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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT 30: Pensamento Social no Brasil

ESCREVIVÊNCIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: REFLEXÕES SOBRE


MÉTODO, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Camila Santos Pereira


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação - ProPEd/UERJ
Bolsista FAPERJ

Anamaria Ladeira Pereira


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação - ProPEd/UERJ
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ESCREVIVÊNCIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: REFLEXÕES SOBRE MÉTODO,


DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida.
(Conceição Evaristo, 2020, p.35)

1. INTRODUÇÃO: O ANSEIO PELO NOVO

Aventurar-se em propostas não usuais, no meio acadêmico, pode ser mais árduo
do que a premissa científica ostenta, ou seja, o suposto acolhimento para inovações tem
cor, gênero, sexualidade, região, entre outros marcadores sociais. Ao investigarmos as
raízes desse cenário, observamos que, para determinados corpos, há um longo caminho,
com diversos obstáculos para ingressar, permanecer, concluir e existir em ambientes
universitários, como sujeitos e não objetos (KILOMBA, 2019).
Este trabalho nasce de uma pesquisa cujo método da escrevivência, conceito
criado pela intelectual brasileira negra Conceição Evaristo, contribui para apresentar as
vivências, durante a graduação, da primeira autora do artigo. Partimos da inspiração
encontrada nas contribuições intelectuais de mulheres negras e seus enfrentamentos ao
racismo institucional, às disparidades de gênero, à colonialidade, portanto, às
desigualdades sociais. Escritoras negras que desafiam os dispositivos estruturantes de
uma sociedade fundamentada na exclusão de tantas pessoas em favor do exibicionismo
meritocrático de outras.
A monografia intitulada “Escrevivências de uma estudante negra de Ciências
Sociais” foi apresentada, em 2021, como parte do requisito obrigatório para a conclusão
do curso de Bacharel em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Nesse sentido, a trajetória da primeira autora deste texto, na primeira etapa de
sua vida acadêmica, como estudante negra, conduz as reflexões a seguir, intencionando
desnaturalizar não apenas os temas que movem uma investigação, mas partir de
questionamentos sobre quem pesquisa.
Ao exibir determinadas filiações teóricas, buscamos outras narrativas que também
articulam um pensamento social crítico e fundamentado em propostas com
responsabilidade metodológica. Perspectiva cujo objetivo central consiste em
2

aprofundarmo-nos em concepções da escrevivência enquanto método de pesquisa e nos


possíveis desafios epistemológicos para a sua utilização.
Com uma premissa desafiadora, o compromisso para articular um conceito
relativamente recente não deixará de lado contribuições consideradas essenciais para o
campo de estudos da área. Desse modo, optamos por uma aproximação dos escritos, em
especial, de pesquisadores considerados consagrados e que foram presentes no processo
formativo como cientista social. A partir dessa prerrogativa, caminhando junto com um
projeto que anseia discorrer sobre o fazer científico juntamente com o protagonismo do
pensamento de mulheres negras, utilizamos as conceituações de imaginação sociológica e
artesanato intelectual como uma direção argumentativa para esse investimento. Um
diálogo direto, consequentemente, com publicações disseminadas pelos setores mais
tradicionais das Ciências Humanas e Sociais, se estabelece. Não por acaso.
Conhecemos os danos que a exclusão de elaborações acadêmicas e
histórico-culturais pode causar, ao longo dos anos, em uma sociedade. Não queremos,
aqui, (re)produzir o silenciamento com o qual estamos tão acostumadas e ao qual nos
contrapomos. Por exemplo, quando crescemos sem uma representação positiva ou
qualquer representação do amor entre mulheres; quando a presença de personagens
negras permanece acorrentada a estereótipos degradantes reservados à população negra
nacional; quando apresentamos ou argumentamos acerca da importância de referências
teóricas mais diversificadas nos currículos e recebemos respostas defensivas, em vez de
propositivas, sabemos o que o apagamento significa.
O que pode acontecer quando uma significativa gama de referências a homens
brancos europeus ou norte-americanos não está presente nas referências ou é diretamente
criticada? O trabalho em questão corre o risco de desqualificação, podendo até mesmo
ser censurado? Seriam essas algumas das características do “pacto narcísico da
branquitude” da intelectualidade brasileira para se manter nas posições de poder?1 As
interlocuções, nas próximas páginas, fazem parte de uma trajetória de formação nas

1
O conceito de “pacto narcísico da branquitude”, trabalhado por Maria Aparecida Silva Bento,
será aprofundado nos próximos segmentos.
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Ciências Sociais, de modo que não negamos os lugares de enunciação de tais


referenciais, sobretudo porque entendemos o que representa partir de uma posição menos
ou mais privilegiada.

2. AS VOZES PRESENTES NA PESQUISA

A investigação relaciona estudos de intelectuais brancos como Charles Wright


Mills, sociólogo estadunidense, e Anthony Giddens, sociólogo britânico, para introduzir
os escritos que se desenham com base na liberdade e inovação que o pensamento
sociológico convoca2. Após nos situarmos no ponto de partida mais legitimado,
prosseguimos permeando nossos escritos com outras figuras, muitas vezes invisibilizadas
e excluídas do prestígio que suas contribuições mereceriam nas Ciências Sociais, como
Lélia Gonzalez e Alberto Guerreiro Ramos. Depois dessas conexões, partimos para a
arquitetura do conceito de escrevivência, referenciado, pela primeira vez, por Conceição
Evaristo em sua dissertação de mestrado em Letras, defendida em 1996 na PUC/RJ,3
Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.
Reconhecemos, neste artigo, a influência histórica de duas mulheres negras em
localizar olhares dificilmente valorizados em meios científicos nacionais e na Literatura.
Tratamos de Maria Firmina dos Reis, que no século XIX tornou-se a primeira mulher
romancista do Brasil, e de Carolina Maria de Jesus e sua potência transformadora, ao
narrar seu cotidiano nas favelas de São Paulo, na década de 1950.
Nesse movimento, traçamos uma relação que transpassa os limites do que seria
um segmento limitado pelas próprias fronteiras disciplinares e encontramos na Literatura
uma via de visibilidade das mulheres negras para escrever/escreviver as suas histórias.
Acrescentamos, assim, novas miradas a um pensamento social arraigado a determinados

