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DOSSIÊ

o LUGAR DO INDiVíDUO
NA SOCIOLOGIA:
SOB O PRISMA DA LIBERDADE E DOS CONSTRANGIMENTOS SOCIAIS
IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA'

iscutir sobre o lu- RESUMO mento aqui desenvolvi-


gar do indivíduo A idéia do artigo é discutir a aparente dualidade entre indivíduo e sociedade do é o de que as temati-
nas in terpreta- que parece acompanhar a sociologia, em vários autores e teorias, em dife- zações sociológicas que
rentes momentos históricos, sob a forma de uma interação que poderia ser
ões teóricas do mun- designada como o "paradoxo da liberdade e do constrangimento". O argu- priorizam de forma di-
":'0 social, incluindo mento desenvolvido no artigo é o de que as tematizações sociológicas que ferenciada os planos in-
priorizam de forma diferenciada os planos individual e social fazem parte da
oarticularmente a soei-
história desse campo do saber, caracterizando uma espécie de movimento
dividual e social fazem
logia, é enveredar por pendular. Trata-se de um percurso não linear, influenciado por concepções parte da história desse
um terreno pantanoso filosóficas e políticas construídas em diferentes momentos, com repercus- campo de saber, carac-
sões sobre os modelos teóricos que integram o campo das ciências sociais.
em torno do qual as di- No desenvolvimento das reflexões, o artigo reporta-se a autores clássicos e terizando uma espécie
reções são múltiplas. contemporâneos que se dedicaram particularmente às interações entre indi- de movimento pendular.
víduo e sociedade, delimitando ainda, como exemplo, a discussão sobre a
rata-se de um lugar ação de indivíduos, considerados sujeitos de direitos, presente na literatura
Trata-se de um percur-
óvel e variável, se- sociológica sobre os movimentos sociais. so não linear, influen-
.=: do o papel que di- ciado por concepções
ABSTRACT
:erentes teóricos atri- THE INDIVIDUALS PLACE IN THE SOCIOLOGY:UNDERTHE PRISM OFTHE filosóficas e políticas,
uíram ou atribuem à FREEDOMAND OF SOCIAL CONSTRANGIMENTOS construídas em diferen-
•ão dos indivíduos em The idea of the article to discuss the apparent duality between the individual and tes momentos, com re-
sociedade, na condição society that seems to accompany sociology, in several authors and theories, percussões sobre os
during different historical moments, under the format of an interaction that could modelos teóricos que
e agentes que se mo-
bedesignatedas lhe 'paradoxof freedomandconstraint". Theargumentdeveloped
em entre o plano da is that such a sociological theme that gives a different priority to the individual integram o campo das
iberdade e o dos limi- and sociallevels makes part of the history of the epistemic field, characterizing ciências sociais.
a pendular movement.1t is a none linear course, influenced by philosophic and
tes impostos pelos political conceptions built in different moments, with repercussions on the Para efeito das
onstrangimentos soei- theoretical models that shape the field of the social sciences. argumentações aqui
By developing those reflections. the article makes a reference to classic and
is. A idéia deste arti- apresentadas, recorro a
contemporary authors that were dedicated particularly to the interactions
o, mais modesta que between the individual and society, still defining, as an example, the discussion autores clássicos e con-
o título parece sugerir, around individual action, considered to be subject of rights, present in the temporâneos que se
sociologicalliterature of social movements.
não se inscreve na bus- dedicaram particular-
ca de proposições teó- . Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais/ Programa de Pós- mente a essa questão,
Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
ricas inovadoras, ou delimitando ainda,
ugestões alternativas como exemplo, a dis-
críticas à dualidade (indivíduo e sociedade) que pare- cussão sobre a ação de indivíduos, considerados
ce acompanhar a sociologia, em vários autores e s/!Jeitosde direitos, presente na literatura sociológica
teorias, em diferentes momentos históricos. sobre os movimentos sociais.
Apresentar o que poderia ser designado de A liberdade e os limites da ação, presentes
"paradoxo da liberdade e do constrangimento" em teorizações que enfatizam a capacidade criati-
remete, antes, a um exercício especulativo, tendo va ou restrita dos indivíduos em suas interações
por base as teorizações, com ênfases diferencia- cotidianas, 'constituem uma questão interdisci-
das, sobre o que se nomeia de social e o que se plinar que toca a sociologia, a antropologia e a
designa como individual. Resumidamente, o argu- história. A percepção de que o indivíduo é supor-

