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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Amanda Soares de Melo

A INSTABILIDADE DAS CATEGORIAS NA ANÁLISE FEMINISTA:


reformulando gênero e identidade a partir de Judith Butler e Iris Young

Santo André

2021
Amanda Soares de Melo

A INSTABILIDADE DAS CATEGORIAS NA ANÁLISE FEMINISTA:

reformulando gênero e identidade a partir de Judith Butler e Iris Young

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação de Filosofia da Universidade Federal do
Abc para obtenção do título de mestra em Filosofia.

Linha de Pesquisa: Ética e Filosofia Política

Orientadora: Profa. Dra. Nathalie de Almeida Bressiani

Santo André

2021
AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Dra. Nathalie Bressiani, pela acolhida, compreensão e lucidez de sempre.

A minha família e amigos Taiane, Karolaine, Gabriel, pelo apoio e companheirismo.

Aos membros do grupo de pesquisa “Teoria Crítica e Filosofia Política” da UFABC: Sarah,
Michele, Kadu, Júlia e recém chegados. Grata pelas trocas enriquecedoras.

A UFABC e CAPES pelo amparo desde a graduação e por dar as condições materiais e de
financiamento da minha pesquisa por muito mais tempo do que o previsto, em decorrência da
COVID-19.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001


RESUMO

Em Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, Judith Butler critica a forma


como o feminismo tradicionalmente manteve um injustificado binarismo entre feminino e
masculino, a partir da conhecida dicotomia entre gênero e sexo. Ao realizar uma desconstrução
dessas categorias, mostrando como o conteúdo do gênero e do sexo são construídos e contingentes,
Butler também esvazia o sujeito político feminista conhecido como “mulher”. Dada a
heterogeneidade do conteúdo que constitui a categoria “mulher”, Butler retoma as denúncias de
exclusão e silenciamentos de mulheres dentro do feminismo, para mostrar que, categorias que
expressam identidades não podem ser explicadas como resultado de uma essência compartilhada
entre membros de determinado grupo ou características comuns a todos eles. Alguns críticos, como
Iris Young, consideraram essa negação do sujeito político do feminismo como um risco que poderia
minar o seu potencial político. Oferecendo uma resposta diferente ao dilema da exclusão, Young
incorpora a crítica de Butler às identidades, sem com isso aderir sua proposta política. Entendendo
que a categoria de “gênero” não é dispensável para o feminismo ao teorizar as estruturas sociais e
não a subjetividade, Young visa combinar um quadro teórico desconstrutivo com um modelo de
representação de grupos sociais, trabalhando a noção de “serialidade” originalmente cunhada por
Sartre. Seu objetivo é dar conta de uma descrição coletiva das mulheres, sem naturalizar e reificar
a categoria. Nessa dissertação, nosso objetivo é reconstruir esse debate, analisando as propostas
avançadas pelas duas autoras.

Palavras-chave: Teoria Feminista, Identidade, Gênero, Judith Butler, Iris Young.


ABSTRACT

In Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, Judith Butler criticizes how feminism
traditionally maintained an unjustified binarism between female and male, based on the well-
known dichotomy between gender and sex. By deconstructing these categories, showing how the
content of gender and sex are constructed and contingent, Butler also empties feminist political
subject known as "woman". Given the heterogeneity of content that constitutes the “woman”
category, Butler resumes denunciations of exclusion and silencing of women within feminism, to
show that categories that express identities cannot be explained as a result of an essence shared
between members of a certain group or characteristics common to all of them. Some critics, like
Iris Young, considered this denial of feminism's political subject as a risk that could undermine its
political potential. Offering a different response to the exclusion dilemma, Young incorporates
Butler's criticism of identities without thereby adhering to his political proposal. Understanding
that the category of “gender” is not dispensable for feminism when theorizing social structures and
not subjectivity, Young aims to combine a deconstructive theoretical framework with a model of
representation of social groups, working on the notion of “seriality” originally coined by Sartre.
Her goal is to give a collective description of women without naturalizing and reifying the category.
In this dissertation, our aim is to reconstruct this debate, analyzing the proposals put forward by
the two authors.

Keywords: Feminist Theory, Identity, Gender, Judith Butler, Iris Young.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 8
CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ................................................... 17
1.2 Teorizando a “mulher”: a construção da identidade segundo Beauvoir e Rubin .................... 17
1.3 A crítica ao binarismo e a desconstrução da identidade por Judith Butler .............................. 27
CAPÍTULO 2 - A POLÍTICA DO GÊNERO ................................................................... 38
2.1 Deslocamento, performatividade e subversão das identidades ............................................... 38
2.2 Da Paródia à Política: um novo paradigma político feminista ................................................ 43
CAPÍTULO 3 – REFORMULANDO O GÊNERO .......................................................... 47
3.1 Justiça, identidade e grupos sociais em Iris Young ................................................................. 47
3.2 Avaliando a proposta desconstrutiva dos gêneros ................................................................... 54
3.3 Revisando a teoria: “gênero” e “mulheres” como serialidade ................................................. 61
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 77
INTRODUÇÃO

Categorias são usualmente entendidas como conceitos de alta generalidade que servem para
organizar nosso pensamento, caracterizando aspectos do que quer que exista ou que possa ser
pensado (KÖRNER, 1983, p 353). Aristóteles e Kant, assim como outros filósofos, se propuseram
a listar, esclarecer e justificar a necessidade de um conjunto determinado e específico de categorias
fixas, julgadas como necessárias, seja porque esgotariam as diferentes características do objeto ou
porque esgotariam nossa forma de percebê-los. Certas categorias foram defendidas por diferentes
autores como as únicas e as mais adequadas para dar conta das coisas (nelas mesmas ou para nós)1.
Todavia, tais justificações não parecem ter levado a qualquer acordo. Pelo contrário, a demarcação
do que deve ser considerado uma categoria ou mesmo quem seria um candidato plausível à
condição de categoria tem gerado inúmeras controvérsias. Houve diversas discussões sobre qual
seria ao certo a identidade e o número das categorias; se elas deveriam possui um caráter mais geral
ou particular; se as categorias representam ou não as coisas no mundo; ou, afinal, se elas são
descobertas ou meras invenções. Essa última questão é abordada por Michel Foucault em As
Palavras e as Coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas, publicado em 1966. No prefácio,
ele diz:

Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as
familiaridades do pensamento — do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia
—, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós
a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar
do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma certa enciclopédia chinesa” onde será escrito
que “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c)
domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na
presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com
um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n)
que de longe parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito
atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso (FOUCAULT,
2000, p. 06)

Para Foucault, a estranheza de pensar tal classificação nos obriga a enfrentar uma impossibilidade.
Ainda que “a cada uma destas singulares rubricas podemos dar um sentido preciso e um conteúdo
determinável” (FOUCAULT, 2000, p. 06) há uma resistência em pensá-las como categorias. A
causa dessa estranheza, afirma, se dá pelo fracasso de reunir as categorias borgesianas atendendo

1
Para uma visão mais detalhada sobre categorias ver “Concepts, categories, and epistemology” de Kenneth Livingston
(1989) e “Categories” de Amie Thomasson (2019).
8
a um critério qualquer de coerência. Essa classificação, segundo Foucault, destrói o terreno comum
com base no qual nossas categorias se baseiam. Sua intenção, ao citá-la, parece ser a de mostrar
que, em princípio, a ordenação da realidade de acordo com um certo esquema de classificação
responde não a uma certa disposição natural das coisas, mas a visões contingentes e historicamente
datadas.
Segundo Foucault (2000, p.11), “os códigos fundamentais de uma cultura — aqueles que
regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a
hierarquia de suas práticas — fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com
as quais terá de lidar e nas quais há de se encontrar”. Tendo isso em vista, no decorrer de As
Palavras e As Coisas, Foucault traz uma análise do saber no mundo ocidental desde o
Renascimento até o presente, identificando três períodos, cada qual com um conjunto específico
desses códigos: o pré-clássico, o clássico e o moderno. Lançando mão, para isso, de um método
arqueológico, o objetivo de Foucault não é investigar o conhecimento e seu progresso ao longo
desses períodos, mas sim o solo epistêmico que garantiu, a cada determinada época, configurar
certos tipos de saberes de determinado modo, conferindo a eles legitimidade.
Essa análise permite mostrar que em cada época há um determinado espaço de ordem que
marca a condição de possibilidade de muitos saberes, que determina o que pode ser pensado e como
pode ser pensado. Devido a influência desse espaço de ordem, denominado por Foucault de
epistéme, os saberes que nele surgem e que são manifestados pelos discursos são tomados como
verdadeiros e naturalizados. A epistéme constitui, portanto, a base do aparecimento dos saberes;
ela não se confunde, entretanto, com o próprio saber. Ela está, inevitavelmente, em uma ordem
anterior ao seu surgimento. Foucault constata que os surgimentos de novos saberes são possíveis
na medida em que há surgimento de uma nova epistéme, que como tal é histórica e, portanto,
modifica-se.
Na análise de Foucault (2000, p. 34), o período pré-clássico (final do Renascimento - século
XVI), detinha como princípio norteador do conhecimento a semelhança. As coisas se identificavam
e se diferenciavam pela ideia de semelhança. Signatura, convenientia, aeumulatio, analogia e
sympatia são as figuras de semilitude que permitem que as coisas se assemelhem e que formem
uma ampla gama de variações que vai do macrocosmo ao microcosmo, sendo Deus o princípio
gerador de todas as coisas que se assemelham. Uma ideia importante para entender como se
ordenava o conhecimento renascentista é a de assinalação, o mundo estava repleto de signos,
9
cabendo apenas ao homem identificá-los e interpretá-los. Havia um entrecruzamento entre o que
era lido e o que era visto. A linguagem, nesse sentido, era parte da natureza, fazia parte do mundo:
com o signo e a palavra, era possível fazer a natureza “falar” para efetivamente ler (conhecer) a
verdade. Nesse momento, a etimologia teria tido papel central, pois a crença dominante era a de
que, quanto mais as coisas fossem conhecidas em detalhes, na sua origem, melhor o mundo seria
conhecido em geral. Nesse período, tudo estava escrito na natureza, esperando apenas ser decifrado
(FOUCAULT, 2000, p. 36).
Para Foucault (2000, p. 67), a passagem do período pré-clássico ao clássico (séculos XVII
e XVIII) se dá em virtude da entrada na era da representação. Esse período marca a emergência do
racionalismo clássico, com o surgimento das figuras de Descartes e Bacon que dão origem ao
método científico. A partir desse novo método, o conhecimento das coisas deixa de se dar pela
análise de suas similitudes e passa a ser pela análise de suas diferenças e identidades. Como diz
Maniglier, “as similitudes, consideradas antes como uma maneira privilegiada de conhecer o
mundo a partir da decifração dos signos, dão lugar para uma ordenação dos saberes empíricos por
meio da representação que se forma em um quadro de identidades e diferenças. (MANIGLIER,
2013, p. 107)
Nesse período, a ideia de um quadro que dá conta da totalidade, associado sobretudo a uma
experiência visual, norteia a maneira como o conhecimento passa a ser ordenado. A partir de então,
segundo Foucault (2000, p. 89), a taxonomia e a nomenclatura se tornam a principal forma de saber
em qualquer área do conhecimento, com classificações que se organizam a partir do que é mais
simples para o mais complexo. Método, ordem, representação e medida são palavras chaves dessa
episteme. Há, nesse momento, uma desconfiança na linguagem e na sua correspondência com o
mundo, ela se separa do mundo e se restringe a sua função representativa. A verdade, com isso,
perde seu caráter oculto e eterno, como se estivesse escondida no mundo natural esperando ser
encontrada. A rigor, nada é descoberto, tudo varia entre o provável e o certo, cancelando a relação
de causa e efeito que fazia com que houvesse antes uma de correspondência da linguagem com a
realidade, permitindo outros graus de clareza e distinção. Enquanto, no período pré-clássico, os
signos não precisavam ser conhecidos para existirem, no período clássico, um signo desconhecido
é inconcebível: só há signo quando há representação.
Foucault ilustra essa ideia a partir de um manual cartesiano de lógica desse período, no qual
o mapa e o retrato são tomados como os primeiros exemplos de signos: ninguém confunde o retrato
10
do homem com o próprio homem, nem o mapa da Itália com a própria Itália (FOUCAULT, 2000,
p. 81). A linguagem e o conhecimento se organizam a partir da articulação, atribuição, designação
e derivação (FOUCAULT, 2000, p. 135-155). Essas operações permitem a constituição de ciências
específicas como a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas. Segundo Foucault
(2000, p. 230), o fim do pensamento clássico coincide com o declínio da representação, a partir do
século XVIII. A linguagem se mostra insuficiente para explicar as coisas e se torna necessário lidar
com formas que fogem à lógica de ordenação até então conhecida. Funções, princípios e leis por
serem muito complexas se mostram muito difíceis de serem explicadas com as classificações usuais
dadas pela linguagem. Nascem a filologia, a biologia e a economia. A função representativa deixa
de ser a principal característica da linguagem e as noções de liberdade, vontade, desejo ou força se
tornam os elementos determinantes da linguagem. A linguagem se emancipa e se torna uma coisa
em si mesma, abrindo portas para o que hoje chamamos de literatura. No século XIX, o homem
entra para o vocabulário das ciências e se torna um objeto. É assim, de acordo com Foucault (2000,
p. 368), que surgem as ciências humanas, nas quais pela primeira vez, o homem vira um conceito.
Nessas novas ciências, o foco passa à reflexão sobre a finitude do homem, as profundas
questões epistemológicas que surgem do ponto de vista do estatuto do conhecimento, isto é,
reflexões de cunho transcendental sobre o fato do homem ser, paradoxalmente, aquele em que os
seres se tornam representáveis, ao mesmo tempo que é a condição necessária para o conhecimento.
Além disso, afirma Foucault, a reflexão sobre o homem alcança o modo como ele passou a ser
comandado pelas dimensões da vida, da linguagem, do trabalho etc. Surgem as ciências como a
etnologia e a história, a sociologia e a psicologia (bem como a psicanálise). Nesse sentido, Foucault
indica que o “homem” não existiu sempre e, de algum modo, poderia também “deixar de existir”.
A morte do “homem” coincide com o surgimento das ciências humanas, pois trata-se da morte do
homem da razão, cartesiano, que dá lugar ao surgimento de um homem em uma posição menos
privilegiada, um objeto do conhecimento, um ser entre os demais seres que, sob a ótica de todas
essas ciências, é atravessado por múltiplas disposições históricas.
Foucault mostra, assim, que o “homem” enquanto conceito não é simplesmente algo que
estava esperando para ser tomado como um objeto do conhecimento científico (como o fizeram as
ciências humanas) e como fonte de valor pela especulação filosófica (como nas diversas versões
do humanismo). Pelo contrário, este “homem” é uma preocupação particular que surgiu como
consequência de transformações precisas que afetaram a prática do conhecimento empírico em um
11
período específico. Em outras palavras, não é o caso que os seres humanos sempre estiveram
ansiosos para produzir discursos científicos sobre sua própria natureza. Na verdade, a própria noção
de “homem”, enquanto divisão entre sujeito e o objeto do conhecimento, depende de uma
transformação particular na história do ser. É apenas recentemente, a partir do final do século
XVIII, que o “homem” se tornou um objeto de preocupação e interesse, pelo menos para alguns
seres humanos. Como afirma o autor,

Estranhamente, o homem — cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a


mais velha busca desde Sócrates — não é, sem dúvida, nada mais que uma certa
brecha na ordem das coisas, uma configuração desenhada pela disposição nova
que ele assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos
humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia", entendida como reflexão
geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e
um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção
recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber,
e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova.
(FOUCAULT, 2000, p. 368)

Para Foucault (2000, p. 341), a cultura moderna pode pensar o “homem” porque ela pensa
o finito a partir dele. Para ele, mesmo que o pensamento clássico e todos os que o precederam
tenham podido falar do ser humano, nenhum jamais conheceu o “homem” do saber moderno. No
período clássico, o “homem” como conceito não existia, não havia formas de objetivá-lo como tal.
Em suas palavras, “toda reflexão sobre o homem é uma reflexão segunda em relação a um
pensamento que, ele, é o primeiro e que é, digamos, o pensamento do infinito” (FOUCAULT,
2000, p. 339). Sendo assim, o humanismo do Renascimento e o racionalismo dos clássicos podem
realmente ter conferido um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, mas não puderam
pensar o “homem” (FOUCAULT, 2000, p. 341).
Ao propor uma análise da categoria de “homem” mostrando que a noção moderna de é uma
invenção histórica, Foucault explicita que algo que geralmente é considerado atemporal, inevitável,
substancial e inquestionável tem, de fato, condições históricas de possibilidade muito precisas.
Trata-se de algo datado e que, portanto, é mais contingente do que se acreditava inicialmente. Nesse
sentido, Foucault permite o questionamento de categorias universais (como de “homem”),
indicando que, uma vez que eles não são inquestionáveis e inevitáveis, eles também podem dar
lugar a outra coisa. Com base na análise desses períodos, Foucault permite concluir que teorias e
sistemas de classificação são invenções históricas construídas sob terrenos incomensuráveis. Como
no texto de Borges, vemos que mesmo no “Ocidente” surgem epistemes completamente diferentes

12
que permitem o aparecimento de conhecimentos inconciliáveis. O saber, portanto, não é algo
intrínseco ao homem, mas uma construção discursiva sobre o mundo articulada com outras
relações, como as de poder. Diz Foucault,

A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e
domínios não discursivos (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos
econômicos). Ela tenta determinar como as regras de formação de que depende - e que
caracterizam a positividade a que pertence - podem estar ligadas a sistemas não discursivos;
procura definir formas específicas de articulação. (...) Não se trata, portanto, de mostrar
como a prática política de uma dada sociedade constituiu ou modificou os conceitos
médicos e a estrutura teórica da patologia, mas como o discurso médico, como prática que
se dirige a um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de um certo número de
indivíduos estatutariamente designados, que tem, enfim, de exercer certas funções na
sociedade, se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza
discursiva. (FOUCAULT, 2000, p. 182 e 185).

Em Microfísica do Poder (2007), Foucault deixa mais explícita a relação entre saber e
poder. Foucault defende que os discursos não transmitem apenas os saberes, mas também são
instrumentos que refletem relações de poder. A verdade não pode ser exercida sem ou fora do
poder. Por meio do método genealógico, que confronta os saberes marginais, não legitimados com
o saber dominante que tenta purificá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,
Foucault mostra como o discurso de verdade produz controle (como exclusão) e delimitação
(classificação, ordenação e distribuição). Em suas palavras,

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é − não
obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções − a recompensa
dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se
libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
"política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm
o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2007, p. 12).

A visão de Foucault de que as categorias são invenções historicamente datadas e


contingentes tem sido mobilizada por diversos autores que problematizam tanto a existência quanto
o uso de categorias específicas, como raça e etnia, masculino e feminino, mas também verdade e
racionalidade, como sendo universais e a-históricas. A razão dessa problematização é que a visão
de que elas são construídas historicamente permite o questionamento de categorias que, além de

13
problemáticas por seu essencialismo2, foram muitas vezes utilizadas para oprimir e excluir
determinados grupos visando a manutenção de relações hierárquicas de poder3. Não apenas essa
tese, mas também o método genealógico inaugurado por Foucault, foram retomados por diversos
autores e autoras como ferramentas úteis de análise e crítica de conceitos.
Judith Butler em Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, publicado
em 1990, segue o método genealógico elaborado por Foucault para realizar uma crítica a certas
categorias consideradas centrais à teoria feminista, a fim de revelar a lógica de opressão por trás
de seus usos. Butler retoma as denúncias de exclusão e silenciamentos de mulheres dentro do
feminismo, para mostrar que, categorias que expressam identidades não podem ser explicadas
como resultado de uma essência compartilhada entre membros de determinado grupo ou
características comuns a todos eles. Elas são construídas discursivamente através de processos
culturais que as produzem e ocultam normas reguladoras. Categorias de identidade, em tese,
poderiam terem sido configuradas de outra maneira e poderiam ser modificadas ou até mesmo
desfeitas. Todavia, a noção de política que o feminismo pressupõe fixa e imobiliza tais categorias,
provocando uma reificação das concepções de gênero dominantes e excluindo aqueles que desviam
das normas. Nesse sentido, o feminismo deveria buscar uma nova noção de política que desse conta
de fazer a crítica e desconstrução das categorias estáveis, buscando estratégias de subversão e
deslocamento das identidades de gênero, abrindo entre eles um espaço contínuo de contestação
(BUTLER, 2014, p. 254-256).
Ainda que a proposta de Butler trouxesse uma solução aos dilemas de exclusão presentes
no feminismo, no contexto de um acalorado debate feminista dos anos 90, a posição de Butler foi
vista por outras teóricas feministas como implicada em um enfraquecimento indesejado da força
política do feminismo. Contra ela, por exemplo, afirmou-se que não podemos evitar pelo menos
algum tipo de recurso a categorias e ao essencialismo, pois generalizações são politicamente
necessárias. Nesse caso, mesmo que concordássemos que não existem substâncias por trás do

2
Há, pelo menos, três formas de essencialismo que foram objetos de crítica na teoria feminista. A primeira é a
atribuição de certas características a todos incluídos em uma categoria específica, por exemplo, “todas as mulheres são
atenciosas e simpáticas”. A segunda forma é a atribuição dessas características à categoria, de maneira a neutralizar ou
reificar o que pode ser construído socialmente. A terceira forma é a invocação de uma coletividade como sujeito ou
objeto de ação política (classe homogeneizada e unificada), como a classe trabalhadora, negros, mulheres. É possível
adotar os três, bem como adotar apenas um e recusar os outros (PHILIPS, 2010, p. 6).
3
Ver a discussão que Gracia desenvolve no ensaio “Are categories invented or discovered? A response to Foucault”
(2001).