2
Muitas argumentações se firmaram a partir do termo “sociológico”, por utilizar, majoritariamente,
referenciais dessa área. Compreendemos, contudo, que as elaborações dispostas neste trabalho têm como
objetivo alcançar não apenas a área da Sociologia, mas a das Ciências Humanas e Sociais. Os assuntos
tratados na pesquisa são de ordem interdisciplinar e essa escolha pela denominação não se pretende
restritiva, mas pontual.
3
Entrevista com a autora disponível em: https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-tambem-e-nosso/
Acesso em: 10. set. 2021.
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ângulos de visão. Por meio desses olhares novos, empreendemos tentativas


comprometidas com o estabelecimento de territórios férteis para que essas vozes,
consideradas “outras”, sejam ouvidas. No intuito de que essas narrativas possam
participar de elaborações científicas sem represálias ou desmerecimento por serem
“demasiado subjetivas” ou “fora do campo”.
Como nós, cientistas sociais, pretendemos limitar as leituras fundamentadas dos
fenômenos sociais apenas às produções que resultam das relações de poder estabelecidas
nos castelos de concreto em que circulamos? Diálogos aprofundados, sem abandonar as
metodologias que estruturam e diferenciam nosso fazer científico, poderiam ser
construídos, diante dos desafios contemporâneos que a produção de conhecimento
enfrenta no Brasil? Bastaria enunciar uma prática acadêmica contrária ao racismo, para
aceitar o desafio de fabricar outras formas de analisar a sociedade? Os estudos sobre
essas discussões se mostram emergentes, pois destacar o protagonismo de sujeitos de
grupos subalternizados socialmente, na produção de conhecimento, tornou-se um tópico
em ascensão, na contemporaneidade, no nosso campo de estudos, como nos indica Ochy
Curiel (2018).
Desenvolvemos, posteriormente, uma breve revisão bibliográfica sobre as
publicações mais atuais e descrevemos quais são as principais linhas de trabalho que
utilizam a escrevivência como ponto central. Como complemento para essa jornada,
apresentamos um excerto da monografia, anteriormente citada, que ensaia um processo
escrevivente de contar como foi a chegada da primeira autora à Universidade.
Através da revisão bibliográfica e de experiências enquanto estudantes,
professoras e pesquisadoras, observamos os apagamentos, na formação acadêmica, de
referenciais não hegemônicos. Pessoas não brancas e do Sul Global, sobretudo se são
mulheres, têm seu trabalho intelectual menos divulgado. Como explicitado pela
historiadora Beatriz Nascimento, ao falar sobre as mulheres negras, “quando se trata de
um relacionamento institucional, a discriminação étnica funciona como um impedimento,
mais reforçado à medida que essa mulher alça uma posição de destaque social [...]”
(2006, p.129). Ao nos vincularmos com os estudos do feminismo negro e do pensamento
decolonial, reforçamos a importância de partir de outras referências para estruturar
nossos estudos.
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O método da escrevivência, nessa perspectiva, nos possibilita não apenas articular


a pesquisa social com uma nova prática, como também identificar as contribuições das
mulheres negras para o pensamento crítico sobre a sociedade nacional. A partir dessas
inquietações, tratamos da desconstrução da metodologia empregada no desenvolvimento
de pesquisas científicas. Por meio da prática de escreviver, ou seja, assumir a invenção na
descrição de histórias reais (EVARISTO, 2017), realizamos cruzamentos com estudos
acadêmicos e incluímos a imaginação sociológica no debate4.

3. COMO REALIZAMOS A BUSCA POR OUTRAS NARRATIVAS: O


INÍCIO

Como viabilizar uma construção democrática da profissão de cientista social,


quando ainda observamos a censura de vozes de mulheres negras e LGBTI+, nos espaços
educativos da própria área? Que direções a Teoria Social, (pre)ocupada em pavimentar os
caminhos questionadores de narrativas hegemônicas e eurocêntricas, pode seguir? Tais
interrogações constituem premissas emergentes nos estudos do Pensamento Social no
Brasil, visto que a pluralidade teórico-metodológica do campo integra uma parte
estruturante dessa arena. Nossa proposta com as provocações deste texto não parte da
eliminação ou censura do pensamento de outrem; na verdade, buscamos salientar que a
cor da pele, o gênero, a sexualidade, o corpo, não deveriam ser impeditivos para quem
deseja um “espaço para sentar à mesa”.
Ora, se nem ao menos para fazer compras no supermercado, sem o medo da
violação de seu espaço e inclusive do aniquilamento de sua vida, a população negra
brasileira tem liberdade, devido à sua cor e ao perigo eminente que se construiu
historicamente em torno dela... Seria possível presumir que essa relação discriminatória
se desdobraria, também, no ambiente acadêmico? Estaria a elite intelectual brasileira
imune à tamanha expressão de desumanidade? Recordamos o célebre texto de Lélia
Gonzalez, uma das pensadoras mais importantes do XX, “Racismo e Sexismo na cultura
brasileira” (1984). Neste, a autora descreveu um episódio em que pessoas negras nada

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Tomamos a liberdade para escrever na primeira pessoa do plural e, em outros momentos, na
primeira pessoa do singular, quando especificamos acontecimentos particulares de determinadas
experiências do processo formativo.
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mais eram do que pano de fundo para a branquitude representar toda sua aptidão
cognitiva, sem interrupções de quem foi usado por ela como “objeto de pesquisa”.
Podemos identificar evidências da (re)produção do racismo no meio científico, no
seguinte trecho:
... Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa
deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a
gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até
prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo
que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina,
educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi
sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar
junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras
e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinado um monte de
coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se apertasse um pouco até
que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa.
(GONZALEZ, 1984, p.223)

O excerto acima representou um grande impacto no início do processo de


desconstrução em relação ao que a Universidade exigia de corpos como o meu: o
silêncio. A identificação com o trabalho de Gonzalez não aconteceu dentro da parte
relativa ao ensino, durante a formação universitária, mas sim em projetos de extensão
voltados para o debate de direitos humanos. Importante ressaltar que a autora foi uma
antropóloga e, mesmo assim, seu nome não apareceu em nenhum plano de ensino, em
cinco anos de curso de graduação em Ciências Sociais, de 2014 a 2019. O empenho para
que o legado de Lélia me acompanhe como aporte teórico pessoal e profissional, para
compreender o mundo e a ciência, mesmo sem presenciar o seu reconhecimento durante
minhas aulas, foi influenciado pelos primeiros ensinamentos acerca do ofício de cientista
social.
A autonomia e a inventividade dispostas por C.Wright Mills, nas disciplinas
introdutórias, marcaram como o conceito de imaginação sociológica poderia nos permitir
saltar para voos ainda nem mapeados; cujos riscos, contudo, valeriam a pena. Segundo o
autor estadunidense, esse conceito engloba a compreensão de um pertencimento histórico
amplo e um entendimento crítico das posições sociais (MILLS, 1982). Sendo assim,
“talvez a distinção mais proveitosa usada pela imaginação sociológica seja a entre 'as
perturbações pessoais originadas no meio mais próximo' e 'as questões públicas da
estrutura social'.” (MILLS, 1982, p.14).
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A partir dessa categorização, posso reconhecer o que me perturbou para seguir em


direções conceituais para além do que me era proposto na época: o racismo institucional.
Quanto mais a leitura reflexiva sobre a sociedade era incentivada, mesmo por autores
considerados clássicos e parte do cânone eurocêntrico, branco e masculino, mais
vislumbrava que meu caminho, na verdade, não seria atrelado estritamente à sua presença
teórica. Foi o início da busca por fontes que se pareciam com uma realidade presente em
minha vida e de quem estava ao meu redor.
Quais pensamentos surgiram após esses discernimentos? A localização da
perspectiva de que a institucionalização do racismo “não se resume a comportamentos
individuais, mas [ao] resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em
uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base
na raça” (ALMEIDA, 2020, p.37). Seria coerente culpabilizar apenas uma pessoa quando
em nenhuma disciplina do currículo, com mais de trinta cadeiras, nomes como Lélia
Gonzalez, Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento e Guerreiro Ramos figuram como
leituras obrigatórias? Os dispositivos acadêmicos legitimam o apagamento de produções
de pessoas negras sobre o próprio país. Suas contribuições passam em branco.
Tal “herança” não é ocasional. Ao falar da patologia social do “branco” brasileiro,
o sociólogo Guerreiro Ramos situa no passado colonial as amarras das quais ainda
precisamos nos desvencilhar no meio social e, consequentemente, no acadêmico, pois
“para garantir a espoliação, a minoria dominante de origem europeia recorria não
somente à força, à violência, mas a um sistema de pseudojustificações, de estereótipos,
ou a processos de domesticação psicológica” (RAMOS, 1995, p.220).
Ainda que o objetivo seja debater as relações sociais no território brasileiro, na
perspectiva da Ciência Política, Antropologia ou Sociologia, é possível perceber que o
pacto narcísico da branquitude prevalece. Como Maria Aparecida Silva Bento indica:
[...] o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer
discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e
concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro
séculos de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar
caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. (BENTO, 2002,
p.28).