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te do social, ou a idéia segundo a qual a sociedade estatuto contraditório dessas definições deixa em
é resultado das interações individuais trazem im- suspense o modo como o que está sendo denomi-
plícitas concepções gerais de cunho episternológi- nado de individual torna-se social e vice-versa. Traz
co, que atingem-diferenres ciências do comporta- também implícita a idéia de que as ciências do com-
mento, sendo a sociologia o exemplo talvez mais portamento, cada uma a partir de seu recorte, pre-
evidente. Nunca é demais lembrar que a sociolo- encheriam as dimensões lacunares da interação
gia construiu suas formulações analíticas iniciais entre indivíduo e sociedade.
apontando os constrangimentos do agir humano, Buscar a presença de uma totalidade trans-
haja vista as imposições e regras superpostas às cendente às diferentes ações individuais constituiu
deliberações individuais. Esta foi a primeira rup- a tarefa fundante da sociologia, para quem o soci-
tura com as versões da psicologia, também acom- al possui uma dinâmica própria, não redutível a
panhada de críticas a visões de mundo formuladas expressões peculiares. Nessa perspectiva,
sob a ótica do encantamento. Durkheim apontou os atributos de coerção
Não seria exagerado afirmar que a discus- exterioridade e generalidade como definidores do fato
são sobre a interrelação entre indivíduo e sociedade social, considerando o indivíduo produto de um
representa um dos problemas clássicos e contem- conjunto de injunções normativas. Uma ação que
porâneos da sociologia. Lembremos, a esse respei- pareceria ser dirigida por opção individual estaria
to, Wright Mills, que, na discussão sobre a "imagi- na realidade, condicionada a regras amplas de so-
nação sociológica", concluiu: cialização, não aparentes à primeira vista.
Não obstante as diversidades teóricas, é
"Nenhum estudo social que não volte ao importante, do ponto de vista sociológico, pensar
problema da biografia, da história e de suas o complexo integrador que relaciona indivíduo e
interligações dentro de uma sociedade sociedade. O processo de socialização, nas concep-
completou sua jornada intelectual" ções que seguem a perspectiva sistêmica, consti-
(Mills,1969, p.12). tuiria o passaporte de entrada para a vida em soci-
edade: o preceito de internalização ou incorpora-
As variações de significado atribuídas ao ção das normas sociais. Esse suposto, não eviden-
indivíduo, visto como agente dotado de auto-deter- te à primeira vista, faz com que o permitido, o
minação, ou condicionado por imposições que proibido, as classificações e as divisões simbólicas
escapolem à sua vontade, terminaram por delimi- do mundo apareçam como sendo naturais, inte-
tar diferentes enfoques sociológicos. Oscilam, por- grando a "ordem das coisas". A incorporação de
tanto, no âmbito de diferentes teorizações sobre a valores e normas tornaria o indivíduo ligado à
vida social, concepções de ação social que malhas de um mundo que o antecederia, forne-
priorizam a "determinação" ou a "autonomia", cendo-lhe um mapa de navegação social.
trazendo logicamente implícitas percepções dife- Não por acaso, Durkheim escolhe estudar
renciadas sobre o que poderia ser designado como o suicídio para encontrar, através desse ato su-
o "lugar do indivíduo" na sociedade. pàstamente dotado de uma deliberação indivi-
Uma rápida incursão em dicionários clássi- dual inquestionável, as marcas do tecido social.
cos de sociologia revela que o objeto de estudo E é justamente lá, onde o social parece à primei-
desta ciência do comportamento é apresentado de ra vista ausente, que sua presença se faz de modo
modo dual. A sociologia, tanto é vista como a "ci- implícito e alusivo à falência das regras que soli-
ência do indivíduo submetido a condições sociais dificam a consciência coletiva. O estudo do suicídio
e culturais" (1970), como o estudo do "indivíduo e a análise do crime permitiram mostrar que o
como ser dotado de características singulares". O ato aparentemente mais individualizado era, na

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~erdade, uma manifestação de contextos sócio- do da razão universal posta acima das contingên-
culturais indutores de formas variadas de solida- cias, tendo em vista a realização plena do ato de
riedade e transgressão. A bem dizer, o ato de sui- conhecimento. A racionalidade promoveria a me-
ídio que tocava os temas da morte e da vontade, diação entre homens conscientes de seus objeti-
orno bem argumentou Wacquant (1995, p. 657), vos e capazes de, através da observação, da classi-
emonstrava a não-existência de condutas inde- ficação e da generalização, diluir as regiões opacas
• endentes: o prolongamento inquestionável da do saber. A autonomia apontaria para a liberdade
-ida social sobre os indivíduos. do indivíduo não mais submetido às normas reli-
Não faz sentido, nos limites desta refle- giosas, mas suficientemente munido de ferramen-
xão inicial, questionar a eficácia ou os limites da tas, a razão, para descobrir e recriar o mundo.
teoria de Durkheim acerca do contexto social con- As noções segundo as quais o indivíduo ti-
remporâneo. Antes, é importante chamar aten- nha liberdade de escolha e capacidade de gestão
cio para o fato de que, no âmbito da sua sociolo- da própria vida, tornando-se, portanto, stijeito de
~'a, indivíduo e sociedade são elementos de um mes- sua história foram construídas à época da
:no diagrama. A afirmação da sociologia ocorre, modernidade. Naquele momento, o indivíduo, per-
• esse contexto, com base na vigência de um mun- cebido como dotado de vontade e livre de pode-
o social transcendente, com regras e normas de res ocultos que escravizavam a razão, passava a
mncionamento. construir seu projeto de vida. Era visto como por-
tador de potencialidades transformadoras as quais,
Concepções de individuo e sociedade acrescidas da ajuda da ciência, permitiam a cons-
tante ultrapassagem de limites. Foi precisamente
o tema da interdependência entre indivíduo no final do século XVIII e início do século XIX
e sociedade demanda discussões referentes ao que que se solidificou uma forma de relação entre in-
-e pode entender por cada um desses conceitos. divíduo e sociedade baseada na crença no progresso e
Foi principalmente a filosofia que elaborou ques- na capacidade de desenvolvimento da razão. De-
tões sobre o sentido da existência do indivíduo no duz-se também, desse contexto, a importância
mundo, incorporando também, a essa polêmica, conferida à autonomia e à liberdade enquanto va-
reflexões sobre o sujeito do conhecimento. lores indissociáveis da vida coletiva.
O indivíduo racional foi concebido como A variabilidade de designações atribuídas ao
estando voltado para si, para a sua história, rom- representante dessa unidade indivisível de expressão
pendo com a dimensão religiosa que o percebia do social (indivíduo, ator, agente ou st!}cito) fundamen-
como criatura feita à imagem e semelhança de tou várias teorias com visões implícitas ou explícitas
Deus. Como sl!jeito da razão, o indivíduo foi valori- sobre os sentidos da ação humana em sociedade.
zado por suas potencialidades de conhecimento e Emergiram também oposições. Comecemos
ua capacidade de transformar o mundo. A razão pela conhecida dicotornia sujeito e objeto que está
estaria também a serviço de uma verdade. na raiz metodológica do conhecimento na área de
Rouanet (1993), discutindo os valores ciências sociais. Se as ciências exatas fizeram da eli-
construídos à época da modernidade, aponta os minação do casual, dos indícios e da intuição seu
ideais de universalidade, raaonalidade e autonomia como status de legitimidade (Ginzburg, 1990), os
aspectos fundamentais do projeto iluminista, mo- paradigmas clássicos das ciências sociais, na tentati-
mento no qual configuram-se novas perspectivas va de seguir percurso similar, estabeleceram regras
de compreensão do papel desempenhado pelo in- de controle sobre a observação dos fatos sociais.
divíduo na sociedade. A dimensão de universali- Aqui vale a pena recordar Durkheim que, ao
dade, sob influência kantiana, baseia-se no prima- estabelecer normas para a definição do método so-

