
quando se trata de um interesse que chamarei social, isto é, Do espírito comunal na Nova Inglaterra
que elas partilham com outras.
Por que a comuna da Nova Inglaterra conquista a afei-
Em tudo o que diz respeito apenas a elas, as comunas
ção dos que a habitam. - Dificuldade que se tem na Europa de
permaneceram corpos independentes; e entre os habitantes criar o espírito comunal. - Direitos e deveres comunais que
da Nova Inglaterra não há nenhum, penso eu, que reconhe- concorrem na América a formar esse espírito. - A pátria tem
ça ter o governo do Estado o direito de intervir na direção mais fisionomia nos Estados Unidos do que em outros países. -
dos interesses puramente comunais. Em que o espírito comunal se manifesta na Nova Inglaterra. -
Vemos pois as comunas da Nova Inglaterra vender e Que felizes efeitos produz aí.
comprar, atacar e defender-se diante dos tribunais, onerar
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Na América, não apenas existem instituições comunais, magistratura a que só se chega numa idade avançada; e,
mas também um espírito comunal que as sustenta e vivifica. quando se chega às outras funções federais de ordem eleva-
A comuna da Nova Inglaterra reúne duas vantagens da, é de certa forma por acaso e depois de já se ter tornado
que, onde quer que se encontrem, suscitam vivamente o célebre seguindo outra carreira. A ambição não pode tomá-
interesse dos homems, a saber: a independência e a força. las por objetivo permanente de seus esforços. É na comuna,
Ela age, é verdade, num círculo de que não pode sair, mas no centro das relações ordinárias da vida, que vêm se con-
dentro dele seus movimentos são livres. Essa simples inde- centrar o desejo de estima, a necessidade de interesses reais,
pendência já lhe daria uma importância real, se sua popula- o gosto do poder e da fama. Essas paixões, que perturbam
ção e sua extensão não a conferissem. com tanta freqüência a sociedade, mudam de caráter quan-
Cumpre persuadir-se de que as afeições dos homens do podem se exercer assim, perto do lar e, de certa forma,
em geral só se dirigem para onde há força. Não se vê o no seio da família.
amor à pátria reinar por muito tempo num país conquistado. Vejam com que arte, na comuna americana, tomou-se o
O habitante da Nova Inglaterra apega-se à sua comuna não cuidado, se assim posso me exprimir, de espalhar o poder, a
tanto porque nasceu nela, mas porque vê nessa comuna fim de interessar mais gente pela coisa pública. Indepen-
uma corporação livre e forte de que faz parte e que vale a dentemente dos eleitores chamados de quando em quando
pena procurar dirigir. a executar atos de governo, quantas funções diversas, quan-
Acontece com freqüência, na Europa, que os próprios tos magistrados diferentes, que representam todos, no círcu-
governantes lamentem a ausência do espírito comunal; por- lo de suas atribuições, a poderosa corporação em nome da
que todos convêm que o espírito comunal é um grande ele- qual agem! Quantos homens exploram assim em seu provei-
mento de ordem e de tranqüilidade pública, mas não sabem to o poder comunal e nele se interessam por si mesmos!
como produzi-lo. Tornando a comuna forte e independente, O sistema americano, ao mesmo tempo que divide o
temem dividir a potência social e expor o Estado à anarquia. poder comunal entre um grande número de cidadãos, tam-
Ora, tirem a força e a independência da comuna, e nunca pouco teme multiplicar os deveres comunais. Nos Estados
encontrarão nela mais do que administrados, e não cida- Unidos, pensa-se com razão que o amor à pátria é uma
dãos. espécie de culto a que os homens se apegam pelas práticas.
Notem, por sinal, um fato importante: a comuna da Dessa maneira, a vida comunal se faz, de certa forma,
Nova Inglaterra é constituída de tal forma que pode servir de sentir a cada instante; ela se manifesta cada dia pelo cumpri-
foco para vivas afeições e, ao mesmo tempo, não há nada mento de um dever ou pelo exercício de um direito. Essa
ao lado dela que atraia fortemente as paixões ambiciosas do existência política imprime à sociedade um movimento con-
coração humano. tínuo, mas ao mesmo tempo tranqüilo, que a agita sem per-
Os funcionários do condado não são eleitos e sua auto- turbá-la.
ridade é restrita. O próprio Estado só tem uma importância Os americanos se apegam à cidade por um motivo aná-
secundária; sua existência é obscura e tranqüila. Poucos logo ao que faz os habitantes das montanhas amarem seu
homen.s há que, para obter o direito de adITÚnistrar, aceitam torrão. Entre eles, a pátria tem traços marcantes e caracterís-
afastar-se do centro de seus interesses e perturbar sua exis- ticos; possui mais fisionomia que alhures.
tência. As comunas da Nova Inglaterra em geral têm uma exis-
O governo federal confere poder e glória aos que o diri- tência feliz. Seu governo é a seu gosto, assim como de sua
gem, mas os homens a quem é dado influir sobre seu desti- escolha. No seio da paz profunda e da prosperidade mate-
no são em número muito pequeno. A presidência é uma alta rial que reinam na América, as tormentas da vida municipal
80 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 81