Voltamos para as concepções mais disseminadas sobre os significados


estruturantes da Sociologia e das Ciências Sociais. Segundo Anthony Giddens, podemos
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caracterizar a Sociologia da seguinte forma:


A Sociologia é o estudo da vida social humana, grupos e sociedades. É uma
tarefa fascinante e constrangedora, na medida em que o tema de estudo é o
nosso próprio comportamento enquanto seres sociais. A esfera de ação do
estudo sociológico é extremamente abrangente, podendo ir da análise de
encontros casuais entre indivíduos que se cruzam na rua até a investigação de
processos sociais globais. (GIDDENS, 2008, p.2)

Mais uma vez, nos recordamos que tratamos de uma Ciência que articula o que
pode parecer um pequeno acontecimento do cotidiano para transformar esse evento em
uma pesquisa com hipóteses e argumentos mais gerais sobre a sociedade em que o fato se
situa. Como o próprio autor exemplifica com a imaginação sociológica sobre o café, isto
é, além de uma bebida, tratamos de relações econômicas, históricas e de interações
sociais que perpassam pelo seu consumo (GIDDENS, 2008).
Por sua vez, Wright Mills, ao discorrer sobre os objetivos das Ciências Sociais,
expõe a necessidade de que “os ambientes de pequena escala sejam selecionados e
estudados em termos das estruturas históricas em grande escala.” (1985, p.146). Sendo
assim, podemos nos embasar em tais referências para almejar processos investigativos
que partam de episódios do dia a dia, não apenas de outras pessoas, mas também dos
nossos. No conceito de escrevivência de Conceição Evaristo, a autora evidencia que a
vida e o ato de escrever se con(fundem) e nessa aglomeração observamos que “as
histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas” (EVARISTO, 2017 p.11).
Nesses enlaces, nem mesmo os anseios por objetividade científica escapam. Tal
ponderação não é inédita, diversas autoras e autores produzem críticas, há décadas,
problematizando os parâmetros iniciais de uma visão de ciência que se tornaria mais
legítima se não recebesse nenhum tipo de interferência da subjetividade de quem a
produz.
Na década de 1950, no Brasil, Guerreiro Ramos pontuava, ao realizar um estudo
crítico sobre a Sociologia, que “no domínio da realidade histórico-social, o sujeito
pensante e o objeto se compenetram ou são faces de um mesmo fenômeno. Isto não quer
dizer que a objetividade seja impossível naquele domínio” (1995, p.36). E essa
objetividade seria atingida dentro de determinados parâmetros, aos quais também não
escapamos ao propor a escrevivência enquanto método, pois lidamos com as produções
de mulheres negras como base direcionadora de uma investigação. Podemos pensá-las
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como interlocutoras diretas, seja na presença na revisão bibliográfica, seja em segmentos


estruturais da pesquisa, por exemplo, no ato de escreviver (a si) ou redigir suas
escrevivências.
Pontuamos que a prática da pesquisadora relatar/analisar a si própria como parte
integrante da pesquisa pode também ser compreendida, a partir de suas devidas
distinções, com métodos como autoetnografia ou autobiografia. Não iremos descrever ou
examinar as diferenças entre os métodos neste artigo, em razão do espaço para
elaboração, contudo, destacamos as outras produções que se assemelham à nossa
proposta. Sendo assim, indicamos, mais uma vez, que a escolha por denominar essa
prática como “escrevivência” parte de entender a importância de reconhecer o
protagonismo intelectual das mulheres negras no processo de escrita e nas Ciências.
As elaborações de Wright Mills sobre artesanato intelectual também
potencializam nossas apostas nesse método no campo das Ciências Sociais. O autor não
separa o conhecimento construído de uma vida pessoal ou acadêmica, pelo contrário,
destaca que as pessoas que são trabalhadoras intelectuais formam a si próprias, ao passo
que aprimoram o seu empenho em um determinado ofício (MILLS, 2009). Por
conseguinte, quem se dedica a estudar/ensinar,
deve aprender a usar sua experiência de vida em seu trabalho intelectual:
examiná-la e interpretá-la continuamente. Nesse sentido, o artesanato é o
centro de você mesmo, e você está pessoalmente envolvido em cada produto
intelectual em que possa trabalhar. [...] Como cientista social, é preciso
controlar esta ação recíproca bastante complexa, apreender o que experiencia e
classificá-lo [...]. (MILLS, 2009, p. 22)

Em seguida, identificamos possíveis leituras desses desdobramentos. Tanto nas


nossas interpretações da prática de escrevivência, quanto das nossas representações no
processo de escreviver.

4. ESCREVIVÊNCIA COMO MÉTODO PARA VISIBILIDADE

Em 2020, Conceição Evaristo relatou em uma entrevista que a escrevivência


estava relacionada com a “autoria de mulheres negras, que já são donas da escrita,
borrando essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para
ninar os da casa-grande” (2020, s/p). Com essas palavras, a autora levanta a pauta da
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falta de visibilidade em relação ao reconhecimento das elaborações intelectuais de


mulheres negras no país, e nos convoca a olhar e a pesquisar trabalhos não referenciados
durante a Educação Básica e Ensino Superior, que, no entanto, influenciaram a história
que se seguiu. Ressaltamos o questionamento de Abdias do Nascimento: “Se consciência
é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da
consciência brasileira?” (1978, p.95).
A partir dessas instigações, nos pareceu necessário trazer para a conversa a obra
Úrsula, publicada em 1859, de Maria Firmina dos Reis. Primeira mulher romancista no
Brasil e, consequentemente, primeira mulher negra a desenvolver uma publicação desse
gênero. A autora, contudo, nos informa, no prólogo do livro, o (des)valor que seu
empreendimento detinha, à época:
Sei que pouco vale este romance, por escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens
ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem; com uma instrução
misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu
cabedal intelectual é quase nulo. (REIS, 2018, p.13).