14
gênero, isso não nos impediria de assumir pragmaticamente uma identidade comum a fim de
facilitar a luta política (NICHOLSON, 2000; LOVIBOND, 1990; SPIVAK, 1985).
Em um sentido semelhante, outras autoras argumentaram a favor de uma reconceituação
não-essencialista da categoria de gênero e de mulher com o objetivo de desenvolver um sentido
não identitário para o gênero e manter a noção coletiva de mulher, a fim de auxiliar a luta política.
Preocupada desde o início com as denúncias de exclusão dentro do feminismo, Young parte de
uma direção oposta, em 1990, ao formular um conceito de grupo social atrelado a um senso de
identidade compartilhado entre seus membros. Todavia, entendemos que nos trabalhos posteriores
(2000; 2003), Young incorpora a crítica de Butler às identidades, sem com isso aderir à sua
proposta política. A autora defende que a categoria de “gênero” não é dispensável para o feminismo
quando teoriza estruturas sociais e não subjetividade, Young busca combinar uma proposta
desconstrutiva dos gêneros com um modelo de representação de grupos sociais, a partir da noção
de “serialidade” proposta por Sartre. Seu objetivo, com isso, é dar conta de uma descrição coletiva
das mulheres, sem naturalizar e reificar a categoria.
Para que pudéssemos defender essa hipótese, foi preciso primeiro retomar o
desenvolvimento do conceito de gênero a partir da década de 1940. Apresentar esse percurso é o
nosso objetivo no Capítulo 1, onde reconstruímos a categoria mulher a partir do Segundo Sexo de
Simone de Beauvoir e o desenvolvimento do conceito de sistema sexo/gênero proposto por Gayle
Rubin em “O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”. No fim desse
capítulo, confrontamos essas duas visões com a de Judith Butler em Problemas de Gênero, a fim
de mostrar quais são os limites que Butler enxerga nessas duas teorias e qual é sua visão alternativa.
No Capítulo 2, apresentamos as críticas de Butler em Problemas de Gênero às noções de
sujeito, unidade e patriarcado e apresento sua noção de gênero como performativo que permitiu
uma mudança significativa nas categorias de análise feminista, inaugurando novos rumos e
possibilidades para a política feminista. Na seção “Das Normas à Política” retomo a conclusão da
obra em que a autora aponta como a política feminista pode funcionar sem pressupor um sujeito
“mulheres”, esclarecendo o lugar da agência no seu pensamento e afirmando a necessidade de
rastrear estratégias de deslocamento das identidades de gênero.
No Capítulo 3, apresento o conceito de grupos sociais que Young desenvolve em Justice
and the Politics of Difference, com o objetivo de dar visibilidade às opressões estruturais,
tipicamente ignoradas pelas abordagens clássicas de justiça. Além disso, mostro que a análise de
15
Young da concepção de gênero e identidade de Butler, no ensaio “Lived Body vs Gender:
Reflections on Social Structure and Subjectivity, impulsiona uma revisão parcial da sua teoria,
desvinculando a noção de identidade dos significados de grupos sociais. Em “Gênero como
Serialidade: Pensar as mulheres como um coletivo social” a autora evolui o conceito de “mulheres”
como grupo social para a noção de série, cunhada inicialmente por Sartre.
Na conclusão, por fim, proponho uma análise de ambos projetos em torno da questão: é
necessário abrir mão da categoria “mulher” e da categoria analítica de gênero? Como Young
observa, a proposta política de Butler em Problemas de Gênero, não dá conta de descrever, explicar
e formular alternativas às estruturas e processos de injustiça que afetam historicamente a vida e o
bem estar de certos grupos. Essa tarefa carece de um conceito de gênero e de uma maneira de se
falar genericamente de coletividades sociais. Nesse sentido, Young fornece uma solução mais
adequada para o problema da exclusão no feminismo, ainda que, como argumento, sua nova
abordagem não fique completamente imune às críticas de essencialismo.

16
CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

1.2 Teorizando a “mulher”: a construção da identidade segundo Beauvoir e Rubin

Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir traça uma longa investigação sobre a categoria
mulher mostrando que ela foi criada e definida pelos homens e que, mesmo após longas discussões
sobre mulheres, ainda assim, não haveria um consenso sobre o que essa categoria deveria significar.
Se, por um lado, haveria ainda adeptos da teoria do eterno feminino que dizem que “até na Rússia
elas [mulheres] são mulheres”, por outro, há também aqueles, muitas vezes os mesmos, que
proclamam “a mulher está se perdendo, a mulher está perdida” (BEAUVOIR, 2016, p. 8). Por
consequência, não se sabe muito bem se há mulheres, se haverá mulheres no futuro ou mesmo se
devemos desejar que existam. O fato é que, no interior dessa discussão, há uma pergunta em aberto:
O que é uma mulher?
Beauvoir (2016, p. 9) diz que, para alguns, “tota mulier in utero: é uma matriz”. Entretanto,
ao se referir a certas mulheres, dizem “não são mulheres”, ainda que tenham útero como as outras.
E exortam: “Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornam-se mulheres”. Na visão da autora,
isso indica claramente que, para ser mulher, não basta ser do sexo feminino. Para isso, ao que
parece, cumpre a nós participar de uma “realidade misteriosa” e ameaçada que é a feminilidade. A
questão que naturalmente se coloca então é: qual a origem dessa feminilidade? Em suas palavras,
“será esta secretada pelos ovários? ou estará congelada no fundo de um céu platônico? e bastará
uma saia fru-fru para fazê-la descer à Terra? (BEAUVOIR, 2016, p. 9).” A feminilidade, portanto,
define o que é uma mulher. Tendo isso em vista, Beauvoir afirma que essa feminilidade é algo
presente no mundo. A questão que temos de fazer, porém, diz respeito ao seu ponto de origem e ao
seu significado, pois não há um padrão acessível no qual as mulheres pudessem encarnar um
modelo de feminilidade, ainda que algumas se esforcem para tal. A feminilidade é sempre descrita
com termos vagos e o seu significado tem variado historicamente. A autora cita duas visões
majoritárias e propõe uma análise sobre elas.
No tempo de São Tomás, por exemplo, a feminilidade apresentava-se como “uma essência
precisamente definida quanto a virtude dormitiva da papoula” (BEAUVOIR, 2016, p.10). Mas essa
visão, nomeada como conceitualista, perdeu muitos adeptos. As ciências biológicas desacreditaram
a existência de entidades imutavelmente fixadas, que definem determinadas características como
sendo da mulher, do judeu ou do negro; em seu lugar, consideram essas características como uma
17
reação a uma situação. Para Beauvoir (2016, p.10), a conclusão é que, se não há hoje uma essência
que indique o que é a mulher, então é porque nunca houve. E isso talvez nos indique a
impossibilidade de dar um conteúdo à categoria mulher.
No lugar dessa visão, alguns, partidários da filosofia das luzes e do racionalismo, adotaram
uma visão nominalista: creem que as mulheres sejam, entre os seres humanos, aqueles designados
arbitrariamente como mulheres. Porém, a autora diz que essa visão também é limitada pois, os
antifeministas não têm dificuldade em demonstrar que as mulheres não são homens. Assim, rejeitar
a categoria de mulheres como um todo é um gesto abstrato, uma vez que a negação da existência
de mulheres não conduz a uma libertação das mulheres e sim a uma fuga inautêntica. O fato é que
nenhuma mulher consegue “situar-se além do seu sexo” (BEAUVOIR, 2016, p. 10), pois sempre
que tenta se depara com uma situação de desigualdade em relação aos homens. Ainda que adote
uma posição de “somos todos seres humanos”, tal como os nominalistas creem, a realidade mostra
uma divisão de duas categorias de indivíduos, cujas roupas, costumes, atitudes, interesses são
completamente distintos. Nesse sentido, afirma, as mulheres existem como evidência total. Por um
lado, não há como negar sua existência, mesmo que talvez elas se destinem a desaparecer, por
outro, contudo, não é possível explicá-la pelo “eterno feminino”. A questão do que é a feminilidade
e, por consequência, o que é a mulher permanece não respondida.
Para Beauvoir, é sintomático que uma mulher coloque essa pergunta. Segundo ela, um
homem jamais teria tido a ideia equivalente de escrever um livro sobre sua situação singular, pois
nunca se apresenta como um indivíduo pertencente a um determinado sexo. Ele se representa como
o positivo e o neutro. Não é à toa, nesse sentido, que utilizamos “os homens” como correspondente
à humanidade, enquanto a mulher é o negativo. O homem não tem a ele atrelado nenhuma
subjetividade, ao contrário, ele é o referencial do tipo humano absoluto e é também quem define o
que é a mulher. A mulher tem ovários e útero, tal situação determina, para o homem, a
subjetividade feminina. O homem se esquece, entretanto, que sua anatomia também comporta
hormônios e testículos. Tal critério só vale para as mulheres, porque a fêmea da espécie humana
não é senão o que o homem decide arbitrariamente que ela seja. Para homem, afirma Beauvoir, “a
fêmea é o sexo, logo ela o é absolutamente” (BEAUVOIR, 2016, p. 11). A humanidade é
masculina e o homem define a mulher não em si mesma, mas relativamente a ele, por isso ela não

18
é considerada um ser autônomo. A mulher é “o inessencial perante o essencial”. Beauvoir então
conclui que “o homem é o Sujeito, o Absoluto; a mulher é o Outro” (BEAUVOIR, 2016, p. 11).4
Como a autora afirma (2016, p. 12), a categoria do Outro é muito antiga, presente nas mais
antigas mitologias e é parte da forma como o ser humano organiza o seu pensamento. Para os
habitantes de uma aldeia qualquer, um estrangeiro é o Outro. Da mesma forma, os judeus são os
outros para o antissemita, os negros para os racistas, os indígenas para os colonos, as mulheres para
os homens. No entanto, para a autora, não há nada na natureza que justifique essa dualidade do
Outro e do Mesmo em função do sexo macho ou fêmea. Não há nenhum elemento feminino
implicado nessa divisão. É preciso entender, entretanto, como ela se formou e como podemos
escapar dela. Tal tarefa, contudo, não é simples.
Para a autora (2016, p.13), diferente do povo judeu, negro ou indígena, não há um marco
histórico que impunha à mulher uma posição de subalternidade. Não parece haver um evento
histórico preciso ao qual o surgimento da opressão das mulheres possa ser atribuído, algo que
dificulta a própria desnaturalização da posição de alteridade da mulher. Todavia, a autora acredita
que nenhum sujeito se define espontaneamente como inessencial. Segundo Beauvoir, o “Outro”
não se transforma em “Um” apenas quando se sujeita ao ponto de vista alheio. Motivo pelo qual
uma parte de seu livro tem como objetivo compreender exatamente as causas dessa sujeição.
Segundo ela, muitas formas de sujeição decorreram de uma desigualdade numérica, foi assim com
negros e judeus. Contudo, as mulheres não são minoria e, mesmo assim, raramente se colocam em
termos de “nós”, apresentando-se como sujeitos. Também nunca fizeram como os proletários na
Rússia e os negros no Haiti, ou seja, nunca se juntaram e buscaram tomar aquilo que é seu.
Como afirma Beauvoir (2016, p. 14), elas só ganharam dos homens aquilo que eles mesmo
quiseram conceder e, ainda, estão mais facilmente em condição de se unirem aos homens, de acordo
com a classe que ocupam, do que com as mulheres de classes distintas. Assim como o senhor e o
escravo, que estariam unidos por uma necessidade econômica recíproca, onde o senhor não expõe
a necessidade que tem do escravo e este interioriza a necessidade que tem do senhor, a mulher

4
Segundo Gunella (2014, p. 7), compreender a mulher como o Outro para Beauvoir “significa compreender as origens
ontológicas que tornaram possível a prática histórica de opressão traduzida em códigos culturais e de conduta”. Esses
códigos definiram a feminilidade “a partir de uma perspectiva essencialista caracterizada por uma relação de
dependência e da negação da subjetividade”. Em termos existencialistas, é por meio da posse da mulher que o homem
mantém a ilusão de alcançar a posse do ser na medida que fixa como o Outro absoluto e que se apreende,
consequentemente, como Sujeito absoluto, “consciência soberana”. Desse modo, é “na situação histórica de opressão
da mulher na sociedade patriarcal que se traduz o não reconhecimento dela como Liberdade originária. Fixada como
o Outro absoluto, a mulher é privada de condições concretas de realização autêntica de sua liberdade” (Ibid, p. 8).
19
sempre foi a escrava do homem, ou ao menos uma vassala e interioriza essa necessidade frente aos
homens. Para a mulher, recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem, também
significa recusar as vantagens que uma aliança pode lhe conferir. O homem pode proteger a mulher,
enquanto ela se esquiva de exercer uma liberdade por si mesma e evita arcar com as angústias desse
processo, ao se afirmar como um sujeito. Assim, Beauvoir conclui também que a mulher é, por
medo, complacente no seu papel de Outro.
Cabe se perguntar, então, como isso tudo começou e porque as mulheres nunca reverteram
a soberania dos homens? Haveria algo de biológico, psicológico ou econômico que a impusesse
esse destino? Beauvoir propõe-se a investigar a gênese da opressão das mulheres, as causas que
levaram a essa condição, a partir das diferentes perspectivas constantemente empregadas para
explicá-la e justificá-la. Em suas palavras, “a fim de provar a inferioridade da mulher, os
antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas
ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc” (BEAUVOIR, 2016, p. 15). A autora
afirma que as ciências serviram de justificativa para que os homens não abrissem mão dos seus
privilégios, ao mesmo tempo que precisavam reconhecer o ideal democrático de seu tempo.
Inicialmente, ela se dedica aos diferentes argumentos que buscam justificar e naturalizar as
diferenças entre a masculinidade e a feminilidade como o resultado das diferenças biológicas
existentes entre homens e mulheres. Ela afirma que ser uma fêmea da espécie humana implica,
desde o seu nascimento, uma série de condicionantes socioculturais que limitam e recortam sua
possibilidade de constituir-se como um sujeito pleno e conseguir, enquanto tal, sua transcendência.
A autora apresenta que, sob o ponto de vista da espécie, machos e fêmeas se diferenciam em vista
da reprodução, ainda que essa separação, como mostra por meio de diversos exemplos, não
depende de qualquer diferenciação sexual, isto é, ela tem um caráter contingente. Porém, em alguns
casos, essa separação foi acrescida de uma distinção do papel que cada sexo cumpre realizar. A
visão aristotélica, por exemplo, pensava o feto como produzido pelo encontro do esperma com o
mênstruo, de forma que caberia à mulher fornecer a matéria passiva, enquanto o homem, a vida.
(BEAUVOIR, 2016, p. 36).
Mesmo depois da descoberta do óvulo pelo naturalista alemão Ernest Baer em 1827, essa
teoria permaneceu influente, motivo pelo qual Beauvoir se volta à biologia para mostrar que as
teses que sustentam essa posição já foram rejeitadas. Ainda que haja diferenças entre o
espermatozóide e o óvulo, para a autora é impossível assinalar alguma relação de superioridade
20
entre eles. As células sexuais masculinas ou femininas, chamadas de gametas, se fundem no ovo
no processo de fecundação, renunciando suas características individuais. Tanto homens e mulheres
se originam não só do óvulo ou do espermatozóide, mas de uma fusão de ambos. Dessa maneira,
as tentativas de explicar o comportamento de homens e mulheres por meio de uma analogia aos
supostos diferentes papéis (ativos e passivos) de espermatozóides e óvulos na reprodução sexual
se mostram falhas e insuficientes. É o caso de Alfred Fouillée, filósofo francês, que pretendia
definir a mulher a partir do seu óvulo e o homem pelo seu espermatozóide (BEAUVOIR, 2016, p.
41). A conclusão é que não dá apreender das gonadias e dos gametas uma descrição precisa do que
é ser uma fêmea e, menos ainda, o comportamento geral das fêmeas da espécie humana. É
necessário estudá-la diretamente.
Seguindo a análise, Beauvoir apresenta características fisiológicas da mulher, mostrando
que o corpo feminino possui uma força muscular inferior, com uma capacidade respiratória inferior
e outras características comparativamente inferiores ao corpo masculino. Tais fatos, na sua
perspectiva, não podem ser negados, porém, estes fatos não têm sentido por si mesmos; eles não
podem explicar ou justificar a sujeição da mulher em relação ao homem. Afinal, a fraqueza física
de uma mulher só se revela como tal à luz dos fins que o homem propõe. Nos lugares onde a força
muscular não traz nenhuma vantagem, a discussão perde seu sentido. O mesmo argumento também
é utilizado pela autora para discutir o peso que o papel reprodutivo exerce sobre as mulheres. O
peso do papel reprodutivo que recai sobre as mulheres pode variar se a sociedade exige um maior
ou menor número de nascimentos ou se garante condições higiênicas para o desenvolvimento da
gravidez ou do parto, por exemplo. Assim, esse peso depende de quão livre é a reprodução e do
papel que ela desempenha em uma determinada sociedade. Portanto, a biologia é parte da situação
da mulher, mas não determina um destino imutável para ela. Em outras palavras, não basta para
definir uma hierarquia dos sexos e nem para explicar a condição subordinada e de Outro da mulher.
Trata-se de uma situação, não de um destino (BEAUVOIR, 2016, p. 60).
Vemos, desse modo, que embora não deixe inteiramente de lado a dimensão biológica da
distinção entre homens e mulheres, Beauvoir rejeita que ela seja capaz de determinar o destino de
ambos. O corpo da mulher é um dos componentes da situação que ela ocupa na sociedade, mas isso
não basta para defini-la. Para a autora, o mais importante é a significação que esses fatos adquirem,
porque são necessários conceitos sociais e econômicas para vincular às mulheres ideias de fraqueza
e inferioridade. A conclusão é que a sua sujeição é construída socialmente e não apresenta nenhum
21
fundamento biológico. Ao analisar o trabalho de Beauvoir, Ingrid Cyfer (2015, p. 68) nota que,
“em Beauvoir, a materialidade biológica do corpo é importante para a subjetividade da mulher,
mas não antecede nem tampouco define um destino. O corpo é como uma situação, tomada de
posse do mundo e um esboço dos nossos projetos”. Assim, como afirma Beauvoir,

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que
qualificam o feminino (BEAUVOIR, 2016, p. 9)

Tal afirmação significa dizer nada mais que a categoria mulher não tem um conteúdo
precisamente definido, uma vez que seu conteúdo dependerá da forma como a sociedade o define.
Sua condição é, sobretudo, uma situação. Em outro trecho, Beauvoir afirma,

A mulher é um produto elaborado pela civilização; a intervenção de outrem em seu destino


é original; se essa ação fosse dirigida de outro modo, levaria a outro resultado. A mulher
não se define nem por seus hormônios nem por misteriosos instintos e sim pela maneira por
que reassume, através de consciências alheias, o seu corpo e sua relação com o mundo; o
abismo que separa a adolescente do adolescente foi cavado de maneira acertada desde os
primeiros anos da infância; não há como impedir mais tarde que a mulher não seja o que
foi feita e ela arrastará sempre esse passado atrás de si; pesando-se esse passado,
compreende-se com clareza que seu destino não se acha fixado na eternidade.
(BEAUVOIR, 2016, p. 494)

Como ressalta Gunella (2014, p. 15), a análise de Beauvoir mostra que a situação das
mulheres faz com que suas vidas sejam consumidas por práticas que não as fazem participar da
construção do mundo que, todavia, habitam. Não lhes são dadas as condições necessárias para
efetivamente agir sobre o mundo, e tal engajamento é pré-requisito para a liberdade no sentido
existencialista. Com isso, o valor da mulher acaba reduzido à sua servidão, que encontra
justificação sob o discurso da natureza, da virtude e da moral. Entretanto, o fato de que as mulheres
hoje não se colocam como sujeitos não significa que elas não o sejam por natureza, apenas significa
que é preciso alterar as condições, a situação das mulheres, para que estas possam se tornar livres.
Uma vez que a categoria mulher foi construída por homens como o Outro, cabe às mulheres
darem um novo significado a ela. O ideal proposto pela autora, nesse sentido, parece ser o de que
as mulheres recuperem o posto de sujeito, alcançando a liberdade e a transcendência, expandindo
suas existências em direção a um futuro indefinidamente aberto. Projeto este, que, para Beauvoir,
exige uma transformação na própria situação das mulheres. Nas suas palavras,

22
Por certo não se deve crer que basta modificar-lhe a situação econômica para que a mulher
se transforme: esse fator foi e permanece o fator primordial de sua evolução; mas enquanto
não tiver acarretado as consequências morais, sociais, culturais etc. que anuncia e exige, a
nova mulher não poderá surgir (...). Sem dúvida, se colocamos uma casta em estado de
inferioridade, ela permanece inferior: mas a liberdade pode quebrar o círculo. Deixem os
negros votar, eles se tornarão dignos do voto; deem responsabilidades à mulher, ela saberá
assumi-las; o fato é que não se poderia esperar dos opressores um movimento gratuito de
generosidade; mas ora a revolta dos oprimidos, ora a própria evolução da casta privilegiada
criam situações novas; por isso os homens foram levados, em seu próprio interesse, a
emancipar parcialmente as mulheres: basta a estas prosseguirem em sua ascensão e os êxitos
que vêm obtendo incitam-nas a tanto; parece mais ou menos certo que atingirão dentro de
um tempo mais ou menos longo a perfeita igualdade econômica e social, o que acarretará
uma metamorfose interior. (BEAUVOIR, 2016, p. 495)

É, então, a partir dessas projeções ontológicas e morais de definir a mulher como o Outro
que resultam os valores e os códigos de conduta que dão conteúdo à noção de feminilidade da
mulher ocidental. Tal configuração, como mostrado por Beauvoir, é uma constituição histórica.
Este é o pano de fundo sobre o qual se projeta a vida concreta das mulheres. Apenas no reencontro
da mulher com a liberdade que se faz possível uma reparação dessa condição de subordinação.
Contudo, o caráter mítico de naturalidade dessa condição acaba justificando a negação dos meios
necessários para que possam se constituir como sujeitos. Uma vez declarada sua falsidade, às
mulheres se abre a possibilidade de construção de uma vida mais autêntica. Mas, como reiteira
Cyfer (2015, p. 70), “a mulher “independente” não é produto de um projeto individual, e sim do
conjunto de instituições e práticas culturais do mundo em que vive”. Por essas razões, no final do
Segundo Sexo, Beauvoir convida às mulheres para a ação coletiva, uma luta que emancipa não
somente as mulheres, mas também os homens. Sobre esse ponto, Beauvoir afirma,

Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as
negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-
se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a
reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres
humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as
palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao
contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema
de hipocrisia que implica, que a “divisão” da humanidade revelará sua significação
autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira (BEAUVOIR, 2016, p.
497).

