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Há também, nos três casos, a questão de quais evidências podemos recorrer para
a integração descritiva. Cada um dos três chega até nós através de diferentes tipos de
registros, e cada tipo requer tratamento adequado em seus próprios termos. Acredito que
esta evidência é melhor interpretada quando colocada nos contextos da vida social e
cultural, situados dentro dos parâmetros de uma determinada economia política. Tal
análise deverá permitir-nos localizar agrupamentos humanos no mundo natural e tornar
manifestas as formas como eles se transformam ao transformarem os seus habitats. Para
ver como isto é conseguido, devemos prestar atenção a quem comanda o trabalho
disponível para a sociedade e como esse trabalho é organizado através do exercício do
poder e da comunicação de ideias. Cada um dos casos poderia ser analisado focando
exclusivamente no comportamento observado, mas muito se perderia se não fôssemos
capazes de falar também sobre o afeto motivador incorporado nas ideias, as construções
dependentes da mente que levaram as pessoas a se envolverem no potlatch, em
sacrifício humano ou em celebrações de “superioridade racial”. Estas ideias assumem
formas próprias que não são diretamente dedutíveis de factos materiais ou sociais, mas
estão implicadas na produção material e na organização social e, portanto, precisam de
ser compreendidas em tais contextos.
Escrevo estas linhas como antropólogo, embora como alguém que vê a sua
disciplina como um elo no esforço mais abrangente das ciências humanas para
compreender e explicar as múltiplas condições humanas. Historicamente, a antropologia
deve a sua posição ao facto de se ocupar principalmente com povos que durante muito
tempo foram erroneamente considerados marginais e irrelevantes para a busca da
civilização. Esta experiência permitiu aos antropólogos assumir um ponto de vista
privilegiado ao olhar comparativamente para os povos em todos os sentidos, tanto
dentro como fora dos limites estabelecidos pelos porta-vozes da modernidade
progressista. O outro determinante principal do papel especial da antropologia entre as
ciências humanas tem sido o seu método de sair para viver, por períodos prolongados de
tempo, entre as pessoas a serem estudadas. Isto permitiu aos investigadores
antropológicos não só obter visões mais abrangentes de como as pessoas viviam as suas
vidas, mas também confrontar as discrepâncias entre os propósitos anunciados e o
comportamento de facto. O comportamento muitas vezes não segue os roteiros
apresentados em discursos e textos; muitas vezes também obedece a razões encobertas
que não respondem aos objetivos ideais. A experiência de tais discrepâncias fez com
que muitos antropólogos tivessem dúvidas profissionais sobre os estereótipos de outras
culturas, por vezes avançados sem crítica pelos seus colegas em disciplinas afins.
Este estado de coisas tem uma história. O capítulo que se segue, “Conceitos
Contestados”, examina como este passado contribuiu para moldar as nossas capacidades
teóricas no presente. Aí considero o contexto histórico que deu origem às nossas
construções teóricas e delineio as circunstâncias que por vezes as tornaram palavras
combativas de disputas políticas e intelectuais. Passo então aos três casos. Os leitores
interessados na história das ideias desejarão acompanhar os argumentos em "Conceitos
Contestados"; outros podem querer ir diretamente para os estudos de caso. A forma
como os capítulos são ordenados, no entanto, persegue um propósito. Se, como escreveu
Karl Marx, “a tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro
dos vivos” (1963, 15), isso vale tanto para os antropólogos como para as pessoas que
eles estudam. Compreender de onde viemos, estabelece os termos de como trabalhamos
com nosso material de caso e das conclusões que extraímos dele.
2 - Conceitos Contestados
Procurando relacionar ideias com poder, entramos num terreno intelectual que
muitos outros já traçaram, embora em resposta a propósitos diferentes dos nossos. Estes
esforços passados deixaram-nos um stock de conceitos, alguns dos quais podemos
apropriar-nos e utilizar, outros podem já não ser úteis. Os legados são sempre
problemáticos e devem ser resolvidos para responder a novos empreendimentos. A
antropologia, por exemplo, tem entendido “culturas” como complexos de propriedades
distintas, incluindo diferentes visões do mundo, mas durante muito tempo sem prestar
atenção à forma como essas visões formulavam o poder e subscreviam os seus efeitos.
Outras ciências sociais abordaram esta questão sob o nome de “ideologia”, tratando a
cultura e a ideologia como opostas e não como complementares. Neste contraste, a
"cultura" foi usada para sugerir um domínio de laços comunitários íntimos que unem,
enquanto a "ideologia" evocava cenários de conflitos faccionais entre grupos de
interesse egoístas. Assim, “cultura” recebeu uma avaliação positiva, enquanto
“ideologia” sofreu uma mudança de significado para pior. Outros dos nossos conceitos
relevantes sofreram transformações relacionadas.
Tais mudanças no significado e na avaliação têm uma história, que precisa de ser
explicada para esclarecer as questões intelectuais em jogo. A utilização de termos sem
atenção aos pressupostos teóricos e aos contextos históricos que lhes estão subjacentes
pode levar-nos a adoptar conceitos não analisados e a arrastar as suas conotações
mistificadoras para trabalhos futuros. Traçar a história de nossos conceitos também
pode nos conscientizar do quanto eles incorporam esforços intelectuais e políticos que
ainda repercutem no presente.
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O Iluminismo
Páginas 45 e 46
O Contra Iluminismo