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O Consoante

http://oconsoante.com.br/
09 de abril de 2019

“[...] o que é central na teoria de Bakhtin passou a ser chamado de


dialogismo. Mas, na verdade, o foco são as relações dialógicas como uma
forma de existência do homem no mundo pela linguagem. As relações
dialógicas são a nossa base. Bakhtin fala que só em dois momentos estamos
sozinhos no mundo, na hora de nascer e na hora de morrer” diz o professor
Adail Sobral, em entrevista a O Consoante
(http://oconsoante.com.br/2019/04/09/entrevista-especial-vi/).

por Flaviane Moraes,


Neil Franco,
Rafael Alves e
Tiago Guimarães

O professor Dr. Adail Sobral se sentiu muito à vontade em dialogar com O Consoante
por meio de entrevista realizada durante a disciplina “Gêneros discursivos e práticas
linguísticas”, da professora Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes, do Programa de
Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
durante sua estada de uma semana (18 a 22/03), em Cascavel-PR. Com foco no
dialogismo e seus desdobramentos nos escritos do círculo de Bakhtin, Adail Sobral
falou para uma plateia formada por alunos da referida disciplina, bem como por alunos
do Mestrado Profissional (PROFLETRAS) da instituição. Porém, outros foram os
interessados (estudantes do PPGL e professores da graduação e da pós de Letras) em se
fazerem presentes ao diálogo.

Sobral se graduou em Letras (Inglês) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É


especialista em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Mestre em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Linguística
Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Fez estágio de Pós-Doutorado sobre a filosofia do ato de Bakhtin pela
Université de Paris VIII. Atualmente é professor do ILA
(Instituto de Letras e Artes) da Universidade Federal do Rio
Grande e colaborador do PPGL da Universidade Federal de
Pelotas, para onde foi transferido o PPGL da Ucpel, fechado
em 2018. Já atuou em diversos programas de pós-graduação
em Letras e foi, ao lado de Fabiane Marroni e Karina
Giacomelli, editor da revista Linguagem e Ensino, entre
2016 e 2018, que nesse período passou a A1 no Qualis
Capes. Desenvolve seus estudos em temas como: Filosofias
da Linguagem, Gênero Discursivo, Dialogismo, Círculo de
Bakhtin, Semiótica Geral e Greimasiana, Tradução e
Interpretação. Brincando com a forma de denominar o
encontro, Entrevista-Aula ou Aula-Entrevista, Adail Sobral,
de maneira carismática, demonstrou grande conhecimento
das ideias do Círculo e relatou vasta experiência de sala de
aula na formação de profissionais da linguagem.
O Consoante: Em consulta ao seu currículo lattes, notamos que a sua dissertação
de mestrado dialoga com a Análise de Discurso francesa. Quando, na sua
caminhada acadêmica, você tomou contato com os escritos do Círculo de Bakhtin e
o que lhe motivou a seguir ancorando suas pesquisas nos escritos?

Sobral: Tomei contato com os escritos do Círculo de Bakhtin ainda na graduação, no


início da década de 1970, na Universidade Federal da Bahia, na disciplina
Sociolinguística, quando li o livro de Marcellesi e Gardin, Introdução à
Sociolinguística, edição portuguesa, que trazia a ideia de uma linguística social e
mencionava Bakhtin. Também na disciplina de Literatura, ao falar de formalistas russos.
Depois, no mestrado da Unicamp, que iniciei em 1978, li o livro de Volochinov, que
então circulava lá, fora do currículo, em edição argentina, El signo ideológico y la
filosofia del lenguaje, trazido pelos colegas [Carlos Alberto] Faraco, [João Wanderlei]
Geraldi e Sírio [Possenti], quando estiveram em um evento Buenos Aires. Daí virou
uma coqueluche extracurricular. Teve até briga contra nós, porque a gente queria
“incendiar” a Unicamp. Porque tudo aquilo era uma loucura. Mais tarde eu conheci um
professor canadense, Sebastian Joaquin, e ele trouxe da França o livro Esthétique et
théorie du roman, mais basicamente voltado para a Literatura. Logo depois, li o
Rabelais, também em francês, intitulado L'œuvre de François Rabelais et la culture
populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance, emprestado por minha então colega,
mais tarde esposa, hoje falecida, Maria Stela Gonçalves, uma das primeiras pessoas a
trabalhar com dialogismo no Brasil. Ela foi determinante para que eu começasse a
trabalhar com o círculo. Minha dissertação foi uma revisão da noção de “lugar social”,
da Análise de Discurso de Pêcheux, a partir de propostas dialógicas. O título fala de
“resgate” da noção, o que pareceu ofensivo a alguns, mas meu objetivo era mostrar que
algo além das famosas imagens de Pêcheux [Quem sou eu para lhe falar isso?] poderia
ser proposto com êxito para dar conta do discurso, no caso, uma versão ampliada da
noção de lugar social. Eu achava “quem sou eu” muito subjetivo. Como é que eu sei
quem sou eu? Agora, se eu perguntasse “qual é meu/seu lugar social” talvez
funcionasse. Inclusive porque a teoria de Pêcheux não tem uma noção de enunciação.
Certamente acharam que não era necessário. Aí fica difícil, pois se não se tem noção da
enunciação, fica apenas o produto da enunciação, o enunciado, que vão chamar depois
de sequência discursiva de referência. Claro que não podemos analisar de fato o
processo, mas podemos tentar reconstituí-lo. E foi o que fiz. Para isso, contestei a
existência tanto de um sujeito assujeitado como a de um sujeito autárquico acima da
sociedade. Acabei não defendendo na Unicamp, por recusar as sugestões da banca, e
desisti do curso em 1985, ficando com um certificado de especialização. Em 1997
retomei o mestrado, na USP, com Diana Barros, e defendi em 1999. Fiz bem poucas
alterações. Uma professora da época da Unicamp me disse, quando fui para a USP,
“agora você já pode dizer isso”. Quando ela assim me falou, entendi que na época eu
estava certo, mas não iam me deixar falar porque eu não tinha lugar de fala. Meu lugar
social não foi capaz de admitir que eu não poderia falar. Isto é, eu tinha escrito algo que
fazia sentido, mas não podia ser dito quando eu dissera. Logo, a teoria de Bakhtin está
certa: tudo depende das relações dialógicas possíveis, que são conjunturais.

