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Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida.
(Conceição Evaristo, 2020, p.35)
Aventurar-se em propostas não usuais, no meio acadêmico, pode ser mais árduo
do que a premissa científica ostenta, ou seja, o suposto acolhimento para inovações tem
cor, gênero, sexualidade, região, entre outros marcadores sociais. Ao investigarmos as
raízes desse cenário, observamos que, para determinados corpos, há um longo caminho,
com diversos obstáculos para ingressar, permanecer, concluir e existir em ambientes
universitários, como sujeitos e não objetos (KILOMBA, 2019).
Este trabalho nasce de uma pesquisa cujo método da escrevivência, conceito
criado pela intelectual brasileira negra Conceição Evaristo, contribui para apresentar as
vivências, durante a graduação, da primeira autora do artigo. Partimos da inspiração
encontrada nas contribuições intelectuais de mulheres negras e seus enfrentamentos ao
racismo institucional, às disparidades de gênero, à colonialidade, portanto, às
desigualdades sociais. Escritoras negras que desafiam os dispositivos estruturantes de
uma sociedade fundamentada na exclusão de tantas pessoas em favor do exibicionismo
meritocrático de outras.
A monografia intitulada “Escrevivências de uma estudante negra de Ciências
Sociais” foi apresentada, em 2021, como parte do requisito obrigatório para a conclusão
do curso de Bacharel em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Nesse sentido, a trajetória da primeira autora deste texto, na primeira etapa de
sua vida acadêmica, como estudante negra, conduz as reflexões a seguir, intencionando
desnaturalizar não apenas os temas que movem uma investigação, mas partir de
questionamentos sobre quem pesquisa.
Ao exibir determinadas filiações teóricas, buscamos outras narrativas que também
articulam um pensamento social crítico e fundamentado em propostas com
responsabilidade metodológica. Perspectiva cujo objetivo central consiste em
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O conceito de “pacto narcísico da branquitude”, trabalhado por Maria Aparecida Silva Bento,
será aprofundado nos próximos segmentos.
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Muitas argumentações se firmaram a partir do termo “sociológico”, por utilizar, majoritariamente,
referenciais dessa área. Compreendemos, contudo, que as elaborações dispostas neste trabalho têm como
objetivo alcançar não apenas a área da Sociologia, mas a das Ciências Humanas e Sociais. Os assuntos
tratados na pesquisa são de ordem interdisciplinar e essa escolha pela denominação não se pretende
restritiva, mas pontual.
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Entrevista com a autora disponível em: https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-tambem-e-nosso/
Acesso em: 10. set. 2021.
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Tomamos a liberdade para escrever na primeira pessoa do plural e, em outros momentos, na
primeira pessoa do singular, quando especificamos acontecimentos particulares de determinadas
experiências do processo formativo.
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mais eram do que pano de fundo para a branquitude representar toda sua aptidão
cognitiva, sem interrupções de quem foi usado por ela como “objeto de pesquisa”.
Podemos identificar evidências da (re)produção do racismo no meio científico, no
seguinte trecho:
... Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa
deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a
gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até
prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo
que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina,
educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi
sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar
junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras
e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinado um monte de
coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se apertasse um pouco até
que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa.
(GONZALEZ, 1984, p.223)
Mais uma vez, nos recordamos que tratamos de uma Ciência que articula o que
pode parecer um pequeno acontecimento do cotidiano para transformar esse evento em
uma pesquisa com hipóteses e argumentos mais gerais sobre a sociedade em que o fato se
situa. Como o próprio autor exemplifica com a imaginação sociológica sobre o café, isto
é, além de uma bebida, tratamos de relações econômicas, históricas e de interações
sociais que perpassam pelo seu consumo (GIDDENS, 2008).
Por sua vez, Wright Mills, ao discorrer sobre os objetivos das Ciências Sociais,
expõe a necessidade de que “os ambientes de pequena escala sejam selecionados e
estudados em termos das estruturas históricas em grande escala.” (1985, p.146). Sendo
assim, podemos nos embasar em tais referências para almejar processos investigativos
que partam de episódios do dia a dia, não apenas de outras pessoas, mas também dos
nossos. No conceito de escrevivência de Conceição Evaristo, a autora evidencia que a
vida e o ato de escrever se con(fundem) e nessa aglomeração observamos que “as
histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas” (EVARISTO, 2017 p.11).
Nesses enlaces, nem mesmo os anseios por objetividade científica escapam. Tal
ponderação não é inédita, diversas autoras e autores produzem críticas, há décadas,
problematizando os parâmetros iniciais de uma visão de ciência que se tornaria mais
legítima se não recebesse nenhum tipo de interferência da subjetividade de quem a
produz.