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ciológico, construiu a célebre metáfora da observa- siderado criativo, seja na sua capacidade de desen-
ção dos fatos sociais como coisas. Esse sentido de um volver as forças produtivas a serem aplicadas em
olhar distanciado gerou inúmeras polêmicas porque se uma industrialização capitalista emergente, seja na
interpretou literalmente tal atitude como sintoma construção de 'sua capacidade de gerir de forma
de afirmação positivista ou indiferença face às con- autônoma a vida social e política.
dições de transformação do mundo social. A con- A era denominada pós-moderna, em oposi-
trovérsia em torno da observação dos fatos sociais ção, argumenta sobre a necessária perda da noção
perdura até hoje, embora haja atualmente um relati- substantiva e essencialista de liberdade, conside-
vo consenso entre pesquisadores de que o "ponto rada utópica e totalitária. Desde o final do século
de vista" também define o objeto, sempre em situa- XX, assistimos a uma espécie de descrença na ca-
ção ambivalente com o sujeito da observação. pacidade dos diferentes indivíduos enfrentarem os
Outra ordem de questão que caminha em dilemas da sociedade contemporânea. Nas ciênci-
sentido oposto ao tema da objetividade refere-se à as sociais essa descrença polariza proposições que
idéia de compreensão como método analítico de vão da necessidade de recomposição das energias
captação dos fatos sociais. A discussão que Weber utópicas ate o descentramento das grandes narrati-
retoma de Dilthey funda-se na afirmação da espe- vas compostas por teorias de largo alcance que in-
cificidade das ciências sociais que, ao contrário das fluenciaram as diversas correntes de pensamento.
ciências da natureza, têm como tarefa desvendar A idéia de um sujeito menos determinado e
um mar de significados simbólicos não apreendi- sábio a respeito de seus próprios limites parece
dos de forma objetiva. Compreender, portanto, é estar em curso. As reflexões amparadas sob o sig-
mergulhar nos mitos, nos significados e na histó- no da pós-rnodernidade encontram eco na afirma-
ria. É interagir, assim, com o objeto analisado. As ção do indivíduo submetido à lógica de um siste-
questões atuais postas pela hermenêutica são ma sobre o qual não possui controle - o indiví-
reafirmações desses princípios. duo errante na busca de uma unidade perdida.
A querela que opõe valorização dos elemen- A pós-modernidade critica a razão planeja-
tos subjetivos ou oijetivos na observação e análise dos da baseada no sujeito do progresso, instituindo em
fatos sociais recebe diferentes tratamentos ao longo seu lugar o sujeito do imponderável, "depois de
da história do pensamento sociológico. As formula- século de fé brutal de que tudo pode ser conhecido,
ções atuais, que valorizam o uso de histórias de vida, conquistado e controlado" (Sevcenko: 1990,54).
o engajamento ou a observação participante como As repercussões dessa reflexão que se estabe-
diagramas de apreensão do mundo social, expressam lece no domínio das artes, da política e da sociologia
a existência de uma permanente polêmica no espaço não são evidentes. Não basta dizer que um novo
das formulações metodológicas, que trazem em seu homem sociológico emerge na condição de ator
interior definições do papel do observador no ato irreverente. É importante lembrar que a sociologia,
da pesquisa e na construção do conhecimento. Tais mesmo com teorias diversificadas para entender a
definições expressam não apenas disputa entre cor- ação dos indivíduos, considerou a razão e o conhe-
rentes de pensamento no campo sociológico, con- cimento lógico do social como elementos básicos
tendo também influências dos valores construídos de sua reflexão. Em contraposição ao postulado li-
sobre o que se designa por social ou individual beral da ação livre das armadilhas, considerou tam-
A modernidade, por exemplo, pode ser per- bém o princípio da lógica das determinações, sob o
cebida como uma época em que a primazia estatuto da racionalidade acima das contingências
conferida à liberdade põe o indivíduo no centro Talvez se possa afirmar que o grande sujei-
das reflexões. O século XIX, nesse sentido, cons- to racional e finalista que construía a história, sen-
titui um espaço de tematização do indivíduo con- do base de modelos teóricos de interpretação da