OC: O que é dialogismo e por que, na maioria das vezes, esse conceito é
identificado como o conceito central da teoria do Círculo de Bakhtin?

Sobral: Dialogismo é a designação que se deu às teorias de Bakhtin e o Círculo. Eles


nunca mencionaram esse termo. Eles jamais disseram “Estamos desenvolvendo aqui a
teoria do dialogismo”. Bakhtin diz quanto a isso apenas que Saussure, em seu trabalho
legítimo, se preocupava com a linguística da língua, com as relações lógicas, e ele, de
sua parte, que se dedicava à questão da enunciação, se preocupava com as relações
dialógicas”. Ou seja, ele nunca disse que era dialogismo. Na verdade, os pesquisadores
foram assim dizendo. O nome que Bakhtin deu à sua proposta foi translinguística, ou
seja, uma teoria para além da linguística então praticada. Assim, dialogismo é a
proposição de que, para dar conta da linguagem, para além do sistema da língua, mas
incorporando-o, é preciso ir além do linguístico estrito, tanto o que propõe um sistema
imanente que domina os sujeitos (o chamado objetivismo abstrato) como o que postula
um sujeito como agente autônomo (o chamado subjetivismo idealista), uma vez que
estamos sempre interagindo, em relações dialógicas, portanto. Só que a gente tem de
agradecer a Saussure, porque ele foi revolucionário. Ele mudou um paradigma na época.
Inclusive ele afirmava que não inventou a língua, mas a descobriu. Saussure disse em
seu Mémoire, algo como “quanto mais olho as línguas e suas relações e suas mudanças,
tanto mais vejo a língua”. Ele entendeu que todas as línguas poderiam ser entendidas
como manifestações da língua. E procurou descobrir o que havia em comum em todas
elas, fundando assim a linguística. Aí que está. Se não tivesse isso, como a gente ia
contestar que é mais do que isso? Depois tem o Martinet, com a dupla articulação da
linguagem. Mas ainda estava faltando alguma coisa. Aí vem Benveniste, com a noção
de enunciado. Não falou de diálogo no sentido de Bakhtin, mas trouxe essa noção de
enunciado. Sem ele, talvez o próprio Bakhtin teria se perdido, se não tivesse surgido
essa noção no Ocidente. Os bakhtinianos mais fanáticos (que os há) até podem
questionar, mas estou falando não de quem escreveu historicamente antes, mas de quem
foi conhecido por ter escrito primeiro sobre essa noção, quando chega e diz que a gente
negocia o referente, o que se chama hoje de referenciação. E, a partir disso, há uma
coisa fundamental: o sujeito de Bakhtin é individual, não subjetivo. Eu costumo dizer
que quem trabalha com Bakhtin “arruma pra cabeça”, porque tem de entender bastante
de língua, de discurso e também de enunciação, ou seja, muita coisa. Só que hoje, se
mostrarem qualquer texto, imediatamente me vem à cabeça “Quem escreveu para
quem” e “Onde”. Eu não consigo ver outra coisa. E isso nos leva a pensar no que
Bakhtin postula sobre o sujeito, que está sempre interagindo, estamos sempre em
interação dialógica. Então, o que é central na teoria de Bakhtin passou a ser chamado de
dialogismo. Mas, na verdade, o foco são as relações dialógicas como uma forma de
existência do homem no mundo pela linguagem. As relações dialógicas são a nossa
base. Bakhtin fala que só em dois momentos estamos sozinhos no mundo, na hora de
nascer e na hora de morrer.

OC: Qual a relação entre dialogismo e interação? Até que ponto esses conceitos
estão intimamente ligados e até que ponto eles se confundem um com o outro?