Ao contrário do que Maria Firmina escreveu, seu romance não valeu pouco. Sua
narrativa abolicionista, que denunciou, em diversos trechos, a crueldade que pessoas
negras escravizadas vivenciavam no país, é precursora dos movimentos de escrita que
milhares de mulheres realizariam no futuro. Ao introduzir na narrativa um personagem
escravizado, ela o descreve da seguinte maneira:
O sangue africano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeira da
escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso
clima e a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava,
porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco!... (REIS,
2018, p.18)

O enredo principal de seu livro não gira em torno de personagens negras


escravizadas, mas sim do desenvolvimento da relação romântica entre a jovem Úrsula e
Tancredo. No entanto, a participação coadjuvante e os acontecimentos expostos de forma
minuciosa e direta, exibem uma narrativa, então, inédita no país, que revelava as
atrocidades impostas às vidas negras. Maria Firmina dos Reis, ao longo da história,
elabora de forma evidente sua discordância visceral ao sistema escravocrata mantido em
território nacional.
Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima - ama a
teu próximo como a ti mesmo -, e deixará de oprimir com tão repreensível
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injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país...
Àquele que é seu irmão? (REIS, 2018, p.18)

Salientamos que tais reivindicações presentes em sua literatura eram desenhadas


antes mesmo da Lei do Ventre Livre, de 1871, e da Lei do Sexagenário, de 1885, que
prometiam um processo de libertação “à brasileira” aos sujeitos escravizados. A primeira
definia que, após a promulgação da Lei, as crianças que nasciam eram consideradas
livres, porém, onde e como as mães escravizadas iriam criar suas filhas e filhos? Essa
resposta era encontrada na contínua e permitida exploração da mão de obra jovem. Já a
Lei do Sexagenário concedia a liberdade para pessoas escravizadas com mais de sessenta
anos de idade. Não estaríamos nos referindo a uma população ínfima, posto que,
sobreviver a tamanhos maus tratos durante tanto tempo era algo bem raro? E ainda ter
condições de arcar com um novo estabelecimento, na velhice, sem qualquer
financiamento ou incentivo governamental, no Brasil do século XIX, não seria outro
obstáculo por si só?
O contexto posterior ao romance de Maria Firmina dos Reis, nos mostra o quanto
sua contribuição foi precursora e desafiadora das normas nacionais vigentes. Enquanto
interrogamos essas legislações reconhecemos que tais iniciativas repercutiram e
impulsionaram o movimento abolicionista.5 Culminando no decreto da Lei Áurea, em 13
de maio de 1888, que, descritivamente, estabeleceu a abolição da escravatura.
Destacamos, aqui, a partir das palavras de Lélia Gonzalez, redigidas na década de 1980,
o porquê de essa data não representar para o movimento negro a instauração de liberdade
como a parcela branca da sociedade insiste em fazer crer, e como o 20 de novembro seria
uma alternativa mais representativa:
Em 1972, O Grupo Palmares, de Porto Alegre, no Rio de Grande do Sul,
lançou a ideia de se transferirem todas as tradicionais comemorações do
aniversário da abolição (13 de maio de 1888) para 20 de novembro, data da
morte de Zumbi, o grande líder da República de Palmares. O 13 de maio foi
assim abandonado como a data historicamente mais significativa para os
negros no Brasil. Afinal, a verdadeira abolição ainda não ocorreu. Para a
maioria da população negra brasileira, o “milagre” se revelou uma ilusão. Mais

5
Assim como as revoltas negras de combate ao regime vigente, por exemplo, a Revolta dos Malês
(1835), que mesmo acontecendo na primeira metade do século XIX, já indicavam a ruína desse sistema
oficial.
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do que nunca, a expressão “Ninguém segura esse país” passou a ser vista como
a exteriorização de um orgulho que nada tinha a ver com a realidade do povo
negro” (GONZALEZ, 2020, p.115)

Por que resgatamos a Literatura para relacionar com os métodos contemporâneos


das Ciências Sociais? Wright Mills sugere que romancistas se utilizariam de uma
imaginação sociológica para compor seus trabalhos, ou seja, interligam sua intimidade
com perspectivas outras, imaginadas, reais… Ao se tratar do século XIX, dada “a
ausência de uma ciência social adequada, críticos e romancistas, dramaturgos e poetas
foram os principais, e com frequência os únicos, formuladores dos problemas privados e
até mesmo das questões públicas” (MILLS, 1982, p.25). Evidentemente, agora, o campo
se consolidou e criou suas próprias ferramentas de análise. No entanto, o que buscamos
instigar, neste artigo, é o reconhecimento de um método científico que assuma a ficção, a
escrita de si (com base em um entendimento crítico da sociedade, a partir da imaginação
sociológica) e o protagonismo intelectual das mulheres negras (com a escrevivência)
como possibilidade legítima de produzir nas Ciências Sociais.
Outra autora que nos mostra a potência descritiva que a Literatura pode nos
oferecer para problematizar a nossa sociedade é Carolina Maria de Jesus. A publicação
de seu primeiro livro, Quarto de despejo: diário de uma favelada, aconteceu em 1960.
Neste, acompanhamos os relatos da escritora sobre seu dia a dia na favela Canindé de
São Paulo, ora cômicos, ora brutais, ora emocionantes, ora contraditórios. A intelectual
nos leva em uma jornada por seus sentimentos mais humanos, em uma sociedade que a
desumanizava. Fome, ciúmes, dor, felicidade, resiliência, indignação, amor, prazer,
maternidade, luta são apenas alguns dos sentidos que ela aborda, permitindo-nos
conhecer seu cotidiano.
“...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome
também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”
(JESUS, 1963, p.26). E assim percebemos a potência da autora em tensionar a
cristalização institucional das desigualdades sociais. Conceição Evaristo nos convida a
refletir que “quando uma mulher como Carolina Maria de Jesus crê e inventa para si
uma posição de escritora, ela já rompe com um lugar anteriormente definido como sendo
o dela, o da subalternidade, que já se institui como um audacioso movimento.” (2009,
13

p.28). A partir do trecho do diário de Carolina, poderíamos interrogar: em quantos


artigos, livros, manuais das Ciências Sociais, principalmente do século passado, trataram
a fome não apenas como um aspecto descritivo, mas também educador e formador de
uma consciência política originada na desigualdade social, portanto, na discriminação
racial? Quem eram as pessoas que escreviam e eram reconhecidas por essas produções?
Para encaminhar, quem sabe, possíveis soluções para essas perguntas, podemos olhar
para os escritos de cientistas sociais acerca da branquitude e os estudos sobre a população
negra brasileira, em um breve diálogo:
[...] nossa socioantropologia do negro está toda ela viciada por um tratamento
alienado do tema. O negro no Brasil, país cuja matriz demográfica mais
importante é o contingente corado, tem sido visto como algo estranho ou
exótico na comunidade, o que só se explica na base de um equívoco
etnocentrismo. (RAMOS, 1995, p.42)

Assim, como objeto de estudo, representado por uma grande maioria de


pesquisadores brancos locais e estrangeiros — vários, aliás, autores sérios e
fundamentais —, o negro tem sido constituído como “excesso etnográfico”,
“resíduo de África” e deslocamento social em relação às “branquitudes”, que
estes mesmos pesquisadores representam em seus campos de investigação.
Como agente reflexivo, o lugar do negro na academia brasileira é quase o da
absoluta ausência e negação. (LIMA, 2001, p.283-284)