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ida social, encontra-se hoje em questão. Em seu Tais reflexões são importantes para se pen-
ugar, surgem indivíduos diversificados e movidos sar que as noções de indivíduo, produzidas em
oor razões nem sempre controláveis, porque tam- diferentes momentos da história do pensamento
ém inconscientes. Importa lembrar que os ideais social, vão influenciar as produções culturais, in-
. uministas que influenciaram a sociologia, valori- cluindo a música, o romance e as ciências sociais .
zando a idéia de ação social plena de poten- São concepções de indivíduo e subjetividade his-
cialidades, foram também quebrados pela crítica à toricamente diferenciadas que fazem emergir vá-
~usão do indivíduo livre, haja vista o reconheci- rios modelos de interpretação: as noções do sujei-
mente da existência e permanência de hierarquias to auto-contido da ideologia liberal, da subjetivi-
_ posições na sociedade contemporânea. dade que "vem de dentro" da era do romantismo,
O duplo caráter da modernidade, enfatizado e de perda gradativa de crença na capacidade
;>ürvários autores, entre os quais Touraine (1992), transformadora que emerge na época contempo-
ama atenção para o reino da razão, da história e rânea (Figueiredo, 1995).
lógica ao lado do apelo ao sujeito, ao indivíduo As reflexões sobre as concepções de indiví-
_ à autenticidade contra a razão total. A crise da duo, aqui delineadas de modo genérico e sem mai-
razão, segundo o autor, terminaria por retirar do ores aprofundamentos, influenciam modelos teó-
:::::onoo indivíduo homogêneo, pondo em seu lu- ricos diversos no âmbito das ciências sociais. Em-
;:, um outro sujeito capaz de lutar contra a idéia bora as considerações sobre essa temática nem sem-
e um social reduzido a leis. pre revelem uma clara dicotomia entre os mesmos,
As objeções feitas à crítica da razão são como se verá mais adiante, as interpretações do
bém contundentes. As questões que repõem mundo social supõem a existência de um ângulo
tema da pós-rnodernidade, advertem alguns au- de observação sobre as interações ocorrentes en-
- res, têm o perigo de, ao destituir do trono da tre o que se nomeia de indivíduo e o que se designa
ência o sujeito da razão, deixar o vazio da por sociedade. Essas são opções que tocam os pla-
"determinação absoluta. nos das macro e micro teorizações no contexto
A busca de um novo tipo de sujeito dife- das ciências sociais.
- nte da noção construída na sociologia clássica A oposição entre macro e micro teorização
contra-se em curso. Dubet (1994), por exemplo, retoma e reedita o velho dilema sociológico que
nsa a ação social como combinação de várias separa indivíduo e sociedade. As proposições de
.cas que rompem com a idéia da identificação Alexander a respeito da necessidade de articular
bsoluta entre ator e sistema. Dessa concepção versões micro e macro sociais são importantes para
emerge a idéia de uma sociedade percebida não o aprofundamento desta questão, apontando al-
corno entidade única, pois concebida na guns elementos para se buscar possíveis conexões
uralidade de espaços. Recuperando a categoria entre os planos definidos como individual e social.
experiência em Thompson, que a formulou para O conceito de cultura, na visão do autor, se-
~ mper com o imobilismo da noção pré-definida ria essencial para se perceber o elemento contin-
..:. classes, na versão althusseriana, Dubet afirma a gente do comportamento humano, servindo de
existência de um jogo de tensões promovido pela ponto de costura ou mediação entre os conceitos
-ersidade de princípios vigentes no mundo so- de ação e a estrutura social. Alexander aponta tam-
. É a partir dessa tensão entre uma impossível bém para os limites dos argumentos afirrnadores
.midade do eu e a diversidade de lógicas, que o da autonomia e diversidade de comportamentos
_ jeito se constitui como efeito de um trabalho de expressivos da existência de múltiplas situações so-
onstrução e não de uma ontologia. E é no confli- ciais. A ilusão de autonomia dos indivíduos pode-
'0 que o indivíduo torna-se soberano de sua ação. ria rninimizar, diz ele, a compreensão dos mecanis-

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mos gerais e mais duradouros de poder, trazendo, Seguindo percurso semelhante a Dumont,
por conseqüência, uma debilidade na teoria e nas Elias (1993) considera as dificuldades de defini-
formas possíveis de intervenção social pretendida ção dos significados dos termos indivíduo e socieda-
pelos próprios adeptos da diversidade. de. Enquanto o primeiro reforça a idéia de pessoa
As formulações de Geertz a respeito dos vín- singular, como se fora uma entidade em completo
culos teóricos existentes entre o indivíduo e a cul- isolamento, o segundo percebe a sociedade como
tura retomam essa questão sob o ângulo da mera acumulação de muitas pequenas e variáveis
multiplicidade. O autor analisa o impacto do con- pessoas individuais, sem completa estruturação. A
ceito de cultura sobre o conceito de homem, criti- temática que serviu de fascínio ao conjunto da obra
cando a percepção da natureza humana construída de Elias possui ponto maior de aprofundamento
tanto pelo iluminismo como pela antropologia a partir do conceito de habitas, explicitado na ba-
clássica. Ao invés da imagem do homem como lança nós-eu, variável conforme o processo de in-
modelo ou como arquétipo, Geertz propõe a com- dustrialização e diferenciação da sociedade.
preensão de vários tipos de indivíduos construídos A propósito da indagação sobre o que é so-
por diferentes culturas. ciedade, afirma o autor que existem duas possibili-
dades de respostas expressivas. Respostas que refle-
''Assim como a cultura nos modelou como tem visões antagônicas sobre a relação entre indiví-
espécie única - e sem dúvida ainda nos está duo e sociedade: de um lado, as configurações sociais
modelando - assim também ela nos modela aparecem como tendo sido projetadas planejadas
como indivíduos separados. Éisso o que real- ou criadas por indivíduos e, de outro, o indivíduo
mente temos em comum - nem um ser tem sua importância minimizada, equiparando-se a
subculturalimutável,nem consenso de um cru- seus semelhantes dentro de uma perspectiva
zamento cultural estabelecido" (1989, p. 64). evolutiva e naturalizada da história. As variações a
respeito das representações construídas sobre os
As incursões filosóficas, os modelos teóri- indivíduos englobam, segundo o autor, concepções
cos e as crenças que acompanham as relações en- negativas referentes à doutrina do individualismo
tre indivíduo e sociedade explicitam as polêmicas que ou relativas a concepções positivas baseadas na va-
acompanham a história da sociologia. Os postu- lorização da personalidade singular.
lados sobre o universo das determinações, o papel Uma reflexão sobre o modo como o pró-
da estrutura e suas variações históricas trazem, no prio Elias trabalhou em seus estudos a interseção
fundo, o dilema concreto do indivíduo premido entre indivíduo e sociedade merece ser explorada. A
pelas vicissitudes de um mundo que lhe escapa, obra de Elias intitulada Mozart, Sociologia de um gê-
impondo limites à sua ação transformadora. nio contém idéias interessantes sobre as conexõe
No tocante à variedade de interpretações, ou redes que se estabelecem entre o individual e o
Dumont (1992) afirma a existência de duas espé- social. A vida do compositor é analisada como ex-
cies de sociologia, diferentes quanto ao ponto de pressão emblemática de valores de uma sociedade
partida e ao modo global de operar o conhecimen- da corte que acolhia, de forma contraditória, mú-
to. Na primeira, partimos dos indivíduos para em sicos burgueses, provocando conflitos e tensões.
seguida os vermos em sociedade, sendo esta per- Tensões circunscritas ao destino de artistas que
cebida como produto de uma interação coletiva. vivenciavam os limites de um padrão estabelecido.
Na outra espécie de sociologia, o ponto de partida O talento de Mozart, embora fruto de uma educa-
é a compreensão do homem como um ser social, ção esmerada, chocava-se com a desadaptação do
sendo o fato global da sociedade irredutível a qual- compositor aos ditames artísticos da corte. Nesse
quer composição individual. contexto, o individual e o social antes de serem di-