Sobral: Na verdade não tem como confundir um com o outro, porque eles estão numa
relação de todo e parte. Considerando o dialogismo como relações dialógicas, a
interação é a forma de realização das relações dialógicas. Dialogismo e interação estão
intimamente ligados, porque as pessoas estão em permanente interação. A teoria
dialógica se funda numa concepção ampliada de interação, se assim se pode dizer (a
interação, no âmbito do dialogismo, não se restringe às interações no hic et nunc, aqui e
agora), e insiste que estamos sempre interagindo, estejam os outros presentes ou não.
Para Bakhtin, a interação depende da posição relativa dos sujeitos na sociedade. Ele
afirma que estamos dialogando sempre, mas nada está garantido. Eu às vezes uso
Patrick Charaudeau, que diz que o contato com o outro é sempre uma ameaça, seja
quem for o outro, no sentido de que o outro (pois entende que se é o “outro” não é o
“eu”), vai ser sempre diferente e vamos ter de lidar com o fato de que é diferente.
Bakhtin afirma que a gente é constituído não sendo o outro. A gente se constitui por
oposição aos outros. Logo, ninguém é totalmente dominante ou dominado. A conjuntura
pode dar em um certo momento poder a quem antes não tinha. Mais do que isso, a teoria
dialógica de Bakhtin é mais que uma teoria da linguagem, porque ela mostra que esta
depende de relações dialógicas, que se manifestam em interações. Ela [a teoria] vem de
uma filosofia que mostra que somos, como sujeitos, constituídos pelos outros, tal como
os enunciados o são por outros enunciados, passados e futuros, porque, ao dizer,
retomamos os passados e tentamos nos antecipar a futuros, com base nessa experiência.
É fácil de ver que a gente se projeta para o futuro. Eu acho revolucionária a ideia de que
quando a gente enuncia estamos tentando antecipar o que alguém pode dizer. Ou seja,
isso que eu acho que alguém pode dizer já está presente no que eu estou dizendo. Para
mim isso é fantástico. Eu sempre vou defender essa teoria como a melhor que eu vi de
linguagem, que eu conheço. Vale ponderar que a gente não se antecipa a tudo. A gente
se antecipa àquilo que a gente acha que é, o que podemos ver. Esse conceito ampliado
de interação é parte do dialogismo, sua parte central, porque as relações dialógicas se
manifestam na interação, e essas relações são a tese central do dialogismo. A linguagem
se manifesta em relações dialógicas. A meu ver, essa é uma revolução nos estudos do
discurso, o que eu acho incomparável. Acho que até agora eu não vi nenhuma teoria que
cobrisse isso. Eu diria que Bakhtin tem uma ideia de interação não como algo apenas
interativo, e sim constitutivo. Interação não é o momento da interação. Interação é
permanente. Por isso entendo que há uma diferença entre as teorias, porque o aspecto
filosófico de Bakhtin é fundamental. Para fechar, o dialogismo como as relações
dialógicas que definem o ser humano via linguagem tem a interação como sua principal
base. E essa interação normalmente está definida em termos de gêneros. Porque todo
enunciado é parte de algum gênero. Não tem um enunciado que não seja parte de um
gênero. Por isso que eu escrevi o livro do Dialogismo ao gênero [:as bases do
pensamentos do círculo de Bakhtin] para mostrar que o dialogismo tem como parte
prática o gênero. No gênero a gente consegue perceber tudo isso.

OC: O que é a Análise Dialógica do Discurso (ADD) e o que a diferencia de outras


teorias do discurso? Por que se passou a chamá-la de Análise Dialógica do
Discurso (ADD)?

Sobral: É uma questão de marketing (risos). A gente precisava de uma nome forte para
o fato de que ela se diferencia das outras. Esta questão é aparentemente simples, mas
envolve uma grande complexidade. Vários são os motivos da designação, de que vou
falar antes de responder à primeira parte da pergunta. Como se sabe, houve em certo
momento no país a importação do modelo de análise de discurso de Michel Pêcheux,
que levou quase ao esquecimento o fato de haver outras propostas na França. A
designação AD sobrepôs esse modelo a todas as ADs francesas, inclusive porque passou
a ser chamada de “AD francesa”. Mais tarde houve a incorporação desse modelo a um
modo brasileiro de fazer AD, com destaque para o trabalho de Orlandi, e hoje essa AD
só existe como tal no Brasil. Surgiu a ACD (também chamada de ADC), a análise de
discurso crítica, e a AD de Maingueneau se disseminou no Brasil. A proposta de
Bakhtin passou a ser considerada erroneamente interacionista, por analogia com o ISD,
que é na verdade uma teoria do texto, e não do discurso, como o reconheceu Bronckart
– e isso exigia uma resposta. Inclusive fui a Genebra (em um encontro do ISD, que me
acolheu) e levei a proposta de que a gente é interacional, não interacionista. A ideia era
diferenciar. Quando começaram a chamar a proposta erroneamente de interacionista, a
gente se irritou com isso. Por que o ISD tem uma teoria textual, e não uma teoria do
discurso. Nesse contexto, primeiro usamos “dialogismo”, mas, como parecia um
“ismo”, uma seita, ou coisa assim, tendo havido acusações nesse sentido, passamos a
usar “teoria dialógica”, para defender a existência de uma teoria da linguagem e do