Na década de 1950, no Brasil, Guerreiro Ramos pontuava, ao realizar um estudo
crítico sobre a Sociologia, que “no domínio da realidade histórico-social, o sujeito
pensante e o objeto se compenetram ou são faces de um mesmo fenômeno. Isto não quer
dizer que a objetividade seja impossível naquele domínio” (1995, p.36). E essa
objetividade seria atingida dentro de determinados parâmetros, aos quais também não
escapamos ao propor a escrevivência enquanto método, pois lidamos com as produções
de mulheres negras como base direcionadora de uma investigação. Podemos pensá-las
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Ao contrário do que Maria Firmina escreveu, seu romance não valeu pouco. Sua
narrativa abolicionista, que denunciou, em diversos trechos, a crueldade que pessoas
negras escravizadas vivenciavam no país, é precursora dos movimentos de escrita que
milhares de mulheres realizariam no futuro. Ao introduzir na narrativa um personagem
escravizado, ela o descreve da seguinte maneira:
O sangue africano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeira da
escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso
clima e a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava,
porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco!... (REIS,
2018, p.18)
injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país...
Àquele que é seu irmão? (REIS, 2018, p.18)
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Assim como as revoltas negras de combate ao regime vigente, por exemplo, a Revolta dos Malês
(1835), que mesmo acontecendo na primeira metade do século XIX, já indicavam a ruína desse sistema
oficial.
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do que nunca, a expressão “Ninguém segura esse país” passou a ser vista como
a exteriorização de um orgulho que nada tinha a ver com a realidade do povo
negro” (GONZALEZ, 2020, p.115)
Nos últimos anos, o interesse em publicar histórias escritas por pessoas negras
têm aumentado (EVARISTO, 2020). No entanto, é oportuno perguntar: seria um reflexo
da desconstrução do mercado editorial nacional que, desde a sua origem, privilegia
autores brancos? Estaria o movimento da procura por narrativas que não incorporam os
marcadores sociais hegemônicos, branquitude, cisheteronormatividade, mudando os
padrões de publicação? As possíveis respostas, ou o caminho para elas, possivelmente
estão intrinsecamente interligadas. Tomamos como exemplo a 17ª Festa Literária de
Paraty, mais conhecida como FLIP, que aconteceu em 2019. Segundo as notícias que
reportaram os acontecimentos do evento6, das cinco obras mais vendidas da edição,
quatro foram escritas por pessoas negras e uma por uma pessoa indígena. As produções
de Grada Kilomba, Ayòbámi Adébáyò, Ailton Krenak, Kalaf Epalanga, Gaël Faye, foram
as mais adquiridas durante os encontros celebrativos da Literatura, naquele ano.
Como esse cenário poderia motivar nossas reflexões sobre um lugar possível para
a escrevivência enquanto método nas Ciências Humanas e Sociais? O livro mais vendido,
em questão, foi Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (2019), de Grada
Kilomba. A obra referencia sua tese de doutorado na área da Psicologia. Nela, Kilomba
apresenta uma articulação de referências decoloniais, feministas e uma leitura crítica
sobre os efeitos do racismo em mulheres negras que vivem na Alemanha. Durante a
produção do seu trabalho, a autora não descarta as suas próprias experiências, pelo
contrário, nos descreve, em diferentes momentos, episódios de racismo que aconteceram
com ela, na infância, na vida adulta e no ambiente universitário. Poderíamos, inclusive,
arriscar uma interpretação de sua escrita como escrevivente, pois nos possibilita
vislumbrar “o lugar subjetivo em que essas autorreflexões nascem, a linguagem que é
usada para a explicitação do pensamento e com quais outros caminhos as reflexões
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Matéria completa disponível em:
https://oglobo.globo.com/celina/dos-5-autores-mais-vendidos-da-flip-4-sao-negros-1-indigena-quem-sao-el
es-por-que-isso-tao-revolucionario-23809609 Acesso em: 3. set. 2021.
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A obra está disponível, de forma gratuita, no site do Itaú Social:
https://www.itausocial.org.br/divulgacao/escrevivencia-a-escrita-de-nos/
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acadêmica. Nele, situa a conjuntura contemporânea sobre seu uso e discorre sobre as
(im)possibilidades no meio acadêmico:
A despeito de uma miopia social e de uma blindagem em torno de um projeto
uno de currículos e saberes, a cada dia um número maior de áreas das ciências
humanas e sociais vem construindo novas práticas docentes, alinhadas a
releituras curriculares, e a emergência de novos atores sociais tem permitido,
de fato, que um projeto decolonial venha se forjando dentro da produção de
saber brasileira, apesar dos privilégios que alguns grupos insistem em manter.
(FELISBERTO, 2020, p.169)
5. UM COMEÇO ESCREVIVENTE
Lorde, aventuro-me em responder que sim, o cabelo afro ainda é político. Os reforços
positivos são necessários, principalmente para as mulheres negras fugirem dos
sentimentos de menosprezo e desvalorização impostos por diferentes veículos e
mercados capitalistas eurocêntricos. O foco deve estar na desconstrução dos parâmetros
de exclusão e de diminuição da nossa autoestima. Valorizar e enaltecer a nós mesmas
como saída para os vazios e anseios da contínua descoberta de si8.