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sões opostas complementavam-se. artista nãoo classificações arbitrárias do mundo social. A tare-
ia fruto único de um talento herdado, mas o re- fa da ciência do social seria, nessa perspectiva, a
entante típico do encontro entre tendência cri- luta contra o monopólio da representação legíti-
ora e domínio das possibilidades efetivas de ma do mundo, sendo a sociologia da sociologia o
á-la pública. Nessa perspectiva, a potencialidade caminho capaz de suscitar a reflexividade perma-
. tiva, que poderia ser interpretada como expres- nente, obtida através de uma teorização pautada
ão de uma individualidade, agrega-se a um pro- pela crítica.
so intenso de socialização para cultivar o talen- Desvelar o que está escondido, o não explí-
, somente visível pela possibilidade de constru- cito e escamoteado e desvendar a linguagem dos
-o de um espaço público consumidor. fenômenos pré-construídos constitui o principal
A receptividade da obra de Mozart ocor- desafio de uma ciência da vida social em suas pe-
o.. de forma descontínua, haja vista os momentos culiaridades. O paradigma da carta roubada de
~ sucesso e insucesso, estando a arte na socieda- Lacan, que Bourdieu toma por referência, demons-
_ da corte condicionada à constituição de um tra que a sociologia trabalha não só com o invisí-
_ rblico consumidor. A trajetória do compositor, vel mas com o que, parecendo óbvio, escapa aos
qual é anunciada no livro, mobiliza-se na jun- olhos (Bourdieu, 1989).
-o, não mecânica, de processos sociais e caracte- Nessa mesma direção, o tema da subjetivi-
~ ticas individuais. Mozart era irreverente e cria- dade aparece permeado pelo da objetividade com
_ o. Mas é no contexto onde se circunscreve sua o qual mantém uma estreita vinculação. A
da que Elias vai buscar as possibilidades e limi- etnometodologia e sua variante culturalista que dá
de sua ação. primazia ao sujeito, concebendo a estrutura como
A transição da arte de artesão para a arte de simples conjugação de ações estratégicas não ex-
rtista é expressiva de um "deslocamento plicaria, na visão do autor, o porque da continui-
crvilizador" que implica a capacidade do produ- dade ou ruptura de tais estruturas.
r da arte controlar e canalizar sua fantasia de Na tentativa de superar dicotomias Bourdieu
rtista. O livro trata da concepção de gênio em parte de uma crítica ao subjetivismo e ao objetivis-
a sociedade pré romântica e ainda não recepti- mo, considerando ambos falsas antinomias
a essa condição. construídas na oposição entre ação e estrutura. O
As conexões entre o individual e o social atra- conceito de habitus seria a mediação entre o agente
, do conceito de babitus são evocadas na obra de social e a sociedade, capaz de ultrapassar as inter-
urdieu que também assumiu essa discussão em pretações que priorizam a autonomia das ações so-
-ários momentos de sua obra. ciais ou explicam sua lógica através do conceito de
O pensamento de Pierre Bourdieu circuns- reprodução. Em tais circunstâncias, a história indi-
creve-se à tentativa de superar as dicotomias vidual seria urna espécie de "variante estrutural"
_ tabelecidas entre os planos individual e social. do habitus de um indivíduo em seu grupo.
.Amparando-se na fonte do construtivismo lógico, Sair da "filosofia da consciência sem anu-
ue mantém do positivismo a perspectiva lar o agente", para usar uma expressão cara a
bjetivista e a crítica a especulações sem base Bourdieu, representa o grande desafio. Partindo
empírica, Bourdieu tenta afirmar a especificidade do princípio da existência de uma cumplicidade
s ciências sociais. ontológica entre sujeito e mundo o autor consi-
O estudioso francês percebe o social como dera que as práticas individuais contêm as mar-
tando formado por um conjunto de relações his- cas invisíveis do simbólico.
tóricas permeadas por linguagens. Linguagens que Recuperando a frase de Marx, "Os homens
ão também fontes de afirmação de poder e de fazem a história, mas em circunstâncias deterrni-