discurso, e não um conjunto de crenças. Depois passamos a usar “teoria e análise
dialógica”, a fim de defender a existência também de princípios de análise, porque
ouvíamos “o dialogismo não tem metodologia”. Observe-se que não se mencionava
“discurso”, porque, para o campo bakhtiniano, era evidente que discurso e enunciado
estavam ali. Chegou um momento, quando a comunidade internacional começou a falar
de “escola brasileira de estudos bakhtinianos”, que se tornou necessário destacar que
havia uma proposta de estudo de discurso de cunho dialógico que se diferenciava de
todas as outras, logo, uma Análise Dialógica do Discurso. Quem passou a chamar assim
foi Beth Brait, e eu prossegui, dentro do nosso grupo, que é o grupo de estudos
bakhtinianos da ANPOLL. Nesse sentido a gente é criador de discursividade. Como
uma sigla tem poder simbólico, de firmar uma identidade, e de fazer lembrar dela, por
isso passamos a chamar de ADD, que lembra AD, ADC/ACD, ISD, logo, compete com
essas siglas quanto a ser lembrada. O que é ADD e em que ela difere das outras ADs? É
a única que conheço que abrange o texto, a enunciação e o discurso e é configurada no
gênero. Então, ela cobre um espectro maior. Digamos que ela pode ser mais produtiva
por isso. Além disso, trata-se basicamente de uma teoria filosófica sobre o ser no
mundo dos seres humanos, de sua existência coletiva e individual, e de sua
interconstituição na interação, que ocorre continuamente e tem a linguagem em uso
como seu centro. Não é que um dia fomos constituídos uns pelos outros. Continuamos a
sê-lo, e, claro, a constituir os outros. Isso é inerente à nossa condição humana. Claro que
as outras ADs têm um fundo filosófico, mas elas não são, como ADD, fundadas em
uma filosofia específica que vai além do texto e do discurso e alcança nosso ser no
mundo. Em segundo lugar, ela não nasceu como uma teoria ou modelo de análise, mas
como uma teoria ontologicamente fundada da linguagem. Ela propõe os enunciados
como a forma de manifestação da linguagem, sendo o texto o aspecto técnico do
enunciado. O texto realiza o gênero através do discurso. Logo, é a teoria e análise que
efetivamente mostra teórica e praticamente que os aspectos linguístico-textuais estritos
são recursos de realização da linguagem, e que esta é mais ampla. É ainda a teoria na
qual a interação recobre a vida dos seres humanos em sociedade, e não os momentos
pontuais de interação concreta. Na hora da interação são dois mundos que se cruzam.
Além disso, tem o grande mérito de lidar com parâmetros e não categorias ou formas de
análise; ela permite adequar os parâmetros ao objeto e, por assim dizer, partir do objeto,
em vez de enquadrá-lo segundo a teoria. Mas vale o alerta de que a ADD não é uma
teoria de análise linguística, embora trabalhe com a língua. Só que ela o faz em termos
enunciativos, discursivos, e não estritamente linguístico ou textual. Da perspectiva
dialógica, o que se propõe é uma análise linguístico-enunciativa, ou discursiva, já que o
conceito de discurso da ADD já implica língua e enunciação, língua mobilizada por atos
enunciativos. Volochinov e Bakhtin têm inclusive exemplos de análise sintática
enunciativa, em Marxismo e no texto de Bakhtin como professor. Ela oferece assim
parâmetros que os estudiosos de Bakhtin foram transformando em uma teoria e análise
do discurso, tendo, portanto, grande flexibilidade, algo não muito comum em outras
ADs. Não posso no momento comparar as várias teorias do discurso, mas, se o fizesse,
mostraria também as semelhanças entre elas e a ADD, e os aspectos em que diferem da
linguística tradicional (sem a qual, por outro lado, como reconhece Bakhtin, não haveria
estudo linguístico). Digo isso para esclarecer que não digo que elas não sejam legítimas
ou que não sirvam a uma análise. São, claro, legítimas, e, cada qual em seu domínio,
produtivas. O que me atrai na ADD é que sua produtividade me parece maior,
especialmente porque ela é dotada, repito, de grande flexibilidade. É claro que acabo
sendo tendencioso e considerando a minha melhor, porque é com ela que eu trabalho.
Estou tão acostumado que de repente não vejo suas limitações, seus defeitos até.
Alguém de outra área pode apontar que de fato a gente não deu conta de alguma coisa.
Vamos entender que ela consegue cobrir a ideia de que o enunciado, unidade de análise,
que só existe quando objeto de uma enunciação, se constitui de três componentes
discursivos, ao lado dos aspectos linguístico-textuais estritos, a saber: a
endereçabilidade, o fato de sempre ser dirigido a alguém; a referencialidade, o fato de
remeter a algum objeto do mundo que é apropriado linguisticamente; e a
expressividade, o fato de sempre refletir a posição valorativa do locutor, que não
corresponde necessariamente à do interlocutor, e assim um influencia o outro. Acho que
essa é a principal diferença. Nenhuma outra teoria cobre isso. Toma-se o dialogismo
como teoria do ser no mundo, da linguagem, do discurso e da enunciação, com destaque
para as relações dialógicas permanentes entre enunciados e entre os sujeitos,
retrospectivamente e prospectivamente. Trata-se de algo que não se faz presente em
nenhuma teoria que seja de meu conhecimento.