Discutindo momentos iniciais possíveis, as primeiras lembranças em relação ao
acesso à Universidade são elucidativas. Em um domingo de verão quente e bonito, minha
mãe diz algo do tipo: agora vai ficar mais difícil para ti entrar na faculdade, estão
querendo acabar com as tuas alternativas. Acredito que na época tinha um pouco mais de
dez anos e aquela fala inesperada me entristeceu de forma abrupta. Como se os planos
que ainda não tinham sido estruturados formalmente ou vislumbrados fossem
sequestrados do horizonte. Aquela fala me abalou com tanta intensidade que sequer me
recordo de tê-la questionado mais a fundo, entretanto, quando perguntei o porquê, lembro
de uma resposta relacionada à “nossa cor”. Aquele momento reverberou comigo durante
toda a semana e, de alguma maneira, até os dias de hoje, em que reservo este espaço para
revivê-lo novamente.
No dia seguinte, em sala de aula, olhei fascinada para minha turma. Era uma das
poucas alunas negras em uma sala de escola particular. Passei o ensino fundamental
contando, diariamente, quantas meninas negras havia na sala e quando uma das duas
colegas ou as duas faltavam me sentia visada, sozinha. Em um instante olhei ao redor e
um sentimento novo e pesado pulsava. Por que eu não teria oportunidades de cursar o
ensino superior, mesmo com ótimas notas? Isso não seria justo: ser capaz de cursar uma
faculdade, porém, pelas mazelas excludentes ainda desconhecidas em profundidade, ser
impedida de conhecer outras realidades, sair da minha cidade e descobrir trânsitos novos.
A sensação de injustiça predominou quando refleti que essa não seria a preocupação dos
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Importante pontuar que pensamos que o modo de estilizar o cabelo não deveria sofrer
julgamentos ou pressão externa para alguma determinada mudança. Que cada pessoa viva o processo de
aceitação e desconstrução da maneira que preferir, a seu tempo e de acordo com a sua escolha.
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meus pares, a não ser das duas colegas negras e dos dois colegas negros. Será que os
demais sabiam ou se preocupavam com a exclusão que iríamos sofrer se desejássemos
fazer uma faculdade? Será que sabiam desse ataque? Será que pensavam nisso? Nunca
lhes perguntei. Estava isolada e percebia o peso do racismo institucional, mesmo com
pouquíssima idade e sem ferramentas para desvendá-lo.
O assunto a que minha mãe estava se referindo eram as manifestações contrárias à
implementação das ações afirmativas nas universidades públicas do país. Com todas as
reivindicações, influência da mídia e de muitas entidades acadêmicas, a Lei 12.711 de
2012 foi promulgada, exigindo que as universidades federais aderissem,
obrigatoriamente, ao sistema de reserva de vagas para estudantes negros, pardos e
indígenas e também oriundos de escola pública (BRASIL, 2012). A segurança dessa
política pública não apagou o sentimento de ter que trabalhar o dobro ou o triplo para ser
reconhecida e valorizada. Hoje, com mais do que o dobro da idade que eu tinha naquela
época, esse sentimento ainda permanece.
Em uma sala de graduação olhava ao meu redor e me fazia perguntas cujas
respostas têm raízes racistas: por que eu não teria as mesmas oportunidades que essas
pessoas? Por que preciso trabalhar, estudar, estagiar e ainda assim demonstrar que nada
disso interfere no meu envolvimento e compreensão das longas páginas de polígrafos
com uma linguagem rebuscada? Será que os colegas/docentes brancos sabem que nem
todos que compartilham a matrícula na disciplina têm a mesma disponibilidade para
realizar as leituras? Será que eles pensam no quanto os arranjos econômicos, sociais e
familiares estruturam aquela confiança irreverente perante uma sala de mais de trinta
estudantes para declamar suas opiniões? Com o passar do tempo aprendi a fazer outras
perguntas e a entender o lugar de fala em que me encontro para questionar o ímpeto
branco hegemônico. Através dos compartilhamentos de vivências e aprendizados, minha
mãe se reconhece como uma defensora das cotas, antes rejeitadas por ela, devido ao
discurso dominante, intencionalmente racista, de que as ações afirmativas eram um
atentado contra a igualdade. Junto com ela, reparto meus passos no universo acadêmico.
Talvez o melhor começo seja o dos primeiros dias. Por exemplo, as primeiras
impressões no espaço da Universidade, ocupando o lugar como estudante. A inscrição na
reserva de vagas para estudantes negros e de baixa renda foi realizada com confiança e
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REFERÊNCIAS
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REIS, Maria Firmina dos. Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados,
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