Com a escrevivência, o lugar que os intelectuais Guerreiro Ramos e Ari Lima


descreveram como o destinado para a população negra, nos estudos científicos, pode ser
transformado. A escrita e pesquisa acadêmicas, antes produzidas quase exclusivamente
sob determinantes brancos, agora também podem ser justificadas com base na implicação
do corpo, dos sentimentos, em especial, das mulheres negras no processo de escrever, ou
melhor, escreviver. Como também somos professoras, recordamos as palavras de bell
hooks ao falar sobre questões similares em relação à nossa carreira, pois “chamar atenção
para o corpo é trair o legado de repressão e de negação que nos tem sido passado por
nossos antecessores na profissão docente, os quais têm sido, geralmente, brancos e
homens.” (2017, p.253).
A inspiração por tornar nossa escrita científica impregnada de nós mesmas, de
maneira explícita e localizada, pode estar na Literatura, como defendemos,
anteriormente. Todavia, podem estar, igualmente, em outras áreas como na música, nas
artes plásticas etc. A seguir, nos aprofundamos em experiências de estudos que
influenciam nossa proposta e outros escritos que já propõem essa prática em suas áreas.
14

4.1 ESCREVIVÊNCIA(S) NOS ESTUDOS CIENTÍFICOS

Nos últimos anos, o interesse em publicar histórias escritas por pessoas negras
têm aumentado (EVARISTO, 2020). No entanto, é oportuno perguntar: seria um reflexo
da desconstrução do mercado editorial nacional que, desde a sua origem, privilegia
autores brancos? Estaria o movimento da procura por narrativas que não incorporam os
marcadores sociais hegemônicos, branquitude, cisheteronormatividade, mudando os
padrões de publicação? As possíveis respostas, ou o caminho para elas, possivelmente
estão intrinsecamente interligadas. Tomamos como exemplo a 17ª Festa Literária de
Paraty, mais conhecida como FLIP, que aconteceu em 2019. Segundo as notícias que
reportaram os acontecimentos do evento6, das cinco obras mais vendidas da edição,
quatro foram escritas por pessoas negras e uma por uma pessoa indígena. As produções
de Grada Kilomba, Ayòbámi Adébáyò, Ailton Krenak, Kalaf Epalanga, Gaël Faye, foram
as mais adquiridas durante os encontros celebrativos da Literatura, naquele ano.
Como esse cenário poderia motivar nossas reflexões sobre um lugar possível para
a escrevivência enquanto método nas Ciências Humanas e Sociais? O livro mais vendido,
em questão, foi Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (2019), de Grada
Kilomba. A obra referencia sua tese de doutorado na área da Psicologia. Nela, Kilomba
apresenta uma articulação de referências decoloniais, feministas e uma leitura crítica
sobre os efeitos do racismo em mulheres negras que vivem na Alemanha. Durante a
produção do seu trabalho, a autora não descarta as suas próprias experiências, pelo
contrário, nos descreve, em diferentes momentos, episódios de racismo que aconteceram
com ela, na infância, na vida adulta e no ambiente universitário. Poderíamos, inclusive,
arriscar uma interpretação de sua escrita como escrevivente, pois nos possibilita
vislumbrar “o lugar subjetivo em que essas autorreflexões nascem, a linguagem que é
usada para a explicitação do pensamento e com quais outros caminhos as reflexões

6
Matéria completa disponível em:
https://oglobo.globo.com/celina/dos-5-autores-mais-vendidos-da-flip-4-sao-negros-1-indigena-quem-sao-el
es-por-que-isso-tao-revolucionario-23809609 Acesso em: 3. set. 2021.
15

produzidas por elas se imbricam.” (EVARISTO, 2020, p.34).


A partir das filiações que a autora salienta, como bell hooks e Frantz Fanon,
compreendemos que sua produção está permeada por uma proposta que desafia os
cânones de uma ciência que subjuga a entrada da subjetividade nos seus jogos de disputa,
como a própria descreve:
“Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito
emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários
funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos.
Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas
margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam
no centro, como a norma. Quando elas/eles falam é científico, quando nós
falamos é acientífico. (KILOMBA, 2019. p.51-52, grifos da autora)

Frantz Fanon, anteriormente, denunciou o lugar inferiorizado designado para as


pessoas negras, advindo e permanente do contexto da colonização, um espaço que foge
do nosso controle, pois “não fui eu quem criou um sentido para mim, este sentido já
estava lá, pré-existente, esperando-me.” (FANON, 2018, p.121). Esses sentidos de
subalternização refletem a validação das instituições sobre a produção de conhecimento
no Brasil, pois “temos uma divisão racial do espaço não só no nível do país, mas também
no nível das entidades, no nível do campo e no nível, evidentemente, da própria estrutura
social” (GONZALEZ, 2020, p.248).
A publicação de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo (2019), também
merece uma atenção especial. O líder indígena e filósofo brasileiro, através da transcrição
de uma entrevista e duas conferências, nos convoca a refletir sobre o desmatamento, a
corrosão que a sociedade moderna provoca no planeta, e, portanto, a si mesma. Ailton
Krenak destaca que essas relações são vivenciadas de forma distinta, em especial, pelos
povos originários:
Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria
acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar
esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e
desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos
antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que
inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de
bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de
transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade.
Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que
conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo (Ailton
KRENAK, 2019, p.14)

Na mesma busca por desconstruir os parâmetros eurocêntricos do pensamento


16

acadêmico, como as referências anteriores nos convidam a refletir, podemos encontrar


uma série de estudos publicados que se comunicam com essa proposta a partir da
escrevivência. O artigo de Lissandra Vieira Soares e Paula Sandrine Machado,
''Escrevivências'' como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em
Psicologia Social (2017), utiliza-se da escrevivência como
[...] uma subversão da produção de conhecimento, pois, além de introduzir
uma fissura de caráter eminentemente artístico na escrita científica,
apresenta-se por meio da entoação de vozes de mulheres subalternas e de sua
posicionalidade na narração da sua própria existência (p.208)

Em outras produções, observamos que destacar o protagonismo de vozes


subalternizadas, especialmente de mulheres negras, se constrói como um pilar essencial
para a solidificação da escrevivência, em diversas áreas, não apenas na Literatura, como
em parte da prática científica. Nesse contexto, nos apontam Viviani Cavalcante de
Oliveira Leite e Edgar Nolasco (2021), podemos ler a “[...] escrevivência para (re)incluir
o corpo do sujeito subalterno em sua própria história” (p.6). Assim como Iris Verena
Oliveira propõe em sua pesquisa: “trazer à tona a produção das intelectuais negras sobre
educação e questões étnico-raciais atentando para o lugar atribuído à diferença em suas
concepções de conhecimento e currículo” (2017, p.638). Por isso, ao refletirmos sobre o
pensamento social no Brasil, as composições elaboradas juntamente com uma
perspectiva literária não nos distanciam da responsabilidade metodológica do campo.
Principalmente porque admitimos que, seguindo os escritos de Fabiana Carneiro da
Silva, “a fala do 'corpo vivido' das mulheres negras no Brasil adquire posição de
(re)existência convocando a literatura também como espaço de transcriação da história e
da identidade” (2020, p.113-114).
Em 2020, organizada por Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes, a
publicação Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo,
reúne uma série de textos sobre o conceito, inclusive dois artigos de Conceição Evaristo7.
Destacamos o capítulo de Fernanda Felisberto, Escrevivência como rota de escrita