são pouco numerosas. A direção dos interesses comunais é não se prendem ne~ afeto, nem lembrança, nem comuni-
fácil. Ademais, faz muito tempo que a educação política do dade de existência. E criado num interesse puramente admi-
povo está feita, ou, antes, ele já chegou instruído ao solo nistrativo.
que ocupa. Na Nova Inglaterra a divisão hierárquica não exis- A comuna tinha uma extensão demasiado restrita para
te nem mesmo em lembrança; não há, pois, porção da co- que se pudesse encerrar nela a administração da justiça. O
muna que seja tentada a oprimir outra, e as injustiças, que só condado constitui, pois, o primeiro centro judiciário. Cada con-
atingem indivíduos isolados, diluem-se no contentamento ge- dado tem um tribunal de justiçalO , um xerife para executar as
ral. Se o governo apresenta defeitos, e por certo é fácil assi- decisões dos tribunais, uma prisão que deve conter os cri-
nalar alguns, eles não chocam os olhares, porque o governo minosos.
emana realmente dos governados e porque lhe basta funcio- Há necessidades que são sentidas de uma maneira mais
nar como pode para que um tipo de orgulho paterno o pro- ou menos igual por todas as comunas do condado' era natu-
teja. De resto, eles não têm nada a que compará-lo. A In- ral que uma autoridade central fosse encarregada ~li do po-
glaterra reinou outrora sobre o conjunto das colõnias, mas o der. Em Massachusetts, essa autoridade está nas mãos de
povo sempre dirigiu os assuntos comunais. A soberania do po- certo número de magistrados, que o governador do Estado
vo na comuna é, pois, não apenas um estado antigo, mas um designa, ouvido ll seu conselho!2.
estado primitivo. . . Os administradores do condado têm apenas um poder
O habitante da Nova Inglaterra prende-se à sua comu- l1mltado e excepcional que se aplica tão-só a um pequeníssi-
na, porque ela é forte e independente; interessa-se por ela, mo número de casos previstos de antemão. O Estado e a
porque colabora para dirigi-la; ama-a, porque não tem de comuna bastam para o andamento ordinário das coisas.
queixar-se de sua sorte; deposita nela sua ambição e seu fu- Esses administradores não fazem mais que preparar o orça-
turo; envolve-se em cada incidente da vida comunal. Nessa mento do condado, que a legislatura vota 13. Não há assem-
esfera restrita que está a seu alcance, ele tenta governar a so- bléia que represente direta ou indiretamente o condado.
ciedade, habitua-se às formas sem as quais a liberdade só Na verdade, o condado não tem existência política.
procede por meio de revoluções, imbui-se do espírito delas, Nota-se na maioria das constituições americanas uma
toma gosto pela ordem, compreende a harmonia dos pode- dupla tendência que leva os legisladores a dividir o poder
res e reúne enfim idéias claras e práticas sobre a natureza de executivo e a concentrar o poder legislativo. A comuna da
~ova Inglaterra tem, por si mesma, um princípio de existên-
seus deveres, bem como sobre a extensão de seus direitos.
Cla de que não é despojada; mas no condado seria necessá-
rio criar ficticiamente essa vida, e a utilidade disso não foi
Do condado na Nova Inglaterra s:ntida: todas as comunas reunidas têm uma só representa-
ça~, o Estado, centro de todos os poderes nacionais; fora da
O condado da Nova Inglaterra, análogo ao arrondisse- açao comunal e nacional podemos dizer que há unicamente
ment da França. - Criado num interesse puramente adminis- forças individuais.
trativo. - Não tem representação. - É administrado por funcio-
nários não-eleitos. .
Da administração na Nova Inglaterra
O condado americano tem muitas analogias com o arron-
dissement da França. Traçaram para ele, como para este últi- Na América, não se percebe a administração. - Por quê .
. mo, uma circunscrição arbitrária; ele forma um corpo cujas - Oseuropeus crêem fundar a liberdade tirando do poder
diferentes partes não têm entre si laços necessários e a que social alguns dos seus direitos; os americanos, dividindo seu
82 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 83
exerczczo. - Quase toda a administração propriamente dita rios, atribuindo a cada um deles todo o poder de que neces-
encerrada na comuna e dividida entre funcionários comu- sita para fazer o que é destinado a executar. Há povos que
nais. - Não se percebem os indícios de uma bierarquia admi- essa divisão dos poderes sociais ainda pode levar à anar-
nistrativa nem na comuna nem acima dela. - Por que é
assim. - Como, porém, o Estado é administrado de maneira quia; por si mesma, porém, ela não é anárquica. Partilhando
uniforme. - Quem é encarregado de fazer as administrações assim a autoridade, sua ação, é verdade, torna-se menos
da comuna e do condado obedecerem à lei. - Da introdução irresistível e menos perigosa, mas não é destruída.
do poder judiciário na administração. - Conseqüência ,'c A revolução nos Estados Unidos foi produzida por um
princípio da eleição estendida a todos os funcionários. - Do gosto maduro e refletido pela liberdade, não por um instinto
juiz de paz na Nova Inglaterra. - Por quem é nomeado. - vago e indefinido de independência. Ela não se apoiou em
Administra o condado. - Assegura a administração das comu-
paixões de desordem, mas, ao contrário, marchou com amor
nas. - Corte das sessões. - Maneira como ela age. - Quem a
provoca. - O direito de inspeção e de queixa, difuso como à ordem e à legalidade.
todas as funções administrativas. - Denunciadores estimula- Nos Estados Unidos, portanto, não se pretendeu que o
dos pela partilha das multas. homem, num país livre, tivesse o direito de fazer o que bem
entendesse; ao contrário, foram-lhe impostas obrigações so-
O que mais chama a atenção do europeu que percorre ciais mais variadas que em outros países; não se teve a idéia
os Estados Unidos é a ausência do que, em nossos países, de atacar o poder da sociedade em seu princípio e contes-
chamamos governo ou administração. Na América, vemos tar-lhe os direitos, mas se limitou a dividi-lo em seu exercício.
leis escritas; percebemos sua execução cotidiana; tudo se Quis-se chegar dessa maneira a que a autoridade fosse grande
move à nossa volta e não descobrimos em parte alguma o e o funcionário pequeno, para que a sociedade continuasse a
motor. A mão que dirige a máquina social escapa a cada ins- ser bem dirigida e permanecesse livre.
tante. Não há país no mundo em que a lei fale uma linguagem
No entanto, assim como todos os povos são obrigados,
tão absoluta quanto na América, e tampouco existe país em
para exprimir seus pensamentos, a recorrer a certas formas
que o direito de aplicá-la esteja dividido entre tantas mãos.
gramaticais constitutivas das línguas humanas, assim tam-
O poder administrativo nos Estados Unidos não oferece
bém todas as sociedades, para subsistirem, são obrigadas a
em sua constituição nada central nem hierárquico; é isso
se submeter a certa soma de autoridade, sem a qual caem na
anarquia. Essa autoridade pode ser distribuída de diferentes que o faz n.ão ser percebido. O poder existe, mas não se
maneiras, mas é sempre necessário que ela se encontre em sabe onde encontrar seu representante.
algum lugar. Pudemos ver mais acima que as comunas da Nova In-
Há dois meios de diminuir a força da autoridade numa glaterra não eram tuteladas. Elas próprias cuidam, pois, de
nação. seus interesses particulares.
O primeiro é debilitar o poder em seu princípio mesmo, Os magistrados municipais é que são encarregados, na
tirando da sociedade o direito ou a faculdade de se defender maioria das vezes, de zelar pela execução das leis gerais do
em certos casos: debilitar a autoridade dessa maneira é, em Estado, ou executá-las eles mesmos '4 .
geral, o que se chama na Europa fundar a liberdade. Independentemente das leis gerais, o Estado faz algu-
Há um segundo meio de diminuir a ação da autoridade. mas vezes regulamentos gerais de polícia; mas de ordinário
Este não consiste em despojar a sociedade de alguns de seus as comunas e os funcionários comunais é que, conjuntamen-
direitos ou em paralisar seus esforços, mas em dividir o uso te com os juízes de paz e segundo as necessidades das loca-
de suas forças entre várias mãos; em multiplicar os funcioná- lidades, acertam os detalhes da existência social e promul-
84 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 85

gam as prescrições relativas à saúde pública, à boa ordem e dados e seus administradores, as comunas e seus funcioná-
à moralidade dos condados '5 . rios obedecerem?
Enfim, os magistrados municipais é que, por si mesmos Nos Estados da Nova Inglaterra, o poder legislativo
e sem necessidade de receber um impulso externo, atendem estende-se a mais objetos que entre nós. O legislador pene-
a essas necessidades imprevistas que as sociedades têm com tra, de certa forma, no próprio seio da administração; a lei
freqüência '6 . desce a detalhes minuciosos; ela prescreve ao mesmo tempo
Do que acabamos de dizer resulta que, em Massa- os princípios e o meio de aplicá-los; ela encerra assim os
chusetts, o poder administrativo está quase inteiramente en- corpos secundários e seus administradores numa multidão
cerrado na comuna17 , mas dividido aí entre várias mãos. de obrigações estritas e rigorosamente definidas.
Na comuna francesa existe, na verdade, um só funcio- Daí resulta que, se todos os corpos secundários e todos
nário administrativo, o prefeito. os funcionários se conformam à lei, a sociedade procede de
Vimos que havia pelo menos dezenove na Nova Ingla- maneira uniforme em todas as suas partes; mas sempre falta
terra. saber como se pode forçar os corpos secundários e seus
Esses dezenove funcionários não dependem em geral funcionários a se conformarem à lei.
uns dos outros. A lei estabeleceu com cuidado em torno de Podemos dizer, de maneira geral, que a sociedade só
cada um desses magistrados um círculo de ação. Nesse círcu- tem à sua disposição dois meios para obrigar os funcionários
lo eles têm todo o poder para desempenhar os deveres de a obedecerem às leis:
seu cargo e não dependem de nenhuma autoridade comunal. Ela pode confiar a um deles o poder discricionário de
Se erguermos os olhos acima da comuna, mal percebe- dirigir todos os demais e destituí-los em caso de desobe-
remos o indício de uma hierarquia administrativa. Acontece diência.
às vezes que os funcionários do condado reformem a deci- Ou pode encarregar os tribunais de infrigir penas judi-
são tomada pelas comunas ou pelos magistrados comunais '8 , ciárias aos infratores.
mas em geral podemos dizer que os administradores do Nem sempre tem-se a liberdade de adotar um desses
condado não têm o direito de dirigir a conduta dos adminis- meios.
tradores da comuna'9 . Eles só os comandam nas coisas que O direito de dirigir o funcionário supõe o direito de
dizem respeito ao condado. destituí-lo, se ele não atender às ordens que lhes são trans-
Os magistrados da comuna e os do condado são obriga- mitidas, ou de promovê-lo, se cumprir com zelo todos os
dos, num número muito pequeno de casos previstos, a co- seus deveres. Ora, não seria possível destituir nem promover
municar o resultado de suas operações aos funcionários do um magistrado eleito. É da natureza das funções eletivas
governo centrapo. Mas o governo central não é representado serem irrevogáveis até o fim do mandato. Na realidade, o
por um homem encarregado de elaborar regulamentos ge- magistrado eleito nada tem a esperar nem a temer, a não ser
rais de polícia ou de baixar portarias para a execução das dos eleitores, quando todas as funções públicas são produto
leis; nem de se comunicar habitualmente com os administra- da eleição. Logo não poderia existir uma verdadeira hierar-
dores do condado a que pertence a comuna; nem de .fiscali- quia entre os funcionários, pois não se pode reunir no
zar sua conduta, dirigir seus atos e punir seus erros. mesmo homem o direito de ordenar e o direito de reprimir
Não há, pois, em parte alguma um centro para o qual eficazmente a desobediência e não se pode somar ao poder
os raios do poder administrativo vêm convergir. de comandar o de recompensar e punir.
Como, pois, conseguem conduzir a sociedade num pla- Os povos que introduziram a eleição nas engrenagens
no mais ou menos uniforme? Como é possível fazer os con- secundárias de seu governo são, pois, forçosamente, levados
86 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 87