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nadas", Bourdieu pretende estabelecer a difícil ar- na das regras do mundo social. Tampouco repor-
ticulação entre práticas e contexto social. O habitus, ta-se a ação à vontade livre dos indivíduos.
que representa a incorporação inconsciente das Pensando o lugar como metáfora, é possí-
representações do mundo social, opera através de vel dizer, na perspectiva da sociologia de Bour-
campos variados de ação em confronto com for- dieu, que o indivíduo não escolhe sua posição, car-
ças sociais explicitadas através de campos reira, ou futuro de modo independente, visto que
relacionais. Nessa direção, o "papel do indivíduo" vivencia um mundo de valores e normas previa-
em várias esferas da vida social é condicionado por mente construídos e incorporados. Eis, portanto,
sua história e capacidade de assimilar as "regras um outro dilema que se circunscreve à noção ple-
do jogo". O fato é que ele não "escolhe" o seu na de autonomia: o sujeito é falado antes de cons-
lugar. Ou pelo menos não o faz com base em sua truir a sua própria fala.
vontade pessoal. Na realidade, a primazia conferida pelo au-
Na compreensão do social como constru- tor ao social busca responder a uma visão ingênua
ção coletiva, Bourdieu espelha-se em Durkheim, que viria as ações dos indivíduos como frutos de
mas dele se distancia quando procura afirmar a uma escolha livre. O fato de Bourdieu ter tomado
coexistência da estrutura objetiva com a vonta- o gosto como sendo movido por condicionantes
de dos agentes. Com a finalidade de evitar as de ordem social - estilo de vida e situação de clas-
polaridades do modelo objetivismo e subjetivis- se - representa a tentativa de pensar as escolhas
mo, mecanismo e finalismo, necessidade estru- não no âmbito da liberdade individual, mas sob a
tural e ação individual, o autor considera a exis- ótica dos constrangimentos sociais.
tência de momentos diferenciados capazes de Discutindo a temática da herança intelectu-
explicar a realidade dupla do mundo social al que se efetiva de pai para filho, Bourdieu repõe
(Wacquant,1992). a questão da subjetividade centrada na contradi-
A sociedade teria, nessa postulação teórica, ção vivida pelo filho, entre a necessidade de supe-
uma primeira dimensão de objetividade baseada no ração e a perpetuação da herança parental. A
espaço de posições dos agentes distribuídos em vá- interiorização do pai como limite a não ser ultra-
rios campos da vida social. Em um segundo mo- passado põe, de forma paradigmática, a palavra do
mento apareceria a experiência imediata dos agen- pai: seja como eu e seja diferente. A culpabilidade
tes efetivada a partir da explicitação das categorias pela morte simbólica do pai e a necessidade de lhe
de percepção e conseqüentes tomadas de posição. render fidelidade ocasionam diferentes tipos de so-
A articulação desses dois momentos tor- frimento, presentes sobretudo entre segmentos
na-se, no entanto, complexa, na medida em que o sociais estigmatizados. O exemplo afirmaria o
comportamento oriundo da experiência dos agen- constrangimentos inconscientes incorporados e
tes é também variável, segundo a posição que eles tornados subjetivos, realizando um dos planos da
ocupam na vida social. Esta é a questão mais po- articulação entre o social e o individual.
lêmica, em torno da qual fundamentaram-se A sociogênese, método sugerido de com-
muitas críticas. A sintonia entre o lugar ocupado preensão da interação entre indivíduo e sociedade
pelo sujeito e suas ações, se vista com base em permitiria entender como "a ordem social capta
uma ordem dedutiva, emprestaria à sociedade o canaliza e reforça os processos psíquicos, verifi-
poder soberano de uma dinâmica reprodutiva sem cando a relação entre a lógica psíquica e social'
espaço para descontinuidade. A ressalva é tam- (1997, p. 592). Essa percepção permitiria, na com-
bém percebida por Bourdieu, que em vários de preensão de Bourdieu, ultrapassar a idéia de que
seus textos, lembra que a ação é uma prática que as estruturas mentais são simples reflexos das es-
não se constitui com base em uma imposição ple- truturas sociais.

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DOSSIÊ

A relação que o autor, ao longo de seus tra- versão baseada em sua autodeterminação, como
balhos, busca estabelecer entre campo e habitus de uma percepção de sua condição de agente pas-
emerge no decurso de uma solicitação múltipla. A sivo, submetido a determinações estruturais. As
assimilação de práticas obedece a um princípio de crenças, por outro lado, não estariam no domínio
pulsão interior e condicionamento exterior, tendo puramente subjetivo. Na medida em que concreti-
p.or base um universo particular de objetos. O es- zam-se em práticas, ou agrupamentos simbolica-
paço dos possíveis, característico de cada campo mente construídos, produzem efeitos de realida-
de atividades da vida social, é formado por um de. O poder simbólico de crer efazer crer daria, por
conjunto de licitações, solicitações e interdições. exemplo, estatuto de verdade a grupos políticos e
Acontece da mesma forma na linguagem, que é palavras de ordem pronunciadas em seu nome.
um sistema de possibilidades e impossibilidades A rigor, a sociologia deveria, segundo o so-
que proíbe ou encoraja os processos psíquicos. O ciólogo preconizador da teoria da prática, romper
campo religioso constituiria um exemplo de com a idéia de um ator que, sendo agente, jamais
regulação do desejo efetivada a partir de formas será sujeito na acepção plena da palavra. Trata-se
de sublimação que são aprovadas internamente e de um agente em parte submetido aos limites e
socialmente reconhecidas. possibilidades de seu campo de atuação, com o
A utilização de conceitos cujas matrizes teó- qual mantém uma relação complexa de continui-
ricas estão fincadas na psicanálise é, no entanto, para dade e ruptura. Nesse sentido, renunciar à ilusão
o autor, motivo de ressalvas e limites, supondo-se de liberdade absoluta seria o primeiro passo para
que a sociologia tem uma estratégia metodológica a compreensão das formas sutis de dominação.
diferente da ciência do comportamento psiquíco. A discussão em torno dessa questão im-
Embora seguindo a trilha da ambivalência entre li- põe dilemas de grande complexidade, trazendo,
bido e interdições, Bourdieu considera ser o desejo no entanto, a ultrapassagem do pensamento que
não concebível de forma universal, visto que, mani- coloca do lado do sujeito a criação, a ruptura, a
festa-se em cada campo de atividades sob a forma maleabilidade e, no âmbito da estrutura, o siste-
de possibilidades definidas no seu interior. Se o ma, a repetição, a reprodução, os limites ou de-
desejo e as possibilidades de realização não apare- terminações.
cem como ambivalentes, é porque o social opera Pensar o indivíduo a partir de sua inserção
como espécie de "princípio de realidade", afirman- no tecido social não elimina, entretanto, a ques-
do-se de forma sutil, de modo a impedir a procura tão básica de saber, de fato, o que significa o pró-
ou vontade do "que não se pode". Tal perspectiva prio social: se ele percebido como fruto da ação
afirmaria também as formas não aparentes de do- criativa dos indivíduos ou cenário estruturado e
minação presentes em diferentes categorias sociais. pré-definido a partir do qual circunscrevem-se
Assim, a definição dos possíveis molda o diferentes trajetórias. Se há consenso sobre as
desejo, afirmando a grande tendência a só se que- articulações entre os planos individual e social,
rer "o que se pode". Esta seria a grande lógica de os liames que subsidiam essa articulação efeti-
reprodução do social: a interiorização naturaliza- vam-se com base em diferentes princípios. A per-
da dos limites e possibilidades. Não querer o im- manência de uma dicotomia ou ordem preferen-
possível, a título de exemplo, faz parte da lógica cial deixa, ainda, em aberto a possibilidade de uma
de setores populares, para quem o princípio de teorização sobre o nexo interativo. O conceito
realidade se expressa fortemente da seguinte ma- de habitus, pensado como mediação entre o que
neira: "isso não é para mim." seria da ordem do individual e o que seria da or-
É possível dizer que uma teorização sobre dem do social, é também passível de controvérsi-
o indivíduo em Bourdieu distancia-se tanto de uma as, na medida em que pode supor a incorporação