7
A obra está disponível, de forma gratuita, no site do Itaú Social:
https://www.itausocial.org.br/divulgacao/escrevivencia-a-escrita-de-nos/
17

acadêmica. Nele, situa a conjuntura contemporânea sobre seu uso e discorre sobre as
(im)possibilidades no meio acadêmico:
A despeito de uma miopia social e de uma blindagem em torno de um projeto
uno de currículos e saberes, a cada dia um número maior de áreas das ciências
humanas e sociais vem construindo novas práticas docentes, alinhadas a
releituras curriculares, e a emergência de novos atores sociais tem permitido,
de fato, que um projeto decolonial venha se forjando dentro da produção de
saber brasileira, apesar dos privilégios que alguns grupos insistem em manter.
(FELISBERTO, 2020, p.169)

A emergência de novos atores sociais, como a autora descreve, também está


conectada com uma série de políticas de enfrentamento ao racismo. Pontuamos a
importância da Lei 10.639/03 referente à obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura
Afro-brasileira e, posteriormente, a Lei 11.645, que incluiu a História e Cultura dos
Povos Indígenas. E também a Lei nº 12.711/2012 que estabeleceu as ações afirmativas,
em nível federal, nas instituições de ensino, com categorias para pessoas pretas, pardas e
indígenas, e para estudantes de baixa renda que estudaram no ensino público. Tais
acontecimentos podem ser descritos como parte do envolvimento e da resiliência do
Movimento Negro enquanto dispositivo educador, como a socióloga Nilma Lino Gomes
explica:
[...] a organização dos negros e das negras desde a escravidão até o Movimento
Negro da atualidade é capaz de suscitar um tipo de subjetividade
desestabilizadora que desvie do conformismo perante o racismo para a
subversão, superação do mesmo e para construção de políticas radicais de
igualdade racial. (2019, p.112)

Importante salientar que não tratamos de um Movimento Negro homogêneo. As


relações entre identidade de gênero e sexualidade são temas que ainda precisam de maior
visibilidade dentro das organizações dos movimentos sociais, como destaca Megg Rayara
Gomes de Oliveira (2020).
Os currículos e planos de ensino passam por mudanças, alterações que não se
separam das falas e questionamentos proferidos pelos novos corpos que ocupam as salas
de aula, cada vez em maior número, embora ainda tenhamos muitas disputas e
(re)conhecimentos para construir e desconstruir no meio científico. Dessa forma,
desenvolver espaços mais seguros para dispormos de nossas contribuições e leituras de
mundo, sem represálias ou censuras, é urgente.
Essas foram breves ilustrações que demonstram a ascensão do uso da
18

escrevivência nas pesquisas e nas escritas científicas e, consequentemente, sua premissa


intrínseca de modificar as estruturas mais convencionais do fazer acadêmico. Seguimos
adiante, no intuito de contar mais uma história, em outras palavras, escreviver a narrativa
da chegada da primeira autora, mulher negra, de sexualidade dissidente, cisgênero,
periférica, na UFRGS, no curso de Ciências Sociais, em 2014.

5. UM COMEÇO ESCREVIVENTE

O melhor começo poderia ser a motivação inicial e o processo de recolhimento


dos materiais para elaborar este texto. Revisitar produções passadas sempre me pareceu
uma das apostas mais justas, reflexivas e instigantes da pesquisa social. Será que existe
um tempo mínimo de contribuição para a revisão de um trabalho teórico? Bom, se existe,
nunca encontrei em nenhum dos manuais clássicos sobre o tema. Mesmo se houvesse,
não seriam os manuais condensados e rígidos que iriam impedir uma pesquisa
propositiva, dançante e questionadora de criar vida. Nesse sentido, as novas apostas dos
estudos antropológicos decoloniais, queer e de feministas negras, nos possibilitam
expandir a imaginação e tensionar as práticas antigas e ocidentais de fabricar
conhecimento científico. Os movimentos feministas comprovam, há décadas, que o
pessoal também é político, sendo assim, minhas prateleiras entram na dança para analisar
quais são os papéis e as construções fundamentais para distinguir as posições ocupadas
por mim nesses campos de disputas de saberes.
Ao entrar em um cômodo cheio de objetos aleatórios, como máquina de cortar
grama, flores artificiais, DVD’s antigos, ursos de pelúcia e fantasias de carnaval,
aumentou, significativamente, o desejo de vasculhar e encontrar os vestígios documentais
que me atravessaram e fundamentaram meu percurso como estudante e agora profissional
formada. Um armário vermelho, de ferro, com cerca de dois metros, pouco revisitado e
as mãos sujas de poeira são alguns dos elementos que compõem o cenário inicial desta
pesquisa. Como sou professora, trabalhos e materiais didáticos das mais diversas cores,
enclausurados por alguns anos, trazem memórias repletas de risadas, noites
acompanhadas de queimaduras de cola quente, ideias mirabolantes de última hora,
mensagens de carinho e desenhos de canetinha e giz de cera feitos por crianças com um
19

carinho imenso por sua jovem professora.


Grandes nomes como Margaret Mead, Anísio Teixeira, Gaston Bachelard,
estavam lá, confinados, junto com meus pensamentos e diálogos a lápis e à caneta, nas
cópias dos polígrafos pagas com muito custo. Chegara o momento de revisitá-los, de
olhar os conceitos que (des)aprendi, talvez pela falta do uso nas escritas do presente, e
também estabelecer as desnaturalizações e as novas aquisições epistêmicas. Por exemplo,
ao reler os escritos de Pierre Bourdieu, notar que agreguei muitas outras referências sobre
as disputas de (re)conhecimento cultural no ambiente escolar. Hoje, encontro em autoras
como bell hooks, em Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade
(2017), teorias sobre o sentimento de comunidade e exclusão que a escola pode
impulsionar e criar. Principalmente porque a intelectual reconhece que “a sala de aula
continua sendo o espaço que oferece as possibilidades mais radicais na academia.”
(hooks, 2017, p.23). Para os manuais universalizantes que desenham um homem branco
como pesquisador, cuja sombra ainda me persegue, eu, mulher preta, desafio e explano:
também faço pesquisa e todas essas recomendações não são para uma pesquisadora como
eu.
Existem outras implicações nas produções que muitos livros não são capazes de
abranger, principalmente, por serem baseados em viseiras colonizadas. Nas longas
páginas de provas, percebo um crescimento através dos exemplos e das referências que
agora utilizo e também me constituem. No rio de apostilas feitas com os textos dos
cronogramas das primeiras disciplinas, encontro muitas cores marcando frases essenciais
para o seu entendimento, mas também várias incompreendidas. Nessa busca e
reformulação, me encontro e exponho novos diálogos possíveis com uma formação
institucional que priorizou o conhecimento eurocêntrico e masculino, deixando de olhar
para o potencial das mentes do próprio país e continente.
Outro começo possível seria retratar as preparações para iniciar um curso superior
em uma universidade pública federal, tornando-me, assim, a primeira da família a
realizar esse feito. Aqui, apresento o início de uma história comum para milhares de
pessoas negras, que em um aumento expressivo, na última década, também passaram a
ocupar um espaço de direito em instituições do Ensino Superior público. Principalmente,
devido às políticas de ações afirmativas, implementadas, gradativamente, desde 2003, até
20