a fazer um grande uso das penas judiciárias como meio de Os americanos apropriaram-se da instituição dos juízes
administração. de paz, tirando-lhe porém o caráter aristocrático que a dis-
É o que não se descobre ao primeiro olhar. Os gover- tinguia na mãe-pátria.
nantes consideram como uma primeira concessão tornar ele- O governador de Massachusetts 21 nomeia, em todos os
tivas as funções e como uma segunda concessão submeter o condados, certo número de juízes de paz, cujas funções de-
magistrado eleito às decisões dos juízes. Eles temem igual- vem durar sete anos 22 •
mente essas duas inovações e, como são mais solicitados a Ademais, entre esses juízes de paz, designa três que for-
fazer a primeira do que a segunda, concedem a eleição ao mam em cada condado o que se chama corte das sessões.
funcionário e deixam-no independente do juiz. No entanto, Os juízes de paz tomam parte individualmente na admi-
uma dessas duas medidas é o único contrapeso que se pode nistração pública. Ora são encarregados, juntamente com os
funcionários eleitos, de certos atos adrninistrativos 23 ; ora for-
dar à outra. Atentem bem: um poder eletivo que não for
mam um tribunal diante do qual os magistrados acusam
submetido a um poder judiciário cedo ou tarde acabará
sumariamente o cidadão que se recusa a obedecer, ou o ci-
escapando a qualquer controle, ou será destruído. Entre o
dadão denuncia os delitos dos magistrados. Mas é na corte
poder central e os corpos administrativos eleitos apenas os
das sessões que os juízes de paz exercem as mais importan-
tribunais podem servir de intermediário. Só eles podem for- tes de suas funções administrativas.
çar o funcionário eleito à obediência sem violar o direito do A corte das sessões se reúne duas vezes por ano na
eleitor. sede do condado. É ela que, em Massachusetts, tem por en-
A extensão do poder judiciário no mundo político deve cargo manter a obediência do maior número 24 de funcioná-
ser, portanto, correlativa à extensão do poder eletivo. Se rios públicos 25 .
essas duas coisas não caminharem juntas, o Estado acaba Cumpre levar em conta que, em Massachusetts, a corte
caindo na anarquia ou na servidão. das sessões é ao mesmo tempo um corpo administrativo
Foi observado em todos os tempos que os hábitos judi- propriamente dito e um tribunal político.
ciários preparavam muito maIos homens ao exercício do Dissemos que o condad0 26 tinha uma existência tão-
poder administrativo. somente administrativa. A corte das sessões é que dirige, por
Os americanos herdaram de seus pais, os ingleses, a si mesma, o pequeno número de interesses que se referem
idéia de uma instituição que não tem nenhuma analogia ao mesmo tempo a várias comunas do condado e de que,
com a que conhecemos no continente europeu: a dos juízes por conseguinte, não se pode encarregar nenhuma delas em
de paz. particular.
O juiz de paz fica a meio caminho entre o homem mun- Quando se trata do condado, os deveres da corte das
dano e o magistrado, o administrador e o juiz. O juiz de paz sessões são, pois, puramente administrativos, e, se ela intro-
é um cidadão esclarecido, mas que não é necessariamente duz com freqüência em sua maneira de proceder as formas
versado no conhecimento das leis. Por isso é encarregado judiciárias, isso é apenas um meio de se esclarecer27 e uma
apenas de policiar a sociedade, coisa que requer mais bom garantia que ela dá aos administrados. Mas, quando se trata
senso e retidão do que ciência. O juiz de paz introduz na de realizar a administração das comunas, ela age quase sem-
administração, quando dela toma parte, certo gosto pelas pre como corpo judiciário e, apenas em certos casos raros,
formas e pela publicidade que o torna um instrumento bas- como corpo administrativo.
tante incômodo para o despotismo; mas ele não se mostra A primeira dificuldade que se apresenta é fazer a pró-
escravo daquelas superstições legais que tornam os magis- pria comuna, poder quase independente, obedecer às leis
trados pouco capazes de governar. gerais do Estado.
88 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 89

Vimos que as comunas devem nomear todos os anos tos, e a corte das sessões não tem em si a origem dos po-
certo número de magistrados que, com o nome de assesso- deres comunais: ela não pode exonerar funcionários que
res, repartem o imposto. Uma comuna tenta escapar da obri- não nomeia.
gação de pagar o imposto não nomeando os assessores. A Aliás, para assegurar-se de que há negligência e falta de
corte das sessões a condena a forte multa 28 • A multa é cobra- zelo, seria necessário exercer sobre o funcionário inferior
da, sob pena de prisão, de todos os habitantes. O xerife do uma vigilância contínua. Ora, a corte das sessões só se reúne
condado, oficial de justiça, executa a sentença. Assim, nos duas vezes por ano; ela não fiscaliza, mas julga os fatos re-
Estados Unidos, o poder parece preocupado em furtar-se preensíveis que lhe são denunciados.
cuidadosamente aos olhares. O comando administrativo é, O poder arbitrário de destituir os funcionários públicos
aí, quase sempre velado sob o mandado judiciário; com o é o único capaz de garantir, da parte deles, essa espécie de
que é tanto mais forte, pois possui então essa força quase ir- obediência esclarecida e ativa que a repressão judiciária não
resistível que os homens atribuem à forma legal. lhes pode impor.
É fácil acompanhar esse processo, que se compreende Na França, buscamos esta última garantia na hierarquia
sem custo. O que se exige da comuna é, em geral, nítido e administrativa; na América, buscam-na na eleição.
definido; consiste num fato simples, não num fato comple- Assim, para resumir em algumas palavras o que acabo
xo, num princípio, não numa aplicação de detalhe29 • A difi- de expor:
culdade começa, porém, quando se trata de fazer, não mais Se o funcionário público da Nova Inglaterra cometer um
a comuna, mas os funcionários comunais obedecerem. crime no exercício de suas funções, os tribunais ordinários
Todas as ações repreensíveis que um funcionário públi- sempre são chamados a julgá-lo;
co pode cometer incluem-se, finalmente, numa destas cate- Se cometer uma falta administrativa, um tribunal pura-
gorias: mente administrativo é encarregado de puni-lo e, quando a
Ele pode fazer, sem ardor e sem zelo, o que a lei lhe coisa é grave ou premente, o juiz faz o que o funcionário
manda. deveria ter feit0 31 .
Ele pode não fazer o que a lei lhe manda. Enfim, se o funcionário for culpado de um desses deli-
Enfim, ele pode fazer o que a lei lhe proíbe. tos inapreensíveis que a justiça humana não pode nem defi-
Um tribunal só teria alçada sobre a conduta de um fun- nir, nem apreciar, ele comparece anualmente diante de um
cionário nos dois últimos casos. É preciso um fato positivo e tribunal sem apelação, que pode reduzi-lo de repente à im-
apreciável para servir de base à ação judiciária. potência: seu poder lhe escapa com seu mandato.
Assim, se os select-men omitirem cumprir as formalida- Esse sistema contém, com certeza, grandes vantagens,
des determinadas pela lei em caso de eleição municipal, po- mas encontra em sua execução uma dificuldade prática que
dem ser condenados a pagar uma multa30 . é necessário assinalar.
Mas quando o funcionário público cumpre sem inteli- Já observei que o tribunal administrativo, chamado cor-
gência seu dever, quando obedece sem ardor e sem zelo às te das sessões, não tinha o direito de fiscalizar os magistra-
prescrições da lei, acha-se inteiramente fora do alcançe de dos comunais; essa corte só pode agir, para empregar um
um corpo judiciário. termo de direito, quando provocada. Ora, é esse o ponto de-
A corte das sessões, mesmo quando é revestida de suas licado do sistema.
atribuições administrativas, é impotente para forçá-lo, nes- Os americanos da Nova Inglaterra não instituíram minis-
se caso, a cumprir inteiramente suas funções. Somente o tério público junto à corte das sessões 32 , e deve-se entender
medo da exoneração é capaz de prevenir esses quase-deli- . que era difícil que o estabelecessem. Se tivessem se limitado
90 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 91