Beauvoir foi considerada pioneira em analisar filosoficamente a situação das mulheres. Sua
obra trouxe um modelo interpretativo-explicativo que abriu caminho para a posterior distinção de
sexo e gênero, cunhada por Gayle Rubin no ensaio "O Tráfico de Mulheres: Notas sobre a
23
'Economia Política' do Sexo", escrito em 1975. Segundo Conceição (2009, p. 741), os estudos
feministas até os anos 70 tinham como enfoque central “a mulher” enquanto objeto, mas não como
um objeto formal de estudo capaz de ser considerado científico e abranger a totalidade dos sistemas
culturais. A partir dos anos 70, com destaque para o trabalho de Rubin, há uma mudança de
enfoque: o conceito de gênero é elaborado e se torna possível tratar as tendências universais em
relação masculino e feminino como históricas e culturais.
Para Piscitelli (2002, p. 8), o trabalho de Rubin se insere no debate sobre a natureza, gênese
e causas da opressão da mulher, central naquela época. Rubin toma, aliás, esses temas como ponto
de partida de sua reflexão. A pergunta que norteia o ensaio de Rubin é: “o que faz uma fêmea da
espécie se transformar em uma mulher oprimida?” (RUBIN, 1974, p. 2). Essa questão se mostra
importante porque é precisamente na sua resolução que se encontram os elementos que teriam de
ser modificados para se alcançar uma sociedade igualitária. Sua intenção é elaborar uma explicação
alternativa da origem da subordinação feminina, denominada sistema sexo/gênero, a partir do
trabalho de Freud e Lévi Strauss, utilizando as ferramentas conceituais que eles desenvolveram.
Com isso, se tornaria possível descrever a parte da vida social que seria o lócus da opressão da
mulher e das minorias sexuais.
Em sua análise, Rubin desenvolve a ideia de que os gêneros são construções culturais
colocadas sob a distinção biológica, que precedem e, muitas vezes, contradizem as relações
genéticas. Para Rubin, cada sociedade possui um tipo de sistema de sexo/gênero: “um conjunto de
arranjos através dos quais a matéria-prima biológica do sexo e da procriação é moldada pela
intervenção humana e satisfeita de forma convencional, pouco importando o quão bizarras
algumas dessas convenções podem aparecer” (RUBIN, 1975, p. 3). Partindo de estudos
antropológicos em sociedades primitivas, Rubin mostra que as tarefas e funções atribuídas a
homens e mulheres são definidos por meio da diferença sexual. O motivo pelo qual essa
configuração se põe é dado pela garantia de dependência entre homens e mulheres, permitindo a
união necessária à reprodução e o vínculo entre grupos. Por essa razão, Rubin questiona a
naturalização dos gêneros masculino/feminino. Ela mostra que, tais características não estão
atreladas ao sexo, como alguns pensavam, mas sim ao gênero e refletem papéis sociais contingentes
historicamente, que variam de sociedade para sociedade.
O princípio fundamental desse sistema, afirma ela, consiste na troca de mulheres entre
grupos, onde tais mulheres são encaradas como propriedades, não possuindo nenhum direito de
24
escolha, constituindo a maneira pela qual tais grupos conseguem acesso sexual, estatutos
genealógicos, ancestrais e nomes de linhagem, enfim, sistemas concretos de relações sociais. Se a
troca de presentes permite o estabelecimento de vínculos entre grupos, a troca de mulheres, como
mostra Levi-Strauss, corresponde à mais importante delas, aquela que permite, por meio do
casamento heterossexual e monogâmico, a vinculação entre mais duradoura entre os grupos.
Segundo Rubin,

Presentear mulheres tem um resultado muito mais profundo do que o de outras transações
de presentes, porque o relacionamento estabelecido desta forma não é apenas de
reciprocidade, mas de parentesco. Os parceiros da troca tornam-se afins, e seus
descendentes parentes de sangue: “Dois grupos podem unir-se mediante relações amistosas
e trocar presentes, embora disputem e combatem entre si mais tarde, mas o intercasamento
liga-os de maneira permanente (Lévi Strauss)” (RUBIN, 1975, p. 22).

Desse modo, Rubin afirma que a criação dos gêneros, isto é, masculino/feminino, é
resultado do modo como os sistemas de parentesco se impõem aos indivíduos, tornando o gênero
a base da organização social. A troca de mulheres, um dos princípios base da teoria do parentesco
de Levi-Strauss, é tomado por ela como um conceito que situa e “explica” a opressão das mulheres
dentro dos sistemas sociais. Como afirma Piscitelli (2002, p. 8) “explica no sentido em que a troca
não consiste em uma definição de cultura, nem um sistema em si mesmo, mas a percepção de certos
aspectos das relações sociais de sexo e gênero cujo resultado é a ausência de plenos direitos para
as mulheres”.
Segundo Rubin (1975, p. 28), a troca de mulheres constitui a primeira etapa da construção
de conceitos por meio dos quais é possível pensar a origem da subordinação das mulheres. Tais
práticas sociais mais primitivas estariam na base da construção de gêneros feminino/masculino.
Para Rubin, dessa forma, os sistemas de parentesco criaram o gênero. Ele instaurou a diferença, a
oposição, dos sexos, exacerbando as diferenças biológicas entre eles. No que se refere à diferença
sexual, a cultura se sobrepõe à natureza. Nas palavras da autora,

Homens e mulheres são, naturalmente, diferentes. Mas eles não são diferentes como o dia
e a noite, terra e céu, yin e yang, vida e morte. Na verdade, da perspectiva da natureza,
homens e mulheres são mais próximos um do outro que o são de qualquer outra coisa – por
exemplo, montanhas, cangurus ou coqueiros. A idéia de que homens e mulheres são mais
diferentes entre si que o são de qualquer outra coisa, deve vir de alguma outra esfera que
não a da natureza…. Longe de ser uma expressão de diferenças naturais, a identidade de
gênero exclusiva é a supressão das semelhanças naturais (RUBIN, 1975, p. 69).

25
Os sistemas de parentesco, sendo uma das formas observadas de sistemas sexo/gênero e
que está na base do nosso sistema de gêneros, envolveriam a criação social de dois gêneros binários,
a partir do sexo biológico e por meio de uma divisão sexual do trabalho. Tal configuração
provocaria uma interdependência entre homens e mulheres que não é natural, bem como a
regulação social da sexualidade feminina visando a reprodução, impondo a heterossexualidade às
mulheres. Em outras palavras, os sistemas de parentesco, a partir de uma divisão sexual do trabalho,
cria homens e mulheres, ambos heterossexuais. Assim, a conclusão de Rubin é que a supressão do
componente homossexual da sexualidade humana e a opressão dos homossexuais são produtos do
mesmo sistema cujas regras e relações oprimem as mulheres.
Essa ideia significou um avanço para a análise teórica feminista porque desnaturalizou a
heterossexualidade; enquanto boa parte das teorias tratavam-na como algo natural. Rubin abriu
portas para outras formas de interpretação. Além disso, assim como Beauvoir, Rubin parece
questionar a base biológica da distinção entre gêneros ou, se quisermos utilizar o vocabulário de
Beauvoir, da distinção entre masculino e feminino. Rubin nota que o conteúdo que se dá ao gênero
varia historicamente e é culturalmente construído. A biologia não tem como explicar a diferença
entre gêneros, nem fornece qualquer argumento consistente para justificar essa diferença. A troca
de mulheres revela “uma percepção profunda” de um sistema em que as mulheres não têm direitos
plenos sobre si próprias (RUBIN, 1975, p. 25) De maneira similar à Beauvoir, Rubin vê a categoria
“mulher” como ausente de sentido prévio, pois seu significado pode variar segundo a cultura e as
“regras” de cada sociedade.
Tendo isso em vista, Rubin sugere que, assim como nós criamos uma sociedade baseada
nessa configuração de gêneros específica, tal como no sistema de parentesco, seria possível
construir uma sociedade com uma configuração de sexo/gênero onde as mulheres desempenhem
papéis sociais e funções distintos. Nesse sentido, como observado por Piscitelli (2002, p. 10), o
conceito de gênero de Rubin se apresenta como uma categoria de análise alternativa à categoria de
patriarcado. A opressão, nesses sistemas sexo/gênero, não é inevitável, ela é produto de algumas
relações específicas historicamente contingentes. Isso questiona a ideia monolítica de um
patriarcado como uma forma de opressão feminina universal.
Por fim, como vimos, assim como Beauvoir, Rubin também deixa a definição do gênero
feminino e, por consequência, o significado da categoria mulher, em aberto. Seu significado varia
de acordo com o arranjo específico de determinado sistema de gênero/sexo. Por outro lado, Rubin
26
ainda pensa que o gênero se ancora em bases biológicas, pensa em termos universais e opera com
uma série de dualismos natureza/cultura, sexo/gênero que se tornarão alvo de crítica das feministas
posteriores.

1.3 A crítica ao binarismo e a desconstrução da identidade por Judith Butler

Rubin e Beauvoir tiveram enorme impacto na forma de entender a condição das mulheres.
A partir de seus trabalhos, novas análises críticas puderam ser construídas e o conceito de “gênero”
se consagrou como uma categoria indispensável na análise feminista. Contudo, surgiram inúmeras
controvérsias sobre o que exatamente ele deveria significar. A continuidade e a ruptura – em alguns
aspectos – com esses trabalhos se tornou mais evidente, a partir da década de 1990, com a
publicação de Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade (2014) de Judith
Butler. Nessa obra, Butler faz elogios e críticas às teorias de Beauvoir e Rubin. Um dos problemas
notados por Butler é que ambas admitiram um binarismo injustificado acerca dos gêneros. Se por
um lado, a contribuição dessas autoras foi muito importante à crítica do determinismo biológico
que procurava naturalizar a subordinação das mulheres, por outro lado, Butler enxerga que ambas
mantiveram a noção de sexo como biológico e naturalmente dado, isto é, o sexo correspondia à
base sobre qual os gêneros são construídos.
Segundo Butler, se levada a sério, essa ideia leva a consequências não previstas pelas
autoras. Isto é, se é fato que “os gêneros são os significados culturais assumidos pelo corpo
sexuado” (BUTLER, 2014, p. 24), então, essa distinção entre gênero e sexo abre margem para uma
noção de gênero como interpretação múltipla do sexo. Dessa maneira, quando o gênero não decorre
do sexo, isso significa que uma fêmea não necessariamente precisa ter um gênero feminino, ou
seja, nada exige que esta fêmea seja uma mulher. Sendo assim, Butler mostra que o nosso sistema
ocidental binário de gêneros pressupõe uma mimesis entre gênero e sexo, em que o gênero nada
mais é do que a repetição do sexo (BUTLER, 2014, p. 24). Mas, na verdade, o que foi apresentado
por Rubin e Beauvoir permite concluir o oposto, ou seja, que a distinção sexo/gênero possibilita
uma descontinuidade radical entre os corpos sexuais e os gêneros construídos. Para Butler, então,
não há razão alguma para supor que os gêneros permaneçam em número de dois. Dessa maneira,
ambas, Rubin e Beauvoir, reproduziram injustificadamente um binarismo que não condiz com suas
próprias teorizações.

27
O questionamento do binarismo feminino/masculino, como decorrente da dicotomia
sexo/gênero, também leva à contestação da própria unidade que envolveria a categoria “mulheres”,
dado que não há necessariamente uma relação entre ser fêmea e ser feminina ou ser macho e ser
masculino, abrindo muito mais possibilidades para seu significado (BUTLER, 2014, p. 24). Para
Butler, a noção de que as mulheres possuem uma identidade comum têm raízes em uma posição
teórica que busca uma base universal para o feminismo. Tal posição, frequentemente, se apoia na
ideia de que a opressão das mulheres possui “uma forma singular, discernível na estrutura universal
ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina” e de que seria possível remontar as origens
desse processo, de forma a identificar a identidade sexual autêntica da mulher (BUTLER, 2014,
p.21). Como consequência dessa perspectiva, houve debates sobre se existiriam traços comuns
entre as mulheres, preexistentes a sua opressão, ou se elas estariam ligadas em virtude da sua
condição de oprimidas. Em qualquer dos casos, posições teóricas como essa pressupõem que exista
um antes, uma fase anterior à repressão que poderia explicar as origens da opressão de gênero.
Uma das consequências dessa perspectiva é o próprio binarismo. Uma vez que os gêneros, apesar
de seu caráter contingente, são vistos, na prática, como resultado de uma mimesis do sexo
biológico, anterior à cultura, então a interpretação é de que eles são binários e, portanto, invariáveis,
tidos como naturais, estáveis, inevitáveis.
Por essas razões, Butler critica a maneira como a discussão feminista comumente buscou a
origem dos gêneros. Para Butler, buscar a origem, significa assumir a priori que exista um
“anterior” ao gênero e tal prática inviabiliza a própria crítica à existência desse “anterior”, pois o
toma como fundamento5. Por consequência, tal posição não permite a própria crítica do sexo,
entendido comumente como um dado biológico, anterior à cultura e, portanto, fixo e imutável. Com
efeito, Butler afirma que colocar o sexo como pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais o
poder garante sua estrutura binária e sua estabilidade interna (BUTLER, 2014, p. 28). Nesse
sentido, para a autora, a melhor maneira de questionar as categorias binárias de gênero e de sexo
que sustentam hierarquias não passa por uma explicação monolítica que apela ao patriarcado, mas

5
Esse “antes” temporal para Butler (2014, p. 19) é “constituído pela lei como fundamento fictício de sua própria
reivindicação de legitimidade”. Segundo ela, essa ideia pode ser um vestígio contemporâneo da hipótese do estado
natural, “fábula constituinte das estruturas jurídicas do liberalismo clássico” (BUTLER, 2014, p. 20) Para Butler, “um
antes não histórico é uma premissa básica para garantir uma ontologia pré social de pessoas que consentem livremente
em ser governadas, constituindo assim a legitimidade do contrato social” (BUTLER, 2014, p. 20).
28
sim por uma investigação genealógica, inspirada em Foucault6. Isso porque tal investigação supõe
que categorias como sexo e o gênero sejam efeitos (e não causas) de práticas, discursos, instituições
e possuem pontos de origens difusos e variados (BUTLER, 2014, p.10). Partindo dessa perspectiva,
Butler pergunta, “podemos nos referir a um “dado” sexo ou um “dado” gênero sem primeiro
investigar como são como dados o sexo e/ou gênero e por que meios?” (BUTLER, 2014, p. 27).
Dessa maneira, ao evitar tomar o sexo como categoria fundante do gênero, se torna possível
investigar se há uma história do sexo, isto é, se ele próprio não seria uma construção cultural.
Nessa investigação genealógica levada a cabo por Butler, são as instituições que nos criam
e moldam, pois são elas que determinam nossos sexos e nossos gêneros. Essas instituições são,
dentre outras, o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. Tais instituições e práticas
culturais ditam inclusive a forma como discursivamente é possível tratar do sexo e do gênero. Elas
impõem limites à investigação. Tais limites definem por antecipação as possibilidades de
configurações do gênero na cultura. A produção de um sexo pré-discursivo, assegura e estabelece
a dualidade do próprio sexo e também as relações de poder que ocultam a própria operação de
produção discursiva. Isto é, enquanto Beauvoir e Rubin enfatizaram a questão reprodutiva da
mulher, para Butler reitera que a demarcação das diferenças fisiológicas não é precedida pelas
interpretações culturais do gênero. Ao contrário, essas diferenças já são, em si mesmas, uma
interpretação cultural que se apoia em pressupostos normativos naturalizados. (BUTLER, 2014, p.
24).
Quando Beauvoir afirma que “o corpo é uma situação”, para Butler, isso implica que não
há um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais. Dessa
maneira, o sexo não pode ser, como Beauvoir entendia, um dado pré-discursivo. O sexo é
interpretado como sendo gênero desde o começo, pois os corpos não ganham uma existência
signicável anterior à marca de gênero (BUTLER, 2014, p.30). Portanto, para a autora, a própria
distinção da espécie em machos e fêmeas seria uma construção cultural. A concepção do sexo como
algo biologicamente dado é um efeito de uma construção discursiva de comportamentos esperados

6
A genealogia é um método da historiografia que não tem como meta a “verdade”. Desenvolvida inicialmente por
Foucault, a genealogia busca conectar a mudança da história à eventos históricos. A genealogia mostra de que maneira
um assunto é entendido e como essa compreensão muda com o tempo a depender de seu contexto. Nas palavras de
Butler, “a genealogia não é a história dos eventos, mas a investigação das condições de emergência (Entstehung)
daquilo que é considerado como história, um momento de emergência não passa, em última análise, de uma fabricação”
(BUTLER, 2000, p. 15 apud SALIH, 2013, p. 17).

29
dos sujeitos. De modo que determinadas regras sociais constrangem a mulher a aderir a
“feminilidade”, bem como constrangem o homem a aderir a “masculinidade”. Para Butler, “a rigor,
talvez o sexo tenha sido sempre o gênero, de tal forma que a distinção sexo/gênero revela-se
absolutamente nenhuma” (BUTLER, 2014, p. 25).
Tendo isso em vista, Butler afirma que a dicotomia sexo/gênero de Rubin coloca o gênero
dentro da cultura e dá a aparência de um “sexo natural”, pré discursivo, anterior às inscrições
culturais do gênero. Assim, o sexo é produzido como um lugar politicamente neutro, em que a
cultura pode emergir. Essa ideia é bastante perigosa pois, a partir dela, se garante a manutenção do
sistema opressão vigente heterossexual, uma vez que naturaliza a estrutura binária do sexo,
inviabilizando sua contestação (BUTLER, 2014, p. 25). A investigação genealógica mostra que
tais corpos não existem fora da cultura e, portanto, não há sexo que já não seja gênero. Os corpos
são “generificados” desde o início de suas existências em sociedade, o que refuta a ideia de corpo
“natural”. Trata-se agora de entender como a configuração fictícia do sexo e do gênero participa
da regulação e produção das identidades de gênero hegemônicas.
Para Butler, a metafísica da substância está na base da construção das identidades de gênero
que conhecemos. Isso porque, conforme Michael Haar mostra a partir de uma referência à
Nietzsche, a metafísica da substância pressupõe que a formulação gramatical de sujeito e predicado
reflete uma realidade ontológica anterior de substância e atributo. Essa ideia produz os meios
filosóficos nos quais a ordem, a identidade e a simplicidade são construídas, mas não refletem de
fato uma ordem verdadeira das coisas. Disso deriva a noção popular de que “somos” nossos
gêneros ou nossas sexualidades, levando à conclusão de que uma pessoa é um gênero e assim é em
virtude do seu respectivo sexo, “do seu sentimento psíquico do eu e das diferentes expressões desse
eu psíquico”, como o desejo sexual (BUTLER, 2014, p. 51).
O gênero, assim, se apresenta como um princípio unificador do eu corporificado opondo-
se a um outro gênero, de forma a manter sua unidade. Sentir-se como uma mulher ou como um
homem exige uma conquista que é marcada pela diferenciação com o gênero oposto. Assim, uma
pessoa é seu gênero na medida em que não é o outro, de maneira que o gênero permanece sempre
restringido a esse par binário. Esse entendimento leva o gênero a denotar uma unidade de
experiência que marca uma coerência entre sexo, gênero e desejo. A instituição da
heterossexualidade compulsória e naturalizada regula o gênero como uma relação binária em que
a diferenciação dos gêneros se dá pelas práticas do desejo heterossexual (BUTLER, 2014, p. 53).
30
Essa diferenciação consolida os dois gêneros, estabelece sua coerência interna e dita sua
inteligibilidade cultural.
A inteligibilidade da identidade de gênero que se funda na coerência e unidade entre o
gênero, sexo e desejo, dá conteúdo à noção de pessoa. Segundo Butler, na história da filosofia, a
noção de pessoa ficou associada à ideia de que a pessoa permanece a mesma em qualquer contexto,
história ou narrativa. Criou-se, com isso, uma espécie de correspondência entre a pessoa e a
estrutura que a define como tal, fazendo com que a identidade pessoal fosse entendida como aquilo
que se mantém sempre igual, que diz respeito a suas características fundamentais (BUTLER, 2014,
p. 37). Butler se interessa em mostrar que, ao invés de a identidade ser apenas uma característica
permanente, ela é antes um ideal normativo. Assim, segundo Butler, a noção de identidade de uma
pessoa, sua coerência e continuidade, fazem parte de normas socialmente instituídas e tidas como
inteligíveis. São as instituições externas que ditam o que a pessoa é, não qualquer característica
interna do ser, pois são elas que dão as condições de possibilidade de existência como tal
(BUTLER, 2014, p. 38).
Não há, para Butler, uma realidade ontológica anterior à formulação gramatical de sujeito
e predicado. Eles possuem apenas realidade linguística (BUTLER, 2014, p. 42). Por essa razão,
Butler mostra que a noção de identidade só é sustentada por conceitos determinantes de sexo,
gênero e desejo, pela coerência da matriz heterossexual, segundo a qual é necessário ter um sexo
estável que seja expresso por um gênero estável (binário) e que é definido oposicionalmente e
hierarquicamente por meio da prática da heterossexualidade. Essa ideia fica mais clara se
pensarmos que a identidade só emerge no nascimento. Ela se apresenta assim que nós passamos
pelo processo de diferença sexual.
Para Butler, “o bebê se humaniza no momento em que a pergunta “menino ou menina?” é
respondida” (BUTLER, 2014, p. 162). É, nesse momento, que surge a pessoa. Por essa razão,
aqueles que fogem da regra, possuem configurações de gêneros não coerentes e descontínuas, fora
do que é tido como inteligível, e, consequentemente, sofrem para serem considerados como pessoas
e para serem inseridos socialmente. Butler observa que ambiguidades e incoerências nas práticas
heterossexuais, homossexuais e bissexuais são o tempo todo ocultadas e reescritas pelas normas
reguladoras no interior da estrutura binária masculino/feminino, ao mesmo tempo que são essas
mesmas ambiguidades que operam como intervenção, denúncia e deslocamento dessas normas
(BUTLER, 2014, p. 167).
31
Essas configurações de gênero são aquelas que minam a mimetização do gênero como o
sexo, por isso, para a lei que regula os corpos, elas são práticas proibidas. Além disso, a demarcação
binária sobre os tipos de pessoas acaba estabelecendo quais são os tipos considerados como
impossibilidades lógicas, visto que seu processo de construção é concebido em uma relação
intrínseca de negação e exclusão. Assim, temos apenas uma possibilidade de produzir uma
hierarquia homem/mulher: é necessário que a forma de desejo sexual seja heterossexual. E é
necessário que o sexo, o gênero e o desejo sejam tidos em uma relação de causa e efeito. O sexo
exprime o desejo, o desejo exprime o gênero (BUTLER, 2014, p. 45).
Sob o ponto de vista da matriz heterossexual, as configurações de gênero descontínuas e
não coerentes são vistas como falhas. O exemplo trazido por Butler é retirado de a História da
Sexualidade de Foucault. Segundo Foucault, ao estudar Herculine Barbin, uma intersexo, temos a
refutação da matriz da heterossexualidade como natural, pois não sendo anatomicamente nem
homem, nem mulher, Barbin é a impossibilidade sexual de uma identidade. As convenções da
matriz heterossexual não conseguem determinar que gênero ela/ele pertence. A indeterminação do
sexo mostra os limites das regras que governam sexo/gênero/desejo, uma vez que a univocidade
dessa relação é questionada quando os atributos masculinos e femininos não se conformam aos
modelos de inteligibilidade (BUTLER, 2014, p. 47). Para Butler, a “incapacidade” de Barbin em
se conformar aos binarismos de gênero mostra a instabilidade dessas categorias, enfatizando que a
ideia do gênero como substância é uma construção fictícia. Como afirma ela, “o sexo não uno
propicia um ponto de partida para a crítica das representações ocidentais hegemônicas e da
metafísica da substância que estrutura a própria noção de sujeito” (BUTLER, 2014, p. 29). Segundo
Butler, o gênero nada mais é que “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos
no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir
a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2014, p. 39).
São as configurações de gênero descontínuas que podem expor os limites da inteligibilidade
dos gêneros, criando “matrizes rivais e subversivas de desordem do gênero” (BUTLER, 2014, p.
39). Essas matrizes subversivas escancaram o caráter ficcional dos gêneros que são tidos
falsamente como naturais ou substanciais. Para Butler, o que permite essas novas configurações é
a característica performativa do gênero. As expressões de gênero, segundo Butler, são provenientes
da própria linguagem que configura os corpos e sexos, isto é, da distinção entre
masculino/feminino, da matriz de poder heterossexual, e não de uma ontologia pré-existente. Sendo
32
assim, o gênero é criado por modos de agir associados à feminilidade e à masculinidade. A
heteronormatividade estabelece a heterossexualidade como norma exercendo controle e disciplina
sob os gêneros. Quando reproduzidos, esse seu caráter político fica oculto, dando a impressão de
gêneros naturais. Em suas palavras,

o gênero não é substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos
que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas
reguladoras da coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser performativo
no interior do discurso herdado da metafísica da substância — isto é, constituinte da
identidade que supostamente é (BUTLER, 2014, p. 48)

Para Butler, o gênero é constituído por atos ou sequências deles que continuamente vão se
fazendo involuntariamente, pois não há ninguém fora dessas normas de gênero
masculino/feminino. O gênero é, portanto, um “fazer” em vez de um “ser” (SALIH, 2012)7. Se é a
reprodução e a performance da heteronormatividade que cria essa ilusão de femininos e masculinos
naturais, então a saída para a desconstrução da identidade de gêneros “naturais” é também pela
performance. Entretanto, não se trata de uma tarefa prescritiva, mas de uma tarefa que estamos
empenhados desde o nosso nascimento. Isto é, a performatividade do gênero independe da vontade
do sujeito, uma vez que gênero é produzido no interior de um quadro regulatório altamente rígido.
Trata-se, então, de interpretar as normas de gênero em nova configuração.
Vemos, desse modo, que enquanto Rubin e Beauvoir rejeitam que a distinção entre
masculino e feminino decorre da distinção biológica entre os sexos, Butler vai mais longe e mostra
que a própria distinção das pessoas em dois sexos biológicos é cultural e, mais do que isso, que a
construção desse binarismo se dá às custas da exclusão. Butler inicia a discussão em Problemas de
Gênero com uma crítica ao sujeito feminista, tomado sob a identidade universal de “mulheres”.
Para Butler, quando não problematizadas, afirmações como “ser” mulher e “ser” heterossexual são
sintomáticas dessa metafísica das substâncias do gênero (2014, p. 51). Ao rejeitar um ponto de
partida analítico que busca “a verdade íntima do feminino” ou algo que define o que é mulher,
Butler quer alertar para o caráter múltiplo e performativo do gênero. Para ela, a insistência em dar
um caráter substancial ao gênero é um dos equívocos de parte das teóricas feministas; um equívoco
com sérias consequências políticas.