OC: Os gêneros do discurso são definidos como formas relativamente estáveis de


enunciado. Até que ponto há uma relativa estabilidade do gênero e até que ponto
cria-se um gênero?

Sobral: Mesmo quando se cria um gênero, permanece a relatividade da estabilidade.


Mas ele se altera quando se alteram as posições enunciativas. No momento em que
passo a me dirigir ao outro de maneira distinta, eu mudei o gênero. Por exemplo, uma
orientanda minha, Fernanda Guimarães, estudou uma dissertação na área de educação
em forma de cartas, cartas dirigidas aos professores, aos gestores educacionais de
diversos lugares do país etc. Qual é o gênero, nesse caso? Dissertação de mestrado. A
forma pouco importa nesse sentido. Pode até fazer em história em quadrinhos e ela
continuará a ser analisada como dissertação de mestrado. Se você vai defender uma
dissertação, pode ser em forma de filme, de revista, de livro, de cartaz, de panfleto, não
importa, ela continua dissertação. Conheci um trabalho na Física em que o aluno
defendeu a tese em forma de história em quadrinhos. Por ser uma HQ significa que eu
entendi? Não entendi nada, porque era na Física. Então, o que define o gênero é a parte
estável, mas a parte estável também é relativa, porque depende igualmente da posição
relativa dos sujeitos. Segundo Bakhtin, os gêneros do discurso são praticamente
infinitos, nascendo de acordo com as necessidades de comunicação humana. O
surgimento de gêneros não se liga diretamente à estabilidade relativa. Esta se refere ao
fato de todo gênero combinar elementos estáveis, que lhe permitam ser identificado
como o gênero que é, com variações dependentes do contexto de uso, das necessidades
específicas de cada interação e da posição relativa do locutor. A parte estável dá conta
dessa identificação, e essa parte define basicamente o gênero. A parcela marcada pelo
“relativamente” dá conta desse seu dinamismo. Podemos alterar partes materiais do
gênero sem que ele se altere como tal. As mudanças capazes de tornar o gênero outro
gênero são aquelas que afetam seu foco, o endereçamento e o projeto enunciativo.
Porque o gênero se define pragmaticamente em termos daquilo que realiza e daquele a
quem se dirige. Bakhtin é claro quanto a isso. Tema, forma de composição e estilo são
meios técnicos de realização do gênero. Ninguém vai entender o gênero tentando
identificar esses três elementos. Não são categorias. Apenas estão lá e não podem ser
vistos de forma separada. Podemos mudá-los e manter o gênero. Eis o relativamente da
expressão “relativamente estáveis”. Mas se mudarmos o projeto enunciativo, ou seja,
aquilo que o gênero realiza, e o interlocutor a quem ele se dirige, na verdade, seu
interlocutor típico, o gênero se torna outro. Claro que há mudanças do gênero, mas ele
permanece o mesmo. Por vezes, ele apenas se diversifica. Por exemplo, uma carta, ou
email, é, na verdade, um conjunto de cartas, que constituem gêneros distintos que têm
algo em comum, porque há a carta pessoal, a institucional, a carta convite etc., cada uma
com seus objetivos. Do mesmo modo, a capa de revista, de livro, de relatório etc. é um
gênero discursivo. Na verdade, capa de revista é um gênero, capa de livro outro, capa de
relatório um terceiro. O que há em comum é o fato de serem capas, de indicarem o teor
de algo, mas não são o mesmo gênero porque cada qual realiza uma função. A capa da
revista não traz os mesmos elementos que a do livro ou do relatório, porque sua função
difere. Eu chegaria a propor que capa de revista semanal e revista mensal são diferentes.
Tal como quando falei de cartas. O que determina o gênero é o projeto enunciativo, o
que se realiza com o gênero. E cada uma dessas capas realiza uma coisa distinta, mesmo
tendo algo em comum. Para resumir, os gêneros se alteram quando se alteram seus dois
componentes principais: o endereçamento e o projeto enunciativo. Afora isso, há apenas
mudanças dos aspectos superficiais do gênero. Agora há casos também que a gente tira
o gênero de um lugar e leva para outro lugar. É o caso, por exemplo, de uma placa de
trânsito que pode virar um poema. Quando se muda o essencial é que se muda o gênero.
Por exemplo, ao pegar os aconselhamentos na medicina, na psicologia, na religião e
inserir tudo num livro de autoajuda, aí passamos a ter outro gênero. Portanto, os gêneros
novos surgem a partir da necessidade de comunicação dos sujeitos. Outro exemplo: nós
inventamos a entrevista-aula ou a aula-entrevista, porque estou respondendo à entrevista
na aula, dirigindo-me aos alunos. Ela tem outras características – mas ela continua a ser
uma aula? Continua. Ela continua a ser uma entrevista? Continua. Isso que é
interessante. Ela não é só aula e não é só entrevista. Os gêneros, assim, mantêm
aspectos estáveis, mas estão em contínua mudança. Quando muda o essencial, surge
outro ou outros gêneros a partir do gênero afetado. Afora isso, surgem novos gêneros
das necessidades de comunicação dos sujeitos, continuamente, a ponto de não ser
possível fazer um inventário, ou dicionário, de gêneros.

OC: Em um de seus artigos, você afirma que ensinar gêneros requer possibilitar
que os alunos “assumam as posições enunciativas de usuários da língua em
formação”. O que é essa posição enunciativa? Como possibilitá-la?

Sobral: A escola está trabalhando em muitos casos com simulacros de gênero. Ela pega
o aluno e diz: “Escreva uma carta ao editor”. O aluno, de fato, vai mandar a carta ao
editor? Ela vai realmente ser entregue a alguém? Está falando de alguma coisa
concreta? Não. O problema é que no Brasil a educação ainda é pensada em muitos casos
como transmissão. Yves Clot veio aqui e, diante de um público em evento, disse que
gênero não se transmite; gênero se ensina. Alguém da plateia pediu a palavra e disse:
“Ou se deixa aprender”. Por isso, sempre digo que o ENEM tem dignidade quando diz
que quer a produção de um texto dissertativo-argumentativo. Ou seja, a abordagem é
textual. Não fala em gênero. É preciso evitar o simulacro de gêneros na escola. A escola
tem gêneros escolares, como o texto da redação do ENEM, que só existem como tais na
escola. O aluno escreve na escola para o professor; sua posição enunciativa é a de quem
escreve para o professor na escola, algo que na verdade vai se alterar sutilmente de
acordo com o professor para o qual escreve. Se ele escreve uma carta ao editor que não
for ser enviada ao editor, ele estará praticando a forma textual de carta ao editor, mas
não o gênero carta ao editor. O que importa é que ele perceba que sua posição
enunciativa, na escola, é a de aluno avaliado pelo professor. O editor, se recebesse a
carta, poderia ou não publicar, mas não a iria avaliar como o faria um professor. Na
verdade, escrever uma carta ao editor tem de considerar o editor específico, pois o editor
em geral é uma ficção. Cada editor é igual aos outros, mas diferente de todos. É preciso
ter de fato na escola a necessidade de distinguir claramente a prática escolar de usar a
forma de gêneros como treinamento e o uso real de gêneros na vida extraescolar.
Devemos mostrar o que é posição enunciativa, dar exemplos e analisar posições
enunciativas, com base em textos reais de gêneros. Assim, o que o professor precisa
fazer na escola para acabar com essa confusão? Partir dos seguintes pontos de vista:
quem são os produtores típicos desse gênero? Quem é que normalmente escreve isso?
Em que ambiente social são tipicamente produzidos? Em que ambientes sociais eles
circulam? A gente fala em produção, recepção e circulação. Quem produz, para quem
produz e onde. E especialmente, quem são os seus receptores típicos ou a quem eles são
endereçados? Se o professor der aula e o aluno pensar a partir disso, eles terão
aprendido gêneros. Fora isso, terão aprendido a trabalhar só com texto. Porque trabalhar
com gênero tem de responder a essas perguntas. O que pode dar certo? Fazer o aluno
escrever pequenas coisas para interlocutores reais. O problema é que passamos da
análise sintática para a abordagem dos gêneros sem passar pelas teorias de texto
devidamente. Se observar os PCNs, em duas de suas páginas, 18 e 62, vamos encontrar
três definições de gêneros, uma textual, uma retórica e uma interacionista. Esta última
não chega a ser bakhtiniana, não chega a ser discursiva. Ou seja, o texto é o recalcado
do trabalho com os gêneros no Brasil. E estamos vendo justamente o problema de
reduzir o gênero ao texto ou a uma forma textual, como se todo gênero só pudesse se
realizar de uma forma. E isso está errado. A questão é que pegamos o gênero de algum
lugar e escolarizamos. O próprio Schneuwly afirmou que não propôs uma sequência
didática para todo mundo seguir e copiar. Ele só disse como é que fazia e ressaltando
que era de acordo com a necessidade e o ambiente. Mas seu exemplo virou modelo.
Com gêneros discursivos houve algo parecido.