a estabelecer na sede de cada condado um magistrado acu- Nesse extremo em que seu sistema os lança, os ameri-
sador e se não tivessem lhe dado agentes nas comunas, canos são obrigados a interessar os denunciadores oferecen-
por que esse magistrado teria estado mais a par do que do-lhes em certos casos a partilha das multas 36 •
acontecia no condado do que os próprios membros da cor- Meio perigoso que garante a execução das leis degra-
te das sessões? Se lhe tivessem dado agentes em cada co- dando os costumes.
muna, teriam lhe centralizado nas mãos o mais temível dos Acima dos magistrados do condado não há mais, verda-
poderes, o de administrar judiciariamente. De resto, as leis deiramente, poder administrativo, mas apenas um poder go-
são filhas dos hábitos, e nada parecido existia na legislação vernamental.
inglesa.
Assim, os americanos dividiram o direito de fiscalização
e de queixa como fizeram com todas as demais funções ad- Idéias gerais sobre a administração
ministrativas. nos Estados Unidos
Os membros do grande júri devem, segundo os termos
da lei, avisar o tribunal, junto ao qual agem, dos delitos de Em que os Estados da União se diferenciam pelo sistema
todo tipo que sejam cometidos em seu condad0 33 • Há cer- administrativo. - Vida comunal menos ativa e mais completa
tos delitos administrativos graves que o ministério público à medida que se desce para o Sul. - O poder do magistrado se
ordinário tem a obrigação de processar3\ quase sempre, a torna maior então, o do eleitor menor. - A administração pas-
obrigação de punir os delinqüentes é imposta ao funcioná- sa da comuna ao condado. - Estado de Nova York, de Ohio,
da Pensilvânia. - Princípios administrativos aplicáveis a toda
rio fiscal, encarregado de receber o produto da multa; as-
a União. - Eleição dos funcionários públicos ou inamovibili-
sim, o tesoureiro da comuna é encarregado de processar a dade de suas funções. - Ausência de hierarquia. - Introduçào
maioria dos delitos administrativos que são cometidos ante dos meios judiciários na administração.
ele.
Mas é sobretudo ao interesse particular que a legislação Anunciei precedentemente que, após examinar em de-
americana faz apel035 • É esse o grande princípio que encon- talhe a constituição da comuna e do condado na Nova In-
tramos sem cessar quando estudamos as leis dos Estados glaterra, daria uma olhada geral no resto da União.
Unidos. Há comunas e vida comunal em cada Estado; mas ne-
Os legisladores americanos mostram pouca confiança nhum dos Estados confederados encontra uma comuna iden-
na honestidade humana, mas sempre supõem ser o homem ticamente semelhante à da Nova Inglaterra.
inteligente. Portanto baseiam-se na maioria das vezes no in- À medida que descemos para o Sul, percebemos que a
teresse pessoal para a execução das leis. vida comunal se torna menos ativa; a comuna tem menos
Quando um indivíduo é positiva e efetivamente lesado magistrados, direitos e deveres; a população não exerce aí
por um delito administrativo, compreende-se de fato que o uma influência tão direta sobre a coisa pública; as assem-
interesse pessoal garanta a queixa. bléias comunais são menos freqüentes e se estendem a me-
Mas é fácil prever que, se se trata de uma presc;rição nos objetos. O poder do magistrado eleito é, pois, compara-
legal que, embora sendo útil à sociedade, não seja de uma tivamente, maior e o do eleitor, menor; o espírito comunal é
utilidade efetivamente sentida por cada um, o indivíduo menos vivo e menos poderos0 37 •
hesitará em mover o processo. Dessa maneira e por uma Começa-se a perceber essas diferenças no Estado de
espécie de acordo tácito, as leis poderiam acabar caindo Nova York; elas já são sensíveis na Pensilvânia, mas se tor-
em desuso. nam cada vez menos notáveis quando se avança para o
92 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 93

Noroeste. A maioria dos emigrantes que vão fundar os Esta- Já disse o bastante, acho, para fazer compreender em que
dos do Noroeste saem da Nova Inglaterra e transportam os princípios gerais repousa a administração nos Estados Unidos.
hábitos administrativos da mãe-pátria à sua pátria adotiva. A Esses princípios são diversamente aplicados; eles proporcionam
c9muna de Ohio tem muita analogia com a comuna de conseqüências mais ou menos numerosas segundo os lugares;
Massachusetts. mas, no fundo, são os mesmos em toda a parte. As leis variam;
Vimos que, em Massachusetts, o princípio da adminis- sua fisionomia muda; um mesmo esplrito as anima.
tração pública está na comuna. A comuna é o foco em que A comuna e o condado não são constituídos em toda a
vêm se reunir os interesses e as afeições dos homens. Mas parte da mesma maneira; mas pode-se dizer que a organiza-
isso deixa de acontecer à medida que descemos para os ção da comuna e do condado, nos Estados Unidos, baseia-se
Estados em que as luzes não são difundidas de maneira tão em toda parte nessa mesma idéia: a de que cada um é o me-
universal e em que, por conseguinte, a comuna proporcio- nior juiz do que concerne apenas a si mesmo e é quem está
na menos garantias de sabedoria e menos elementos de ad- em melhores condições de prover a suas necessidades parti-
ministração. Portanto, à medida que nos afastamos da No- culares. A comuna e o condado são pois encarregados de ze-
va Inglaterra, a vida comunal passa de certa forma para o lar por seus interesses especiais. O Estado governa, não ad-
condado. Este se torna o grande centro administrativo e ministra. Encontramos exceções a esse princípio, mas não
constitui o poder intermediário entre o governo e os sim- um princípio contrário.
ples cidadãos. A primeira conseqüência dessa doutrina foi fazer os
Disse que, em Massachusetts, os negócios do condado próprios habitantes escolherem todos os administradores da
são dirigidos pela corte das sessões. A corte das sessões comuna e do condado, ou pelo menos escolher esses magis-
compõe-se de certo número de magistrados nomeados pelo trados exclusivamente entre eles.
governador e seu conselho. O condado não tem representa- Sendo os administradores eleitos em toda a parte, ou
ção e seu orçamento é votado pela legislatura nacional. em todo caso não-exoneráveis, resulta que em parte alguma
No grande Estado de Nova York, ao contrário, no Es- foi possível introduzir as regras da hierarquia. Houve portan-
tado de Ohio e na Pensilvãnia, os habitantes de cada con- to quase tantos funcionários independentes quantas eram as
dado elegem certo número de deputados; a reunião des- funções. O poder administrativo viu-se disseminado numa
ses deputados forma uma assembléia representativa do con- multidão de mãos.
dad0 3B • Como a hierarquia administrativa não existia em nenhu-
A assembléia do condado possui, em certos limites, o ma parte, como -os administradores eram eleitos e não-exo-
direito de tributar os habitantes; ela constitui, sob esse aspec- neráveis até o fim do mandato, seguiu-se a obrigação de in-
to, uma verdadeira legislatura; é ela ao mesmo tempo que troduzir mais ou menos tribunais na administração. Daí o
administra o condado, dirige em vários casos a administra- sistema das multas, por meio das quais os corpos secundá-
ção das comunas e encerra seus poderes em limites muito rios e seus representantes são obrigados a obedecer às leis.
mais estreitos do que em Massachusetts. Esse sistema é encontrado de uma ponta a outra da União.
São essas as principais diferenças que a constituição da De resto, o poder de reprimir os delitos administrativos,
comuna e do condado apresenta nos diversos Estados con- ou de realizar, se preciso, atos de administração, não foi con-
federados. Se eu quisesse descer aos detalhes dos meios de cedido em todos os Estados aos mesmos juízes.
execução, teria muitas outras dessemelhanças ainda a assi- Os anglo-americanos buscaram numa fonte comum a
nalar. Mas meu objetivo não é dar um curso de direito admi- instituição dos juízes de paz; encontramo-la em todos os
nistrativo americano. . Estados. Mas nem sempre tiraram dela o mesmo proveito.
94 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 95
Em toda a parte os juízes de paz concorrem' para a ad- Basta, pois, fazer aqui uma curta exposição. Mais tarde
ministração das comunas e dos condados 39 , seja administran- procurarei julgar o que vou descrever.
do eles mesmos, seja reprimindo certos delitos administrati-
vos; contudo, na maioria dos Estados, os mais graves desses
delitos são submetidos aos tribunais ordinários. Poder legislativo do Estado
Assim, eleição dos funcionários administrativos ou ina-
movibilidade de suas funções, ausência de hierarquia admi- Divisão do corpo legislativo em duas câmaras. - Senado.
nistrativa, introdução dos meios judiciários no governo secun- - Câmara dos representantes. - Diferentes atribuições desses
dois corpos.
dário da sociedade são as principais características que reco-
nhecemos na administração americana, do Maine à Flórida. O poder legislativo do Estado é confiado a duas assem-
Há alguns Estados em que começamos a perceber os bléias; a primeira tem em geral o nome de senado.
vestígios de uma centralização administrativa. O Estado de O senado é habitualmente um corpo legislativo; algu-
Nova York é o mais avançado nessa via. mas vezes, porém, torna-se corpo administrativo e judiciário.
No Estado de Nova York, os funcionários do governo Ele toma parte na administração de várias maneiras,
central exercem, em certos casos, uma espécie de vigilância conforme as diferentes constituições45 ; mas é concorrendo
e de controle sobre a conduta dos corpos secundários40 . Em para a escolha dos funcionários que penetra de ordinário na
outros, eles constituem uma espécie de tribunal de apelação esfera do poder executivo.
para a decisão das causas 41 • No Estado de Nova York as Ele participa do poder judiciário pronunciando-se sobre
penas judiciárias são menos empregadas do que nos ou~ros certos delitos políticos e, também, algumas vezes, estatuindo
como meio administrativo. O direito de processar os delitos sobre certas causas civis 46 •
administrativos também é colocado, aí, em boas mãos 42 • Seus membros são sempre pouco numerosos.
A mesma tendência se faz notar levemente em alguns O outro ramo da legislatura, chamado ordinariamente
outros Estados 43 . Mas, em geral, podemos dizer que o caráter câmara dos representantes, não participa de nenhuma forma
saliente da administração pública nos Estados Unidos é ser do poder administrativo e não toma parte no poder judiciário,
prodigiosamente descentralizada. a não ser acusando os funcionários públicos diante do senado.
Os membros das duas câmaras são submetidos quase
em toda a parte às mesmas condições de elegibilidade. Uns
Do Estado e outros são eleitos da mesma maneira e pelos mesmos ci-
dadãos.
A única diferença que existe entre eles provém de que
Falei das comunas e da administração; falta-me falar do
Estado e do governo. o mandato dos senadores é, em geral, mais longo que o dos
representantes. Os segundos raramente permanecem em fun-
Aqui posso me apressar, sem temer não ser compreen- ção mais de um ano; os primeiros em geral têm mandato de
dido: o que tenho a dizer está esboçado em todas as consti- dois ou três anos.
tuições escritas que todos podem facilmente obter«. Essas Concedendo aos senadores o privilégio de serem nomea-
constituições baseiam-se, por sua vez, numa teoria simples e dos para vários anos e renovando-os por série, a lei tomou o
racionaL cuidado de manter no seio dos legisladores um núcleo de
A maioria das formas que indicam foi adotada por todos homens já habituados aos negócios públicos e capazes de
os povos constitucionais e, assim, se nos tornaram familiares. . exercer sobre os novatos uma influência útiL
96 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA
PRIMEIRA PARTE 97
Assim, pela divisão do corpo legislativo em dois ramos
O magistrado supremo, que é chamado governador, é
os americanos não quiseram criar uma assembléia hereditá~
ria e outra eletiva, não pretenderam fazer de uma um corpo colocado ao lado da legislatura como moderador e conse-
aristocrático e da outra um representante da democracia' seu lheiro. É armado de um veto suspensivo que lhe permite
obj~tivo também não foi proporcionar com a primeir~ um deter ou, pelo menos, moderar à sua vontade os movimen-
apOlO ao poder, deixando à segunda os interesses e as pai- tos. Ele expõe ao corpo legislativo as necessidades do Esta-
xões do povo. do e lhe dá a conhecer os meios que julga útil empregar a
Dividir a força legislativa, moderar assim a marcha das fim de satisfazê-las; é o executor natural de suas vontades
ass~~bléias p~líticas e criar um tribunal de apelação para a em todos os empreendimentos que interessam a toda a na-
reVIsao das leIs - eis as únicas vantagens que resultam da çã0 47 • Na ausência da legislatura, deve tomar todas as medi-
constituição atual de duas câmaras nos Estados Unidos. das aptas a preservar o Estado dos choques violentos e dos
~ tempo e a experiência fizeram os americanos ver que, perigos imprevistos.
~eduzld/a a essas vantagens, a divisão dos poderes legislativos . O governador reúne em suas mãos todo o poder militar
e tambem uma necessidade de primeira ordem. De todas as do Estado. É o comandante das milícias e o chefe da força
repúblicas unidas, somente a Pensilvânia tentou a princípio armada.
estabelecer uma assembléia única. O próprio Franklin, leva- Quando a força de opinião, que os homens acordaram
do pelas conseqüências lógicas do dogma da soberania do em conceder à lei, é desrespeitada, o governador avança à
povo, contribuíra para essa medida. Logo foi necessário mu- frente da força material do Estado, quebra a resistência e res-
dar a lei e constituir duas câmaras. O princípio da divisão do tabelece a ordem costumeira.
poder legislativo recebeu assim sua derradeira consagração; Quanto ao mais, o governador não se intromete na ad-
portanto podemos considerar a partir de então como uma ministração das comunas e dos condados, pelo menos nela
ve~dade dem?r:strada a necessidade de partilhar a ação legis- só toma parte de maneira bastante indireta, pela nomeação
latIva entre vanos corpos. Essa teoria, mais ou menos ignora- dos juízes de paz que não pode em seguida exonerar48 •
da nas repúblicas antigas, introduzida no mundo quase por O governador é um magistrado eletivo. Em geral, tem-
acaso, como acontece com a maioria das grandes verdades se inclusive o cuidado de elegê-lo por apenas um ou dois
desconhecida de vários povos modernos, entrou enfim com~ anos, de tal sorte que sempre permanece numa estrita de-
um axioma na ciência política de nossos dias. pendência da maioria que o elegeu.