7
Butler afirma: “Compreender a identidade como uma prática e uma prática significante é compreender sujeitos
culturalmente inteligiveis como efeito resultante de um discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos
disseminados e corriqueiros da vida linguística (BUTLER, 2014, p. 208).
33
Judith Butler rejeita a ideia de que mulheres compartilham traços comuns e, portanto,
podem se fazer representar em um sujeito universal denominado “mulher”. Para ela, tal ideia é
fruto de uma linguagem normativa que diz o que é e o que não é uma mulher. Nesse sentido, essa
categoria não parece ser a ideal para os objetivos feministas, pois acaba excluindo mulheres, ao
invés de conseguir emancipá-las. Para a autora, há uma literatura significativa que questiona a
viabilidade do “sujeito” como candidato último à representação ou mesmo à libertação, na medida
que demonstra – dentre outras coisas – como é pequena a concordância quanto ao que constitui a
categoria “mulheres”. Ao invés de gerar o consentimento imediato daquelas que se sentem
representadas, a categoria de “mulheres” se tornou uma causa de ansiedade. A autora questiona a
utilização de uma categoria ampla de mulheres como base do feminismo, não apenas porque elas
não compartilham uma essência biológica, mas também porque não sofrem os mesmos tipos de
subjugação ou compartilham interesses comuns.
Como Butler lembra, “Am I That Name?” [Sou este nome?] título do ensaio de Denise
Risely nos coloca uma pergunta que é gerada pelas possibilidades dos múltiplos significados da
categoria. Para Butler, “se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém
é” (BUTLER, 2014, p. 20), o termo não consegue ser exaustivo porque nem sempre se constituiu
de uma forma unívoca e coerente nos diferentes contextos históricos onde existem “mulheres”.
Além disso, o gênero estabelece “interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais,
e regionais de identidades discursivamente constituídas” (BUTLER, 2014, p. 20). Nesse sentido, é
impossível separar o conteúdo da categoria do contexto em que ela é estabelecida. Esse sujeito
descontextualizado de classe, raça, etnia é incompatível com a identidade como uma noção
singular.
Para a autora, a teoria feminista tradicionalmente presumiu a existência de uma identidade
definida, compreendida pela categoria “mulheres”, que abarcava interesses e objetivos feministas,
“além de constituir o sujeito em nome de quem a representação política era almejada” (BUTLER,
2014, p. 18). Para Butler, o desenvolvimento dessa linguagem pareceu necessário, pelo menos no
primeiro momento, considerando a condição cultural de opressão que vivem as mulheres, que são
muito mal representadas ou absolutamente não representadas. Por um lado, então, a representação
política pôde servir para aumentar a visibilidade e a participação das mulheres como sujeitos
políticos plenos. Mas, por outro lado, a linguagem de representação “é uma função normativa de
uma linguagem que revela ou distorce o que é tido como verdadeiro sobre a categoria mulheres”
34
(BUTLER, 2014, p. 18).
Com sua investigação genealógica, Butler mostra que o sujeito não é anterior à inscrição
de gênero e sexo, mas é instituído em contextos específicos, em que o próprio nascimento é uma
cena de subjetivação. Também mostra como as práticas reguladoras do gênero constrangem os
sujeitos a aderir às formas de gênero hegemônicas, a fim de serem reconhecidos como pessoas, sob
pena de punição. Assim, ser mulher, é mais algo que “fazemos” do que algo que “somos”. Nesse
aspecto, Butler amplia a ideia de Beauvoir sobre tornar-se mulher. Em suas palavras,

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim toma-se mulher
decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode
dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua,
o termo está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece
cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria cristalização é uma prática insistente
e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. Para Beauvoir, nunca se pode
tornar-se mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de
aculturação e construção (BUTLER, 2014, p. 58).

Com efeito, para Butler,o sujeito feminista se revela discursivamente constituído e isso
suscita a possibilidade de não haver um sujeito que esteja anterior à lei, “à espera de representação
na lei”. Para a autora, os sujeitos jurídicos nos sistemas representacionais da cultura ocidental,
quando são produzidos, estão vinculados a táticas de exclusão. De modo que, a priori, os domínios
de representação linguística e política estabelecem os critérios que determinam a formação dos
sujeitos. A consequência é que uma representação política se estende apenas ao que é reconhecido
como sujeito. Nesse sentido, para que alguém seja incluído como “sujeito” as qualificações para
tal precisam ser atendidas. É, por esse motivo, que Butler diz que o sujeito “mulheres” não existiria
efetivamente e, qualquer tentativa de criá-lo leva à exclusão de parte das vozes que o feminismo
quer representar (BUTLER, 2014, p. 25)
Para defender essa posição, Butler recorre à Foucault e procura mostrar como os sistemas
jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente vêm a representar. Essas noções
jurídicas regulam a vida política em termos puramente negativos: limitação, proibição,
regulamentação, controle e proteção. Porém, em virtude delas terem criado os próprios sujeitos,
eles são formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigências delas. Essas práticas de
regulação exclusão que formam o sujeito ficam ocultas. Se Foucault está certo, afirma Butler, então
a formação jurídica da linguagem e da política que representa as mulheres como “o sujeito” do
feminismo é em si mesma um efeito de uma dada versão da política representacional que produz

35
sujeitos presumivelmente masculinos, determinados em conformidade com os eixos diferenciais
de dominação. Sendo assim, o sujeito feminista se revelaria discursivamente construído pelo
sistema jurídico-político frente ao qual requer emancipação. Tendo isso em vista, Butler defende
que o feminismo que se utilizar desse sistema buscando a libertação das mulheres está
“inelutavelmente fadado ao fracasso” (BUTLER, 2014, p. 19)
Butler defende que a categoria de mulher deveria estar aberta a constantes reformulações e
contestações8. Ao contrário do que pensaram certas feministas, a causa da fragmentação do
movimento é justamente a insistência nessa categoria como sujeito representacional do feminismo.
Butler defende que não é necessário um sujeito por trás da ação política. A identidade não é
necessária para garantir os objetos políticos do feminismo. É, em verdade, o oposto que ocorre. Em
suas palavras,

Sem a expectativa compulsória de que as ações feministas devam instituir-se a partir de um


acordo estável e unitário sobre a identidade, essas ações bem poderão desencadear-se mais
rapidamente e parecer mais adequadas ao grande número de “mulheres” para as quais o
significado da categoria está em permanente debate (BUTLER, 2014, p. 36)

Para Butler, não basta se indagar sobre como as mulheres poderiam ter uma representação
mais plena na linguagem e na política. A crítica feminista deve compreender que a categoria
“mulheres” é produzida sob esse regime jurídico linguístico de poder, do qual busca emancipação.
Uma vez que esse regime atua de forma excludente, “a universalidade e a unidade do feminismo é
minada pelas limitações do seu discurso representacional” (BUTLER, 2014, p. 21). Por conta disso,
muitos recusam a aceitar essa categoria. Para Butler, tais domínios de exclusão revelam as
consequências coercitivas e reguladoras dessa construção linguística representacional, mesmo se
elaborada com fins emancipatórios. Isso tudo parece sugerir os limites das políticas de identidade.
Para a legitimação e hegemonia desse sistema que oprime as próprias mulheres, afirma Butler, a
construção do sujeito é uma condição necessária. Analisando a sua formação, percebe-se que ele
se fundamenta através da limitação, exclusão, controle. Desse modo, o sujeito está sempre em
negação com o que não é, para poder se afirmar como tal. Esse processo é legitimado através da
sua naturalização, pois a análise política o pressupõe como um fundamento. Ao mesmo tempo que

8
Outro erro apontado por Butler nas abordagens de Beauvoir e Rubin é o de manter um injustificado essencialismo
sobre o homem. Uma vez que o gênero é discursivo, o feminismo, ao tentar aprisionar uma concepção essencialista
do homem, estaria fazendo uma mimesis da estratégia do opressor (BUTLER, 2014, p. 33).
36
a lei que produz a noção de sujeito, ela também consegue ocultá-la, consolidando assim a noção de
sujeito como inevitável.
Por essas razões, Butler sustenta ser necessário repensar radicalmente a construção
ontológica de identidade da política feminista, de modo a formar uma capaz de repensar o
feminismo em outros termos. Isso não significa recusar a política representacional, até porque isso
mesmo não é possível. Mas sim, ter consciência de suas limitações, já que a genealogia produz
uma crítica às categorias de identidade naturalizadas e imobilizadas pelas estruturas jurídicas de
poder contemporâneas (BUTLER, 2014, p. 22). Butler propõe, então, uma formulação crítica que
liberte as teorias feministas da tentação de formular bases únicas e permanentes. A sua intenção é
indicar uma política que faça da identidade variável “um pré-requisito metodológico e normativo
ou um objetivo político” (BUTLER, 2014, p. 25).
Por essa razão, Butler procura fazer uma genealogia feminista da categoria de “mulher”,
por meio de uma reconstrução e de uma análise desses discursos que estruturam a identidade.
Mesmo quando utilizada com boas intenções, a utilização da categoria “mulher” como um sujeito
coerente e estável pode ser uma regulação e uma reificação inconsciente das relações de gênero
(BUTLER, 2014, p. 24). Além do mais, ao insistir na construção dessa categoria fictícia, o
feminismo estaria impedindo a própria possibilidade do feminismo como política representacional
(BUTLER, 2014, p. 25). Para a autora, abrir mão da categoria “mulher” como sujeito do
feminismo torna-se uma maneira eficiente de resistir à matriz heterossexual que têm seu sustento
na imobilização das identidades. Sendo assim, a ideia de representação talvez só venha fazer
sentido quando o sujeito “mulheres” não for presumido em parte alguma. Em suas palavras,

Expor os atos contingentes que criam a aparência de uma necessidade natural, tentativa que
tem feito parte da crítica cultural pelo menos desde Marx, é tarefa que assume agora a
responsabilidade acrescida de mostrar como a própria noção de sujeito, só inteligível por
meio de sua aparência de gênero, admite possibilidades excluídas à força pelas várias
reificações do gênero constitutivas de suas ontologias contingentes (BUTLER, 2014, p. 59).

37
CAPÍTULO 2 - A POLÍTICA DO GÊNERO

2.1 Deslocamento, performatividade e subversão das identidades

Contrariando uma tradição que tinha o sujeito como uma entidade metafísica preexistente,
em Problemas de Gênero, Butler questiona a categoria de sujeito como candidato à representação
política e a categoria de “mulheres” como sujeito do feminismo. Para ela, tais categorias limitam e
restringem as possibilidades políticas e culturais que o discurso feminista deveria abrir. Além disso,
Butler se afasta da posição comum de vincular o sexo ao gênero e ao desejo sexual, bem como
problematiza o binarismo de gêneros presente nas teorias feministas que insistem em entendê-los
como fundações naturalizadas, em vez de serem tomados como estruturas políticas generificadas.
Afirma, ainda, que há modos de “construir” a nossa identidade que são capazes de desafiar as
posições dicotômicas de gênero e sexo, mas o reconhecimento de tais possibilidades dependem de
uma reconceituação das identidades como sendo efeitos e não fixas.
Ao retomar à crítica de Beauvoir ao determinismo biológico, Butler mostra ainda que
nossas “escolhas” em relação ao gênero não são livres, pois estão em constante ligação com um
conjunto de normas regulatórias que instituições como a heterossexualidade compulsória nos
impõe. Por essa razão, Butler mostra que não há como recorrer a um corpo pré-cultural e, portanto,
o sexo não poderia ser dado como um fato pré-discursivo. Tanto o sexo e gênero são produzidos
discursivamente. Há, ainda, uma razão política para colocar o gênero e o sexo como substância,
dados factuais. Essa razão, revela Butler, deriva da necessidade de afirmar a naturalidade dos
gêneros e impor a elas uma complementaridade, criando uma suposta naturalidade de desejo entre
homens e mulheres, construindo, dessa maneira, o caráter compulsório da heterossexualidade.
Nesse sentido, as formas de existência inteligíveis são aquelas que se adequam aos padrões
de gênero reconhecíveis, ao preço da exclusão de outras. Por essa razão, a discussão da identidade
não pode vir antes da discussão sobre identidade de gênero. Antes, é necessário que sejamos
“generificados” no nascimento e, apenas após sermos categorizados como“homem” ou “mulher”,
adquirimos a identidade de gênero e uma existência inteligível em sociedade. Sendo assim, as
categorias de “homem” ou “mulher” são produções discursivas e a identidade um efeito desses
discursos. Como se pode notar, para Butler não há identidade de gênero a ser desvelada como
exterior a essas práticas regulatórias. As identidades de gênero são construídas e constituídas pela

38
linguagem, o que significa que não há identidade de gênero que preceda a linguagem. A linguagem
e o discurso fazem o gênero. A autora afirma:

Se a verdade interna do gênero é uma fabricação e se um gênero é uma fantasia


instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não
podem ser verdadeiros nem falsos, mas são apenas produzidos como efeitos de
verdade de um discurso de identidade primária e estável (BUTLER, 2014, p. 195).

Ao sugerir que o sexo não limita o gênero, Butler indica a possibilidade de produção de
gêneros que não se limitem ao dualismo sexual de macho e fêmea. Uma vez que o gênero não está
ligado ao sexo, então ele é uma espécie de ação repetida que pode ser proliferada para além dos
limites impostos pelo aparente binarismo sexual (BUTLER, 2014, p. 195). Em um diálogo com
Monique Wittig, Butler discute então como escapar dessas práticas regulatórias do gênero. Há, pelo
menos, duas alternativas: pela negação da matriz heterossexual dominante e, portanto, pela recusa
completa das noções de gênero estabelecidas ou, afirma ela, por um deslocamento subversivo
dessas noções capaz de dar um novo significado a elas.
Para Wittig, a primeira alternativa é mais adequada. De acordo com ela, não haveria razão
para dividir a humanidade em masculino ou feminino, exceto que essa divisão é adequada às
necessidades da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2014, p. 196). Sendo assim, tal
divisão, bem como a ideia de sexo como naturalmente dado, serve aos propósitos políticos dessa
instituição e, portanto, permanece vinculado a esta. Segundo Wittig, a lésbica, nesse quadro, não é
uma mulher. A “mulher” existe apenas enquanto estabiliza e consolida a relação binária e de
oposição ao homem, dada pela heterossexualidade. A lésbica transgride essa oposição entre
homem e mulher, transgride a própria noção de sexo, dado que o sexo é uma interpretação política
do corpo decorrente do gênero, criando uma nova categoria e linguagem próprias. Por meio dessa
recusa, a lésbica denuncia o caráter contingente e construído das estruturas de sexo, gênero e
desejo, que organiza as identidades de gênero feminino e masculino, bem como sua dependência
da matriz heterossexual (BUTLER, 2014, p. 196).
Por considerar que esse sistema que regula as práticas de gênero é coercitivo para com as
mulheres, gays e lésbicas, Wittig se recusa a ressignificá-lo e defende uma ruptura total, pois
manter uma parte do sistema, seria o mesmo que mantê-lo em sua totalidade (BUTLER, 2014, p.
197). A tarefa feminista, então, deve ser a de romper completamente o discurso sobre o sexo como
atributo essencial dos seres humanos. Wittig defende uma reorganização da descrição dos corpos
sem apelar para a noção de sexo e demais categorias que estruturam a matriz heterossexual. Tais
39
categorias não são, em verdade, neutras. Para Wittig, a linguagem pode ser capaz de provocar
violências materiais contra os corpos que organiza. Mas, segundo a autora, esse poder também
seria a saída para essa violência, pois a linguagem teria a capacidade de transformar o real, devido
à plasticidade deste em relação à linguagem. Nesse sentido, Wittig parece admitir, segundo Butler,
uma realidade mais verdadeira, anterior às modulações da violência dada pelas categorias
linguísticas. Também presume que a heterossexualidade é um sistema que se consolida em sua
totalidade, não havendo saída que não seja um distanciamento radical desse sistema.
Para Butler, presumir a integridade sistêmica da heterossexualidade é um erro, já contestado
por inúmeros discursos lésbicos e gays, devido o entendimento de que a cultura gay ou lésbica
participa da cultura heterossexual, mesmo quando se posiciona de forma subversiva dentro desta
(BUTLER, 2014, p. 210). Wittig erra em achar que os atos heterossexuais são radicalmente
determinados quando, na verdade, “há estruturas de homossexualidade psíquica no âmbito das
relações heterossexuais e estruturas de heterossexualidade psíquica no âmbito da sexualidade e dos
relacionamentos lésbicos e gays” (BUTLER, 2014, p. 211). O entendimento de Butler é que,
seguindo a psicanálise, a impossibilidade dessa conformação total se dá “em virtude da
complexidade e resistência de uma sexualidade inconsciente que não é desde sempre
heterossexual” (BUTLER, 2014, p. 211).
Nesse sentido, para Butler, a impossibilidade persistente de se conformar plenamente às
normas da heterossexualidade revela-se também como comédia, paródia constante de si mesma.
Além disso, Wittig parece ignorar os discursos existentes na cultura lésbica e gay que proliferam
novas identidades por meio de uma manifestação das categorias sexuais. Termos como queens,
butches, femmes, girls9, termos apropriados e ressignificados pela comunidade gay e lésbica,
explicitam a forma como é possível desdobrar e desestabilizar as categorias sexuais em categorias
que sirvam à identidade homossexual.
Wittig também parece pressupor que mediante uma operação de volição, o poder de
realidade dos corpos no campo cultural poderia ser retirado ou reduzido. Butler adverte que “as
relações de poder atuam como relações restritivas e constituintes da própria possibilidade de
volição” (BUTLER, 2014, p. 215). Sendo assim, o poder pode ser apenas deslocado e não
transcendido. Para Butler, o lugar no qual as normas reguladoras de gênero operam pode ser um

9
A tradução de Problemas de Gênero (2014) menciona que são variações de termos como “veado”, “sapatão”,
“biolola”, em português.
40
lugar competitivo e parodístico, que roubaria da heterossexualidade sua aparência natural e de
originalidade (BUTLER, 2014, p. 216). Para Butler, o lesbianismo que se define como uma
rejeição completa à heterossexualidade acaba consolidando o que busca combater, porque vincula
sua existência ao pressuposto inevitável da heterossexualidade. No lugar disso, resta apenas a
possibilidade de ressignificar os próprios atos constitutivos heterossexuais que inevitavelmente
fazem parte da homossexualidade (BUTLER, 2014, p. 222). Assim, Butler conclui que a estratégia
mais eficaz de resistência às práticas regulatórias, que formam as identidades de gênero, passa pela
apropriação e deslocamento das identidades. Em suas palavras,

A estratégia mais insidiosa e eficaz, ao que parece, é a completa apropriação e


deslocamento das próprias categorias das identidades, não meramente para
contestar o “sexo”, mas para articular a convergência de múltiplos discursos
sexuais para o lugar da “identidade”, a fim de problematizar permanentemente
essa categoria, sob qualquer de suas formas. (BUTLER, 2014, p. 222)

Para Butler, a construção da coerência dos gêneros, por meio práticas reguladoras que
restringem os significados relativos da “heterossexualidade”, “homossexualidade” e
“bissexualidade”, oculta as descontinuidades e ambiguidades envolvidas na formação do gênero,
que revelam o fato de que o gênero não decorre necessariamente do sexo e nem o desejo do gênero.
Na desagregação dessa coerência, o modelo regulador perde seu caráter descritivo e pode ser
denunciado como ficção que se passa por lei (BUTLER, 2014, 234).
Para Butler, o gênero nada mais é do que constituído por atos, gestos e atuações que são
performativos, pois expressam uma identidade que são fabricações sustentadas por signos e
diferentes meios discursivos. Tais atos, gestos, encenações criam a aparência de um núcleo interno
que organiza o gênero, com o fim de regular a sexualidade nos moldes da heterossexualidade
compulsória. Sendo assim, o gênero é uma fabricação, uma fantasia inscrita sobre a superfície dos
corpos e são produzidos como “efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária e
estável” (BUTLER, 2014, 237). Segundo Butler, o travestismo não só explicita esse modo de
fabricação, bem como também “subverte a distinção entre os espaços psíquicos internos e externos,
zomba efetivamente do modelo expressivo do gênero e da ideia de uma verdadeira identidade de
gênero” (BUTLER, 2014, 237). A aparência externa feminina e a “essência” interna masculina
confundem a gama de significações do gênero, impossibilitando tratá-lo em termos de verdadeiro
ou falso.