OC: A partir de sua discussão acerca da complexa relação entre os gêneros


discursivos em seu processo de escolarização, quais seriam as maiores dificuldades
encontradas na transposição desses gêneros de seu "habitat natural" para as
práticas escolares?

Sobral: Foi o que falei. De que temos de partir de determinadas perguntas, entender o
gênero como uma forma de interação, para além dos aspectos técnicos. É claro que cada
circunstância vai exigir um certo gênero ou alguns gêneros específicos. O grande
problema é reduzir o gênero ao texto em si ou a uma forma textual, como se cada
gênero só pudesse se realizar por um mesmo texto. Todo texto é parte de um gênero,
mas nenhum gênero se restringe a algum texto específico. Se eu trabalho com a forma,
estou trabalhando com o texto. Se eu trabalho com a relação enunciativa, estou
trabalhando com gênero, que é o que se realiza na interação. Logo, é esse o foco do
ensino a ser seguido na escola. A escola estuda gêneros não escolares, é claro, mas deve
evitar escolarizá-los de um modo que os transformem em objetos estáticos. Porque
gêneros não são objetos, mas formas de interação via linguagem, que têm o texto como
parte necessária, mas não suficiente. Ela tem seus próprios gêneros, legítimos, que
servem inclusive para ela estudar e ensinar outros gêneros. Mas os gêneros
extraescolares só circulam na escola como objeto, não como gêneros reais, porque esse
não é seu habitat. Um exercício que faço com alunos é pedir que eles descrevam como
escreveriam um dado texto para vários interlocutores a, b, c. Quando fazem isso, eles
percebem que o texto fala da mesma coisa, mas fala para cada interlocutor de uma
maneira específica. Isso ajuda a mostrar o caráter relativamente estável do gênero.
Importa mostrar ao aluno o que é gênero como forma de interação, para além dos
aspectos técnicos. Do contrário, não faz sentido ensinar gêneros, que não é o mesmo
que transmitir. Transmitir gêneros é destruir tudo o que é vital neles.

OC: Em outro de seus artigos, o senhor menciona uma concepção filosófica-


discursiva de educação. Poderia falar um pouco sobre as convergências entre os
estudos de Bakhtin e Vygotsky que o texto aponta?

Sobral: Os dois partem da ideia de que o mundo é objetivado socialmente e é


apropriado individualmente. As teorias de Vygotsky e as propostas do Círculo de
Bakhtin permitem dizer que o mundo não chega à consciência sem mediação: o sensível
é o plano de apreensão intuitiva do mundo sem elaboração teórica, o plano do dado, das
impressões totais de que fala Adam Schaff, dos conceitos espontâneos de Vygotsky; o
inteligível é o plano da elaboração do apreendido, dos conceitos científicos, da ação das
categorias humanas de organização do contínuo do mundo em sentido humano. Tal
como para a concepção dialógica, para ele [Vygotsky] a consciência depende da
linguagem para formar-se e manifestar-se, assim como esta precisa da consciência para
existir. Volochinov fala claramente que a consciência é totalmente ideológica e a
ideologia é totalmente parte da consciência. A ideologia influencia a consciência. A
consciência influencia o ideológico. E as duas se articulam. E como a linguagem se acha
imersa no mundo, sendo por ele constituída, ao mesmo tempo em que o apreende, a
consciência constrói o mundo não lhe impondo suas categorias, mas situando-se na
concretude desse mundo para se constituir - ela o apreende relacionalmente. Pode-se
dizer que, também para Vygotsky, o sujeito é um agente, um organizador do discurso,
responsável por seus atos e responsivo ao outro; alguém dotado de um excedente de
visão com relação ao outro: o sujeito sabe do outro o que este não pode saber de si
mesmo, ao tempo em que depende do outro para saber o que ele mesmo não pode saber
de si. Assim, a discussão de uma educação dialógica, aqui introduzida, é uma tentativa
de estabelecer parâmetros para uma junção das teorias do Círculo de Bakhtin e de
Vygotsky. No primeiro caso, com ênfase na teoria da cultura e, no segundo, nas relações
entre pensamento e linguagem em suas implicações educacionais, a fim de propor uma
alternativa que supere tanto a tirania da prática - que se restringe ao singular e perde de
vista a generalidade tão necessária ao ato de conhecer (e transformar) o mundo - como a
tirania da teoria - que se restringe ao geral e perde de vista a riqueza da(s)
singularidade(s). Eu acho que a tirania da teoria é que está estragando o trabalho com
gênero na escola, porque esquece também a prática. A escola deveria ser, nessa
concepção dialética dialógica, um espaço de exploração sistemática do aspecto
dinâmico da vida humana, que é a criação de sentidos a partir da relação entre os seres -
não de saberes estáticos pretensamente válidos por si mesmos e transmissíveis como
conteúdos, que é o que fazem muitas vezes com os gêneros, e que apagam o indivíduo.
Assim, pensando nos dois teóricos, Vygotsky fala para o professor provocar o aluno,
fazer o aluno ir além do que sabe. Bakhtin vai dizer, na teoria da cultura, que o sujeito
está sempre influenciado pelo outro, que o outro desloca o sujeito.