Do poder executivo do Estado Dos efeitos políticos da descentralização


administrativa nos Estados Unidos
.? que é o governador num Estado americano. - Que
poszçao ele ocupa diante da legislatura. - Quais são seus direi- Distinção a estabelecer entre a centralização governa-
tos e seus deveres. - Sua dependência do povo. mental e a centralização administrativa. - Nos Estados Uni-
dos, não há centralização administrativa, mas grande centra-
O poder executivo do Estado tem como representa~te o lização governamental. - Alguns efeitos importunos que resul-
governador. tam nos Estados Unidos da extrema descentralização adminis-
Não é por acaso que utilizei a palavra representante. O trativa. - Vantagens administmtivas dessa ordem de coisas.-
governador do Estado representa, de fato, o poder executi- A força que administra a sociedade, menos regulamentada,
vo, mas só exerce alguns dos direitos deste. menos esclarecida, menos sábia, muito maior que na Europa.
- Vantagens políticas da mesma ordem de coisas. - Nos Esta-
98 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 99
dos Unidos, a pátria se faz sentir em toda a parte. - Apoio que presentava a França no exterior e agia em seu nome. O Esta-
os governados dão ao governo. - As instituições provinciais do sou eu, dizia ele, e tinha razão.
mais necessárias à medida que o estado social se toma mais No entanto, sob Luís XIV, havia muito menos centraliza-
democrático. Por quê. ção administrativa do que em nossos dias.
Em nosso tempo, vemos uma potência, a Inglaterra,
A centralização é uma palavra que se repete sem cessar onde a centralização governamental é levada a um altíssimo
nos dias de hoje e cujo sentido ninguém, em geral, procura grau: lá o Estado parece mover-se como um só homem,
precisar. mobiliza à sua vontade massas imensas, reúne e leva aonde
Existem contudo duas espécies de centralização muito bem entender todo o esforço da sua potência.
distintas e que importa conhecer bem. A Inglaterra, que fez tão grandes coisas nos últimos cin-
Alguns interesses são comuns a todas as partes da na- qüenta anos, não possui centralização administrativa.
ção, como a formação das leis gerais e as relações do povo Quanto a mim, não conseguiria conceber que uma na-
com os estrangeiros. ção seja capaz de viver nem, sobretudo, de prosperar sem
Outros interesses são específicos de certas partes da na- uma forte centralização governamental.
ção, como, por exemplo, os empreendimentos comunais. Mas penso que a centralização administrativa só serve
Concentrar num mesmo lugar ou numa mesma mão o para debilitar os povos que a ela se submetem, porque
poder de dirigir os primeiros é fundar o que chamarei cen- tende sem cessar a diminuir entre eles o espírito de cidada-
tralização governamental. nia. A centralização administrativa, é verdade, consegue reu-
Concentrar da. mesma maneira o poder de dirigir os nir em determinada época e em certo lugar todas as forças
segundos é fundar o que chamarei de centralização adminis- disponíveis da nação, mas é nociva à reprodução das forças. Ela
trativa. a faz triunfar no dia do combate, mas diminui com o correr do
Há pontos em que essas duas espécies de centralização tempo sua potência. Portanto, pode contribuir admiravelmen-
vêm confundir-se. Mas, tomando em seu conjunto os objetos te para a grandeza passageira de um homem, mas não para a
que recaem mais particularmente no domínio de cada uma prosperidade duradoura de um povo.
delas, conseguimos facilmente distingui-las. Atentem bem: quando se diz que um Estado não pode
Compreende-se que a centralização governamental ad- agir por não ter centralização, fala-se quase sempre, sem
quire uma força imensa quando se soma à centralização saber, da centralização governamental. O império da Alema-
administrativa. Dessa maneira, ela habitua os homens a faze- nha, repete-se, nunca pôde tirar de suas forças todo o pro-
rem abstração completa e contínua de sua vontade; a obede- veito possível. Está bem. Mas por quê? Porque lá a força
cerem, não uma vez e num ponto, mas em tudo e todos os nacional nunca foi centralizada; porque o Estado nunca
dias. Não apenas ela os doma então pela força, mas também pôde fazer obedecer suas leis gerais; porque as partes sepa-
os agarra por seus hábitos; ela os isola e os pega em seguida radas desse grande corpo sempre tiveram o direito ou a pos-
um a um na massa comum. sibilidade de recusar seu concurso aos depositários da auto-
Essas duas espécies de centralização prestam-se Um au- ridade comum, nas próprias coisas que interessavam a todos
xílio mútuo, atraem-se reciprocamente; mas eu não poderia os cidadãos; em outras palavras, porque não havia centrali-
crer que sejam inseparáveis. zação governamental. A mesma observação é aplicável à
Sob Luís XIV, a França conheceu a maior centralização Idade Média. O que produziu todas as misérias da sociedade
governamental que se pôde conceber, pois o mesmo ho- feudal é que o poder, não apenas de administrar, mas de
mem fazia as leis gerais e tinha o poder de interpretá-las,.re- . governar, estava partilhado entre mil mãos e fracionado de
100 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 101