41
Dada a sua característica performativa, Butler afirma ser possível desfazer essas bases
comumente aceitas do gênero de fora, sugerindo um caminho com as performances subversivas de
gênero que promovem certas repetições paródicas. Butler traz o exemplo da drag. Uma
performance subversiva do gênero, como no caso da drag, permite confundir a relação entre gênero
e sexo, uma vez que coloca uma versão estereotipada do feminino em um corpo masculino,
mostrando o caráter desvinculado entre sexo, sexualidade e gênero. Nas palavras de Butler, “ao
imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero — assim como
sua contingência” (BUTLER, 2014, 237).
Dessa maneira, tais representações de gênero incitam a desnaturalização da identidade
feminina e da masculina, provocando um colapso temporário das normas de gênero e abrindo
portas para o desenvolvimento de outras configurações de gênero. A drag não imita uma mulher
“original”, ao contrário, mostra que a própria mulher tida como “original” tem sua identidade
também produzida pela repetição de determinados comportamentos, gestos e ações que foram
naturalizados com o tempo. Sendo assim, a mulher “original” não passa de uma ficção e um ideal
inalcançável. Como afirma, “a paródia do gênero revela que a identidade original sobre a qual se
molda o gênero é uma imitação sem origem” (BUTLER, 2014, 238). A paródia permite subverter
esse sistema padrão de gêneros que se constituiu como um saber. A paródia também permite
denunciar a inadequação desse saber justamente por operar em uma lógica que exclui e não explica
todas as outras existências de gênero possíveis, escancarando seu caráter político.
Ainda que os significados de gênero assumidos nesses atos parodísticos sejam fruto de uma
cultura misógina, eles são desnaturalizados e recontextualizados na paródia. No lugar de uma
identificação original e determinista do gênero, há uma identificação concebida como uma “história
pessoal de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se referem
lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão de eu de gênero primário e
interno marcado pelo gênero” (BUTLER, 2014, 239). Mas, Butler adverte que a paródia não é
subversiva em si mesma. É necessário rastrear o que fazem certos tipos de paródia serem
disruptivos e analisar como eles são ou podem ser replicados. Para Butler, o riso da paródia depende
de um contexto que possa fomentar tais confusões subversivas.
Para Butler (BUTLER, 2014, p. 240-241), o gênero é um estilo corporal que tem como
finalidade a sobrevivência cultural, uma vez que quem não “faz” seu gênero corretamente é punido
pela sociedade. Mas essa ação do gênero requer uma performance repetida. Tal repetição é tanto
42
uma reencenação quanto uma nova experiência e é o instrumento pelo qual os gêneros são
legitimados na cultura. O gênero é performativo e não expressivo, não revela uma identidade de
gênero pré-estabelecida, motivo pelo qual a norma de gênero nunca pode ser internalizada, pois as
normas de gênero são fantasísticas, nem verdadeiras e nem falsas (BUTLER, 2014, p. 244). Sendo
impossível a existência de gêneros “puros”, fora das normas de gêneros, resta para nós, a
ressignificação das normas, de uma maneira que coloque em xeque a sua falsa naturalidade.

2.2 Da Paródia à Política: um novo paradigma político feminista

Na conclusão de Problemas de Gênero, Butler faz uma recapitulação dos resultados de sua
investigação genealógica sobre as categorias que fundamentam o discurso feminista. Sua
preocupação inicial se estabeleceu em torno de saber se a política feminista funcionaria sem
pressupor um sujeito “mulheres”, que constituiria a base da representação política. Para Butler, não
se trata de pensar se estrategicamente ou tradicionalmente, essa categoria ainda tem sentido. Seu
objetivo, ao contrário, é mostrar que, por de trás dessa categoria, aparentemente inofensiva e
construída visando fins emancipatórios, há uma construção fictícia que nega a complexidade e a
indeterminação interna dessa categoria. Não apenas isso, mas o modo como a categoria se constrói
se dá por meio da exclusão de parte das mulheres que o feminismo almejaria representar. O fato é
que as reclamações crescentes por parte das mulheres que não se viam representadas pelo discurso
feminista são consequências diretas da adoção de uma noção de política de forma irrefletida.
A crítica radical que Butler faz ao discurso feminista visa denunciar as restrições que essa
noção de política traz ao feminismo. Isto é, os pressupostos fundacionistas que pesam sobre a
teorização feminista e a impede de enxergar outros caminhos e possibilidades, não só de gênero,
mas também do exercício da política. A crítica, portanto, expande o horizonte em que se situam os
conceitos, objetivos e práticas feministas. A ideia é mostrar que, enquanto a política de identidade
pressupõe que a ação só pode acontecer após a determinação de uma identidade em nome do qual
se fala, a realidade mostra que o agente não está atrás do ato, mas é construído no e através do ato
(BUTLER, 2014, 247). Trata-se de mostrar que o sujeito, antes de ser anterior ao campo cultural
é um efeito de um discurso amarrado por regras, que governa as suas condições de inteligibilidade
(BUTLER, 2014, p. 249).
43
A ideia de que há um agente por trás da ação surge, em parte, para explicitar um lugar que
não é completamente determinado pela cultura ou pelo discurso e presume que não há como ser
constituído pelo discurso sem ser determinado por ele, excluindo esse lugar da ação. Essa ideia
também assume um cogito que não pertenceria ao mundo cultural, no qual se dá a negociação de
suas construções, os atributos que foram sua própria identidade. Para Butler, essa noção perde o
caráter ilimitável da significação. Uma vez que a identidade se afirma por um processo de
significação que nunca é concluído, que continua a significar na medida em que circula entre os
discursos, então não é necessário recorrer a um “eu” preexistente que preserve o lugar da ação. A
significação já é esse lugar. É por meio de suas normas que regulam a invocação legítima e
ilegítima do pronome “eu”, que se dá as condições que possibilitam o “eu” (BUTLER, 2014, p.
247).
A tradição da epistemologia ocidental, afirma a autora, tende a ocultar as práticas e regras
que regulam antecipadamente a ação desse sujeito, impossibilitando um escrutínio crítico sobre
elas. Para Butler, a própria realidade corriqueira põe em questão a dicotomia sujeito/objeto, como
uma imposição até mesmo violenta. A postulação desse sujeito epistemológico também pertence a
uma estratégia de dominação que opõe o “eu” a algum “outro”. Uma vez instaurada essa separação
fictícia, se criam um conjunto de questões sobre como resgatar ou conhecer esse “outro. Essa
oposição é reificada como uma necessidade que oculta o aparato discursivo pelo qual o binarismo
é constituído. As identidades, quando substantivadas, pelo quadro epistemológico da tradição
ocidental, passam por um processo de significação onde as regras são repetidas sistematicamente
regulando o que é entendido como culturalmente inteligível e trazendo a aparência de que são
naturais.
Ao abraçar uma explicação da identidade como significação ao invés de epistemológica,
esta última se torna apenas uma prática possível e contingente. Dessa maneira, a questão da ação
passa a ser uma questão de significação e ressignificação (BUTLER, 2014, p. 249). Como
conclusão, o lugar da “ação” é pertencente ao processo de significação. Assim, as regras que
governam a identidade inteligível, que afirmam ou restringem o “eu” e são parcialmente
estruturadas em conformidade com as hierarquias de gênero e desejo sexual, operam por repetição
(BUTLER, 2014, p. 250). Mas tais regras não determinam o sujeito que constituem, porque não
constituem um ato fundador, elas não apenas restringem mas também permitem a afirmação de
campos diferentes de inteligibilidade cultural. Elas operam pela repetição e a “agência” então deve
44
operar na possibilidade de variar essa repetição (BUTLER, 2014, 250). Nesse sentido, Butler
afirma que é no interior dessas práticas de significação que se encontram novas possibilidades de
gênero a serem criadas, possibilidades que podem contestar os códigos binários e hierárquicos de
gênero. É no encontro das injunções discursivas de gênero como ser boa mãe, ser
heterossexualmente desejável, ser uma trabalhadora competente etc, que se produz a possibilidade
de uma reconfiguração e de um reposicionamento do gênero. Nenhum “eu” existe antes dessas
significações, não há nenhum corpo que mantenha sua integridade anterior à sua entrada nesse
campo de significação. O que há, para Butler, é “apenas um pegar as ferramentas onde elas estão,
sendo esse próprio ‘pegar’ facultado pela ferramenta que ali está” (BUTLER, 2014, p. 251).
É nesse momento que o corpo pode ser o lugar de uma performance subversiva do gênero
que conteste sua aparência naturalizada. Para Butler, “as práticas parodísticas podem servir para
reconvocar e reconsolidar a própria distinção entre uma configuração de gênero privilegiada e outra
que parece derivada, fantasística e mimética” (BUTLER, 2014, p. 252). O efeito da perda das
normas de gênero seria o de “proliferar as configurações de gênero, desestabilizar as identidades
substantivas e despojar as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus
protagonistas centrais: homens e mulheres” (BUTLER, 2014, p. 252).
Tal possibilidade de agir é excluída quando se toma o sexo não como um efeito, produzido
e gerado, mas como substância e essência. É por essa razão que Butler alerta que o discurso
feminista que assume a identidade como uma derivação de categorias fixas e fundantes está
inevitavelmente restringindo possibilidades culturais que o feminismo deveria se preocupar em
abrir (BUTLER, 2014, p. 253). O fato da identidade ser um efeito, porém, não significa que ela é
determinada, nem totalmente arbitrária. Para Butler, construção não se opõe à ação. É ela que dá
as condições para a ação, que dita os próprios termos em que a ação se articula e se torna inteligível.
A tarefa principal do feminismo, segundo a autora, é de situar as estratégias de repetição
subversiva que se encontram nessas construções de gênero, afirmar possibilidades locais de
intervenção pela participação nas práticas de repetição que formam as identidades e,
consequentemente, abrir um espaço imanentemente possível de contestá-las (BUTLER, 2014, p.
254). Trata-se, consequentemente, de ampliar a noção de política que o feminismo adota, a partir
do momento que se entende que político está enredado a essas práticas significantes. Isto é, não há
como continuar buscando uma ontologia de gênero que fundamente a política feminista, pois elas
próprias são injunções normativas que regulam o que é inteligível definindo exigências prescritivas
45
e consolidando restrições reprodutoras sob a sexualidade. Trata-se de um discurso político
traiçoeiro que afasta, ao invés de aproximar, o feminismo de seus objetivos de representação e
libertação.
Butler faz uma crítica radical às categorias de identidade, gênero e sexo como produzidas
discursivamente. Crítica que coloca potencialmente a ação política feminista como uma análise dos
mecanismos de poder que imobilizam tais categorias e engendram sua liberdade. A proliferação de
novas configurações de gênero, sexo e identidade potencializa o campo de ação política do
feminismo e liberta-o das amarras normatizadoras. Assim, a libertação das mulheres visada pelo
feminismo passa, invariavelmente, pela subversão das identidades.
Como afirma Carla Rodrigues (2005, p. 179), Butler buscou “deslocar o feminismo, como
prática política que pressupõe o sujeito como identidade fixa, para algo que deixe em aberto a
questão da identidade, algo que não organize a pluralidade, mas a mantenha aberta sob permanente
vigilância”. Nesse sentido, o sujeito do feminismo seria “um devir permanente, um processo, uma
promessa” (RODRIGUES, 2005, p. 179). Todavia, foi sobre esse deslocamento do sujeito no
feminismo que surgiram as maiores dúvidas. O sujeito continuaria a ser irrepresentável? A nome
de quem o feminismo demandaria a justiça social? Essas e outras questões são colocadas por Iris
Young que considera a proposta de Butler incompleta para os objetivos que o feminismo visa
alcançar.

46
CAPÍTULO 3 – REFORMULANDO O GÊNERO

3.1 Justiça, identidade e grupos sociais em Iris Young


No contexto da década de 80, as reivindicações de movimentos sociais como feminismo,
anti-racismo e LGBT, passavam pela consideração de que o paradigma liberal e individualista de
inclusão ignorava as desigualdades estruturais de gênero, raça e sexualidade. Tal paradigma
considerava que a promoção da justiça passava pela não discriminação, o que significava “a
aplicação dos mesmos princípios de avaliação e distribuição a todas as pessoas, independentemente
de suas posições sociais ou origens particulares” (YOUNG, 2009, p. 362). Assim, o movimento
pelas políticas da diferença reivindicava uma política que atendesse essas diferenças, combatendo
as desigualdades sociais de recursos, capacidades e modos de vida que continuavam prejudicando
grupos historicamente marginalizados.
Justice and Politics of Difference (1990) é uma obra escrita nesse contexto, em que Iris
Young elabora sua própria defesa das políticas de diferença. Ao iniciar sua análise do conceito de
justiça, Young não parte de princípios de justiça abstratos ou enraizados na natureza humana, nem
mobiliza uma concepção de justiça que privilegia a distribuição de recursos. Sua reflexão sobre a
justiça, ao contrário, é elaborada a partir das reivindicações de grupos marginalizados. Para Young,
uma concepção de justiça deveria começar com os conceitos de dominação e opressão, visão que
traz questões pertinentes para as tomadas de decisão, divisão do trabalho e cultural que afetam
diretamente o alcance da justiça social. Além disso, sua abordagem colocava a importância de
entender as diferenças entre grupos sociais na estruturação de relações sociais e de opressão. Em
sua visão, tais questões foram majoritariamente ignoradas nas discussões filosóficas (YOUNG,
1990, p. 3).
Para Young, um dos problemas com as concepções de justiça tradicionais consiste no tipo
de ontologia social que adotam, uma ontologia que tipicamente não têm espaço para um conceito
de grupos sociais, pois ignora as particularidades e as diferenças. Para a autora, o que motiva essa
repressão da diferença e redução dos sujeitos políticos a uma unidade é uma reprodução automática
da lógica moderna da identidade, contestada por autores como Adorno e Derrida, cuja operação
tem como base “uma construção do significado e das operações da razão” (YOUNG, 1990, p. 98),
isto é, pressupõe que uma explicação racional tem de se desdobrar em um princípio universal, uma

47
lei que cobre o objeto que está sendo investigado. A razão, então, busca a essência, uma fórmula
que unifique e classifique as particularidades dentro de categorias, possibilitando que cada
elemento de uma categoria tenha entre si algo em comum. Desse modo, nas palavras de Young, “a
lógica da identidade tende a conceitualizar as entidades em termos de substância e não de processo
ou relação; substância é a mesma entidade que está por trás da mudança, que pode ser identificada,
contada e medida” (YOUNG, 1990, p. 98).
A lógica da identidade parte da particularidade sensorial da experiência, com suas
ambiguidades, e tenta gerar categorias estáveis. Todas as operações de conceitualização, portanto,
reduzem a experiência a uma ordem de unificação e comparação. Mas, para além disso, também
surgem sistemas totalizadores nos quais as próprias categorias unificadoras são elas mesmas
unificadas sob certos princípios. Lançando mão dessa lógica, a teoria visa dominar uma experiência
sensorial heterogênea, subordinando o objeto completamente ao conceito. Assim, a diferença entre
o objeto e o sujeito é negada, tenta-se uma unidade do sujeito pensante com o objeto pensado, tal
como se pensamento pudesse conhecer e entender o real, reforçando a pretensão de imparcialidade
e razão universal (YOUNG, 1990, p. 99).
Assim, com a lógica da identidade, o pensamento busca ter tudo sob seu controle, eliminar
as incertezas, as imprevisibilidades e também a alteridade. Na medida em que o sujeito é concebido
por sua origem transcendental pura, a lógica da identidade procura reduzir a pluralidade de sujeitos
particulares, suas experiências corporais e visões de mundo a uma unidade, partindo para isso de
um padrão invariável de razão universal. Para Young, a ironia é que essa tentativa de reduzir o
diferente a uma forma semelhante do universal transforma o meramente diferente no absolutamente
outro. Com isso, essa lógica gera, inevitavelmente, dicotomias em vez de unidade. O passo dado
para resumir tudo o que é particular sob uma categoria universal cria uma distinção entre estar
dentro e estar fora dos padrões da razão universal (YOUNG, 1990, p. 99).
Como cada entidade ou situação tem semelhanças e diferenças frente a outras entidades ou
situações, o resultado da ambição de reduzi-las a uma categoria ou princípio uno é a rejeição de
suas propriedades, a exclusão de certas entidades ou situações. Para Young, essa etapa sempre
deixa rastros porque é um processo falho. A solução, tendo isso em vista, é colocá-las sob oposições
hierárquicas dicotômicas. Em suas palavras, “na história do pensamento ocidental, essa lógica da
identidade criou um grande número dessas oposições mutuamente exclusivas que estruturam
filosofias completas: sujeito/objeto, mente/corpo, natureza/cultura” (YOUNG, 1990, p. 99). Para
48
esconder a falibilidade do processo de redução da particularidade, então, essas dicotomias nos
discursos ocidentais são estruturadas hierarquicamente como bom/ ruim, puro/ impuro. Na maioria
dos casos, a unidade apenas é adquirida com a expulsão “do reino caótico do acidental” (YOUNG,
1990, p. 99). Para a autora, a diferença, entendida como uma relação entre mais ou menos
semelhança com uma multiplicidade de coisas possíveis, se transforma em uma oposição binária
de a/não-a.
Essa lógica da identidade que produz dicotomias, presentes no pensamento moderno e na
teoria política, acaba por negar ou reprimir a diferença. Exemplos históricos não faltam. Para
Young (YOUNG, 1990, p. 100), enquanto a política moderna proclamava a justiça e a generalidade
do espaço público (racional, imparcial, universal), algumas pessoas, principalmente mulheres e
negros eram excluídos da participação na esfera pública. O ideal da sociedade civil pública como
expressão do interesse geral, do ponto de vista imparcial da razão, resulta em exclusão, ao assumir
que a razão está oposta ao desejo, afetividade e corpo. Na prática, essa visão forçou a
homogeneidade em relação ao público civil, excluindo da esfera pública aqueles indivíduos e
grupos que não se enquadraram nesse modelo de cidadania que requeria uma transcendência do
corpo e redução da particularidade.
Essa exclusão tem uma dupla base: a tendência de opor razão e desejo e de associar essas
características com certos grupos. Tal processo justifica, então, a exclusão das mulheres do campo
político quando consideradas “guardiões do lar, da necessidade, desejo e afetividade”. Nesse
sentido, para Young, o mundo moderno burguês instituiu uma certa divisão, de caráter moral, entre
razão e sentimento, identificando masculinidade com razão e feminilidade com sentimentos e
desejos. A esfera da vida familiar e pessoal é uma criação moderna, assim como a esfera do Estado
e da lei, de modo que elas são interdependentes. Isto é, a imparcialidade e racionalidade do Estado
dependem de conter a necessidade e o desejo na esfera privada. Como consequência, esse cidadão
não tem corpo, é desapaixonado, masculino, branco e burguês (YOUNG, 1990, p. 109-110).
Se a imparcialidade, racionalidade e universalidade definem a esfera público civil, então
ela depende da expulsão e do confinamento de tudo o que pode vir a ameaçar desmantelar essa
ordem, isto é, “a especificidade do corpo e os desejos das mulheres, as diferenças de raça e cultura,
variabilidade e heterogeneidade das necessidades, objetivos e desejos de indivíduos, a ambiguidade
e a natureza mutável dos sentimentos” (YOUNG, 1990, p. 110). Sendo assim, questionar a lógica
da identidade moderna que cria dicotomias, como a oposição tradicional entre público e privado,
49
implica formular uma concepção de justiça que, por exemplo, não oponha a justiça ao cuidado,
usualmente associado ao feminino. Para Young, uma teoria que limita a justiça a princípios formais
e universais que definem um contexto no qual cada pessoa pode perseguir seus fins pessoais sem
prejudicar a capacidade de outras pessoas perseguem seus próprios fins, não envolve apenas uma
concepção muito limitada da vida social, mas é também uma concepção muito limitada de justiça
(YOUNG, 1990, p. 121). Como virtude, a justiça não pode se opor às necessidades, sentimentos e
desejos, mas deve designar condições institucionais que permitem que as pessoas atendam suas
necessidades e expressem seus desejos. Essas necessidades só podem se expressar em sua
particularidade se houver um espaço público heterogêneo (YOUNG, 1990, p. 121).
Young afirma, então, a necessidade de uma razão normativa dialógica que permita o
surgimento de normas mais justas a partir da interação real das pessoas com diferentes pontos de
vista. Ao invés de construir um sistema normativo universal isolado de qualquer sociedade
particular, isto é, uma teoria da justiça universalista abstrata e normativamente independente, A
autora busca formular “uma reflexão normativa que se pretende histórica e socialmente
contextualizada” (YOUNG, 1990, p. 5). Ao expor a tendência da “teoria política moderna” de
reduzir os sujeitos políticos a uma unidade, Young abre espaço para um conceito relacional de
grupo social que permite pensar as implicações para a filosofia política das reivindicações
expressas por movimentos sociais feministas, negro, LGBT, indígena.
Em termos gerais, o conceito que ela propõe é relacional, ao invés de substancial. Grupos
são expressões de relações que constituem certos sujeitos como membros e outros como não
membros. Essas coletividades existem apenas em relação umas às outras, de modo que uma
identificação de grupo surge através de uma relação de diferenciação com práticas e formas de vida
de outros grupos. Nas palavras de Young, “um grupo social é um coletivo de pessoas diferenciadas
de pelo menos um outro grupo por formas culturais, práticas ou modo de vida” (YOUNG, 1990, p.
42). As relações de grupo constituem indivíduos: seu senso de história, modos de raciocínio e
expressão. Por isso, para ela, os grupos sociais são anteriores aos indivíduos. É a partir do seu
relacionamento com grupos que os indivíduos constroem suas identidades (YOUNG, 1990, p. 42).
Grupos sociais não são apenas coleções de pessoas, pois eles estão entrelaçados com as
identidades das pessoas descritas como pertencentes a eles (YOUNG, 1990, p. 43). Dessa forma,
eles constituem um tipo específico de coletividade que afeta diretamente a forma como as pessoas
se entendem e entendem as outras. Os membros de um grupo possuem afinidades uns com os outros
50
por causa de suas experiências ou modo de vida semelhantes e por isso se identificam mais com
determinados grupos do que com outros. Grupos sociais podem surgir do encontro com sociedades
diferentes, mas também emergem de uma mesma sociedade através de processos sociais. Segundo
Young, a divisão sexual do trabalho criou grupos sociais de mulheres e de homens em todas as
sociedades (YOUNG, 1990, p. 43). Isso permitiu que dentro de cada grupo surgisse um senso de
afinidade entre os membros, ao mesmo tempo que acentuava as diferenças com os grupos
“distintos”.
Antecipando as acusações de essencialismo, Young reconhece que, muitas vezes, a noção
de grupos foi tratada como uma extensão das opressões por uma confusão no seu sentido. No
feminismo, muitas denunciaram “a cegueira étnica e racial e afirmaram a importância de prestar
atenção às diferenças de grupo entre as mulheres” (YOUNG, 1990, p. 163). Mulheres negras,
latinas, judias, lésbicas e outras, foram silenciadas pelo discurso feminista universal. Tais
denúncias carregam importantes intuições contra essencialismo e determinismo. Para Young, a
conceitualização da diferença de grupo em termos de naturezas inalteráveis e essenciais consiste
em uma forma de perpetuar a opressão. Sendo assim, é necessário conceituar grupos de uma
maneira muito mais relacional e fluida (YOUNG, 1990, p. 47).
Nesse sentido, Young rejeita duas interpretações de grupos comuns na filosofia política:
grupos como modelos de agregação ou associação. Enquanto uma visão agregacionista classifica
as pessoas de acordo com certas características, Young defende que grupos sociais (como de
mulheres) são definidos por um senso de identidades, ao invés de meras características
compartilhadas. Porque ainda que características possam ser relevantes na classificação de pessoas
como pertencentes a um grupo, é a identificação com o status social, experiência vivida e a história
comum que produz a afinidade que define o grupo como um grupo (YOUNG, 1990, p. 44).
Já o modelo de associação concebe grupos sociais como associações entre pessoas,
semelhante ao que acontece em instituições organizadas, como sindicatos, faculdades etc. Young
critica essa abordagem porque coloca o indivíduo como ontologicamente anterior aos grupos
sociais, como construtores e constituintes dos grupos. A autora recupera a crítica pós estruturalista
do sujeito moderno, entendido como autônomo e anterior à cultura, para afirmar que o “eu” é um
produto de processos sociais e não a sua origem. Nesse sentido, a ontologia da abordagem
associativa pressupõe metodologicamente essa ideia, tendo como consequência a noção de que
indivíduos são anteriores aos grupos. Quando, na verdade, são os grupos constituem indivíduos.
51
Isso, no entanto, não significa que as pessoas não desenvolvam sua individualidade ou sejam
incapazes de transcender ou rejeitar uma identidade de grupo ( YOUNG, 1990, p. 45). Tampouco
impede as pessoas de terem muitas características que independem dessas identidades de grupo.
Sendo assim, os grupos, sendo processos sociais, não devem ser interpretados como
entidades monolíticas. Grupos se intercruzam, especialmente ambientes altamente diferenciados
sociedades contemporâneas, de modo que cada indivíduo pode ter, a qualquer momento, várias
identificações de grupo. Por exemplo, quando uma pessoa nova se torna idosa, ela deixa de
pertencer a um grupo e passa a pertencer a outro. Como grupos existem em uma relação com
outros, para Young, um grupo pode emergir apenas porque um grupo exclui uma categoria de
pessoas e esses excluídos passam a se entender como um único membro do grupo, com base em
sua opressão compartilhada. Todavia, apesar de concordar que indivíduos devem ser livres para
seguir seu plano de vida à sua maneira, na sociedade moderna a diferenciação de grupos permanece
endêmica. Como Young cita,