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DOSSIÊ

de práticas a partir de um viés determinista. Ar- e a construção de articulação entre mediações


gumenta Lahire, um dos críticos de Bourdieu tam- diversificadas da vida social. Algumas linhas de
bém reconhecedor do caráter inovador de sua ruptura e de continuidade com autores clássicos
teoria, que o sociólogo francês em seus traba- da sociologia fizeram-se presentes nas reflexões
lhos iniciais sobre a colonização valorizou a sobre o tema dos movimentos sociais.
pluralidade de esquemas e experiências incorpo- Ao invés da noção abstrata de sujeito que
radas, geradoras de contradições no âmbito das subsidiou muitas abordagens centradas em dimen-
práticas sociais. A construção de um modelo ba- sões evolutivas, os movimentos sociais foram per-
seado em sociedades pré-capitalistas, ampliado cebidos como agentes não definidos a partir de
para sociedades com forte diferenciação é que uma finalidade histórica, tal qual foram pensadas
terminou deixando de lado modelos de sociali- as classes sociais no circuito de certas formula-
zação concorrentes, diferentes e contraditórios. ções marxistas. É possível assinalar pelo menos três
A crítica de Bernard Lahire a respeito do características apontadas por teóricos dos movi-
caráter determinante do habitas fundamenta-se na mentos sociais no Brasil: pluralidade, historicidade
idéia da existência do homem plural, submetido a e autonomia.
diferentes espécies de influência: Pluralidade ou diversidade foram caracte-
rísticas atribuídas aos agentes expressivos de mo-
"Um ator plural é então o produto da expe- bilizações coletivas, situados em espaços diversos
riência - geralmente precoce - de socializa- de trabalho, mas tendo em comum a busca de bens
ção em contextos sociais múltiplos e hete- materiais e simbólicos que se explicitavam na au-
rogêneos. Ele tem participado sucessivamen- sência de cidadania. Trata-se de uma pluralidade
te no curso de sua trajetória ou simultanea- de situações que não podia ser entendida a partir
mente no curso de um mesmo período de da concepção tradicional de classes sociais. O con-
tempo de universos sociais variados neles ceito de sujeitos, no plural, e não sujeito, no sin-
ocupando posições diferentes" (Lahire, gular, traduzia, com maior fidedignidade, a mobi-
1989, p. 42). lidade descontínua e diferenciada dos movimen-
tos sociais, em contraposição teórica à noção de
A pluralidade de contextos sociais oferece- unidade ou monolitismo.
ria, portanto, um conjunto diversificado de possi- Empregados, desempregados, homens, mu-
bilidades de ação, corroborando com a idéia do lheres, jovens e velhos foram categorias explora-
ator múltiplo, submetido a formas variadas de in- das nas diferentes análises sobre movimentos so-
corporação das regras do mundo social. A coe- ciais a partir das quais se buscava compreender as
rência do hábitus ou os esquemas de ação que po- dimensões múltiplas da exclusão social.
dem ser interiorizados por cada ator, dependeria Se a heterogeneidade das ações de classe
da articulação dos princípios de socialização aos era desconsiderada na teoria marxista, sendo vi -
quais ele teria se submetido. ta como sintoma de alienação, os movimento
sociais ergueram a bandeira da diversidade
Individuos organizados, sujeitos coletivos e como expressão de uma nova dinâmica do com-
plurais: reflexões sobre os movimentos sociais portamento coletivo. A pluralidade foi, inclu -
ve, considerada como riqueza de manifestaçõ
As discussões efetivadas em torno dos mo- que engendrava o exercício de uma democracia
vimentos sociais recuperaram parte da polêmica vivida de maneira informal pelos agentes. For
sobre a relação indivíduo e sociedade, apresentando da unidade partidária, que caracterizava a visã
discussões sobre a existência de práticas coletivas anterior de movimento operário, a pluralidad