mil maneiras; a ausência de toda e qualquer centralização que se elevam são submetidas aos tribunais ordinários. Se-
governamental impedia então que as naçãos da Europa mar- melhante maneira de arrecadar o imposto é lenta, embaraça-
chassem com energia em direção a qualquer objetivo. da; ela atrapalharia em cada momento a marcha de um go-
Vimos que nos Estados Unidos não existia centralização verno que tivesse grandes necessidades pecuniárias. Em ge-
administrativa. Lá, mal encontramos o indício de uma hierar- ral, deve-se desejar que, em tudo o que é essencial à sua
quia. A descentralização foi levada a um grau que nenhuma vida, o governo tenha funcionários próprios, escolhidos por
nação européia seria capaz de suportar, penso eu, sem pro- ele, exoneráveis por ele, e formas rápidas de proceder; mas
fundo mal-estar, e que inclusive produz efeitos importunos será sempre fácil para o poder central, organizado como é
na América. Mas, nos Estados Unidos, a centralização gover- na América, introduzir, de acordo com as necessidades,
namental existe no mais alto grau. Seria fácil provar que a meios de ação mais enérgicos e mais eficazes.
potência nacional está mais concentrada aí do que foi em Assim, como se repete com tanta freqüência, não é por
qualquer das antigas monarquias da Europa. Não apenas não haver centralização nos Estados Unidos que as repúbli-
não há em cada Estado mais que um só corpo que elabora cas do novo mundo perecerão; longe de não serem centrali-
as leis; não apenas não existe neles mais que um poder ca- zados, podemos afirmar que os governos americanos o sao
paz de criar a vida política em torno de si; mas, em geral, em demasia. Mais tarde provarei isso. As assembléias legisla-
evitou-se reunir numerosas assembléias de distritos ou de tivas absorvem cada dia alguns destroços dos poderes go-
condados, com medo de que essas assembléias caíssem na ten- vernamentais; elas tendem a reunir todos eles em si mesmas,
tação de exorbitar de suas atribuições administrativas e de tal como a Convenção o fizera. O poder social, assim centra-
obstruir a marcha do governo. Na América, a legislatura de ca- lizado, muda c!e mãos sem cessar, porque está subordinado
da Estado não tem diante de si nenhum poder capaz de resis- ao poder popular. Com freqüência ocorre-lhe carecer de
tir a ela. Nada poderia detê-la em seu caminho, nem privilé- sensatez e de previdência, porque pode tudo. Aí reside, para
gios, nem imunidade local, nem influência pessoal, nem mes- ele, o perigo. Portanto, é por causa de sua força mesma, e
mo a autoridade da razão, pois ela representa a maioria, que não em conseqüência de sua fraqueza, que está ameaçado
se pretende único órgão da razão. Logo, ela não tem outros li- de perecer um dia.
mites, em sua ação, além de sua própria vontade. Ao lado de- A descentralização administrativa produz na América
la e sob sua mão, encontra-se o representante do poder exe- vários efeitos diversos.
cutivo, que, com a ajuda da força material, deve forçar os des- Vimos que os americanos tinham quase inteiramente
contentes à obediência. isolado a administração do governo; nisso, eles parecem-
A fraqueza só se encontra em certos detalhes da ação me ter ultrapassado os limites da razão sadia; porque a or-
governamental. dem, mesmo nas coisas secundárias, ainda é um interesse
As repúblicas americanas não têm força armada perma- nacional49 .
nente para reprimir as minorias, mas nelas as minorias nun- Como o Estado não tem funcionários administrativos
ca foram reduzidas, até o presente, a fazer guerra, e ainda próprios, estabelecidos em posto fixo nos diferentes pontos
não foi sentida a necessidade de um exército. Na maioria do território e aos quais seja capaz de imprimir um impulso
dos casos, o Estado serve-se dos funcionários da comuna ou comum, resulta que raramente tenta estabelecer regras ge-
do condado para agir sobre os cidadãos. Assim, por exem- rais de polícia. Ora, a necessidade dessas regras se faz sentir
plo, na Nova Inglaterra, é o assessor da comuna que reparte vivamente. O europeu não raro nota sua ausência. Essa apa-
a taxa; o coletor da comuna a arrecada; o caixa da comuna rência de desordem que reina na superfície persuade-lhe, à
faz o produto chegar ao tesouro público e as reclamações . primeira vista, de que há anarquia completa na sociedade;
102 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 103

somente examinando o fundo das coisas é que ele percebe diversos, contenta-se com um resultado bastante incompleto
que não é assim. ou se esgota em esforços inúteis.
Certos empreendimentos interessam ao Estado inteiro, A centralização consegue facilmente, é verdade, subme-
mas não podem ser executados, porque não há administra- ter as ações exteriores do homem a uma certa uniformidade,
ção nacional para dirigi-los. Abandonados aos cuidados das que acabamos apreciando por si mesma, independentemen-
comunas e dos condados, entregues a agentes eleitos e tem- te das coisas a que se aplica, como esses devotos que ado-
porários, não dão nenhum resultado ou não produzem nada ram a estátua esquecendo a divindade que representa. A
duradouro. centralização consegue sem dificuldade imprimir um anda-
Os partidários da centralização na Europa sustentam mento regular aos assuntos correntes; governar sabiamente
que o poder governamental administra melhor as localida- os detalhes da polícia social; reprimir as ligeiras desordens e
des do que elas mesmas seriam capazes de se administrar. os pequenos delitos; manter a sociedade num status quo
Isso pode ser verdade, quando o poder central é esclarecido que não é propriamente nem uma decad~ncia nem um pro-
e as localidades sem luzes, quando ele é ativo e elas inertes, gresso; entreter no corpo social uma espécie de sonolência
quando ele tem o costume de agir e elas o costume de obe- administrativa que os administradores costumam chamar de
decer. Compreende-se inclusive que quanto mais a centrali- ordem e tranqüilidade públicaso . Numa palavra, ela excede
zação aumenta, quanto mais essa dupla tendência cresce, em impedir, não em fazer. Quando se trata de revolver pro-
mais a capacidade de um lado e a incapacidade do outro se fundamente a sociedade ou de lhe imprimir um andamento
tornam salientes. rápido, sua força a abandona. Por pouco que suas medidas
Mas eu nego que seja assim quando o povo é esclareci- necessitem do concurso dos indivíduos, causa espécie a fra-
do, vigilante sobre esses interesses e acostumado a pensar queza dessa imensa máquina: ela se encontra subitamente
neles, como na América. reduzida à impotência.
Estou persuadido, ao contrário, de que nesse caso a for- Às vezes acontece, então, que a centralização tente, em
ça coletiva dos cidadãos será sempre mais poderosa para desespero de causa, chamar os cidadãos em seu auxílio. Mas
produzir o bem-estar social do que a autoridade do governo. ela lhes diz: "Vocês agirão como eu quiser, tanto quanto eu
Confesso que é difícil indicar de maneira certa o meio quiser e precisamente no sentido em que eu quiser. Vocês se
de despertar um povo adormecido para lhe dar as paixões e encarregarão desses detalhes sem aspirar a dirigir o conjunto;
as luzes que ele não tem: persuadir os homens de que de- trabalharão nas trevas e julgarão mais tarde minha obra por
vem cuidar de seus problemas é, não ignoro, árdua empre- seus resultados." Não é com semelhantes condições que se
sa. Muita vez seria menos difícil interessá-los pelos detalhes obtém o concurso da vontade humana. Ela precisa de liberda-
da etiqueta de uma corte do que pelo conserto de sua casa de em seus movimentos, de responsabilidade em seus atos. O
comum. homem é feito de tal modo, que prefere permanecer imóvel a
Mas também penso que, quando a administração cen- caminhar sem independência para um objetivo que ignora.
tral pretende substituir completamente o livre concurso dos Não vou negar que, nos Estados Unidos, muitas vezes
primeiros interessados, ela se engana ou quer nos enganar. sente-se não encontrar essas regras uniformes que parecem
Um poder central, por mais esclarecido, por mais sábio zelar o tempo todo por cada um de nós.
que o imaginarmos, não pode abraçar por si só todos os Lá encontramos de quando em quando grandes exem-
detalhes da vida de um grande povo. Não pode, porque tal olos de descuido e de incúria social. De longe em longe sur-
trabalho excede as forças humanas. Quando ele quer, ape- gem nódoas grosseiras que parecem em desacordo comple-
nas por seus cuidados, criar e fazer funcionar tantos meios '.to com a civilização em torno.
104 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA

Empreendimentos úteis que requerem um cuidado con-


tínuo e uma exatidão rigorosa para ter êxito muitas vezes
acabam sendo abandonados; porque, na América como em
I PRIlvIElRA PARTE
105
sejam tranqüilos, que corra diante de meus passos para afas-
tar todos os perigos, sem que eu nem sequer tenha a neces-
sidad~ de p~nsar nisso, se essa autoridade, ao mesmo tempo
outros lugares, o povo procede por esforços momentâneos e que tira aSSlm os menores espinhos de minha passagem, for
impulsos súbitos. dona absoluta da minha liberdade e da minha vida? se
O europeu, acostumado a encontrar sem cessar à sua monopolizar o movimento e a existência a tal ponto que
mão um funcionário que se intromete em quase tudo, acos- seja necessário que tudo languesça em torno dela quando
tuma-se dificilmente com essas diferentes engrenagens da ela languescer, que tudo durma quando ela dormir, que
administração comunal. Em geral, podemos dizer que os tudo pereça se ela morrer?
pequenos detalhes da polícia social que tornam a vida ame- Há nações assim na Europa, em que o habitante se con-
na e cômoda são desprezados na América; mas as garantias sidera como uma espécie de colono indiferente ao destino
essenciais ao homem em sociedade lá existem tanto quanto do lugar que habita. As maiores mudanças sobrevêm em seu
em qualquer outra parte. Entre os americanos, a força que país sem seu concurso; ele não sabe nem mesmo direito o
administra o Estado é muito menos regulamentada, menos que aconteceu; imagina; ouviu o acontecimento ser narrado
esclarecida, menos sábia, mas cem vezes maior do que na por acaso. Muito mais, a fortuna da sua aldeia, a polícia da
Europa. Não há país no mundo em que os homens façam, sua rua, a sorte de sua igreja e de seu presbitério não lhe
em definitivo, tantos esforços para criar o bem-estar social. interessam; ele acha que todas essas coisas não lhe dizem
Não conheço povo que tenha conseguido estabelecer esco- absolutamente respeito e pertencem a um estranho podero-
las tão numerosas e tão eficazes; templos mais condizentes so a que chamam governo. Quanto a ele, desfruta desses
com as necessidades religiosas dos habitantes; estradas co- bens como um usufrutuário, sem espírito de propriedade e
munais mais bem conservadas. Portanto, não se deve buscar sem idéias de qualquer melhora. Esse desinteresse por si
nos Estados Unidos a uniformidade e a permanência das con- mesmo vai tão longe que, se sua própria segurança ou a de
cepçôes, a atenção minuciosa com os detalhes, a perfeição seus filhos for enfim comprometida, em vez de procurar
dos procedimentos administrativos 5\ o que lá encontramos é afastar o perigo, ele cruza os braços para esperar que a na-
a imagem da força, um tanto selvagem é verdade, mas cheia ção inteira corra em sua ajuda. Esse homem, de resto, embo-
de vigor; da vida, acompanhada de acidentes, mas também ra tenha feito um sacrifício tão completo de seu livre-arbí-
de movimentos e de esforços. trio, não gosta mais que outro da obediência. Ele se subme-
Admitirei de resto, se quiserem, que as cidadezinhas e os te, é verdade, ao bel-prazer de um funcionário, mas se com-
condados dos Estados Unidos seriam mais utilmente adminis- praz em afrontar a lei como um inimigo vencido, mal a força
trados por uma autoridade central situada longe deles e que se retira. Por isso nós o vemos oscilar entre a servidão e a
lhes permanecesse estranha, do que por funcionários recruta- licença.
dos em seu seio. Reconhecerei, se exigirem, que reinaria mais Quando as nações chegam a tal ponto, têm de modifi-
segurança na América, que se faria um uso mais inteligente e car suas leis e seus costumes, ou perecem, porque a fonte
mais judicioso dos recursos sociais, se a administração de das virtudes públicas fica como que seca: encontramos nelas
todo o país fosse concentrada numa só mão. As vantagens súditos, mas não vemos mais cidadãos.
políticas que os americanos extraem do sistema da descentra- Digo que tais naçôes estão preparadas para a conquista.
lização ainda me fariam preferi-lo ao sistema contrário. Se não desaparecem da cena do mundo, é por estarem
Afinal de contas, que me importa que haja uma autori- r~deadas de naçôes semelhantes ou inferiores a elas; é que
dade sempre estabelecida, que zele para que meus prazeres 'amda resta entre elas uma sorte de instinto indefinível da
106 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 107

pátria, não sei que orgulho irrefletido do nome que esta tem, como um outro povo que vem se oferecer à mão do legis-
que vaga lembrança de sua glória passada, que, sem se pren- lador.
der precisamente a nada, basta para lhes imprimir se neces- O que mais admiro na América não são os efeitos ad-
sário um impulso conservador. ministrativos da descentralização, mas o~ efeitos políticos.
Seria um erro tranqüilizar-se pensando que certos povos Nos Estados Unidos, a pátria se faz sentir em toda a parte. É
fizeram esforços prodigiosos para defender uma pátria em um objeto de solicitude desde a cidadezinha até a União
que viviam, por assim dizer, como estrangeiros. Atentem bem inteira. O habitante se apega a cada um dos interesses de
e verão que a religião era quase sempre, então, seu móbil seu país como se fossem os seus. Ele se glorifica com a gló-
principal. ria da nação; nos sucessos que ela obtém, crê reconhecer
A duração, a glória ou a prosperidade da nação tinham sua própria obra e eleva-se com isso; ele se rejubila com a
se tornado para eles dogmas sagrados e, ao defenderem sua prosperidade geral de que aproveita. Tem por sua pátria um
pátria, defendiam também essa cidade santa em que eram sentimento análogo ao que sentimos por nossa família, e é
todos cidadãos. também por uma espécie de egoísmo que se interessa pelo
As populações turcas nunca tomaram nenhuma parte na Estado.
direção dos assuntos da sociedade; no entanto realizaram Não raro, o europeú vê no funcionário público apenas
imensas empresas, tanto que viram o triunfo da religião de a força; o americano nele vê o direito. Podemos, pois, dizer
Maomé nas conquistas dos sultões. Hoje a religião se vai, só que na América o homem nunca obedece ao homem, mas à
lhes resta o despotismo. Elas soçobram. justiça ou à lei.
Montesquieu, emprestando ao despotismo uma força Por isso ele concebeu de si mesmo uma opinião muitas
que lhe foi própria, fez-lhe uma honra que, acho eu, ele não vezes exagerada, mas quase sempre salutar. Ele confia sem
merecia. O despotismo, por si só, nada pode manter de temor em suas próprias forças, que lhe parecem bastar para
maneira duradoura. Se examinarmos bem, perceberemos tudo. Um particular concebe um empreendimento qualquer;
que o que faz prosperar por muito tempo os governos abso- mesmo se esse empreendimento tem uma relação direta
lutos é a religião, e não o medo. com o bem-estar da sociedade, não lhe vem à cabeça dirigir-
Não importa o que fizermos, nunca encontraremos uma se à autoridade pública para obter seu concurso. Ele dá a
verdadeira potência entre os homens, fora do livre concurso conhecer seu plano, oferece-se para executá-lo, convoca as
das vontades. Ora, o patriotismo ou a religião são as únicas forças indiviçluais em auxílio da sua e luta corpo a corpo
coisas no mundo capazes de fazer marchar por muito tem- contra todos os obstáculos. Muitas vezes sem dúvida ele
po em direção a um mesmo objetivo a universalidade dos tem menos êxito do que se o Estado estiv~sse em seu l~gar,
cidadãos. mas a longo prazo o resultado geral de todos esses empre-
Não depende das leis reavivar as crenças que se extin- endimentos individuais supera em muito o que o governo
guem, mas depende das leis interessar os homens pelo poderia fazer.
destino de seu país. Depende das leis despertar e dirigir Como a autoridade administrativa está sítuada ao lado'
esse instinto vago da pátria que nunca abandona o coração dos administrados e, de certa forma, os representa, não sus-
do homem e, ligando-o aos pensamentos, às paixões, aos cita nem inveja nem ódio. Como seus meios de ação são
hábitos de cada dia, transformá-lo num sentimento refleti- limitados, cada qual sente que não pode se apoiar unica-
do e duradouro. E não venham dizer que é tarde demais mente nela.
para tentá-lo: as nações não envelhecem da mesma manei- Portanto, quando a potência administrativa intervém no
ra que os ·homens. Cada geração que nasce em seu seio é . círculo de suas atribuições, não se encontra entregue a si
108 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA PRIMEIRA PARTE 109