À medida que os mercados e a administração social expandem a rede de interdependência


social em escala global, e à medida que mais e mais pessoas são vistas como estranhas nas
cidades e estados, as pessoas retêm e renovam identificações de grupos de tipos étnicos e
locais, idade, sexo e ocupação, e cria novas identificações nos processos de encontro.
Embora as pessoas pertençam a grupos oprimidos, as identificações de grupo geralmente
são importantes para elas que geralmente sentem uma afinidade especial por outras pessoas
de seu grupo. Acredito que as diferenciações de grupo são um aspecto inevitável e desejável
dos processos sociais modernos (YOUNG, 1990, p. 47, tradução nossa).

Assim, embora os processos sociais de afinidade e diferenciação deem origem a grupos,


eles não lhes dão uma essência substantiva. Como ela afirma, “não existe uma natureza comum
compartilhada pelos membros de um grupo” (YOUNG, 1990, p. 47). Além disso, como produtos
de um processo, os grupos são fluídos. Do mesmo modo que eles aparecem, eles também podem
desaparecer. Um exemplo disso é o de que as práticas homossexuais existem em muitas sociedades
e períodos históricos. Contudo, foi somente a partir do século XX que gays e lésbicas foram
identificados como grupos específicos e se auto identificaram neles (YOUNG, 1990, p. 48). Como
grupos são fluídos, as diferenças de grupo também se cruzam. Em suas próprias constituições
podem refletir muito dos outros grupos. Como Young exemplifica,

Na sociedade americana de hoje, por exemplo, pessoas negras não constituem um grupo
simples e unificado que detém uma vida comum. Como outros grupos raciais e étnicos, elas
são diferenciadas por idade, gênero, classe, sexualidade, religião e nacionalidade, qualquer
um desses pode, em um determinado contexto, tornar-se uma identidade de grupo
importante (YOUNG, 1990, p. 48, tradução nossa).
52
Assim, apesar da existência de grupos formados a partir da opressão e do fato de que as relações
de privilégio e opressão estruturam as relações entre vários grupos, a diferenciação de grupo não
é, em si mesma, opressiva. Nem todos os grupos são oprimidos, como o grupo de católicos por
exemplo, porque para um grupo ser considerado oprimido deve estar sujeito a uma ou mais de
cinco condições, que são: exploração, marginalização, carência de poder, imperialismo cultural,
violência10. A opressão é uma condição que afeta as pessoas como desvantagens decorrentes da
sua participação em grupos sociais desvalorizados.
Tendo isso em vista, a conceituação de grupo social de Young como “múltiplo, transversal,
fluido e instável” (YOUNG, 1990, p. 48) permite uma crítica ao modelo do sujeito moderno
autônomo e unificado que baseia a maioria das teorias de justiça tradicionais. Dado que as pessoas
constituídas em parte pelas afinidades e relações grupais, não podem ser unificadas, elas são
heterogêneas e não necessariamente coerentes. Assim, nessa nova forma conceitual, a diferença
passa a significar não alteridade, oposição exclusiva, mas especificidade, variação,
heterogeneidade. Para a autora, a alternativa a um significado de diferença como oposição, que
essencializa e estigmatiza, é um entendimento da diferença como especificidade, variação
(YOUNG, 1990, p. 171).
Nessa nova lógica, as diferenças de grupo devem ser concebidas como relacionais, e não
definidas por categorias e atributos substantivos. Em geral, portanto, um entendimento relacional
da diferença de grupo rejeita as dicotomias criadas pela lógica da identidade. Os diferentes grupos
não mais são lidos como mutuamente exclusivos. Dizer que existem diferenças entre os grupos não
implica que haja experiências que não possam ser sobrepostas ou que dois grupos não tenham nada
em comum. Em suas palavras, “grupos diferentes são sempre semelhantes em alguns aspectos e

10
Para Young (1990, p. 38) a opressão consiste em processos institucionais sistemáticos que impedem que
algumas pessoas ou grupos aprendam e usufruam de certos benefícios ou processos sociais institucionalizados que
anulam a capacidade das pessoas ou grupos de interagir e se comunicar com outros, de expressar seus sentimentos e
perspectivas em contextos onde outros possam ouvi-los. A opressão pode incluir privação ou distribuição má
distribuição de recursos, além de estereótipos culturais. A opressão estrutural implica relações entre grupos; essas
relações, no entanto, nem sempre respondem ao paradigma da opressão consciente e intencional de um grupo pelo
outro. Por sua vez, Young entende a dominação como a presença de condições institucionais que impedem as pessoas
de participarem na determinação de suas ações ou nas condições de suas ações. As pessoas vivem dentro de estruturas
de dominação se outras pessoas ou grupos puderem determinar sem reciprocidade as condições de suas ações,
diretamente ou em virtude das consequências estruturais de suas ações (idem). Embora ambos conceitos possam estar
entrelaçados, Young defende essas formas de injustiça devem ser analiticamente distintas.

53
sempre compartilham potencialmente alguns atributos, experiências e objetivos” (YOUNG, 1990,
p. 172).
Dado que a defesa da política da diferença de Young passa pelo diagnóstico de que a
política tradicional não dá conta de lidar com as desigualdades estruturais pelo seu enfoque liberal
e individualista, é compreensível porque o conceito de grupo social esteja no centro da
argumentação de Young. Todavia, como afirma Tosold (2010, p. 172), críticos das noções de
grupos argumentam que tais concepções por mais reformuladas que sejam ainda compartilham de
um forte senso de identidade, o que leva a uma ordem de unificação e comparação dentro dos
grupos, contribuindo, ironicamente, para a exclusão das diferenças. Assim, embora a autora
enfatize que o conceito de grupos é relacional e não substancial, a sua concepção de grupos sociais
como um coletivo de pessoas que compartilham um senso de identidade comum, a partir de uma
afinidade entre suas experiências, não ficou imune a críticas.
Judith Butler, no mesmo período, em Problemas de Gênero, argumenta contra a
viabilidade da categoria de “mulher” como sujeito político do feminismo, justamente porque a
insistência na ideia de que as mulheres compartilhavam uma identidade comum provocou a
exclusão de muitas mulheres com experiências de vida diversas. Butler afirma ainda que dado o
poder normalizador das identidades de gênero, qualquer tentativa de forjar uma unidade em torno
da categoria “mulheres” estará fadada ao fracasso. Assim, restaria ao feminismo como tarefa
política a crítica: formular genealogias que mostrem de que forma uma dada categoria ou prática é
socialmente construída, de forma a manter sempre em aberto o discurso e a prática feminista. Nos
trabalhos posteriores à Justice and Politics of Difference, Iris Young analisa as propostas de
desconstrução dos gêneros e de identidades que surgem a partir das denúncias de exclusões e
silenciamentos dentro do feminismo. Na prática, tais críticas puseram em questão as possibilidades
de falar das mulheres enquanto coletivo. Nesse sentido, o debate proposto atinge diretamente sua
proposta teórica e instiga a autora a buscar alternativas a partir de uma revisão parcial de sua teoria.

3.2 Avaliando a proposta desconstrutiva dos gêneros


No artigo “Lived body and Gender: Reflections on Social Structure and Subjectivity”
(2002), Iris Young parece concordar com a crítica que Butler faz do uso que teóricas feministas
fizeram das categorias de gênero e sexo. Apesar disso, ela afirma que descartar a categoria de
gênero e de mulheres pode implicar um alto risco político para o movimento feminista. Partindo,
54
nesse artigo, de uma análise do ensaio de Toril Moi intitulado “O que é uma mulher?”, Young
procura defender sua posição. De acordo com Young (2002, p. 410), Moi percebe a teorização
feminista mais recente como o fim da corrente construtivista de gênero. Moi afirma que embora a
teoria feminista dos anos 70 tenha encontrado na dicotomia sexo/gênero uma noção libertadora
tanto para a teoria quanto para a prática, as críticas que vieram, como as de Butler, foram bem-
sucedidas em apontar seus limites. As teóricas feministas e queer mostraram como as categorias
de sexo e gênero não eram tão estáveis como se pensava e a desestabilização do sexo e do gênero
possibilitou o surgimento de novas formas de pensar as identidades e suas relações com a vida
prática, o que foi significativamente benéfico para a teoria feminista.
Young concorda com esse diagnóstico, mas o considera parcial. Para ela, que acompanha
Moi sobre isso, se por um lado as abordagens desconstrutivistas afastaram as teorias feministas do
essencialismo, ao mesmo tempo, elas também acabaram transformando o gênero em, como afirma
Moi, “um conceito praticamente inútil para pensar a subjetividade e a identidade” (YOUNG, 2002,
p. 411). Algo que gera problemas e coloca questões. Afinal, como teorizar a subjetividade do corpo
sem o gênero? Young, assim como Moi, considera essa tarefa essencial ao feminismo, de modo
que ambas se colocam em busca de alternativas teóricas capazes de dar conta daquilo que era o
papel do gênero na teoria feminista. Para isso, todavia, desenvolvem estratégias distintas: no caso
de Moi, a estratégia é a de substituir o conceito de gênero; no caso de Young, a de reformulá-lo.
Isso porque Young percebe deficiências tanto nas teorias desconstrutivistas e queer quanto na
proposta de Moi que retoma a ideia de corpo vivido. Em sua visão, nenhuma das teorias conseguem
substituir efetivamente a função da categoria de gênero, pois privilegiaram questões de
subjetividade e identidade e negligenciaram questões que dizem mais respeito à estrutura social
(YOUNG, 2002, p. 411).
Antes de passar à sua própria proposta, Young analisa a proposta de Moi, para quem a
categoria de gênero deveria ser abandonada devido sua característica de essencializar as mulheres,
negando suas diferenças. No lugar, Moi propõe a renovação do conceito de corpo vivido derivado
da fenomenologia existencial. Para ela, trata-se de um candidato mais adequado para teorizar a
subjetividade do corpo, sem cair nas armadilhas do reducionismo biológico e do essencialismo de
gênero. O corpo vivido é “uma ideia unificada do corpo físico com as experiências vividas dentro
de um contexto sociocultural específico; é o corpo em situação” (YOUNG, 2002, 415). Essa
situação denota tanto a facticidade quanto a liberdade, pois a pessoa sempre enfrenta os fatos
55
materiais de seu corpo e sua relação com determinado ambiente. No nível da facticidade, todas as
pessoas têm corpos com certas capacidades sensoriais, que funcionam de diferentes maneiras, com
diferentes dimensões, idade, estética etc. Porém, tal corpo sempre vive em um contexto específico
com uma história única, idioma e condições materiais específicos. No nível da liberdade, por sua
vez, a pessoa é capaz de ação, ela tem uma liberdade ontológica de construir-se em relação às suas
facticidades. Ela tem projetos pessoais, “maneiras de se expressar, maneiras de deixar suas marcas
no mundo, formas de transformar seus arredores e relacionamentos” (YOUNG, 2002, 415).
O conjunto da facticidade com o da liberdade constitui a situação da pessoa. A situação,
portanto, diz respeito a como os fatos do ambiente social e físico dessa pessoa se relacionam com
os projetos que ela possui em sua vida. Assim, para Moi, reconhecer o corpo como uma situação é
reconhecer que o significado desse corpo está relacionado ao modo como essa pessoa usufrui de
sua liberdade (YOUNG, 2002, p. 415). A vantagem de utilizar esse conceito como alternativa à
dicotomia sexo/gênero, para Moi, é que o conceito de corpo vivido pode se referir aos fatos físicos
dos corpos, como a categoria o sexo, incluindo a diferença sexual e reprodutiva, sem cair em
essencialismo. Além disso, o conceito de corpo vivido não cai em um dimorfismo sexual, isto é,
alguns corpos podem possuir certas características físicas “masculinas” em certos aspectos e
“femininas” em outros. Da mesma forma, as pessoas podem ter desejos e sentimentos de múltiplas
maneiras que não buscam corresponder com o dimorfismo sexual ou com a heterossexualidade
compulsória. Isso acontece porque, como tal, o corpo vivido não é biológico, não se refere a uma
descrição científica e objetiva dos corpos em termos fisiológicos.
Na leitura de Young, portanto, Moi lança mão do conceito de corpo vivido e defende que
ele “pode levar à teoria os fatos dos corpos, sem as implicações reducionistas e dicotômicas da
categoria do sexo” (YOUNG, 2002, p. 416). Young ressalta ainda que, para Moi, o conceito de
corpo vivido recusa a distinção entre cultura e natureza em que a dicotomia sexo/gênero se baseia.
Isso porque o corpo é entendido como parte da cultura e desde cedo aprende hábitos e
comportamentos. Assim, o conceito de corpo vivido dá conta de descrever o que se enquadra na
categoria de “gênero”. Para Young, nessa redescrição, descobrimos que Butler está certa: é uma
fábula atribuir as maneiras de ser associadas à categoria de gênero a algum núcleo interno da
identidade de um sujeito, que seria anterior à cultura, dando a ele uma aparência de “natural”. Na
verdade, Young acredita que os estudos da sexualidade, reprodução e os papéis sociais atribuídos
a homens e mulheres devem focar na leitura de corpos como vividos e não presumir uma distinção
56
natureza/cultura que considere apenas o gênero como cultural (YOUNG, 2002, p. 416). Nesse
sentido, Young reconhece que manter uma distinção entre sexo como biologicamente dado e
gênero como culturalmente variável embora refute um determinismo biológico têm ainda como
consequência um fundacionalismo biológico (YOUNG, 2002, p. 416).
Young encontra na proposta de Moi inúmeras vantagens. Em sua visão, o conceito de corpo
vivido funciona melhor que a categoria de gênero em inúmeros aspectos. Ele permite a descrição
dos hábitos e interações de homens com mulheres, mulheres com mulheres e homens com homens,
de maneiras que atendam as possibilidades plurais de comportamento, sem que seja necessária uma
redução a um binarismo heterossexual “feminino” e “masculino”. Além disso, o conceito de corpo
vivido funciona melhor que o conceito de gênero porque ajuda a evitar o problema gerado pelo uso
de categorias gerais descritivas como “gênero”, “raça”, “nacionalidade”, “orientação sexual” que
servem para descrever as identidades constituídas dos indivíduos, ou seja, “o caráter aditivo que as
identidades parecem ter sob essa descrição” (YOUNG, 2002, p. 417).
Para Young, quando concebemos as identidades individuais como constituídas pelas
diversas identidades de grupo – gênero, raça, classe, orientação sexual, etc – incorremos em
questões a respeito de “como as pessoas são individualizadas e como essas diferentes identidades
de grupo se combinam em uma pessoa” (YOUNG, 2002, 417). Com a ideia do corpo vivido, porém,
cada pessoa é nitidamente um corpo distinto, com características, capacidades e desejos
específicos, semelhantes e diferentes de outras pessoas em determinados aspectos. Cada um tem
uma história sociocultural que se diferencia nitidamente das outras pessoas. Assim, categorias
como “gênero”, “raça”, “etnia” etc., são abreviações de um conjunto de estruturas que situam as
pessoas. Essas categorias não são teorizadas para servir como identidades gerais de grupos sociais.
Nesse sentido, uma pessoa que vivencia suas experiências e habita contextos distintos de outras
pessoas não precisaria constituir sua identidade a partir da reunião de tais categorias.
Enquanto categoria analítica, o conceito de corpo vivido dá conta da história concreta dos
corpos e da subjetividade, sem depender da problemática dicotomia sexo/gênero. Tal conceito, para
Moi, oferece uma teoria da subjetividade e do corpo, fornecendo uma compreensão do que significa
ser mulher ou homem em uma sociedade específica. Entretanto, ainda que reconheça os méritos
desse conceito, Young vê problemas no que Moi considera como os propósitos teóricos do
feminismo. Segundo ela, se os propósitos teóricos do feminismo consistissem apenas em teorizar
a subjetividade do corpo, então certamente o conceito de corpo vivido seria muito adequado como
57
alternativa ao conceito de gênero. Mas, na verdade, Young vê nas discussões recentes, que
questionam a estabilidade do gênero e a adequação da distinção sexo/gênero, o surgimento de
alguns dilemas, apontados por outras teóricas feministas. Isso ocorre, em parte porque, como ela
afirma, “o gênero pretendia ser uma categoria mais geral, mas a subjetividade que determina seu
conteúdo sempre é particular” (YOUNG, 2002, 418). Para Young, o conceito de gênero é mais
abrangente que usualmente entendido. Seu objetivo não é [apenas] o de teorizar a subjetividade;
ele é essencial também para teorizar estruturas sociais e suas implicações para a liberdade e o bem-
estar das pessoas (YOUNG, 2002, 419).
Na visão de Young, a compreensão dessas estruturas sociais e seus impactos carece de um
conceito reformulado de gênero, mas são pontos que perderam espaço no debate feminista.
Segundo ela (YOUNG, 2002, p. 411), dos anos 70 a 80, a discussão feminista voltou-se para os
relatos sobre especificidades sociais e psicológicas da identidade, derivadas dos papéis de gênero.
Tais discussões, acabaram revelando as profundas diferenças entre as experiências de gênero
masculinas e femininas que traziam implicações para a vida psíquica dos homens e das mulheres,
como a disposição de cuidar dos filhos ou de exercer autoridade. Nesse período, também surgiram
teorias sobre identidade de gênero que buscaram expressar a estrutura geral da subjetividade das
mulheres (incluindo a maternidade), bem como seus pontos de vista. Mas não demorou muito para
essas teorias fossem acusadas de essencialistas: elas ignoravam a diferença que a raça e a classe
conferiam a essas experiências sociais e também assumiam que todas as mulheres desejavam ter
um relacionamento com os homens.
Para Young (2002, p. 413), a maioria das teóricas feministas da época levaram essas críticas
a sério e propuseram mudanças. A teoria queer propôs a dissolução do gênero, como o fazem
autoras como Diana Fuss e Judith Butler, visando acabar com essencialismos e exclusões que as
abordagens anteriores causaram. Segundo Young (2002, p. 414), em Problemas de Gênero, Butler
questiona o motivo pelo qual a teoria feminista busca uma identidade de gênero. Isto é, as
feministas acreditavam que fosse necessário lançar mão da concepção de uma identidade de gênero
para especificar o sujeito do movimento político feminista. Esse sujeito é a categoria de “mulheres”
e o gênero é o conteúdo que dita o que é uma mulher. Butler, segundo Young, argumentou que a
distinção entre sexo e gênero manteve um binarismo de complementaridade categórica e estável
entre homem e mulher que reproduz uma lógica de heterossexualidade compulsória.
Segundo Young (2002, p. 413), Butler colocou a distinção entre sexo e gênero em questão,
58
a fim de desafiar a confiança dada à distinção entre natureza e cultura, ou à concepção de acordo
com a qual os sujeitos teriam vidas “interiores” que corresponderiam a identidades de gênero
estáveis (YOUNG, 2002, p. 414). Para Butler, gênero é uma performance social. As regras
discursivas da heterossexualidade compulsória produzem performances de gênero que são
repetidas e reiteradas. Além disso, o próprio sexo dos corpos deriva de tais performances. Nesse
processo, algumas pessoas que não se enquadram dentro do binarismo heterossexual são excluídas,
se tornando abjetas. Uma política radical, então, consiste em subverter o binarismo de gênero e
“brincar” com as performances de gênero (YOUNG, 2002, p. 415).
Para Young (2002, p. 415), Butler questiona com sucesso a lógica da distinção entre sexo
e gênero, mas a sua teorização não vai além desses termos, permanecendo ligada a eles. Nesse
sentido, Young relembra a crítica de Moi, segundo a qual a perspectiva butleriana sobre o gênero
coloca a categoria de gênero como inútil para entender a subjetividade e a identidade. Isso porque
a teoria de Butler procura livrar os conteúdos dos gêneros das normas da masculinidade e da
feminilidade hegemônicas. A consequência é que as teóricas feministas queer rompem
completamente com a categoria de gênero, uma vez que ela não serve mais para teorizar a
subjetividade. Outro ponto negativo decorre, como Moi argumenta, do fato de que a teoria de Butler
se torna cada vez mais abstrata e acaba desconstruindo uma dicotomia material-ideal, pois não fica
claro quais problemas reais a teoria aborda ou como os conceitos ajudam as pessoas a entender e
descrever sua experiência (YOUNG, 2002, p. 415).
O objetivo de Young, então, é reparar esse rompimento. Para isso, ela reitera que teorias
feministas e queer, como a de Butler, são projetos de crítica social. Esses projetos se esforçam em
identificar certos danos ou injustiças, localizar e explicar suas fontes nas instituições, nas relações
e propor (às vezes) orientações para alterá-las. Mas, para ela, esse conjunto de tarefas exige que o
teórico tenha uma descrição não apenas da experiência individual e sua subjetividade, mas também
das estruturas sociais. Isso, no entanto, não quer dizer que Young discorde de Butler no que diz
respeito à sua crítica às identidades e às estabilidades das categorias sexo/gênero. Ao contrário, ela
procura dar ao gênero uma função diversa daquela de explicar a constituição de identidades e da
subjetividade. Objetivando solucionar os problemas que emergem da noção de que indivíduos
compartilham identidades de grupos, Young articula o conceito de estrutura social que busca dar
uma explicação institucional sobre as origens da injustiça. Nas palavras de Young,

59
Estruturas denotam a confluência de regras institucionais, regras interativas, recursos e
estruturas físicas, que constituem os dados históricos em relação aos quais os indivíduos
agem e que são relativamente estáveis o longo do tempo. As estruturas também conotam os
resultados sociais mais amplos que resultam da confluência de ações individuais dentro de
determinadas relações institucionais cujas consequências coletivas geralmente não
carregam a marca da intenção de qualquer pessoa ou grupo (YOUNG, 2002, p. 419,
tradução nossa).