a decisão federal de sua instauração em todo território nacional, em 2012. Segundo a


pesquisa, a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
descrita pelo site Quero Bolsa: entre “2010 e 2019 - o número de alunos negros no ensino
superior cresceu quase 400%. Os negros chegaram a 38,15% do total de matriculados”
(COSTA, 2020, p.1). No entanto, ainda mostra uma grande disparidade em relação ao
total da população nacional, visto que cerca de 54% são pessoas negras (PRUDENTE,
2020). O racismo é um dispositivo excludente e estruturante do acesso ao ensino,
marcando a trajetória de milhões de vidas, o que se acentua, diferentemente, de acordo
com as relações nos campos sociais e na construção singular das subjetividades.
Compreendo, portanto, que os lugares de origem, estrutura familiar, gênero, sexualidade,
entre tantos outros marcadores sociais, mudam a maneira com que cada indivíduo irá se
relacionar com a educação e como o lado de dentro dos muros das instituições de ensino
atenderá essas pessoas.
Como a primeira da família e sem muitas referências no bairro, o medo e a
insegurança eram latentes nos dias anteriores ao início do semestre, que nesse caso, não
seria apenas como estudante de graduação, visto que também daria início ao estágio final
do curso normal, magistério. No mesmo dia em que assumi uma nova posição como
aluna, também me conheci como professora de uma turma do terceiro ano do ensino
fundamental. Essas experiências simultâneas resultaram em inúmeras viagens de ônibus
entre dois municípios, a capital e uma cidade-dormitório, onde morava, Alvorada.
Despesas significativas em, pelo menos, seis viagens por dia.
Antes de embarcar nesse cotidiano atarefado, pensei na importância que seria
começar com o pé direito. Naquela época, significaria ter um cuidado especial com o
cabelo, muito embora, depois de inúmeras progressivas, ele e eu, já sentíamos a exaustão
antiga em passar horas sob efeito de queimaduras e produtos químicos fortíssimos. O
alisamento completo da raiz durava menos de um mês, logo, teria que voltar a atá-lo em
amarrações e coques estáticos. Mesmo depois de tomar a decisão de alisar mais uma vez
para ingressar nas novas etapas, um cabelo que, há muitos anos, eu não conhecia e
aprisionava, sabia que aquela seria a última. Apesar da escassez de referências negras e
feministas, vislumbrava, à distância, o cabelo como um motivo de orgulho. No entanto, a
busca adolescente por discursos diferentes dos hegemônicos estava confinada na decisão
21

de não saber o que fazer ou como valorizar os fios crespos independentes e


desconhecidos. Nos dois ambientes em que dedicava a maior parte do tempo diário, os
fios lisos foram colocados à prova.
Na universidade, em uma das aulas de Antropologia ou Sociologia, entrou em
pauta a discussão sobre os efeitos do racismo. Uma colega negra, formando comigo o
conjunto de mulheres negras em uma turma de quase trinta estudantes, deu o exemplo do
cabelo como um reflexo do silenciamento racista no país, seus cachos eram trançados e
cintilantes. Depois daquela colocação, me senti dissecada, o centro dos olhares, talvez
paranoia, mas me senti exposta como um produto clássico do racismo no Brasil, com
aqueles cabelos alisados e olhar desconcertado. Questionei internamente, como alguém
levaria a sério meus posicionamentos em sala de aula sendo eu “uma representação
ambulante de um processo colonizador”?
Como professora, também passei por um episódio desafiador, em um dos
momentos em que estava corrigindo alguns cadernos, uma aluna se aproximou da mesa e
enunciou o quanto o meu cabelo era bonito e gostaria de um dia ter o seu igual. Uma
estudante negra de onze anos, com cabelos crespos longos, volumosos e castanhos claros,
me lançou o que seria um elogio, recebido, porém, como um aperto violento no peito,
carregado de arrependimento por ter sentado, mais uma vez, na cadeira do salão de
beleza, sobretudo já intuindo que aquela ação não refletia mais quem eu era. Diante da
aluna, contudo, mesmo dizendo o quanto seu cabelo era bonito e que ela não deveria
passar por aquele processo, minhas palavras não correspondiam com o que eu
representava. A docente com a pele negra, cabelos crespos alisados era uma
demonstração da rejeição que aquela criança sentia em relação a si mesma, e que as
revistas, a televisão, os filmes reforçam ao sublinhar características não brancas como
inferiores.
Hoje, depois de sete anos sem realizar uma escova progressiva, entendo a
importância da estética para a cultura, saúde mental e física das pessoas negras. Ao ter
sua entrada barrada por outra mulher negra no aeroporto, devido aos seus locks crescidos
naturalmente, em uma viagem ao Caribe, em meados da década de 1980, Audre Lorde
(2009) nos pergunta, Is your hair still political?, ou seja, “O seu cabelo ainda é
político?”. Mais de três décadas após o ocorrido que suscitou esse questionamento de
22

Lorde, aventuro-me em responder que sim, o cabelo afro ainda é político. Os reforços
positivos são necessários, principalmente para as mulheres negras fugirem dos
sentimentos de menosprezo e desvalorização impostos por diferentes veículos e
mercados capitalistas eurocêntricos. O foco deve estar na desconstrução dos parâmetros
de exclusão e de diminuição da nossa autoestima. Valorizar e enaltecer a nós mesmas
como saída para os vazios e anseios da contínua descoberta de si8.
Discutindo momentos iniciais possíveis, as primeiras lembranças em relação ao
acesso à Universidade são elucidativas. Em um domingo de verão quente e bonito, minha
mãe diz algo do tipo: agora vai ficar mais difícil para ti entrar na faculdade, estão
querendo acabar com as tuas alternativas. Acredito que na época tinha um pouco mais de
dez anos e aquela fala inesperada me entristeceu de forma abrupta. Como se os planos
que ainda não tinham sido estruturados formalmente ou vislumbrados fossem
sequestrados do horizonte. Aquela fala me abalou com tanta intensidade que sequer me
recordo de tê-la questionado mais a fundo, entretanto, quando perguntei o porquê, lembro
de uma resposta relacionada à “nossa cor”. Aquele momento reverberou comigo durante
toda a semana e, de alguma maneira, até os dias de hoje, em que reservo este espaço para
revivê-lo novamente.
No dia seguinte, em sala de aula, olhei fascinada para minha turma. Era uma das
poucas alunas negras em uma sala de escola particular. Passei o ensino fundamental
contando, diariamente, quantas meninas negras havia na sala e quando uma das duas
colegas ou as duas faltavam me sentia visada, sozinha. Em um instante olhei ao redor e
um sentimento novo e pesado pulsava. Por que eu não teria oportunidades de cursar o
ensino superior, mesmo com ótimas notas? Isso não seria justo: ser capaz de cursar uma
faculdade, porém, pelas mazelas excludentes ainda desconhecidas em profundidade, ser
impedida de conhecer outras realidades, sair da minha cidade e descobrir trânsitos novos.
A sensação de injustiça predominou quando refleti que essa não seria a preocupação dos