mesma, como na Europa. Não se pensa que os deveres dos Também se pode dizer que, numa aristocracia, o povo
particulares cessaram, porque o representante põs-se em está ao abrigo dos excessos do despotismo, porque sempre
ação. Cada qual, ao contrário, o guia, o apóia e o ampara. há forças organizadas prontas para resistir ao déspota.
Juntando-se a ação das forças individuais à ação das Uma democracia sem instituições provinciais não possui
forças sociais, consegue-se com freqüência fazer o que a nenhuma garantia contra semelhantes males.
administração mais concentrada e mais enérgica não teria Como fazer uma multidão que não aprendeu a servir-se
condições de executar (I). da liberdade nas pequenas coisas suportá-la nas grandes?
Poderia citar muitos fatos em apoio ao que estou afir- Como resistir à tirania num país em que cada indivíduo
mando, mas prefiro valer-me de um só e escolher o que co- é fraco e em que os indivíduos não estão unidos por ne-
nhum interesse comum?
nheço melhor.
Na América, os meios que são postos à disposição da Os que temem a licença e os que temem o poder abso-
autoridade para descobrir os crimes e processar os crimino- luto devem, pois, desejar igualmente o desenvolvimento gra-
dual das liberdades provinciais.
sos são parcos.
Estou convencido, de resto, de que não há nações mais
A polícia administrativa não existe; os passaportes são
expostas a cair sob o jugo da centralização administrativa do
desconhecidos. A polícia judiciária, nos Estados Unidos, não
que aquelas cujo estado social é democrático.
poderia ser comparada à nossa; os agentes do ministério
Várias causas concorrem para esse resultado, entre ou-
público são pouco numerosos e nem sempre têm a iniciativa
tras as que seguem.
dos processos; a instrução é rápida e oral. Duvido, porém,
A tendência permanente dessas nações é concentrar
que em qualquer outro país o crime escape tão raramente à toda a potência governamental nas mãos de um só poder
pena. que represente diretamente o povo, porque, além do povo,
O motivo disso é que todos se acham interessados em 'não se percebe mais que indivíduos iguais confundidos numa
fornecer as provas do delito e em prender o delinqüente. massa comum.
Vi, durante minha permanência nos Estados Unidos, os Ora, quando um mesmo poder já está investido de
habitantes de um condado em que um grande crime fora todos os atributos do governo, lhe é muito difícil não procu-
cometido formarem espontaneamente comitês com o objeti- rar penetrar nos detalhes da administração', e ele não deixa
vo de perseguir o culpado e entregá-lo aos tribunais. de acabar encontrando a ocasi<'(,6 de fazê-lo. Fomos testemu-
Na Europa, o criminoso é um infortunado que combate nhas disso em nosso país.
para escapar dos agentes do poder; a população assiste, de Na revolução francesa, houve dois movimentos em sen-
certa forma, à luta. Na América, é um inimigo do gênero hu- tido contrário que não se deve confundir: um favorável à
mano e tem contra si toda a humanidade. liberdade, o outro favorável ao despotismo.
Creio que as instituições provinciais são úteis a todos os Na antiga monarquia, o rei fazia sozinho a lei. Abaixo
povos; mas nenhum me parece ter uma necessidade mais do poder soberano estavam situados alguns restos, meio des-
real dessas instituições do que aquele cujo estado social é truídos, de instituições provinciais. Essas instituições eram
democrático. incoerentes, mal ordenadas, não raro absurdas. Nas mãos da
Numa aristocracia, tem-se sempre a certeza de manter aristocracia, elas haviam sido algumas vezes instrumentos de
certa ordem no seio da liberdade. opressão.
Como os governantes têm muito a perder, a ordem é de A revolução pronunciou-se ao mesmo tempo contra a
grande interesse para eles. realeza e contra as instituições provinciais. Ela confundiu
110 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA

num mesmo ódio tudo o que a precedera, o poder absoluto


e o que podia temperar os rigores dele; ela foi ao mesmo
tempo republicana e centralizadora. CAPÍTULO VI
Esse duplo caráter da revolução francesa é um fato de
que os amigos do poder absoluto se apossaram com ~ran~e
desvelo. Quando vocês os vêem defender a centrahzaçao Do poder judiciário nos
administrativa crêem que trabalham a favor do despotismo? Estados Unidos e de sua ação
Claro que não, eles defendem uma das grandes conquistas
da Revolução (K). Dessa maneira, é possível ser p~pul~r e
sobre a sociedade política
inimigo dos direitos do povo, servidor oculto da tlrama e
amante confesso da liberdade.
Visitei as duas nações que desenvolveram no mais alto
grau o sistema das liberdades provinciais e escutei a voz dos
Os anglo-americanos conseroaram no poder judfciário
partidos que dividem essas nações. . todas as características que o distinguem nos outros povos. -
Na América, encontrei homens que aspiravam em se- No entanto dele fizeram um grande poder político. - Como. -
gredo a destruir as instituições democráticas de seu país; ~a Em que o sistema judiciário dos anglo-americanos difere de
Inglaterra, encontrei outros q~e ata~avam e~ alta ~oz a ans- todos os outros. - Por que os juízes americanos têm o direito de
tocracia; mas nunca encontrei um so que nao considerasse a declarar as leis inconstitucionais. - Como os juízes america-
liberdade provincial um grande bem. . nos fazem uso desse direito. - Precauções tomadas pelo legisla-
Vi, nesses dois países, os males do Estado serem impu: dor para impedir o abuso desse direito.
tados a uma infinidade de causas diversas, mas nunca a
liberdade comunal. Achei que devia consagrar um capítulo à parte ao poder
Ouvi cidadãos atribuírem a grandeza ou a prosperidade judiciário. Sua importância política é tão grande que me pa-
de sua pátria a uma multidão de razões! ~as ou~i todos eles receu que seria diminuí-la aos olhos dos leitores falar dele
colocarem em primeira linha e classificarem a frente de de passagem.
todas as outras vantagens a liberdade provincial. Houve confederações em outros países, além da Amé-
Acreditaria eu, porventura, que homens naturalmente tão rica; vimos repúblicas em outras terras que não as do novo
divididos, que não se entendem nem sobre as doutrinas reli- mundo; o sistema representativo é adotado em vários Esta-
giosas nem sobre as teorias políticas, concordam sobre um dos da Europa, mas não creio que, até agora, alguma nação
único fato, aquele que melhor podem julgar p~is se passa do mundo tenha constituído o poder judiciário da mesma
cada dia diante de seus olhos, e que esse fato esteja errado? maneira que os americanos.
Só os povos que têm poucas instituições provinciais, ou O mais difícil para um estrangeiro compreender nos
nenhuma, negam sua utilidade. Ou seja, só os que não co-
Estados Unidos é a organização judiciária. Não há, por assim
nhecem a coisa falam mal dela. dizer, acontecimento político em que não ouça invocar a
autoridade do juiz; e daí conclui naturalmente que nos Es-
tados Unidos o juiz é uma das primeiras forças políticas.
Quando examina em seguida, a constituição dos tribunais,
descobre que, à primeira vista, tem apenas atribuições e há-
. bitos judiciários. O magistrado só lhe parece imiscuir-se nos

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