Young segue a distinção criada por Alexander Wendt de dois níveis de estrutura: micro e macro
(YOUNG, 2002, p. 420). Microestruturas referem-se a práticas e regras comuns que os agentes
implicitamente ou explicitamente seguem, bem como os recursos e instrumentos que mobilizam
em suas interações. Segundo Young, as estruturas de gênero são muito importantes nesse nível,
mas não suficientes, pois qualquer teoria social que deseje entender e criticar as restrições impostas
a indivíduos e grupos precisa ter um diagnóstico dos resultados sistêmicos e em larga escala das
operações de muitas instituições e práticas que subjugam e limitam algumas pessoas ao mesmo
tempo em que privilegiam outras. As estruturas do nível macro depende das do nível micro para
sua produção e reprodução.
Contudo, Young diz que “a sua forma e as formas como elas restringem e possibilitam
ações não podem ser reduzidas aos efeitos [micro] de interações específicas” (YOUNG, 2002, p.
420). São essas estruturas sociais que posicionam os indivíduos nas relações de trabalho e
produção, em relações de poder, subordinação, desejo, sexualidade, prestígio e status. Qualquer
indivíduo ocupa múltiplas posições estruturais, e essas posições se tornam diferentemente
marcantes, dependendo do contexto e da posição de outros estruturalmente. Em virtude disso,
Young diz que “a maneira como uma pessoa é posicionada em estruturas é uma função de como
as pessoas tratam-na em vários contextos institucionais, bem como da atitude que uma pessoa toma
consigo mesma” (YOUNG, 2002, p. 420). Para a autora, do ponto de vista da teoria crítica social,
a principal razão para ter atenção às estruturas é a descrição da constituição e das causas da
desigualdade social. Alguns indivíduos encontram restrições relativas à sua liberdade e bem-estar
material como efeito cumulativo das possibilidades de suas posições sociais, em comparação com
outros que têm mais opções ou acesso mais fácil a certos recursos. Portanto,

Grupos sociais definidos por classe, raça, idade, etnia e gênero nomeiam identidades
subjetivas menos do que eixos de desigualdade estrutural. Eles denominam posições
estruturais cujos ocupantes são privilegiados ou desfavorecidos em relação uns aos outros
devido à adesão dos atores às regras e normas institucionais e à busca de seus interesses e
objetivos nas instituições (YOUNG, 2002, p. 420)

60
O peso das desigualdades estruturais pode ser mais significativo na definição das restrições de vida
das pessoas do que qualquer identidade que elas venham possuir. Um relato estrutural, assim,
oferece uma maneira de entender a desigualdade de oportunidades e as relações de opressão e
dominação que não possuem causas pontuais e individuais, mas considera a maioria dos atores
cúmplices de sua produção, em maior ou menor grau.
A fim de desenvolver esse ponto, sobre o diagnóstico de formas estruturais de dominação,
Young cita Nancy Folbre, que elaborou o conceito de “estruturas de restrição” para se referir a
questões de opressão. Trata-se de pensar as restrições como o leque de opções disponíveis para os
indivíduos, que são restringidos por regras legais, bem como por normas culturais. Tais estruturas
impõem um preço à não conformidade. As escolhas são restringidas quando conflitam com outras
e, nesse sentido, “uma configuração de ativos, regras, normas e preferências específicas cria as
restrições que definem o que chamamos de grupos sociais com base em gênero, classe, raça, idade
e assim por diante” (YOUNG, 2002, p. 421).
É, nesse sentido, que Young enxerga a importância do conceito de gênero. Segundo ela,
“para descrever e explicar algumas das estruturas e processos que afetam oportunidades e
privilégios diferenciais na sociedade contemporânea, não podemos prescindir de um conceito de
gênero” (YOUNG, 2002, p. 421). Young desvincula o gênero da identidade, permitindo a
manutenção do conceito como uma ferramenta conceitual para descrever as regras e as práticas das
instituições que assumem papéis diferentes para homens e mulheres e/ou presumem que homens e
mulheres estão ligados entre si em suas relações. O conceito de gênero serve para entender porque
certos padrões na alocação de tarefas ou para o reconhecimento de status permanecem persistentes
de maneira a limitar as opções de muitas mulheres e da maioria das pessoas cujas escolhas sexuais
e íntimas desviam das normas heterossexuais. Segundo Young, devemos entender o conceito de
gênero como um conceito útil para teorizar estruturas, e não sujeitos (YOUNG, 2002, p. 422). Uma
vez reformulado como tal, não é necessário atribuir uma identidade de gênero única ou
compartilhada a homens e mulheres. Por essa razão, o conceito de gênero não precisa ser
abandonado pela teoria feminista.

3.3 Revisando a teoria: “gênero” e “mulheres” como serialidade

61
Enquanto em Justice and the Politics of Difference, Young se preocupa em conceitualizar
mulheres como um grupo social e define grupos sociais como um coletivo de pessoas que
compartilham um senso de identidade comum, a partir de uma afinidade entre suas experiências,
no ensaio “Gênero como serialidade: pensar as mulheres como um coletivo social” (2003),
publicado em 1994, Iris Young concorda com as críticas, intensificadas a partir dos anos 90, que
mostram como a procura de características comuns das mulheres ou de uma forma comum de
opressão, conduz a normalizações e a exclusões. Ao mesmo tempo, Young vê que há razões
pragmáticas para insistir na possibilidade de entender as mulheres como um coletivo (YOUNG,
2003, p. 113). Segundo a autora, a noção coletiva de mulher coloca um dilema à teoria feminista:
se, por um lado, a mulher não for em algum sentido um coletivo social, não haveria nada específico
para as políticas feministas; por outro lado, o esforço para identificar os atributos desse coletivo
parece minar as políticas feministas por deixar de fora quem deveria incluir (YOUNG, 2003, p.
114). Young, então, propõe como solução a reconceitualização da coletividade social ou do
significado de grupos sociais, a partir de um conceito sartreano de coletividade serial. Essa saída
lhe permite entender as mulheres como um coletivo social sem identificar atributos comuns a todas
elas que possam insinuar que elas compartilham uma identidade comum.
Primeiramente, Young retoma alguns dos argumentos que colocam em suspeição uma
categoria geral de mulheres. Os primeiros argumentos são de Elizabeth Spelman que propõe a
teorização do gênero como múltiplo e não binário, sugerindo que a identidade e os atributos de
gênero de uma mulher são diferentes de acordo com a raça, classe, religião, etc, a que ela pertence.
Segundo Young, essa abordagem traz uma vantagem de conseguir perceber que uma mulher pode
ter uma vantagem situacional em relação a um homem de uma classe econômica distinta. Assim,
Spelman sugere que para encontrar os atributos de gênero específicos da experiência da mulher
devemos restringir a comparação de homens e mulheres da mesma raça, classe e nacionalidade. De
acordo com essa abordagem, as mulheres não podem ser consideradas como um grupo, pois na
verdade há grupos múltiplos como os de “mulheres negras”, “mulheres brancas”, “mulheres
brasileiras”, cada qual com suas especificidades de gênero (YOUNG, 2003, p. 114).
De modo semelhante, Chandra Mohanty traz críticas a forma como o feminismo tem
tomado as mulheres como “um grupo coerente, previamente constituído, com interesses e desejos
idênticos, independentemente da localização ou das contradições de classe, étnicas ou radicais”
(YOUNG, 2003, p. 115). Quando aliado a uma ideia de opressão universal das mulheres, o
62
patriarcado, o discurso feminista se torna muito nocivo para mulheres não europeias e americanas,
pois simultaneamente cria uma ideia de “mulheres de terceiro mundo” como a Outra para as
feministas ocidentais. Sendo frequentemente caracterizadas pelas feministas ocidentais como
“vítimas impotentes do patriarcado” (YOUNG, 2003, p. 115). Ao invés disso, as feministas
deveriam analisar as mulheres dentro de recortes espaciais e temporais.
Segundo Young, tais análises identificam o modo como formas essencialistas dominam o
discurso feminista. Ao mesmo tempo, elas nos permitem tirar lições importantes para qualquer
teorização futura que busque evitar a exclusão de mulheres ou o congelamento de relações
contingentes sob o pressuposto de uma falsa complementaridade entre sexo e gênero. Entretanto,
Young enxerga como bastante redutora a orientação exclusivamente crítica desses argumentos. À
luz dessas críticas, Young pergunta: “que tipo de reivindicações podem as feministas fazer acerca
da forma como é, e deve ser, a vida social?” (YOUNG, 2003, p. 117). Tal questão, para ela, embora
fundamental para o feminismo, tem sido negligenciada pelas abordagens desconstrutivas do
gênero.
Para Young (YOUNG, 2003, p. 117), o que está por trás de todas construções discursivas
essencialistas é um impulso teórico, dado que a teoria pretende ser um discurso globalizante,
explicar as relações sociais como um todo. No feminismo, ideias de conceptualização das mulheres
e do gênero surgiram da necessidade de se contrapor ao marxismo, desenvolver uma teoria que
tivesse o gênero e o sexo com o mesmo peso teórico que a classe. Entretanto, o feminismo não
necessita de uma teoria nesses moldes, apesar dos esforços de décadas para desenvolvê-la. Isso
porque, para a autora, deveríamos adotar uma orientação mais pragmática para o discurso
intelectual, uma teorização que se centra em “ser capaz de categorizar, explicar e desenvolver
argumentos a problemas políticos específicos, estando o propósito desta atividade teórica
claramente relacionado com esses problemas” (YOUNG, 2003, p. 118). Essa teorização não é
menos complexa, apenas procura se desenvolver a partir de um problema prático fundamental, sem
se preocupar em oferecer uma análise do todo. Dessa maneira, Young conceitua o dilema da
categoria de “mulher” como um problema pragmático que procurará solucionar, articulando
conceitos sem esperar desenvolver uma teoria social completa.
A primeira questão que Young coloca, sob esse ponto de vista pragmático, consiste em
refletir sobre por que é importante saber conceitualizar ou não as mulheres enquanto grupo. Uma
das primeiras vantagens vistas por Young ao conceitualizar mulheres como grupo é se contrapor
63
ao individualismo liberal. Esse discurso nega a realidade de grupos, pois considera opressivo e
injusto categorizar as pessoas em grupos por raça, gênero, religião e sexualidade, admitindo que
essas categorias digam algo sobre o que a pessoa é. Ao invés disso, o individualismo liberal sugere
que deveríamos tratar as pessoas como indivíduos, variáveis e únicos. Para a autora, essa ideologia
obscurece a opressão, na medida em que não se pode conceitualizar de algum modo as mulheres
como grupo, não é possível conceitualizar a opressão como um processo sistemático, estrutural e
institucional. A consequência é reduzir as opressões ao indivíduo: ou culpar as vítimas ou atribuir
aos outros a culpa de por algum motivo não “gostarem” dessas pessoas. Em ambos os casos, as
formas estruturais e políticas de abordar essa desvantagem ficam fora do discurso (YOUNG, 2003,
p. 118).
Além disso, a autora afirma que a tentativa de nomear as mulheres como um coletivo social
é justamente o que dá a especificidade ao feminismo enquanto movimento político (YOUNG,
2003, p. 118). Raramente se duvida da possibilidade de conceitualizar grupos étnicos, justamente
porque a sua própria existência social envolve regras, normas, tradições comuns. No entanto, as
mulheres estão dispersas entre grupos. No funcionamento das relações de parentesco, as mulheres
são colocadas sob a identidade dos homens em cada um dos grupos. Nesse sentido, as opressões
que as mulheres sofrem dificilmente podem ser pensadas sem uma noção estrutural das mulheres
enquanto posicionamento social (YOUNG, 2003, p. 119). Pois a resistência a essas opressões
começa com a afirmação das mulheres como um grupo, para que deixem de estar divididas e de
acreditar que os seus sofrimentos são individuais ou naturais. Portanto, para Young, “negar a
realidade de um coletivo social mulheres reforça o privilégio daqueles que mais se beneficiam
mantendo as mulheres divididas” (YOUNG, 2003, p. 119).
Segundo Young, sem a concepção de mulheres como coletivo social, a política feminista
perde sua consistência. A política radical poderia até continuar existindo, se pensada em termos de
justiça social para todos os seres humanos, entre os quais aqueles a que chamamos de mulheres.
Mas, o pressuposto de que o feminismo expressa uma política específica ou distinta só se mantém
com uma conceituação de mulheres e do gênero como estruturas sociais (YOUNG, 2003, p. 119).
Resta então pensar as saídas para o dilema da exclusão do feminismo que mantenha conceituações
de mulheres em termos estruturais. Young analisa duas propostas a fim de apontar suas vantagens
e limitações. A primeira é a dos gêneros múltiplos dada por Spelman. Young vê que essa
conceitualização de gêneros como múltiplos e não binários pode resolver os problemas em relação
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ao binarismo e a heterossexualidade normativa. De acordo com essa abordagem de gênero
múltiplos, a identidade de gênero das lésbicas, por exemplo, pode ser conceptualizada como
diferente da das mulheres heterossexuais. Contudo, Young nota que essa estratégia também implica
alguns riscos. O primeiro problema na abordagem de Spelman é assumir que as relações de gênero
podem ser restritas e estruturadas no seio de uma classe, raça ou nacionalidade. Quando, na
verdade, muito da experiência de gênero é condicionada pela relação das mulheres da classe
trabalhadora não apenas com homens da mesma classe, mas com homens de classe média ou da
classe dominante (YOUNG, 2003, p. 119).
Um outro problema é que essa estratégia pode acabar multiplicando as categorias e
obscurecendo a maneira como se cruzam não de formas separadas, mas de formas conjuntas. Em
suas palavras, “a ideia de géneros múltiplos pressupõe uma estabilidade e uma unidade em relação
às categorias de raça, classe, religião, etnia etc, que dividem as mulheres” (YOUNG, 2003, p. 120).
A fim de conceitualizar a “mulher indo-americana”, por exemplo, temos que implicitamente
entender as noções “indo-americana” ou “branca” como categorias estáveis e separadas, levando a
um retrocesso infinito que dissolve os grupos em indivíduos. Da mesma maneira, mulheres negras
seriam “americanas, haitianas, jamaicanas, africanas, nortenhas, sulistas, pobres, de classe
operária, lésbicas ou idosas” (YOUNG, 2003, p. 121), sendo que cada uma dessas divisões poderia
ser considerada importante para a identidade de gênero de uma mulher em particular. E mais
divisões arbitrárias poderiam ser somadas levando mais confusão do que esclarecimento do que é
uma mulher. Young conclui agora que a estratégia dos gêneros múltiplos não consegue dar uma
resposta satisfatória ao dilema da identidade no feminismo e parte para a análise de uma outra
alternativa. A segunda alternativa é dada pelas feministas que propõem a política da identidade
como resposta à crítica da conceituação das mulheres como grupo que essencializa o gênero. Para
autoras como Diana Fuss e Nancy Caraway, a identidade “mulher” que une mulheres em um grupo
não é um dado social ou natural, mas “uma construção fluída do movimento político feminista”
(YOUNG, 2003, p. 122). Desse modo, não há atributos que as mulheres têm em comum no sentido
substancial, mas a própria política feminista cria uma identidade a partir de uma aliança entre
diversas mulheres de várias partes do mundo.
Young nota algumas vantagens dessa estratégia: reconhece corretamente que a percepção
de uma identidade comum entre pessoas é um produto de um processo social e político que as reúne
em torno de um propósito, mas não evita os perigos da normalização apontados por Judith Butler,
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por exemplo. Segundo Butler, a política feminista que produz uma aliança de mulheres que se
identificam mutuamente privilegia algumas normas ou experiências em detrimento de outras
(YOUNG, 2003, p. 122). Além disso, a objeção de Young é que tomar as mulheres como um grupo
apenas enquanto construção torna a política feminista arbitrária, na medida em que obscurece as
razões, os motivos pelos quais as mulheres necessitaram formar um grupo. E, mais importante, ela
restringe “mulheres” a quem participa da aliança política, mas o feminismo não deveria se referir
às mulheres que também não se identificam como feministas?
Para Young, esses problemas revelam a necessidade de uma concepção de mulheres como
grupo designando um certo conjunto de relações e posições no qual a política feminista se baseia.
Sua proposta parte do conceito de serialidade que Sartre desenvolve na Crítica da Razão Dialética.
Segundo Young, o gênero se refere a uma série social, um tipo específico de coletividade social
que Sartre distingue de grupos. Essa estratégia tem vantagens como as de equacionar as mulheres
enquanto coletivo social sem ser necessário que todas as mulheres tenham atributos comuns ou
uma situação comum. Como consequência, “o gênero como serialidade não se baseia em identidade
ou na autoidentidade para a compreensão da produção e do significado social de ser membro de
um coletivo” (YOUNG, 2003, p. 123).
Segundo Young (2003, p. 124), na Crítica da Razão Dialética, Sartre diz que um grupo é
uma coleção de pessoas que se reconhecem a si mesmas e aos outros na medida que estabelecem
uma relação unificada entre elas. Os membros do grupo se reconhecem mutuamente e juntos
endossam um projeto comum, de modo que estão unidos pela ação que imprimem em conjunto.
Cada pessoa assume para si o projeto comum como um projeto individual. O projeto do grupo só
é um projeto coletivo, na medida em que os membros compartilham mutuamente que o projeto só
pode se realizar, ou pelo menos da melhor forma, se levado em conjunto. Assim, um grupo refere-
se a um coletivo consciente do seu reconhecimento mútuo e do seu propósito. Tais grupos emergem
de (bem como podem retroceder a) uma unidade coletiva não consciente e menos organizada,
chamada de série.
Segundo Young, “nas séries, os membros estão passivamente unidos pelos objetos para os
quais suas ações são orientadas ou pelos resultados objetivados dos efeitos materiais das ações dos
outros” (YOUNG, 2003, p. 125). A unidade da série é dada, então, pela forma como os indivíduos
perseguem seus próprios objetivos pessoais em relação aos objetos condicionados pelo ambiente
material que se encontram inseridos e também em resposta a estruturas que foram criadas
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coletivamente e não intencionalmente por meio de ações passadas. Um exemplo de série é o
coletivo dos ouvintes de rádio. Os ouvintes que compõe o coletivo dos ouvintes de rádio estão
isolados, mas não estão sozinhos. Eles têm consciência que fazem parte de uma série de ouvintes
de rádio, de outros ouvintes simultâneos e que estão indiretamente ligados a eles através da
transmissão de rádio. A experiência de ouvir rádio é parcialmente condicionada pela consciência
de estar ligado a outros de quem se está separado e para quem se é o outro. Frequentemente, o
locutor refere-se explicitamente a um “eu” serializado dos ouvintes (YOUNG, 2003, p. 126).
Para Young, a realidade de uma série é prático-inerte. Isto é, a série é estruturada por ações
ligadas a objetos prático-inertes. Práticos, pois, resultam da ação humana, inertes pois são
resistentes à ação. Os membros da série se sentem impotentes para alterar o meio material e
compreendem os outros na mesma situação. Além disso, ser membro desse coletivo serial define
de uma maneira volátil a existência individual, mas essa definição é anônima e a unidade é amorfa,
sem limites, atributos ou intenções determinadas. Não existe um conjunto específico de atributos
que forma condições suficientes para ser membro de uma série. Nesse sentido, Young afirma que
“ser membro de uma série, embora delimite e constranja as ações possíveis de um indivíduo, não
define a identidade da pessoa no que diz respeito à formação de propósitos e projetos individuais,
bem como a noção de si mesmo em relação aos outros” (YOUNG, 2003, p. 127).
Para Sartre, o propósito da serialidade era descrever o significado de uma classe social sem
reducionismo. Ser membro de uma classe operária ou capitalista significaria viver em série com
outras pessoas dessa classe, “através de um conjunto complexo e encadeado de objetos, estruturas,
práticas relativas ao trabalho, interação e consumo” (YOUNG, 2003, p. 127). A existência da classe
não define a identidade de ninguém, apenas designa uma facticidade social dada as condições
materiais da vida às quais a pessoa está sujeita. Quando se diz com orgulho que se pertence a uma
classe, a existência não é mais vivenciada no nível da série e sim no nível de grupo. Young define
série resumidamente como,

Uma série é um coletivo cujos membros estão passivamente unificados pela relação que as
suas ações têm com os objetos materiais e suas histórias prático-inertes. O meio prático-
inerte, em cujas estruturas, e através das quais, os indivíduos realizam os seus objetivos é
sentido como constrangimento relativamente aos modos e limites de ação. Dizer que
alguém faz parte da mesma série não significa necessariamente que esse alguém se
identifique com um conjunto de atributos comuns a todos os membros, porque seu estatuto
de membro é definido não por alguma coisa que as pessoas são, mas, antes pelo fato de,
suas existências e ações diversas, estarem ordenadas em torno dos mesmos objetos ou
estruturas prático-inertes. Ser membro de uma série não define a identidade da pessoa. Cada
membro da série está isolado, é Outro para os outros e, enquanto membro da série, é Outro
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além de si próprio. Finalmente, não há um conceito de série no que se refere a atributos que
claramente demarquem o que nos indivíduos os faz pertencer a uma determinada série. A
série é uma unidade esbatida e variável, um coletivo amorfo (YOUNG, 2003, p. 128).