OC: Pode-nos contar brevemente sobre uma das pesquisas que está desenvolvendo,
“Por uma pedagogia dialógica ‘Glocal’: os Gêneros do discurso na Escola Básica”?
Sobral: Ao longo de uma pesquisa anterior, consegui identificar as dificuldades, êxitos
e anseios sentidos pelos profissionais sujeitos de pesquisa. Contudo, dada a magnitude
do processo, não se conseguiu dar início ao processo de desenvolver o último objetivo:
“uma metodologia de ensino de gêneros sem modelização tanto para a formação de
profissionais de Letras numa universidade privada do sul do Estado do Rio Grande do
Sul como para a formação continuada de professores de língua materna do Ensino
Elementar e Médio de escolas privadas e escolas públicas municipais estaduais de um
município do sul do Estado do Rio Grande do Sul”. O presente projeto, intitulado “Por
uma pedagogia dialógica “glocal: os gêneros do discurso na escola básica”, busca
desenvolver essa metodologia, entendida em termos dialógicos como uma junção
contextualizada e flexível entre saberes e recursos locais (contexto escolar) e
fundamentos e experiências globais (contexto universitário). Os saberes e recursos
locais vêm de cada sujeito-professor (bem como do coletivo de professores) em seu
contexto escolar específico, implicando, da parte da universidade, o devido respeito à
especificidade das experiências docentes destes. Os fundamentos e experiências globais
vêm da universidade, que, de modo geral, desconhece os contextos locais, trabalhando,
por diferentes motivos, na busca de generalizações que permitam difundir os saberes
produzidos para além dos contextos de sua produção. Essa junção pretendia constituir a
base de uma proposta de ensino de gêneros sem modelização. Assim, unir esses dois
planos, o local e o global, criar o que se denomina modernamente uma proposta
“glocal”, entendida aqui como o diálogo, em igualdade de condições, entre o contexto
de cada sujeito-professor e os princípios gerais vindos da universidade. Infelizmente, o
projeto não teve continuidade porque a UCPel fechou os cursos de Letras em todos os
níveis. Afora isso, certo órgão de fomento recusou o projeto porque, segundo um
avaliador, trazia um “jargão” (!) e, segundo outro, não era de pesquisa, mas de extensão.
Isso porque, digo eu, em vez de impor aos professores uma proposta da Universidade,
queria que eles participassem da proposta? Torre de marfim?

OC: Os PCN trouxeram o texto para o centro das aulas de língua portuguesa e
propuseram um modelo de produção textual baseada nas práticas sociais,
consequentemente, lançando mão dos gêneros discursivos, que passaram a ser
contemplados pelos currículos e materiais didáticos, de forma geral. No entanto,
sabemos que não basta levar o gênero para a sala de aula sem ter clareza da
diferença entre ensinar gêneros e transmitir gêneros. É possível dizer que houve
avanço no ensino de línguas a partir da ascensão dos gêneros discursivos?

Sobral: Em parte sim. Só que num lugar inesperado, com o qual querem acabar, que é o
PIBID. Não sei por que, mas é um lugar em que parece funcionar a questão do gênero,
talvez por ser um diálogo entre Universidade e escola, né? Para mim o PIBID deveria
ser o modelo de formação de professores de língua materna. Mas ainda se privilegia
mais o texto, como se houvesse um medo de o perder de vista. Os PCN têm um
problema; eles trazem três definições distintas de gênero, sem as integrar, e vão ver que
a Base [Nacional Comum Curricular] não mudou isso: como tipos de texto, como
estratégia retórica e como evento comunicativo institucionalizado. Tem tudo que é gente
aí, só não tem Bakhtin, embora digam que tem. Mas eu não vejo tratamento
propriamente enunciativo-discursivo do gênero. Talvez porque, já falei antes, aqui no
Brasil passamos da análise sintática para os gêneros, com as teorias de texto vindo
depois, mas aí já era tarde. Acabaram institucionalizando a ideia de gêneros nos
documentos oficiais. Deram um jeito de transformar os gêneros em conteúdo a ser
transmitido, e não em uma forma de interlocução. E aí o texto virou o nosso recalcado,
aquilo de que sentimos falta, e essa falta tem levado muitos a permanecer no texto em
termos estritos, sem explorar a radicalidade da abordagem de gêneros. Sim, há grandes
teóricos do trato textual, como dizia Marcuschi, incluindo ele e Koch, mas o gênero
padece. O que acho é que não ocorreu uma real passagem da análise sintática ao texto e
daí para o gênero. Inclusive porque as análises de discurso muito cedo fizeram sucesso
no Brasil. Há, portanto, carência de uma abordagem integrativa. Tenho tentado
desenvolver isso em textos em parceria com Karina Giacomelli, que é extremamente
didática e, assim, complementa minha mente teórica. O Clécio Bunzen vai publicar um
livro, com um capítulo de nossa autoria. É a formulação mais prática a que chegamos,
destinada a professores dos vários níveis de ensino. Porque vemos que há uma quase
textualização dos gêneros, que perde de vista o fato de que a vantagem da ideia de
gênero é seu aspecto enunciativo-discursivo. Sem explorar isso, é melhor fazer uma boa
análise sintática, porque aí se aprende mais sobre língua do que trabalhar gênero de uma
maneira textualizada.