8
Importante pontuar que pensamos que o modo de estilizar o cabelo não deveria sofrer
julgamentos ou pressão externa para alguma determinada mudança. Que cada pessoa viva o processo de
aceitação e desconstrução da maneira que preferir, a seu tempo e de acordo com a sua escolha.
23

meus pares, a não ser das duas colegas negras e dos dois colegas negros. Será que os
demais sabiam ou se preocupavam com a exclusão que iríamos sofrer se desejássemos
fazer uma faculdade? Será que sabiam desse ataque? Será que pensavam nisso? Nunca
lhes perguntei. Estava isolada e percebia o peso do racismo institucional, mesmo com
pouquíssima idade e sem ferramentas para desvendá-lo.
O assunto a que minha mãe estava se referindo eram as manifestações contrárias à
implementação das ações afirmativas nas universidades públicas do país. Com todas as
reivindicações, influência da mídia e de muitas entidades acadêmicas, a Lei 12.711 de
2012 foi promulgada, exigindo que as universidades federais aderissem,
obrigatoriamente, ao sistema de reserva de vagas para estudantes negros, pardos e
indígenas e também oriundos de escola pública (BRASIL, 2012). A segurança dessa
política pública não apagou o sentimento de ter que trabalhar o dobro ou o triplo para ser
reconhecida e valorizada. Hoje, com mais do que o dobro da idade que eu tinha naquela
época, esse sentimento ainda permanece.
Em uma sala de graduação olhava ao meu redor e me fazia perguntas cujas
respostas têm raízes racistas: por que eu não teria as mesmas oportunidades que essas
pessoas? Por que preciso trabalhar, estudar, estagiar e ainda assim demonstrar que nada
disso interfere no meu envolvimento e compreensão das longas páginas de polígrafos
com uma linguagem rebuscada? Será que os colegas/docentes brancos sabem que nem
todos que compartilham a matrícula na disciplina têm a mesma disponibilidade para
realizar as leituras? Será que eles pensam no quanto os arranjos econômicos, sociais e
familiares estruturam aquela confiança irreverente perante uma sala de mais de trinta
estudantes para declamar suas opiniões? Com o passar do tempo aprendi a fazer outras
perguntas e a entender o lugar de fala em que me encontro para questionar o ímpeto
branco hegemônico. Através dos compartilhamentos de vivências e aprendizados, minha
mãe se reconhece como uma defensora das cotas, antes rejeitadas por ela, devido ao
discurso dominante, intencionalmente racista, de que as ações afirmativas eram um
atentado contra a igualdade. Junto com ela, reparto meus passos no universo acadêmico.
Talvez o melhor começo seja o dos primeiros dias. Por exemplo, as primeiras
impressões no espaço da Universidade, ocupando o lugar como estudante. A inscrição na
reserva de vagas para estudantes negros e de baixa renda foi realizada com confiança e
24

empoderamento. A surpresa no “dia do listão”, divulgação para o público das aprovações


no vestibular, aconteceu quando a nota geral foi o suficiente para passar pelo acesso
universal, ou seja, aquela vaga da reserva poderia ser utilizada por outra pessoa, o que
representaria mais pessoas negras no curso.
Nas primeiras semanas como estudante de Ciências Sociais - Licenciatura,
mergulhei na magnitude de um campus grande, não apenas no sentido territorial, mas
repleto de poder simbólico guardado e exposto pelas suas acomodações. As salas de aula
que adentro são frias e afastadas do centro da cidade, rodeadas por árvores e demais
plantas. Bem diferente do que estava acostumada.
Realizei o ensino fundamental em uma escola privada na minha cidade, em que
meus tênis cheios de barro, nos dias de chuva, demarcavam o assento exato em que
estava, consequentemente, diferenciando quem ia de carro e quem ia a pé para a escola.
Depois me matriculei no Curso Normal, formação de professoras e professores, em uma
escola estadual, localizada na capital do estado. As viagens de ônibus, apertadas e longas,
inspiraram um novo espírito condicionado de liberdade, porém, foram aquelas paredes
imponentes com cartazes reivindicatórios, cheios de humor e protesto, bibliotecas
espalhadas por toda a extensão do campus universitário, que viram sonhos tímidos
ganhar vida. A persistência em seguir na carreira de professora exemplifica a vontade de
representar uma prática docente diferente e imbuída de estratégias para enfrentar as
lógicas racistas, heterocisnormativas que permearam minha circulação nessas
instituições.
As táticas de (re)existir nos espaços acadêmicos é de longa data para as
populações negras. Da mesma forma que para Chimamanda Ngozi Adichie (2014), as
obras de origem africana elucidaram uma representatividade e empoderamento em se
reconhecer na personagem que compartilhava seus traços, também contamos com uma
longa estrada de intelectuais que (re)existiram nesse campo, há décadas e séculos, como
por exemplo, Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento, entre outros nomes fundamentais.
Essas intelectuais negras e negros, e suas produções, encorajam e inspiram a persistência
e o combate aos obstáculos racializados pelas diretrizes educacionais.
Uma série de começos apresenta um pouco do corpo pulsante abastecido de vida
de quem vos fala. Para escrever e contar os emaranhados de um percurso ainda jovem e
25

disposto a crescer, exponho as correntes enclausurantes, produzidas naquele que se


intitula como o “Velho Mundo”. Grilhões (re)produzidos em todo território do continente
americano, com novas tecnologias colonizadoras, afrontadas pelas contribuições e
esforços, aqui expostos, de corpos e ativismo de pessoas negras e não brancas e de
pessoas que não são contempladas pelas divisões binárias e homogêneas de gênero, corpo
e orientação sexual.

6. CONSIDERAÇÕES PARA NÃO FINALIZAR O QUE AINDA ESTÁ POR


VIR

Ao falarmos sobre escrevivência tratamos de democracia, do racismo, do sexismo


entre tantos outros atravessamentos, portanto, destacamos um fazer científico
contundente e necessário para os tempos de ataques deliberados à Ciência que
vivenciamos. Através do espaço para ouvir as vozes que eram excluídas do meio
universitário e da valorização intelectual de seus saberes, desenhamos novos caminhos na
luta em defesa da imaginação e de proposições advindas de referências negras para os
debates acadêmicos.
Concluímos que escreviver representa uma gama de possibilidades para corpos
inferiorizados, pois pode ser uma estratégia de visibilidade e representatividade de
experiências que são invisibilizadas no meio acadêmico. A valorização da escrita de
mulheres negras, em especial, constitui-se como um grande diferencial desse método.
Pesquisas sobre a escrevivência na prática das Ciências Sociais ainda estão despontando,
no entanto, as investigações já publicadas demonstram um desenvolvimento promissor
para um campo que acolhe a invenção e a criatividade na análise dos fenômenos sociais.

REFERÊNCIAS

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https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/tr
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ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

BENTO, Maria Aparecida Silva.Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Psicologia


26

social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Iray Carone;


Maria Aparecida Silva Bento (Orgs) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58).

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universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e
dá outras providências. Disponível em:
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Agência Brasil. Disponível em:
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CURIEL, Ochy. Género, raça, sexualidade — debates contemporâneos. Tradução:


Geanine Escobar; Maria Manuel Baptista. In: Género e Performance: textos essenciais
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Scripta, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2009.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

EVARISTO, Conceição. A Escrevivência e seus subtextos. Escrevivência: a escrita de


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Rosado Nunes (orgs.). Ilustrações Goya Lopes. 1. ed. Rio de Janeiro: Mina Comunicação
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