Nesse sentido, a serialidade refere-se a um nível irrefletido da vida social, da reprodução


dos hábitos e das estruturas históricas e sociais. Grupos emergem das séries, enquanto reação a ela
e “como reverso ativo das suas condições de anonimato e isolamento” (YOUNG, 2003, p. 128).
Segundo Young, quando pensamos no coletivo social mulheres, enquanto série, “mulher é o nome
de uma relação estrutural com objetos materiais tal como foram produzidos e organizados por uma
história anterior, que conserva as necessidades materiais de práticas do passado” (YOUNG, 2003,
p. 129). Entretanto, a série mulheres não é tão simples como séries tais como a de ouvintes de rádio.
O gênero, tal como a classe, é um conjunto de estruturas e objetos bastantes complexos, vastos e
multidimensionais, com várias camadas que se sobrepõem.
Segundo Young, “os corpos femininos, papéis sociais, objetos materiais, pronomes,
representações visuais, artefatos e espaços etc, constituem os objetos das realidades prático inertes
que constroem o gênero” (YOUNG, 2003, p. 129). Tais objetos sociais não são meramente físicos,
mas são também produzidos por práticas do passado. Na estrutura do corpo social que define as
práticas corporais das mulheres encontra-se a heterossexualidade forçada, por exemplo. Segundo
Young, “os pressupostos e as práticas da heterossexualidade definem o significado dos corpos -
vaginas, clitóris, pênis - não como meros objetos físicos, mas como prático-inertes (YOUNG, 2003,
p. 129). Para a autora, geralmente o que estrutura a relação definida pelo gênero destes objetos é a
divisão sexual do trabalho. Apesar de seu conteúdo variar em cada sociedade, a divisão de algumas
atividades de acordo com o sexo está presente em grande parte das sociedades. A divisão entre
“cuidado” e “trabalho” é a mais comum e é sob a qual muitas outras divisões se baseiam (YOUNG,
2003, p. 130). Quando a divisão aparece em uma sociedade ela constitui uma série de objetos
prático-inertes que constituem as séries marcadas pelo gênero, já que muitas atividades sociais
pressupõem um certo sexo. Segundo Young, “a linguagem, os gestos, os rituais de exclusão, ou
inclusão de pessoas reproduzem as divisões ao atrair ou repelir certas pessoas de certas atividades”
(YOUNG, 2003, p. 130).
Em “Lived Body vs Gender: Reflections on Social Structure and Subjectivity” (2002),
Young diz que a divisão do trabalho descreve principalmente as sociedades industriais ocidentais,
mas serve também para descrever, no nível de generalidade categórica, estruturas semelhantes em
outros países. Isso porque a descrição estrutural da divisão sexual do trabalho, não supõe que essa
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divisão tenha exatamente o mesmo conteúdo nas diferentes sociedades, pois é apenas um arcabouço
teórico que serve para perguntar “se existem tarefas e ocupações geralmente executadas por
membros de um sexo ou de outro e/ou se tendem a representar determinadas tarefas ou ocupações
como exclusivas de um sexo ou de outro” (YOUNG, 2002, p. 423).
Em geral, a visão de Young é a de que, para qualquer sociedade, hoje e no passado, a
resposta é sim. No entanto, há diferenças entre sociedades, no que diz respeito a quais ocupações
estão associadas ao sexo, quais as ideologias são usadas para legitimá-las, quantas tarefas são
atribuídas a cada sexo, bem como quais as implicações que a divisão sexual do trabalho tem para
a esfera social e material dessa sociedade. Adicionalmente, a heterossexualidade normativa
também atua como um eixo de estruturação do gênero. Essa estruturação consiste em diversos fatos
institucionais e ideológicos que privilegiam relações heterossexuais. Em suas palavras,

Isso inclui a forma e as implicações de muitas instituições jurídicas, regras e políticas de


organizações privadas na alocação de cargos e benefícios, a estruturação da educação e da
mídia convencional para concordar com essas instituições, bem como as suposições que
muitas pessoas fazem em suas interações cotidianas com outras. Juntos, esses fatos sociais
formam estruturas com consequências diferenciadas na vida de diferentes homens e
mulheres, e que às vezes produzem sofrimento grave ou limitações injustas à liberdade
(YOUNG, 2002, p. 424).

Young afirma ainda que esse sistema de heterossexualidade normativa restringe


significativamente a vida de homens e mulheres, que possuem inclinações sexuais e desejos muito
diversos e variáveis, resultando em um adequamento aos padrões heterossexuais, a fim de que não
sejam prejudicados. Nesse sentido, as hierarquias de poder de gênero se cruzam com uma divisão
sexual do trabalho e uma heterossexualidade normativa e atuam, de várias maneiras, para reduzir
estruturas de gênero variáveis a um princípio comum (YOUNG, 2002, p. 425). O resultado é a
existência de estruturas de opressão de gênero com particularidades específicas e, muitas vezes,
intercruzadas, que posicionam mulheres, gays, lésbicas etc.
Certas regras, relações e circunstâncias materiais delimitadas pela heterossexualidade
forçada e pela divisão sexual do trabalho produzem privilégios para algumas pessoas, ao mesmo
tempo limitam as opções de outras, causando privações em suas vidas, ou torna-os vulneráveis a
dominação e exploração (YOUNG, 2002, p. 425). Essas estruturas permitem ou restringem a ação
das pessoas, mas não as determinam ou definem. Por isso, a série “mulheres” não designa a
identidade de uma pessoa que possa se ligar a essa série. As pessoas se movem e agem em relação
a objetos práticos-inertes que as posicionam como mulheres. Dessa maneira, as estruturas de
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gênero são fatos sociais materiais com os quais cada indivíduo deve lidar e se relacionar.
Para Young, o gênero como série é um pano de fundo para a identidade pessoal da mulher
ou de um grupo e não algo que constitui a mulher. A posição das mulheres em cada uma das séries
significa que elas diferem em experiências e percepções de outras [séries] que estejam situadas de
modo diferente. Além disso, a mesma pessoa consegue se relacionar de modo distinto com “suas”
séries em contextos sociais diferentes e em diferentes momentos da vida. Como afirma Young,
“alguma pessoa pode escolher não tornar importante para o seu sentido de identidade qualquer uma
das séries de que é membro, ou pode desenvolver uma consciência de si própria e de afiliação a
um grupo que faça com que diferentes estruturas sociais, em diferentes aspectos e circunstâncias,
se tornem importantes e notórias” (YOUNG, 2003, p. 133). Para a autora, pensar o gênero como
serialidade elimina o problema do essencialismo e de definir a identidade a partir do que significa
ser mulher, na teoria feminista. Isso porque conceitualizar o gênero como série não significa
identificar atributos específicos compartilhados entre as mulheres. Como afirma ela,

(…) isso significa que a série não é um conceito, pois sua unidade é indistinta, volátil. Há
uma unidade na série “mulheres”, mas é uma unidade passiva; não é aquela que emerge das
pessoas chamadas mulheres, mas sim a que as posiciona através da organização material
das relações sociais, tal como são permitidas e restringidas pelas relações estruturais que
chamei de heterossexualidade forçada e de divisão sexual do trabalho (YOUNG, 2003, p.
134).

Dessa forma, para a autora, o fato de uma pessoa ser uma mulher pode “prever” alguns
constrangimentos e expectativas que ela pode enfrentar na vida, mas não prevê nada em particular
sobre o que ela é ou o que ela faz/pensa. Assim, a série “desliga o gênero da sua relação com a
identidade” (YOUNG, 2003, p. 135). Isso significa que a identidade de cada pessoa é exclusiva,
nenhuma identidade individual de uma mulher escapa da marca de gênero, mas a forma como
gênero marca sua vida é única. Quando o gênero é série, as mulheres não precisam ter nada em
comum em suas vidas individuais para serem serializadas como mulheres. Segundo Young (2003,
p. 136), esse é o nível mais irrefletido e universal do que é ser mulher. Por outro lado, as mulheres
também formam grupos a partir das suas existências seriais, isto é, coletivos autoconscientes que
mutuamente se reconhecem entre si como tendo propósitos comuns ou experiências partilhadas.
Nesse sentido, as séries são sempre parciais aos grupos. Os grupos são mais do que
simplesmente mulheres, eles geralmente são especificados social, histórica e culturalmente. Isto é,
pode haver grupos de mulheres que são feministas, que reivindicam outras coisas ou até mesmo

70
sejam anti-feministas. Para Young, “o feminismo é um impulso reflexivo particular de mulheres
que formam um grupo – mulheres que se agrupam enquanto mulheres para mudar ou eliminar as
estruturas que as serializam como mulheres” (YOUNG, 2003, p. 137). A política e a teoria
feminista referem-se ou apontam para a realidade serial das mulheres, essa realidade serial abarca
todas mulheres que existem e já existiram (YOUNG, 2003, p. 136). Mas, o feminismo não pode
ser um agrupamento de mulheres, há muitos feminismos, muitos agrupamentos de mulheres cujo
propósito é o de politizar o gênero e mudar as relações de poder entre homens e mulheres. Para
Young, quando mulheres se unem, a condição de mulheres não é a única coisa que as aproxima,
outros elementos concretos como classe, raça, nacionalidade estão na base dessas afinidades. Dessa
maneira, Young vê que as políticas feministas devem ser políticas de aliança, visto que uma série
enquanto processo e unidade volátil, não é uma totalidade. Por este motivo, para ela, o feminismo
tenderá a ser sempre múltiplo e impossível de ser totalizado.
A reflexão de Young aponta os limites de uma estratégia desconstrutiva dos gêneros sem
ignorar os problemas que a tornam importante. É, tendo-os em vista que Young busca reconfigurar
o conceito de gênero e de mulher em termos que nada dizem sobre a subjetividade e a identidade.
Como resultado, sua abordagem pontua que as mulheres podem formar grupos e afirmar
identidades, mas esse processo nunca se refere à totalidade das mulheres que existem. Apesar disso,
é possível e desejável conhecer as estruturas de opressão que as mulheres compartilham que não
definem sua identidade, mas sim seu posicionamento social. Essa disposição teórica requer a
categoria de gênero. Nesse sentido, Young resolve o paradoxo da exclusão no feminismo
resguardando ao feminismo sua especificidade política, isto é, falar majoritariamente das mulheres
ou sobre as mulheres sem, para isso, ditar o que são mulheres.

71
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi analisar as teorias de Judith Butler e Iris Young sobre
identidade e gênero a partir dos termos em que foram debatidos no contexto dos anos 90. Ambas
as autoras desenvolveram respostas e estratégias para o problema do essencialismo de gênero e
identidades, amplamente denunciado por promover exclusão dentro do feminismo. Butler inicia
Problemas de Gênero com essas denúncias, com o objetivo de mostrar como a representação das
mulheres pressupunha uma noção de política que produzia sujeitos em conformidade com os eixos
de dominação, isto é, presumivelmente masculinos. Assim, o feminismo estaria reivindicando uma
representação política que distorceria a categoria “mulheres”, produzindo inevitavelmente
exclusão. Todavia, Butler vai além, ao duvidar da própria categoria e da pressuposição de que as
mulheres compartilhavam uma identidade comum universalmente reconhecida. Para Butler, essa
ideia depende exclusivamente de uma estrutura binária feminino/masculino para que possa ter
sentido, estrutura que a autora não demora a criticar.
Em primeiro momento, a partir dos trabalhos de Simone de Beauvoir e Gayle Rubin,
mostramos como a categoria de gênero foi sendo delineada para significar a situação que as
mulheres ocupam na sociedade, os papéis sociais que são atribuídas a elas sendo, como Rubin
afirma posteriormente, construções culturais colocadas sob a distinção biológica do sexo. Assim,
com Rubin, temos expressivamente a consolidação de uma dicotomia entre sexo e gênero, utilizada
muitas vezes para questionar a ideia de que as mulheres são oprimidas em virtude de seu sexo,
sendo o gênero apenas uma expressão deste. Tanto para Beauvoir, quanto para Rubin, o significado
que os gêneros ganham em sociedade dependem de relações específicas e historicamente
contingentes. Dessa maneira, o sexo não consegue explicar a condição de opressão das mulheres.
Judith Butler, por sua vez, retoma o trabalho de ambas para alargar o status de “socialmente
construído” dos termos deste debate. Ainda que a dicotomia sexo/gênero tenha sido muito útil à
análise feminista, Butler afirma que tradicionalmente se manteve um binarismo injustificado entre
eles. Se os gêneros são significados assumidos pelo corpo sexuado, nada impediria a existência de
múltiplos gêneros, de forma que não necessariamente uma “fêmea” precisaria ser do gênero
feminino. Implícito nessa estrutura binária está a ideia de uma mimesis entre gênero e sexo, em
que o gênero é a repetição do sexo, o que não foi percebido pelas autoras em questão. Outra
consequência não prevista, apontada por Butler, é que o questionamento do binarismo
72
feminino/masculino leva a uma contestação da unidade presente na categoria “mulheres”. Afinal,
dada a descontinuidade entre os termos, abrem-se diferentes possibilidades de configuração dos
gêneros, sendo possível que uma “fêmea” tenha um gênero masculino, por exemplo.
Para Butler, a insistência nessa mimesis entre sexo e gênero sinaliza uma das formas pelas
quais as estruturas de poder contemporâneas mantêm sua sustentação. Se o sexo é considerando
anterior à cultura, isso impede uma investigação crítica deste, revelando que, em verdade, o sexo
sempre foi gênero. Segundo Butler, as categorias de sexo e gênero são efeitos e não causas de
práticas, discursos, instituições que possuem pontos de origens difusos. Nesse sentido, a própria
distinção entre os sexos biológicos é cultural. As configurações de gênero que destoam das
tradicionais, muitas vezes são ocultadas e reescritas pelas normas reguladoras, ocasionando
sofrimento para as pessoas que as detêm, porque muitas vezes a lei impõe proibições, como no
caso das “práticas homossexuais”.
Essas configurações, ao mesmo tempo, operam um deslocamento e denúncia dessas
normas, contestando a base fictícia sob a qual os gêneros tradicionais se sustentam. Por essas
razões, para Butler, não basta que o feminismo almeje maior participação das mulheres na
linguagem e na política. É necessário questionar a própria noção de política, que se ancora em
termos estáveis e coerentes que escondem e ocultam o modo como as estruturas de poder que as
sustentam operam negações e exclusões. Assim, para a autora, o feminismo precisa repensar a
ontologia que sustenta a afirmação da sua identidade política. A conclusão é que mesmo quando
utilizada com boas intenções, a categoria “mulher” como sujeito do feminismo promove uma
regulação inconsciente das relações de gênero.
É nesse sentido que, para Butler, os sujeitos (que almejamos emancipar) são eles próprios
produtos de relações de poder sustentadas por sistemas reguladores que tornam algumas
identidades inteligíveis às custas de outras. Por essa razão, a autora afirma que as formas como
usamos as categorias “mulheres” e “homens” nunca serão inocentes, mas parte de como as
possibilidades e vulnerabilidades são distribuídas no mundo. Porém, isso não significa dizer, como
pareceu a alguns críticos, que as identidades não possuem mecanismos de inversão e deslocamento
de seus objetivos originários. Isto é, embora os sujeitos sejam produzidos pelo poder, eles não são
determinados por ele. Ser determinado é carecer de agência. É ser programado para se comportar
de uma maneira particular, sem espaço para improvisação ou qualquer mudança. Butler não
procura contestar a heteronormatividade exigindo direitos do Estado para as minorias excluídas,
73
nem defende uma derrubada do atual sistema de gênero e a inauguração de uma outra alternativa
em seu lugar. Ainda que não negue a necessidade pragmática do uso de recursos legais a favor das
minorias, para ela, uma política radical precisa ser uma política que possibilite a contestação das
normas de gênero. A política de gênero performativa localiza a agência como possível apenas
dentro das normas de gênero estabelecidas.
A agência, como Butler a apresenta, está intimamente ligada à significação. A significação,
segundo ela, refere-se ao processo que estabelece os termos de inteligibilidade ou significado.
Significação é, portanto, uma prática. Além disso, é uma prática baseada na repetição. É
precisamente a repetição de atos, gestos e discursos que produz o efeito de uma identidade no
momento da ação. Agência, para Butler, pode ser pensada, então, como um efeito de significação
e ressignificação. A possibilidade de produzir domínios alternativos de inteligibilidade cultural, em
particular, domínios não heteronormativos, repousa nessa necessidade de repetição e no potencial
de repetir de forma diferente. De fato, para Butler, é apenas dentro das práticas de repetição que
uma subversão da identidade se torna possível. (2014, p. 255).
Todavia suas sugestões para a formulação de uma nova política feminista ancorada na
crítica e desestabilização dos gêneros, não agradaram aqueles que se preocupavam com as
consequências políticas da perda de um sentido coletivo e coerente de “mulheres”. Uma das
alternativas foi, a partir das suas críticas, desenvolver formas novas de operar as categorias de
análise tradicionais, com o objetivo de superar as acusações de essencialismo e exclusão no uso
dessas categorias. Em certo sentido, é o que parece ter feito Young, embora a autora considerasse
que a abordagem de Butler era deficiente em alguns aspectos fundamentais para o feminismo.
Young aponta pelo menos dois problemas com a crítica pós-estruturalista, como a de Butler,
às categorias tradicionais do feminismo. Ambos decorrem de sua insistência de pensar as
coletividades sob o argumento da exclusão e opressão presente no processo de sua constituição.
Para Young categorias como gênero, raça, etnia e sexualidade são mais bem entendidas não como
identidades, mas como estruturas sociais que posicionam os indivíduos em situações de vantagem
e desvantagem social. Segundo a autora, muitas vezes, o peso das desigualdades estruturais é mais
significativo na vida de uma pessoa que as identidades que elas venham possuir. Há grupos em que
a opressão decorre de uma série de restrições cumulativas das posições sociais que ocupam.
Por essa razão não há como abrir mão de categorias coletivas de análise social, porque elas
permitem uma descrição não apenas da subjetividade e experiência individual, mas também das
74
estruturas sociais, suas causas e processos de formação. Para a autora, o conceito de gênero serve
a esse propósito. Isso, no entanto, não quer dizer que Young discorde de Butler no que diz respeito
à sua crítica às identidades e às estabilidades das categorias sexo/gênero. Ao que parece, ao
concordar com Butler que o conceito de gênero não é mais adequado para teorizar a subjetividade,
Young propõe uma revisão de sua teoria, dando ao gênero uma função diversa. Com a redefinição
da função da categoria de gênero, cuja ênfase passa a ser as estruturas de dominação de gênero e
não a identidade, Young nega que ela seja capaz de explicar a subjetividade das pessoas e não mais
pensa a categoria de “mulher” como grupo, e sim como serialidade.
O gênero como serialidade não serve para teorizar sujeitos e sim estruturas. Não se trata
mais de falar sobre o que são as mulheres, mas falar das condições sociais em que elas agem.
Embora as experiências de gênero vividas pelas mulheres sejam diferentes em diversos locais do
mundo, para Young, no fundo, possuem uma certa coerência interna que, quando identificada,
merece ser pensada como um todo diferenciado. Essa “fina” semelhança entre as mulheres, implica
não uma identidade como Young é taxativa em dizer, mas uma base comum. As ações e
experiências das pessoas não são pré-determinadas ou redutíveis ao lugar que se encontram
posicionadas.
Ao fazer isso, Young nos dá ferramentas frutíferas para o enfrentamento da questão do
essencialismo do feminismo. Sua posição se encontra no meio termo entre a ideia de que o
essencialismo é descritivamente falso e a ideia de que as mulheres são um tipo de grupo social não
unificado. Todavia, como demais abordagens estruturalistas, o gênero como serialidade está sujeito
a dois riscos: o de pressupor os efeitos que as estruturas deveriam explicar e o de deixar investigar
a historicidade dessas estruturas. Butler, por sua vez, mostra a importância dessa última na forma
como utiliza a genealogia para historicizar as categorias de sexo e gênero, explicitando que sexo é
gênero desde o início. A especulação de Young sobre a aplicabilidade da série “mulheres” a “todos
os seres humanos femininos do mundo e também os do passado” parece ir no sentido oposto,
colocando um peso normativo não necessário à sua abordagem teórica e abrindo espaço novamente
para uma acusação de essencialismo.
Ao denunciar os mecanismos pelos quais as normas se utilizam para se estabelecerem,
Butler mostra que os processos de ontologização podem ser opressivos e muitas vezes se escondem
através de uma aceitação reiterada de pressupostos naturalizados pelo teórico. Dessa forma, a
investigação crítica das categorias também se torna indispensável como uma maneira de combater
75
normalizações e exclusões dentro do feminismo (mas não só). Em que pese, esta dissertação,
circunscrever sua análise ao contexto em que Problemas de Gênero foi escrito, uma breve análise
dos trabalhos posteriores de Butler11, apontam na direção de que a teoria não é suficientemente
transformadora da realidade, sendo necessário a adição de ações nos níveis sociais, políticos e
econômicos. Ressalta-se, por conseguinte, a importância de manter uma forma de falar
coletivamente de “mulheres” para a política feminista, sem que isso implique em reificar seu
significado e naturalizar o seu referente. A categoria “mulher” deve ser permanentemente aberta a
questionamentos, tornando-se local de trabalho coletivo, campo de construção e disputa contínua.

11
Ver Prefácio (1999) de reedição de Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, bem como o
capítulo “The question of social transformation” de Undoing Gender (2004).
76
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