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DOSSIÊ BCH-UFG
PERiÓDICOS
também percebida como exercício perma- turas ou contextos de mobilização. Seguindo tal
te da diferença. raciocíonio, não existiriam movimentos atrasados
Alguns dos movimentos ligados principal- e movimentos avançados, segundo um ideal pré es-
e às minorias sociais fizeram, inclusive, da di- tabelecido, mas conflitos sociais em articulação
ça um espaço de afirmação, corroborando a constante com a conjuntura da qual diferentes
de sujeitos plurais como especificidade da sujeitos participavam.
contemporânea, marcada por afinidades A idéia de historicidade tornou também pre-
~ truídas mais na prática que na idéia teórica e sente a emergência de atores distintos dos tradici-
rtual de um lugar comum. No caso do movi- onais que figuravam como exemplo de transfor-
to feminista, o momento inicial da busca de mações sociais. "Quando novos personagens en-
cidade pela homogeneidade foi seguido por traram em cena" é o título sugestivo do livro de
outro que reconhecia a existência de valores Eder Sader que analisa o surgimento de movimen-
=erenciados no âmbito da categoria de mulheres tos sociais na década de 80 em São Paulo.
deira e Ardaillon, 1984). A valorização da Não só no Brasil como na América Latina as
- oricidade construida em torno das reflexões disposições conjunturais tiveram peso relevante na
re os movimentos sociais levava em conta a formulação de estratégias e na afirmação de atores
;,: de indivíduos em processo permanente de considerados verdadeiros porta-vozes de direitos
- nstituição. Isso implicava a possibilidade de de cidadania. As concepções de autonomia
struções de identidades variadas, a exemplo de construidas na qualificação dos movimentos soci-
vimentos amplos que se apresentavam como ais tornam-se mais presentes no momento pós di-
tiuos de curta temporalidade. tadura no Brasil, circunstância na qual os movi-
Antes de um vir a ser, os movimentos foram mentos sociais foram vistos na condição de sujei-
cebidos como sujeitos móveis, constituidos a tos potenciais de uma sociedade construida em ou-
artir de um campo vasto de experiências. Essa tros parâmetros. A identidade dos movimentos
ncepção sofre forte influência de Thompson sociais é percebida em estruturas não autoritárias e
~981), quando na crítica à percepção da teoria
trata e considerada desvinculada da realidade "exclui a uniformidade: só pode se desen-
qual o pensamento de Althusser, enfatiza a volver na diversidade, que requer um cená-
oção de experiência como elemento básico e per- rio politico no qual 'todas as vozes, todas'
znanente da condição histórica dos indivíduos. Um (como diz uma canção chilena) possam ser
ontraponto entre estrutura e experiência coloca- ouvidas" (Evers, 1984: 19).
-a os sujeitos no centro da ações e do acontecer
istórico. Sujeitos e porta-vozes de uma sociedade em
A valorização da ação, do contingente e do processo de renovação, os movimentos sociais fo-
historicamente constituido ensejou a idéia de in- ram analisados teoricamente como agentes ativos
divíduos móveis; no entanto, identificados através de processos sociais.
de experiências coletivas que os constituíam en-
quanto grupo. Por outro lado, a descoberta de uma "N o decorrer da criação de novos padrões
espécie de gênese dos movimentos sociais rom- da prática sócio cultural e de reconstrução
peu com a visão de um quadro evolutivo diferente de fragmentos de uma identidade autôno-
da idéia de "estágios" ou etapas de organização. A ma, os indivíduos e os grupos como um
quebra de uma tradicional versão evolutiva trou- todo constituem-se em sujeitos deste pro-
xe à tona a compreensão de que a lógica dos ato- cesso. Para ser mais preciso, desenvolvem
res em interação responderia a diferentes conjun- dentro de si mesmos os fragmentos cor-

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respondentes de um novo 'ser sujeito'. Na- sociais uma tensão entre lugares preconizados pela
turalmente, isto implica uma profunda re- estrutura e pela subversão dos mesmos, através da
visão das concepções tradicionais sobre su- ação de indivíduos e grupos que encarnam as teo-
jeitos sociais e sobre o processo de sua rias da mudança social. Não por acaso, o contexto
constituição" (Evers, 1984: 19). pós ditadura no Brasil é fértil para acolher as críti-
cas aos modelos teóricos que valorizam o peso das
Em síntese, as discussões sobre a ação dos estruturas. No âmbito do marxismo, a ênfase no
indivíduos instituídos através de diferentes coleti- papel revolucionário das ações ou a prioridade dos
vos, na sociologia dos movimentos sociais, encon- limites estruturais fazem-se também presentes, a
tram um lugar fértil, na medida em que as mobili- exemplo da polêmica entre Thompson, Althusser
zações, na acepção mais ampla, significam e, posteriormente, Castoriadis.
questionamento de práticas e lugares estabeleci- É importante estar atento às variações teó-
dos. É nesse sentido que Bruni (1988) pontua a ricas alusivas ao plano das liberdades individuais e
necessidade da sociologia incorporar aspectos de dos constrangimentos sociais, e, sobretudo consi-
um social não instituído, capaz de deixar aflorar derando-se que nas ciências soéiais o contexto his-
dimensões de individualidade ainda não domesti- tórico de criação da teoria é fundamental. No en-
cadas pela razão. Nessa direção, indaga: tanto, enfrentar essa questão no âmbito de situa-
ções concretas de pesquisa traz a vantagem de ve-
"se os sujeitos manifestam maior energia e rificar, não apenas pelo estatuto da prova, o modo
subvertem o que deles se espera, qual é o como o social tece suas tramas e rede de interações
sentido para a autoconsciência da sociologia em moedas sempre de dupla face.
de seus paradigmas externos e racionais de
explicação ou mesmo de mera identificação Bibliografia
das questões?" (1988:30).
ALEXANDER,Jefrey.(1987), o novo movimento te-
Indivíduo e sociedade: tensões e paradoxos órico, RBSC 4. São Paulo: ANPOCS.
ARDAILLON, Danielle e CALDEIRA, Tere-
Ao final destas reflexões não propriamente za.(1984), Mulher: indivíduo ou família. São Paulo:
conclusivas, é importante voltar ao título que ser- Novos estudos Cebrap.
ve de referência a este texto. O lugar dos indivídu- BARREIRA Irlys. (1996), Moza~ sociologiade uma
os nas concepções sobre o modo de funciona- gênio, de Norbert Elias, RBCS, 31. São Paulo:
mento da vida social, incluindo particularmente a ANPOCS.
sociologia, é variável no contexto de distintas teo- BOURDIEU, Pierre. (1989), Opoder simbólico. Lis-
rias, postulações ideológicas e filosóficas. Teorias boa: Difel.
que se notabilizam pela valorização das estrutu- _______ ,.(1993), La misêre du monde. Pa-
ras e das determinações da vida social terminam ris: Editions du Seuil.
por emprestar aos indivíduos um papel relativo e _______ . (1992), avec Wacquant Lôic,
condicionado. Por outro lado, a ênfase nas mu- Réponses._Paris: Editions du Seuil,
danças e a luta contra as determinações de diver- _______ . (1999), A dominação masculina.
sas ordens influem na formulação de uma via Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
voluntarista que estima com vigor a crença nas BRUNI,José Carlos.(1988), "Há uma crise nas ci-
ações e seu poder de construção histórica. ências sociais?", in Marques Neto e Lahuerta Mil-
Talvez seja possível pensar que é constitutivo ton (orgs) O pensamento em crise e as artimanhas do
do pensamento sociológico e das demais ciências poder, São Paulo: UNESP.

62 REVISTA DAS CIENClAS SOCIAIS - VOWME 34 - NÚMERO 2 - 2003


801..J VII
I

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