OC: Então, você já teve condições de fazer algum tipo de avaliação do novo
documento da educação, a BNCC. Em relação ao ensino de língua portuguesa, o
documento está mais próximo ou mais distante do que se entende um ensino
baseado nas ideias do círculo de Bakhtin?

Sobral: O que eu disse sobre os PCN se aplica, ao menos em parte, à Base. Ela não
mudou muito isso. Tem valor, claro. Mas tenta apenas retomar e explicar, só que no
fundo ela traz mais de uma definição para gênero. Fala até em um trabalho com diversos
gêneros, mas ainda é de caráter bastante textualizante. Tem até uma passagem que o
documento diz sobre reconstrução do contexto de produção, circulação e recepção. Mas
como é que vou reconstruir? Vou fazer uma maquete do texto? Fica algo meio
complicado. Portanto, o que o documento propõe não me parece muito diferente dos
PCN. Aponta-se para a centralidade do texto como unidade de trabalho e até para a
perspectiva enunciativa-discursiva, mas não de forma integrada. Ou seja, tem as duas lá,
mas ninguém as fez trabalharem juntas. Há, também nela, o tratamento de vários
aspectos, mas ainda sem integração. A BNCC é um avanço, mas cabe explorar melhor
as possibilidades que uma perspectiva dialógica abre. Ocorre que, no tocante a gêneros,
Bakhtin é mais uma citação obrigatória do que uma presença real. Não entendo a
dificuldade de se chegar a uma concepção integrativa. O que tenho proposto, com
Karina Giacomelli, é que todos os aspectos linguísticos e textuais podem e devem ser
tratados do ponto de vista enunciativo-discursivo. Mas vejo, na verdade, que ou não se
chega propriamente ao nível da enunciação e do discurso ou, o que é pior, vê-se o
gênero do ponto de vista do texto. A concepção vigente é textual, um pouco pela
influência do ISD, sem tirar o valor da proposta, claro. Marcuschi, que trabalhava com
teorias textuais, já alertava para isso há cerca de 15 anos. Todo texto é parte de um
gênero, mas nenhum gênero se restringe a algum texto. Falta ver isso na prática. De
todo modo, o simples fato de isso ser mencionado já é um avanço. Precisamos ser
modestos em nossas expectativas. Porém, uma coisa é importante dizer: ninguém é
obrigado a seguir literalmente um documento. Temos de usar o documento para nossos
fins. Fala-se lá algo de forma geral, e a gente deve entender do nosso jeito. Nem sei se
precisa, por exemplo, falar em multimodalidade. Vamos dizer que existem textos que
combinam várias linguagens. Podemos chegar e verificar como imagem e palavras
dialogam em um texto. Qual é a relação entre os dois. Que todo ele cria. Para onde
conduz a imagem. Para onde conduz o texto escrito. E de que forma eles se integram
para formar um todo. Chego à conclusão que falta a participação na formulação dos
documentos de profissionais que sejam de uma perspectiva dialógica. Porque aqueles
que foram lá para a elaboração dos documentos estavam falando de Bakhtin em segunda
mão. E ainda assim vemos que Bakhtin virou mais uma citação obrigatória do que uma
presença real.

OC: Há um discurso circulante do atual governo que “demoniza” bases teóricas


marxistas alinhadas a uma perspectiva sócio-histórico-ideológica (o que inclui,
também, a própria definição de dialogismo). Como o senhor acredita que isso
tende a afetar as escolas e as práticas de ensino? E como nós, professores, podemos
servir como um instrumento de resistência?

Sobral: Os sujeitos são o centro da linguagem para a concepção dialógica. No Círculo


não se fala de inconsciente, mas não há necessidade de considerar especificamente isso.
Importa a ideia de que o próprio inconsciente é afetado em alguma medida pela vida
social do sujeito. A ideologia é tratada pelo Círculo de modo revolucionário, para além
da teoria do reflexo, a de que a superestrutura reflete a base material invertidamente, a
da falsa consciência. Para o Círculo, tudo é ideológico no sentido de que todo material
semiótico cria sentido e de que o sentido nasce da interação, do confronto entre as
valorações distintas dos envolvidos, e valoração é ideológico. Como tudo que faz
sentido é valorado, tudo é ideológico. Na verdade, essa concepção é mais materialista-
dialética, fundada em Engels e Lênin, do que marxista. Está bem longe do marxismo
vulgar, da teoria do reflexo. Esse discurso do governo é ideológico, claro, e prova a
própria tese marxista de que é a existência do homem que lhe determina em alguma
medida a consciência que ele tem. É o discurso da classe dominante tentando ocultar o
fato de que é dominante porque há dominados, tentando impedir que o oprimido se
revolte. O discurso reconhece o poder da linguagem para contestar a versão do mundo
que a classe dominante apresenta. Como diz Paulo Freire, o opressor nunca vai querer
perder essa condição. Quanto a nós, seremos afetados porque há quase um controle
estalinista, mas ele ainda está no plano geral, não no microplano de cada aula.
Resistimos pelo simples fato de que somos profissionais da linguagem. Não precisamos
mencionar a filosofia de Marx ou o materialismo dialético para manter a liberdade de
pensamento. Na outra ditadura líamos escondido o que queríamos, e vamos fazer o
mesmo agora, se for o caso. Na época como agora, os repressores não têm
conhecimento para identificar o que fazemos. Basta não mencionar certas palavras-
chave para eles se atrapalharem. A perspectiva de que o ser humano não é um ser
apenas biológico, mas social, e que muda ao longo de sua existência, assim como
mudam as sociedades, já é parte do patrimônio da humanidade e nenhuma ditadura, de
direita ou de esquerda, vai conseguir apagá-la.

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